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Banida, desamparada, e

marcada como uma assassina,


Cassandra Belmont, Lady
Paget, chega a Londres, em
plena regência, determinada
a vencer a reputação que a
havia precedido, a fim de
encontrar um cavalheiro rico
para poder retornar à vida
extravagante que estava
acostumada. Ela põe os olhos
em Stephen Huxtable, Conde
de Merton, um homem com
possibilidades e com
aparência angelical, ela não
pode resistir.
Intrigado com o charme de
Cassandra, Stephen aceita em
convertê-la sua amante. Mas,
apesar de sua aparência e
charme, Stephen não é
nenhum anjo, e Cassandra vai
logo perceber que tem que
pagar um preço por tentar
seduzir um.
Revisora Inicial: Edith
Revisora Final: Manuelah
Visto Final: Jujuba

Projeto Revisoras Traduções


CAPÍTULO 01

—O que vou fazer é procurar


um homem.
Quem falava era Cassandra
Belmont, lady Paget, uma viúva. Em
pé, junto à janela da sala da casa que
tinha alugado em Portman Street,
Londres. A casa estava mobiliada,
embora tanto os móveis como as
cortinas e os tapetes haviam visto
melhores dias. Possivelmente já os
tivessem visto há dez anos. Era um
lugar elegante, mas sem brilho, muito
apropriado para as circunstâncias que
rodeavam a vida de lady Paget.
—Para se casar? — disse
assombrada Alice Haytor, sua dama
de companhia.
Cassandra observou, com
desânimo e com um sorriso
zombeteiro nos lábios, uma mulher
que passava pela rua levando um
menino pela mão que não queria ser
levado assim ou de modo semelhante.
Os movimentos da mulher
denunciavam sua irritação e
impaciência. Seria a mãe do menino
ou a babá? Fosse quem fosse, dava no
mesmo. A rebeldia da criatura e sua
tristeza não eram de sua conta. Ela já
tinha muitas preocupações.
—Claro que não, —
respondeu. — Para isso teria que
achar um idiota.
—Um idiota?
Cassandra sorriu, embora não
fosse uma expressão alegre.
Tampouco se voltou para olhar Alice.
A mulher e o menino tinham
desaparecido de sua vista. Um
cavalheiro caminhava em direção
oposta com o olhar cravado no chão e
a expressão carrancuda. Supôs que
chegaria tarde a algum encontro e
que, na opinião do cavalheiro, sua vida
dependia de chegar a tempo a tal
compromisso. Talvez estivesse certa.
Talvez não.
—Só um idiota se casaria
comigo — replicou. — Não. A
verdade é que não necessito de um
homem para me casar, Alice.
—Ah, Cassie! —exclamou a
dama de companhia, muito
preocupada. —Com certeza não se
refere a... — Deixou a frase no ar
porque não era preciso que a
completasse.
Cassandra só podia se referir a
uma coisa.
—É claro que sim —
afirmou, voltando-se para olhar a sua
dama de companhia com expressão
jocosa, zombeteira e penetrante.
Alice se aferrava com força
aos braços da poltrona que ocupava e
se inclinava para frente como se
tivesse intenção de ficar em pé,
embora não ficasse.
—Escandalizei você?
—Se tivermos vindo a
Londres foi com o propósito de
procurar emprego, Cassie. As duas. E
Mary também. — recordou-lhe Alice.
—Entretanto, não é um
plano muito concretizável, não lhe
parece? —Replicou ela com uma
gargalhada carente de bom humor. —
Ninguém irá querer dar emprego a
uma criada convertida em cozinheira
que tem uma filha pequena... sem
estar casada e sem ser viúva. E uma
carta de recomendação assinada por
mim fará um fraco favor a Mary,
verdade? Além disso, perdoe-me que
lhe diga isso, Alice, mas pouca gente
quererá contratar uma preceptora que
passa dos quarenta quando há tantas
jovens dispostas a ocupar tal posto.
Sinto muito ter que indicar essa crua
realidade, mas a juventude é um valor
em alta hoje em dia. Foi uma
maravilhosa preceptora para mim e
desde que se converteu em minha
dama de companhia foi uma
maravilhosa amiga. Mas a idade não
está a seu favor, reconheça. Quanto a
mim, enfim... A menos que faça algo
para ocultar minha identidade, coisa
que seria impossível, porque precisaria
de cartas de recomendação, tenho um
futuro muito negro no mercado de
trabalho. E em qualquer outro.
Ninguém vai querer contratar a
assassina do machado sob nenhuma
circunstância.
—Cassie! —Exclamou sua
antiga preceptora, que levou as mãos
às faces—. Não deve se descrever
dessa maneira. Nem sequer de
brincadeira.
Cassandra não era consciente
de que estavam falando de
brincadeira. De qualquer forma,
soltou uma gargalhada.
—As pessoas estão
acostumadas a exagerar, não é certo?
—perguntou —Inclusive a inventar
coisas. Assim é como me vê meio
mundo, Alice. Precisamente porque
lhes divertem acreditar em semelhante
barbaridade. Suponho que muitos
sairão correndo assim que eu colocar
um pé na rua. Terei que buscar um
homem destemido.
—Ah, Cassie! —Exclamou
de novo Alice, com os olhos cheios de
lágrimas — Tomara não tivesse que...
—Tentei ganhar dinheiro nas
mesas de jogo — recordou, erguendo
um dedo como se houvesse mais. —
Teria acabado pior do que estou, se
não fosse pelo modesto golpe de sorte
que tive na última mão. Agarrei meus
lucros e fugi. Descobri que não tenho
temperamento de apostadores, nem
habilidades. Além disso, estava-me
assando com o véu de luto e percebi
que várias pessoas estavam tentando
adivinhar minha identidade.
Ergueu um segundo dedo, mas
descobriu que não havia nada mais a
acrescentar. Não tinha tentado fazer
mais nada pela simples razão de que
não havia mais nada para se tentar.
Salvo uma coisa.
—Se não puder pagar o
aluguel na próxima semana, ficaremos
na rua, Alice. Coisa que me desagrada
profundamente. —Riu de novo.
—Talvez devesse voltar a
pedir ajuda a seu irmão, Cassie.
Seguramente...
—Já pedi ajuda ao Wesley,
Alice — a interrompeu com secura—
Pedi que me acolhesse por uma
temporada até que pudesse achar um
modo de ganhar a vida. E qual foi sua
resposta? Que sentia muito. Que
adoraria me ajudar, mas que estava a
ponto de embarcar em um extenso
percurso a pé pela Escócia com um
grupo de amigos... que se sentiriam
muito decepcionados se os
abandonasse no último momento. A
que lugar da Escócia dirijo meu
pedido de ajuda exatamente? Deveria
lhe suplicar de joelhos desta vez? E
incluir você, Mary e Belinda no
pedido? Ah, também deveria suplicar
por você, Roger. Achou que o
esqueci?
Um cão grande e desgrenhado
de raça indeterminável que estava
deitado em frente ao fogo acabava de
se aproximar, coxeando para que lhe
coçasse a orelha. Só tinha uma, da
outra restava apenas uma parte. O
animal coxeava porque também lhe
faltava uma pata. E só via por um
olho, com o qual a observava
enquanto ofegava de felicidade. Por
muito que o banhassem e o
escovassem todos os dias, sempre
parecia desgrenhado. Cassandra o
acariciou com as duas mãos.
—Não pediria ajuda ao
Wesley nem que estivesse em Londres
— acrescentou quando o cão se
deitou aos seus pés e repousou a
cabeça entre as patas com um suspiro
de contentamento. —Vou achar um
homem. — disse, depois de se voltar
para a janela e seus dedos
tamborilarem sobre o batente. — Um
homem rico. Muito rico. Que nos
manterá rodeadas de luxos. Não será
caridade, Alice. Será um emprego e
saberei ganhar bem o dinheiro. —Sua
voz destilava um claro desdém, que
poderia estar dirigido para o
desconhecido que ia se converter em
seu protetor. Ou para ela mesma.
Tinha sido uma esposa durante nove
anos, mas jamais tinha sido a amante
de ninguém. Dentro de pouco tempo
seria.
—Por Deus! —exclamou
Alice muito alterada— De verdade
chegamos a isto? Não penso permitir.
Deve haver outra alternativa. Não vou
permitir. Muito menos quando uma de
suas razões para fazer isso é porque
se sente obrigada a me manter.
Cassandra seguiu com o olhar
o avanço de uma antiga carruagem
que se movia devagar pela rua,
conduzido por um cocheiro que
parecia ter tantos anos como o
veículo.
—Não vai permitir? —
replicou. — Não pode me deter,
Alice. Os dias nos quais eu era
Cassandra e você a senhorita Haytor
ficaram para trás. Talvez resta muito
pouco daquela Cassandra. Não tenho
dinheiro e minha reputação é péssima.
Não tenho amigos além destas portas
e não tenho parentes dispostos a
sofrer as consequências de me ajudar.
Mas tenho uma coisa, uma qualidade
que me assegurará um emprego bem
remunerado, graças ao qual
recuperaremos um nível de vida
acomodado e estável. Sou bonita. E
desejável.
Em outras circunstâncias,
semelhante afirmação poderia parecer
pretensiosa. Entretanto, havia dito isso
com um tom zombador. Porque,
embora a afirmação fosse muito
verdadeira, Cassandra não se
orgulhava disso. Mais lhe parecia uma
maldição. Sua beleza lhe serviu para
obter um marido muito rico aos
dezoito anos.
E também lhe tinha servido
para conhecer a tristeza mais absoluta
que podia existir durante dez anos. Já
era hora de que a usasse para seu
próprio benefício. Para conseguir
dinheiro para pagar o aluguel desse
alojamento sem brilho, a comida que
levavam a boca e a roupa que
necessitavam. E também para
economizar, no caso de passarem
tempos ruins.
Não. Nada de economizar.
Fazer uma poupança, como Deus
manda. Nada de tempos ruins e de se
limitar a subsistir com muita
dificuldade quando lhe ia ser muito
custoso ganhar o dinheiro. Seus
amigos e ela viveriam rodeados de
luxos. Claro que sim. O homem que a
mantivesse pagaria seus serviços a
preço de ouro. Ou arranjaria outro
que lhe pagasse mais.
Não lhe importava que tivesse
vinte e oito anos. Estava muito melhor
que quando tinha dezoito. Tinha
adquirido peso... Nos lugares
apropriados. Seu rosto, que aos
dezoito era bonito, tinha adquirido
uma beleza clássica com o passar dos
anos. Seu cabelo, de um brilhante tom
acobreado, não se tinha escurecido e
nem perdido brilho.
E já não era tão inocente.
Justamente o contrário. Sabia muito
bem como agradar a um homem.
Nesse mesmo momento havia um
cavalheiro em algum lugar de Londres
que logo estaria disposto a gastar uma
fortuna para possuí-la e se assegurar
da exclusividade de seus serviços. Em
realidade, havia mais de um
cavalheiro, mas bastaria um.
Certamente havia um em concreto
ansioso por experimentar o prazer de
possuí-la, embora a essas alturas o
desconhecesse. Tal cavalheiro ia
deseja-la mais do que tinha desejado
algo em toda sua vida. Como lhe
aborrecia os homens!
—Cassie, —disse Alice para
que a olhasse, coisa que ela fez com
gesto interrogante, — não temos
amizades em Londres. Como espera
conhecer algum cavalheiro?
Sua dama de companhia tinha
formulado a pergunta com tom
triunfal, como se desejasse o fracasso
de sua empreitada... algo que sem
dúvida devia desejar de coração.
—Continuo sendo lady
Paget, ou não? —Replicou com um
sorriso—. Sou a viúva de um barão. E
ainda tenho a roupa elegante e os
complementos que Nigel insistia em
comprar, embora reconheça que estão
um pouco passados de moda. Alice,
estamos em plena temporada social.
Todas as pessoas de relevância estão
em Londres e todos os dias se
celebram festas, bailes, concertos,
serões, almoços ao ar livre e um sem
fim de entretenimentos. Não será
difícil me inteirar de alguns deles. E
não será difícil descobrir o modo de ir
aos mais importantes.
—Sem convite? —perguntou
Alice, que franziu o cenho.
— Esqueceu de que todas as
anfitriãs desejam que suas festas
sejam as mais concorridas possíveis?
Não acredito que vão me negar a
entrada onde eu resolva ir. Irei me
limitar a passar pelas portas com
grande desembaraço. Uma vez será o
suficiente para obter meu propósito.
Alice, esta tarde, você e eu iremos
passear no Hyde Park. À hora
apropriada, é claro. Faz bom tempo e
a alta sociedade estará desejando ver e
se deixar ver. Porei o vestido negro e
o chapéu com o véu denso. Estou
certa de que me conhecem mais por
minha reputação que por meu físico.
Faz uma eternidade que não piso em
Londres. Mas não quero me arriscar a
que alguém me reconheça tão cedo.
Alice suspirou e se acomodou
na poltrona enquanto meneava a
cabeça.
—Deixe-me escrever uma
carta sensata e conciliadora ao lorde
Paget em seu nome, — sugeriu. —
Cassie, ele não tinha o direito de
colocá-la para fora de Carmel House
quando decidiu se mudar para a
propriedade um ano depois da morte
de seu pai. Os termos de seu contrato
matrimonial não deixam lugar a
dúvidas. Em caso de seu marido
falecer antes de você, a residência da
viúva se converteria em seu lar. E te
corresponde uma soma importante de
dinheiro. Além de uma generosa
pensão de viuvez procedente das
rendas da propriedade. Não recebeu
nem uma coisa, nem outra, apesar de
lhe haver escrito umas quantas vezes
reclamando aquilo que lhe pertence
legalmente. Talvez não a tenha
entendido.
—Escrever-lhe não servirá
de nada —replicou Cassandra. —
Bruce me deixou muito claro que
considerava minha liberdade um
generoso presente em troca do que
aconteceu. Não faria acusações contra
mim pela morte de seu pai porque não
havia provas concludentes de que eu o
tivesse matado. Mas um juiz ou um
jurado bem poderiam me considerar
culpada de qualquer forma, face à
falta de evidências. Alice, se isso
acontecesse, eles poderiam me
enforcar. Bruce me assegurou que
não faria nenhuma denúncia se eu
fosse embora de Carmel House para
não voltar nunca mais... E se eu
deixasse todas minhas jóias, além de
renunciar a qualquer compensação
econômica.
Alice não pigarreou. Porque
estava a par de todo isso. Sabia os
riscos que corria Cassandra se lutasse
por seus direitos. E ela tinha escolhido
não lutar. Tinha sofrido bastante
violência durante os últimos nove
anos. Dez, a essas alturas. Tinha
escolhido partir sem mais, com suas
amigas e com sua liberdade.
—Não vou morrer de fome,
Alice. —sentenciou— Nem você, nem
Mary, nem Belinda. Eu me
encarregarei de cuidar de todas. E a
você também, Roger — acrescentou
enquanto lhe acariciava a barriga com
a ponta do sapato, gesto que fez que o
cão golpeasse o chão com o rabo ao
tempo em que agitava as três patas no
ar. O sorriso de Cassandra se tingiu de
amargura... e de algo muito mais
terno. —Ah, Alice! —Exclamou
enquanto atravessava a estadia para
ajoelhar-se aos pés de sua antiga
preceptora. —Não chore. Por favor.
Não posso suportar isso.
—Jamais pensei que a
veria... —disse Alice entre soluços—
que a veria convertida em... cortesã!
Porque isso é o que será. Uma Prost...
Uma Prost... de luxo —concluiu,
embora fosse incapaz de dizer a
palavra completa.
Cassandra lhe deu uns tapinhas
em um joelho.
—Será mil vezes melhor que
o matrimônio — ela lhe assegurou. —
Não se dá conta? Desta vez serei eu
quem tem o poder. Entregarei meus
favores ou os negarei conforme
preferir. Poderei me desfazer do
cavalheiro em questão se eu não
gostar ou se me desiludir de alguma
forma. Serei livre para sair e entrar
quando quiser, e para fazer o que
quiser, salvo quando estiver... enfim,
trabalhando. Será dez mil vezes
melhor que o matrimônio!
—A única coisa que sempre
desejei na vida é vê-la feliz, — disse
Alice enquanto sorvia pelo nariz e
limpava as lágrimas. É o que querem
as preceptoras e as damas de
companhia. A vida passa por nós, mas
aprendemos a desfrutar com a vida de
nossas pupilas. Sempre desejei que
conhecesse o que é o amor. E que
amasse.
—Conheço as duas coisas,
tola. — replicou ela ao tempo que se
sentava sobre os calcanhares. —Alice,
tenho seu amor. E o de Belinda. E o
de Mary, acredito. Para não falar do
amor de Roger. —O cão se
aproximou dela e estava lhe golpeando
uma das mãos com o focinho a fim de
que seguisse o acariciando. — E amo
todos vocês.
Era verdade.
As lágrimas ainda corriam
pelas faces de sua antiga preceptora.
—Sei, Cassie. —afirmou. —
Mas você sabe a que me refiro. Não
se faça de idiota. Quero vê-la
apaixonada por um homem bom que
lhe corresponda. Não faça essa cara.
Ultimamente sempre enfrenta o
mundo com ela, assim que qualquer
um poderia confundi-la com sua
verdadeira personalidade. Conheço
muito bem essa careta depreciativa e
esse olhar cínico, que é muito pouco
agradável. Existem homens bons. Meu
pai foi um deles, e estou certa de que
não é o único que o Senhor criou.
—Bom. — replicou
Cassandra enquanto lhe dava mais
alguns tapinhas no joelho, — Talvez,
sem saber, escolha um homem bom
como protetor que acabe se
apaixonando loucamente por mim.
Não, isso não, já tive bastante loucura
em minha vida. Que acabe se
apaixonando profundamente por mim
e por quem eu me apaixone
profundamente. Depois nos
casaremos e viveremos felizes para
sempre com nossa dúzia de crianças.
Você poderá se encarregar de todos
eles e lhes ensinará tudo o que quiser.
Não vou negar-lhe o posto só porque
tenha passado dos quarenta e esteja
na velhice. Isso a faria feliz, Alice?
A aludida estava rindo e
chorando ao mesmo tempo.
—A parte das doze crianças
não muito, na verdade. — respondeu
—Pobre Cassie, acabaria consumida.
Ambas estalaram em
gargalhadas enquanto Cassandra
ficava em pé.
—Além disso, Alice —
acrescentou —não há nenhum motivo
pelo qual sua felicidade e sua vida
dependam da minha. Viver através
dos outros é algo terrível. Talvez vá
sendo hora de você começar a viver
por sua conta. E amar. Talvez seja
você quem conheça um cavalheiro
que perceba a joia que é. Que se
apaixone por você e você por ele.
Talvez seja você quem acabe vivendo
esse "felizes para sempre".
—Mas me economizando a
parte das doze crianças, espero —
declarou Alice com uma fingida careta
de espanto, que fez que ambas se
pusessem a rir de novo.
Ah, tão poucos motivos para
rir havia ultimamente! Pensou
Cassandra. Podia contar com os dedos
de uma mão as vezes que rira de
verdade durante os últimos dez anos.
—Será melhor que vá
desempoeirar meu chapéu negro —
disse.

Stephen Huxtable, conde de


Merton, cavalgava pelo Hyde Park
acompanhado de Constantine
Huxtable, seu primo. Era a hora do
passeio da tarde e a avenida principal
estava lotada de veículos de todo tipo,
quase todos descobertos para que os
ocupantes pudessem tomar o ar,
contemplar a atividade que se
desenvolvia ao seu redor e conversar
com os ocupantes dos outros veículos
com quem se cruzavam, assim como
com os que caminhavam. Estes
últimos se contavam a centenas. Além
disso, havia uma grande quantidade de
cavaleiros com suas respectivas
montarias. Stephen e Constantine
entre eles. Todos se esforçavam por
avançar entre a maré de carruagens.
Era um lindo dia, só com
algumas nuvens no céu, cuja sombra
se agradecia, já que evitava que o sol
fosse abrasador em excesso.
Ao Stephen não incomodava
semelhante multidão. Não se ia ao
Hyde Park a passear com pressa. Ia
para se relacionar com outros e
sempre tinha gostado muito de fazer
isso. Era um jovem de natureza
gregária e agradável.
—Irá amanhã ao baile de
Meg? —perguntou a Constantine.
Meg era sua irmã mais velha.
Margaret Pennethorne, condessa do
Sheringford. Sherry e ela estavam em
Londres nessa primavera depois de
haver perdido as duas anteriores.
Tinham chegado
acompanhados de Alexander, seu
filho recém-nascido; de Sarah, que já
tinha dois anos e de Toby, que já tinha
completado os sete. Por fim tinham
decidido enfrentar o velho escândalo
que rodeava Sherry, que tinha fugido
anos antes com uma mulher casada
com a que tinha convivido até o dia de
sua morte.
Havia alguns que ainda
pensavam que Toby era seu filho,
fruto dessa relação com a senhora
Turner. Nem Sherry nem Meg se
incomodavam em corrigir tal opinião.
Meg tinha boa índole, um
traço de seu caráter que sempre tinha
admirado em sua irmã. Jamais se
contentaria se escondendo de forma
indefinida na relativa segurança do
campo para não enfrentar seus
demônios. Por sua parte, Sherry
também era muito capaz de olhar a
qualquer demônio nos olhos e desafiá-
lo a um duelo.
No dia seguinte, dado que a
nata da alta sociedade tinha assistido a
suas bodas fazia já três anos, a
aristocracia estava obrigada a ir ao seu
baile.
De qualquer forma, ninguém o
perderia, porque a curiosidade sempre
era mais forte que qualquer
preconceito. A alta sociedade morria
de curiosidade para ver como era o
matrimônio depois de três anos... ou,
mais concretamente, por ver "se" era
alguma coisa.
—É claro. Não perderia isso
por nada do mundo — respondeu
Constantine, que levou o chicote à aba
do chapéu para saudar as quatro
damas que ocupavam os assentos do
cabriolé que acabavam de cruzar.
Stephen fez o mesmo. As
quatro damas lhes sorriram e os
saudaram em resposta.
—Nada é claro — disse a
seu primo. —Há duas semanas não foi
ao baile de Nessie.
Nessie, Vanessa Wallace,
duquesa de Moreland, era outra de
suas três irmãs. Por acaso o duque de
Moreland também era primo de
Constantine. Suas mães eram irmãs e
tinham transmito sua herança grega
aos dois. Ambos eram morenos de
cabelo e de pele, pareciam mais
irmãos que primos. De fato, pareciam
quase gêmeos.
Constantine não tinha ido ao
baile da Vanessa e Elliott, apesar de
se achar na cidade.
—Não me convidaram —
replicou seu primo ao tempo em que o
olhava com expressão indolente e um
tanto maliciosa. —E não teria ido,
mesmo que tivessem me convidado.
Stephen adotou um gesto
contrito ao escutá-lo. Constantine era
consciente de que tinha tentado lhe
surrupiar informação com esse
comentário. Elliott e Constantine não
se falavam, embora tivessem crescido
juntos e tivessem sido grandes amigos
durante a juventude. E posto que
Elliott não falava com seu primo,
Vanessa tampouco. Sempre tinha
sentido curiosidade pelo motivo, mas
nunca tinha perguntado.
Possivelmente já era hora de fazer. As
rixas familiares costumavam se
produzir por coisas absurdas e se
dilatavam no tempo, quando o normal
era que tudo ficasse esquecido com
um abraço.
—Por que...? —Stephen
começou a lhe perguntar, mas foi
interrompido por Cecil Avery detendo
seu tílburi ao seu lado com lady
Christobel Foley, sua acompanhante,
pondo sua vida em perigo ao se
inclinar sobre a borda do precário
assento para lhes sorrir de orelha a
orelha, enquanto fazia virar a
sombrinha de renda com a qual
protegia a cabeça.
—Senhor Huxtable, lorde
Merton — saudou-os, olhando
primeiro a Con antes que seus olhos
se detivessem em Stephen, — não é
verdade que faz um dia lindo?
Passaram uns minutos
constatando o fato e ambos lhe
solicitaram a reserva de uma dança na
festa de Meg, depois que a jovenzinha
deixou bem claro que sua mãe tinha
cancelado o jantar com os Dexter na
última hora e como havia dito a todo
mundo que não iriam, a pobre
Christobel estava aterrada com a ideia
de se achar sem par de dança, salvo o
bom Cecil, é claro, a quem conhecia
sempre porque tinham crescido juntos
no campo e o pobre, portanto, não
tinha mais remédio que convidá-la a
dançar para que não acabasse
convertida em um absoluto vaso de
ornamentação.
Lady Christobel raras vezes
dividia suas intervenções orais em
frases. De modo que para poder
entendê-la, tinha-se que prestar muita
atenção. Normalmente bastava captar
um par de palavras para seguir o fio
da conversa. Embora de qualquer
forma, era uma moça linda e
encantadora. Agradava Stephen. Claro
que devia ter muito cuidado na hora
de lhe demonstrar sua simpatia. Lady
Christobel era a filha mais velha dos
influentes e enriquecidos marqueses
do Blythesdale e acabava de fazer
dezoito anos, motivo pelo qual esse
ano celebrava sua apresentação na
sociedade.
Um matrimônio com ela seria
muito vantajoso, e a jovem estava mais
que disposta a conseguir um marido
durante sua primeira temporada
social, se fosse possível, antes das
demais. Tinha muitas possibilidades de
conseguir isso. Para localizá-la em
qualquer ato social, só se devia
procura-la no centro do grupo mais
numeroso de cavalheiros.
Entretanto, tanto ela como sua
mãe, tinham escolhido lançar o olho
nele. E Stephen era muito consciente
disso. Como também era muito
consciente de ser um dos solteiros
mais cobiçados de toda a Inglaterra e
de que o setor feminino da alta
sociedade tinha decidido que esse ano,
com mais afinco que os anteriores,
tinha chegado a hora de que
assentasse a cabeça, escolhesse uma
esposa e engendrasse um herdeiro
para satisfazer, dessa forma, sua
responsabilidade como nobre.
Já tinha completado vinte e
cinco anos e ao que parecia, tinha
cruzado a linha invisível que afastava a
atordoada e irresponsável juventude
da séria maturidade.
Lady Christobel não era a
única jovenzinha empenhada em
cortejá-lo e sua mãe não era a única
decidida a lhe jogar o laço.
Por sua parte, lhe agradavam
todas as jovenzinhas que conhecia.
Gostava de falar com elas, dançar com
elas, acompanha-las ao teatro,
cavalgar e passear pelo parque. Não
as evitava, como estavam
acostumados a fazer seus congêneres,
por temor a cair em alguma armadilha
e acabar casado à força. Entretanto,
não estava preparado para se casar.
Nem pensar.
Acreditava no amor. Tanto no
amor romântico como no amor de
qualquer outra índole. Duvidava muito
que pudesse contrair matrimônio a
menos que sentisse um grande afeto
por sua futura esposa e estivesse
seguro de que lhe correspondia.
Entretanto, seu título e sua fortuna se
interpunham no caminho para
alcançar esse, a priori, modesto
sonho.
Da mesma forma que se
interpunha seu físico, embora pecasse
de pretensão ao pensar nisso. Era
muito consciente de que as damas o
achavam bonito e atraente. Como ia
uma mulher superar essa barreira para
chegar a conhecê-lo e a entendê-lo...
Para amá-lo?
Mas o amor era possível,
inclusive para um rico conde. Suas
irmãs, as três, tinham-no encontrado,
embora nos três casos os começos
tinham sido muito cambaleantes.
Talvez o amor o estivesse
esperando à volta de uma esquina em
qualquer momento de seu futuro.
Enquanto isso estava disposto
a desfrutar da vida, a evitar as
numerosas armadilhas matrimoniais
com as quais a essa altura estava tão
familiarizado.
—Acredito que a dama teria
estado encantada de se deixar cair do
assento para seu colo, Stephen —
comentou Con, — se tivesse estado
segura de que estava bastante perto
para agarrá-la.
Stephen estalou a língua.
—Estava a ponto de lhe
perguntar pelos motivos do
aborrecimento que existe entre Elliott,
Nessie e você. É assim desde que te
conheço. O que aconteceu?
Fazia oito anos que conhecia
Constantine. Elliott, em seu papel de
responsável pelo testamento do
falecido conde Merton, foi quem lhe
notificou que tinha herdado o título e
tudo o que ele implicava. Stephen vivia
naquela época com suas irmãs em
uma casinha do povoado do
Throckbridge no Shropshire. Elliott,
que possuía o título de visconde de
Lyngate, embora nessa altura já era
duque do Moreland, converteu-se
dessa forma em seu tutor legal durante
quatro anos, até que alcançou a
maioridade.
Elliott passou um tempo com
eles em Warren Hall, a casa senhorial
do conde Merton de Hampshire. Con
também passou uma breve temporada
ali.
Até eles aparecerem, Warren
Hall era o lar de Constantine. Era o
irmão mais velho do conde que tinha
acabado de falecer com a jovem idade
de dezesseis anos. Era o primogênito
mas não podia herdar o título, pois
nasceu dois dias antes do matrimônio
de seus pais, o que o convertia em um
filho ilegítimo, para efeitos legais.
Desde o começo esteve claro
que Elliott e Con não se suportavam.
Mais concretamente, ficou claro que
eram inimigos acirrados. Entre eles
tinha acontecido algo grave.
—Terá que perguntar a
Moreland — respondeu seu primo —
Acredito que tem algo a ver com sua
condição de imbecil arrogante.
Elliott não era arrogante. Nem
imbecil. Entretanto, sua atitude se
tornava muito tensa na presença de
Constantine.
Decidiu deixar passar o
assunto. Era evidente que Con não ia
lhe contar o que tinha se passado, e
tinha todo o direito de proteger seus
segredos. Porque Constantine era um
homem muito misterioso, na verdade.
Embora sempre se mostrasse
agradável com suas irmãs e com ele,
seu caráter tinha um halo insondável e
taciturno, apesar de sua simpatia e de
seu disposto sorriso. Depois da morte
de seu irmão, tinha comprado uma
propriedade em algum lugar do
Gloucestershire, mas nunca os tinha
convidado a visitá-lo. Nem a eles nem
a ninguém que Stephen conhecesse. E
ninguém sabia como conseguiu
semelhantes recursos financeiros. Seu
pai lhe tinha deixado dinheiro com a
herança, é claro, mas o suficiente para
poder comprar uma propriedade
campestre com uma mansão?
Claro que isso não era assunto
seu.
Entretanto, muitas vezes se
perguntava por que Constantine se
mostrava sempre amável com eles.
Tanto suas irmãs como ele eram uns
completos desconhecidos quando
invadiram seu lar e o reclamaram.
Stephen herdou o título de conde
Merton, o mesmo título que tinha o
irmão dele, que morreu meses antes.
Um título que podia ter sido de
Con se tivesse nascido três dias depois
do casamento de seus pais ou se eles
tivessem contraído matrimônio três
dias antes.
Não deveria lhes ter
demonstrado certo ressentimento ou,
inclusive, ódio? Não deveria lhes
guardar rancor ainda?
Em muitas ocasiões se
perguntava o que Con guardava em
sua cabeça, algo que não se permitia
expressar nem com palavras, nem
com atos.
—Deve estar fazendo um
calor infernal — comentou
Constantine, justo depois de ter
retomado o passeio de saudar um
grupo de amigos. Acompanhou o
comentário com um gesto da cabeça
em direção à esquerda do caminho.
Stephen viu um pequeno grupo
de pessoas passeando pela zona, mas
não lhe custou trabalho entender a
quem se referia.
Diante de um grupo de damas
com vestidos na moda, de cores
apropriadas para a época,
caminhavam outras duas mulheres,
uma delas vestida de um tom marrom
avermelhado, uma cor talvez mais
própria do outono, e a outra, de
rigoroso luto. Vestida de negro da
cabeça aos pés. O véu com o que se
ocultava o rosto era tão denso que era
impossível lhe ver a cara, embora
estivesse apenas a uns metros de
distância.
—Pobre mulher, —
lamentou-se Stephen— Deve ter
enviuvado recentemente.
—E a uma idade muito
jovem, pelo que se vê — acrescentou
Constantine. —Pergunto-me se seu
rosto fará justiça a sua figura.
Stephen se sentia muito atraído
pelas jovenzinhas, cujas figuras
tendiam a ser magras e esbeltas. O dia
que por fim se decidisse a pensar no
matrimônio, escolheria a sua noiva
entre o grupo mais recente de
jovenzinhas chegadas ao mercado
matrimonial, dentre elas se decantaria
com frio mercantilismo por uma
beleza que o atraísse tanto por seu
físico como por seu caráter e a que
pudesse chegar a amar. Uma dama
que estivesse disposta a ver além do
título e fortuna que possuía, para que
chegasse a conhecê-lo e a querê-lo
por ser quem era.
A mulher vestida de luto
distava muito de seu ideal feminino.
Não parecia estar na flor da
juventude. Assim o testemunhavam as
curvas de sua figura. Uma figura que
evidentemente era magnífica, embora
seu traje não estivesse desenhado para
ressaltá-la, pelo contrário.
Sentiu uma repentina pontada
de desejo e se envergonhou
imediatamente. Teria se envergonhado
de qualquer maneira, embora a
mulher não levasse luto. Não tinha por
costume comer com os olhos as
desconhecidas, como costumavam
fazer muitos de seus amigos.
—Espero que não passe mal
com este calor — comentou. —Ah,
olhe, por aí vêm Kate e Monty.
Katherine Finley, a baronesa
Montford, era sua terceira irmã. Tinha
aperfeiçoado suas habilidades de
amazona durante os cinco anos
transcorridos desde seu matrimônio e
nesse momento se aproximava a
cavalo. Sorriu a ambos. Assim como
Monty.
—Vim para que meu cavalo
pudesse galopar com prazer — disse
lorde Montford a modo de saudação,
—mas não acredito ser possível,
verdade?
—Jasper, não minta! —
Exclamou Katherine. —Veio para
exibir o chapéu novo que me deu de
presente esta manhã. Stephen, não é
lindo? Não lhe parece que eclipso o
resto das damas presentes no parque,
Constantine? —Estalou em
gargalhadas.
—Eu diria que essa pena
seria uma arma letal — respondeu
Com, —se não se curvasse sob seu
queixo. Esse ângulo, entretanto, lhe é
muito favorecedor. E eclipsaria a
todas as damas presentes por mais
que só levasse um balde na cabeça.
—Vá! —Exclamou Monty
—. Um balde me teria saído muito
mais barato que o chapéu. Já é muito
tarde.
—Kate, é lindo, de verdade
— comentou Stephen com um sorriso.
—Mas não vim para exibir o
chapéu novo de minha esposa. —
protestou Monty. —Vim para exibir
minha esposa.
—Bom, ainda me saí bem na
história. —disse Katherine entre
gargalhadas. —Arranjei um elogio de
cada um de vocês. Constantine, irá
amanhã ao baile de Meg? Se for,
insisto em dançar com você.
Stephen esqueceu por
completo da voluptuosa viúva de
negro.
CAPÍTULO 02

Para Cassandra custou muito


pouco se inteirar de que lady
Sheringford ia celebrar um baile.
Lançou uma olhada a zona mais
concorrida do Hyde Park até localizar
um numeroso grupo de damas, cinco
no total, que passeavam juntas pelo
atalho e mantinham uma animada
conversa entre elas. Cassie impeliu
Alice a se aproximar delas e ir um
pouco mais a frente para escutar o
que estavam dizendo.
Inteirou-se de mais coisas que
queria saber, como por exemplo,
sobre a última moda de chapéus,
sobre a identidade daquelas que
mostravam maravilhosamente os
novos modelos e daquelas que
necessitavam que alguém reunisse a
coragem necessária para lhes fazer o
favor de lhes indicar como os chapéus
usados por elas lhes caiam mal.
Inteirou-se das travessuras de
seus filhos, que tentaram superar uns
aos outros. As palhaçadas eram
cativantes, ou assim supunha, mas só
porque as vítimas eram babás e
governantas, e não as suas próprias
mães. Todas e cada uma das crianças
descritas pareciam mimadas sem
remédio.
Entretanto, ao final, a tediosa
conversa deu seus frutos. Três das
damas planejavam ir ao baile de lady
Sheringford que se celebraria a noite
seguinte na residência do marquês de
Claverbrook, em Grosvenor Square.
Um fato insólito, já que conforme
comentara uma das damas, o velho
marquês tinha estado trancado em
casa durante anos e não saíra até o dia
das bodas de seu neto, celebrada fazia
já três anos. Não o tinham visto
depois. Mas parecia que iam celebrar
um baile em sua residência.
Não obstante, se murmurava
que passava longas temporadas no
campo com seu neto e seus bisnetos,
inteirou-se Cassandra, apesar de não
ter nenhum interesse nas notícias. E
também se dizia que sua neta, a
condessa, tinha encontrado a forma de
acabar com seu eterno mau humor.
O baile de lady Sheringford em
Claverbrook House, em Grosvenor
Square, repetiu-se Cassandra em
silêncio, memorizando os detalhes
mais importantes da conversa ao
tempo em que tentava desentender-se
da irrelevante miríade de anedotas.
Três das damas iriam, embora
com grande relutância, é claro. Era
totalmente incompreensível que uma
dama tão respeitável como lady
Sheringford tivesse aceitado se casar
com o conde, depois do grande
escândalo que protagonizou uns anos
antes e que foi de tal magnitude que
nenhuma pessoa decente deveria
recebê-lo.
Por Deus! Se até tinha tido um
filho com essa espantosa mulher, que
abandonou seu legítimo marido para
fugir com ele, coisa que fizeram no
dia fixado para as bodas do conde de
Sheringford com sua cunhada, a
senhorita Turner. Tinha sido um
escândalo dos que faziam época.
Entretanto, as três iriam ao
baile porque todo mundo iria. E, além
disso, todo mundo estava
intrigadíssimo para saber como ia o
matrimônio. Não seria de estranhar
que depois de três anos ausentes de
Londres, existisse esse mistério.
Embora não duvidavam de que tanto o
conde como sua esposa se
esforçariam por mostrar seu melhor
durante o baile.
Duas das damas que formavam
o grupo não iriam. Uma porque tinha
um compromisso prévio, aduziu com
grande alívio a seus acompanhantes.
A outra porque se negava a pôr um pé
em uma casa onde estivesse o conde
do Sheringford, embora o resto do
mundo se mostrasse disposto a
perdoar e a esquecer de todo o
assunto. Não iria nem que lhe
pagassem uma fortuna. Em seguida,
indicou como era irritante que seu
marido se negasse a ir aos bailes,
sabendo o muito que gostava de
dançar.
A coisa cada vez mais parecia
melhor, pensou Cassandra. A
reputação da condessa estava
escurecida pela reputação de libertino
e descarado de seu marido. Seria
muito estranho que negassem a
entrada a alguém, mesmo que não
tivesse convite. Era evidente que a
reputação do conde atrairia a um
grande número de assistentes, poucos
rechaçariam o convite, já que a
curiosidade era o pecado capital da
alta sociedade... E talvez da
humanidade em seu conjunto.
O baile dos Sheringford seria a
noite seguinte. O tempo era ouro.
Restava o dinheiro justo para pagar o
aluguel de uma semana e para
comprar comida durante duas
semanas mais. Além dessa data, se
estendia um aterrador vazio no qual
necessitaria de dinheiro, mas não teria
modo algum de obtê-lo.
E não estava sozinha; dela
dependiam outras pessoas que
requeriam um teto sob o qual cobrir-
se e pão para levar a boca. Umas
pessoas que não podiam ganhar a vida
por si só, por diversos motivos.
Alice passeava em silêncio e
com gesto desanimado a seu lado.
Cassandra a tinha pedido que se
calasse assim que se adiantaram as
cinco damas. Seu silêncio era
ensurdecedor e crítico. A Alice não
gostava absolutamente da ideia, e sua
postura era compreensível. Tampouco
faria graça a Cassie ficar de braços
cruzados enquanto Alice ou Mary
planejavam prostituir-se para que ela
pudesse comer.
Por desgraça, não tinha
alternativa. Ou em caso de tê-la, não a
via por nenhuma parte, e tinha
passado incontáveis noites em claro
procurando-a.
Deu uma olhada ao seu redor
enquanto caminhavam, com a
estranha sensação de achar-se uma
mascarada, oculta sua identidade atrás
de uma máscara e um dominó. O véu
negro era sua máscara e o recatado
vestido de viúva, seu dominó. Podia
ver o mundo exterior, embora
ninguém pudesse vê-la.
Isso sim, estava passando mal
por culpa da roupa negra e do véu.
Tomara que nublasse um pouco,
desejou em vão, já que as nuvens
eram muito poucas e estavam
dispersas.
Dava a impressão de que a alta
sociedade em pleno se congregara
nesse reduzidíssimo lote do Hyde
Park. Tinha esquecido quão
concorrido era o parque durante a
hora do passeio. Nunca tinha
participado do costume, entretanto.
Casara-se muito jovem e não foi
apresentada em sociedade, nem
desfrutou de uma temporada social.
Seu olhar passou pelas damas,
reparando em seus coloridos trajes,
tão custosos e tão na moda.
Entretanto, não lhes prestou a menor
atenção. Elas não lhe importavam
absolutamente.
Estava estudando os
cavalheiros com olho crítico. Havia
muitos, de todas as idades e
condições. Alguns lhe devolveram o
olhar apesar de seu disfarce, que devia
ser especialmente desagradável. Não
viu nenhum em concreto que gostasse.
Claro que tampouco era obrigatório
que gostasse do cavalheiro que se
encarregaria de encher seus bolsos
vazios.
De repente, fixou-se em dois
cavalheiros em particular, e não só
porque eram jovens e bonitos, pois
eram, mas sim porque havia tal
contraste entre eles que acreditou
estar contemplando um demônio e um
anjo.
O demônio era o mais velho
dos dois. Calculou que rondaria os
trinta e cinco anos. Era moreno de
pele e de cabelo, tinha um rosto
bonito, embora fosse sério, e olhos
negros. Parecia um homem perigoso,
e estremeceu ligeiramente, apesar do
intenso calor que sentia.
O anjo era mais jovem,
certamente inclusive mais jovem que
ela. Tinha o cabelo loiro e uma beleza
clássica, com feições simétricas e
gesto sincero e simpático.
Tanto sua boca como seus
olhos, que estava convencida de que
eram azuis, mostravam que sorria
frequentemente.
Seu olhar se demorou no anjo.
Era alto e muito elegante sobre sua
montaria, fazendo alarde de umas
musculosas pernas, graças às calças
justas de montar de cor creme e botas
negras, que se abraçavam aos flancos
do cavalo. Era magro, mas a jaqueta
verde escura deixava claro que tinha
um corpo proporcional. Amoldava-se
ao seu corpo como uma segunda pele,
e estava certa de que seu criado de
quarto tinha dado a própria vida para
colocá-la.
Tanto o anjo como o demônio
se fixaram nela e a estavam olhando.
O demônio deixava ver sua admiração
sem dissimulações, enquanto que o
anjo parecia olhá-la com certa
compaixão por sua viuvez. Entretanto,
nesse momento viram um conhecido
que os distraiu. Em realidade, eram
duas pessoas, ambas a cavalo, uma
dama muito elegante e um cavalheiro
que parecia impossível de ser tão
bonito.
O anjo sorriu.
E talvez selou seu destino.
Tinha um ar de inocência que
harmonizava com seu aspecto
angélico. Sem dúvida alguma era um
homem muito rico... Nesse momento
percebeu que as damas que
caminhavam atrás dela estavam
falando dele.
—Ah! —suspirou uma delas
—Aí está o conde Merton com o
senhor Huxtable. Já viram a um
homem de mais boa aparência? Além
de bonito, é rico e tem propriedades.
E um título. E o cabelo loiro, os olhos
azuis, os dentes perfeitos e um sorriso
encantador. Não me parece justo que
um só homem tenha tudo. Se tivesse
dez anos menos... e continuasse
solteira...
As cinco damas puseram-se
a rir.
—Pois eu acredito que
ficaria com o senhor Huxtable —disse
outra—. De fato, estou convencida de
que o faria. Esse cabelo tão escuro,
esse ar taciturno e essas feições
gregas... Não me importaria que me
fizesse uma visita à cama algum dia
que Rufus não estivesse em casa. —
produziu-se um coro de exclamações
escandalizadas e de risinhos.
Nesse momento Cassandra
olhou a Alice e percebeu que tinha
apertado tanto os lábios que quase não
lhe viam e de que tinha as faces
vermelhas.
Um anjo inocente, com
fortuna e nobre título, pensou. Havia
uma mescla mais potente?
—Estou certa de que ou
acabo derretida no chão ou estalo em
um milhão de pedacinhos. —
comentou. —E nenhuma das duas
coisas me faria graça. Que lhe parece
de voltarmos para casa, Alice?
—A algumas pessoas lhes
deveriam lavar a boca com sabão, —
disse sua antiga preceptora enquanto
atravessavam o prado, onde mal havia
gente. —Com razão as crianças são
tão mal educadas, Cassie. E depois
esperam que as preceptoras
disciplinem suas criaturitnhas sem
brigar e sem lhes levantar a mão.
—Deve ser revoltante para
você — comentou ela.
Caminharam em silêncio um
tempo.
—Vai a esse baile, não é
verdade? —Perguntou Alice quando
saíram à rua—. Ao de lady
Sheringford.
—Sim —respondeu. —Não
terei problemas para entrar, não se
preocupe.
—Não me preocupa que não
possa entrar. —replicou Alice com
secura.
Cassandra voltou a mergulhar
no silêncio. Não tinha sentido seguir
discutindo o assunto. Alice devia ter
chegado à mesma conclusão, porque
tampouco disse nada mais.
O conde de Merton.
O senhor Huxtable.
Um anjo e um demônio.
Iriam ao baile?
Claro que embora não
fossem, muitos outros cavalheiros
iriam.

