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Hoje soa bizarro, mas no Egito de 3 mil anos atrás mumificar e enterrar gatos em
sarcófagos era sinal de amor e veneração. Os egípcios até tinham uma deusa-
gato: Bastet, símbolo da fertilidade, maternidade e da sexualidade feminina. Foi
para ela que os bichinhos acabaram sacrificados. Milhares de anos depois, os
gatos ainda mantêm o prestígio conquistado no Egito e um certo domínio sobre
os homens. Abrimos nossas casas para eles, isso sem pedir muita coisa em troca
além de companhia. Mas nem sempre foi assim. Ao longo da relação, a
humanidade amou e perseguiu o pequeno felino, em uma trama ao mesmo tempo
sagrada e profana, que você verá nas próximas páginas.
Sagrados
Os gatos entraram na história da humanidade para nos proteger dos ratos. Entre
13 mil e 11 mil anos atrás, homens e mulheres começavam a viver o sonho da
casa própria. Nasciam a agricultura e os primeiros assentamentos urbanos, no
Crescente Fértil, área que abraça pedaços do que hoje chamamos de Egito,
Palestina e Israel, estendendo-se até o sul do Iraque. A ideia agradou aos
roedores, atraídos pelo alimento armazenado. E atrás deles vieram pequenos
felinos selvagens. Começava ali o jogo de gato e rato – e de gato e Homo sapiens.
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O cérebro pode ter diminuído, mas a inteligência deles aumentou num aspecto
fundamental. Ao longo dessa evolução, eles aprenderam uma habilidade com a
qual seus ancestrais selvagens nem sonhavam: comunicar-se com humanos. É por
essa via que a domesticação realmente se manifesta. A vocalização é
naturalmente valorizada pelos humanos. Os gatos que sabiam miar com jeitinho
para pedir comida viraram os favoritos dos nossos antepassados. O Felis catus,
então, surgiu como um comunicador nato, fazendo do miado o seu jeito de puxar
papo com o dono. Não é que os gatos selvagens não miem, mas os domésticos
fazem sons suaves que agradavam mais à nossa audição. Mesma coisa com o
ronronar, que lhes garante nossa simpatia.
Essa comunicação, ainda que miada, criou um vínculo afetuoso tão firme que,
num momento importante da história da humanidade, os gatos se tornaram mais
do que pets desratizadores. Eles viraram deuses.
A amizade virou adoração religiosa por volta de 600 a.C., quando os egípcios
passaram a representar a deusa Bastet com a cabeça de um gato, em vez da de um
leão. Foi aí que começou o sacrifício dos gatinhos, mencionado lá no início. Em
um único templo, foram encontradas 300 mil múmias felinas. Acharam tantas
delas em escavações do século 19 que muitos desses restos milenares acabaram
vendidos como fertilizante – um único navio zarpou com 19 toneladas do produto
para a Inglaterra.
Essa obsessão incondicional aos gatos cultivada pelos egípcios não passou batido
para mercadores e viajantes. Foi pelas mãos deles que os bichanos começaram a
conquistar o mundo cruzando o Mediterrâneo, por volta de 500 a.C. Ao longo dos
séculos, foram ampliando seus domínios. Eram marujos disputados, pois
ajudavam a proteger o alimento embarcado nos navios mercantes.
Mas esses rituais macabros são só uma parte da história. Os gatos eram valiosos
na Idade Média também – ainda não havia forma mais eficiente de matar ratos,
afinal. No País de Gales do século 10, um gato custava tão caro quanto uma
ovelha ou uma cabra – animais valiosos, já que produzem comida e vestimenta.
Em caso de divórcio, o marido podia levar um gato da casa, e o restante ficava
com a mulher. Na Saxônia, Alemanha, a política sanitarista antirrato, e pró-gato,
era clara: matar um gato dava multa de 60 alqueires de grãos (1,5 tonelada). Mas
a relativa paz felina duraria pouco, porque eles estavam prestes a ganhar um
inimigo mortal: a Igreja Católica.
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Profanos
O pintor italiano Domenico Ghirlandaio (1449-1494) fez duas versões muito
parecidas da Última Ceia. Na segunda, pintada em 1842 para a Igreja
Dominicana de São Marcos, em Florença, mudou um detalhe atroz: tirou o saco
de moedas que Judas carregava e postou sentado ao seu lado um gato cinzento.
Em vez das 30 moedas de prata que Judas recebeu para entregar Jesus, era o
felino que assumia a simbologia do engano e da traição. Retrato de uma época em
que ser gato virou maldição.