Cassandra se viu obrigada a


gastar parte de seu minguante e
escasso dinheiro no aluguel de uma
carruagem que a levasse ao Grosvenor
Square na noite seguinte. Não seria
sensato percorrer a pé essa distância
de noite, vestindo seus melhores
ornamentos e sem a companhia de um
criado. Mesmo assim, não realizou
todo o trajeto de carruagem. Indicou
ao cocheiro que a deixasse antes de
entrar na praça e a atravessou a pé.
Tinha planejado chegar um
pouco tarde. Apesar desse cuidado,
havia uma fileira de elegantes
carruagens à espera de chegar às
portas de uma das mansões,
resplandecente pela luz das velas do
interior. Um tapete vermelho cobria os
degraus e parte da calçada para que
os convidados não manchassem os
sapatos.
Cassandra atravessou a praça,
chegou ao tapete, subiu os degraus de
entrada e penetrou na casa
aproveitando a chegada de um
numeroso e ruidoso grupo de
convidados.
Deu sua capa a um criado, que
lhe fez uma reverência receosa
enquanto ela murmurava seu nome,
mas que não fez gesto algum de
colocá-la de quatro na rua. Caminhou
até a escadaria e a subiu
devagar, junto com outras pessoas. A
essa hora certamente os anfitriões
ainda estavam na porta do salão de
baile recebendo seus convidados,
razão do atraso. Justo o que tinha
esperado evitar chegando mais tarde.
Tinha esquecido se acaso
alguma vez o tinha aprendido, que
para chegar tarde a um ato da alta
sociedade deveria chegar tardíssimo.
As pessoas se saudavam
umas às outras ao seu redor. Todo
mundo parecia muito contente.
Ninguém dirigiu a palavra a essa
mulher solitária que aguardava no
meio do grupo. Claro que tampouco
gritaram escandalizados, nem a
indicaram com um dedo enquanto
exigiam que tirassem a rastros essa
impostora. Que soubesse, ninguém a
estava olhando, claro que como ela,
tampouco olhava aos outros, não
estava segura desse ponto.
Talvez ninguém a recordasse
depois de tudo. Tinha visitado Londres
em duas ou três ocasiões com Nigel, e
tinham ido a muito poucos
acontecimentos juntos. De qualquer
maneira, era muito improvável que
alguém a reconhecesse essa noite.
Essa esperança não demorou
para se fazer em pedacinhos. Com
voz distante e lânguida, disse seu
nome a um criado elegantemente
vestido com libré que esperava junto à
porta do salão de baile e embora
consultasse a lista que tinha na mão e
foi evidente que não achou seu nome,
ela mal titubeou.
Arqueou uma sobrancelha
quando o criado a olhou, compôs a
expressão mais altiva de que foi
capaz, de modo que o homem acabou
dizendo o nome ao mordomo que
esperava ao outro lado da porta e que
por sua vez o anunciou em voz alta e
clara. Todos os convidados presentes
no salão de baile deveriam ter
escutado, pensou ela, e o teriam feito
mesmo que tivessem estado
cantarolando com os ouvidos
tampados.
—Lady Paget — anunciou o
mordomo.
E com essas duas palavras, se
desvaneceu sua esperança de manter
o anonimato.
Cassandra passou a estreitar a
mão da dama de cabelo escuro que
supôs ser a condessa de Sheringford e
ao belo cavalheiro que tinha ao lado,
que devia ser o infame conde.
Entretanto, não teve tempo de
observar o casal com prazer. Fez uma
reverência ao ancião que estava
sentado junto a eles. Supôs que se
tratava do ermitão marquês de
Claverbrook.
—Lady Paget, —a saudou a
condessa com um sorriso, —estamos
encantados de que tenha podido vir.
—Desfrute do baile,
senhora. — disse o conde, também
com um sorriso.
—Lady Paget —disse o
marquês com voz resmungona ao
mesmo tempo que inclinava a cabeça.
Estava dentro.
Em um abrir e fechar de olhos.
Embora seu nome a tivesse
precedido.
Tinha o coração a ponto de
sair do peito, de modo que abriu o
leque e começou a se abanar com
gesto lânguido enquanto entrava no
salão de baile caminhando devagar.
Não foi fácil. A estadia estava
abarrotada. As cinco damas do dia
anterior tinham estado certas ao
afirmar que iriam muitas pessoas,
embora só fosse pela insalubre
esperança de ver como o matrimônio
que tinham visto celebrar há três anos
fosse por água abaixo.
Sua primeira impressão dos
condes tinha sido boa. Talvez porque
podia se identificar com sua
notoriedade e conhecia perfeitamente
a dor que devia lhes ter causado... e
que certamente ainda lhes causava.
Estar sozinha não era uma
sensação agradável. Todas as damas
pareciam contar com um
acompanhante, um par ou uma
acompanhante. Todos os cavalheiros
pareciam formar parte de um grupo.
Entretanto, não era só seu
isolamento o que a inquietava. Era a
atmosfera do salão de baile. Sentiu um
calafrio nas costas ao compreender
que outras muitas pessoas tinham
escutado seu nome, além dos condes
de Sheringford e do marquês do
Claverbrook. E aqueles que não o
tinham feito em seu momento o
estavam fazendo nesse preciso
instante, já que os sussurros corriam
rapidamente pelo salão. Tão rápidos
como a pólvora.
Deteve-se, abriu o leque de
novo e começou a se abanar muito
devagar enquanto olhava ao seu redor
com o queixo erguido e um leve
sorriso nos lábios.
Ninguém a olhava diretamente.
Entretanto, todo mundo a via. Era
uma contradição curiosa, mas muito
certa. Ninguém se tinha afastado dela
enquanto passeava e ninguém a
evitava de forma exagerada uma vez
quieta, mas se sentia isolada, como se
a rodeasse um aura invisível de meio
metro de grossura.
Embora ao mesmo tempo se
sentisse nua.
Evidentemente, já tinha
previsto algo assim. Tinha decidido
não utilizar um nome falso nem seu
sobrenome de solteira. E tinha ido
com a cara descoberta. Não tinha um
véu negro para se ocultar atrás. Era
inevitável que alguém a reconhecesse.
Entretanto, não achava que a
mandassem embora se isso
acontecesse.
De fato, toda essa atenção
bem poderia jogar a seu favor. Se a
alta sociedade tinha assistido essa
noite ao baile para ver um homem que
no passado fugira com uma mulher
casada, não acharia muitíssimo mais
fascinante a assassina do machado?
Era consciente de que os rumores e as
fofocas preferiam essa descrição de
sua pessoa a qualquer aproximação da
verdade.
Olhou ao seu redor de forma
deliberada, convencidíssima de que
ninguém ia lhe devolver o olhar ou
pilhá-la. Não reconheceu ninguém.
Concentrou-se nos cavalheiros, e se
deu conta da difícil tarefa que se
impusera. Havia jovens e velhos, e de
qualquer idade intermediária, e todos
estavam muito bem vestidos.
Entretanto, não havia modo de saber
quem era casado e quem era solteiro.
Quem era rico e quem era pobre,
quem tinham firmes valores morais e
quem eram uns libertinos... E quem se
achava em estágio mediano em tal
escala. Não dispunha de tempo para
averiguar o que precisava saber antes
de tomar uma decisão e passar à ação.
E nesse momento seu olhar
se posou em um rosto familiar. Em
realidade, em três rostos. Ali estava o
demônio do dia anterior, com o
mesmo aspecto satânico, vestido com
o traje de gala negro. A seu lado
estava a amazona do passeio, com a
mão sobre seu braço, rindo e falando.
O cavalheiro que lhe pareceu tão
exageradamente bonito, observava a
cena com um sorriso alegre nos
lábios.
O demônio a olhou do outro
lado da estadia, diretamente nos olhos.
Cassandra moveu devagar o leque e
lhe devolveu o olhar. O homem
arqueou uma sobrancelha antes de
inclinar a cabeça para dizer algo a
dama, que se pôs a rir de novo. Supôs
que não estavam falando dela.
O demônio era o senhor
Huxtable. Seguiu olhando-o um pouco
mais. Tinha-lhe proporcionado uma
desculpa, que ela poderia utilizar mais
adiante se não se apresentasse nada
melhor.
"Antes o vi me olhando,
senhor. — poderia lhe dizer—E
depois disso não deixo de pensar se
nos vimos antes. Por favor, me tire da
dúvida."
Ambos saberiam que não se
viram antes e ele saberia que o tinha
feito de forma intencional. Entretanto,
já teria a porta aberta e se asseguraria
de que o senhor Huxtable a
atravessasse.
Salvo pelo fato de que estava
convencida de que era um homem
perigoso. E ao fim e ao cabo, ela não
era uma cortesã experimentada. Só
era uma mulher desesperada atraente
aos olhos dos homens. Essa
característica lhe tinha parecido uma
desvantagem durante anos. Essa noite
a converteria em uma vantagem.
Deixou de olhá-lo e seguiu
com seu escrutínio. E nesse momento,
justo ao outro lado do salão, viu seu
anjo.
Parecia inclusive mais bonito
que no dia anterior no parque. Estava
vestido com um fraque negro, gravata
prateada, colete bordado, antiga
camisa branca. Era alto e de
constituição perfeita, magro, mas
musculoso nos lugares precisos. Seu
cabelo loiro, embora curto e bem
penteado, tinha tendência a se frisar e
dava a impressão de que estaria
alvoroçado sem uma mão perita.
Também parecia um resplandecente
halo ao redor de sua cabeça.
Estava com uma dama e um
cavalheiro tão parecido ao senhor
Huxtable que teve que olhar de novo o
mesmo, a fim de comprovar que não
tinha atravessado o salão a toda
velocidade para se colocar diante dela.
Entretanto, esse homem não ia vestido
de negro e seu rosto era muito mais
agradável. Embora pudessem ser
irmãos.
Inclusive, quase gêmeos.
Olhou mais uma vez o anjo, o
conde Merton. Era o único cavalheiro
do salão de quem sabia algo. Se
confiasse nos comentários das cinco
damas do parque, e já tinham
acertado ao predizer o êxito do baile,
ele era um homem muito rico. E era
solteiro.
E tinha um aura de inocência.
Isso era algo bom ou ruim?
Nesse preciso instante, tal
como lhe tinha acontecido com o
senhor Huxtable, seus olhos se
encontraram através da distância.
O anjo não lhe sorriu. Nem
tampouco arqueou uma sobrancelha
com gesto zombador. Limitou-se a
olhá-la de frente enquanto ela se
abanava e lhe dava de presente um
ligeiro sorriso antes de arquear as
sobrancelhas. O conde inclinou
ligeiramente a cabeça a modo de
saudação... E alguém se interpôs entre
eles, lhe bloqueando a visão.
Pulsava-lhe o coração com
força. O jogo tinha começado. Já tinha
feito sua escolha.
Por fim chegou a hora de
começar o baile, embora calculou que
não levava mais de cinco ou dez
minutos no salão. Os condes
Sheringford saíram à pista e outros os
imitaram. O conde Merton, conforme
comprovou, estava na linha dos
cavalheiros e sorria a seu par de
dança, uma jovenzinha muito bonita.
A orquestra, depois de receber o sinal,
tocou um acorde e as damas fizeram
uma reverência que foi correspondida
pelos cavalheiros. Começou uma
alegre contradança.
Por sua parte, Cassandra
retomou o atento escrutínio dos
cavalheiros presentes enquanto esse
mar de vazio que a rodeava, parecia
se expandir.

Stephen tinha jantado no


Claverbrook House com suas irmãs e
seus cunhados, e também com o
marquês do Claverbrook e com sir
Graham e lady Carling, o padrasto e a
mãe de Sherry.
Meg estava muito nervosa com
o baile. Estava convencida de que
ninguém iria, apesar de todos darem
razão a Monty, quando afirmou que
teria que derrubar as paredes do salão
de baile antes da noite acabar para dar
espaço a todos que quisessem entrar.
E apesar de quase todos
aqueles que tinham recebido o convite
e confirmado a presença.
O baile tinha sido ideia de
Meg. Nas palavras de sua irmã, não
tinha sentido retornar à cidade esse
ano se fossem entrar às escondidas
em Londres, com a esperança de que
ninguém se desse conta. O melhor era
agarrar o touro pelos chifres e
organizar um grande baile em plena
temporada social. O avô de Sherry,
que levava anos sem sair de casa,
antes de Meg se casar com seu neto e
que após tampouco se prodigalizava
muito, salvo por suas frequentes e
longas visitas ao campo, os
surpreendeu ao oferecer Claverbrook
House para celebrar o ato, antes
mesmo que Elliott ou Stephen
pudessem oferecer suas residências
londrinas.
Depois do jantar, Meg se
converteu em um molho de nervos.
Ao menos, até que os convidados
começaram a chegar... E seguiram
chegando e chegando até que os
primeiros a chegar começaram a se
perguntar quando o baile
propriamente dito começaria.
É claro, houve uma grande
distração que fez que todo mundo se
esquecesse da longa espera. Uma
mulher que tinha aparecido
escandalosamente sozinha. Uma dama
que possuía o título de baronesa, lady
Paget. Também era muito famosa,
embora a palavra fosse curta. Tinha
matado seu marido um ano atrás. Ou
esse era o rumor que chegou a eles.
Com um machado.
—Pois eu duvido muito
disso, —afirmou Vanessa, duquesa do
Moreland, ao Elliott e a ele mesmo.
Achava-se entre ambos à espera de
que Meg e Sherry abandonassem a
recepção para abrir o baile. —Como
pôde agarrar um machado sem que os
jardineiros a impedissem ou lhe
perguntassem o que queria fazer para
lhe evitar o trabalho? Seria impossível
que lhes dissesse que ia esquartejar
lorde Paget, verdade? Nem tampouco
pôde lhes perguntar se seriam amáveis
para lhe economizar o esforço. Além
disso, a menos que seja uma mulher
muito forte, não teria sido capaz de
levantar o machado o suficiente para
ferí-lo por cima dos tornozelos.
—Nisso tem razão. —
comentou Elliott com voz risonha.
—E se de verdade o matou
—prosseguiu Vanessa— e se houver
provas de que o fez... Vamos, se
houver alguém que a viu brandir a
machado... Por que não a detiveram?
— Teriam feito isso sem
perda de tempo. —respondeu Elliott.
—E possivelmente não teria demorado
para acompanhar a seu defunto
marido em sua última viagem...
Levando um bonito colar em torno do
pescoço. Certamente não estaria no
salão de baile de Claverbrook House
em busca de alguém com quem
dançar.
Vanessa lançou um olhar
suspicaz a seu marido.
—Está rindo de mim —
acusou-o.
—Absolutamente, meu
amor. —Elliott lhe pegou uma mão e
a levou aos lábios, piscando um olho
ao Stephen enquanto o fazia.
—Pois estou com você,
Nessie —disse Stephen—. Acredito
que podemos descartar o detalhe do
machado. E talvez todo o resto. Só
espero que sua inesperada aparição
não arruíne o baile de Meg.
—Será fofoca durante
semanas. —vaticinou Elliott —Que
anfitriã poderia pedir um
entretenimento melhor? Apostaria o
que fosse que já nem recordam do
que acusam o pobre Sherry. Seus
supostos crimes ficarão eclipsados
pela assassina do machado.
Certamente, acredito que deveríamos
agradecer a dama em pessoa.
Vanessa lhe lançou outro olhar
suspicaz e Stephen olhou para onde se
achava lady Paget em pé, rodeada por
um espaço vazio como se as pessoas
que se achavam mais perto dela
esperassem que tirasse um machado
debaixo do vestido e começasse a
atirar golpes.
Tinha a olhado uma vez,
quando o rumor lhe chegou e alguém
lhe indicou de quem se tratava. Não
queria que a pobre mulher se
acreditasse o centro de todos os
olhares.
Por que tinha cometido a tolice
de ir ao baile? E além disso, sozinha.
E sem convite. Claro que se esperava
receber algum, poderia esperar
sentada em casa o resto de sua vida.
Era uma mulher alta e
voluptuosa. E o vestido que levava não
ocultava suas curvas. Era de um verde
esmeralda e caía vincado debaixo do
peito. Se sua figura fosse menos
exuberante, as saias a envolveriam
sem amoldar-se ao seu corpo.
Entretanto, marcavam-lhe a cintura,
os quadris e as longas e torneadas
pernas.
O vestido era de manga curta e
seu decote deixava muito pouco a
imaginação. Salvo pelas longas luvas
brancas, o leque e os scarpins, não
levava mais adornos. Não exibia joias,
nem penas no cabelo. Era uma ideia
muito inteligente, porque seu cabelo
era o traço mais esplendoroso. Era de
um brilhante vermelho e o tinha
recolhido no alto da cabeça, salvo por
algumas mechas que lhe caíam pelo
pescoço e convidavam a contemplar a
cremosa brancura de sua pele e o
elegante arco de seu pescoço. Seu
rosto era a beleza em estado puro,
apesar da expressão enfastiada, altiva
e ligeiramente desdenhosa que luzia...
Uma das melhores máscaras que tinha
visto. Duvidava muito que se sentisse
tão segura como aparentava. Era
impossível distinguir a cor de seus
olhos, mas tinham um puxado muito
leve de amêndoa que os fazia muito
intrigantes.
Percebeu todos esses detalhes
quando a olhou pela primeira vez.
Entretanto, nessa segunda ocasião se
deu conta de que ela o olhava com
descaramento. Resistiu ao primeiro
impulso, que foi afastar o olhar a toda
pressa. Certamente isso era o que
estavam fazendo os outros. De modo
que lhe devolveu o olhar. E ela não o
afastou, como tinha esperado que
fizesse.
Viu-a fechar o leque muito
devagar, arquear as sobrancelhas com
gesto arrogante e esboçar um meio
sorriso que não chegou a abrir
inteiramente.
Saudou-a com uma inclinação
de cabeça justo quando Carling e sua
esposa se aproximavam deles para
lhes dizer que o baile estava a ponto
de começar.
De modo que partiu em busca
de lady Christobel Foley, que tinha
passado por seu lado acompanhada de
sua mãe assim que entraram no salão
de baile e se deteve para saudá-lo.
Antes de que se afastassem,
acordaram que a peça reservada no
dia anterior no parque fora a primeira
e que dançariam outra peça mais.
Voltou a olhar para lady Paget
quando estava com seu par de baile à
espera de que a orquestra começasse
a tocar. Encontrou-a no mesmo lugar,
embora já não o olhasse.
E de repente a reconheceu.
Embora ainda tivesse suas dúvidas. De
qualquer forma, estava quase
convencido de que lady Paget era a
viúva vestida de negro que Con e ele
tinham visto no parque enquanto
davam um passeio a cavalo.
Sim, sem dúvida era ela,
embora tivesse um aspecto
radicalmente diferente.
No dia anterior se ocultara
atrás de um impenetrável disfarce.
Essa noite se expunha
abertamente ao assombro e a crítica
da alta sociedade.
Essa noite só levava o disfarce
de sua gélida indiferença, ou melhor,
de seu desprezo pela opinião dos
outros.
CAPÍTULO 03

A segunda dança seria a


decisiva, disse-se Cassandra. Não
podia seguir plantada ali toda a noite
sem fazer ridículo... porque dessa
forma, a dolorosa experiência teria
sido em vão.
Entretanto, quando terminou a
primeira, os condes Sheringford foram
falar com ela. Viu-os se aproximarem
e abriu o leque uma vez mais.
Esboçou um leve sorriso e arqueou
uma sobrancelha. Se tivessem ido para
pedir que partisse, não daria a
ninguém a satisfação de vê-la
humilhada.
—Lady Paget, apesar de
todos nossos esforços por manter uma
temperatura agradável no salão
abrindo todas as janelas, faz muito
calor aqui dentro — disse o conde. —
Deseja que lhe traga algo de beber?
Talvez um pouco de vinho, de xerez
ou ponche? Ou limonada?
—Uma taça de vinho seria
maravilhoso. —respondeu—Obrigada.
—Maggie? —perguntou o
conde a sua esposa.
—Outra para mim, Duncan.
—respondeu a condessa, que o seguiu
com o olhar.
—Seu baile é um êxito. —
comentou Cassandra. —Deve se
sentir orgulhosa.
—Foi um enorme alívio. —
admitiu a anfitriã —Antes de me casar
organizei um sem-fim de atos para
meu irmão e não me pus nervosa em
nenhuma das ocasiões. Nunca
pensava que pudesse acontecer uma
catástrofe que danificasse o
acontecimento. Este é o primeiro baile
que organizo em Londres desde que
me casei há três anos, e tudo parece
diferente, sobre tudo minha confiança.
Talvez deveríamos ter voltado antes,
mas fomos muito felizes no campo
com nossos filhos.
Isso queria dizer que ela era a
catástrofe que poderia arruinar essa
noite em particular. Apertou os lábios,
mas não disse nada.
—Aterrava-me a ideia de
que ninguém viesse ao baile —
prosseguiu lady Sheringford,— salvo
meus irmãos e minha sogra, embora
fosse um consolo saber que todos
viriam com seus cônjuges... salvo meu
irmão, claro. Já que ainda não se
casou.
—Não deveria ter se
preocupado —lhe assegurou
Cassandra. —As pessoas com certa
reputação sempre chamam a atenção.
As pessoas são curiosas por natureza.
A condessa arqueou as
sobrancelhas e teria feito algum
comentário, mas seu marido retornou
naquele momento com as bebidas.
—Talvez, lady Paget, —lhe
disse o recém-chegado enquanto ela
bebia um gole de vinho, —possa me
conceder a honra de dançar a próxima
peça.
Respondeu ao convite com um
sorriso, que transladou à condessa
antes de devolvê-la a lorde
Sheringford.
—Tem certeza de que
prefere dançar comigo em vez de
pedir que me vá do Claverbrook
House? —perguntou—lhe.
—Totalmente certo, senhora
—respondeu ele sorrindo enquanto
olhava a sua esposa.
—Temos bastante
experiência com... certas reputações,
lady Paget. —comentou a condessa
—A suficiente para não reparar na
dos outros. Sobre tudo quando a
pessoa em questão é nossa convidada.
—Sem convite —declarou
ela, que bebeu outro gole de vinho.
—Embora não tenha convite
— lhe assegurou a condessa, que se
pôs-se a rir de repente —Conheci
meu marido durante um baile ao qual
não tinha sido convidado. Sempre
agradeci por termos nos encontrado
ali. Possivelmente não o teria
conhecido se não fosse assim. Por
favor, desfrute da noite. —Alguém
acabava de lhe tocar o ombro e lady
Sheringford se virou para ver de quem
se tratava.
Era o demônio, comprovou
Cassandra... O senhor Huxtable.
—Ah, Constantine! —
Exclamou a condessa com um cálido
sorriso —Por fim chega! Já me via
como um vaso vendo outros dançarem
porque pensei que tivesse esquecido
que dançaria a seguinte peça comigo.
—Como me ia esquecer? —
Replicou o senhor Huxtable, que se
golpeou o peito com uma mão—Levo
todo o dia desejando que chegue este
preciso momento, Margaret.
—Terá que ver que idiota é!
—Lady Sheringford se pôs a rir—
Conhece lady Paget? Senhora,
apresento-lhe Constantine Huxtable,
meu primo.
O senhor Huxtable a olhou
com esses olhos tão escuros e fez uma
reverência.
—Lady Paget, é um prazer
—lhe disse.
—Senhor Huxtable. —
replicou ela depois de saudá-lo com
uma inclinação de cabeça e começar a
se abanar.
Captou o interesse em seu
olhar, embora muito receoso.
Entretanto, decidiu descarta-lo
totalmente. Porque também captou
algo desagradável e perigoso nesses
olhos, como se estivesse lhe
advertindo sem necessidade de
palavras que teria que se ver com ele
em caso de ter a intenção de arruinar
de algum jeito o baile de sua prima.
Seria um desafio muito arriscado. Se
só fosse um jogo, teria sido
interessante. Mas era algo muitíssimo
mais importante.
—Seu baile é um êxito,
Margaret —disse a sua prima—Tal
como vaticinei. —Esses olhos negros
não a abandonaram enquanto falava.
Cassandra bebeu sua taça de
vinho.
—Acredito que a música
está a ponto de começar, — disse
lorde Sheringford, lhe tirando a taça
vazia das mãos para deixa-la em uma
mesa situada junto à parede. — Se me
permitir... —Ofereceu-lhe o braço.
—Obrigada. —Aceitou seu
braço e deixou que o leque pendesse
da fita que o segurava a seu outro
pulso.
Perguntou-se se os condes do
Sheringford só queriam reduzir os
danos que sua presença no baile
poderia lhes causar ou se estavam
sendo amáveis de forma sincera.
Suspeitava que se tratava do
primeiro, mas fosse como fosse estava
agradecida.
Olhou ao conde com
curiosidade enquanto se colocavam
em suas posições. Como foi capaz de
abandonar a sua pobre noiva no dia de
suas bodas? Entretanto, quase se pôs
a rir ao pensar que ele poderia estar a
olhando com curiosidade e se
perguntando como tinha sido capaz de
matar a seu próprio marido. Com um
machado, nada menos.
A orquestra começou a tocar e
ela aproveitou para dar uma olhada a
seu redor enquanto dançavam.
Converteram-se no centro de muitos
olhares. As duas pessoas mais infames
do salão. Mas por que olhá—los? O
que achava a gente que ia acontecer?
O que esperavam que acontecesse?
Achavam que o conde ia agarrar sua
mão e que correriam juntos para a
porta do salão, protagonizando uma
irrefletida fuga para a liberdade?
Essa imagem fez que sorrisse
com sinceridade, embora o sorriso foi
algo desdenhoso. Nesse preciso
instante seus olhos se acharam com os
do conde Merton. Estava
dançando com a dama com
quem o tinha visto falar antes de que o
baile desse começo.
O conde lhe devolveu o
sorriso.
Sim, tinha sorrido para ela.
Porque depois voltou a olhar a seu par
de dança sem reparar em ninguém
mais e inclinou a cabeça para escutar
o que lhe estava dizendo.
Stephen estava dançando a
segunda peça com Vanessa. A teria
dançado com lady Paget se não
houvesse convidado previamente a sua
irmã. Alegrava-se muitíssimo de que
Meg e Sherry tivessem ido falar com
ela depois da primeira contradança e
de que Sherry a tirasse a pista para a
segunda peça da noite. Sentia muita
lástima por essa mulher.
Embora talvez não devesse
ter. Onde havia fumaça, sempre
costumava haver fogo, embora só
fosse um rescaldo. Não acreditava
nessa história da assassina do
machado, embora fosse mais uma
simples descrição que uma história, já
que não havia detalhes que
ampliassem a informação. De fato,
não conseguia acreditar na história do
assassinato em si. Lady Paget estaria
encarcerada se fosse assim. E dado
que tinha passado mais de um ano da
morte de seu marido, a essas alturas já
estaria morta.
Teriam-na enforcado.
Posto que estava vivinha e
abanando o rabo no baile de Meg, ou
não tinha assassinado seu marido ou
não havia provas suficientes de que o
tivesse feito, porque do contrário a
teriam detido.
Não obstante, parecia o
suficientemente ousada para ser uma
assassina. E essa maravilhosa
cabeleira sugeria uma natureza
apaixonada e um forte temperamento.
Apesar de Nessie ter comentado sobre
a duvidosa capacidade de uma mulher
para brandir um machado, lady Paget
lhe parecia forte o bastante.
Embora tudo isso não fossem
mais que especulações e ideias
impróprias dele. Não sabia nada nem
sobre ela nem sobre as circunstâncias
nas quais tinha morrido seu marido.
E tampouco era de sua conta.
De qualquer maneira,
compadecia-se dela porque sabia que
quase todos os pressentes estavam
pensando o mesmo que ele e porque
muito poucos poriam freio a tais
pensamentos e nem lhe outorgariam o
benefício da dúvida.
Dançaria a seguinte peça com
ela, decidiu, mas recordou que a
próxima seria uma valsa e que gostava
de dança-la com jovens damas, já que
se aproximavam mais de seu ideal de
beleza feminina. Essa valsa em
especial queria dançar com alguma
jovenzinha, porque era a peça prévia
ao jantar e assim poderiam
compartilhá-los juntos.
Tinha várias candidatas em
mente, embora todas estavam muito
procuradas e talvez já tivessem a valsa
comprometida. Algumas, é claro, nem
sequer poderiam dançá-la, porque
ainda não tinham a permissão do
comitê organizador do Almack’S. A
valsa ainda se considerava um baile
muito inapropriado para as
jovenzinhas inocentes.
De modo que decidiu dançar
com lady Paget a peça que viesse
depois do jantar. Talvez algum
cavalheiro teria a bondade de dançar
com ela a valsa ou ao menos lhe dar
conversa durante a dança. Talvez nem
sequer ficasse até depois do jantar.
Talvez partisse sem que ninguém se
desse conta, consciente de que sua
reputação a tinha precedido.
Seria um alívio que se fosse.
Não gostava muito de dançar com ela.
A senhorita Susanna Blaylock
já tinha reservado a valsa ao Freddie
Davidson, descobriu quando se
aproximou dela depois da segunda
peça. A moça parecia muito
decepcionada ao dizer que tinha livre
a seguinte peça. Que reservou para
ele. É claro, depois do jantar.
E depois, antes de poder
continuar sua busca por companhia
para a valsa, uns quantos conhecidos
o introduziram em uma conversa para
lhe perguntar se achava melhor que
um deles comprasse um par de baios
ou um par de tordos para seu novo
tílburi. O que ficaria mais brilhante? O
que seria mais manejável? E mais na
moda? Mais rápido? Mais adequado
para as cores de seu tílburi? O que
prefeririam as damas? Ele se somou a
discussão e as gargalhadas que
surgiram dela.
Se não se afastasse logo do
grupo, pensou ao cabo de uns
minutos, não ficaria nenhuma dama
livre com quem dançar... e detestava
não dançar a valsa.
—Por que um par composto
por baio e tordo? —Propôs com um
sorriso—. Isso sim que chamaria a
atenção que tanto buscas Curtis.
Agora, se me perdoarem... —virou-se
enquanto
falava e não terminou a frase
porque esteve a ponto de dar de cara
com alguém que passava ao seu lado.
O instinto fez que agarrasse à mulher
pelos braços para evitar que caísse. —
Peço-lhe desculpas — ele disse e se
achou cara a cara e com os olhos
quase à mesma altura que os de lady
Paget—. Deveria olhar por onde ando.
A dama não fez gesto algum
para se afastar. Estava se abanando
muito devagar com um leque de
varinhas de marfim esculpidas com
uma delicada filigrana.
Por Deus, seus olhos eram da
mesma cor que seu vestido! Nunca
tinha visto uns olhos tão verdes e
efetivamente eram amendoados.
Rodeados por todo esse cabelo
vermelho, eram extraordinários. Suas
pestanas eram espessas e longas, um
pouco mais escuras que o cabelo,
assim como suas sobrancelhas. Levava
um perfume que não conseguiu
identificar, um aroma floral, nem
muito forte nem muito adocicado.
—Perdoo-o. — replicou ela
com uma voz aveludada tão sensual
que lhe provocou um calafrio.
Já se tinha dado conta do calor
que reinava no salão apesar de que as
janelas estavam abertas. Entretanto,
não tinha reparado até esse momento
no detalhe de que a estadia ficou sem
ar.
A dama esboçou o indício de
um sorriso e seguiu olhando-o.
Em qualquer momento seguiria
seu caminho, fosse o que fosse. Não o
fez. Talvez porque... Ah! Talvez
porque seguia segurando-a pelos
braços. Soltou com outra desculpa.
—Há um momento o vi me
olhando. — disse ela —Eu o olhava, é
claro, ou não me teria dado conta. Já
nos vimos antes?
Devia saber que não se
conheciam nem de vista. A menos
que...
—Vi-a no Hyde Park ontem
de tarde. —respondeu Stephen. —
Talvez lhe sou familiar porque me viu
ali mas não se lembra. Levava luto.
—Mas que esperto é você!
—exclamou ela. —Achei estar
irreconhecível com o véu. — Em seu
olhar apareceu um brilho risonho.
Entretanto, Stephen não soube
se isso era ocasionado pelo bom
humor ou por um inexplicável
desprezo.
—Lembro-me muito bem —
acrescentou lady Paget— Recordei ao
vê-lo esta noite. Como esquecê-lo?
Quando o vi no parque me pareceu
um anjo. Tornei a pensar nisso esta
noite.
—Caramba! —Stephen se
pôs a rir com uma mescla de vergonha
e bom humor. Parecia que essa noite
não estava muito ágil para conversar
—Muito temo que as aparências
enganam, senhora.
—Sim, pode ser. —
comentou ela —Talvez quando nos
conhecermos melhor, mude minha
opinião sobre você... Se acaso
chegarmos a nos conhecer melhor.
Tomara que seu peito não
estivesse tão exposto nem que ela
estivesse tão perto. Entretanto, iria se
sentir um pouco idiota se desse um
passo para trás nesse momento, já que
deveria ter feito isso quando lhe soltou
os braços. Sabia que era imperativo
manter os olhos cravados em seu
rosto.
Lady Paget tinha uns lábios
carnudos e uma boca grande.
Possivelmente fosse uma das bocas
mais apetecíveis que tinha visto na
vida. Não, estava seguro de que não
tinha visto nada igual. Um traço a
acrescentar em uma beleza perfeita
por si só.
—Peço-lhe desculpas uma
vez mais. —disse ao mesmo tempo
em que retrocedia por fim para fazer
uma ligeira reverência. —Sou Merton.
Aos seus pés, senhora.
—Já sabia — respondeu ela.
—Quando uma mulher vê um anjo,
tem que averiguar sua identidade em
seguida. Não é preciso que lhe diga
quem sou eu.
—É lady Paget. —disse —
Encantado de conhecê-la.
—Sério? —Tinha
entreaberto as pálpebras e o olhava
com os olhos entrecerrados. Seu olhar
seguia risonho.
Por cima do ombro de lady
Paget, Stephen viu que os casais iam à
pista de baile. Os músicos preparavam
seus instrumentos.
—Lady Paget, gostaria de
dançar a valsa?
—Eu adoraria... se tivesse
companhia.
E nesse momento a viu
esboçar um sorriso tão radiante que
quase retrocedeu outro passo.
—Deixe-me que fale de
outra maneira. Lady Paget, gostaria de
dançar a valsa comigo?
—Adoraria, lorde Merton —
respondeu ela —Por que acredita que
me dei de frente com você?
Por Deus.
Pelo amor de Deus! Ofereceu-
lhe o braço.
E ela o tomou com uma mão
de dedos longos, embainhados em
luva branca. Talvez essa mão nunca
houvesse brandido um machado,
pensou. Talvez nunca houvesse
segurado uma arma com intenção
letal. Mas era perigosa de qualquer
maneira.
Lady Paget era perigosa.
O problema era que não
entendia o que queria lhe dizer sua
mente com essa frase.
Ia dançar a valsa com a infame
lady Paget... E jantar com ela depois.
Teria jurado que lhe formigava o pulso
ali onde ela tinha posado a mão.
Por mais idiota que parecesse,
se sentia muito jovem, muito inocente
e ingênuo... E não era nenhuma
dessas coisas.

O conde Merton era mais alto


do que Cassandra tinha acreditado a
princípio. De fato, era meia cabeça
mais alto que ela, pelo menos. Tinha
ombros largos e o torso e os braços
musculosos. Não necessitava de
enchimento para enfeitar sua figura.
Era de cintura e quadris estreitos, de
pernas longas e fortes. Seus olhos
eram de um azul intenso e pareciam
sorrir, embora o resto de seu rosto
fosse sereno. Tinha uma boca grande
e sorriso afável. Sempre tinha pensado
que os morenos eram a epítome de
homem atraente. Mas esse homem em
concreto era loiro e fisicamente
perfeito.
Tinha um aroma muito viril,
com uma nota almiscarada muito
suave. Estava muito seguro de que era
mais jovem que ela. Também era
muito popular entre as damas, coisa
que não estranhava absolutamente.
Tinha visto que as que não dançavam
o seguiam com olhar ofegante durante
as duas primeiras peças. Inclusive o
olhavam algumas que estavam
dançando. À medida que se
aproximava o momento de escolher
par para a valsa, viu que muitas o
observavam com crescente
nervosismo. Não lhe cabia dúvida de
que algumas jovenzinhas tinham
esperado até o último momento para
aceitar outros pares de dança menos
desejáveis.
Rodeava-o uma aura de
sinceridade, quase de inocência.
Colocou-lhe uma mão no
ombro e a outra na mão quando ele
lhe tomou pela cintura com o braço
direito e a música começou a soar.
Não era obrigada a proteger
sua inocência. Tinha sido muito
sincera com ele. Havia-lhe dito que o
recordava desde o dia anterior.
Reconheceu ter feito
averiguações sobre sua identidade e
confessou que a topada entre eles foi
premeditada a fim de que a convidasse
a dançar.
Era advertência mais que
suficiente. Se fosse bastante idiota
depois dessa valsa para seguir se
relacionando com a infame lady
Paget, a assassina do machado, a
mata maridos, ele teria a culpa do que
acontecesse a seguir.
Fechou os olhos um instante
enquanto lorde Merton a fazia rodar
com os primeiros compassos da
música. E cedeu a uma momentânea
melancolia. Teria sido maravilhoso
relaxar durante meia hora e desfrutar.
Tinha a sensação de que sua vida
levava muitíssimo tempo desprovida
de toda diversão.
Entretanto, o relaxamento e a
diversão eram luxos que não podia se
permitir. Olhou-o nos olhos e ele lhe
devolveu o olhar com expressão
risonha.
—Dança muito bem a valsa.
— o ouviu dizer.
Sério? Perguntou-se. Só tinha
dançado em uma só ocasião em
Londres, fazia muitos anos e alguma
ou outra vez nas festas campestres.
Não se considerava uma perita em
dança.
—É claro que danço bem...
Quando tenho um par que dança
ainda melhor.
—A menor de minhas irmãs
ficaria encantada de proclamar seu
mérito por isso —comentou lorde
Merton —Ela me ensinou a dançar
faz anos, quando era um menino
muito desajeitado que achava que o
baile era coisa de meninas e que só
queria estar no exterior, subindo nas
árvores e nadando no rio.
—Sua irmã foi muito esperta
— replicou ela. —Deu-se conta de
que as crianças se convertem em
homens que acabavam
compreendendo que a valsa é um
prelúdio necessário ao cortejo.
Viu-o arquear as sobrancelhas.
—Ou... —acrescentou ela,
— à sedução.
Esses olhos azuis se cravaram
nela, mas o silêncio se prolongou uns
instantes.
—Não estou tentando
seduzi-la, lady Paget. —disse ao final
—Peço-lhe desculpas se...
—Acredito que é um
perfeito cavalheiro, lorde Merton. —
ela o interrompeu. —Sei que não está
tentando me seduzir. É justo o
contrário. Sou eu quem tenta seduzi-
lo. E estou decidida a conseguir isso,
por certo.
Seguiram dançando em
silêncio. A orquestra tocava uma
comovedora e lenta melodia. Giraram
pela pista do baile se mesclando com
o resto dos casais. Os vestidos das
damas formavam um caleidoscópio de
cores e as velas dos candelabros, um
torvelinho de luz. Por cima da música
se escutavam vozes que riam ou
conversavam.
Ela percebia o calor corporal
de lorde Merton procedente de seu
ombro e da palma de sua mão, e
notava como se estendia até seu peito,
seu ventre e a face interna de suas
coxas ao resto de seu corpo.
—Por quê? —perguntou ele
em voz baixa ao cabo de um
momento.
Jogou a cabeça para trás e
esboçou um sorriso deslumbrante.
—Porque é um homem
atraente, lorde Merton —respondeu,
—e porque não tenho o menor
interesse em enredá-lo em um cortejo,
como a maioria das jovenzinhas daqui
presentes. Já estive casada em uma
ocasião e a experiência me basta para
vida toda.
O conde não correspondeu ao
seu sorriso. Seu olhar se tornou muito
intenso. Mas de repente, sua
expressão se suavizou, sorriu de novo
e esboçou um sorriso que aumentava
seu atrativo.
—Lady Paget, acredito que
adora escandalizar aos outros.
Ela deu de ombros e manteve
o gesto, sabendo que a postura
revelava ainda mais seus seios. Até
esse momento, lorde Merton tinha
sido um perfeito cavalheiro. Seus
olhos não tinham baixado além de seu
queixo. Entretanto, nesse instante
desceu o olhar e um ligeiro rubor lhe
tingiu as faces.
—Está preparado para
casar? —perguntou-lhe. —Está
procurando uma esposa? Quer
assentar a cabeça e começar a ter
descendência?
A música tinha chegado ao fim
e estavam em pé, olhando um ao
outro, à espera de que a orquestra
interpretasse a segunda melodia da
valsa.
—Não, senhora. —
respondeu ele com seriedade —A
resposta a todas suas perguntas é não.
Ainda não. Sinto muito, mas...
—Vejo que estava certa. —
disse —Quantos anos tem, lorde
Merton?
A melodia era mais alegre que
a anterior. E a expressão do conde se
tornou risonha uma vez mais.
—Tenho vinte e cinco. —
ele respondeu.
—E eu vinte e oito. —disse
—E pela primeira vez na vida sou
livre. Ser viúva suporta uma
maravilhosa liberdade, lorde Merton.
Pela primeira vez na vida não devo
lealdade a nenhum homem, seja pai
ou marido. Por fim posso fazer o que
eu quiser com minha vida, sem ter que
me rodear das regras desta sociedade
machista em que vivemos.
Talvez essas palavras fossem
certas se não se encontrasse na ruína.
Se outras três pessoas, por causas
alheias a elas, não dependessem
totalmente dela. De qualquer maneira,
seu alarde soava muito bem. A
liberdade e a independência sempre
soavam bem.
Lorde Merton voltava a sorrir.
—Como vê, não sou uma
ameaça para você, milorde. —
continuou. —Não me casaria com
você por mais que se aproximasse de
joelhos todos os dias durante todo um
ano e me enviasse duas dúzias de
rosas vermelhas um dia sim e outro
também.
—Mas me seduziria. —ele
indicou.
—Só em caso de
necessidade. — replicou, lhe
devolvendo o sorriso. —Se não fosse
receptivo ou titubeasse. Você é muito
bonito, e se eu quisesse fazer uso de
minha liberdade, passando por cima
das restrições morais, preferiria
compartilhar meu leito com alguém
perfeito a fazê-lo com alguém que não
seja assim.
—Nesse caso não tenha
esperanças, senhora. — disse ele,
com uma expressão travessa nos
olhos. —Nenhum homem é perfeito.
—E seria um soberano
aborrecimento se assim fossem. —
indicou ela —Mas há homens que são
perfeitos em sua beleza e em seu
atrativo. Ao menos, suponho que há
mais de um. De momento eu só vi um.
E talvez não haja ninguém além de
você. Talvez você seja único.
Lorde Merton se pôs a rir a
gargalhadas pela primeira vez.
Cassandra percebeu que
estavam chamando muitíssimo
atenção, assim como tinha acontecido
enquanto dançava a segunda peça
com o conde do Sheringford.
No dia anterior no parque,
Cassandra tinha pensado que o conde
Merton e o senhor Huxtable eram um
anjo e um demônio. Certamente os
convidados dessa noite viam os dois
da mesma maneira.
—É escandalosa, não cabe a
menor duvida, lady Paget. —disse ele
—Acho que deve estar passando bons
momentos. E também acho que
deveríamos nos concentrar nos passos
de dança durante um momento.
—Vá! —Exclamou ela, e
acrescentou em voz mais baixa: —
Parece que tem medo. Tem medo de
que eu esteja falando sério. Ou de que
não esteja. Ou talvez só esteja com
medo de que eu lhe abra a cabeça
com um machado, enquanto dorme a
meu lado.
—Nenhuma das três coisas,
lady Paget. —assegurou ele. —Mas
tenho medo de perder a conta, de lhe
pisar os pés e de ficar em ridículo se
seguirmos com esta conversa. Minha
irmã me ensinou a contar os passos
enquanto dançava, mas me é
impossível contar enquanto mantenho
uma conversa picante com uma
mulher formosa e sedutora.
—Nesse caso, siga
contando.
Lorde Merton não sabia ao
certo se estava falando sério ou não.
Pensou ela, enquanto dançavam em
silêncio. Justo o que pretendia.
Entretanto, ele se sentiu atraído...
Intrigado e atraído. Justo o que
pretendia. Só tinha que convencê-lo a
convidá-la para a última dança da
noite, e nesse momento ele
descobriria a verdade.... Nesse
momento saberia se falava sério ou
não.
Não obstante, a sorte lhe sorria
e não teve que esperar. Dançaram um
bom tempo em silêncio e quando
inspirou para falar que a música tinha
acabado, ele lhe adiantou.
—Este é o descanso para o
jantar, o que me concede o privilégio
de acompanha-la à sala de jantar e me
sentar ao seu lado... Se estiver de
acordo, é claro. Concede-me a honra?
—É claro que sim, —
respondeu, olhando-o com as
pálpebras entreabertas. —Como não
ir para completar meu plano de
seduzi-lo?
Lorde Merton sorriu e acabou
rindo entre dentes.
CAPÍTULO 04

Stephen se sentia fascinado e


incômodo, embevecido e confuso.
Em que confusão se
colocara... Ou melhor, em que
confusão o tinham colocado?
Seria certo que oculta pelo
denso véu, o tinha visto no parque no
dia anterior enquanto Con e ele a
olhavam, e essa noite o tinha
reconhecido e decidido esbarrar nele
de forma intencional para que não
ficasse outra opção a não ser convidá-
la para dançar?
—Sei que não está
tentando me seduzir. É justo o
contrário. Sou eu quem tenta
seduzi-lo. E estou decidida a
conseguir isso, por certo.
—Porque é um homem
atraente, lorde Merton.
— Preferiria
compartilhar meu leito com
alguém perfeito a fazê-lo com
alguém que não seja assim.

Rememorou suas palavras,


embora lhe custasse trabalho acreditar
que não tivessem feito parte de um
sonho.
Quando a música acabou,
ofereceu-lhe o braço e ela o aceitou,
mas em vez de fazê-lo como mandava
a etiqueta, limitando-se a repousar a
mão em seu braço, lady Paget o
pegou pelo braço com plena confiança
e se apegou a ele. O salão de baile
não demorou a ficar vazio. Todos os
convidados se encaminharam à sala de
jantar e às estadias contíguas,
dispostos a comer e a recuperar as
forças.
E todos os observavam.
Embora o fizessem de esguelha, já
que eram muito educados para olhá-
los abertamente. A sensação de se ver
convertido no centro de atenção era
fruto de sua imaginação, concluiu. Era
compreensível. A chegada de lady
Paget ao baile de Meg sem ter sido
convidada tinha causado um enorme
revoo.
Não o envergonhava tê-la
como companheira. Em realidade,
alegrava-lhe, já que sua companhia lhe
evitaria algum tipo de insulto, inclusive
impediria que outros lhe dessem as
costas, uma arte dominada por grande
parte da alta sociedade. Embora
ignorava os detalhes do caso de lady
Paget, Meg e Sherry não a tinham
expulsado de Claverbrook House. Ao
contrário, faziam todo o possível para
que se sentisse bem recebida. De
modo que os outros convidados
estavam obrigados a lhe demonstrar
educação, no mínimo.
Localizou uma mesinha com
só duas cadeiras que continuava
desocupada na lateral esquerda da
estadia e conduziu lady Paget nessa
direção.
—Podemos nos sentar aqui?
—propôs.
Talvez nesse lugar se sentisse
mais cômoda que se ocupassem duas
cadeiras em uma das longas mesas da
sala de jantar, onde estaria exposta ao
escrutínio de outros.
—Um cara-a-cara? —
Perguntou ela por sua vez. —Que
engenhoso de sua parte, lorde Merton.
Stephen lhe retirou a cadeira
para que tomasse assento e se dirigiu
à sala de jantar a fim de servir um par
de pratos.
De verdade tinha se devotado
para ser seu amante? Ou seu convite
se limitava a uma só noite? Teria
interpretado mal suas palavras?
Tratava-se tudo de uma brincadeira?
Não, não tinha interpretado mal nada.
Havia-lhe dito claramente que queria
seduzi-lo. Por Deus! Se até lhe tinha
perguntado se lhe assustava a
possibilidade de que o matasse com
um machado enquanto dormia ao seu
lado...
Alguém o puxou pelo braço e
lhe deu um bom apertão. Ao se voltar,
viu Meg com um deslumbrante sorriso
nos lábios.
—Stephen, —lhe disse—
estou muito orgulhosa de você. E de
mim por tê-lo educado para que seja
um cavalheiro. Obrigada.
—Por quê? —perguntou-lhe,
arqueando as sobrancelhas.
—Por dançar com lady
Paget. —respondeu ela —Sei muito
bem o que se sente ao ser um pária,
embora em meu caso não cheguei a
conhecer o ostracismo. Todo mundo
merece ser tratado com cortesia,
sobretudo se falarmos de alguém a
quem se julgou só por uns quantos
rumores. Vai se sentar conosco para
jantar?
—Lady Paget está na estadia
contígua, esperando que lhe leve um
prato de comida, —respondeu.
—Muito bem. —comentou
sua irmã. —Nessie e Elliott foram
procura-la. Tinham a intenção de
convidá-la para que se sentasse com
eles. Estou muito orgulhosa de todos
vocês. Embora suponho que o estão
fazendo não só por ela, mas também
por mim.
—Onde está o marquês de
Claverbrook?
—Já se deitou. —respondeu
Meg. —O muito idiota insistiu em
fazer parte da recepção e em se sentar
para observar as duas primeiras peças
de baile, apesar do cansaço. Ele que
detesta este tipo de atos! Depois
começou a resmungar porque íamos
permitir que se dançasse a valsa e
afirmou que em sua época não se
aceitava esse tipo de indecências. Etc.,
etc.. —o bom humor lhe iluminava os
olhos. —Fomos até aí. Depois o levei
ao seu dormitório. Duncan assegura
que sou a única pessoa capaz de
dirigir seu avô. Mas estou segura de
que todos poderiam fazê-lo se não lhe
tivessem tanto medo. Sob toda essa
ferocidade se esconde um cordeirinho.
Stephen se colocou na fila e
aguardou seu turno para servir dois
pratos com uma seleção de opções
salgadas e doces, com a esperança de
que lady Paget gostasse de alguma.
Quando retornou à mesa que
ocupavam, achou-a se abando com
uma expressão altiva e um sorriso
desdenhoso. Todas as mesas ao seu
redor estavam ocupadas. Ninguém
estava falando com ela e tampouco
pareciam estar criticando-a. Ao menos
não de forma evidente, mas era claro
que todos estavam muitos cientes dela.
Supôs que mais de um tinha escolhido
se sentar nessa estadia devido a sua
presença, com a intenção de poder
descrever seu comportamento durante
os dias vindouros e de ventilar a
indignação de se ver obrigado a
compartilhar espaço com ela.
Tal era a natureza humana.
Depois de colocar um prato na
frente dela, Stephen ocupou seu
assento. Alguém lhes tinha servido o
chá.
—Espero ter trazido algo
que goste, —disse e a viu observar
ambos os pratos.
—Pois sim, —comentou a
dama com essa voz tão rouca e
sensual. —Trouxe você sua própria
pessoa.
Perguntou-se se teria por
costume manter essa classe de
conversa tão escandalosa.
Possivelmente fosse... Não, se
corrigiu. Sem dúvidas, lady Paget era
a mulher com mais atração sexual que
tinha visto na vida. Enquanto
dançavam a valsa se sentiu rodeado
por seu calor corporal apesar de ter
mantido uma distância decente entre
ambos o tempo todo.
—Temia que não
retornasse? —perguntou. —Sentiu-se
desconfortável e observada?
—Refere-se ao fato de que
todos os pressentes estão esperando
que saque um machado debaixo das
saias e comece a brandi-la sobre
minha cabeça com um grito
arrepiante? —ela perguntou por sua
vez, com as sobrancelhas arqueadas.
—Não, esse tipo de tolices não me
afeta.
Era uma mulher direta.
Embora talvez tivesse chegado à
conclusão de que a melhor defesa era
um bom ataque.
—Os rumores costumam ser
absurdos — ele apontou.
Seus lábios ainda esboçavam
um sorriso desdenhoso enquanto
escolhia um bolinho de lagosta e o
levava a boca.
—Certo. — concordou,
olhando-o nos olhos enquanto mordia
o bolinho. Não voltou a falar até que
mastigou e tragou o leve bocado. —
Mas às vezes não são, lorde Merton.
Você mesmo deve estar se
perguntando.
Não ficou mais remédio que
seguir o assunto que ela acabava de
lhe dar.
—Refere-se aquele em que
matou seu marido? —perguntou ele.
—Não é de minha conta, senhora.
Lady Paget se pôs a rir,
fazendo com que várias cabeças se
voltassem para olhá-los.
—Nesse caso, é um idiota.
—replicou. —Se for me permitir
seduzi-lo, seria muito saudável que se
mostrasse com certo temor do que
posso chegar a fazer quando tiver
baixado a guarda e nu em minha
cama.
A conversa se tornava mais
escandalosa a cada frase. Tomara não
estivesse ruborizado, pensou Stephen.
—Mas talvez não permita,
senhora. —respondeu. —Em
realidade, acredito que jamais
permitiria ser seduzido. Caso decida
manter uma cortesã, ou tomar uma
amante ocasional, faria por decisão
própria e tendo em conta tanto os
meus desejos como os da mulher em
questão. Não porque caí na armadilha
de uma sedutora.
De repente se deu conta de
que tinha perdido o apetite,
compreendeu ao olhar seu prato.
Perguntou-se por que o tinha enchido
tanto. Além disso, por que estava
mantendo semelhante conversa? De
verdade disse em presença de uma
dama as palavras: Caso decida manter
uma cortesã, ou tomar uma amante
ocasional?
Acaso tinha esquecido os bons
costumes? Por muito infame e
desbocada que fosse lady Paget, não
deixava de ser uma dama. E ele
continuava sendo um cavalheiro.
—Não lhe tenho medo. —
acrescentou em voz alta.
Embora talvez devesse ter.
Talvez tudo o que lhe havia dito eram
palavras ocas. Nunca tinha mantido
uma amante, embora não fosse
virgem. Às vezes invejava um pouco
Con, que sempre parecia achar uma
viúva respeitável com quem manter
uma relação discreta quando estava na
cidade. Uns anos antes foi a senhora
Hunter; no ano anterior, a senhora
Johnson. Essa temporada em concreto
ignorava se já tinha encontrado a
alguém.
No caso de decidir tomar uma
amante a quem manter (e que Deus o
ajudasse porque isso era precisamente
o que se estava expondo), faria
porque tinha tomado uma decisão de
forma repentina, mas deliberada e
meditada no meio de um baile? Ou
por que uma mulher o tinha seduzido,
sem disfarces em suas intenções?
Lady Paget não era seu tipo de
mulher, se recordou. Não era o tipo
de mulher que consideraria como
esposa, em todo caso, não a estava
considerando como esposa.
De repente, a imaginou nua na
cama e sentiu uma alarmante tensão
na virilha.
Olhe onde fui parar! Pensou.
—Lady Paget, —disse com
voz firme, —já vai sendo hora de
mudarmos o tema de nossa conversa.
Fale sobre você. Conte algo sobre sua
infância, se desejar. Onde cresceu?
Ela escolheu uma peça doce
de seu prato e ergueu a cabeça para
olhá-lo com um sorriso.
—Passávamos grande parte
do tempo em Londres —respondeu —
E nos balneários. Meu pai era um
jogador contumaz, assim nos
mudávamos para onde se realizassem
as apostas mais altas. Vivíamos em
aposentos alugados e em hotéis. Mas
não pense que foi uma infância triste,
lorde Merton, porque não é minha
intenção lhe provocar pena. Asseguro-
lhe que meu pai adorava a mim e meu
irmão com a mesma paixão que
adorava o jogo. E segundo suas
próprias palavras, tinha a sorte do
diabo. Sempre ganhava mais do que
perdia. Nem sequer recordo a minha
mãe, mas tive uma preceptora desde
muito pequena, que me tratou com
tanto carinho como teria feito
qualquer mãe. Vimos muito mundo
juntas, a senhorita Haytor e eu... Na
realidade através das páginas dos
livros. Você deve ter desfrutado de
uma infância muito mais privilegiada,
mas lhe asseguro que não pode ter
sido mais feliz nem mais divertida que
a minha.
Pela primeira vez ao longo da
noite percebeu que lady Paget mentia,
embora lhe era impossível saber com
certeza que detalhes de sua história
eram falsos. Seu relato foi muito
defensivo para ser verdadeiro. Se as
linhas gerais do que lhe tinha contado
eram reais, uma vida semelhante devia
deixar sequelas em forma de
inseguranças e temores em uma
criança. Porque em sua opinião, as
crianças deviam contar com um lar
estável.
—Mais privilegiada? —
replicou —Possivelmente. Passei os
primeiros anos de minha vida no
vicariato de um povoado do
Shropshire, pois meu pai era o vigário.
Depois de sua morte mudamos para
uma casinha na mesma localidade.
Vivi com minhas irmãs. Meg, a
condessa do Sheringford, é a mais
velha, e assim como sua senhorita
Haytor, foi uma esplêndida mãe
suplente. Nessie, a duquesa do
Moreland, é segunda por ordem de
nascimento, e Kate, a baronesa
Montford, é só uns anos mais velha
que eu. Eu sou o caçula. Fui um moço
feliz até ter herdado o título aos
dezessete anos. Descobri-lo foi um
grande impacto para todos, porque
ignorávamos que eu fosse o seguinte
na linha de sucessão. Entretanto,
alegra-me que fosse assim. Crescer
com a ideia de ter que trabalhar para
sobreviver e para manter a família
forja o caráter de um homem. Ou ao
menos espero que esse seja meu caso.
Porque assim consigo lidar tanto com
os privilégios quanto com as vantagens
e desvantagens que implicam o título,
possivelmente muito melhor do que
teria feito se tivesse crescido com
outras expectativas.
—Lady Sheringford é sua
irmã? —perguntou-lhe lady Paget com
as sobrancelhas arqueadas.
—Sim. —respondeu.
—E se casou com o infame
conde Sheringford —acrescentou, —
que fugiu no próprio dia do casamento
há uns anos com a esposa de outro,
com quem teve um filho.
Para Stephen era irritante não
poder dizer a verdade do que tinha
acontecido, antes e depois de Sherry
levar a senhora Turner de Londres na
véspera de suas bodas com a irmã do
senhor Turner. Entretanto, tinha
prometido a seu cunhado que jamais
revelaria a verdade.
—Toby —ele disse —É um
membro muito querido de nossa
família e Meg o quer tanto quanto os
seus dois filhos. Assim como Sherry, o
conde Sheringford. Toby é filho de
ambos e meu sobrinho.
—Vejo que coloquei o dedo
na ferida, — ela comentou ao mesmo
tempo em que colocava um cotovelo
na mesa, apoiando o queixo na palma
da mão. —Por que sua irmã se casou
com ele?
—Suponho que porque ele
pediu. —respondeu—E porque quis.
Lady Paget fez uma careta e
seu olhar adquiriu essa expressão
ligeiramente desdenhosa.
—Está aborrecido. —indicou
—Sou impertinente e atrevida, lorde
Merton?
—Absolutamente. —
respondeu Stephen. —Fui o primeiro
a fazer perguntas de índole pessoal.
Há muito que chegou à cidade?
—Não. —respondeu ela.
—Aloja-se com algum
parente? Mencionou um irmão.
—Não sou o tipo de pessoa
que os parentes gostem de
reconhecer. —replicou. —Vivo
sozinha. —Seus olhares se
encontraram. —Muito só. —
acrescentou a dama.
Entretanto, viu que seus lábios
também sorriam, como se estivesse
rindo de si mesma enquanto que a
mão que apoiava seu queixo se
transladava para baixo, para percorrer
com gesto distraído o decote de seu
vestido com a ponta de um dedo, que,
em um dado momento, introduziu por
debaixo do tecido, sem afastar o
cotovelo da mesa.
Assim que notou o calor
opressivo da estadia, Stephen
compreendeu que era um gesto
premeditado.
—Sendo assim, veio sozinha
em sua carruagem? —perguntou-lhe.
—Ou trouxe algum acomp...
—Não tenho carruagem. —
interrompeu ela —Vim sozinha em
uma carruagem alugada, lorde
Merton, mas ordenei ao cocheiro que
me deixasse antes de entrar na praça.
Teria sido humilhante chegar até o
tapete vermelho da recepção em um
veículo alugado, sobre tudo sem estar
convidada. E sim, obrigada, aceito.
—Aceita o que? —
perguntou-lhe com gesto interrogante.
—Sua oferta de me
acompanhar em casa em sua
carruagem. —respondeu lady Paget
com um olhar risonho. —Estava a
ponto de se oferecer, não é? Não me
envergonhe agora me dizendo que não
tinha a intenção de fazer isso.
—Será um prazer
acompanha-la, senhora —respondeu
—Direi à Meg que nos envie uma
criada para que nos acompanhe.
Suas palavras lhe arrancaram
uma gargalhada rouca e sensual.
—Isso seria um
inconveniente, — a ouviu dizer. —
Como vou seduzi-lo diante de uma
criada ou convidá-lo a entrar em
minha casa com ela presente?
Compreendeu que à medida
que passava o tempo se sentia cada
vez mais enredado por seus ardis.
Lady Paget estava decidida a
converter-se em sua amante. Talvez
fosse compreensível.
Estava há pouco tempo em
Londres e tinha descoberto que sua
reputação a precedia. Era uma pária.
Seu irmão a tinha abandonado, se
acaso este se achasse na cidade. Em
caso de ir a algum lugar ou de
procurar companhia, se veria obrigada
a fazer isso sozinha, e sem contar com
um convite, como tinha acontecido
essa noite.
Certamente estava muito
sozinha.
E certamente se sentia assim.
Era uma mulher de beleza
extraordinária. Viúva aos vinte e oito
anos. Em circunstâncias normais
estaria procurando a forma de obter
um futuro mais brilhante, já que o
período de luto teria passado.
Entretanto, a opinião pública a
acusava de ser a assassina de seu
marido. Mas não a lei, porque estava
em liberdade. Não obstante, a opinião
pública era uma força poderosa.
Sim, devia estar se sentir muito
sozinha.
E tinha decidido tratar de
aliviar essa solidão com a ajuda de um
amante.
Era muito compreensível. Mas
tinha escolhido a ele.
—Espero que não insista em
se comportar como um perfeito
cavalheiro. —disse lady Paget. —
Espero que não se limite a me ajudar
a descer da carruagem e a me
acompanhar até a porta para me dar
boa noite com um beijo no dorso da
mão.
Olhou-a nos olhos e
compreendeu que a compaixão e a
atração sexual formavam uma mescla
letal.
—Não. —disse. —Não vou
me limitar, lady Paget.
Viu-a afastar o cotovelo da
mesa e cravar o olhar no prato.
Entretanto, não pareceu achar nada
apetecível. Voltou a olhá-lo e
percebeu que lhe pulsava a artéria de
forma visível em um lado do pescoço.
—Lorde Merton, já não
tenho o menor interesse em continuar
no baile. —afirmou —Dancei, comi e
o conheci. Leve-me para casa.
Ele sentiu uma pontada de
desejo na virilha e se viu obrigado a
refrear a luxúria.
—Temo que ainda não posso
ir embora, —replicou —Tenho as
duas seguintes peças comprometidas
para dançar com duas senhoritas.
—E deve cumprir com sua
palavra? —perguntou-lhe, arqueando
as sobrancelhas.
—Devo cumprir. —
respondeu —Quero cumprir.
—Vejo que é um cavalheiro.
—comentou lady Paget —Que
aborrecido.
Nesse momento Stephen
percebeu que os convidados
abandonavam a estadia com rapidez.
A orquestra começava a afinar seus
instrumentos no salão do baile. Ficou
em pé e estendeu a mão a lady Paget.
—Permita-me acompanha-la
ao salão de baile para lhe apresentar
ao... —Deixou a frase no ar ao ver
que Elliott se aproximava deles e não
lhe coube dúvida do motivo. A família
tinha fechado filas, embora não soube
se pelo bem de Meg ou pelo seu. —
ao duque Moreland —concluiu. —
Meu cunhado. Elliott, apresento a lady
Paget.
—É um prazer, senhora. —
replicou o aludido enquanto fazia uma
reverência e adotava uma expressão
que contradizia suas palavras.
—Excelência... —saudou-o
a dama com uma inclinação de
cabeça, depois ficando em pé e
aferrada ao leque. Seu gesto se tornou
altivo e distante.
—Concede-me a honra de
dançar a seguinte peça comigo, lady
Paget? —convidou-a Elliott, lhe
oferecendo o braço.
—Concedo-o. —respondeu
enquanto aceitava seu braço, e se
afastou sem olhar ao Stephen
nenhuma só vez.
Ao olhar a mesa, ele descobriu
que se formara uma camada cinzenta
no chá que nenhum dos dois tinha
sequer provado. Do prato de lady
Paget sobrava pouca coisa. Do seu,
tudo estava intacto. Uns anos antes lhe
teria parecido um esbanjamento
imperdoável.
Decidiu que seria melhor ir à
busca de seu seguinte par de dança
antes que começasse a música. Não
seria de respeito chegar tarde.
De verdade que ia se deitar
essa noite com lady Paget?
E talvez a estabelecer uma
relação a longo prazo com ela?
Não deveria se informar mais
sobre a dama, antes de chegar a esse
ponto? Mais concretamente sobre a
morte de seu marido e sobre os fatos
ocultos depois dos horríveis rumores
que a tinham precedido até Londres e
que a tinham convertido em uma
indesejável? Ela o tinha seduzido,
afinal de contas?
Temia muito que sim.
Seria muito tarde para mudar
de opinião?
Temia muito que sim.
Queria mudar de opinião?
Temia muito que não.
Afastou-se em direção ao salão
de baile.

O duque Moreland era o


homem que Cassandra tinha visto com
o conde Merton quando chegou ao
baile. O homem que se parecia
tantíssimo ao demônio do parque... ao
senhor Huxtable.
Entretanto, os olhos de Sua
Excelência eram azuis, não pareciam
tão demoníacos como os do senhor
Huxtable, e sua aparência era muito
mais austera. Tinha o aspecto de ser
um formidável adversário em caso de
alguém o contrariar.
Mas ela não tinha feito nada.
Tinha sido ele quem a tinha convidado
a dançar. Claro que se tratava do
cunhado de lady Sheringford e estava
fazendo todo o possível para mitigar o
escândalo potencial que tinha suposto
sua aparição no baile da irmã de sua
esposa. Talvez sua intenção também
tivesse sido a de arrancar o conde
Merton de suas garras.
Voltou a lançar mão de seu
sorriso desdenhoso.
A música era muito alegre e
oferecia poucas oportunidades para
conversar. As poucas que tiveram,
empregaram em trocar comentários
superficiais sobre a beleza dos
arranjos florais, a magnífica
interpretação da orquestra e a
maestria da cozinheira do marquês
Claverbrook.
—Permite-me leva-la de
novo junto ao seu... acompanhante,
senhora? —ofereceu-se o duque
quando a peça chegou ao fim, embora
certamente soubesse que carecia de
acompanhante.
—Vim sozinha, —respondeu
— mas pode me deixar aqui mesmo,
excelência.
Estavam muito perto de umas
portas francesas, abertas nesse
momento. Talvez pudesse escapulir ao
exterior para passear um momento.
Do lugar que ocupava conseguia ver
que se tratava de um amplo balcão
muito pouco concorrido. Sentiu-se
invadida por um repentino desejo de
escapar.
—Nesse caso, me permita
lhe apresentar a umas pessoas. —
propôs o duque.
Antes que pudesse lançar
alguma desculpa, uma senhora muito
sorridente se aproximou,
acompanhada por um cavalheiro de
gesto sério. O duque Moreland os
apresentou como sir Graham Carling
e sua esposa, lady Carling.
—Lady Paget, —disse a
dama depois de trocar as saudações
de rigor —confesso estar verde de
inveja, muito apropriado o dito por
certo, por seu vestido. Por que nunca
encontro um tecido tão espetacular
quando vou às compras? Embora
reconheça que esse tom em concreto
não me cairia bem. Acredito que me
faria passar inadvertida por completo.
Mas de qualquer forma... Ah, por
Deus! Graham tem esse olhar e
Moreland está se perguntando quando
poderá escapar sem parecer
descortês. —Soltou uma gargalhada e
tomou Cassandra pelo braço. —
Acompanhe-me. Vamos dar um
passeio e falar sobre vestidos e
chapéus, tudo o que goste.
E, fiel a sua palavra,
acompanhou-a pelo perímetro do
salão de baile enquanto conversavam
e os pares se colocavam na pista à
espera de que começasse a seguinte
peça.
—Sou a mãe de lorde
Sheringford —lhe disse em um dado
momento — e o quero com loucura,
se alguma vez você afirmar ter me
ouvido pronunciar essas palavras,
negarei taxativamente. Esse descarado
me levou pela rua da amargura
durante anos, mas nunca lhe darei o
gosto de saber com certeza o muito
que sofri. Apesar de tudo, sou da
firme opinião de que acertou
plenamente ao se casar com
Margaret. É uma joia. Adoro-a e
adoro aos meus dois netos e minha
neta, embora meu primeiro neto tenha
nascido fora do matrimônio, um fato
do que o pobre não tem culpa,
verdade?
—Lady Carling, —ela disse
a mulher em voz baixa—não vim para
ocasionar problemas.
—É claro que não! —
exclamou a dama com um sorriso
afável—Mas de qualquer forma, criou
certo reboliço, não lhe parece? E além
disso, teve a coragem de usar esse
vestido com essa cor tão chamativa.
Suponho que quanto à cor do cabelo
não teve alternativa, mas o vestido
consegue que se destaque ainda mais.
Aplaudo a coragem que demonstrou.
Cassandra analisou suas
palavras em busca de algum vislumbre
de ironia, mas não achou nenhum,
como tampouco o achou em seus
gestos.
—Há uns anos dei sermão
em Duncan por ter se apresentado em
um baile sem convite, —seguiu lady
Carling —depois de voltar para
Londres carregando as consequências
daquele terrível escândalo. A situação
se parece muito a sua, esta noite. Sabe
a primeira coisa que fez Duncan ao
chegar naquele baile, lady Paget?
Olhou à dama com as
sobrancelhas arqueadas, embora
achava saber a resposta.
—Deu um encontrão com
Margaret na porta do salão de baile,
—respondeu lady Carling, — e a
convidou para dançar e depois para se
casar com ele. Tudo na mesma frase,
se seu testemunho for certo. E
acredito porque Margaret conta a
mesma história, e minha nora não é
dada ao exagero. Entretanto, jamais
tinham se conhecido antes desse
momento. Às vezes vale a pena se
mostrar valente e desafiar à alta
sociedade, lady Paget. Espero que
você seja tão afortunada como foi
Duncan. E lhe asseguro que não
acredito em nenhuma palavra de todo
esse assunto do machado. Suponho
que se fosse verdade não estaria em
liberdade, nem sequer acredito que
estivesse viva. A menos que o
problema se reduza a uma simples
falta de provas, claro. Mas tampouco
acredito nisso e não penso em lhe
perguntar. Gostaria que viesse amanhã
a minha casa para tomar um chá. Sua
presença deixará aniquiladas e
escandalizadas as minhas demais
convidadas, e ninguém falará de outra
coisa durante todo o mês. Serei
famosa. Todo mundo quererá ir a
minhas reuniões durante o resto da
temporada social no caso de
acontecer algo igualmente falado.
Diga que sim. Diga que terá a
coragem de vir.
Possivelmente ainda restava
bondade no mundo, pensou Cassandra
enquanto esboçava seu sorriso
desdenhoso e lançava uma olhada no
salão. Havia gente que ainda a tratava
com cortesia, embora sua verdadeira
motivação residisse no afã de evitar
qualquer outro escândalo no baile. E
havia gente capaz de lhe estender a
mão e lhe oferecer sua amizade,
embora talvez o fizessem em parte por
motivos egoístas.
Era muito mais do que tinha
esperado.
Se sua situação econômica não
fosse tão desesperada...
—Pensarei nisso. —
respondeu.
—Estou certa que pensará.
—replicou lady Carling, que passou a
lhe dar o endereço de sua casa no
Curzon Street. —Encantou-me poder
desfrutar deste descanso entre dança e
dança. Não gosto de reconhecer
minha idade, mas se dançar mais de
duas peças seguidas ou passar mais de
uma hora brincando com meus netos,
me refiro aos que sabem andar e não
ao que continua ainda no berço, sinto
o peso dos anos.
O conde Merton estava
dançando com uma jovenzinha muito
bonita, que o olhava com expressão
entusiasmada e faces rosadas. O
conde lhe sorria enquanto lhe falava,
lhe dedicando toda sua atenção.
Ia se deitar com ela essa noite,
pensou, e depois falariam de negócios.
As coisas tinham saído bem, decidiu.
Sabia que fisicamente se sentia atraído
por ela.
E também tinha conseguido
granjear sua compaixão com muita
sutileza. O conde se compadecia de
sua solidão. Dava no mesmo que isso
fosse verdade em parte. Claro que
jamais confessaria.
Entretanto, conseguiria
enredá-lo ainda mais em sua rede,
quisesse ele ou não. Porque era do
que necessitava.
Não a ele como pessoa.
Necessitava de seu dinheiro.
Alice o necessitava. Como
também o necessitavam Mary e
Belinda. E o pobre Roger. Devia tê-
los muito presentes. Só assim seria
capaz de suportar o desprezo que
sentia por si mesma e que nesse
momento notava como uma pesada
laje sobre os ombros.
O conde Merton era um
cavalheiro afável e cortês.
E também era um homem. E
os homens tinham necessidades. Ela
se encarregaria de satisfazer as
necessidades de lorde Merton. Não
lhe estaria roubando o dinheiro.
Ganharia-o com acréscimo.
Não se sentia culpada.
—Eu também desfrutei
muito do descanso. — disse a lady
Carling.
CAPÍTULO 05

—Lady Paget, —disse a


duquesa de Moreland quando o baile
acabou, enquanto os convidados
formavam redemoinhos em busca de
maridos, filhos, xales e leques, e se
desejavam boa noite antes de se
encaminharem para a escadaria que
conduzia ao andar térreo onde
esperariam que chegasse a vez de
suas carruagens se aproximarem da
porta principal —veio em sua
carruagem?
—Não, —respondeu
Cassandra—mas lorde Merton teve a
grande amabilidade de se oferecer
para me acompanhar até em casa.
—Ah, muito bem! —
Exclamou a duquesa com um sorriso
—Elliott e eu estaríamos encantados
de leva-la, mas com Stephen estará a
salvo.
Stephen, repetiu em silêncio.
Chamava-se Stephen. O nome lhe
assentava bem. A duquesa pegou seu
braço.
—Vamos buscá-lo. —se
ofereceu —Essa aglomeração do final
é a pior parte de um baile, mas eu
adoro comprovar que veio tanta gente.
Meg se aterrava com a ideia de que
ninguém viesse.
Cassandra viu que o conde
Merton se aproximava delas antes de
que tivessem dado sequer um par de
passos.
—Nessie —disse com um
sorriso que dirigiu a ambas, —vejo
que encontrou lady Paget.
—Não acredito que se
perdeu. —replicou sua irmã —Mas
estava o esperando para que a levasse
em casa.
Pareceu-lhe que demoravam
uma eternidade em abandonar o salão
de baile, descer a escadaria e
atravessar o vestíbulo até chegar à
porta principal. Entretanto, depois foi
evidente o motivo da tardança. A
duquesa e o lorde Merton eram
irmãos da condessa Sheringford, de
modo que suas carruagens seriam das
últimas a partir.
No final só ficaram os duques;
os barões Montford, que a duquesa
lhe apresentou; o conde Merton; sir
Graham e lady Carling, e os condes
Sheringford, que tinham acabado de
se despedir de seus convidados.
E ela.
Depois de ter se apresentado
no baile sem convite, era impossível
passar por cima da ironia de sua
situação. E o desconforto por ser a
única pessoa presente alheia à família.
Muito mais dadas as circunstâncias!
Tanto lady Carling como o
barão Montford se ofereceram a leva-
la em casa em suas carruagens. Em
ambos os casos lhes tinha assegurado
que lorde Merton tinha tido a
amabilidade de se oferecer primeiro.
—Bom, Meg — disse lorde
Montford, —menos mal que não veio
ninguém ao seu baile. Pensa nos
empurrões, nas cotoveladas e nos
pisões que teríamos sofrido se
tivessem decidido vir.
A condessa se pôs a rir.
—Tudo saiu muito bem, —
disse, mas de repente acrescentou
com uma repentina ansiedade: —Saiu
bem, não é verdade?
—Margaret, de momento é o
maior êxito da temporada, —lhe
assegurou lady Carling —As demais
anfitriãs estarão desesperadas por
igualá-lo, mas falharão
miseravelmente. Escutei como a
senhora Bessmer dizia a lady Spearing
que tinha que averiguar o nome de sua
cozinheira para roubá-la com a
promessa de um salário mais alto.
A condessa protestou com um
fingido chiado.
—Não tema, Margaret. —
atravessou o duque —A senhora
Bessmer é famosa por sua
mesquinharia. Por muito que assegure
estar disposta a subir o salário, a
quantidade em que pensa seguramente
não é nenhuma quinta parte do que
você lhe paga.
—Se quiser, desafiarei ao
senhor Bessmer a um duelo ao
amanhecer — se ofereceu o conde
Sheringford.
A condessa meneou a cabeça
com um sorriso.
—Em realidade, seria uma
quinta parte do que lhe paga o avô —
esclareceu — e em seu lugar, não me
atreveria a irritá-lo. —Nesse momento
a olhou com expressão de desculpa.
—Lady Paget, —disse—estamos a
entretendo mais da conta. Perdoe-nos.
Entendi que Stephen vai leva-la em
casa. Por favor, permita chamar uma
criada para que a acompanhe.
—Não é preciso. —recusou
ela —Confio que lorde Merton se
comporte como um verdadeiro
cavalheiro.
—Estou encantada de que
tenha vindo esta noite. — afirmou a
condessa com outro sorriso — Iremos
nos ver amanhã no chá de minha
sogra? Espero que aceite. Inteirei-me
que a convidou.
—Tentarei comparecer. —
respondeu.
E talvez fosse. Tinha ido essa
noite ao baile com a intenção de achar
um protetor rico, não para forçar sua
reentrada na alta sociedade. Tinha
suposto que seria impossível, que
sofreria o ostracismo social toda a
vida. Mas talvez isso não fosse
necessário. Se o conde Sheringford
tinha conseguido, talvez ela também
pudesse conseguir. Fazia muito,
muitíssimo tempo que não tinha
amigos. Salvo Alice, é claro. E Mary.
A carruagem de lorde Merton
por fim chegou à entrada principal, de
modo que o conde a acompanhou até
a porta e a ajudou a subir, depois do
que se sentou a seu lado. Uma vez que
o lacaio pregou os degraus do veículo
e fechou a portinhola, o conde
apareceu pela janela para se despedir
de sua família agitando a mão.
—Um verdadeiro cavalheiro
— escutou dizer em voz baixa,
embora não voltasse a cabeça. A
carruagem já tinha deixado a praça
para trás.
— Todo meu empenho é de
chegar a ser. Lady Paget, me permita
atuar como tal esta noite. Permita-me
deixa-la em casa sã e salva, e
continuar o trajeto para minha casa.
Cassandra sentiu um nó no
estômago provocado pelo alarme.
Todos seus esforços durante essa
horrível noite tinham se esvaído? Tudo
tinha sido por nada? Teria que
começar de novo no dia seguinte? De
repente, invadiu-a um intenso ódio por
“esse verdadeiro cavalheiro”.
—Ah! —exclamou em voz
baixa e com uma nota jocosa. —
Sinto-me rechaçada. Desprezada. Sou
feia, indesejável e careço de atrativo.
Irei para casa e chorarei amargamente
sobre meu frio e insensível travesseiro.
—Enquanto falava, estendeu o braço
e colocou uma mão em sua coxa com
os dedos estendidos. Sentiu o calor de
seu corpo através de suas luvas de
seda e da solidez de seus músculos.
Lorde Merton se voltou para
ela e apesar da escuridão reinante,
viu-o sorrir.
—Sabe muito bem que não
há nenhum pingo de verdade no que
acaba de dizer — recriminou-a.
—Mas é certo que chorarei
amargamente. E também é certo que
meu travesseiro é frio e insensível. —
Deslizou a mão para a parte interna
de sua coxa e viu como o sorriso de
lorde Merton desaparecia, embora
seus olhares seguissem entrelaçados.
—Possivelmente é a mulher
mais bonita que vi em minha vida.
—A beleza pode ser um
traço frio e indesejável, lorde Merton.
—replicou.
—Sem dúvida alguma é o
mais atraente. —acrescentou ele.
—Atraente — repetiu com
um leve sorriso—. Poderia me
esclarecer em que sentido?
—Sexualmente falando. —
respondeu o conde—Desculpe-me por
usar uma linguagem tão franca.
—Lorde Merton, quando
estiver a ponto de se deitar comigo
pode ser tão franco quanto quiser.
Está a ponto de se deitar comigo?
—Sim. — respondeu ele
enquanto deslizava uma mão sob a
sua a fim de afastá-la de sua coxa e
leva-la aos lábios. —Mas quando
estivermos em seu dormitório, com a
porta fechada. Não em minha
carruagem.
Sua resposta a alegrou,
embora tivesse de mudar de planos, já
que tinha pensado em beijá-lo a
seguir.
Lorde Merton deixou suas
mãos unidas sobre o assento, entre
ambos, e seguiu olhando-a em silêncio
enquanto a carruagem percorria as
escuras ruas de Londres.
—Vive sozinha? —
perguntou-lhe ao final.
—Tenho uma governanta —
respondeu—que também se faz às
vezes de cozinheira.
—E a dama com a qual
passeava ontem pelo parque?
—Alice Haytor? —precisou
ela. —Sim, também vive comigo. É
minha dama de companhia.
—É sua antiga preceptora?
—Sim.
—Não ficará espantada ao
vê-la chegar em casa com um...
amante?
—Já lhe deixei claro que não
saísse de seu dormitório se me ouvisse
chegar e não sairá, lorde Merton —
respondeu.
—Tinha planejado voltar
para casa com um amante? —
perguntou-lhe, olhando-a aos olhos de
forma penetrante, apesar da
escuridão.
Era um homem suscetível. Que
ignorava as regras do jogo. Acaso
pensava que o amor a tinha fulminado
qual relâmpago caído do céu nada
mais que ao vê-lo no salão de baile de
sua irmã? Que tudo tinha sido
espontâneo e imprevisto? Sobre tudo
quando lhe tinha assegurado que tinha
sido planejado.
—Lorde Merton, tenho vinte
e oito anos. —indicou —Meu marido
morreu faz mais de um ano. As
mulheres têm necessidades e desejos,
semelhantes aos dos homens. Não
estou procurando outro marido. Não o
buscarei no futuro. Mas já vai sendo
hora de desfrutar de um amante.
Compreendi isso quando cheguei a
Londres. E quando o vi em Hyde Park
com seu aspecto angelical, um anjo
muito humano e muito viril, não ficou
a menor duvida.
—Então, foi ao baile de Meg
com a intenção de me conhecer, não
é? —perguntou-lhe.
—E de seduzi-lo —
acrescentou ela.
—Como sabia que eu estaria
ali? —Apoiou as costas no assento,
mas nesse instante a carruagem se
deteve.
Tinham chegado à porta de
sua opaca, embora decente residência.
Lorde Merton olhou pela janela. Sua
pergunta ficou sem resposta.
—Lorde Merton, —
sussurrou nesse momento —me diga
que não está aqui só por minha
determinação em seduzi-lo. Diga que
me desejou, a me ver do outro
extremo do salão de baile.
Ela o observou virar a cabeça
para olhá-la, e depois mal foi capaz de
decifrar sua expressão na penumbra
reinante. A intensidade do momento
ficou refletida nesse olhar
compartilhado.
—Desejei-a, lady Paget. —
sussurrou —Naquele instante e agora
mesmo, no presente. Desejo-a. Disse-
lhe que quando resolvo me deitar com
uma mulher o faço porque quero, não
porque seja incapaz de resistir à
sedução.
Entretanto, não se teria
exposto sequer a ideia de se deitar
com ela essa noite se não fosse por
sua deliberada topada. Ou mais
concretamente, sua quase topada, que
ela propiciou justo antes da valsa.
Nem sequer teria falado com ela, não
a teria convidado a dançar, se não
fosse por seu afã de ajudar sua irmã.
Não, lorde Merton, esta noite
o seduziram. Contradisse ela, em sua
mente.
O cocheiro de Sua Senhoria
abriu a portinhola e desdobrou os
degraus. O conde Merton se apeou,
ofereceu-lhe a mão e ordenou ao
cocheiro que partisse.