A semente para o ódio contra os felinos tinha sido plantada bem antes. Começou
quando o cristianismo teve a ambição de se tornar a única religião da Europa. O
Império Romano tinha como política a tolerância religiosa. Os povos dominados
tinham uma certa liberdade para seguir com seus cultos. Mas no século 4, quando
o cristianismo se tornou a religião oficial do Império, tudo mudou. A Igreja
Católica Apostólica Romana proibiu cultos pagãos e deu início a séculos de
obscurantismo e perseguição, inclusive aos felinos. Em alguns lugares,
principalmente nas áreas rurais, mais influenciadas pela pregação cristã, o gato
passou a ser associado à má sorte e à bruxaria. A imagem da deusa céltica
Cerridwen, que usava capas, fazia poções em caldeirões e se metamorfoseava em
felinos, se tornava um arquétipo do mal.
Ainda assim, os gatos mantinham seu status nas casas medievais, mas a coisa
ficaria feia para o lado deles a partir de 1233. No dia 13 de junho, o papa
Gregório 9º publicou a bula Vox in Rama, que associava o gato a Satã. Milhões de
animais foram torturados e queimados na fogueira, junto com centenas de
milhares de mulheres acusadas de serem bruxas. A radicalização pretendia
eliminar de vez os cultos pagãos que ainda existiam. E também foi uma reação a
um culto relativamente novo que a Igreja não bicava: o Islã, que amava os gatos.
Maomé teve até uma gata malhada de estimação chamada Muezza, talvez uma
angorá ou abissínia.
A sorte do gato no Ocidente começa a mudar no século 18. Luís 14, da França,
chegou a jogar uma cesta com gatos vivos na fogueira, em Paris. Mas no reino de
seu sucessor, Luís 15, o clima estava bem mais favorável aos felinos. Em suas
andanças pelo Palácio de Versalhes, conviveu com os vários gatos de estimação
da sua mulher, Maria Leszczynska, e das criadas. Nessa fase, multiplicam-se as
pinturas de damas da corte com seus peludos.
Com o cachorro, a história é quase a mesma, mas com uma diferença radical. Os
cães têm mais de 400 raças reconhecidas por associações internacionais, contra
60 dos gatos. A variação é pequena porque o genoma dos gatos é muito estável.
Com isso, tentativas de fazer gatos de aparência exótica ou sociáveis como cães
não costumam durar mais que uma geração. É como se os genes mantivessem o
gato irremediavelmente agarrado a seu passado selvagem, no qual vamos
mergulhar agora.
– (Tomás Arthuzzi)
Outra marca registrada é a dieta. Gatos são hipercarnívoros. Isso quer dizer que
dependem de proteína animal para sobreviver. Eles tiram da carne a maior parte
da energia e das vitaminas essenciais à vida, diferente de animais herbívoros ou
onívoros, que também as obtêm de vegetais e carboidratos.
Enquanto cães se adaptaram para tirar proveito das sobras das refeições humanas,
os gatos não abriram mão da dieta deles. Análises recentes do DNA canino
mostram que, ao longo da domesticação, os cães adquiriram mais cópias do gene
relacionado à produção de amilase, enzima responsável por processar o amido e
possibilitar uma dieta menos dependente de carne. Os felinos não. Se os donos
não os alimentarem direito, eles vão para a rua caçar – pássaros, roedores,
qualquer coisa. Mas a tendência é que eles não precisem mais recorrer tanto aos
seus instintos caçadores. Porque os gatos estão voltando a virar deuses. Mais
especificamente, divindades urbanas.
O gato doméstico, afinal, parece ter sido talhado justamente para o século 21.
Com a humanidade se tornando cada vez mais ocupada e urbanizada, cuidar de
um cão pode parecer uma tarefa assustadora. Já os felinos são pequenos, perfeitos
para dividir espaço em apartamentos que só diminuem de tamanho. Limpos e
autossuficientes, não precisam de banho nem de serem treinados para fazer xixi
no lugar certo – são praticamente programados para fazer na caixa de areia. Após
um longo dia de trabalho, não é preciso levá-los para dar uma voltinha no
quarteirão. Basta calçar o chinelo, sentar no sofá e relaxar afofando a bola de
pelos. Com tudo isso, o gato tem um “custo de manutenção” menor, considerando
alimentação, higiene e cuidados veterinários. Um estudo feito pela Associação
Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet) mostrou
que o gasto médio mensal com um cão de porte médio é de R$ 271 reais. Já o
dono de um gato vai gastar em média R$ 121 por mês para manter o bicho. Ou
seja, o gato cabe mais no bolso.