Stephen sentiu um repentino


desconforto mesclado com a
agradável expectativa da promessa do
prazer sexual. Não entendia os
motivos de tal desconforto, embora
talvez se devesse ao fato de estar na
casa da dama, debaixo do teto que
dormiam sua governanta e sua dama
de companhia. Não lhe parecia um
acerto decente.
Às vezes o aborrecia sua
consciência. Embora tivesse levado
uma vida ativa desde que era menino,
não tinha feito nenhuma loucura de
juventude; e isso apesar de todos,
incluído ele mesmo, terem esperado
um pouco de desenfreio por sua parte.
Para seu alívio, não se
encontraram com ninguém no interior
da casa. Tinham deixado uma vela
acesa no vestíbulo do andar térreo e
outra no distribuidor do andar
superior. Graças a tênue luz, percebeu
que era um lugar elegante, embora um
pouco estragado. Supôs que lady
Paget o tinha alugado junto com os
móveis.
A dama o guiou até o interior
de um dormitório, e uma vez ali,
acendeu a vela que descansava sobre
uma rebuscada penteadeira.
Observou-a colocar os
espelhos de uma forma que a luz se
multiplicasse, como se procedesse de
umas quantas velas.
Fechou a porta e lançou uma
olhada pela estadia. Reparou em uma
cômoda bastante grande colocada
junto à porta, que possivelmente
conduzia ao roupeiro. A cama estava
ladeada por um par de mesinhas de
noite, cada uma com três gavetas. Era
uma cama ampla, com postes
esculpidos em espiral, e coroada por
um dossel desgastado de cor azul, a
jogo com o cobertor.
Não era um dormitório nem
elegante, nem bonito.
Mas cheirava a ela, ao suave
perfume floral que levava. E a
piscante luz da vela suavizava tudo.
Era um dormitório muito sedutor.
Desejava-a.
Sim, desejava-a com todas
suas forças. E não achava nenhum
argumento racional contra o que
estava a ponto de acontecer. Era um
homem solteiro e sem compromisso.
Ela era viúva e estava mais que
disposta. De fato, tinha sido a
instigadora de tudo o que estava
acontecendo. Não tinham a ninguém
que pudesse sair ferido acaso se
deitassem essa noite... Ou se
prolongassem sua relação durante o
resto da temporada. Podiam se limitar
a dar-se prazer um ao outro e a
satisfazer seus respectivos desejos.
Porque não havia nada de ruim
no prazer. Ao contrário, era algo
fantástico.
Além disso, nenhum dos dois
albergava ilusões ao respeito do outro.
Ninguém acabaria ferido. Lady Paget
tinha sido muito clara ao assegurar
que não procurava marido e que não
tinha intenção de buscar um com ele.
E ele tampouco estava procurando
esposa. De momento não,
possivelmente não iria procurar até ao
cabo de cinco ou seis anos. Mas se
sentia desconfortável.
Talvez pelos rumores que
circulavam sobre ela? Teria matado de
verdade seu marido?
Estava a ponto de se deitar
com uma assassina? Tinha medo dela?
Deveria ter? A verdade era que não
estava assustado. Só desconfortável.
Não a conhecia. Embora isso
tampouco fosse um motivo para se
sentir assim. Tampouco tinha
conhecido muitas das mulheres com
as quais se deitara ao longo dos anos.
Tinha as tratado com gentileza,
consideração e generosidade, mas em
realidade não as conhecia nem tinha
vontade conhece-las. Queria conhecer
lady Paget?
A mesma se achava junto ao
toucador, observando-o à luz da vela,
com esse estranho sorriso nos lábios,
que era incitante e desdenhoso ao
mesmo tempo. Compreendeu que
estava há muito tempo parado junto à
porta, e que possivelmente pareceria
um colegial assustado a ponto de sair
fugindo.
Aproximou-se dela e não se
deteve até colocar as mãos em torno
de sua cintura muita estreita. Inclinou
a cabeça e colocou os lábios onde
pulsava a artéria em seu pescoço.
Sua pele era cálida, suave e
fragrante. Juntou-se a ele, de modo
que esses seios tão generosos ficassem
esmagados contra seu torso, e notou o
toque de seu abdômen e de suas
coxas contra as suas. O coração lhe
pulsava tão depressa que lhe trovoava
os ouvidos, e o sangue circulava por
suas veias em direção a virilha,
esticando ainda mais sua palpitante
ereção.
Levantou a cabeça para beijá-
la com os lábios entreabertos e
procurou com a língua o úmido
interior de sua boca. Ela a sugou com
força e a reteve contra o céu da boca,
pressionando-a com a sua. Ele
percebeu que as mãos dela lhe
acariciavam as costas por debaixo da
jaqueta e do colete, de onde se
deslizaram até suas nádegas e ali se
detiveram enquanto ela começava se
esfregar de forma provocadora contra
seu endurecido membro.
Enquanto isso, ele começou
com o laborioso processo de
desabotoar os numerosos botãozinhos
que lhe fechavam o vestido nas costas.
Uma vez completada a tarefa, pôs fim
ao beijo e se afastou para lhe passar
as mangas pelos braços e lhe baixar o
vestido junto com a regata. Pouco a
pouco ficaram descobertos esses
magníficos seios, a estreita cintura, as
incitantes curva de seus quadris e por
último as pernas, que eram longas e
torneadas.
A roupa ficou enrugada em
torno de seus pés, formando uma
pequena montanha verde esmeralda e
branca. Ela seguiu imóvel, vestida só
com as luvas brancas, as meias de
seda e os escarpins prateados.
Descobriu que não podia
afastar os olhos dela. Nesse instante
compreendeu que havia algo muito
mais sugestivo que a nudez e que era
justo o que tinha diante. Inspirou lenta
e profundamente para se serenar um
pouco.
Lady Paget o seguia olhando
com as pálpebras entreabertas e os
braços de ambos os lados do corpo,
até que em um momento dado
estendeu um deles para que lhe tirasse
a luva, que acabou descansando no
chão junto com o resto da roupa. Em
seguida, estendeu o outro e esboçou
seu sorriso mais sedutor.
Quando acabou com as luvas,
Stephen fincou um joelho no chão e
passou a lhe tirar as meias, embora
tivesse feito o mesmo com as ligas.
Colocou-lhe primeiro um pé e depois
o outro sobre o joelho da perna
dobrada enquanto lhe baixava as
meias e as tirava junto com os sapatos.
Tudo acabou no chão, atrás dele.
Beijou-lhe o peito do pé, os
tornozelos, a face interna dos joelhos
e o quente interior das coxas antes de
se endireitar.
Era tão voluptuosa como tinha
imaginado. Ou talvez mais. Não era
uma mulher delicada em nenhum
sentido, mas suas proporções eram
perfeitas e suas curvas, lindas.
Era magnífica.
Como era possível que até esse
momento tivesse achado desejável a
magreza juvenil?
Em vez de despi-lo como
esperava que fizesse nesse momento,
viu-a levantar os braços para tirar as
forquilhas e soltar o cabelo. Fez isso
muito devagar, como se não tivesse
pressa para ir à cama, como se não se
dera conta da tremenda ereção que
tinha ou do alterado de sua respiração.
Entretanto, seu sorriso punha
de manifesto que era muito consciente
de ambas as coisas. E suas pálpebras
entreabertas eram um claro indício de
que ansiava o prato principal da noite
tanto quanto ele.
Observou uma a uma as
mechas de cabelo que iam caindo e
quando a cabeleira completa por fim
se estendeu sobre seus ombros, lhe
emoldurando o rosto, viu-se obrigado
a engolir em seco. Uma grossa mecha
escorregou até ficar descansando
entre seus seios.
Era uma cabeleira abundante e
lustrosa de um intenso tom
avermelhado. A glória que coroava
sua beleza. Voltou a engolir em seco.
—Vamos para cama, —
propôs ela, que se aferrou às lapelas
de sua jaqueta, mas lhe impediu que a
tirasse. —Não, —lhe disse —Só os
sapatos, lorde Merton.
Apartou as mãos das suas e as
deslizou até chegar às calças. Seus
dedos as desabotoaram com eficiência
enquanto se olhavam nos olhos. Uma
vez que a braguilha se abriu, inclinou
a cabeça para ele e enquanto lhe
roçava os lábios com suavidade, disse-
lhe:
—Já está preparado. Nós
dois estamos. Vamos para cama.
Em um primeiro momento,
acreditou que o dizia porque não
podia esperar para vê-lo nu.
Entretanto, sabia que essa não era a
razão. Lady Paget era muito mais
esperta que ele. O desejo que o
embargava era tão intenso que era
quase doloroso. E o fato de estar
totalmente vestido enquanto ela se
despira por completo tinha muito a ver
com isso.
Lady Paget o levou até a cama.
Depois de afastar o cobertor e o
lençol, deitou-se de costas e levantou
os braços para recebe-lo. Enquanto
ele se colocava entre suas coxas,
abraçou-o e se acomodou debaixo de
seu corpo, acariciando-o com os seios
e os quadris. Um de seus pés lhe
acariciou uma perna por cima da
calça e das meias. Ele se dispôs a
explorar seu corpo com as mãos e
com a boca, que utilizou para
acaricia-la e atormentá-la. Até que
notou que seus dedos o liberavam das
calças e começavam a explorá-lo com
delicadeza. Conteve o fôlego pela
surpresa. Ela riu entre dentes e o
atraiu para o úmido calor escondido
entre suas coxas.
Nem pensar. Não estava
disposto a se deixar seduzir. Não era
um colegial virgem em mãos de uma
perita cortesã. Colocou-lhe um braço
sob o corpo de forma que não ficou
mais remédio a não ser soltá-lo e
cobriu com a mão o lugar que seu
membro acabava de roçar. Começou
a explorá-la com suavidade,
acariciando-a e arranhando-a com
delicadeza, penetrando-a um pouco
com um dedo enquanto pressionava
com outros. Utilizou o polegar para
descrever uma série de círculos no
ponto preciso, fazendo que ela
ofegasse.
Se seu papel era o de se deixar
seduzir por uma sedutora, ela também
teria que se deixar seduzir.
Não estava disposto a permitir
que o encontro não fosse de igual para
igual.
Seria prazeroso para ambos,
os dois se entregariam e receberiam a
mesma coisa em troca.
Segurou-a com firmeza pelos
quadris, colocou-se na posição correta
e esperou que ela levantasse os
quadris um pouco, a modo de convite
para penetrá-la até o fundo.
Escutou-a soltar uma suave
gargalhada enquanto sentia a pressão
que exerciam seus músculos em torno
de seu membro e depois o rodeou
com as pernas. Endireitou-se um
pouco para olhá-la nos olhos. A luz da
vela lhe acariciava o rosto e convertia
seu cabelo em uma brilhante fogueira
que se estendia sobre o travesseiro.
—Stephen, — a ouviu dizer
enquanto o segurava pelas lapelas da
jaqueta. Em vez de se deter, suas
mãos subiram até se colocar sobre
seus ombros.
Escutá-la pronunciar seu nome
com essa voz tão rouca e sedutora lhe
provocou um calafrio.
—Lady P...
—Cassandra — o
interrompeu. —Cassandra.
Nesse instante ela relaxou e
começou a rodar os quadris em torno
de seu membro.
—Stephen, —repetiu —é
muito grande.
O comentário lhe arrancou
uma gargalhada.
—E muito duro —
acrescentou ela com um olhar
zombador. —É um homem muito viril.
—E você, milady —replicou
ele—é muito suave, e está muito
molhada e quente. É uma mulher
completa.
Viu-a compor uma careta
zombadora, embora sua ofegante
respiração demonstrava o desejo que
ela sentia. Inclinou-se sobre ela para
beijá-la nos lábios e começou a
penetrá-la com profundas e rítmicas
investidas, prolongando o máximo
possível a dolorosa expectativa do
clímax, até que se derramou em seu
interior e acabou desabando sobre ela,
à espera de que seu coração
recuperasse o ritmo normal.
Perguntou-se se tinha prolongado o
momento o suficiente para que ela
também houvesse alcançado o clímax.
O fato de não estar seguro o
envergonhou.
—Cassandra... —murmurou
enquanto saía dela e se colocava a seu
lado sobre o colchão, com o braço
ainda sob sua cabeça.
Entretanto, não disse nada
mais. A extenuação posterior à
satisfação sexual se apoderou dele e o
mergulhou em um profundo e
reparador sono.
Não soube quanto tempo
dormiu, mas quando despertou estava
só. E seguia vestido com toda a roupa,
que devia estar horrivelmente
enrugada. Seu criado de quarto o
recordaria durante um mês, e
ameaçaria renunciar ao posto e buscar
outro cavalheiro que demonstrasse
mais respeito por seu trabalho.
A braguilha estava de novo
abotoada, tal e como comprovou com
uma repentina pontada de vergonha.
A vela já não estava acesa,
mas o dormitório não se achava de
todo às escuras. A luz cinzenta do
amanhecer penetrava pela janela. As
cortinas estavam abertas.
Voltou a cabeça em direção à
penteadeira. Lady Paget estava
sentada de lado na banqueta,
observando-o. Vestira-se, embora não
com a roupa que tinha levado de
noite. Escovara o cabelo, que tinha
recolhido em um rabo de cabalo que
lhe caía pelas costas. Tinha as pernas
cruzadas e não parava de balançar o
pé que ficava no ar, balançando o
sapato sobre a ponta dos dedos.
—Cassandra. —disse —
Sinto muito. Deveria...
—Temos que falar, lorde
Merton, — o interrompeu ela.
Lorde Merton? Pensou. Já não
era Stephen?
—Sério? — perguntou-lhe
—Não seria...?
—De negócios. —voltou a
interrompê-lo—. Temos que falar de
negócios.
CAPÍTULO 06

Cassandra tinha acordado há


muito tempo. Em realidade, depois
que tinha conseguido dar alguns
cochilos.
Passou um bom momento
contemplando o horroroso dossel da
cama. Tiraria-o, decidiu, ou acharia a
maneira de cobri-lo com um tecido
mais claro e mais alegre. Devia
converter a casa em um lar... em caso
de que ficasse nela, é claro. Em caso
disso ser possível.
Nesse momento voltou a
cabeça e observou longamente o
conde Merton à tremulante luz da
vela. Que esbanjamento deixar que se
consumisse! Tampouco tinha apagado
as velas da entrada, nem do patamar.
Como se tivesse dinheiro para
esbanjar.
Lorde Merton dormia
profundamente e não parecia estar
sonhando. Estava tão bonito
adormecido como o estava acordado.
Seu cabelo, embora curto, luzia
alvoroçado e se rebelara contra o
pente que tinha domado os cachos.
Parecia mais jovem.
Parecia inocente.
Não era inocente... Ao menos
não no que se referia ao sexo. Não
houve muitas preliminares, nem antes,
nem depois de acabar no leito, e o ato
em si mal tinha durado uns minutos.
Mas lorde Merton sabia o que estava
fazendo. Era um amante apaixonado e
habilidoso embora se apressara um
pouco durante seu primeiro encontro.
Chegou à conclusão de que
talvez fosse um homem muito decente
que procedia de uma família também
muito decente. Por um breve instante
se arrependeu de tê-lo escolhido.
Entretanto, já era muito tarde para
mudar de opinião e escolher outro.
Não tinha tempo para paquerar com
vários amantes antes de escolher o
que mais lhe convinha.
Afinal, quando a alvorada
começava a raiar ao outro lado das
janelas, fazendo desnecessária a luz
das velas, foi incapaz de ficar mais
tempo na cama. Afastou-se de lorde
Merton muito devagar, para não
despertá-lo, mas ele nem sequer se
alterou. Seguia tendo o braço
estendido sob o travesseiro e o tecido
do fraque estava amarrotadíssimo ali
onde ela tinha colocado a cabeça.
Inclinou-se sobre ele e lhe abotoou
com muito tato a braguilha das calças
enquanto lhe lançava olharzinhos ao
rosto.
Nu devia ser magnífico,
pensou.
Da próxima vez o
comprovaria. Invadiu-a um inesperado
desejo por esse momento. Saiu da
cama e apagou a vela, momento no
qual percebeu com grande lástima que
se consumara muito, e depois entrou
sem fazer ruído no abarrotado e
minúsculo espaço atrás do roupeiro
situado junto ao dormitório. Depois de
lavar as mãos e a cara com a água fria
que ficava da noite anterior no
lavatório, escolheu às escuras um
vestido matinal do armário e o pôs.
Mediu a prateleira superiora do
armário em busca de uma fita para o
cabelo, que escovou e recolheu na
nuca.
Notava uma persistente
ardência ali onde ele tinha estado.
Tinha passado muito tempo...
Por estranho que parecesse,
era uma sensação bastante
prazenteira.
Lorde Merton ainda não
despertara quando retornou ao
dormitório. Abriu as cortinas e esteve
vários minutos com a vista cravada na
rua, que seguia deserta apesar da
escuridão da noite estar
desaparecendo. Ao cabo de um
momento viu um trabalhador que
caminhava com rapidez e com a
cabeça encurvada.
E depois se sentou na
banqueta da penteadeira, colocando-a
de forma que pudesse ver o homem
que jazia na cama e perceber quando
despertava.
Surpreendeu-lhe que já não
tivesse acordado, impaciente por
repetir os prazeres noturnos. Esboçou
um sorriso enviesado por ele não ter
feito isso. Tinha interpretado tão mal
seu papel? Ou o tinha feito
maravilhosamente bem?
Cruzou as pernas e se
entreteve balançando um pé até que
por fim o viu mover-se. Lorde Merton
demorou um momento em se
espreguiçar e virar a cabeça para vê-la
sentada
na banqueta.
—Cassandra. —disse—Sinto
muito. Deveria...
Interrompeu—o. Não lhe
interessavam suas desculpas.
Desculpava—se por ter dormido
tanto? Ainda era muito cedo, tanto
que nem sequer tinham saído à rua os
vendedores ambulantes, só os
trabalhadores, que talvez retornassem
a casa depois do turno da noite. Ou se
desculpava por ter adormecido em vez
de aproveitar ao máximo a noite para
desfrutar de seu corpo?
Tinha pronunciado seu nome
como se fosse uma carícia.
Nesse momento recordou que
o tinha pronunciado depois de
terminar com ela... Como se não fosse
só um corpo feminino com o qual
podia saciar seu desejo, mas também
uma pessoa com nome próprio. Devia
ter muito cuidado para não acabar
seduzida por esse homem. Ela era a
sedutora.
—Temos que falar, lorde
Merton —lhe disse.
—Sério? —disse ele, que se
endireitou sobre um cotovelo com
expressão risonha, —Não seria...
... melhor voltar para a cama
e falar depois... em todo caso ?
—De negócios. — o
interrompeu antes que ele pudesse
terminar sua frase —Temos que falar
de negócios.
Todo seu futuro dependia
desse momento. Seguiu balançando o
pé, com cuidado de não balançar mais
depressa, com temor de demonstrar
como estava nervosa e tensa.
Entreabriu as pálpebras e esboçou um
leve sorriso.
—De negócios? —O conde
se sentou, desceu os pés ao chão,
passou-se as mãos pela roupa em um
vão intento de alisá-la e fez gesto de
arrumar a gravata. Continuava
parecendo um homem que tinha
adormecido vestido.
—Não o seduzi pelo prazer
de uma noite em sua companhia,
milorde. —confessou. —Mais ainda
tendo em conta que passou quase toda
a noite dormindo.
—Peço-lhe des... —
começou.
Ergueu uma mão para voltar a
interrompê-lo.
—O fato de que tenha
adormecido profundamente me parece
um tributo ao prazer que lhe
proporcionei ontem à noite . —disse
—Também dormi quase toda a noite.
Você é um... amante muito
satisfatório. —permitiu-se um ligeiro
sorriso.
Lorde Merton não disse
nada.
—Desejo estar outra vez
com você esta noite. E amanhã de
noite e todas as noites do futuro mais
próximo, —continuou— e me
encarregarei de que me deseje na
mesma medida e durante o mesmo
tempo, milorde. Ou já não é preciso
que recorra as minhas artes de
sedução? Já me deseja?
A resposta do conde a alarmou
e lhe produziu um calafrio.
—Eu não gosto da palavra
"sedução" — o ouviu dizer—Implica
certa debilidade na pessoa seduzida e
uma fria maquinação por parte da
sedutora. Implica uma disparidade de
desejos e necessidades. Sugere um
boneco e um títere. Nunca admirei
aos sedutores porque exploram as
mulheres e as convertem em
brinquedos de quarto.
Nunca conheci uma sedutora,
embora conheço a lenda das sereias.
—Não é verdade que
conheceu uma ontem à noite, lorde
Merton? —perguntou-lhe.
—Conheci uma dama —
precisou ele com um sorriso— que se
definia como tal. Você, de fato.
Gostaria de pensar que ao se sentir
sozinha... me perdoe, que ao estar
sozinha, procurou alguém que lhe
fosse atraente para a consolar, e me
achou . Não me seduziu, Cassandra.
Foi descarada e sincera sobre a
atração que sentia por mim, coisa que
nunca me tinha acontecido com outras
damas, já que costumam empregar um
vasto arsenal de ardis muito mais sutis
para chamar minha atenção. Gostei de
sua franqueza. Também me senti
atraído por você. Teria a convidado a
dançar embora não tivesse forçado a
topada justo antes de começar a valsa.
Suponho que não te teria convidado a
compartilhar uma cama tão depois se
não tivesse deixado tão claro que você
também desejava isso, mas ao final
nossa mútua atração nos teria
conduzido até este mesmo ponto.
Tinha interpretado mal a
situação por completo. Embora desse
no mesmo.
"Nossa mútua atração."
—Sim, quero voltar a me
deitar com você e quero que
continuemos fazendo isso. Mas antes
tenho que lhe perguntar algo.
Ela arqueou as sobrancelhas
e o olhou com expressão altiva.
—De verdade? —replicou.
De algum jeito tinha perdido o
controle da conversa. Supunha-se que
ela ia falar e que ele ia escutar.
—Conte como morreu lorde
Paget —lhe pediu e inclinou-se para
frente e tinha apoiado os braços nos
joelhos. Esses olhos azuis a olhavam
com expressão penetrante.
—Morreu — respondeu com
um sorriso desdenhoso, —Que mais
quer que diga? Quer que lhe confesse
que lhe abri a cabeça com um
machado, lorde Merton? Porque não o
fiz. Matou-o uma bala... Que lhe
atravessou o coração.
Seguiu olhando-a sem
fraquejar.
—Matou-o? —perguntou-
lhe.
Cassandra apertou os lábios
e lhe devolveu o olhar.
—Sim. —respondeu.
Não se tinha dado conta de
que lorde Merton tinha contido o
fôlego até que o escutou expulsar o ar
com força.
—Haveria me custado muito
brandir um machado, —continuou —
mas não tenho problemas em usar
pistola. E a usei. Atravessei-lhe o
coração com um disparo. E não me
arrependo. Não chorei sua morte nem
um só minuto.
Lorde Merton abaixou a
cabeça de modo que ficou olhando o
chão e lhe olhava o alto da cabeça.
Teve a impressão de que tinha
fechado os olhos. Viu-o apertar os
punhos.
—Por quê? —perguntou
Stephen ao cabo de uns minutos de
silêncio.
—Porque sim. —respondeu
e sorriu embora ele não a olhasse. —
Talvez porque gostasse.
Deveria ter se negado a
responder a primeira pergunta. Acaso
queria espantá-lo e arruinar seus
cuidadosos planos? Porque não podia
ter escolhido melhor maneira para
fazer isso.
Produziu-se outro longo
silencio. Quando lorde Merton voltou
a falar, fez-o com um fio de voz.
—Maltratava-a? —
perguntou-lhe.
—Sim, —respondeu
Cassandra —me maltratava.
Lorde Merton por fim ergueu a
cabeça e voltou a olhá-la fixamente
com expressão preocupada e o cenho
franzido.
—Sinto muito — disse.
—Por quê? —perguntou-lhe
com um gesto desdenhoso. —Há algo
que você poderia fazer e não fez,
milorde?
—Sinto que tantos homens
se comportem como brutos pelo mero
fato de serem fisicamente mais fortes
que as mulheres. Tão mal era a
situação que não ficou outro remédio
que mata-lo?
Entretanto, ele mesmo se
respondeu antes que ela pudesse.
—Teve que ser assim. Por
que não a prenderam?
—Disparei-lhe na biblioteca,
quase de noite. —respondeu —Não
houve testemunhas, e quando
chegaram várias pessoas atraídas pelo
ruído, foi impossível saber quem o
tinha feito. Não houve, nem há, prova
alguma de que eu tenha feito.
Qualquer um podia tê-lo feito.
Qualquer um. A casa estava cheia de
criados e de outras pessoas.
A janela da biblioteca estava
aberta e qualquer um podia entrar.
Ninguém pode demonstrar nada, salvo
que morreu de um disparo.
—E salvo que acaba de me
confessar isso.
—Mas só confessei a você,
—replicou—de agora em diante
sempre o acompanhará o temor de
que o mate alguma noite para me
assegurar seu silêncio.
—Não sou um mexeriqueiro
—afirmou ele— nem tenho medo. E
você tampouco deve ter.
—Não tenho medo de você
—declarou —Um cavalheiro não
revela os segredos de uma dama e
acredito que você é um cavalheiro. E
não temo que me maltrate. Se o
fizesse, não o mataria. Para que fazê-
lo quando basta me afastar de você,
coisa que não pude fazer no caso de
meu marido? Uma viúva tem poder,
lorde Merton. É livre.
Salvo que ela não era. A falta
de dinheiro a colocava em um apuro.
E de algum jeito essa conversa não se
estava desenvolvendo como ela tinha
planejado. Em sua cabeça, ela
controlava as respostas do conde e
suas próprias perguntas. Desconhecia
a forma de recuperar o controle.
—Será um prazer ser seu
amante. —disse ele —Irei tratá-la
com carinho. Prometo-lhe isso. E
quando a relação terminar, só tem que
me dizer e irei embora.
—O problema, lorde
Merton, é que não me posso permitir
uma relação puramente baseada na
atração. —Não se parecia
absolutamente ao que tinha pensado
dizer. Mas já era muito tarde. Tinha
pronunciado as palavras.
Lorde Merton a brocou com
o olhar.
—Não se pode "permitir"?
—recalcou isso.
—É normal que um homem
que herda o título de seu pai, suas
propriedades e sua fortuna considere a
sua madrasta um estorvo. Entretanto,
a maioria dos homens cumpre com
seu dever. O atual lorde Paget não
cumpriu.
—Seu marido não lhe deixou
nada em seu testamento? —
Perguntou-lhe lorde Merton com o
cenho franzido. —Nem tampouco
nada no contrato matrimonial?
—É claro que sim—
respondeu—. De verdade acredita que
o teria matado se soubesse que ficaria
desamparada, lorde Merton? Deveria
fazer uso da residência da viúva em
Carmel House durante o que fica de
vida, e também da residência londrina.
Ia receber uma compensação
econômica, todas minhas joias e uma
cômoda pensão vitalícia.
O conde continuava franzindo
o cenho.
—Paget pode te negar
legalmente todo isso? —quis saber.
—Não pode —respondeu—.
Mas eu tampouco posso matar
legalmente um homem. Seu pai, por
sinal. Como vê, estávamos empatados,
lorde Merton, mas ele resolveu o
empate. Não me denunciaria se eu
aceitasse partir com as mãos vazias.
—E partiu? —perguntou-lhe.
—Partiu sem mais? Embora não
houvesse provas contra você?
—Podem-se fabricar provas,
milorde, para inculpar a alguém a
quem não tem muito apreço— disse.
O conde a olhou um bom
tempo antes de fechar os olhos e
abaixar a cabeça uma vez mais. Uma
dama de duvidosa reputação o tinha
seduzido e, em seguida, tinha recebido
uma proposta de negócios por parte
de uma cortesã... Uma cortesã cara,
uma cortesã irresistível. E lorde
Merton obedeceria como um
cachorrinho bem treinado porque
tinha despertado seu apetite, mas não
o tinha satisfeito de tudo. Ofegaria de
desejo por ela.
Esse era o plano. Tinha-o
muito claro e em seu momento lhe
pareceu muito razoável. Não esperava
que fora difícil de executar.
Não obstante, o plano foi para
o ar.
Começou a balançar o pé
muito devagar uma vez mais.
Contemplou esses alvoroçados cachos
loiros com todo o desdém que foi
capaz. Em qualquer momento o veria
ficar em pé para partir. Sentiu o
desejo de apressar as coisas lhe
ordenando que fizesse isso.
Não temia que lorde Merton
contasse a outra pessoa o que lhe
havia dito. Ao fim e ao cabo, estava
segura de que era um cavalheiro.
Além disso, não estaria disposto a
admitir que se deixara seduzir por
uma infame assassina.
Viu-o inclinar a cabeça e
quando seus olhos voltaram a se
encontrar à luz do dia, teve a sensação
de que estava mais pálido que antes,
de que seus olhos eram mais azuis. E
mais intensos.
—Não tem nada? —
perguntou-lhe.
Arqueou as sobrancelhas antes
de responder.
—Tenho o suficiente, —
mentiu. — Mas se vai ser meu
amante, lorde Merton, também será
meu protetor. Irá me pagar pelos
serviços prestados, como pagaria à
cortesã mais cotada do momento.
Quer dizer, irá me pagar muito bem.
E eu lhe prestarei uns serviços dez
vezes melhores que os de qualquer
cortesã, o de ontem à noite não será
nada em comparação.
Parecia um alarde absurdo. E
temeu que lorde Merton acabasse
rindo na sua cara.
—Não se sentia nem um
pouco atraída por mim, não é? Foi ao
baile do Meg sem convite com a ideia
de achar um protetor.
Sorriu-lhe... E nesse momento
seu sapato acabou no chão com um
golpe suave.
—Lorde Merton, uma dama
faz o que tem que fazer. — aduziu
com voz rouca.
"Vá embora — ordenou-lhe
em silêncio. —Por favor, vá embora.
Vá para que não volte a vê-lo
jamais."
Produziu-se um longo silêncio
durante o qual seguiram se olhando
nos olhos. Decidiu não afastar o olhar.
Também decidiu não falar até que ele
o fizesse. E tinha muito claro que não
ficaria em pé de um salto para fugir
para atrás do roupeiro e se refugiar
até que ele fosse embora.
—Irei lhe pagar
semanalmente, lady Paget. —disse o
conde ao final— Adiantado.
Começando hoje mesmo. Irei lhe
enviar o dinheiro assim que chegue
em casa... Ou a uma hora matinal que
seja respeitável, ao menos.
A soma semanal que
pronunciou a seguir fez que lhe desse
um tombo o coração, além de deixa-la
boquiaberta. De verdade ganhavam
tanto as cortesãs?
—Parece-me bem. —
replicou com frieza. Percebeu que ele
tinha abandonado o uso de seu nome
de batismo e o modo íntimo. — Não
se arrependerá, lorde Merton.
Servirei-lhe muito bem.
Algo relampejou nas
profundidades desses olhos azuis.
—Não quero que me sirvam,
senhora, —Sentenciou enquanto
ficava em pé —como se fosse um
animal que responde só a luxúria.
Duvido muito que existam animais
assim, salvo os humanos, é claro.
Serei seu protetor. Tecnicamente será
minha amante. Mas me deitarei com
você quando o desejo for mútuo.
Quando você desejar. Não me deitarei
quando você não queira. Seremos
amantes ou não seremos nada. Seu
salário semanal não dependerá do
número de vezes que me ofereça seu
corpo sobre essa cama ou sobre
qualquer outra superfície. Fui claro?
Olhou-o com certa surpresa.
Sentiu algo vizinho ao medo. Mas não
era um medo físico. Estava quase
segura que lorde Merton nunca lhe
faria mal. Mas era um homem...
Nem sequer sabia como
pontuar, mas havia algo nele que de
repente a assustou.
O temor de não poder
manipulá-lo como tinha esperado
fazer? Era jovem, agradável e
cavalheiresco... E estava rodeado por
uma aura de inocência. Tinha
imaginado que também teria um
caráter fraco ou, ao menos,
manejável, que pudesse ser controlado
facilmente através do sexo.
Possivelmente o tinha subestimado.
Era uma possibilidade
espantosa.
Entretanto, tinha aceitado ser
seu protetor durante um tempo
indeterminável. E ia pagar lhe uma
soma altíssima. A quantidade que ela
tinha pensado mal ultrapassava a
metade do que tinha sido oferecido.
—Mais claro que a água. —
respondeu e ficou em pé depois de
tirar o outro sapato. Aproximou-se
dele, levantou os braços e se dispôs a
lhe endireitar a gravata em um esforço
por recompor suas complicadas
dobras. —Temos um trato, lorde
Merton.
—Temos. —replicou ele,
agarrando-a pelos pulsos.
Ergueu o rosto para olhá-lo
com um sorriso.
O conde não o devolveu. Esses
olhos azuis a olharam de forma
penetrante.
—Comigo não precisa disso.
—o escutou dizer em voz baixa.
—Do que? —Arqueou as
sobrancelhas.
—Dessa máscara de gélido
desdém para o mundo e seus
habitantes humanos —respondeu
Stephen. —Não precisa leva-la. Não
vou lhe fazer mal.
Nesse momento o pânico a
tomou a tal ponto que teria se posto a
correr de verdade se ele não a
estivesse segurando pelos pulsos,
embora não segurasse com força. Não
obstante, sorriu.
—Que decepção sorrir ao
seu amante e protetor e ouvir dele que
sua expressão é de gélido desdém.
Talvez deveria olhá-lo com o cenho
franzido.
O conde desceu a cabeça e lhe
deu um beijo fugaz, embora forte nos
lábios.
—Irá ao chá de lady Carling
esta tarde? —perguntou-lhe.
—Acredito que sim. —
respondeu —Ao fim e ao cabo, a
dama me convidou e acredito que será
divertido ver a reação das demais
convidadas.
—Minhas três irmãs irão. —
comentou lorde Merton—Será tratada
com suma cortesia por elas, assim
como por lady Carling. Irei recolhê-la
em meu tílburi para dar um passeio
pelo parque depois do chá.
—Nem pensar. —recusou,
apartando-se dele. —Não tem nada a
ganhar e muitíssimo a perder ao se
relacionar comigo em público.
—Virei vê-la de noite com
discrição, a fim de proteger sua
reputação ao máximo — indicou —
Mas não é uma cortesã, lady Paget. É
uma dama que precisa restaurar sua
reputação entre a alta sociedade.
Ignoro o que aconteceu com seu
marido, embora me tenha contado os
detalhes por cima. Acredito que há
mais, muito mais, e já falaremos do
assunto conforme passar o tempo.
Entretanto, deve restaurar sua
reputação. Conseguirá em parte
graças a minha companhia. E se
acreditar que minha reputação ficará
seriamente danificada, não entende a
dupla moral pela que se rege a alta
sociedade (em realidade, toda a
sociedade), a dupla régua com que se
mede homens e mulheres. Sherry, por
exemplo, o conde do Sheringford, está
a ponto de ser perdoado, enquanto
que à dama com quem fugiu lhe teria
custado muitíssimo mais se seguisse
viva e tivesse decidido retornar. Minha
reputação permanecerá virtualmente
imaculada se me virem com você por
Londres. A sua se beneficiará de
minha companhia.
—Não tem que ser amável
comigo, lorde Merton. — replicou.
—Se a palavra "protetor" se
limitar a indicar que tenho acesso
exclusivo e ilimitado ao seu corpo, não
quero o posto. —sentenciou ele. —Se
for seu protetor, exercerei o papel em
toda a extensão do termo, além de me
deitar com você.
O comentário lhe arrancou
um fundo suspiro.
—Acredito que ontem à
noite encontrei um monstro em vez do
anjo que imaginava... Um anjo rico.
Por mais amáveis que sejam comigo
esta tarde, suas irmãs ficarão
espantadas quando aparecer na casa
de lady Carling para me levar a dar
um passeio pelo parque.
—Minhas irmãs têm sua
própria vida e eu tenho a minha. Não
nos controlamos uns aos outros. Só
nos amamos.
—Precisamente o amor que
sentem por você será o motivo de seu
espanto.
—Nesse caso, que se
espantem o quanto quiserem. —
replicou ele —Passarei para procura-
la às quatro e meia.
—Será melhor que se vá
antes de Alice aparecer e o olhar com
o cenho franzido. Acabará se
acostumando, mas a princípio franzirá
o cenho. E, acredite, não é agradável
enfrentar esse gesto crítico quando se
está em desvantagem. O fraque e as
calças estão enrugados, e sua gravata
não tem remédio. Tem o cabelo
alvoroçado e está começando a se
frisar.
Viu-o sorrir, pela primeira vez
em muitos minutos.
—A cruz de minha
existência. —comentou.
—Pois não tente domá-lo
aconselhou. —Qualquer mulher de
sangue quente morre por lhe alvoroçar
o cabelo com os dedos.
Lorde Merton lhe fez uma
reverência e levou sua mão direita aos
lábios.
—Vemo-nos esta tarde. —
ele disse e a olhou nos olhos —E lhe
enviarei o dinheiro esta manhã.
Cassandra assentiu com a
cabeça.
E o conde se foi, fechando a
porta atrás dele sem fazer ruído.
Aproximou-se da janela e
cravou a vista na rua até que o viu sair
pela porta principal. Não a ouviu se
abrir nem se fechar. Viu-o caminhar
com passo vivo e alegre pela rua, até
que dobrou uma esquina, e seguiu
com a vista cravada no lugar por onde
tinha desaparecido.
Ao cabo de um momento se
deu conta de que estava chorando.
Retornou atrás do roupeiro e se
inclinou sobre a bacia.
Ela não chorava. Jamais.
Alice não devia ver nenhuma
só lágrima em sua cara.
CAPÍTULO 07

Stephen sempre tinha contado


com a bênção de um caráter
equânime e uma visão alegre da vida.
Nem sequer em menino foi propenso
a perder o controle com seus
companheiros de jogos e enfrenta-los
de forma violenta ou se deixar levar
pelo rancor. Certo que há uns anos
deu em Clarence Forester um bom
murro que lhe rompeu o nariz e lhe
deixou os olhos com hematoma,
embora o covarde não tivesse sido
capaz de enfrenta-lo como um
homem. E também era certo que ficou
com a vontade de fazer algo pior a
Randolph Turner um ano depois de tal
episódio, embora as circunstâncias o
obrigassem a se conter.
Entretanto, a violência (ou
melhor, os impulsos violentos) estava
justificada em ambos os casos por
boas razões. Em tais ocasiões suas
irmãs se viram ameaçadas, e seria
capaz de matar para proteger a
qualquer das três.
Porque havia ocasiões nas que
a fúria e inclusive a violência estavam
justificadas.
Nesse momento se sentia
furioso. Muito furioso. Mas consigo
mesmo.
A primeira vítima de tal fúria
foi seu criado de quarto, um homem
que realizava suas tarefas de forma
irrepreensível, mas quem gostava de
lhe impor seu critério e manipulá-lo
cada vez que podia, um traço habitual
entre seus companheiros de ofício.
Quando o mandou chamar as seis da
manhã, o criado de quarto o olhou de
cima a baixo e começou a lhe dar um
sermão e a ameaça-lo como se
estivesse lutando com um menino
travesso. Ele permitiu durante um par
de minutos, depois o enfrentou com
olhar frio e voz gélida.
—Philbin, desculpe se tiver
interpretado mal a situação, —disse
—mas não é você quem está
contratado a meu serviço? Seu
trabalho não consiste em se
encarregar do cuidado de minha roupa
entre outras coisas, como lavá-la,
engomá-la e a ter preparada para
quando eu a necessitar? Espero que
estes trajes estejam lavados,
engomados e prontos para quando os
solicitar de novo. Enquanto isso,
ordene que esquentem a água para
meu banho e me prepare a roupa de
montar. Depois me barbeará e ajudará
a me vestir. Se em suas mais
desenquadradas fantasias chegou a
imaginar que entre suas tarefas se
encontra a de falar comigo e me
oferecer sua opinião sobre meu
comportamento ou sobre o estado de
minha roupa quando volto para casa,
já pode ir abrindo os olhos. Mas no
caso de que esse seja seu sonho, já
pode ir procurando emprego com
algum idiota que lhe permita isso.
Ficou claro?
O próprio Stephen se
surpreendeu enquanto se escutava
falar. Philbin estava a seu serviço
desde que completou dezessete anos e
sempre tinham desfrutado de uma
estupenda relação como senhor e
criado. Seu criado de quarto
resmungava e o repreendia quando
tinha motivos, e seu costume era a de
aplaca-lo sem lhe dar importância ou
diretamente a de não lhe fazer caso,
dependendo do que estimasse
conveniente em cada caso. Entretanto,
nesse momento não pensava em se
desculpar. Estava muito zangado e
Philbin era o alvo perfeito com quem
desabafar seu aborrecimento. Faria as
pazes mais adiante.
Philbin o olhou com a boca
aberta, até que a fechou com tanta
força que estalou os dentes e deu meia
volta para passar a pendurar sua
amassadíssima jaqueta.
Stephen teve a horrível
suspeita de que seu criado estava
lutando contra as lágrimas e se sentiu
muito culpado e inclusive mais
zangado que antes.
Não obstante, era impossível
que Philbin aguentasse muito tempo
com a boca fechada.
—Sim, milorde. —replicou
com uma nota de serena indignação
na voz. —Que fique claro que não
quero trabalhar para nenhum outro,
como bem sabe. Não merecia esse
comentário, milorde. Quer a jaqueta
de montar negra ou a marrom? As
calças bege ou cinza? As botas novas
ou...?
—Philbin, — o interrompeu
com impaciência—me prepare a
roupa de montar, de acordo?
—Sim, milorde. —
respondeu o criado, apaziguada em
parte sua sede de vingança. Porque
geralmente não se rebaixava a fazer
umas perguntas tão suscetíveis.
Uma vez solucionado esse
assunto, Stephen passou a levar seu
aborrecimento ao Hyde Park, onde
galopou como alma que leva o diabo
pelo Rotten Row antes da chegada de
outros cavaleiros, momento no qual a
velocidade teria sido perigosa.
Não demorou em se ver
rodeado por um grupo de amigos, cuja
conversa somada ao fresco ar matinal
o tranquilizou um pouco, até que
Morley Etheridge resolveu mencionar
o baile da noite anterior e Clive
Arnsworthy se congratulado de ter
dançado uma peça com a deliciosa
lady Christobel Foley.
—Embora todo mundo saiba
que tem o olho em você, Merton. —
prosseguiu seu amigo, —Antes que
acabe o verão, irá se achar no
caminho do altar a menos que vá com
muito cuidado. Claro que me ocorrem
mulheres piores para compartilhar os
grilhões do matrimônio, na verdade.
Mais de doze. Eu diria que mais de
cem.
—Por que se deter em cem?
—Replicou Etheridge com secura. —
Por que não chegar até mil,
Arnsworthy?
—Entretanto, o pior no caso
do Merton não é que se arrisque a
acabar frente ao altar. —Disse Colin
Cathcart, alheio por completo ao mau
humor do Stephen. —O pior é o
machado que pende sobre sua cabeça.
Embora fosse uma forma magnífica
de deixar este mundo, desde que
aconteça enquanto se encontra entre
as coxas da dama em questão. Umas
coxas muito torneadas, a julgar pelo
que deixava ver esse vestido verde,
que tampouco deixou muito à
imaginação, Por Deus! Percebeu isso,
Arnsworthy? E você, Etheridge?
O comentário foi recebido por
um coro de gargalhadas.
—Acredito que percebi as
coxas, —respondeu Arnsworthy, —
mas reconheço que meus olhos a
percorreram da cabeça aos pés e
quase não foram capazes de passar
dessa cabeleira ruiva. Embora
conseguisse fazer o valente esforço de
chegar ao busto. Foi impossível ir mais
longe. Nunca na vida agradeci tanto o
uso do monóculo.
De novo estalaram em
gargalhadas.
—Se essa mulher esperava
que... —começou a dizer Etheridge.
—Essa dama, —o
interrompeu Stephen, enfatizando a
palavra com o mesmo tom de voz frio
e cortante que tinha empregado
durante a discussão com seu criado de
quarto —uma convidada ao baile de
minha irmã que como tal merecia o
respeito, a consideração e o
cavalheirismo demonstrado ao resto
das convidadas, não era e não é, uma
rameira a se comer com os olhos e a
quem despojar de sua dignidade. Não
voltem a se referir a ela de forma
desrespeitosa em minha presença. A
menos que queiram que lhes responda
em algum campo ao amanhecer.
Seus três amigos se voltaram
em uníssono sobre seus cavalos para
olhá-lo boquiabertos, tal como tinha
feito Philbin um momento antes.
Stephen fechou a boca e
apertou os dentes depois de cravar o
olhar à frente. Sentia-se um pouco
idiota. E muito furioso. Tinha estado a
um tris de lhes cruzar a cara com uma
luva e desafiá-los a duelo. E de
enfrentar os três de uma vez. A um
tris...
—Está preocupado pela
reputação de lady Sheringford,
verdade Merton? —Perguntou-lhe
Etheridge depois de um incômodo
silêncio. —Não é necessário.
Ninguém em seu são julgamento
acreditaria que essa mulher... Que
essa dama recebeu um convite. Além
disso, sua irmã e Sherry dirigiram a
situação com um aprumo admirável.
Sua irmã esteve conversando com ela
e Sherry a tirou para dançar, e depois
enviaram Moreland para que fizesse o
mesmo e depois tocou a você... ou foi
ao reverso? A mãe de Sherry deu um
passeio com ela depois do jantar. O
veredicto de hoje será que o baile foi
um êxito terminante. Muito mais pela
emoção que supôs a aparição de lady
Paget. Não tem que se preocupar com
nada, meu amigo. A maioria dos
homens que conheço sempre
considerou Sherry um tipo genial por
ter tido a coragem de fazer o que fez
há anos. Fez o que outros sonham
fazer. E inclusive as damas
começaram a perdoá-lo. E tudo
graças a sua irmã, que é um exemplo
de respeitabilidade.
Os outros dois murmuraram
seu assentimento baixo, depois do que
os quatro se detiveram para saudar
outro grupo de cavaleiros, dando por
resolvido o vergonhoso momento.
Entretanto, Stephen seguiu
furioso durante o resto da manhã.
Passou meia hora treinando no ringue
do clube de boxe do Jackson antes
que o próprio Jackson ocupasse o
lugar de seu competidor depois deste
se queixar da desnecessária violência
de seus murros.
Mais tarde partiu ao White’s,
onde se sentou na sala de leitura com
um dos periódicos matinais diante da
cara, de tal forma que o ângulo
dissuadia a qualquer um que quisesse
se aproximar e incomodá-lo.
Era um homem sociável por
natureza que ganhara a simpatia de
numerosos e diversos cavalheiros.
Entretanto, essa manhã se manteve
sentado atrás de seu jornal e fulminou
com o olhar ao único que se atreveu a
passar a seu lado e a saudá-lo com
uma breve inclinação de cabeça.
Não leu nenhuma só palavra.
Tinha caído em uma armadilha
e não havia forma decente de escapar.
Despertou se sentindo um
pouco envergonhado. Tinha feito
amor com Cassandra com rapidez e
totalmente vestido, e depois ficou
adormecido... E assim tinha seguido
durante o que deviam ter sido horas.
Além disso, teve um sono muito
profundo, porque nem sequer
despertou quando ela lhe abotoou as
calças e saiu da cama para se vestir.
Por Deus! Quando a viu, estava
sentada na banqueta da penteadeira,
balançando o pé como se estivesse há
muito tempo esperando que
abandonasse os braços de Morfeu.
Só teria se redimido se a
tivesse convencido de que voltasse
para a cama e lhe tivesse feito o amor
lenta e conscenciosamente depois de
se despir e de despi-la.
Entretanto, ela tinha tecido sua
teia de aranha e ele tinha acabado
apanhado. Sem poder fazer nada para
evitar. Nem sequer o matrimônio lhe
parecia tão asfixiante.
Tinha sido uma esposa
maltratada. E devia ter sido algo muito
grave, porque pôs fim ao mau trato
brandindo uma pistola e atravessando
o coração de lorde Paget com uma
bala.
Foi um assassinato?
Ou o fez em defesa própria?
Era imperdoável?
Ou era justificado?
Ignorava as respostas e
tampouco lhe interessava conhecê-las.
Tinha despertado sua compaixão e
seu sentido do cavalheirismo. De
forma totalmente intencional, sem
dúvida alguma.
Segundo ela, tinham-na
despojado de todos os benefícios aos
quais tinha direito a viúva de um
homem rico e com propriedades. Seu
enteado a tinha expulsado de casa
com a ameaça de manda-la a prisão
se lhe ocorria voltar ou se recorria à
lei para recuperar o que lhe pertencia.
Era pobre. Embora ignorava
até que ponto carecia de meios
econômicos. Tinha conseguido chegar
a Londres e alugar essa casa
deprimente e sem brilho. Entretanto,
estava quase seguro de que não
contava com nenhum tipo de ingresso
e de que sua situação era
desesperada. Penetrou no baile de
Meg a noite anterior a risco de sofrer
a humilhação de que a expulsassem
com a metade da alta sociedade como
testemunha. E o tinha feito com o
propósito de achar a um protetor
endinheirado. Tinha-o feito para
subsistir e para evitar se converter em
uma mendiga sem mais lar que a rua.
Não achava que tais hipóteses
a respeito da situação econômica de
lady Paget fossem exageradas.
E ele era o Salvador que tinha
escolhido.
Ele... A vítima.
Porque lhe tinha parecido um
anjo, e depois de indagar sobre sua
identidade, a dama tinha descoberto
que possuía uma grande fortuna. De
modo que o tinha acreditado uma
presa fácil. Quanta razão tinha!
Voltou uma página do jornal
com tal brusquidão que ficou com um
pedaço de papel na mão e o resto caiu
sobre seu regaço. O som do papel a se
rasgar foi escutado claramente, de
forma que algumas cabeças se
voltaram para ele para olhá-lo com
gesto reprovador.
—Silêncio! —exclamou
lorde Parta com o cenho franzido por
cima de seus óculos.
Stephen sacudiu o mutilado
periódico a fim de voltar a endireitá-
lo, apesar do ruído, e voltou a se
esconder atrás do papel.
Lady Paget tinha razão. Sua
triste historia, ou o pouco que tinha
escutado dela, tinha despertado sua
compaixão e lhe preocupava a
pobreza em que obviamente vivia.
Teria sido incapaz de sair dessa casa e
de lhe dar as costas, do mesmo modo
que teria sido incapaz de moê-la a
golpes e de lhe romper as costelas a
pontapés.
Poderia lhe ter dado uma
atribuição de forma altruísta, sem
nenhum tipo de obrigação por sua
parte. A ideia lhe tinha ocorrido na
casa da dama. A riqueza que ele
possuía era indecente. Não sentiria
falta o dinheiro de uma atribuição
periódica que permitisse a lady Paget
viver de forma modesta.
Mas tal acerto não era
possível. Porque suspeitava que em
algum lugar atrás dessa fachada
sorridente, desdenhosa e sensual se
escondia o orgulho que seu marido
tinha tentado destruir a base de
golpes. Provavelmente ela teria
recusado o presente.
Além disso, não podia ir pela
vida oferecendo dinheiro a todo
aquele que lhe contasse suas penas.
De modo que se não fizesse
algo, sua indigência pesaria sobre sua
consciência.
Daí que se viu obrigado a lhe
oferecer uma exagerada quantidade
de dinheiro em troca de uns favores
sexuais que Stephen não estava muito
convencido que desejava.
Mas bem justamente o
contrário.
Não era a primeira vez que
pagava por favores sexuais, e sempre
pagava mais do que a dama pedia. Até
esse momento não lhe tinha parecido
um acordo sórdido.
Talvez no passado também
deveria havê-lo visto dessa forma.
Talvez necessitasse um bom exame de
consciência. Porque talvez as
mulheres que ofereciam esse tipo de
serviços o faziam para evitar morrer
de fome. Nenhuma o faria por prazer,
não é verdade?
Franziu o cenho pelo
indesejado rumo de seus
pensamentos. Estava a ponto de
passar outra página quando mudou de
opinião.
No dia anterior nessa mesma
hora, seu desejo de achar uma amante
era tão urgente como o de voar até a
lua. Entretanto, tinha encontrado uma.
Depois de ajuda-lo com as
botas de montar e demonstrando uma
submissão pouco habitual nele, Philbin
tinha ido à casa do Portman Street
com um grosso maço de notas. Era o
generoso pagamento pelos favores da
noite anterior e pelos direitos
exclusivos sobre tais favores ao menos
durante uma semana.
O dinheiro não lhe importava.
O que lhe incomodava era o engano.
Porque tinha pensado que ela o
desejava, que se sentia atraída por ele.
Tinha pensado que se tratava de algo
mútuo. E a verdade era vergonhosa e
humilhante. O que lhe incomodava era
se sentir tão apanhado pela situação
como se o tivessem arrastado ante o
altar.
Por que tinha que se sentir
responsável pela reputação dessa
mulher? Feita as contas, era péssima
tal reputação, claro. Tinha matado seu
marido. Tinha vendido seu corpo a um
desconhecido e o tinha manipulado
para que se convertesse em seu
protetor. Tinha...
Tinha sofrido uma infância
nômade e insegura e um matrimônio
de pesadelo. E nesse momento fazia o
necessário para sobreviver. Para poder
comer e para poder contar com um
teto para se refugiar. Salvo a
prostituição, não havia nenhum outro
emprego para ela. Estava se
prostituindo para ele.
E ele o permitia.
Estava obrigado a permitir,
impulsionado pela segurança de que
ela não aceitaria seu dinheiro a menos
que fosse em troca dos serviços
prestados.
Não era um homem propenso
a odiar. Nem sequer era propenso a
sentir antipatia pelas pessoas. Gostava
virtualmente de todo mundo.
Agradavam-lhe seus congêneres em
geral.
Mas essa manhã em concreto
se sentia consumido pelo ódio e pela
fúria. E o problema era que não sabia
com certeza quem era o objeto de
ambos os sentimentos, se eram
dirigidos à lady Paget ou a ele mesmo.
Dava no mesmo. A única coisa
relevante era que ia devolver lhe a
respeitabilidade. E que ia deitar se
com ela o justo para que a dama
pudesse conservar seu orgulho e sentir
que estava ganhando seu salário.
Cravou os olhos em um dos
títulos do periódico e o leu junto com
o resto do artigo, com grande atenção
embora sem entender nenhuma só
palavra. Bem podia anunciar o fim do
mundo, porque ele não ia se inteirar.
É claro que lhe importava a
possibilidade de que tivesse matado a
seu marido. Essa era a essência da
questão. Tinha feito isso ou não?
Segundo ela, sim. Por que afirmar se
não era verdade? Entretanto,
suspeitava que grande parte do que
lady Paget havia dito não era de todo
verdade. E esse direto "sim" com o
que tinha respondido a pergunta não
lhe tinha parecido muito sincero.
Ou o tinha imaginado porque
queria que fosse inocente?
Não era muito prazeroso
pensar que a amante que acabava de
contratar era uma assassina confessa.
Tinha que considerar os
possíveis maus tratos que tinha
sofrido, certamente. Mas pensar que
pegou uma pistola que seguramente
não estava em cima da mesa pronta
para ser usada, que apontou ao
coração de seu marido e que apertou
o gatilho...
Enfim, só de pensar lhe gelava
o sangue nas veias. Se ela foi obrigada
a tomar uma saída tão desesperada, o
mau trato ao que a submeteu seu
marido devia ser atroz.
Ou talvez lady Paget fosse uma
má pessoa.
Ou talvez não tivesse feito isso.
Mas por que ia mentir sobre
algo semelhante?
E em que lugar isso o deixava
como pessoa, quando aceitou os
serviços dela, até impondo seus
próprios termos, sabendo que era uma
assassina? Ou uma mulher que se
dizia ser uma assassina?
Tinha a impressão de que o
cérebro lhe dava voltas dentro do
crânio como se fosse um pião. Afinal
acabou por dobrar o jornal e soltá-lo,
depois ficou em pé e abandonou o
clube sem falar com ninguém.

Alice, em um estranho
arranque de rebeldia, se negou a
acompanhar Cassandra ao chá de lady
Carling. Não o fez porque
desaprovasse a presença de Cassie em
tal acontecimento, muito menos tendo
sido convidada pela própria anfitriã.
Em realidade, considerava que era a
única coisa boa que tinha conseguido
depois do enorme risco que tinha
passado na noite anterior. Mas se
negava a conhecer o amante de Cassie
em público, porque nessas
circunstâncias se veria obrigada a
trata-lo com cortesia.
—Mas, Alice, —protestou
Cassandra enquanto observava como
sua amiga remendava a capa de um
travesseiro, uma tarefa em que deveria
ajudar, —quero que me acompanhe
precisamente para evitar que me
convide a dar um passeio pelo parque
em sua carruagem. Mencionou um
tílburi. Os tílburis têm os assentos
muito altos, estarei muito exposta.
Mas o importante é que só podem
levar dois ocupantes. Assim se me
acompanhar, negarei-me com a
desculpa de que não posso deixa-la
sozinha.
Entretanto, Alice se manteve
firme. Apertou os lábios e se decantou
pela tozudez enquanto brandia a
agulha uma e outra vez com gesto
vingativo.
—Cassie, seria um bobo —
lhe advertiu ao cabo de um momento
—Uma viúva de sua idade não põe
como desculpa uma simples dama de
companhia quando um cavalheiro a
convida a sair.
—Você não é uma simples
dama de companhia! —exclamou. —
Já não. Estou há quase um ano sem
poder lhe pagar e agora que posso lhe
oferecer dinheiro, vai e o recusa.
Alice enrolou o fio de linha em
um dedo e a partiu com um puxão
sem necessidade de usar as tesouras,
que descansavam em uma mesinha a
seu lado.
—Não penso aceitar nem
um tostão de seu dinheiro se ganhar
dessa maneira — sentenciou —
Cassie, isto não é o que tinha
imaginado para você quando era
minha pupila. Nem por acaso. —O
queixo lhe tremeu um instante, mas
conseguiu conter as lágrimas e voltou
a apertar os lábios.
—Alice, acredito que é um
bom homem. —replicou ela. —
Acredito que está me pagando mais da
conta e estou segura de que o faz de
propósito. E me disse que nunca...
Enfim, disse que tudo o que acontecer
em nossa relação será por mútuo
consentimento. Que nunca... Que
nunca me forçaria.
Alice ajeitou a capa e a
sacudiu com força, depois a dobrou
para engomá-la mais tarde.
—A roupa branca desta casa
é transparente de quão desgastada
está, dá no mesmo se as costura ou
não. — resmungou com voz irritada.
—Dentro de algumas
semanas poderei comprar tudo novo e
a substituiremos —lhe disse.
Alice a olhou lançando faíscas
pelos olhos.
—Não penso apoiar a
cabeça em uma capa de travesseiro
comprado com seu dinheiro! —
exclamou.
Cassandra suspirou e levantou
a mão que Roger lhe acariciava com
seu frio nariz. Assim que começou a
lhe acariciar a peluda cabeça, o cão se
apoiou em seu regaço e a olhou com
expressão triste e também suspirou.
—Sua família me pareceu
muito educada. —comentou—
Desfizeram-se em amabilidade
comigo. Claro que também o fizeram
para evitar uma situação vergonhosa e
talvez um desastre social, mas de
qualquer forma me pareceram boas
pessoas.
—Sofrerão uma apoplexia se
acreditarem que a está cortejando —
lhe advertiu Alice—Ou se se inteiram
de que a tomou como amante.
—Sim. —concordou
enquanto acariciava a aveludada
orelha do Roger. —É muito bonito,
Alice. Parece um anjo.
—Grande anjo! —Exclamou
sua amiga enquanto cravava a agulha
com muito maus modos no agulheiro
que descansava na mesa—.
Acompanha-te em casa, paga-lhe esta
manhã e lhe oferece mais pelo
mesmo. Grande anjinho!
Cassandra passou os dedos da
outra mão pelo pouco que ficava da
outra orelha do Roger e as levantou de
uma vez. O pobre parecia ter uma
aparência torcida e gesto sonolento.
Sorriu-lhe e lhe soltou as orelhas.
—Acompanhe-me esta tarde
—disse.
Entretanto, Alice já tinha
tomado uma decisão, pelo que se
negou em redondo.
—Não penso ir com você.
—recusou enquanto ficava em pé com
brusquidão —Faz um ano que não me
paga, como muito bem assinalou, e
me parece estupendo que seja assim.
Mas significa que sou livre. Que não
sou sua empregada. E sou muito
capaz de ganhar um salário com o que
possamos nos manter as duas, e
também Mary e Belinda, e esse cão,
sem necessidade de que tenha que...
Enfim. Sei que me acha muito velha
para que alguém me contrate, mas só
tenho quarenta e dois anos. Ainda não
cheguei à velhice. Continuo ágil para
esfregar chãos se for preciso, para
costurar doze horas ao dia na oficina
de alguma costureira ou para o que
seja. Esta tarde estarei muito ocupada
com meus próprios assuntos. Pensei
em passar por várias agências de
emprego. Certamente alguém requer
meus serviços.
—Eu, Alice. —replicou ela.
Mas não houve forma de
fazê-la mudar de opinião. Saiu da
estadia com as costas tão rígidas como
um pau e o queixo erguido, e deixou a
porta aberta.
Ao cabo de um momento
apareceu uma carinha que esboçou
um enorme sorriso enquanto o corpo
completo entrava na saleta.
—Cãozinho. — disse
Belinda, que se pôs a correr para o
Roger para que este não escapasse.
Apesar da avançada idade e da
sua natureza letárgica, Roger se
mostrava as vezes com vontade de
brincar e nunca recusava uma sessão
de carícias. De modo que saiu ao
encontro da menina com a língua para
fora e movendo o rabo e o quadril.
Belinda jogou os braços em seu
pescoço e suas gargalhadas se
transformaram em alegres e agudos
gritos quando o cão começou a lhe
lamber a cara.
O vestido estava pequeno
desde há uns seis meses, mas ainda o
usava. Estava descolorido pelas
numerosas lavagens, mas limpo como
jarras de ouro. E remendado com
muito cuidado ali onde o tecido estava
muito desgastado. As faces
ruborizadas punham de manifesto que
acabava de se banhar, e voltaria para
a tina assim que Mary descobrisse que
Roger a tinha beijado. Seu cabelo,
castanho e ondulado, estava preso por
uma fita desfiada e desgastada, a fim
de que não lhe tampasse o rosto.
Estava descalça, já que seus sapatos
ficaram pequenos e só os colocava
para sair.
Tinha três anos. Era a filha
ilegítima de Mary. E todas a
adoravam.
—Olá, querida. — saudou-a
Cassandra.
Belinda lhe deu de presente
um alegre sorriso e voltou a rir ao ver
que Roger se virava no chão com as
patas para o ar. A menina se deitou a
seu lado para lhe acariciar a barriga e
o segurava com um de seus magros
bracinhos.
—Ele me ama.—disse.
—Porque você o ama. —
replicou ela com um sorriso.
Por fim poderia pagar Mary.
Poderia inclusive lhe pagar todos os
atrasos. Ela não aceitaria, claro, mas
depois de insistir, acabaria pegando o
dinheiro.
Precisava comprar roupa nova
para sua filha.
De sua parte, pensava comprar
para Belinda algumas coisas. E para
Mary. Entretanto, não compraria nada
para Alice. Não aceitaria nenhum
presente, dado seu humor.
Tinha um protetor, pensou,
recalcando a palavra mentalmente. Ela
era sua... Amante. E a manteria em
troca de seus favores sexuais. O que
acontecesse entre ela e conde Merton,
não seria por desejo mútuo, por muito
que ele insistisse. Porque ela jamais o
desejaria de verdade, apesar de sua
atitude, sua virilidade e sua inegável
atração física. E apesar de sua
generosidade, um traço de seu caráter
que suspeitava ser genuíno.
Nove anos de matrimônio
tinham aniquilado qualquer interesse
que pudesse ter albergado pelo conde
Merton nesse sentido. Se Sua
Senhoria esperasse que ela o
desejasse na mesma medida, nunca se
deitariam e ela receberia um dinheiro
que não ganhara. E o principal era
ganhar até o último tostão. Porque
ainda restava um pouco de orgulho.
Embora ele nunca soubesse que entre
eles o desejo não era mútuo. Ganharia
com acréscimo o dinheiro que lhe
pagava o conde.
Enquanto observava a menina
brincar com o cão, ambos igualmente
inocentes, felizes e necessitados,
chegou à conclusão de que valia a
pena.
Dois inocentes a quem
adorava.
Faria algo para adiar, embora
fosse um dia, a perda dessa inocência.
CAPÍTULO 08

O chá na casa de lady Carling


era só para senhoras. Enquanto
pegava a aldrava da porta, Stephen se
perguntou se as convidadas seguiriam
no salão ou se dado que eram as
quatro e meia, muitas já teriam
partido. Possivelmente lady Paget se
fora em um esforço de evitar o passeio
com ele.
Possivelmente nem sequer
teria ido, embora seria uma tolice de
sua parte se o que procurava era a
readmissão na alta sociedade.
Certamente seu propósito ao ir a
Londres incluía algo mais que achar
um protetor que pagasse suas faturas
alguns meses, até que terminasse a
temporada social.
O mordomo de Carling aceitou
seu cartão e partiu em direção ao
salão. Escutou o murmúrio das vozes
femininas quando a porta da estadia,
situada no andar de cima, abriu-se
brevemente, antes de voltar a se
fechar. Algumas das convidadas
continuavam ali.
—Lady Carling estará
encantada em recebê-lo, milorde —
lhe informou o mordomo quando
retornou, de modo que o seguiu
escada acima.
Muitos homens teriam
congelado ante a ideia de entrar em
um salão onde só havia mulheres.
Stephen não era um desses homens.
Segundo sua experiência, quase todas
as mulheres se mostravam dispostas a
brincar e a rir quando tinham a sua
mercê um solitário cavalheiro, e ele
sempre estava encantado de lhes dar o
gosto, de brincar e de rir com elas.
Certo que ainda não tinha
recuperado o bom humor, mas tinha
conseguido se livrar da maior parte de
sua fúria e de sua irritação enquanto
retornava andando para casa do
White"s, onde tinha almoçado. Não
era capaz de se manter zangado muito
tempo. Ou ao menos, se negava a
fazer isso. Ninguém teria nunca
semelhante poder sobre ele.
Desculpou-se com Philbin e
seu criado de quarto aceitou suas
desculpas com uma rígida reverência,
durante a qual viu uma capa invisível
de pó em suas botas, uma
consequência da desfaçatez de
retornar para casa andando, apesar de
saber que só devia as usar para estar
dentro de casa ou em carruagem,
recordou a Sua Senhoria. Depois
passou a indicar o dano que o pó
poderia causar ao couro, se por acaso
Sua Senhoria o ignorava. E depois
perguntou a Sua Senhoria se teria a
amabilidade de tirá-la imediatamente
antes que o dano fosse irreparável e
lhe fosse impossível olhar na cara,
durante o resto de sua vida, de outros
criados de quarto.
De modo que se sentou sem
protestar e deixou que lhe tirasse as
botas, e assim a relação com seu
criado de quarto recuperou felizmente
a normalidade.
O mordomo de Carling abriu
a porta do salão com um floreio e
anunciou sua chegada com voz de
barítono, um anúncio que em um
primeiro momento silenciou às
convidadas, embora os cochichos e os
risinhos nervosos não demoraram para
se fazerem escutar. Lady Carling já
estava em pé e se aproximava dele
com uma mão estendida.
—Merton, não sabe como
me alegro em vê-lo.
—Por favor, senhora, —lhe
disse ao mesmo tempo que lhe pegava
a mão e a olhava com fingido espanto
—não me diga que sua reunião só é
para damas. E eu que tinha estado
ensaiando uma humilde desculpa por
chegar tão tarde...
—Enfim, nesse caso, —
replicou a anfitriã —estarei encantada
de ouvi-la. Todas estaremos
encantadas.
Escutou-se o apoio unânime
das convidadas.
—Pois entendi que o convite
era para os amigos de Carling —
aduziu Stephen —de modo que fui ao
parque com a esperança de me
alegrar o dia contemplando a algumas
de minhas damas preferidas. Mas ao
descobri-lo virtualmente deserto,
conduzi pelo Bond Street para ver se
alguma estava por ali, olhando vitrines.
Depois tentei em Oxford Street, sem
êxito algum. E agora descubro que
todas as damas que desejava ver
estavam aqui todo o tempo.
Seus exagerados
cumprimentos foram recebidos com
alguma brincadeira e muitas risadas.
Observou as presentes com um sorriso
nos lábios. Suas três irmãs estavam ali.
Assim como lady Paget,
sentada junto à Nessie. Usava outro
elegante vestido verde, embora nessa
ocasião fosse um verde claro, não um
verde esmeralda. Possivelmente a
roupa fosse um dos poucos pertences
que lhe permitiram conservar quando
enviuvou. Assim como na noite
anterior, não trazia joias.
Lady Paget não se somou às
risadas e às brincadeiras das outras
damas. Mas sim sorriu... Com esse
sorriso leve e desdenhoso que mostrou
durante o baile da noite anterior e no
dormitório nessa mesma manhã. Era
um sorriso que, tal como tinha
descoberto, fazia parte do disfarce
que usava para ocultar qualquer
vislumbre de vulnerabilidade que
pudesse sentir.
O sol que penetrava pela janela
banhava parte de seu rosto e de seu
cabelo. Estava resplandecente e sua
beleza lhe pareceu muito
deslumbrante.
—Senhoras, — disse lady
Carling ao mesmo tempo que pegava
seu braço—o expulsamos? Ou
ficamos com ele?
—Ficamos! —exclamaram
algumas entre risadas.
—Ethel, seria uma
verdadeira lástima condenar ao pobre
Merton a vagar desolado pelas ruas e
a percorrer o parque como alma
penada durante uma hora, à espera de
que suas damas preferidas abandonem
o salão —disse lady Sinden, uma
viúva que o observou através de seus
óculos. — O melhor será que
fiquemos e nos asseguremos de que
fique feliz. Esteve percorrendo meia
Londres em seu tílburi, Merton? Ou
em outra carruagem mais segura?
—Em meu tílburi, milady —
respondeu.
—Nesse caso não poderá me
levar dentro de um momento para dar
um passeio pelo parque —replicou a
dama —embora certamente eu seja
sua dama preferida de todas as
pressentes. Deixei de subir aos tílburis
ao completar os setenta, faz já uns
anos. Sou capaz de subir, mas depois
não posso descer sem a ajuda de dois
lacaios robustos.
—Devem ser uns fraquinhos
embora pareçam robustos, milady —
respondeu ele com um sorriso —Eu
poderia baixa-la com um só braço.
Seguro que pesa o mesmo que uma
pena.
—Garoto descarado. —disse
lady Sinden com uma gargalhada que
pôs a tremer sua considerável papada.
—Por desgraça, milady, hoje
não posso demonstrar minhas
palavras. Vim porque consegui
convencer outra dama para que me
acompanhasse para dar um passeio
pelo parque e a dama em questão se
encontra aqui.
—E quem é a afortunada?
—Perguntou lady Carling enquanto o
impelia a se sentar junto a ela no sofá
—Prometi isso ontem à noite e me
esqueci? Mas como ia esquecer uma
mulher semelhante acontecimento? —
A anfitriã se inclinou para a bandeja
de chá e lhe serviu uma xícara.
—Senhora, recordo-lhe que
sir Graham não se afastou de seu
lado, assim nem me atrevi a pedir-lhe.
Poderia ter me dado uma boa sova.
Lady Paget aceitou me acompanhar.
Produziu-se um breve silêncio.
—Stephen tem um tílburi
muito rápido. —atravessou sua irmã
Kate —e de aspecto perigoso. Mas é
um consumado condutor, lady Paget.
Estará a salvo com ele.
—Nem me tinha passado
pela cabeça o contrário. —replicou a
aludida com essa voz rouca e
aveludada.
Olhou-o nos olhos enquanto
ele levava a xícara aos lábios e por um
instante sentiu que a fúria que tomou
conta dele essa manhã retornava. Era
formosa e muito desejável, e tinha
caído em sua teia, como se fosse uma
mosca. Uma imagem detestável. Mas
muito adequada.
—E faz um dia maravilhoso
para dar um passeio no tílburi. —
acrescentou Meg —Esta manhã
parecia que ia chover, mas agora não
se vê nenhuma só nuvem. Espero de
todo coração que seja um bom
auspício para o verão.
—Lady Sheringford, para
não tentar à sorte será melhor que nos
queixemos por ter que sofrer esta
rajada de bom tempo durante os
meses de julho e agosto —replicou a
senhora Craven com expressão
lastimosa ao mesmo tempo que
meneava a cabeça.
A conversa seguiu pelos leitos
habituais até que Stephen tomou o chá
e ficou em pé.
—Agradeço-lhe que me
tenha permitido ficar em sua reunião,
senhora —disse à anfitriã —Mas se
não lhe importar, lady Paget e eu
temos que nos pôr em marcha. Ou
meus cavalos se impacientarão.
Despediu-se das presentes
com uma reverência, e de suas irmãs
em particular com um sorriso, depois
ofereceu o braço a lady Paget, que
também se pôs em pé. Ela pegou seu
braço e agradeceu a lady Carling por
sua hospitalidade antes de que os dois
saíssem do salão.
Nesse momento Stephen
compreendeu que não seriam a fofoca
da estadia devido à presença de suas
irmãs, mas essa noite sim se
converteriam no tema de conversa de
alguns jantares e a voz correria o dia
seguinte em mais de um salão.
Não obstante e se não se
equivocava, pouco a pouco iriam
chegando convites à casa de lady
Paget. Algumas anfitriãs perceberiam
as vantagens de contar com ela em
suas celebrações antes que começasse
a desvanecer a novidade de sua
reputação. E nesse momento os
convites lhe chegariam como algo
rotineiro.
—É um tílburi muito
elegante. — ela comentou quando
saíram à rua e o lacaio que tinha
estado exercitando seus cavalos pela
rua deteve a carruagem diante dos
degraus —Mas tomara me levasse
direto para casa, lorde Merton.
—Iremos ao parque como
tínhamos acordado. —disse —Estará
repleto a esta hora.
—Por isso o digo. —ela
explicou.
Pegou a sua mão, embora não
necessitasse de mais ajuda para subir
ao alto assento da carruagem. Depois
rodeou o tílburi e se sentou junto a ela
antes de aceitar as rédeas que lhe
estendeu o cavalariço.
—Está ansioso por alardear
sua nova amante diante de seus
conhecidos, lorde Merton? —
perguntou—lhe.
Voltou a cabeça para olhá-la.
—Lady Paget, está me
insultando de propósito —disse —
Espero que se dê conta de que sou
mais circunspeto. Em privado é minha
amante. Uma relação que só concerne
a nós dois. Em público é lady Paget,
uma conhecida, talvez inclusive uma
amiga, com quem de vez em quando
passeio pela cidade. E essa descrição
é válida tanto quando está comigo
como quando não está. Inclusive
quando estiver acompanhado por
meus conhecidos.
—Está zangado. —indicou
ela.
—Sim, —reconheceu —
estou. Embora o mais acertado fosse
dizer que estava. Estou certo de que
não pretendia me insultar. Pronta para
que nos ponhamos em marcha?
Sorriu-lhe.
—Acredito que estaríamos
ridículos se ficássemos aqui parados
até que anoitecesse, lorde Merton.
Estou preparada.
Stephen deu a seus cavalos o
sinal de se pôr em marcha.

Enquanto o tílburi entrava no


Hyde Park, Cassandra caiu na conta
de que só tinham passado dois dias do
anônimo passeio pelo parque com
Alice, durante o qual passou quase
inadvertida graças ao denso véu negro.
Um luxo excepcional. Porque sempre
tinha chamado atenção, inclusive
quando era uma menina desajeitada e
sardenta, cujo cabelo fazia que a
pessoa pensasse em cenouras. Tinha
chamado atenção desde jovenzinha,
quando seu corpo em desenvolvimento
se tornou esbelto, as sardas
começaram a desaparecer e as
pessoas deixaram de comparar seu
cabelo com as cenouras. E chamava
atenção já adulta. Sabia que sua
altura, seu corpo e a cor de seu cabelo
chamavam a atenção dos homens e os
cativavam lá onde fosse.
Sua beleza, acaso esse
conceito pudesse se aplicar ao seu
físico, nem sempre tinha sido uma
vantagem. De fato, rara vez foi. Às
vezes, ou melhor, quase sempre, era
algo para esconder. Seu sorriso, essa
expressão desdenhosa e arrogante que
aparecia em seus lábios e que ia
acompanhada com um gesto altivo do
queixo e um olhar lânguido, não era
nada novo. Era uma forma de evitar
que o resto do mundo se aproximasse
muito à pessoa que se escondia atrás.
Nessa manhã o conde do
Merton havia dito que era uma
máscara.
Na noite anterior sua beleza
tinha sido uma vantagem. Tinha-lhe
proporcionado um protetor rico que
necessitava com desespero. Embora
nesse instante desejasse ter escolhido
outro, a alguém que se contentasse
visitando-a às escondidas pelas noites
com um único propósito em mente e
que lhe pagasse regularmente pelos
serviços prestados.
—Por que foi me buscar na
casa de lady Carling, sabendo que se
veria obrigado a anunciar
publicamente que íamos dar um
passeio pelo parque? — perguntou-
lhe.
—Acredito que esta noite
todos os integrantes da alta sociedade
saberão disso, tanto se fosse à casa de
lady Carling, como se esperasse em
sua casa que retornasse.
—E, entretanto, está
zangado comigo. Também se zangou
esta manhã e o tornou a fazer esta
tarde. Não lhe agrado, não é?
Era uma pergunta muito tola.
Acaso queria que sua relação
terminasse quase antes de começar?
Era necessário que lhe agradasse? Ou
que fingisse que era assim? Não
bastava que a desejasse? Que pagasse
para satisfazer esse desejo?
—Lady Paget, eu lhe caio
bem? —contra-atacou ele.
Ao resto do mundo agradava.
Agradava, ou isso ela achou, o
preferido da alta sociedade. E não só
por ser bonito e ter esse aspecto
angélico. Também era a coisa de seu
encanto, de suas maneiras, de seu
bom humor, de seu... Enfim, dessa
qualidade indescritível que possuía.
Carisma? Vitalidade? Amabilidade?
Franqueza? Sua atitude e sua
popularidade não pareciam haver lhe
subido à cabeça.
Tinha usado seu atrativo para
fazer amigos, para fazê-los sorrir e
conseguir que se sentissem a gosto.
Ela, pelo contrário, tinha usado sua
beleza para conseguir primeiro um
marido e depois um amante. Ele era
uma pessoa generosa enquanto ela
uma aproveitadora.
Era assim lorde Merton?
E ela?
—Nem sequer o conheço,
—indicou—salvo no sentido bíblico.
Como posso saber se me agrada ou
não?
Lorde Merton virou a cabeça
para olhá-la no rosto... E nesse
momento percebeu como estavam
pertos, como era reduzido o assento
de seu tílburi. Estavam tão perto que
cheirava sua colônia.
— A isso me referia —
replicou ele —Eu tampouco sei se me
agrada ou não, Cassandra. Mas me
parece muito estranho que ontem à
noite se propôs a me seduzir com
tanta deliberação e hoje pareça
decidida a se liberar de mim. É o que
quer?
Tomara seus olhos não fossem
tão azuis e seu olhar não fosse tão
intenso. Era impossível escapar a uns
olhos azuis. Os olhos azuis a
incomodavam. Arrastavam-na a suas
profundidades e a despojavam de tudo
aquilo que ansiava conservar... E não
se referia a sua roupa, a não ser a...
Enfim, eram pensamentos absurdos
que nunca se permitira. Até o
momento não se dera conta de que
não gostava de olhos azuis.
Certamente nem sequer isso fosse
verdade. Só era assim com esses olhos
em concreto.
Tinha a chamado de
Cassandra.
—Quero... —começou e lhe
sorriu antes de continuar em voz
baixa: —Quero você, lorde Merton.
Em minha casa, em meu dormitório,
em minha cama. Tudo isto é
desnecessário.
Fez um gesto com o braço que
abrangeu o parque, as carruagens, os
cavaleiros e os transeuntes que se
aproximavam deles a toda velocidade.
—Sempre achei que uma
relação entre um homem e uma
mulher, embora seja entre um homem
e sua amante, deveria ir além do que
acontece entre os lençóis. —ele
comentou —Do contrário, não seria
uma relação.
Suas palavras a fizeram rir,
mas sentiu algo no coração que se
apressou a desterrar.
—Se acreditar que sexo não
basta, é porque não passou suficiente
tempo em minha cama —replicou —
Já mudará de opinião. Irá esta noite
me ver?
Nem sequer estava segura de
ter pronunciado em voz alta a palavra
"sexo" alguma vez. Era muito difícil
fazê-lo.
—Quer que vá? —
perguntou-lhe ele.
—Claro que sim. —
respondeu. —Como vou ganhar a
vida?
Lorde Merton virou a cabeça
para olhá-la uma vez mais e o que
Cassandra viu em seus olhos não era o
desejo de um homem que ansiava se
deitar de novo com sua amante, senão
algo parecido à dor. Ou talvez fosse só
reprovação.
Era impossível que acreditasse
que alguma vez podiam ser amantes
no sentido mais amplo da palavra.
Não podia ser tão ingênuo nem tão
idealista.
Chegados a esse ponto, não
tiveram opção de continuar com uma
conversa tão íntima. Em parte foi um
alívio. Desejava mais que nunca ter
escolhido outra pessoa na noite
anterior, um homem menos inocente,
menos decente, um homem mais
terrestre, um homem capaz de aceitar
sua relação como era: um intercâmbio
de sexo por dinheiro, uns ganhos fixos
por sexo fixo. Um homem que não a
tivesse acusado de levar uma máscara.
Inclusive, pensar nessa palavra,
"sexo", era-lhe difícil.
Por outra parte, era muito
incômodo se achar no meio de uma
multidão, estar exposta como a noite
anterior, embora nesse momento fosse
muito pior. Estava sentada acima da
maioria. Era virtualmente impossível
que não a vissem.
Perguntou-se se essa tinha sido
a intenção de lorde Merton, e chegou
à conclusão de que sim. Certamente
tinha outras carruagens que poderia
ter usado nesse dia.
Entretanto, não a tinha levado
ao parque para exibi-la diante de seus
conhecidos. Zangou-se quando
insinuou essa possibilidade.
Lorde Merton sorria a todo
mundo, levava a mão ao chapéu ante
as damas, saudava as pessoas com
quem se cruzavam e se detinha para
conversar com todo aquele que se
mostrava interessado em falar com
ele. Supôs que eram menos pessoas
que as de costume. Mas cada vez que
alguém o detinha, realizava as
apresentações e ela inclinava a cabeça
a modo de saudação e inclusive falava
de vez em quando.
Assim como tinha acontecido
no salão de lady Carling, algumas
pessoas estavam dispostas a falar com
ela, embora só fosse para lhe
perguntar como estava. Claro que no
salão de lady Carling contava com o
apoio de sua anfitriã e no parque
contava com o apoio do conde de
Merton. Na noite anterior foram os
condes do Sheringford que a
apoiaram.
Talvez fosse gente amável.
Talvez seu cinismo tivesse chegado a
extremos insuportáveis. Talvez não
acabasse sendo a pária que tinha
imaginado. Ou talvez se convertera
em uma curiosidade irresistível para
muitos. Assim que passasse a
novidade, deixariam de recebê-la.
Custava abandonar o cinismo.
Não importava. Em muitos
sentidos sempre tinha sido uma paria.
Como era de esperar, aqueles
que se detinham para falar com lorde
Merton e que lhe foram apresentados,
eram homens em sua grande maioria.
Enquanto os olhava, se perguntou
se não poderia ter escolhido
melhor a noite anterior. Mas como
escolher bem sem saber
absolutamente nada do homem em
questão, salvo seu nome e o fato de
que era rico? E como estar segura
desse detalhe quando muitos
cavalheiros viviam acima de suas
possibilidades e estavam apanhados de
dívidas até as sobrancelhas?
Na sua época acreditou ter
escolhido um bom marido. Tinha
dezoito anos. Hoje estava com vinte e
oito. Possivelmente a única pérola de
sabedoria que tinha adquirido no
transcurso dos anos fosse a certeza de
que na hora de escolher a um homem
que proporcionasse segurança e
estabilidade, era melhor um protetor
que um marido.
A liberdade era o mais valioso
que podia oferecer a vida. Entretanto,
para uma mulher era muito difícil de
obter.
O barão Montford se
aproximou deles para saudá-la e para
conversar com seu cunhado uns
minutos. Acompanhavam-no outros
três cavalheiros, entre quem se achava
o senhor Huxtable, que continuava
tendo um ar demoníaco a seu parecer.
Olhou-a nos olhos enquanto os outros
falavam e riam. Em algum momento
de sua vida, o senhor Huxtable
quebrara o nariz e não o tinham
endireitado. Alegrou-se muitíssimo de
não tê-lo escolhido a noite anterior.
Tinha a sensação de que seus olhos
podiam ler seus pensamentos e
atravessá-la de parte a parte.
E nesse instante, justo quando
os cavalheiros se afastavam em
direção contrária e ela deu uma
olhada a seu redor, viu uma cara
conhecida. A de um bonito jovem
ruivo que ia sentado em um cabriolé
junto a uma moça muito bonita vestida
de rosa. O jovem sorria por algo que
sua acompanhante acabava de dizer a
um par de oficiais de uniforme que
iam a cavalo.
O tílburi do conde Merton
estava quase a sua altura. Os oficiais
seguiram seu caminho, a moça sorriu
ao jovem risonho e ambos se viraram
para olhar à multidão que os rodeava.
Seus olhos repararam nela
quase ao mesmo tempo. As duas
carruagens estavam quase à mesma
altura. Sem pensar sequer no que
fazia, Cassandra esboçou um cálido
sorriso e se inclinou para a outra
carruagem.
—Wesley! —exclamou.
A moça levou as mãos à boca
e virou a cabeça com brusquidão...
Igual ao que outras damas tinham feito
durante o quarto de hora que estavam
no parque. O sorriso do jovem
desapareceu e seus olhos a olharam
com expressão horrorizada antes de
titubear um momento e acabar
desviando a vista.
—Siga em frente,—disse o
jovem com impaciência ao cocheiro,
que não podia ir a nenhum lugar até
que as carruagens que o precediam
ficassem em marcha.
O conde Merton tinha um
pouco mais de margem de manobra.
Mesmo assim, teve a impressão de
que passava uma eternidade até que
as duas carruagens se afastassem uma
da outra.
—Um conhecido? —
perguntou lorde Merton em voz baixa.
—Leve-me para casa —
disse ela —Por favor, já tive o
bastante.
Demoraram um bom tempo
para poder abrir caminho entre a
multidão, mas ao final conseguiram
entrar em um atalho que, graças a
Deus, estava muito mais espaçoso.
—Era Young, não? —
Perguntou-lhe lorde Merton—Sir
Wesley Young. Conheço-o de vista.
—Não saberia lhe dizer. —
Respondeu sem parar para pensar,
com as mãos abertas sobre o regaço.
—Não o tinha visto nunca.
—Então, só era alguém que
se parecia com o tal Wesley? —
Olhou-a com um sorriso. —Não se
preocupe por ele. Alguns membros da
alta sociedade adoram dar as costas às
pessoas. Outros muitos não o têm
feito. Acredito que conforme passem
os dias haverá mais pessoas que a
aceitem e lhe tratem com cortesia.
—Sim. —disse Cassandra.
Percebeu que lhe tremiam as
mãos. Fechou um punho com força e
se aferrou com a outra mão o
corrimão que tinha ao lado. Apertou
os dentes para evitar que lhe tocassem
castanholas.
—Vá, —comentou o conde
enquanto se aproximavam da entrada
do parque no Marble Arch e por um
instante lhe cobriu o punho que tinha
sobre o regaço com uma mão —vejo
que o conhece.
—É meu irmão. —
confessou e voltou a fechar a boca.
Wesley foi vê-la em algumas
ocasiões durante seu matrimônio. E
assistiu ao funeral de seu marido no
ano anterior. Abraçou-a com força e
lhe assegurou que não achava que por
nada nesse mundo estivesse implicada
na morte de lorde Paget. Assegurou-
lhe que a queria e que sempre o faria.
Convidou-a a acompanha-lo a
Londres, a ir viver com ele até que
passasse o período de luto e se
recuperasse do golpe, o bastante para
retornar para casa e viver na
residência da viúva.
E depois, depois que ela
recusou sua oferta e ele partiu, lhe
escreveu... Duas vezes. Sem retorno,
ela seguiu lhe escrevendo. O silêncio
perdurou um mês, voltou a lhe
escrever contando que sua vida se
tornou tão intolerável que se via
obrigada a partir de Carmel House,
que teria que depender de sua
hospitalidade até ter refeito sua vida e
encontrar um modo de seguir adiante.
Seu irmão lhe tinha respondido
dizendo para não se apresentar em
Londres sob nenhum pretexto, já que
sua fama a precedia. Acrescentou que
não poderia ajuda-la em um futuro
imediato, porque tinha prometido
acompanhar uns amigos a Escócia
para explorar as Highlands.
Esperavam estar um ano fora. Não
pensava em renovar o aluguel de sua
residência de solteiro. Amava-a, tinha-
lhe assegurado nessa última carta.
Mas lhe era de todo impossível adiar
seus planos, já que seria um
inconveniente para muitos. Além
disso, repetiu, sublinhando essa parte
duas vezes e com tanta força que a
tinta tinha transpassado o papel, não
devia ir a Londres. Porque não queria
que lhe fizessem mal.
—Seu irmão. —disse lorde
Merton. —Seu sobrenome de solteira
era Young?
—Sim. —respondeu.
Saíram do parque e o conde
teve que diminuir o passo para não
apanhar um varredor, que se afastou
de um salto e depois estendeu a mão
para agarrar a moeda que o conde lhe
arrojou.
—Sinto muito. —ouviu-o
dizer.
Sentia muito que fosse uma
Young? Ou por ter seu próprio irmão
lhe dado as costas? Ou ambas as
coisas?
As coisas pioraram de verdade
para ela depois do funeral, momento
no qual começaram a voar as
acusações e se começou a falar de
assassinato em vez de acidente.
Ansiava chegar em casa.
Queria estar em seu próprio quarto,
com a porta fechada e agasalhada até
a cabeça. Queria dormir... Dormir
sem sonhar.
—Não tem porque se
desculpar por algo que não é sua
culpa, —replicou Cassandra enquanto
erguia o queixo e falava com a voz
mais altiva de que foi capaz. —
Surpreendeu-me vê-lo, isso é tudo.
Achava que estava na Escócia. Estou
certa de que aconteceu algo que o fez
mudar de planos.
Os cavalheiros não viajavam
para a Escócia durante a temporada
social, quando a alta sociedade enchia
Londres. E os cavalheiros que não
eram verdadeiramente ricos não
faziam uma viagem de um ano. Os
cavalheiros que viajavam em grupo
não tinham problemas em se
desculparem a algum integrante se
tivesse que mudar de planos para se
ocupar de um assunto familiar
urgente.
Em seu foro interno
reconhecia que não tinha acreditado
em suas palavras ao ler a carta. Uma
carta muito mais breve e seca que as
anteriores. Decidiu acreditar nele
porque a alternativa era muito
dolorosa. Mas já não podia
continuar fazendo isso.
—Fale-me dele. —pediu
lorde Merton.
Cassandra se pôs a rir.
—Milorde, estou certa de
que o conhece muitíssimo melhor que
eu. Talvez devesse ser você a falar de
mim para ele.
As ruas pareciam mais
transitadas que de costume.
Avançavam muito devagar. Ou talvez
parecia porque estava desesperada
para chegar em casa e ficar sozinha.
O conde não disse nada.
—Minha mãe morreu
enquanto dava luz ao Wesley. —
começou ela por fim. —Tinha cinco
anos e desde aquele momento me
converti em sua mãe. Dava-lhe algo
que jamais teria desfrutado se não
fosse por mim, atenção total e carinho
absoluto. Abraços, beijos e monólogos
intermináveis. E ele me deu algo, a
alguém, a quem querer em lugar de
minha mãe. Adorávamo-nos
mutuamente, algo não muito habitual
entre irmão e irmã, ou isso acredito.
Embora tivesse uma preceptora desde
muito pequena, Wesley acabou indo
ao colégio. Tivemo-nos um ao outro
durante a infância... Bom, até que me
casei. Tinha dezoito anos e ele treze.
Nosso pai estava acostumado a se
ausentar longas temporadas.
Seu pai tinha sido um jogador
contumaz de fama reconhecida. Sua
fortuna variava de um dia para outro.
Nunca gozaram de um lar fixo e
estável, nem sequer quando lhe sorria
a sorte. Sempre tinham tido muito
claro que a pobreza espreitava à volta
de uma carta, uma realidade que
compreendiam até as crianças mais
pequenas.
—Sinto muito. —repetiu
lorde Merton e ela se deu conta de
que estava detendo a carruagem
diante de sua casa.
Nem sequer tinha percebido
ter entrado em Portman Street.
O conde atou as rédeas, saltou
do assento e rodeou o tílburi para
ajuda-la a apear.
—Não tem que se desculpar
por nada —lhe assegurou Cassandra
uma vez mais —Nenhum amor é
incondicional. E nenhum amor é
eterno. Se não aprender outra coisa de
mim, fique com isso. Possivelmente
lhe economize muita dor no futuro.
Lorde Merton levou sua mão
aos lábios.
—Virá esta noite? —
perguntou.
—Sim. —respondeu ele. —
Tenho compromissos a primeira hora,
mas virei depois, se me permitir.
—Se o permitir? —Olhou-o
com um sorriso um tanto desdenhoso.
—Sou sua quando quiser, milorde.
Está me pagando muito bem.
Viu-o apertar os lábios e se
deu conta do que estava fazendo a si
mesma. Estava lhe mostrando sua
escuridão. Entretanto, ele era todo
luz. E se a luz era mais forte que a
escuridão, embora não estivesse certa
de que assim fosse, ele não demoraria
muito em afastar a aura sombria que
sem dúvida estava projetando sobre
sua pessoa.
Esboçou outro tipo de sorriso,
e notou os músculos um tanto
doloridos pela falta de uso.
—E se me permite usar suas
próprias palavras contra você, —disse,
—Você é meu quando quiser. E quero
esta noite. Aguardarei encantadíssima
que chegue o momento. Espero poder
lhe dar prazer. E o farei. Prometo.
Não suporto receber prazer sem dá-lo
na mesma medida.
Ele se aproximou da porta e
chamou.
—Até mais tarde — disse —
Pense nas pessoas que foram amáveis
com você hoje. Esquece as que não
foram.
Seguiu sorrindo. E acrescentou
certo brilho brincalhão a seus olhos.
—Estarei muito ocupada
pensando em uma só pessoa, —
replicou —Só pensarei em você.
A porta se abriu e Mary
apareceu. Belinda estava junto a suas
saias, olhando detrás das pernas de
sua mãe. Roger passou junto a elas e
desceu os degraus a saltinhos com
suas três patas, para se esfregar contra
seu vestido, com a língua de fora.
Quando olhou ao conde
Merton soltou um latido de
advertência que não teria assustado
nem a um camundongo que se
encontrasse a um palmo de seu
focinho.
Lorde Merton olhou a todas,
acariciou a cabeça de Roger um
instante, levou-se a mão à aba do
chapéu e rodeou o tílburi para ocupar
de novo seu assento.
Cassandra o observou até que
o perdeu de vista.
—É ele, milady? —
perguntou-lhe Mary com secura.
Olhou-a com surpresa. Era
impossível ocultar algo à criadagem,
embora fosse muito reduzida.
—O conde Merton? —
precisou —Sim.
Mary não disse mais nada e
ela entrou em casa, deixando-a para
trás. Foi um alívio comprovar que
Alice não a estava esperando. Subiu
correndo ao seu dormitório, com o
Roger junto a seus calcanhares.
CAPÍTULO 09

Alice chegou em casa pouco


depois que Cassandra. Tinha passado
quatro horas caminhando pelas ruas
de Londres de uma agência de
emprego a outra sob o calor do meio-
dia, mas tudo tinha sido em vão. Sua
idade era um impedimento para todos
os trabalhos disponíveis. O detalhe de
que só tivesse trabalhado para uma
pessoa e desempenhado duas funções,
como preceptora e como dama de
companhia ao longo de toda sua vida
trabalhista durante os últimos vinte e
dois anos, também era um
impedimento, apesar de todos seus
esforços para explicar que o fato de
que tivesse estado tantos anos ao lado
de tal pessoa punha de manifesto que
era uma trabalhadora responsável e
digna de confiança.
Ninguém a contrataria como
governanta, um posto para o que tinha
a idade adequada, já que carecia de
experiência nas tarefas que devia levar
a cabo, e tampouco a contratariam
como cozinheira porque o mais
complicado que sabia fazer era um
ovo cozido.
A única coisa que tinha feito
era deixar seu nome e suas cartas de
apresentação e recomendação nas
duas agências que tinham estado
dispostas a aceita-la, com a esperança
de que surgisse algo. Entretanto, sabia
muito bem que era uma esperança vã.
Só lhe tinha passado uma coisa boa
essa tarde, e era seu encontro com um
antigo amigo, a quem viu enquanto
descansava sentada em um banco à
sombra de uma árvore perto de um
cemitério. Tê-lo reconhecido depois
de tantos anos lhe foi surpreendente.
Embora ainda foi mais porque ele a
reconheceu. Foi algo mútuo, em todo
caso, de modo que ele se deteve A
conversar com ela e inclusive se
sentou uns minutos.
Recordaria Cassie ao senhor
Golding?
—Refere-se ao tutor de
Wesley? —perguntou-lhe depois de a
procurar.
—Vejo que se lembra. —
comentou Alice com um sorriso
deslumbrante.
Claro que recordava. Era um
jovem a quem seu pai era mais alto
uma cabeça, magro, moreno, sério e
com uns óculos de aro metálico. Foi
contratado quando Wesley fez oito
anos, depois que seu pai tivera um de
seus incomuns golpes de boa sorte.
Não tinha passado nem um mês
quando a sorte mudou e o senhor
Golding se viu obrigado a partir ao ver
que não podiam lhe pagar. Entretanto,
Alice se manteve a seu lado, como
sempre.
Recordava porque naquela
época ela tinha treze anos, a idade em
que as jovenzinhas começavam a se
fixar nos homens. Apaixonou-se
secreta e desesperadamente pelo
senhor Golding depois que um dia lhe
sorrira e a chamara "senhorita Young"
ao enquanto a saudava com uma leve
inclinação de cabeça como se fosse
uma adulta.
Quando se foi, passou uma
semana chorando, convencida de que
jamais poderia esquecê-lo nem amar a
outro.
—Como vai? —quis saber.
—Muito bem. —respondeu
Alice. —É secretário de um ministro,
Cassie. E a verdade é que por seu
aspecto tão elegante parece que vão
bem as coisas. Tem cabelo grisalho
nas têmporas. Dão-lhe um ar muito
diferente.
Nesse momento caiu na conta
de que talvez não tivesse sido a única
em se apaixonar por ele fazia quinze
anos. Alice e o senhor Golding deviam
ter a mesma idade e se podia dizer
que tinham trabalhado cotovelo com
cotovelo durante todo um mês.
—Perguntou-me por você.
—acrescentou Alice —E se
surpreendeu muito ao se inteirar de
que continuo com você. Chamou—a
"senhorita Young". Talvez não tenha
se inteirado de seu matrimônio.
Alice não lhe havia dito nada?
Perguntou-se. Não podia culpa-la,
claro.
—Disse-lhe que a estas
alturas é lady Paget e que enviuvou.
—prosseguiu Alice —Manda-lhe
saudações.
Vá Por Deus! Exclamou para
si mesma. Não voltariam a ver o
senhor Aliam Golding, pensou
enquanto dirigia um sorriso a uma
ruborizada Alice. Compadeceu-se
dela. Não recordava que tivesse
mantido uma amizade com alguém ao
longo de sua vida.
Jantaram juntas e depois se
sentaram na sala de estar. Cassandra
lançou alguns olhares à lareira, onde
tinham empilhado carvão e lenha para
acender o fogo. Entretanto, restava
tão pouco carvão no balde da porta da
cozinha que não estava disposta a se
permitir extravagâncias, embora
contasse com um pouco de dinheiro.
Tinha que economizar todo o
possível. O verão estava à volta da
esquina e a alta sociedade
abandonaria Londres, como conde
Merton, sem dúvida alguma. Não se
atrevia a pensar mais a longo prazo,
para decidir o que faria depois. Por
esse motivo devia economizar tudo o
possível.
Não era uma noite fria, mas
era um pouco fresco.
—Suponho que virá esta
noite. —disse Alice de repente, sem
levantar a cabeça da costura. Nem
sequer lhe tinha perguntado como
tinha passado a tarde.
—Sim. —confirmou
Cassandra—Virá.
Alice seguiu costurando como
se não a tivesse ouvido.
—O que deveria fazer, —
disse a dama de companhia ao cabo
de uns cinco minutos de silêncio —é
assaltar uma carruagem com uma
máscara e um par de fumegantes
pistolas nas mãos. —Ao ver que
Cassandra guardava silêncio, levantou
a cabeça e ambas se olharam até que
serem incapazes de aguentar a risada,
de modo que acabaram estalando em
gargalhadas.
Depois de secar as lágrimas,
voltaram a se olhar e começaram
outra vez. Uma reação exagerada para
a brincadeira em questão.
Quando recuperaram a
serenidade e voltaram a se acomodar
em seus respectivos assentos,
Cassandra disse a sua amiga:
—É um bom homem, Allie.
Não o escolhi por esse motivo, nem
sequer o fiz por seu físico. Escolhi-o
porque sabia que devia ser rico e que
podia atrai-lo. Mas com certeza havia
uma fada boa, ou talvez meu anjo da
guarda, me vigiando. É um homem
bom e decente.
Um homem a cujo lado se
sentia desconfortável. Um homem em
cujos olhos azuis podia acabar se
afogando.
—Não é tão decente. —
disse Alice, esquecidas por completo
as risadas que acabavam de
compartilhar —Se está disposto a lhe
pagar por... Nenhum homem que faça
isso é decente, Cassie.
—Mas é um homem. —
indicou ela —E posso ser muito
sedutora quando me proponho a isso.
Ontem à noite me propus a isso. Não
teve a menor oportunidade, Allie. Não
culpe a ele. Em todo caso, culpe a
mim. —Não conseguiu abrandá-la
nem sequer com um sorriso —Além
disso, —seguiu, já sem sorrir e com o
olhar cravado no carvão da lareira —
acredito que me contratou por uma
mescla de luxúria e compaixão. Não é
tolo, Allie, e a mim não me dá bem
mentir. Sabe por que o escolhi. Deixei
muito claro esta manhã. Teria sido
uma tolice negar. Sabe que o interesse
que sinto por ele é de índole
econômica e acredito que aceitou
meus termos porque lhe dou pena.
Admitir isso era humilhante. Se
tivesse sido a cortesã irresistível que
tinha acreditado ser, o conde de
Merton teria aceitado seus termos só
porque lhe garantiam um acesso
ilimitado a seu leito e a seu corpo. Isso
teria sido muitíssimo melhor. Alice a
observava em silêncio, com a agulha
suspensa sobre a costura.
—É muito tarde para que
continue costurando. —disse
Cassandra —Não se vê nada e não
quero acender uma vela a menos que
seja absolutamente necessário. —A
noite anterior tinha esbanjado um par
de velas. Não podia se permitir uma
segunda vez —Está cansada. —
acrescentou —Teve um dia muito
longo e ocupado. Por que não vai à
cozinha, preparar um chá e leva-lo a
cama?
—Não me quer por aqui
quando vier. —replicou Alice, que
soltou a costura depois de travar a
agulha no tecido e ficou em pé —E eu
tampouco quero. Não poderia saudá-
lo com educação. Boa noite, Cassie.
Tomara não tivesse que fazer isto por
mim, pelo menos.
—Está há quase um ano sem
cobrar. —recordou —E lhe devo
muito, não só nesse aspecto.
Raramente recebeu seu salário
quando eu era pequena, não é
verdade? Entretanto, ficou a meu lado
quando poderia ter encontrado outro
emprego sem nenhum problema.
—Queria bem a você —
disse Alice.
—Sei.
Cassandra a acompanhou à
cozinha. Mary estava limpando os
velhos fogões. Roger estava deitado
diante do fogo e ao vê-las chegar,
saudou-as movendo o rabo sem
levantar sequer a cabeça.
—Mary, —disse Cassandra
—alguma vez deixa de trabalhar?
Certamente esses fogões não
estiveram nunca tão limpos. Vá para a
cama.
—Nunca deixo de trabalhar
para você, milady —respondeu Mary
com veemência —Não depois de tudo
o que tem feito por mim, primeiro
obrigando a seu marido a me manter a
seu serviço depois que Billy se foi me
deixando grávida. E depois tentando
me proteger quando seu marido...
—Nesse caso, me obedeça e
vá para cama — interrompeu-a —E
se escutar baterem na porta, não se
levante. Eu abrirei.
—E ainda me trouxe para cá
com você depois que Billy se foi de
novo e seu enteado me mandou
embora da propriedade, antes que
voltasse —acrescentou Mary, —
pouco disposta a se intimidar. — O
que deve fazer, milady, é deixar que
seja eu quem abra a porta e quem
atenda esse cavalheiro. É justo e
adequado que eu ganhe o dinheiro e o
entregue a você.
—Mary, Por Deus! —
Exclamou Cassandra enquanto se
aproximava dela para abraçá-la,
passando por cima a gordura do
avental e de suas mãos —É a oferta
mais generosa que me fez alguém há
muitíssimo tempo. Mas não tem que
se preocupar por nada. O conde
Merton é um homem bom e decente,
e eu gosto dele. Além disso, fazia
muito que... Enfim, não importa. Às
vezes certos trabalhos também podem
ser prazerosos, sabe? —Sentiu que se
ruborizava e desejou não ter que dar
nenhum tipo de explicação.
Alice, que acabava de preparar
o chá, soltou o bule com força sobre a
cornija da lareira.
—É um tipo bonito. —
reconheceu Mary —Parece um anjo,
não é verdade, milady?
—Talvez seja. —respondeu
ela —Um anjo enviado para nos
salvar. As duas à cama agora mesmo,
para que eu possa me preparar. Alice,
não me olhe como se tivesse que me
preparar para a forca. É muito bonito,
é meu amante e estou muito contente.
O dinheiro não é tudo. Eu gosto e vou
ser feliz ao seu lado. Vão ver isso.
Depois de levar luto durante um ano e
de ver tudo com mais tristeza, vou ser
feliz. Com um anjo. Alegre-se por
mim.
Lorde Merton lhe havia dito a
noite anterior que era uma mulher
escandalosa e tinha toda a razão. Sim,
senhor.
As duas se foram à cama
chorando.
E não precisamente de
felicidade, supôs.
Entretanto, não tinha mentido
de todo, reconheceu com certa
surpresa e inclusive consternação.
Havia uma parte de si mesma que
quase estava desejando que chegasse
a noite. Estava sozinha há muitíssimo
tempo. E se sentia muito sozinha. Ao
menos não o estaria essa noite. Não se
deitaria sozinha. Essa noite, ao menos.
E se tivesse sorte, não voltaria a se
deitar só a maior parte das noites que
estavam por chegar.
Algo bom tinha que haver
entre toda essa escuridão que tinha
reinado em sua vida durante tanto
tempo. Certamente que sim.
Talvez a solidão recuasse,
embora pouco, ao se deitar com o
conde Merton.
Talvez ele fosse a única coisa
boa de toda a situação.
Estava tão cansada da
escuridão...
Por favor, por favor, só peço
um pouco de luz.

Stephen jantou no Cavendish


Square com Vanessa e Elliott, e com
outros convidados mais. Entre estes
últimos se achava uma jovenzinha
solteira, acompanhada por seu pai.
Suas irmãs não eram umas
casamenteiras sem remédio.
Justamente o contrário. Repetiam-lhe
com assiduidade que não se casasse
muito logo e que, quando o fizesse,
casasse por amor. Entretanto, não
resistiam a lhe pôr em bandeja aquelas
jovenzinhas que pudessem lhe chamar
a atenção. E para cúmulo conheciam
seus gostos muito bem.
A senhorita Soames era muito
de seu gosto. Jovem, bonita e magra.
De natureza doce, alegre e com uma
risada contagiosa. De maneiras
deliciosas e conversas animadas. Era
recatada, mas não excessivamente
tímida.
Durante o jantar esteve
sentado a seu lado. O mesmo
aconteceu na carruagem que os
transladou ao teatro mais tarde, e
depois ao camarote de Elliott. Sua
companhia lhe agradava e tinha
motivos para pensar que o sentimento
era mútuo.
Foi uma noite típica, como
muitas outras. Mas também muito
diferente das demais.
Porque mal passou um instante
no qual sua mente não estivesse
ocupada pensando em Cassandra.
E muito contra sua vontade,
estava desejando que chegasse o
momento de voltar a vê-la.
Não deveria ser assim. Deveria
se aferrar ao mundo que habitavam a
senhorita Soames, lady Christobel
Foley e as demais jovenzinhas. Ao
mundo que frequentavam seus
amigos, com suas numerosas
atividades, sua família, seus deveres
parlamentares e o resto das
responsabilidades inerentes a seu
título e a suas propriedades.
O mundo no qual tinha
aprendido a viver durante os últimos
oito anos. Um mundo que gostava.
Cassandra, lady Paget,
habitava outro mundo. Um mundo no
qual havia muita escuridão. E também
algo inegavelmente sedutor.
E não se tratava só da
promessa de desfrutar com frequência
do sexo.
Sua atração não se apoiava só
nisso.
Entretanto, fosse o que fosse, a
atração era relutante e incômoda.
Sir Wesley Young também
tinha ido ao teatro. Estava sentado em
um camarote com outras sete pessoas,
entre elas a dama com a que passeava
pelo parque essa mesma tarde. Seu
camarote esteve muito animado
durante toda a representação.
Sua presença o distraiu de tal
modo que não pôde prestar a devida
atenção à senhorita Soames e ao resto
dos convidados de seu cunhado.
Tentou imaginar uma de suas irmãs na
situação de lady Paget. Nessie, por
exemplo. Teria sido capaz de lhe dar
as costas no parque essa tarde,
motivado pelo afã de que a alta
sociedade não descobrisse seu
parentesco? Seria capaz de desfrutar
dessa noite no teatro sem que os
remorsos pelo que tinha feito o
corroessem?
Era inconcebível! Sempre
respaldaria suas irmãs, sem importar
as consequências que esse respaldar
lhe conduzisse. Certos tipos de amor
eram incondicionais e eternos, apesar
de Cassandra afirmar o contrário.
Em vez de desfrutar da peça
de teatro, uma de suas atividades
preferidas, esteve distraído lhe
imaginando enquanto cuidava de seu
irmãozinho recém-nascido com só
cinco anos, enquanto o abraçava e o
beijava, lhe cantarolando e lhe
falando, rodeando o de amor porque
não havia ninguém que a quisesse
salvo esse pai quase sempre ausente, e
porque tampouco havia ninguém que
quisesse a seu irmão a menos que ela.
Além disso, sua mente não
deixava de rememorar a cena que
tinha acontecido essa tarde na porta
de sua casa. Essa cena tão caseira.
A criada, tão jovem e magra,
com uma expressão assombrada que a
assemelhava mais a uma vagabunda
sem lar do que à criada feroz, caso
tivesse se detido a pensar nisso. A
menina tímida e despenteada de faces
rosadas. E um cão muito velho que
parecia ter lutado em um par de
guerras ao longo de sua juventude,
durante as quais só tinha saído intacto
o carinho por sua proprietária.
Talvez, pensou, Cassandra não
só estivesse preocupada com sua
sobrevivência e seu bem-estar quando
entrou de penetra no baile de Meg em
busca de um protetor. Talvez
houvesse luz nela depois de tudo,
embora tivesse perdido o brilho por
culpa das circunstâncias.
Nessa tarde, sua casa lhe tinha
parecido um...
Enfim, tinha-lhe parecido um
lar.
Depois da representação
teatral e enquanto saía de Merton
House, reconheceu que albergava
sentimentos desencontrados. Queria
ver de novo a Cassandra. Queria
entrar de novo em seu dormitório.
Queria fazer amor outra vez,
possivelmente com um pouco mais de
delicadeza e prestando um pouco mais
de atenção a fim de que ela também
desfrutasse.
Mas ao mesmo tempo lhe era
incômodo fazê-lo nessa casa. Talvez
devesse ter alugado uma casa para se
encontrar com ela. Talvez devesse
fazer isso.
Pensaria nisso no dia seguinte.
CAPÍTULO 10

Cassandra esperou às
escuras, sentada na sala de estar. Pôs-
se uma camisola de seda e renda que
raramente usava. Sobre o objeto
levava um vaporoso penhoar. Tudo de
cor branca. Escovou o cabelo e o
tinha recolhido na nuca com uma fita
branca. Como uma noiva à espera do
noivo, pensou.
Grande ironia.
Para o cúmulo, era incômodo
estar tão desabrigada no frio que fazia
na sala.
O conde chegou tarde.
Embora não esperasse que chegasse
cedo, é claro. Manteve-se atenta ao
som dos cascos de algum cavalo sobre
os paralelepípedos, ao tinido dos arnês
ou ao estalo continuado das rodas de
uma carruagem, daí que se
surpreendesse ao escutar que alguém
batia suavemente à porta.
Tinha vindo andando.
Ao abrir, viu que levava uma
capa longa de cor negra e uma cartola
de seda, que tirou
ao vê-la. Viu-o esboçar um
sorriso abrigado à luz de uma das
luzes, e se percebeu do movimento da
capa quando se aproximou da porta.
Era uma mescla de escuridão,
luz e virilidade.
Sua respiração acelerou com
uma mescla de temor e de...
Enfim.
—Cassandra, —o ouviu
dizer —confio não ter chegado muito
tarde.
Entrou no vestíbulo e fechou a
porta com o fecho enquanto a chama
da vela do candelabro oscilava pela
corrente de ar.
—Só são onze e meia. —
replicou ela —Passou uma noite
agradável? —perguntou-lhe enquanto
se colocava a andar para a escada,
apagando a vela no caminho.
Supôs que em um par de
semanas essa cena se teria convertido
em algo rotineiro. Talvez inclusive
tedioso. E o tédio podia ser agradável.
Porque essa noite sentia o coração tão
acelerado que quase lhe faltava o
fôlego. Estava tão nervosa como uma
noiva, embora já tivessem feito isso
mesmo a noite anterior e a essas
alturas devesse ser mais fácil.
Embora na noite anterior
tivesse sido diferente, é claro. Então
não era seu amante, não estava
empregada para lhe oferecer esse
serviço. Não lhe tinha pago de
antemão.
—Sim, obrigado. —
respondeu ele —Jantei com o
Moreland e minha irmã, que também
tinham outros convidados, e depois
fomos ao teatro.
E depois do teatro ia para casa
de sua amante. A típica noite de um
cavalheiro.
Alegrou-lhe que o dormitório
da Alice se encontrasse no último
piso, ao lado do que ocupavam Mary
e Belinda, e não no primeiro. Embora
quando se mudaram tentara
convencê-la de que ocupasse o
dormitório contiguo ao seu, Alice
aduziu que na rua havia muito ruído e
que depois de ter vivido dez anos no
campo seria muito aborrecido.
De modo que preferiu a
tranquilidade do último piso.
Ao chegar ao corredor de seu
dormitório, Cassandra apagou a vela e
entrou em seu quarto. Lorde Merton a
seguiu, fechando a porta ao entrar.
Havia luz suficiente. Tinha girado um
pouco os espelhos da penteadeira
como na noite anterior, de forma que
a luz da solitária vela se refletisse por
toda a estadia.
—Aceita uma taça de vinho?
—Atravessou o dormitório em direção
à bandeja que tinha deixado em uma
das mesinhas de noite. O vinho tinha
sido um excesso, mas pôde se
permitir.
—Obrigado — o ouviu dizer.
Serviu uma taça para cada um
e ofereceu uma a ele, que seguia em
pé perto da porta. Tinha deixado a
capa sobre o espaldar de uma cadeira
e o chapéu sobre o assento da mesma.
Sob a capa levava um traje negro, um
colete com bordados em cor marfim,
uma camisa branca com o colarinho
perfeitamente engomado e uma
gravata atada por um perito, embora
não tivesse nada de ostentosa.
O conde de Merton não
necessitava da menor ostentação.
Possuía suficiente atitude e carisma
por si mesmo, de tal forma que podia
prescindir de qualquer adorno.
Aproximou sua taça para
brindar com ele.
—Pelo prazer. —disse
enquanto o olhava nos olhos com um
sorriso.
—Pelo prazer mútuo. —
acrescentou ele, sustentando seu olhar
enquanto bebiam um gole.
A tremulante e tênue luz da
vela, a cor de seus olhos continuou lhe
parecendo muito azul. Lorde Merton
lhe tirou a taça da mão e a colocou,
junto com a sua, na bandeja. Depois
se voltou para olhá-la e estendeu os
braços com as palmas das mãos para
cima.
—Vem. —lhe disse.
Como estava junto à cama,
Cassandra meio que esperava que a
jogasse sobre o leito sem mais
preâmbulo e entrasse logo no assunto.
Pelo contrário, limitou-se a
abraça-la com delicadeza pela cintura.
—Que tal foi sua noite? —
ouviu que lhe perguntava.
—Estive sentada na sala de
estar observando como Alice
remendava algumas costuras —
respondeu —Mas não fiz nada. Por
vergonhoso que seja, devo admitir que
me sentia preguiçosa.
Em realidade, havia se sentido
muito inquieta, embora tivesse tentado
dissimular por todos os meios.
Inclusive havia custado admitir ante si
mesma.
Até a noite anterior só se
deitara com Nigel. E sua união tinha
estado abençoada pela santidade do
matrimônio. Não lhe tinha parecido
pecaminoso entregar-se a ele.
Parecia a situação atual? Tanto
lorde Merton como ela, eram adultos
e estavam de acordo no que faziam.
Sua relação não prejudicava a
ninguém.
—Às vezes a preguiça é um
luxo muito gratificante. —comentou
ele.
—Sim que é. —reconheceu
ela enquanto colocava as mãos em
ambos os lados de sua cintura. Sentiu
seu calor corporal imediatamente.
Lorde Merton a estreitou mais
apertado entre seus braços, dos
joelhos ao peito e a beijou.
De certo modo foi inesperado.
E um tanto alarmante. Porque tinha
decidido levar as rédeas dessa noite
como o tinha feito a noite anterior.
Tinha planejado despi-lo muito
devagar e explorar seu corpo com os
lábios e as mãos a fim de torná-lo
louco de desejo. De fato, sua intenção
era essa, mas...
Mas a estava beijando.
E o inesperado e alarmante era
que não o fazia de forma apaixonada
ou lasciva. Era um beijo delicado,
suave e... terno?
Era um beijo que rachava suas
defesas.
Lorde Merton a beijou com os
lábios separados, explorando sua boca
com suavidade antes de acaricia-la
com a ponta da língua. Depois seus
beijos se transladaram as pálpebras,
que ela tinha fechado; às têmporas; a
sensível pele de detrás da orelha e ao
pescoço.
De repente, Cassandra notou
um nó na garganta, como se estivesse
a ponto de se pôr a chorar.
Por quê?
Porque esperava paixão no
encontro dessa noite. Desejava tal
paixão. A paixão era uma emoção que
se limitava ao plano físico. E ela
pretendia que sua relação se
mantivesse nesse terreno. Que só
fosse sexual. Uma palavra que cada
vez lhe custava menos pronunciar em
sua mente.
A única coisa que queria de
lorde Merton era sexo.
Algo instintivo e carnal.
Queria sentir que ganhava com
acréscimo cada tostão de seu salário.
Percebeu-se de que o estava
abraçando sem mover sequer as mãos,
que continuavam imóveis, em suas
costas. Estava beijando-a. Ela não
fazia nada. Estava recebendo, não
estava dando nada.
Não estava ganhando o
dinheiro que lhe pagava.
Lorde Merton levantou a
cabeça. Embora não sorrisse, tinha
um brilho alegre nos olhos. Deu-se
conta de que estava apoiada por
completo nele, entregue, relaxada e
quase rendida.
—Cass, —o ouviu sussurrar.
Ninguém a tinha chamado
assim antes.
—Sim, —disse com um fio
de voz.
E compreendeu nesse
momento que o que sentia não era
relaxamento, senão... Desejo.
Como podia ser desejo? Ainda
não tinham feito nada para que se
sentisse assim. Ou sim?
—Desejo-a —disse lorde
Merton —Não só seu corpo, mas
também a pessoa que existe em seu
interior. Diga que você também me
deseja.
... mas também à pessoa que
existe em seu interior.
Nesse momento quase o odiou.
Como ia lutar contra algo assim?
Fez um grande esforço para
conseguir. Entrecerrou os olhos e lhe
respondeu com sua voz mais grave:
—É claro que o desejo. Que
mulher poderia resistir a este
esplendor tão erótico, mescla de
homem e de anjo? —Esboçou um
sorriso estudado.
Entretanto e em vez de seguir
beijando-a, fosse com paixão ou sem
ela, lorde Merton a olhou nos olhos e
depois ao rosto com expressão
indagadora.
Deveria ter apagado a vela,
pensou ela.
—Não vou fazer lhe mal—
disse ele em voz baixa —Vou amar...
—A mim? —interrompeu-o,
arqueando uma sobrancelha.
Que regras seguia esse homem
na arte da sedução e o flerte?
—Sim, —respondeu lorde
Merton —De certo modo. Cass,
existem muitos tipos de amor e
nenhum deles se limita só à luxúria.
Em meu caso, a luxúria sem mais é
impossível. Sobre tudo com você, com
quem tenho certa relação. Sim, vim
para amá-la.
Esse homem não sabia nada
absolutamente sobre o amor. E ela?
... com quem tenho certa
relação...
Entrecerrou de novo os olhos e
sorriu.
—Tire isso, —ouviu-o dizer
—por favor.
Suas palavras fizeram que
arqueasse as sobrancelhas.
—A máscara —explicou
lorde Merton —Comigo não a
necessita. Prometo-lhe isso.
Teve o súbito pressentimento,
o súbito temor, de que com ele a
necessitava mais que com ninguém.
Porque lorde Merton rasgava de
forma implacável suas máscaras e
suas defesas, por muito
cuidadosamente que se cobrisse.
Voltou a beijá-la, nessa
ocasião de forma apaixonada. Seguiu
o contorno de seus lábios com a
língua e depois a introduziu entre eles
enquanto lhe tirava a fita do cabelo,
que jogou no chão. Estreitou-a com
força entre seus braços e ao cabo de
uns minutos lhe desatou o laço que lhe
fechava o penhoar no pescoço. O
objeto deslizou por seu corpo até cair
ao chão. Nesse momento a impeliu a
se estender sobre o leito.
Entretanto, não a seguiu.
Despiu-se em pé junto à cama, tirando
primeiro a jaqueta, depois o colete e
por último a camisa. Tudo acabou no
chão, junto com sua fita de cabelo e
seu penhoar. Em seguida desabotoou
a calça, e a tirou, depois do que se
despojou das meias e dos calções. Fez
isso sem pressa e em nenhum
momento tentou se esconder de seu
curioso olhar.
Por Deus, que corpo mais
formoso tinha! Ela pensou. Para a
maioria das pessoas, a roupa era uma
bênção com a que ocultavam uma
multidão de imperfeições. No caso de
lorde Merton, só ocultava perfeição.
Uns braços e uns ombros bem
formados, um peito ligeiramente
salpicado de pelo loiro. Uma cintura e
uns quadris estreitos. Umas pernas
longas e fortes.
Os escultores gregos
idealizaram seus modelos quando
esculpiam os deuses. Se tivessem tido
lorde Merton por modelo, não teriam
necessitado de nenhuma idealização.
Porque era um deus e um anjo.
Azul e dourado, como um dia
de verão. Olhos azuis, cabelo loiro.
Todo luz. Luz cegadora.
—Apague a vela —disse a
ele.
Não podia suportar continuar
olhando-o sabendo que entre eles
existia "certa relação". Amante e
protetor. Isso era tudo, assim o tinha
planejado e assim o queria.
E tudo seguia igual. Iria se
aferrar muito melhor a essa certeza
com a luz apagada, sem o sentido da
vista. Porque assim pensaria na Mary,
na Belinda e na Alice, e inclusive em
Roger. O pobre Roger que tentou
ajuda-la em uma ocasião e...
Só era a amante de lorde
Merton, nada mais.
Ele se deitou a seu lado depois
de apagar a vela e ela o recebeu com
os braços abertos, disposta a se fazer
com o controle da situação tal como
tinha planejado.
Entretanto, notou que lhe
segurava a bainha da camisola e
levantou os braços para que a tirasse,
depois do qual a jogou no chão. E
nesse momento, antes que pudesse
baixar os braços, lorde Merton lhe
segurou os pulsos com uma mão,
segurou-os por cima da cabeça e se
inclinou para ela, impelindo-a a se
deitar de novo. Beijou-a nos lábios, no
queixo, no pescoço e por último nos
seios. Acariciou-lhe um mamilo com a
boca, e depois, já umedecido, soprou
para que o ar frio o endurecesse antes
de apanhá-lo entre os lábios e suga-lo.
O frio foi substituído pelo calor, e esse
golpe de dor que não era exatamente
dor, lhe atravessou o abdômen e se
estendeu até o baixo ventre, que de
repente notava palpitante de desejo.
A boca de lorde Merton se
transladou até seu ventre. Notou que
lhe lambia o umbigo e contraiu os
músculos de forma involuntária.
Enquanto isso, acariciava-lhe com a
mão livre a face interna de uma coxa,
traçando preguiçosos círculos. Até
que chegou a essa parte úmida e
secreta de seu corpo, que passou a
acariciar com suavidade antes de
penetrá-la com um dedo, até o
nódulo. Tal dedo começou a se mover
em círculos em seu interior.
Nesse momento percebeu que
poderia ter liberado suas mãos. Lorde
Merton não a segurava com força.
Mas não o fez. Seguiu deitada,
submetendo-se a seu assalto, embora
em realidade, tal palavra não se
ajustava ao que lhe estava fazendo.
Tinha-o acreditado um inocente
nessas lides. Mas não o era. Em
realidade era muito habilidoso. Sabia
como utilizar a ternura e a lentidão
para avivar a paixão até um ponto
abrasador.
Não era assim como tinha
imaginado que um homem usava a sua
amante. Tinha esperado uma
demonstração de força bruta,
inspirada sempre por suas próprias
artes sedutoras.
Entretanto, soube desde o
primeiro momento que com ele não
seria assim. Dele esperava uma
inocência que o deixaria a sua mercê.
Como se fosse uma experiente
cortesã.
Que expectativas mais
absurdas as suas!
Sentiu a carícia dos dedos de
lorde Merton em um seio, e depois um
beliscão no mamilo. A dor esteve a
ponto de lhe arrancar um grito. Mas
era uma dor que não doía.
Nesse instante se colocou
sobre ela e sentiu todo o peso de seu
corpo. Soltou-lhe as mãos para poder
segurá-la pelas nádegas. Quando o viu
levantar a cabeça, soube que a estava
olhando no rosto, embora apenas o
visse na escuridão.
—Há um tipo de amor que
um homem sente por sua amante,
Cass, —o ouviu dizer em voz baixa —
E é mais que simples luxúria.
E a penetrou justo quando suas
palavras a desarmavam, lhe fazendo
impossível que se preparasse para a
invasão.
Lorde Merton era muito bem
dotado. Seu membro era duro e
grande, tal qual o recordava da noite
anterior. Pressionou-o com seus
músculos, como fez então, e deslizou
os pés sobre o lençol, a fim de rodear
essas pernas musculosas e fortes com
as suas.
Cheirava a limpeza, percebeu-
se em um momento dado. A colônia
discreta e cara que usava, não
mascarava outros aromas mais
desagradáveis. Justamente o contrário,
ressaltava seu aroma de limpeza. Seu
cabelo era suave e cheirava muito
bem. Enterrou uma mão nele quando
notou que apoiava a cabeça no
travesseiro a seu lado, com o rosto
para ela, e lhe colocou a outra mão na
cintura.
Então começou a rítmica
cadência do sexo, esse vai e vem tão
íntimo que sempre tinha requerido
seus maiores esforços para suportá-lo
durante grande parte de seu
matrimônio.
Nessa noite lorde Merton
exercia um maior controle sobre si
mesmo. Coisa que foi evidente desde
o começo. Essa noite não acabaria em
questão de minutos. Seus movimentos
eram rítmicos e poderosos.
Com uma cadência que variava a seu
desejo.
Sentia-o se deslizar em seu
interior, notava a fricção de seu duro
membro contra a suave umidade de
seu corpo, aumentando o calor de
seus corpos. Escutava os sons que tais
movimentos produziam.
E lhe foi muito erótico.
Nesse instante notou ali onde
seus corpos se uniam uma espécie de
desejo que se estendeu por suas
entranhas e foi subindo até chegar a
seus seios e a sua garganta.
Um desejo tão intenso que
doía. Uma dor que não era dolorosa.
Sentiu desejos de se pôr a chorar.
Sentiu desejos de rodeá-lo fortemente
com as pernas, de lhe rodear a cintura
com elas ao mesmo tempo em que o
abraçava, que o aferrava pelos ombros
e afundava o rosto em seu pescoço e
gritava, presa desse desejo que não
compreendia.
Sentiu vontade de se deixar
levar por tal desejo. De se entregar
por completo. Por um sublime instante
de sua vida quis se deixar arrastar e se
dar por vencida.
E precisamente era o que devia
fazer, compreendeu fazendo um
esforço por raciocinar com certa
lógica. Era seu amante. Lorde Merton
lhe estava pagando uma grande soma
para que o agradasse, para que o
adulasse aceitando o prazer que lhe
proporcionava.
Entretanto, se fingia tal prazer,
cairia em sua própria armadilha. De
repente, sentiu-se indefesa e
assustada.
E presa desse estranho desejo.
As mãos de lorde Merton
voltaram a segurá-la pelas nádegas.
Seu rosto voltava a estar sobre o seu.
—Cass, —o ouviu sussurrar
—Cass.
E justo quando seus
movimentos se detinham e se
afundava até o fundo nela,
derramando-se em seu interior, soube
que era o pior que podia ter dito.
Porque queria ser a mulher e a
amante para ele. Mas sem deixar de
ser ela mesma. Queria manter
estritamente separadas as duas facetas
de sua vida: sua vida privada e sua
vida trabalhista. Entretanto, lorde
Merton a tinha olhado nos olhos na
escuridão, a tinha chamado por esse
nome que ninguém tinha usado antes
e só com essa palavra lhe tinha
assegurado que sabia quem era e que
de algum modo se converteu em algo
muito valioso para ele.
Salvo que nada disso era
verdade.
Era só sexo.
De repente, notou com grande
alarme que lhe caíam duas lágrimas
pelas têmporas, que lhe umedeceram
o cabelo e acabaram fazendo o
mesmo com o travesseiro. Desejou
com todas suas forças que esses olhos
azuis não tivesse se acostumado à
escuridão até o ponto de vê-la
chorando.
A dor e o desejo
desapareceram e foram substituídos
pelos remorsos. Embora tampouco
entendia o motivo de tais remorsos.
Lorde Merton saiu de seu
corpo e se deitou a seu lado. Levou-a
a se colocar de lado, de costas para
ele, para se ajeitar atrás dela. Pegou-a
ao seu corpo, passou-lhe um braço
sob a cabeça para que a apoiasse em
seu ombro e lhe segurou o pulso que
descansava sobre seu peito.
Notava os fortes batimentos de
seu coração nas costas.
Com a mão livre, lorde Merton
lhe acariciou o cabelo e a beijou na
têmpora. Um lugar onde só se
depositavam beijos de carinho.
Nesse momento recordou de
novo suas palavras.
"Há um tipo de amor que um
homem sente por sua amante."
Não queria seu amor, nenhum
tipo de amor. Queria seu dinheiro em
troca do que lhe dava na cama.
Repetiu-se essa frase uma e outra vez
com a intenção de não esquecer o
verdadeiro sentido da situação.
—Fale-me da menina —lhe
disse ele ao ouvido.
—De que menina? —
perguntou, sobressaltada.
—Da que saiu esta tarde à
porta. —respondeu ele —Estava
escondida atrás das saias de sua
criada. É sua filha?
—Ah! —Exclamou
Cassandra —Não. É Belinda, filha de
Mary.
—Mary é a criada?
—Sim —respondeu. —
Trouxe—as para Londres comigo.
Não podia abandoná-las. Não tinham
nenhum outro lugar aonde ir. Mary
perdeu seu emprego quando Bruce, o
novo lorde Paget, tomou posse de
Carmel House. Além disso, é minha
amiga. E gosto de Belinda. Todos
precisamos de um toque de inocência
em nossa vida, lorde... Stephen —se
corrigiu.
—Mary não é casada? —
perguntou-lhe ele.
—Não, —respondeu —Mas
isso não a converte em uma pária.
—Não tem filhos?
—Não. —Fechou os olhos
—Sim. Tive uma filha que morreu ao
nascer. Era perfeita, mas nasceu com
dois meses de antecedência e não
respirava.
—Ai, Cass!
—Nem lhe ocorra dizer que
o sente! —exclamou —Você não foi o
culpado, não é verdade? Além disso,
já tinha sofrido dois abortos antes.
E possivelmente um depois,
embora na terceira ocasião só sofrera
uma copiosa hemorragia depois de um
mês de atraso em sua menstruação, de
modo que não pôde afirmar
com certeza que se tratara de
uma gravidez. Entretanto, estava
segura de que foi. Seu corpo assim o
havia dito. Assim como o fez seu
coração.
—Não me negue o uso das
palavras. —replicou lorde Merton —
Sinto de verdade. Deve ser o mais
horrível que uma mulher tenha que
suportar. A perda de um filho.
Inclusive de um filho prematuro. Sinto
muito, Cass.
—Sempre me alegrei de que
isso acontecesse. —respondeu ela
com brusquidão.
Sempre se tinha repetido que
se alegrava. Mas ao dizê-lo em voz
alta para que outra pessoa escutasse,
soube que em realidade nunca se
alegrou de ter perdido essas preciosas
almas que poderiam haver se
convertido em uma parte indivisível da
sua vida. Que engano tinha cometido
ao falar em voz alta!
—Vejo que a máscara voltou
ao lugar com o certo tom de voz. —o
ouviu dizer —É um alívio que o tenha
usado agora mesmo porque de outro
modo teria acreditado em você. Não
teria suportado acreditar em você.
Franziu o cenho e mordeu o
lábio ao escutá-lo.
—Lorde Merton, —disse,
voltando para uso de seu título —
quando estivermos juntos neste
dormitório e nesta cama, somos
senhor e empregada, ou se prefere
adoçar a realidade, somos amantes.
No sentido estritamente físico do
termo, já que compartilhamos nossos
corpos para obter um prazer mútuo —
completou, recalcando a última
palavra. —Um prazer físico. Um
homem e uma mulher. Não somos
pessoas. Somos corpos. Pode usar
meu corpo como lhe agradar, bem
sabe Deus que está pagando uma
fortuna em troca. Mas não poderá me
comprar nem com todo o dinheiro do
mundo. Estou fora de seu alcance.
Pertenço a mim mesma. Sou uma
empregada a salário. Não sou sua
escrava nem o serei. Não volte a me
fazer perguntas de índole pessoal.
Não volte a se misturar em minha
vida. Se não puder aceitar estes
termos, o fato de que sejamos um
homem e sua amante, irei lhe devolver
a astronômica soma de dinheiro que
me enviou esta manhã e o
acompanharei à porta.
Escutou a si mesma e se
horrorizou por essas palavras. O que
estava dizendo? Não tinha a
quantidade completa para devolver-lhe
E sabia, com a mesma certeza com a
que se sabia deitada entre os braços
de um homem, que jamais teria a
coragem necessária para começar de
novo com outro. Se lhe pegava a
palavra, estaria desamparada.
E com ela, Mary, Belinda e
Alice. E Roger.
Lorde Merton retirou o braço
no qual ela se apoiava e se afastou, de
tal forma que de repente se achou
estendida de costas sobre o colchão.
Viu-o se levantar da cama, que
rodeou até se deter ao seu lado. Uma
vez ali, inclinou-se para recolher sua
roupa, arrojou os objetos ao pé da
cama e passou a se vestir.
Soube que estava zangado
apesar da escuridão.
Deveria dizer algo antes de
que fosse muito tarde. Mas já era
muito tarde. Lorde Merton estava a
ponto de partir para não voltar nunca
mais. Tinha-o perdido só porque
agradava a ele que ela não se
alegrasse pela morte de seus filhos.
Não diria nada. Não podia
dizer. Já estava cansada de tentar
seduzí-lo, de se fazer passar por uma
sereia sedutora. Tinha sido uma ideia
desesperada desde o começo. Uma
ideia absurda.
Salvo que naquele momento
lhe pareceu que não havia alternativa.
De fato, ainda parecia.
Esperou em silêncio que ele
partisse. Uma vez que o escutasse
fechar a porta principal, vestiria a
camisola e o penhoar, e desceria para
fechar a porta. E esse seria o fim.
Depois se prepararia uma taça
de chá na cozinha e pensaria em outro
plano. Tinha que haver algo, o que
fosse. Talvez lady Carling estivesse
disposta a escrever uma carta de
recomendação. Talvez pudesse achar
a alguém que jamais tivesse ouvido
seu nome e estivesse disposto a
contratá-la.
Lorde Merton já tinha
acabado de se vestir, salvo pela capa e
o chapéu, que teria que recolher da
cadeira a caminho da porta.
Entretanto, em vez de se aproximar
deles, se inclinou sobre a penteadeira
e usou a isca para acender a vela, cuja
luz inundou de surpresa o dormitório.
Piscou, deslumbrada pela
repentina luz, e desejou haver se
agasalhado ao abrigo da escuridão.
Negou-se a fazê-lo nesse momento.
Olhou-o com todo desdém e
hostilidade que foi capaz de
demonstrar enquanto ele afastava a
banqueta da penteadeira para se
sentar.
Compreendeu que tinham
trocado as voltas dessa mesma manhã.
Ou melhor, do dia anterior pela
manhã. Nesse instante era ele quem a
observava sentado na banqueta e ela
era quem jazia na cama.
Enfim, que olhasse tudo o que
quisesse. Não ia poder fazer outra
coisa a partir desse momento.
—Vista-se, Cassandra. —o
ouviu dizer —E não com o que está
no chão. Com roupa de verdade.
Vista-se. Vamos conversar.
Algo muito parecido ao que lhe
havia dito no dia anterior.
Não havia rastro de fúria nem
em suas palavras nem em sua
expressão, embora seu olhar fosse
muito intenso.
De qualquer forma, não lhe
ocorreu desafiá-lo e nem desobedece-
lo.
Lorde Merton ostentava o
poder dos anjos, compreendeu
enquanto atravessava nua o dormitório
a caminho do roupeiro, onde vestiu a
roupa que levava essa noite.
E tal poder infundia temor.
Não temor a um possível dano físico,
senão a...
Ignorava realmente ao que.
Porque certas coisas careciam de
explicação.
Mas lhe tinha medo. Esse
homem ocupava um lugar em sua
vida, um lugar onde não o queria e
nem a ninguém. Nem sequer a Alice.
Embora ali estivesse.
"... com quem tenho certa
relação".
CAPÍTULO 11

Teria de partir assim que


terminasse de se vestir, pensou
Stephen.
Mas não. Foi incapaz.
Ignorava que relação
costumava existir entre um homem e
sua amante. Além disso, era incapaz
de pensar nela como sua amante
apesar de que suas circunstâncias
faziam necessário o intercâmbio de
dinheiro.
"...quando estivermos juntos
neste dormitório e nesta cama, somos
senhor e empregada... Um homem e
uma mulher. Não somos pessoas.
Somos corpos. Pode usar meu corpo
como lhe agradar... Mas não poderá
me comprar nem com todo o dinheiro
do mundo".
Não queria compra-la.
Queria... conhecer a mulher em cuja
cama se metia a prévio pagamento. O
que tinha isso de mau? Ela não queria
que a conhecesse.
"Estou fora de seu alcance.
Pertenço a mim mesma. Sou uma
empregada a salário. Não sou sua
escrava nem o serei nunca. Não volte
a me fazer perguntas de índole
pessoal. Não volte a se misturar em
minha vida."
É claro, Cassandra ignorava na
mesma medida em que ele o tipo de
relação que existia entre um homem e
sua amante. Estranharia muito que se
deitara com outro homem que não
fosse seu marido antes de com ele a
noite anterior. Apesar da atitude de
sereia que se esforçava por manter,
não era uma cortesã. Só era uma
mulher desesperada que tentava
ganhar a vida, que tentava reunir um
dinheiro para se manter e várias
sanguessugas que tinha junto. Embora
talvez fosse uma descrição muito cruel
das pessoas que viviam com ela. A
antiga preceptora que viu passeando
com ela pelo parque dois dias antes
possivelmente tivesse superado a idade
para achar um emprego. A criada era
mãe solteira e não acharia nada
enquanto estivesse junto de sua filha.
Ficou em pé e se aproximou
da janela enquanto esperava que
Cassandra terminasse de se vestir.
Abriu as cortinas e contemplou a rua
deserta. Ao cabo de um momento caiu
na conta de que não seria muito
sensato permanecer junto à janela
com uma vela acesa a suas costas. Os
vizinhos da calçada de frente saberiam
que só viviam mulheres nessa casa.
Correu de novo as cortinas, se
virou e se apoiou no batente com os
braços cruzados diante do peito.
Cassandra saiu do roupeiro
nesse preciso momento. Olhou-o e se
sentou em uma poltrona, tomando um
tempo para colocar as saias do vestido
azul que se pôs. Seus lábios
esboçavam um leve sorriso zombador.
Tornou a recolher o cabelo, mas não
em um coque. Ao ver que ele não
dizia nada, ergueu o olhar e arqueou
as sobrancelhas.
—Sinto muito me haver
misturado em sua vida e lhe ter feito
mal. —desculpou-se ele.
Ela manteve as sobrancelhas
arqueadas.
—Não me fez mal. —
replicou —Que eu recorde, senti um
grande prazer. Espero que tenha sido
recíproco.
—Onde dormem suas
criadas? —perguntou-lhe —E a
menina?
—No último piso. —
respondeu ela —Não se preocupe
com a possibilidade de que nossos
ofegos e gemidos tenham
transpassado as paredes e tenham sido
claros por toda a casa. E não são
minhas criadas. São minhas amigas.
Não era uma mulher agradável
quando levava posta sua máscara, o
que acontecia com frequência. O
melhor seria partir. O dinheiro que lhe
enviou na manhã anterior a manteria
por um tempo. Depois... Bom, não era
sua responsabilidade. O problema era
que a mulher com a máscara não
existia e ele não conhecia a mulher
que se ocultava atrás dela. Não sabia
se gostaria ou não.
Cassandra não queria que a
conhecesse.
Tinha matado seu marido.
Pelo amor de Deus! O que
estava fazendo nessa casa?
Entretanto, tinha chegado a
Londres com uma preceptora já de
idade, com uma criada muito jovem
que tinha perdido o trabalho, com a
filha desta e com um cão coxo. E o
selecionou para o papel de protetor a
fim de que nenhum passasse fome...
ela inclusa.
—Este é seu lar. —disse —
Cada vez que devo exercer meus
direitos como seu senhor o estou
manchando. Estou manchando a
inocência dessa menina.
Esse fato o tinha inquietado
desde que a viu a tarde anterior, com
as faces rosadas, o cabelo alvoroçado
e os olhos como pratos. Que valiosa
era sua inocência! Em um primeiro
momento pensou que talvez fosse filha
de Cassandra. Dava no mesmo que
não fosse. Essa situação era...
desagradável. Percebeu que
Cassandra tinha cruzado as pernas e
de que balançava um pé no ar. Estava-
o observando em silêncio, com o
sorriso ainda nos lábios.
—Um cavalheiro com
consciência. —disse ao final —Parece
uma contradição. Deve ser um grande
inconveniente para você, lorde
Merton.
—Frequentemente sim —
concordou —Para isso existe a
consciência, desde que a pessoa não
se converta em um cínico. Tento guiar
minha vida e as decisões sobre o curso
que deve ela tomar seguindo seus
ditados.
—É sua consciência o que o
reteve aqui, embora já esteja vestido?
—perguntou-lhe ela —Ou o desejo
por aquilo que vai perder se partir? Se
se tratar do segundo, não tem por que
se preocupar. Jamais lhe faltarão
companheiras de cama quando gostar
de uma, e não precisamente por seu
título e sua fortuna. Se for o primeiro,
significa que nos tem pena, de mim e
de meu desventurado séquito. Não é
necessário que se compadeça de nós.
Sobreviveremos sem você, lorde
Merton. Não somos sua
responsabilidade , não é?
—Não. —respondeu,
respondendo a sua pergunta embora
fosse retórica. Seguiu sem se mudar
de lugar.
—O que pretende? —
perguntou ela—. Quer me instalar em
um ninho de amor? É o que fazem
outros homens, sobre tudo os casados.
Seria muito acolhedor e poderia me
visitar cada vez que o desejasse, sem
temor a manchar a inocência de
ninguém. Seria como qualquer outra
mulher com um trabalho. Teria um lar
aqui e meu lugar de trabalho estaria
na outra casa. —Seu pé se balançava
mais depressa. Sua voz era rouca e
desdenhosa.
—Não funcionará,
Cassandra. —disse.
Ouviu-a suspirar.
—É o fim, verdade? —
replicou ela —Espero que não se
importe que não lhe devolva todo o
dinheiro, lorde Merton. É que gastei
parte do que me deu. Sou uma
esbanjadora. Mas lhe prestei serviço
duas noites seguidas e isso merece
certa compensação. —Nesse
momento pareceu perceber o rápido
movimento de seu pé e o deteve em
seco.
Seria muito simples dizer que
sim, que esse era o fim, ele pensou.
Era o que desejava fazer no fundo.
Poderia retornar ao Merton House,
dormir o que restava da noite e se
esquecer de todo esse patético
episódio quando despertasse. Iria se
ver livre de uma relação que lhe tinha
sido imposta desde o primeiro
momento. Poderia retomar a vida
simples que desfrutava.
Não podia dizer que sim.
—Cassandra, —disse e se
inclinou ligeiramente para ela —temos
que começar de novo. Podemos
começar de novo?
Sua pergunta lhe arrancou uma
gargalhada.
—Claro que sim, lorde
Merton —respondeu —Tiro minha
roupa? Ou prefere fazer as honras?
Ou... prefere que me deite como
estou?
Não tinha interpretado mal
suas palavras absolutamente.
Entretanto e por motivos que só ela
conhecia, tinha decidido provoca-lo.
De repente, teve a dolorosa revelação
de que talvez odiasse a si mesma pelo
que tinha escolhido fazer com ele.
Talvez se odiasse pelo assassinato que
conseguiu livramento... ao menos no
concernente à lei.
—Fique onde está. —lhe
ordenou —Não haverá mais sexo esta
noite, Cassandra, nem tampouco em
um futuro próximo. Talvez nunca
volte a existir entre nós.
Viu-a franzir o cenho.
—De modo que ao propor
que começássemos de novo me estava
convidando a que o seduzisse outra
vez, é isso, milorde? Será um prazer.
Nunca diga jamais. Não comigo.
Ele aproximou-se dela com
grande rapidez, se ajoelhou diante da
poltrona e a pegou pelas mãos.
Cassandra o olhou, surpreendida, e a
máscara se esfumou.
—Já basta. —disse —Já
basta, Cassandra. Acabou a
brincadeira. Porque foi uma
brincadeira desde o início. Esta não é
você. Este não sou eu. Sinto muito o
que lhe tenho feito. Sinto-o de
verdade.
Ela abriu a boca para falar,
mas a fechou sem dizer nada. Tentou
adotar uma expressão desdenhosa,
mas não o conseguiu.
Stephen lhe apertou as mãos
com mais força e lhe disse:
—Cassandra, se formos
continuar com esta relação, devemos
continuar como amigos. E não
emprego a palavra como um
eufemismo de outra coisa. Devemos
nos converter em amigos. Preciso
seguir te ajudando e você necessita
ajuda. Talvez não seja a melhor base
para cimentar uma amizade, mas
teremos que nos arrumar com o que
há. Ajudarei-lhe economicamente
todo o tempo que precisar, e em troca
você me proporcionará sua confiança
e sua companhia. Não seu corpo. Não
posso pagar por seu corpo. Não
posso!
—Pelo amor de Deus, lorde
Merton! —exclamou ela —Deve estar
desesperado se estiver disposto a
pagar pela amizade. Está me dizendo
que ser um anjo é uma tarefa solitária?
Ninguém quer ser seu amigo?
—Cass, me chame Stephen.
—lhe pediu.
Por que estava tendo tanto
trabalho? Por quê? Ela se perguntou.
Cassandra voltou a sorrir,
mas o sorriso desapareceu de repente.
—Stephen. —disse com um
fio de voz.
—Deixa que sejamos amigos
— ele propôs —Deixe-me vir a sua
casa de dia, com sua antiga
preceptora como acompanhante.
Deixe-me vir acompanhado por
minhas irmãs. Deixe-me acompanha-
la por Londres como fiz ontem de
tarde. Permita que nos conheçamos
um ao outro.
—Tão desesperado está por
averiguar meus segredos, lorde
Merton? Morre de vontade de
conhecer os mórbidos detalhes do
assassinato de meu marido?
Soltou-lhe as mãos e ficou em
pé. Deu-lhe as costas e passou os
dedos pelo cabelo. Olhou a cama
revolta, onde pouco antes tinham feito
amor.
—Matou-o? —perguntou-
lhe.
Por que não tinha acreditado
nele na primeira vez que perguntou?
Por que não se afastara dela, enojado,
e mantido distância?
—Sim, o matei. —respondeu
ela sem vacilar —Não vai conseguir
que o negue, lorde Merton... Stephen.
— ela se corrigiu —Não vai me fazer
tirar da manga um desconhecido, um
vagabundo que sem outro motivo,
além da maldade, disparou no coração
de meu marido e depois partiu sem
roubar nada de valor. Fiz isso porque
o odiava, porque queria vê-lo morto e
queria me libertar dele. De verdade
quer ser meu amigo?
Por que seguia sem acreditar
completamente em suas palavras?
Porque a cena lhe resultava
inimaginável? Entretanto, lorde Paget
tinha morrido porque alguém disparou
uma bala direto em seu coração.
Tentou imaginá-la com uma pistola na
mão e fechou os olhos um instante,
horrorizado. Estava louco? Ela o tinha
enfeitiçado? Não achava. É claro que
não. Assim devia estar louco.
—Sim, —respondeu com um
suspiro —Quero ser seu amigo.
—A alta sociedade em pleno
acreditará que está me cortejando —
disse ela —Suas asas ficarão sujas.
Depois te dará conta de que o
rechaçam. Ou de que se converteu em
um bobo. Todo mundo acreditará que
o enganei. Tomarão por um idiota.
Acreditarão que minha beleza o
cegou. Porque sou bonita. Não é um
alarde vaidoso. Sei como me olham os
outros. As mulheres o fazem com
inveja e os homens, com admiração e
desejo. As mulheres lhe darão as
costas, desiludidas e aborrecidas. Os
homens lhe olharão com inveja e
rancor.
—Não posso viver de acordo
com o que outros esperam de mim. —
replicou —Devo viver minha vida de
acordo com meus princípios. Suponho
que houve um motivo para que nos
fixássemos um no outro em Hyde
Park faz uns dias. Além de estar
procurando um protetor e de eu ser
um admirador da beleza... Recorde
que estava coberta com um denso véu.
Poderia ter se fixado em qualquer
outro. Eu poderia ter me fixado em
qualquer outra. Mas nos vimos. E
houve um motivo para que nos
voltássemos a encontrar no dia
seguinte, no baile de Meg. E não foi
só para que pudéssemos ter uma
transa e nos separar com palavras
amargas pouco depois. Acredito nos
motivos. E nas consequências.
—Está me dizendo que foi o
destino? —perguntou ela—Que
estávamos destinados a nos apaixonar
e talvez a nos casar e a viver felizes
para sempre?
—O destino é decidido por
nós mesmos. —respondeu —Mas
algumas coisas acontecem por um
motivo em concreto. Tenho muita
certeza. Conhecemo-nos por um
motivo. Podemos tentar afundar
nele... Ou não. O destino não
determina as consequências.
—Só os motivos. —
acrescentou ela.
—Sim. —concordou
Stephen —nisso acredito. Não sou um
filósofo. Vamos começar de novo,
Cassandra. Vamos nos dar a
oportunidade de sermos amigos ao
menos. Deixe-me a conhecer.
Conheça a mim. Talvez valha a pena
me conhecer.
—Ou talvez não. —replicou
ela.
—Ou talvez não.
Ouviu-a suspirar e quando se
virou para olhá-la se deu conta de que
Cassandra tinha deixado de fingir.
Parecia vulnerável... E isso lhe
outorgava um encanto irresistível.
Uma assassina? Impossível.
Mas claro, como se parecia um
assassino?
—Deveria ter sabido que me
causaria problemas assim que o vi.
Entretanto, a quem descartei a
primeira vista por acha-lo
potencialmente perigoso foi a seu
amigo. Não me achava capaz de
controla-lo. Refiro-me ao que parece
um demônio. Ao senhor Huxtable.
—A Con? —perguntou—. É
meu primo. E não um demônio.
—Pareceu-me que os anjos
fossem uma aposta segura. —
continuou ela —E por isso o escolhi.
—Não sou um anjo,
Cassandra.
—Ah, mas sim que o é. —o
contradisse —Aí está o problema.
De repente, lhe sorriu, e por
um momento vislumbrou um brilho
nesses olhos verdes que o levou a
pensar que ela ia devolver lhe o
sorriso. Mas não o fez.
—Permita-me vir vê-la
amanhã de tarde, —lhe disse —ou
esta tarde, melhor dizendo. Uma visita
formal. Virei vê-la e a sua antiga
preceptora. Iria se importar de me
recordar seu nome?
—Alice Haytor.
—Deixe que venha vê-las.
—pediu.
Cassandra começou a
balançar o pé de novo.
—Ela sabe.
—E sem dúvida alguma
acredita que sou o demônio
personificado. —indicou —Não quer
ver se sou capaz de enrolá-la até que
mude de opinião?
—Também sabe que tudo é
minha culpa, que eu o seduzi. —
acrescentou Cassandra.
—É impossível que saiba,
porque não é verdade. —a corrigiu.
—Demonstrou muito interesse em
mim. Não me seduziu. Eu quis que o
interesse fosse mútuo. É formosa. E
desejável. Mereço a reprovação da
senhorita Haytor. Tomei as decisões
equivocadas com respeito a você e à
atração que sentia por você. Permita-
me tentar ganhar seu respeito.
Cassandra voltou a suspirar.
—Não irá a menos que saia
com o que quer, verdade? —disse-lhe.
Olharam-se nos olhos.
—Sim. Se me pedir que vá e
que não volte a vê-la, também farei
isso. —afirmou —Se a verdadeira
lady Paget me pede isso, é claro. Quer
que vá, Cassandra? Quer que saia de
sua vida para sempre?
Olhou-o um bom tempo em
silêncio e depois fechou os olhos.
—Sim. —respondeu ao cabo
de um momento —Mas sou incapaz
de dizer isso com os olhos abertos.
Stephen, por que o conheci?
—Não sei. —respondeu —
Quer que descubramos juntos?
—Irá se arrepender. —lhe
assegurou.
—É possível. —concordou
Stephen.
—Eu já me arrependo. —
disse ela.
—Amanhã de tarde? —
perguntou—lhe.
—Muito bem! —Abriu os
olhos e voltou a olhá-lo —Venha se
quiser.
Arqueou as sobrancelhas ao
escutá-la.
—Venha. —repetiu ela —E
direi a Mary que não coloque uma
aranha em sua xícara de chá.
O comentário lhe arrancou
um sorriso.
—E agora vá — ordenou ela
—Preciso dormir um pouco, embora
não lhe faça falta.
Atravessou o dormitório para
colocar a capa e pegar seu chapéu.
Ao se voltar, viu que Cassandra estava
em pé diante da poltrona.
—Boa noite, Cassandra —
lhe disse.
—Boa noite, Stephen.
Retornou para casa andando e
passou todo o trajeto se perguntando
no que tinha se metido. Sua vida
parecia estar de pernas para o ar há
dois dias.
De verdade estavam destinados
a se encontrar? Por quê? Não lhe
ocorria outro motivo salvo evitar que
Cassandra e suas amigas morressem
de fome.
Teriam que descobrir isso,
juntos. Tem certos acontecimentos na
vida, certos momentos, que se
produzem devido a uma mão invisível,
ou isso achava. Não obstante, essa
mão não tinha o poder para
determinar a resposta de cada pessoa.
Os indivíduos implicados tinham a
capacidade de reagir ante os
acontecimentos ou momentos. Ou de
não reagir.

Esteve chovendo durante toda


a manhã, mas no meio da tarde
descampou e o céu ficou límpido. O
sol brilhava e as ruas e as calçadas se
secaram.
—Faz um dia perfeito para
dar um passeio —instou Alice, depois
de se aproximar da janela da sala para
comprovar com seus próprios olhos
que estava certa.
Estamos há dias dizendo que
vamos passear pelo Green Park,
Cassie. Seguro que não é tão
concorrido como Hyde Park.
—Quando chegou em casa
para almoçar —lhe recordou
Cassandra—disse que lhe cairiam os
pés em pedaços se tinha que dar um
só passo mais.
Alice tinha passado toda a
manhã tentando achar alguma agência
que não tivesse visitado no dia anterior
e percorrendo aquelas nas quais já
tinha deixado seu nome com a
esperança de que tivesse surgido algo
da noite para o dia.
Fazia esse comentário sobre
seus pés antes de Cassandra por fim
se armar de coragem para mencionar
de passagem a visita do conde do
Merton nessa tarde. Uma visita formal
para tomar o chá com elas, não para
tratar de seus assuntos privados.
—É incrível o que um bom
almoço, uma xícara de chá e uma
hora de repouso podem fazer para
recuperar a energia —replicou Alice à
ligeira—. Estou pronta para sair de
novo... E esta tarde nem sequer me
molharei.
—Disse que estaria aqui
quando viesse para me ver, Alice —
indicou —Seria uma descortesia de
minha parte não estar em casa depois
de tudo, e você me ensinou a não ser
mal educada. Além disso...
—Além disso, o que? —
Alice estava zangada. Voltou-se da
janela e a olhou com o cenho
franzido.
Cassandra não tinha nada
sobre o regaço, já que de um tempo a
essa parte parecia não poder se
concentrar na costura. Não tinha nada
ao que olhar salvo a sua antiga
preceptora.
—Acredito que nossa...
relação acabou, Allie —confessou —
De fato, acabou. O fato lhe é
desagradável. Parece-me que o
principal motivo é que Belinda vive
aqui. Disse algo sobre manchar sua
inocência. Embora não se trata só
disso. Penso que é um anjo de
verdade. Fiz que um anjo se desvie do
bom caminho. Sente-se culpado. Quer
reparar o dano. Quer começar de
novo, quer que sejamos amigos.
Escutou algo mais absurdo na vida?
Mas também quer seguir me pagando,
e não sei como vou poder rechaça-lo,
embora deveria fazer isso, é claro.
Não posso aceitar um salário generoso
só por ser a amiga de outra pessoa,
não é verdade?
—Vamos dar um passeio, —
insistiu Alice com firmeza —antes que
seja muito tarde. Pegue seu chapéu,
não lhe pare sequer para trocar de
vestido.
Recusou meneando a cabeça e
cravou o olhar nas mãos, que tinha no
regaço. Examinou-se as unhas. Tinha
que as cortar se colocar o vestido de
musselina com o estampado de
florzinhas para a ocasião. Só tinha
roupa bonita, nada mais. Nigel sempre
tinha insistido para que vestisse bem.
—Não quero vê-lo —disse
Alice— e muito menos vê-lo sentado
junto a mim enquanto tomamos o chá.
Não gosto dele, Cassie e não preciso
conhecê-lo em pessoa para saber
disso. Fez mal a você.
—Não, não é verdade. —
Olhou a sua antiga preceptora com
expressão triste —Se alguém sofreu,
foi ele. Ele não me fez mal. Ele é... é
adorável, Allie.
Adorável e espantosamente
inquietante.
Passou toda a manhã, para não
falar do resto da noite desde que ele
partiu, rememorando sua forma de lhe
fazer amor, recordando os desejos e
as sensações que lhe tinha provocado.
Recordando essa dor que não era
dolorosa e que não era outra coisa que
desejo sexual. Tinha admitido. Jamais
tinha experimentado desejo sexual.
Nem sequer sabia que as mulheres
pudessem sentir isso.
E também passou toda a
manhã rememorando a conversa que
mantiveram depois.
“Suponho que exista um
motivo pelo qual nos fixamos um no
outro em Hyde Park há uns dias... E
houve um motivo para que
voltássemos a nos encontrar no dia
seguinte, no baile de Meg. Acredito
nos motivos. E nas consequências.”

Se havia um motivo para tudo,


por que tinha conhecido Nigel?
“Algumas coisas acontecem
por um motivo em concreto. Tenho
muita certeza. Conhecemo-nos por
um motivo. Podemos tentar afundar
nele... Ou não. O destino não
determina as consequências.”
Stephen tinha encontrado a
solução para que o destino e o livre
arbítrio pudessem coexistir. Que
inteligente!
"Vamos começar de novo,
Cassandra. Vamos nos dar a
oportunidade de sermos amigos, ao
menos. Deixe-me que te conheça.
Conheça a mim. Talvez valha a pena
me conhecer.”
Já não a conhecia o bastante?
Havia-lhe dito, em duas ocasiões, que
tinha matado Nigel. Que mais
precisava saber sobre uma pessoa que
admitia tal coisa?
"Talvez valha a pena me
conhecer."
—Talvez valha a pena
conhece-lo —disse a Alice.
—Depois do que lhe fez? —
Alice se dirigiu de novo ao seu assento
e se deixou cair nele —E não volte a
me dizer que você o seduziu, Cassie.
Tinha motivos para fazer isso, embora
bem saiba Deus que me opus com
unhas e dentes desde o começo. O
conde do Merton carece de desculpas
por haver se deixado seduzir, salvo
sua condição de homem. E se um
homem necessita de uma mulher tão
desesperadamente, por que não se
casa? Para isso existem as esposas!
Olhou a sua antiga preceptora
e pela primeira vez em todo o dia
sorriu com bom humor.
—Bom... —Alice se
ruborizou—. Essa é uma das coisas
para as quais existem. Não me
interprete mal, Cassie. As mulheres
servem para muito mais que isso, sabe
muito bem que lhe tentei inculcar isso
desde que era pequena. Sigo
acreditando que deveríamos ir a Green
Park. Talvez chova amanhã. E pelo
que saiba, sou eu quem deveria achar
uma fonte de ganhos. E o farei.
Comprei um jornal esta manhã. Foi
um esbanjamento de minha parte, mas
havia vários empregos anunciados que
penso me inscrever. Alguns são
inadequados, certo, mas há
possibilidades. É impossível que a vida
útil de uma mulher acabe os quarenta
e dois anos. Nego-me a acreditar
nisso.
Reconheceu suas palavras com
um sorriso e ao olhar a sua antiga
preceptora nos olhos descobriu que os
tinha cheios de lágrimas.
—Cassie, sou eu quem
deveria cuidar de todas nós. —insistiu
Alice —Sabe tão bem como eu.
—Você sempre cuidou de
mim, Allie. —lhe recordou —Sempre.
—É importante para você
que receba o conde Merton? —
perguntou Alice enquanto enxugava as
lágrimas com um lenço.
—Sim. E me pediu
especificamente que estivesse
presente, como acompanhante.
Alice reagiu com um som
muito desagradável, quase um bufo.
Já era muito tarde para saírem
a dar um passeio, embora quisessem
fazer isso. Uma carruagem se deteve
diante da porta. Cassandra o escutou
perfeitamente.
Sua visita tinha chegado.
CAPÍTULO 12

Stephen foi ver Katherine, lady


Montford, a última hora da manhã,
depois de abandonar a Câmara dos
Lordes. Sua intenção era a de lhe
pedir que o acompanhasse para visitar
Cassandra. Ao chegar, descobriu que
Meg estava com ela, já que tinha
levado Toby e Sally para que
brincassem com Hal, de modo que
acabou pedindo as duas.
—Deveria lhe ter perguntado
ao vê-lo que tal foi o passeio de ontem
pelo parque —disse Meg —Propôs-se
a conseguir que lady Paget seja a
sensação da temporada, não é? É uma
gentileza de sua parte. A verdade é
que é uma mulher difícil de tratar, não
lhe parece? Sempre tem uma
expressão que sugere certo... Não sei,
certo desprezo pela gente que a
rodeia, como se se acreditasse
superior. Sei que possivelmente só
seja sua forma de se proteger frente
ao que deve ser uma situação muito
complicada, mas de qualquer maneira
sua atitude não convida a fazer
amizade com ela.
—Disse que iria vê-la esta
tarde, mas não estaria bem visto que
aparecesse só, não é verdade? —
comentou.
—O que menos lhe convém
é suscitar novos rumores, certamente.
—concordou Katherine —Meg, tem
razão no que diz sobre sua atitude,
mas suponho que se estivesse em seu
lugar, sozinha em Londres, e todo
mundo acreditasse que assassinei meu
marido com um machado, me
comportaria da mesma maneira.
Desde que tivesse a coragem de
aparecer em público, claro. Nesse
aspecto é admirável. Stephen, o
acompanharei encantada. Hal dormirá
uma boa sesta depois da manhã tão
ocupada que teve e Jasper vai às
corridas.
—Duncan também. —
acrescentou Meg —De fato, vão
juntos. Eu também lhes
acompanharei.
Tinha sido mais fácil do que
imaginava, pensou Stephen. Não tinha
tido que enfrentar nenhuma pergunta
incômoda. Suas irmãs não
perceberam que agia porque lhe
remoía a consciência.
De modo que essa tarde se
apresentou na casa da Cassandra em
Portman Street de um modo
irreprovável. Chegou sem se esconder,
para que qualquer vizinho o visse se
assim o desejasse, e ajudou a
desembarcar da carruagem às duas
respeitáveis damas que o
acompanhavam enquanto o lacaio que
viajava na boleia com o cocheiro, batia
na porta.
Ao cabo de uns minutos todos
estavam sentados na sala de estar,
conversando educadamente com a
Cassandra, que se tinha encarregado
de servir o chá, e com a senhorita
Haytor, a quem Stephen reconheceu
da tarde de Hyde Park. Embora sua
atitude fosse muito tensa e seu gesto,
sério, não era uma mulher feia.
Era compreensível que seu
gesto fosse sério. Tomara não
perdesse a aposta que estava fazendo.
Tomara a senhorita Haytor não
fizesse algum comentário que
desvelasse a verdadeira relação que
mantinha com a Cassandra diante de
suas irmãs. Entretanto, duvidava muito
que a mulher se atrevesse a fazer algo
assim. Saltava à vista que era uma
dama completa. De modo que se
dispôs a ganha-la com seu encanto e
iniciou uma conversa com ela
enquanto as outras três damas
pressentes conversavam entre si.
Não obstante, esteve muito
pendente de Cassandra, que realizou
os trabalhos de anfitriã com facilidade,
embora sua expressão se mantivesse
desdenhosa a todo tempo, conforme
Meg tinha falado. Teria gostado que
se relaxasse e se mostrasse tal como
era em realidade. Porque queria que
granjeasse a simpatia de suas irmãs,
como se estivesse a cortejando de
verdade.
Tinha escolhido um vestido de
musselina estampado cor marrom
rosácea que em qualquer outra mulher
pareceria passado de moda, mas que
lhe assentava maravilhosamente,
porque acentuava sua figura e
ressaltava o brilhante tom de seu
cabelo. Outorgava-lhe um aspecto
muito elegante. O aspecto de uma
dama. O aspecto de uma mulher que
não tinha conhecido a sordidez.
E nesse momento aconteceu
algo que aliviou a tensão do ambiente,
embora a princípio mortificou um
pouco a Cassandra.
A porta da saleta de estar, que
parecia fechada se abriu de repente e
o cão lanzudo de aspecto desgrenhado
entrou coxeando e com a língua fora.
—Ai, vá Por Deus! —
Exclamou Cassandra, que ficou em pé
ao ver o animal —Outra vez ficou
aberta a porta. Sinto muito. Levarei-o
embora.
—Eu levo, Cassie —
ofereceu-se a senhorita Haytor,
ficando também em pé.
—Mas não precisa! —
Protestou Kate —Por favor, deixe que
fique. Se lhe permite estar na sala,
claro.
—Assim que tem
oportunidade, Roger se converte na
sombra da Cassandra —indicou a
senhorita Haytor enquanto voltava a
sentar. —Acha que é o dono da casa,
como se fosse o senhor do castelo.
Coisa que é certa, na verdade. —E
sorriu pela primeira vez em toda a
tarde. Inclusive riu entre dentes ao ver
que Kate lhe devolvia o sorriso.
Cassandra voltou a se sentar
também e esboçou um leve sorriso.
Stephen, que a estava observando, viu
o olhar de genuíno afeto que aparecia
em seu rosto e sentiu uma pontada no
coração. Um sentimento tão fugaz que
não lhe deu tempo de reconhece-lo
nem de compreender do que se
tratava.
—Roger, —disse ele quando
o cão passou a seu lado, e estendeu
uma mão para lhe acariciar sua única
orelha. —Tem você um nome muito
diferente, meu senhor. —O cão se
deteve, apoiou a cabeça em seu
regaço e o olhou com um olho
choroso. Era cego do outro, a julgar
pela capa esbranquiçada que o cobria
—. Ou é um cão muito desgraçado
que não para de se colocar em
confusões das quais sai com uma nova
ferida. —seguiu —ou é um cão muito
afortunado que sobreviveu a um
terrível acidente.
—O segundo. —comentou
Cassandra.
—Que espantoso, lady
Paget! —Exclamou Meg —Faz
relativamente pouco tempo que
convivo com mascotes. Meu filho
maior decidiu que não podia ir aos
estábulos cada vez que queria ver sua
ninhada de cãozinhos e os meteu em
casa. Como é normal, a mãe os
acompanhou, embora não estivesse
adestrada para conviver conosco. Mas
entendo muito bem quão rápido os
animais se convertem em membros da
família e comprovei que em certo
modo os quer tanto como as pessoas.
—Acredito que parte de mim
teria morrido se Roger não se
recuperasse das feridas, lady
Sheringford, —confessou Cassandra
com os olhos cravados no animal —
mas sobreviveu. Neguei-me a deixa-lo
morrer. —Desviou o olhar do cão
para olhá-lo a ele antes de afastar a
deles por completo.
Ninguém perguntou sobre o
acidente, e ela não explicou os
pormenores do mesmo.
—Vai acabar cheio de pelos,
lorde Merton —lhe advertiu a
senhorita Haytor.
Ele sorriu.
—Meu criado de quarto me
dará um bom sermão, não me cabe
dúvida, —replicou —mas se
encarregará de escovar a roupa até
que não fique nenhum pelo. De vez
em quando tenho que lhe dar motivos
para que me gane, porque dessa
forma sente que seu trabalho é
necessário e desfruta realizando—o.
A dama esteve a ponto de lhe
sorrir, mas ainda não o tinha perdoado
de tudo. Não tinha muito claro que
algum dia chegasse perdoar. Como
ninguém se levantou para fechar outra
vez a porta, nessa ocasião com o
fecho, ao cabo de um momento
apareceu uma cabecinha de cabelo
alvoroçado e faces rosadas. A menina
tinha o mesmo aspecto que no dia
anterior, quando Stephen a viu atrás
das saias da criada. Ao ver o cão, a
pequena entrou na sala. Levava um
vestido rosa descolorido, embora
estivesse limpo e sem uma só ruga.
—Cãozinho. — disse com
uma gargalhada enquanto se
aproximava.
Roger, que parecia encantado
com sua posição já que lhe estavam
acariciando a orelha e lhe coçando a
cabeça, soltou uma espécie de
grunhido em resposta e abriu o olho
bom quando a menina enterrou os
dedos em seu peludo lombo e se
inclinou para lhe dar um beijo.
—Ai, Deus! —exclamou
Cassandra outra vez envergonhada —
Sinto muito. Levarei—a...
Entretanto, a menina pareceu
perceber nesse momento que Roger
estava acompanhado por um grupo de
pessoas, uma das quais era uma dama
que levava um chapéu
adornado com flores. Ao vê-la,
se afastou do cão e indicou com um
dedo o chapéu de Meg.
—Bonito. — disse.
—Ah, obrigada! —
Exclamou Meg —Seus cachos
também são muito bonitos. Poderia
me dar um. Acontece que levo uma
tesoura na bolsa. Poderia cortar um,
leva-lo para casa e coloca-lo na
cabeça, não? Acha que ficaria bonita?
A menina se pôs a rir,
encantada.
—Nãoooo! —Gritou, morta
de risada. —Ficaria feia.
—Suponho que tem razão
—replicou Meg com um suspiro. —
Será melhor que o deixe em sua
cabeça, onde está tão bonitos.
A menina levantou um pé.
—Tenho sapatos novos. —
disse.
Meg os olhou.
—São lindos. —lhe
assegurou.
—Os outros eram pequenos,
—seguiu a menina—porque já sou
uma menina grande.
—Certamente que sim. —lhe
disse Meg —Certamente os velhos
eram muito pequenos. Quer que a
pegue um pouquinho?
Cassandra voltou a se sentar
e enquanto fazia isso trocou um olhar
com a senhorita Haytor. Entretanto,
não havia motivos para que se
inquietassem. Embora fosse
reprovável receber convidados de
linhagem em companhia de um cão
desgrenhado e da filha de uma criada,
era evidente que ambos tinham
cativado tais convidados. Stephen
sabia que suas irmãs estavam
encantadas. Assim como ele.
Compreendeu que essa casa era um
lar, onde as crianças e os cães podiam
se mover a seu desejo. Era um lar. No
dia anterior o tinha intuído da porta.
Nesse momento acabava de confirmá-
lo.
Cassandra não vivia imersa em
uma perpétua escuridão. Naquele
instante estava olhando a menina com
uma expressão muito carinhosa.
—Eu tenho um menino, mas
é maior que você, —disse Meg a
menina, uma vez que a teve sentada
no regaço. —E uma menina menor
que você. E outro menino que é um
bebê pequenino.
—Como se chamam? —quis
saber a menina.
—Tobias, embora o
chamamos de Toby. —respondeu
Meg —Sarah, embora a chamamos de
Sally. E Alexander, que é Alex. Como
te chama você?
—Belinda. —respondeu a
pequena —Eu também tenho outro
nome?
—Deixe-me ver —disse
Meg, exagerando uma expressão
pensativa —Belle? Tenho uma
sobrinha que se chama Belle, de
Isabelle. Ou Lindy? Linda? Lin?
Nenhum é tão bonito como Belinda,
não lhe parece? Acredito que seu
nome é perfeito assim como é.
Roger se tinha deitado no
chão, sobre os pés de Stephen. Kate
estava conversando com a senhorita
Haytor. E estava sorrindo a
Cassandra, que mordia o lábio e lhe
devolvia o olhar com um sutil brilho
risonho nos olhos.
Alegrou-se de ter ido. Alegrou-
se de que Meg e Kate o tivessem
acompanhado. E se alegrou de que à
porta da sala estivesse aberta. Esse
momento era muito melhor que o da
noite anterior, apesar do prazer
sensual que lhe tinha reportado tal
encontro. Esse era um novo começo,
um bom começo. Cassandra estava
vendo o melhor de sua família e ele
estava vendo o melhor da sua.
Um novo começo...
De verdade era isso o que
queria? Um começo de que?
Entretanto, antes que pudesse
se aprofundar nessa questão ou
retomar a conversa com os outros,
alguém bateu na porta, que se abriu
para dar passagem à espantada cara
da criada.
—Ai, milady! —exclamou
—Sinto muitíssimo. Estava recolhendo
a roupa estendida e não me dei conta
de que Belinda e Roger entravam em
casa. Pensava que estavam na
cozinha, mas quando fui busca-los,
não os encontrei por nenhum lugar.
Belinda! —Sussurrou com certa
urgência —Vêm aqui! E traga o cão.
Sinto muito, milady.
—Acredito que os dois
estiveram atendendo muito bem a
nossos convidados, Mary. —
respondeu Cassandra cuja expressão
por fim era abertamente risonha —E
Belinda lhes mostrou seus sapatos
novos.
—Belinda e eu nos estamos
fazendo amigas, Mary —atravessou
Meg —Espero que não a repreenda
por ter vindo em busca do cão. É uma
riqueza, e me encantou conhece-la.
—Roger está me
esquentando os pés —acrescentou
Stephen, sorrindo à criada.
—Deve estar muito
orgulhosa de sua filha —disse Kate.
Belinda se desceu do regaço
de Meg e se agachou diante de Roger
para abraça-lo. O cão ficou em pé e
saiu coxeando da estadia diante da
menina. A criada deu um bom puxão
na porta a fim de que o fecho
encaixasse.
—Ah que cena mais
vergonhosa —indicou a senhorita
Haytor com uma breve gargalhada —
Suponho que não estarão
acostumadas a tratar com os filhos da
criadagem nem com os cães
domésticos.
Meg soltou uma gargalhada.
—Não sabe quão equivocada
está! —Exclamou, depois do que
passou a lhe resumir os anos que
tinham vivido em Throckbridge. —
Quando se cresce em um povoado
pequeno como Throckbridge, a
pessoa se acostuma a se mesclar com
todo mundo, seja qual for sua classe
social. É uma forma muito sadia de
crescer.
—Às vezes sinto falta
daquela vida. —confessou Kate —
Alguns dias dava aulas às crianças
pequenas da escola. Dançávamos nas
festas do povoado, às quais iam todos
os vizinhos e não só a nobreza. Meg
tem razão. Foi uma forma muito sadia
de crescer. Isso sim, não nos
queixamos do golpe de boa sorte que
tivemos quando Stephen herdou o
título de conde Merton, seria
estranho.
—Eu não tenho nenhuma
queixa. —replicou ele —O título
implica muitos privilégios. E também
muitas responsabilidades e muitas
oportunidades para fazer coisas boas.
Enquanto falava olhou à
senhorita Haytor, consciente de que
talvez não tivesse acertado com o
comentário já que a dama podia estar
pensando, e com toda a razão, que o
título também lhe dava muitas
oportunidades para fazer coisas más.
Entretanto, olhou-a com um sorriso e
teve a impressão de que a expressão
séria do princípio se suavizou ao longo
da meia hora que levavam na saleta.
Além disso, como dizia o
ditado popular, "Roma não se fez em
um dia".
Tinha chegado a hora de
partir. Viu que Meg se preparava para
levantar. Entretanto, antes que
pudesse levantar, bateram na porta
principal e todos voltaram a cabeça
em direção à porta da sala, como se
houvesse uma janela através da qual
pudessem ver quem acabava de
chegar. A porta se abriu instantes
depois e a criada apareceu de novo.
—Milady, o senhor Golding.
—anunciou —Quer ver a senhorita
Haytor.
A aludida ficou em pé de um
salto com as faces acesas.
—Mary! Deveria me haver
dito simplesmente que saísse e eu...
Muito tarde. Um cavalheiro
entrou na estadia deixando atrás a
Mary, e sua expressão se tornou
envergonhada ao ver que tinham
convidados. Deteve-se abruptamente e
os saudou com uma reverência.
Cassandra ficou em pé para ir
recebe-lo sem mais demora, com as
mãos estendidas e um sorriso de
orelha a orelha.
—Senhor Golding, —disse
—passou muito tempo, mas acredito
que o teria reconhecido em qualquer
parte.
Era um homem miúdo, magro
e de porte rígido, de meia idade e de
aspecto bastante anódino. Tinha umas
entradas consideráveis e estava a
ponto de perder o pouco cabelo que
restava no alto da cabeça, embora o
conservava nas têmporas e no resto da
cabeça, prateado. Levava uns óculos
de aros metálicos e dourados que lhe
tinham escorrido pelo nariz.
—É a pequena Cassie? —
Perguntou ao mesmo tempo em que a
pegava pelas mãos, tão contente de
vê-la como ela —Não a teria
reconhecido , embora talvez teria pelo
cabelo. Mas nada de intimidade, agora
é lady Paget, verdade? Disse-me isso
ontem a senhorita Haytor, quando nos
encontramos. Sinto muito a perda de
seu marido.
—Obrigada. —replicou ela,
que se voltou para realizar as
apresentações com essa expressão
alegre e risonha que lhe outorgava
uma incrível beleza.
Explicou-lhes que o senhor
Golding foi o tutor de seu irmão
durante um breve período quando
eram crianças, embora na atualidade
era o secretário de um ministro.
—Vim apresentar meus
respeitos à senhorita Haytor —disse o
senhor Golding depois de saudar a
todos —Não queria interrompê-la
nem a seus convidados, lady Paget.
—Sente-se de qualquer
forma, —convidou-o Cassandra —e
tome uma xícara de chá.
Não obstante, negou-se a fazê-
lo, claramente intimidado pela
companhia.
—Só vim para convidar à
senhorita Haytor a dar um passeio até
o Richmond Park amanhã, me
ocorreu que podíamos tomar o chá ao
ar livre. —E olhou à senhorita Haytor
com manifesto desconforto.
—Os dois a sós? —
perguntou a aludida, com as faces
ainda acesas e os olhos brilhantes.
Era uma mulher formosa,
pensou Stephen de repente. Em sua
juventude devia ser muito bonita.
—Suponho que não seria
muito bem visto, —comentou o
senhor Golding, que começou a virar o
chapéu em suas mãos como se
estivesse desejando que o engolisse a
terra. —O caso é que não sei quem
poderia nos acompanhar. Suponho
que...
Stephen chegou à conclusão
de que todo começo necessitava de
uma intervenção para chegar ao final,
já fora no caso de um florescente
romance entre duas pessoas de idade
que no passado coincidiram em seus
postos de preceptora e tutor em uma
mesma família, ou em sua nova
relação com a Cassandra. Uma
relação amistosa que nenhum dos dois
sabia onde podia acabar. Mas estava
disposto a descobrir.
—Se não lhe parecer mal, —
interveio, dirigindo-se ao senhor
Golding —e se lady Paget não tiver
outros planos para amanhã de tarde,
poderíamos nos unir a sua excursão.
Dessa forma as damas se fariam de
acompanhantes.
—Milorde, isso seria uma
gentileza de sua parte, mas eu não
gostaria de obriga-lo a nada —
replicou o interessado.
—Não é nenhuma
obrigação, —lhe assegurou ele —
Tomara me tivesse ocorrido em
primeiro lugar. Agora só necessitamos
que as damas aceitem nos
acompanhar. —Olhou com expressão
interrogante à senhorita Haytor e a
Cassandra—. Deveria lhe haver
perguntado antes a você se lhe
importar que me una ao grupo,
senhorita Haytor. Importa—lhe? —
perguntou—lhe, fazendo uso de seu
sorriso mais encantador.
Era evidente que a dama ardia
em desejos de aceitar.
—Tem toda a razão, lorde
Merton —respondeu com certa
secura. —Se Cassie me acompanhar,
poderei exercer como sua
acompanhante e me assegurar de que
não sofre nenhum dano. Senhor
Golding, estarei encantada de
acompanha-lo.
E todos olharam a Cassandra
com gesto interrogante.
—Parece que amanhã vou
tomar chá ao ar livre —disse ela, sem
olhar sequer ao Stephen.
—Esplêndido —replicou o
senhor Golding esfregando as mãos,
embora ainda parecesse muito
envergonhado. —Recolherei—as
amanhã às duas em um ponto em uma
carruagem alugada.
—Senhor Golding, já que
você vai se encarregar do lanche,
permitiria que me encarregasse da
carruagem? —ofereceu-lhe Stephen.
—Muito amável de sua parte
—respondeu o aludido, depois se
despediu com uma reverência sem
mais demora.
—É hora de que todos
partamos. —disse Meg ao tempo que
ficava em pé —Obrigada pelo chá e
por sua amável hospitalidade, lady
Paget. Foi um prazer conhece-la,
senhorita Haytor.
—O mesmo digo. —
acrescentou Kate —Teria me
encantado compartilhar algumas
anedotas de nossas experiências no
ensino, mas não nos deu tempo,
verdade? Talvez da próxima vez.
—Será um prazer passar a
recolhê-las amanhã, senhoras —disse
Stephen a modo de despedida
enquanto o fazia uma reverência e
depois seguiu a suas irmãs e a
Cassandra para o vestíbulo.
Deixou que Meg e Kate
saíssem da casa em direção à
carruagem e se atrasou uns instantes
para se despedir dela.
—Sempre tive fraqueza
pelos almoços ao ar livre —comentou
—O ar fresco. Comida e bebida.
Ervas, árvores e flores. E uma alegre
companhia. Uma combinação
poderosa.
—Pode ser que a companhia
não seja muito alegre. —lhe advertiu
ela.
Suas palavras lhe arrancaram
uma gargalhada.
—Estou certo de que o
senhor Golding me será simpático. —
disse.
Viu-a esboçar um sorriso de
desdém, consciente de que tinha
interpretado mal sua advertência de
propósito.
—Referia-me a mim mesma
— explicou. —Advirto-o que não
gostaria que fosse, esta nova... relação
da qual falou ontem à noite está
condenada ao fracasso. Stephen, não
podemos ser amigos depois de ter sido
protetor e amante.
—Está dizendo que os
amantes não podem ser amigos? —
perguntou-lhe.
Ela não respondeu.
—Preciso reparar o engano
que cometi, Cass. —confessou —Em
vez de trazer alegria a sua vida, fiz
justo o contrario. Deixe-me reparar
esse engano.
—Não quero...
—Todos queremos um
pouco de alegria. —a interrompeu —
Necessitamos dela. E de verdade que
existe. Prometo que existe.
Cassandra se limitou a olhá-lo
com uma expressão luminosa nesses
olhos verdes.
—Diga que estará desejando
que chegue a hora de partir para o
Richmond Park —lhe pediu.
—Muito bem! —disse ela—.
Se assim se sentir melhor, direi. Esta
noite não pregarei olho por culpa da
emoção. Passarei a noite inteira
rezando para que faça bom tempo e
possamos tomar o chá ao ar livre.
Stephen sorriu e lhe acariciou
o queixo com um dedo antes de se
apressar para o exterior. Uma vez na
carruagem, se sentou frente a suas
irmãs, de costas à boleia.
—Ai, Stephen! —Exclamou
Kate quando a porta esteve fechada e
ficaram em marcha —Esta manhã não
o entendia. Ou talvez não quisesse
entendê-lo. Nenhum de nós vai ter um
caminho fácil para o matrimônio e a
felicidade?
—Mas Kate, foi um caminho
difícil o que nos levou à felicidade —
indicou Meg em voz baixa. —Talvez
não se consiga, se o caminho é fácil.
Talvez seja melhor que desejemos um
caminho difícil a Stephen.
Entretanto, disse-o sem sorrir e
sem parecer especialmente contente.
Stephen nem sequer perguntou a que
se referiam. Estava muito claro.
Embora se equivocassem.
Só estava tratando de emendar
um engano.
Só estava tratando de levar um
pouco de alegria à vida da Cassandra
para pôr fim a seus remorsos de
consciência.
Fizeram o resto do trajeto em
silêncio.
CAPÍTULO 13

Cassandra passou a manhã


seguinte fazendo compras em Oxford
Street. Entretanto, as compras não
eram para ela. Tinha pedido
permissão a Mary para levar Belinda,
já que queria comprar uma touca para
o verão a fim de substituir a velha
boina que usava, que pertenceu a um
cavalariço. Não se ofereceu para
comprar mais roupa à menina. Com
Mary devia ter muito cuidado. Era
uma mulher orgulhosa. E também
protegia com zelo Belinda, a quem
adorava.
Cumpriu seu objetivo na
primeira loja. Belinda saiu com uma
linda touca de algodão azul de aba
ligeiramente engomada e com um
babado na nuca que lhe protegeria o
pescoço do sol. Amarrava-se sob o
queixo com fitas amarelas, unidas à
touca com ramalhetes de diminutas
folhagens e acácias de tecido.
O esplendor da touca deixou
boquiaberta a menina, que se voltou
para ver seu reflexo na vitrine quando
saíram da loja.
Caminharam pela rua de mãos
dadas e se detiveram frente a uma loja
de brinquedos. Belinda não demorou
para grudar o nariz na vitrine
enquanto contemplava os brinquedos
em silêncio. Não demonstrou a menor
emoção, nem tampouco parecia
esperar que algum dos objetos
exibidos pudesse ser seu algum dia.
Não exigiu nada. Mas estava claro que
se esquecera do resto do mundo.
Cassandra a observou com
carinho. O simples fato de ver algo
assim possivelmente bastasse para
alegrar o dia à menina. Era uma
criatura fácil de contentar.
Em dado momento percebeu
que em vez de observar todos os
brinquedos, tinha a vista cravada em
um em particular. Não era o maior
nem o mais ostentoso. Mas justamente
o contrário. Era uma boneca de
porcelana que só levava uma simples
camisola de algodão e que descansava
sobre uma mantilha de lã branca.
Depois de olhá-la durante um
bom tempo, Belinda levantou uma
mão e se despediu dela. Cassandra
piscou para não chorar. Que ela
soubesse, Belinda não tinha
brinquedos.
—Acredito que esse bebê
necessita de uma mamãe. —disse.
—Um bebê. —repetiu
Belinda enquanto colocava a mão na
vitrine.
—Você gostaria de pegá-lo
nos braços? —perguntou-lhe.
A menina voltou a cabeça e a
olhou com esses olhos tão grandes e
tão sérios. Assentiu em silêncio.
—Então vamos. — disse ela,
tomando-a pela mão de novo para
entrar na loja de brinquedos.
Era um esbanjamento
absurdo. Já não era a amante de lorde
Merton, não é verdade? E já lhe tinha
dado a touca. Mas havia mais
necessidades na vida além da comida,
a roupa e um teto sob o qual dormir.
O amor também era necessário. E se
o amor lhe custava umas moedas essa
manhã em concreto, que assim fosse.
O gasto valeu a pena quando a
funcionária se inclinou para a vitrine e,
depois de pegar a boneca, a deixou
nos braços da Belinda.
Não teria estranhado ver que
lhe saíam os olhos das órbitas. A
menina contemplou a boneca com a
boca entreaberta e a segurou com
rigidez uns instantes, até que começou
a balança-la com suavidade.
—Gostaria de levá-la para
casa e ser sua mamãe? —perguntou
Cassandra.
Belinda voltou a olhá-la e a
assentir com a cabeça. Atrás delas
havia outra menina muito bem vestida
que nesse momento exigiu a boneca
dos cachos loiros e não a outra tão
feia que usava o vestido de veludo e o
casaco. Depois disse que necessitava
o carrinho de bebê, porque tinha saído
as rodas do seu. E o saltador, porque
as mangas do que lhe deram de
presente por seu aniversário na
semana anterior eram de um verde
muito feio.
A boneca da Belinda não era
vendida com a roupa, passaram a lhe
informar. Assim comprou a camisola
que tinha posto. E depois, ao ver que
Belinda lhe dava um beijo na fronte e
lhe sussurrava que não passaria frio,
também comprou a mantilha de lã.
Ignorava que os brinquedos
fossem tão caros.
Entretanto, não se arrependeu
do gasto ao sair da loja. Belinda
continuava sem poder falar. Embora
acabou recordando algo dos
insistentes ensinos de sua mãe. Olhou-
a com a boneca firmemente segura
nos braços e disse:
—Obrigada, milady.
Suas palavras de
agradecimento não foram um
comentário educado. Foram sinceras.
—Bom, não podíamos
deixar esse bebê aí sozinho sem uma
mamãe, não é? — disse ela.
—É uma menina. —
declarou Belinda.
—Ah! —Sorriu e ao levantar
a vista se encontrou com os
sorridentes rostos de lady Carling e
lady Sheringford.
—Sabia que era você, lady
Paget! —Exclamou lady Carling —
Disse à Margaret e cruzamos a rua
para nos assegurar. Que menina mais
bonita. É sua?
—Não. —respondeu —É a
filha de minha governanta, cozinheira,
criada... Enfim, de minha tudo.
—Chama-se Belinda —
acrescentou a condessa de
Sheringford— e vejo que leva seus
preciosos sapatos novos. Como vai,
lady Paget? Parece que tem um novo
bebê, Belinda. Posso ver? É uma
menina?
Belinda assentiu com a cabeça
e afastou a mantilha da cara da
boneca.
—Ah, é linda! —Exclamou a
condessa —Parece muito contente e
muito quentinha. Tem nome?
—Beth. —respondeu a
menina.
—Um nome muito bonito. —
comentou lady Sheringford —Beth é o
diminutivo da Elizabeth, sabia? Mas
Elizabeth é muito longo para um bebê
tão pequeno. É melhor chamá-la Beth,
sim.
—Margaret e eu vamos à
confeitaria para tomar um chá. —
atravessou lady Carling —Gostaria de
nos acompanhar, lady Paget? Estou
segura de que acharemos um doce ao
gosto de Belinda. E com certeza
servem limonada.
Seu primeiro impulso foi
recusar o convite. Entretanto, não lhe
faria mal que a vissem em público
com ambas as damas. Se a sociedade
a aceitasse de forma gradual, talvez
em algum momento encontrasse
alguma anciã só ou doente que
necessitasse uma dama de companhia
e que confiasse nela o suficiente para
contratá-la. Não era uma perspectiva
agradável, e não sabia o que seria da
Alice e de Mary se algo assim chegava
a acontecer, mas...
Enfim, não faria mal a
ninguém que aceitasse o ramo de
oliveira que lhe estendiam livremente.
—Obrigada . —disse —
Belinda, quer um doce?
Belinda voltou a arregalar os
olhos e assentiu com a cabeça antes
de recordar suas maneiras.
—Sim, milady, por favor. —
respondeu.
As três conversaram durante
quase uma hora sentadas à mesa
enquanto Belinda se mantinha em
silêncio. Depois de comer o pão doce
branco com cobertura rosa que
escolheu com grande meticulosidade,
a menina bebeu a limonada, servida
em uma taça que segurou com ambas
as mãos, usou o guardanapo para
limpar a boca e as mãos, e voltou a
embalar a sua boneca. Enquanto as
damas falavam, ela se entreteve lhe
dando beijos e lhe sussurrando coisas.
—Faz um dia lindo para
tomar chá ao ar livre no Richmond. —
disse a condessa.
—Um chá ao ar livre? —
Perguntou lady Carling com interesse
—Que agradável. Não há melhor
maneira para passar uma tarde de
verão, não lhe parece?
—Minha antiga preceptora,
que vive comigo, só tem quarenta e
dois anos —explicou Cassandra —
Muito jovem para ir sozinha ao
Richmond com um cavalheiro da
mesma idade... Segundo ela. Ontem
se apresentou em minha casa o senhor
Golding para convidá-la a tomar chá
em Richmond Park e embora fosse
evidente que queria aceitar, mostrou-
se um tanto hesitante. Assim lorde
Merton ofereceu seus serviços e os
meus como acompanhantes.
As três se puseram a rir, justo
quando o próprio conde Merton,
acompanhado pelo senhor Huxtable, o
anjo e o demônio, passavam diante da
vitrine da confeitaria. Cassandra notou
que o coração, ou o estômago, ou o
que fosse, lhe dava um salto. Pelo
braço de lorde Merton caminhava
uma jovenzinha, a mesma com quem
dançara a peça que deu começo ao
baile de sua irmã. Stephen tinha a
cabeça inclinada para escutar o que
lhe dizia. E estava muito sorridente.
Atrás deles caminhava uma
mulher também jovem que devia ser a
acompanhante.
O que Cassandra sentiu não foi
ciúmes. Foi... Foi a certeza de que em
teoria seguia sendo seu amante, de
que tinha passado duas noites com ele
em sua cama, de que tinha desfrutado
da experiência muitíssimo mais do que
se atrevia a admitir, de que tinha visto
seu corpo nu e havia sentido seu peso
sobre ela.
Pensamentos que não tinham
por que lhe cruzar de repente pela
cabeça.
Stephen queria ser seu amigo.
Em realidade, seu lugar era ao
lado de uma jovenzinha como a que
levava pelo braço. Uma jovenzinha
que ria do comentário que ele acabava
de fazer. Stephen também ria.
Seu lugar era ao lado dessa
jovem. Não a seu lado. Era um
homem jovem, livre e simpático, um
jovem que irradiava luz.
Não deveria lhe ter permitido
que tentasse transformar sua falhada
aventura amorosa em uma amizade.
Ai, mas era tão...
Tão... Adorável!
—Ah, aí estão Stephen e
Constantine! —exclamou lady
Sheringford ao mesmo tempo em que
o senhor Huxtable reparava nelas
através da vitrine e dizia algo a seus
dois acompanhantes, que também se
voltaram para olhá-las com um
sorriso.
Stephen levantou a mão para
saudá-las e depois disse algo a jovem,
que negou com a cabeça e ao cabo de
uns instantes se afastou com sua
criada, que apertou o passo para
alcançá-la. Os dois cavalheiros
entraram na confeitaria e se
aproximaram de sua mesa.
—Assim é como as damas se
mantêm tão magras? —perguntou o
senhor Huxtable com voz e gesto
irônicos.
—Não, claro que não. —
respondeu lady Carling —
Conseguimos isso caminhando de loja
em loja, senhor Huxtable. Além disso,
Belinda é a única que desfrutou que
um doce. Nós fomos boas e nos
contivemos. Lady Paget nem sequer
pôs açúcar ao chá, e só lhe jogou uma
gota de leite. Peguem umas cadeiras e
se sentem conosco.
Cassandra descobriu que de
repente lhe faltava o fôlego. Não
pintava nada nesse grupo familiar.
Além disso, já era hora de levar a
Belinda a casa. Mary estaria
preocupada.
—Podem ficar com as
nossas —lhes ofereceu enquanto
ficava em pé—. Belinda e eu temos
que ir.
A menina ficou em pé sem
protestar enquanto olhava ao conde de
Merton.
—Tenho uma boneca nova
— disse-lhe.
—Ah! É uma boneca? —
Perguntou-lhe ele com cara de
surpresa antes de se inclinar a seu
lado —Pensava que era um bebê de
verdade. Posso ver?
—É uma menina. —indicou
enquanto lhe afastava a mantilha da
cara —Chama-se Beth. Bom, é
Elizabeth, mas é um nome muito
longo.
—Beth fica melhor. —
concordou Stephen, acariciando a
face da boneca com um dedo —
Certamente está muito quentinha
abrigada com a mantilha e
aconchegada entre seus braços. Está
dormindo.
—Sim. —disse a menina ao
ver que Stephen lhe sorria.
Cassandra engoliu a saliva com
dificuldade e teve a impressão de que
todo mundo percebia. Stephen tinha
uma expressão muito terna no rosto e,
entretanto, não deixava de ser um
aristocrata olhando à filha de uma
criada. Uma menina ilegítima. Seria
muito fácil se afeiçoar a ele, confiar
nele apesar de que a experiência lhe
tinha ensinado a não confiar em
nenhum homem, sobre tudo nos
amáveis. Nigel tinha sido amável...
Lorde Merton ficou em pé.
—Permita-me acompanha-
las em casa. —ofereceu ele, olhando-
a.
Como podia negar sem causar
uma cena diante do ávido olhar de
lady Carling e seus familiares?
—Não é necessário, —
replicouv—mas agradeço.
—Espero que o chá ao ar
livre seja divertido. —disse a
condessa.
—Um chá ao ar livre? —
Perguntou o senhor Huxtable e esses
olhos tão escuros se cravaram nos
seusv—Perdi algo?
—A dama de companhia de
lady Paget foi convidada por um
cavalheiro seu amigo a tomar o chá ao
ar livre no Richmond. —lhe explicou a
condessa —E Stephen e lady Paget
vão acompanhá-los a modo de
acompanhantes.
—Fascinante. —comentou o
senhor Huxtable, que ainda
continuava olhando-a. Tinha arqueado
as sobrancelhas. —Como
acompanhantes?
Cassandra se inclinou para
ajudar Belinda a agasalhar bem a
boneca com a mantilha. Antes de se
endireitar, deu um beijo em sua face e
pegou sua mão. Entretanto, ao sair da
confeitaria a menina se deteve,
entregou a boneca a Stephen sem
sequer lhe pedir permissão e o pegou
pela mão para caminhar entre eles.
Stephen colocou a boneca sob
o braço e correspondeu aos olhares de
alguns transeuntes com um gesto
sorridente e algo tímido.
Na opinião de Cassandra a
cena era muito familiar, quase como
se a boneca fosse real e tanto ela
como Belinda fossem suas filhas. Dos
dois.
Seria sincero o comportamento
de Stephen?
Ninguém poderia responder a
essa pergunta.
Existiam pessoas assim, tão
puras como os anjos?
Em caso de que existissem,
que fazia ela se relacionando com
um?
Alice estava muito emocionada
pela saída dessa tarde, embora não
reconhecesse isso nem sob ameaça de
tortura. Para a Cassandra, Alice
sempre tinha sido uma figura
maternal, muito mais que uma simples
preceptora ou uma dama de
companhia. Uma figura emocional
sólida como uma rocha. Sua presença
possivelmente fora a única coisa que a
tinha ajudado a conservar a prudência
ao longo dos últimos dez anos.
Entretanto, nesse momento se sentia
culpada porque acabava de
compreender que nunca a tinha visto
como uma mulher.
Quando começou a trabalhar
para eles, Alice era muito jovem. Nem
sequer tinha completado os vinte anos.
De modo que quando ela se casara,
tinha trinta e poucos. E durante todos
esses anos, jamais tinha tido um
pretendente, jamais tinha tido a
oportunidade de contrair matrimônio
ou de desfrutar de alguma alegria
pessoal.
Teria se apaixonado pelo
senhor Golding há já tantos anos?
Teria albergado esperanças a
respeito? Teria seguido pensando nele,
sonhando com ele, durante todos os
anos transcorridos? Teria sido um
momento crucial em sua vida o
encontro fortuito acontecido há um
par de dias? Teria renascido a
esperança? Possivelmente
acompanhada por um doloroso
desejo?
O fato de ignorar as respostas
a todas essas perguntas era muito
vergonhoso. Entretanto, faria todo o
possível para que frutificasse uma
relação entre eles se ambas as partes
o desejassem. Tudo salvo se fazer de
casamenteira, é claro. Esperava com
ansiedade a chegada da tarde, mas
por Alice.
Ah, e também por ela!
Reconheceu a contra gosto enquanto
Belinda contava a Stephen que tinha
uma touca nova e ele afirmava que
fazia muitíssimo tempo que não via
uma tão bonita. Não deveria se iludir
com o passeio. Não deveria permitir
que se forjasse uma amizade entre
eles, porque Stephen deveria estar
com jovenzinhas como a que o
acompanhava um momento antes.
Jovenzinhas que carecessem do lastro
emocional que ela arrastava.
Mas como se comprometera a
passar a tarde em sua companhia, iria
se limitar a passar um bom momento.
Tinha a sensação de que fazia séculos
que isso não acontecia. Aconteceu
alguma vez? Tinha existido algum
momento em sua vida no qual tinha
passado um bom tempo?
Stephen tinha prometido levar
alegria a sua vida. Tinha assegurado
que a alegria existia. Em sua opinião,
a alegria era muito mais valiosa que a
felicidade.
E mais difícil de alcançar.
Estava decidida a passar um bom
momento. Certamente que sim!
Quando chegaram em casa,
Belinda se deteve em silencio na porta
enquanto ela tirava a chave de seu
esconderijo, debaixo de um vaso de
barro situado ao lado dos degraus, em
vez de bater. Assim que abriu, Belinda
pegou com muito cuidado sua boneca
do braço de Stephen e foi direta à
cozinha, entre chiados e gritos, e
falando tão rápido que nem sequer
pronunciava bem as palavras.
Entretanto, entre o emocionado
falatório conseguiu distinguir algumas
palavras: cobertura rosa, Beth,
folhagens e touca, duas damas
elegantes, uma mantilha branca de lã,
um babado que lhe protegeria o
pescoço do sol e um cavalheiro que
tinha levado Beth sem despertá-la.
A pobre Mary acabaria surda
pelos gritos, pensou Cassandra com
um sorriso enquanto tirava a chave da
fechadura e a devolvia a seu
esconderijo.
E de repente a assaltou uma
dor atroz, como lhe acontecia as
vezes, de princípio.
Ela não tinha filhos vivos. Só
quatro bebês mortos.
Não tinha nenhum filho que
corresse para ela para ensurdecê-la
com seus gritos.
Respirou fundo pelo nariz
antes de soltar o ar muito devagar pela
boca e se virar para estender a mão a
Stephen.
—Obrigada. —lhe disse—
Viu quão esbanjadora sou? Viu que
forma de esbanjar seu dinheiro?
—Fazendo feliz a uma
menina? —Precisou ele ao tempo que
se levava sua mão aos lábios. —Não
me ocorre uma forma melhor de
gastá-lo, Cass. Iremos nos ver esta
tarde?
—Sim. —respondeu antes
de entrar em casa.
Stephen se afastou pela rua.
Um homem encantador, afável e
fisicamente perfeito. E com uma
atração envolvente.
Sim, seria muito fácil se
afeiçoar a ele. Tão fácil como desejá-
lo no sentido mais carnal. Talvez não
estivesse interpretando um papel, mas
sim fosse assim de verdade.
Ou talvez não.
Fosse como fosse, essa tarde
seria boa. Tinha esbanjado uma boa
quantidade de dinheiro essa manhã. E
essa tarde faria o mesmo com seus
sentimentos.
Porque levava muito tempo
contendo-os.
Nem sequer tinha certeza de
que havia algum escondido para
esbanjar.
Essa tarde o descobriria.

A Stephen pareceu muito


gracioso ajudar à senhorita Haytor a
subir a seu cabriolé essa tarde e ver
como a dama se apressava a ocupar o
lugar livre junto à Cassandra em vez
de se sentar em frente a ela. A
manobra o obrigava a se sentar ao
lado do senhor Golding. A julgar por
seus aturdidos gestos, a senhorita
Haytor estava muito nervosa.
Possivelmente o que estava
acontecendo era o mais parecido a um
cortejo que tinha experimentado na
vida, pensou. Era uma ideia triste.
Embora melhor tarde que nunca.
O senhor Golding parecia
inclusive mais nervoso que no dia
anterior enquanto fiscalizava a
colocação de uma enorme cesta de
vime, muito nova, por certo, na parte
traseira da carruagem. Se a tinha
enchido de comida, poderia alimentar
todo um regimento.
Em um primeiro momento, o
senhor Golding, cujo traje era muito
elegante, manteve—se calado. A
senhorita Haytor, que ia como um
pincel com um vestido de passeio azul
escuro e um casaco, estava tensa e
silenciosa.
Cassandra, espantosa com um
vestido verde claro e um boné de
palha, parecia achar a situação tão
engraçada como ele, embora estivesse
convencido de que o sorriso que
trocaram não tinha nada de malicioso,
nem por sua parte nem pela dela.
Chegou à conclusão de que o
peso da conversa teria que recair nele
de momento. Claro que a arte da
conversa nunca lhe tinha sido
complicada. Frequentemente se
reduzia a fazer as perguntas
apropriadas.
—Senhor Golding, dedicou-
se ao ensino no passado? —Perguntou
enquanto o cabriolé aumentava a
velocidade. —Encontrou-se nesse
período com a senhorita Haytor?
—Sim—respondeu o aludido
—A senhorita Haytor era a preceptora
da senhorita Young e eu era o tutor do
jovem Young. Mas meus serviços não
se requereram durante muito tempo, e
me vi obrigado a buscar outro posto.
Lamentei muito fazê-lo. A senhorita
Haytor era uma professora excelente.
Admirava muito sua dedicação e sua
grande preparação intelectual.
—Sua dedicação era
semelhante à minha, senhor Golding.
—replicou a senhorita Haytor, que
por fim tinha recuperado a fala. —Em
uma ocasião o encontrei a meia-noite
no escritório de sir Henry Young,
tentando encontrar um bom método
para ensinar Wesley a realizar divisões
de várias cifras de forma simples.
Além disso, minha preparação
intelectual era inferior à sua.
—Só no referente aos
estudos formais que se recebem ao ir
à universidade — declarou ele —
Naquela época você tinha lido
muitíssimo mais que eu, senhorita
Haytor. Recomendou-me vários títulos
que depois se converteram em meus
preferidos. Sempre a lembro quando
os releio.
—Agradeço-lhe a adulação
—disse a senhorita Haytor —Mas
suponho que teria acabado
descobrindo-os cedo ou tarde.
—Duvido. —a contradisse
ele —Tenho tantos livros pendentes
para ler que me é difícil escolher um
título com o qual começar, de modo
que ao final não leio nenhum. Gostaria
que me dissesse o que esteve lendo
durante estes anos. Talvez assim me
anime a tentar algo novo que não
esteja relacionado a política.
Stephen olhou para Cassandra.
Não se sorriram abertamente.
Poderiam tê-los pilhado e isso os
haveria devolvido ao nervosismo do
princípio. Mas se sorriram. Sabia que
ela estava sorrindo embora não tivesse
movido os lábios. E ela sabia que lhe
estava devolvendo o sorriso.
Até no caso de ter interpretado
mal sua expressão, ao menos nessa
tarde tinha abandonado a máscara.
Tampouco a levava essa manhã. De
fato, tinha-o pilhado tão despreparado
essa manhã que tinha chegado à
conclusão de que corria o risco de se
apaixonar por ela se não andasse com
cuidado. Quando Con lhe disse que
olhasse para o interior da confeitaria,
foi a Cassandra a quem viu em
primeiro lugar. Nem sequer percebeu
a presença de Meg e de lady Carling.
E quando as acompanhou depois para
casa, sentiu...
Enfim, não importava. Era
absurdo sentir algo assim.
No passeio os acompanhava só
o cocheiro. Golding não ia com
nenhum criado, já que tinha chegado
ao Portman Street em um carro de
aluguel com a cesta na mão. Portanto,
depois do longo trajeto até Richmond
Park, os cavalheiros se encarregaram
de levar a cesta enquanto que as
damas encabeçavam a marcha para
escolher um bom lugar onde tomar o
chá.
Encontraram um, depois de
entrarem entre os a paisagem natural
que fazia de Richmond Park um lugar
tão famoso. Uma ligeira encosta
coberta de grama de onde se
admiravam os prados e um bosque a
um lado, atrás do qual se erguiam
mais carvalhos. Ao longe se via Pen
Ponds, duas lagunas gêmeas nas quais
abundava a pesca.
Havia algumas pessoas
passeando, não muitas, e ninguém
parecia ir provido com comida como
eles. Não havia ninguém perto do
lugar que tinham escolhido. Tal como
Stephen tinha esperado que
acontecesse, iriam passar uma tarde
tranquila, afastados de qualquer
curioso.
Uma vez que deixaram a cesta,
o senhor Golding a abriu e tirou uma
manta enorme, o que explicava por
que pesava tanto, como previra ao ver
seu tamanho. O senhor Golding a
sacudiu para estendê-la e a teria
colocado ele mesmo se não fosse pela
senhorita Haytor que se apressou a
pegar dois dos extremos para ajudá-lo.
Entre ambos a colocaram no chão
sem uma só ruga.
—É muito cedo para tomar o
chá. —indicou o senhor Golding —
Quer dar um passeio?
—Mas alguém poderia ver a
cesta e a manta se nos afastarmos. —
protestou a senhorita Haytor.
—Estou muito bem aqui
sentada, —comentou Cassandra —
relaxando ao sol, respirando o ar puro
e desfrutando da verde campina.
Alice, por que não acompanha o
senhor Golding enquanto lorde Merton
e eu ficamos aqui?
A senhorita Haytor olhou
Stephen com receio. E ele lhe
presenteou com o melhor de seus
sorrisos.
—Senhora, me encarrego de
cuidar de lady Paget. —disse —O fato
de que o parque seja um lugar público
e de que haja outras pessoas será
amparo mais que suficiente em seu
caso e no dela.
Era evidente que suas palavras
não conseguiam convencê-la. Mas seu
desejo de dar um passeio a sós com o
senhor Golding lutava com a
prudência.
—Allie, —disse Cassandra
—se tivermos vindo até aqui para
passear todos juntos ao redor da cesta,
melhor seria ficar em casa para
desfrutar do chá no jardim traseiro,
debaixo do varal da Mary.
Suas palavras conseguiram
persuadir a senhorita Haytor, que
desceu a suave encosta ao lado do
senhor Golding, cujo braço acabou
aceitando assim que viraram em
direção às distantes lacunas.
—Acredito que fui muito
egoísta, —comentou Cassandra
enquanto se sentava na manta, depois
de tirar as luvas e o chapéu para
deixá-los a seu lado.
—Ao mandá-los para longe
enquanto ficamos aqui? —precisou
Stephen.
—Ao manter Alice a meu
lado durante todos estes anos. —
respondeu ela —Começou a procurar
outro emprego quando aceitei a
proposta matrimonial de Nigel.
Inclusive foi a uma entrevista e ficou
muito impressionada com as crianças
e com seus pais. Mas lhe supliquei
que me acompanhasse ao campo, pelo
menos durante um ano. Nunca tinha
vivido no campo e a perspectiva me
assustava um pouco. Acompanhou-me
porque insisti muitíssimo, e ao final
ficou, ano após ano. Só tive em conta
minhas necessidades, inclusive lhe
disse em muitas ocasiões que não
sabia como poderia viver sem ela.
—Sentir-se necessário é,
embora soe redundante, uma
necessidade inerente ao ser humano—
comentou Stephen —É claro que ela a
ama. Suponho que se alegrou de
continuar ao seu lado.
Cassandra voltou o rosto para
olhá-lo. Abraçou-se as pernas, que
tinha dobradas pelos joelhos.
—Stephen, é muito amável
ao dizer isso. —concedeu ela —Mas é
possível que tivesse encontrado um
homem com quem se casar há anos.
Poderia ter sido feliz.
—Ou não. — declarou ele
—Poucas preceptoras gozam de uma
posição tão livre para se relacionar
com homens, não lhe parece? Além
disso, seus novos senhores talvez só
quisessem que transmitisse
conhecimentos básicos aos seus filhos.
As crianças poderiam ter tido
antipatia. E teria acabado sendo
despedida em pouco tempo depois de
começar a trabalhar para eles. Seu
seguinte emprego poderia ter sido
pior. Em resumo, poderia ter
acontecido muita coisa.
Cassandra soltou uma
gargalhada. Ainda continuava
olhando-o.
—Tem razão. —reconheceu
—Depois de tudo, talvez estive
conservando-a ao meu lado para que
se produzisse este feliz reencontro
com o amor de sua vida. Acredito que
o senhor Golding é o amor de sua
vida. Além disso, hoje não é um dia
para melancolia e remorsos, não é
verdade? Hoje estamos tomando chá
ao ar livre. Sempre me pareceu muito
alegre comer ao ar livre. Mas não o
fizemos nunca durante meu
matrimônio. É estranho, de verdade.
Acabo de me dar conta hoje mesmo.
Stephen, vim para passar um bom
momento.
Ele estava sentado com uma
perna dobrada e a sola de sua bota de
montar firmemente plantada sobre a
manta. Um de seus braços descansava
sobre essa perna, enquanto com a
outra mão se apoiava no chão, a suas
costas. Tinham colocado a manta sob
a sombra dos ramos de um dos
carvalhos. Seu chapéu descansava a
um lado.
Observou, fascinado, como
Cassandra levantava os braços para
tirar as forquilhas do cabelo e depois
sacudir a cabeça e deixar que as
mechas caíssem em torno de seus
ombros e por suas costas. Deixou as
forquilhas na aba do chapéu e passou
os dedos pelo cabelo para desenredá-
lo.
—Se trouxe uma escova na
bolsa, ficarei encantado de penteá-lo
por você — ele se ofereceu.
—De verdade? —Ela voltou
a olhá-lo —Mas tirei as forquilhas
para poder me deitar na manta e olhar
o céu. Melhor depois, quando voltar a
recolhê-los.
O mais estranho era que não
estava paquerando com ele. Não
estava usando seus gestos sedutores,
nem tampouco a voz que os
acompanhava. Entretanto, a tensão
entre eles se tornou quase evidente, e
não lhe coube a menor duvida de que
ela era tão consciente desse fato como
ele. Nunca tinha visto Cassandra com
essa atitude tão relaxada, sorridente e
natural.
Sentia-se deslumbrado.
Porque assim era muito mais
atraente que quando tentava atraí-lo.
Seguiu observando-a enquanto
se deitava na manta e ajeitava a roupa
para se assegurar de que tinha os
tornozelos decentemente cobertos
pelas saias. Depois entrelaçou os
dedos sob a cabeça e cravou o olhar
no céu com um suspiro de
contentamento.
—Se pudéssemos manter
sempre o vínculo com a terra, —disse
—evitaríamos muitos problemas. Não
lhe parece?
—Às vezes nos deixamos
embriagar tanto pela estranha ideia de
que somos os amos de tudo o que
vemos que esquecemos nossa
condição de simples criaturas da
natureza —respondeu ele.
—Como as mariposas, os
rouxinóis e os gatinhos. —replicou
ela.
—Ou os leões e os corvos.
—acrescentou ele.
—Por que o céu é azul?
—Não tenho a menor ideia.
—reconheceu antes de olhá-la com
um sorriso e ver que ela também o
estava olhando. Mas me alegro de que
o seja. Se o sol brilhasse em um céu
negro, o mundo seria um lugar muito
triste.
—Como os dias de tormenta.
—indicou ela.
—Não, pior.
—Ou como as noites limpas
de lua cheia. Venha ver isto. — o
convidou.
E ele interpretou mal de
propósito suas palavras. Abaixou a
cabeça sobre a sua e contemplou seu
rosto com prazer até chegar a esses
olhos verdes. Que o olhavam risonhos.
—Lindo. — disse ele com
total sinceridade.
—O mesmo digo eu. —
replicou ela, cujos olhos o estavam
observando por sua vez —Stephen,
quando for mais velho vai ter rugas ao
redor dos olhos, e o farão muitíssimo
mais atraente.
—Quando isso acontecer, —
respondeu —recordarei que me
advertiu sobre isso.
—De verdade? —Cassandra
levantou as mãos e lhe roçou o lugar
onde apareceriam tais rugas com as
pontas de dois dedos —Irá se lembrar
de mim?
—Sempre. — assegurou-lhe.
—Eu também. —confessou
—Recordarei que em alguma vez em
minha vida conheci um homem
perfeito em todos os sentidos.
—Não sou perfeito. —
corrigiu-a.
—Deixe-me seguir
sonhando. — o repreendeu —Para
mim, é perfeito. Hoje é perfeito. Não
o conhecerei tão a fundo nem nos
relacionaremos durante tanto tempo
para descobrir seus defeitos ou seus
vícios, que tenho certeza de que os
tem em abundância. Em minhas
lembranças será meu anjo perfeito.
Talvez mande fazer um medalhão
com seu retrato que levarei sempre ao
pescoço.
E a viu sorrir. Ele não o fez.
—Não vamos nos relacionar
durante muito tempo? —perguntou-
lhe.
Cassandra fez um gesto
afirmativo com a cabeça.
—Exato. —respondeu —
Mas isso dá no mesmo, Stephen. Hoje
é hoje, e é a única coisa que importa.
—Sim. —concordou.
Até onde alcançava sua vista
não havia ninguém passeando que
pudesse vê-los. E em caso de que
houvesse alguém, já estaria bastante
escandalizado. Que importava se...?
Beijou-a.
E ela lhe devolveu o beijo,
primeiro lhe acariciando o rosto com
as mãos e depois jogando os braços
em seu pescoço.
Foi um beijo inocente, terno e
muito lento no qual não intervieram
suas línguas. O beijo mais perigoso
que Stephen jamais tinha
compartilhado. Soube depois que se
afastou de seus lábios e a olhou de
novo no rosto.
Porque foi um beijo de
carinho, vizinho ao amor. Não houve
desejo. Senão amor.
—Por fim vai me dar
atenção e olhar o que lhe pedi que
olhasse antes? — ouviu-a perguntar
—Olhe para cima. Para o céu —
acrescentou em voz baixa e sem sorrir
apesar da nota risonha de suas
palavras.
De modo que Stephen se
deitou a seu lado, cravou a vista no
céu e compreendeu imediatamente
seu comentário anterior sobre o
vínculo com a terra. Sentiu-a firme e
eterna contra as costas, apesar da
grossura da manta. Sobre ele viu o céu
azul sem rastro de nuvens, conectando
o céu com a terra, os ramos do
carvalho. Ele fazia parte de tal
conexão, desse glorioso lugar que não
parava de rodar, da mesma maneira
que fazia parte Cassandra.
Estendeu um braço para pegar
sua mão e entrelaçou os dedos nos
seus.
—Se tivesse a opção de se
pôr a voar e se converter em outra
pessoa, faria? —perguntou ela.
Ele meditou um momento na
questão.
—E deixar de ser a pessoa
que conheço? Deixar atrás tudo
aquilo, as pessoas e as coisas, que me
ajudaram a ser o que sou? —declarou
—Não. Mas uma fuga temporária não
viria mal de vez em quando. É que sou
um pouco ambicioso e eu gosto de
ficar com o bom dos dois mundos.
Você não?
—Eu poderia ficar aqui e
sonhar voando para o azul do céu e
para a luz. Mas teria que partir por
completo, porque de outro modo o
exercício não teria sentido. Assim
nada mudaria, não é verdade? Se
pudesse voar e ao mesmo tempo ficar
atrás... Enfim, seria como a própria
morte. E acredito que o detestaria.
Porque quero viver.
—Alegro-me de escutá-la.
—Assegurou ele, rindo entre dentes.
—Não entendeu! —
Exclamou Cassandra —Essa
conclusão me surpreendeu muito.
Porque levava muitíssimo tempo
pensando que se me dessem a
oportunidade de fazer algo assim sem
ter que me tirar a vida, escolheria a
morte.
Suas palavras o deixaram
gelado.
—E já não se sente assim?
—perguntou-lhe.
—Não. —respondeu ela
com uma suave gargalhada —Não!
Quero viver.
Stephen lhe deu um forte
aperto na mão enquanto mergulhavam
no silêncio e refletia sobre o que
Cassandra acabava de lhe dizer.
Como teria sido sua vida para que
tivesse preferido a morte à vida?
Como teria sido sua vida para que lhe
surpreendesse descobrir que, contra o
que pensava tanto tempo, preferia a
vida?
Às vezes esquecia, talvez de
propósito, que sua vida tinha sido tão
intolerável que tinha chegado ao
extremo de cometer um assassinato.
Mas não era momento de
pensar nessas coisas. Voltou a cabeça
para olhá-la ao cabo de uns minutos e
lhe devolveu o olhar. Ambos sorriram.
—Está feliz? —ele
perguntou.
—Mmmm... —murmurou
ela a modo de resposta.
Stephen suspirou e colocou a
mão livre sobre os olhos.
Embora não tivesse se posto a
voar, se achava em um terreno
desconhecido. O que estava
acontecendo não tinha nada que ver
com a sedução. Nem com a simples
amizade. Era... Ignorava o que era.
Mas tinha o pressentimento de que
sua vida jamais voltaria a ser a mesma.
E não sabia se ficava alegria ou se
tremia.
Ao cabo de uns minutos
mergulhou em uma agradável
sonolência, nesse estado de
relaxamento no qual, apesar de tudo,
seguia sendo consciente da metade do
que acontecia a seu redor.
CAPÍTULO 14

Stephen estava adormecido.


Não se podia dizer que roncasse, mas
sua forma de respirar punha de
manifesto que estava adormecido.
Cassandra fechou os olhos e
sorriu... E sentiu uma ternura um
tanto desesperada por ele e pelo
prazer roubado e livre que tinha
experimentado nessa tarde. Tinha
decidido desfrutar e isso era o que
estava fazendo. Todas suas defesas,
todos seus medos e toda sua
desconfiança para qualquer que não
pertencesse a seu reduzido círculo de
amigos ficara em casa. Recolheria
tudo quando terminasse o chá ao ar
livre.
Talvez.
Ou talvez não.
Permitiu-se reconhecer com
cautela que possivelmente houvesse
um homem bom no mundo depois de
tudo, e que tal homem estava a seu
lado e a tinha presa pela mão.
Sabia que Stephen não era
perfeito. E ele insistia em lhe recordar
que ninguém o era. Mas em seu caso,
era tão perfeito como se podia chegar
a ser.
E no caso de que tivesse
defeitos ou inclusive vícios, ela nunca
os descobriria. Porque, é claro, sua
relação não duraria muito. Não se
prolongaria muito mais do que o final
da temporada social. E se tivesse
muita sorte, não chegaria a escutar
nenhum rumor desagradável sobre ele
no futuro.
Voltaria a viver no campo.
Acabava de decidir ali deitada. Era
como se esse lugarzinho da campina,
com a terra que tinha debaixo e o céu
que tinha por cima, com os ramos dos
carvalhos que lhe faziam sombras,
tivesse dissipado uma espessa névoa
que lhe tinha nublado o pensamento
durante muitíssimo tempo. Procuraria
uma casinha em uma aldeiazinha
perdida em algum canto da Inglaterra,
afastada de tudo e de todos, e viveria
ali.
Semearia flores, bordaria
coloridas toalhas e lenços, iria à igreja
todos os domingos, ajudaria a
preparar e servir o chá nos atos
paroquiais, dançaria nos festejos do
povoado e... Enfim.
Engoliu a saliva para se livrar
do nó que sentia na garganta. Talvez
se tivesse voado depois de tudo. Mas
não era um sonho irreal. Nem
impossível.
Porque acabava de se dar
conta de algo de repente, como se lhe
tivessem atirado um murro.
Tinha sido vítima durante dez
longos anos. Tinha sido incapaz de
evitar as cruéis surras. Nigel era muito
mais forte que ela e, além disso, era
seu marido. Portanto estava em todo
seu direito de discipliná-la como
achasse conveniente. Mas ela tinha
desenvolvido a mentalidade de uma
vítima; convertera-se em uma pessoa
patética e assustadiça cujo único
objetivo era se esconder por completo,
conter o fôlego se por acaso alguém
percebesse sua existência e se
aproximava dela lançando murros.
Mas tinha a opção de trocar
essa mentalidade de vítima. Se não
controlasse seus próprios
pensamentos, não valia a pena viver.
Durante dez anos sua vida não
tinha valido a pena.
Nesse dia, de repente, valia.
Voltou a cabeça para olhar a Stephen
com lágrimas nos olhos, mas ele
continuava dormindo. Por sorte,
continuava dormindo.
Ai, como era bonito! Era um
encanto de homem! Tomara
pudesse...
Entretanto, ele não podia fazer
parte de seu novo sonho. Como ia
fazer? Tinha-o seduzido e se sentia
em dívida com ela. Era tudo muito
injusto. Deveria estar de volta em seu
próprio mundo, se relacionando com
jovenzinhas como a que o
acompanhava essa manhã.
Não obstante, esse novo sonho
tinha algo a ver com ele. Devia
agradecer a Stephen. Graças à
amabilidade que lhe tinha
demonstrado quando não tinha
motivo, tinha-lhe recordado seu
próprio valor. O poder que tinha sobre
sua própria vida.
Como era possível que pudesse
afirmar algo tão exagerado sobre ele
quando apenas se conheciam, quando
sua relação tinha começado de
maneira tão sórdida através da
sedução e engano?
Era um anjo de verdade?
A ideia lhe arrancou um
sorriso, apesar das lágrimas. Depois
veria asas e um halo sobre sua cabeça.
Já não temia à pobreza, já não
seria essa criatura assustadiça,
covarde e dependente, além de muitas
outras coisas horríveis, que tinha sido
desde que Bruce a tinha expulsado de
sua casa e lhe tinha dado as costas.
Iria lutar com unhas e dentes.
No dia seguinte procuraria um
advogado disposto a defender seu
caso, apesar de estar na ruína. Iria lhe
pagar um adiantamento mínimo com o
dinheiro do Stephen e prometeria
pagar o resto de seus honorários
quando conseguisse fazer justiça em
seu caso. Segundo seu contrato
matrimonial e o testamento do Nigel,
tinha direito a receber parte da fortuna
pessoal de seu finado marido e uma
pensão vitalícia procedente dos
benefícios da propriedade. Também
lhe pertenciam as joias que tinha
recebido durante seu matrimônio.
Eram suas. Tinha direito a utilizar a
residência da viúva e a residência
londrina durante o resto de sua vida, a
menos que voltasse a se casar. Não
lhe interessava a residência da viúva o
mais mínimo, mas a residência
londrina lhe teria vindo sido bem-vinda
essa primavera.
Bruce lhe havia dito que podia
ter sua liberdade, mas nada mais. Suas
palavras deixaram claro que se não
aceitasse seu ultimato, perderia tudo,
inclusive a liberdade.
Talvez inclusive a vida.
E tinha acreditado nele.
Grande tola!
Se Bruce acreditara capaz de
poder demonstrar que tinha matado
seu pai, teria mandado prendê-la sem
demora. Não lhe teria sugerido
nenhum acordo.
Não podia demonstrar nada
porque não havia provas.
Se já era consciente de tudo
isso, por que o via de repente como
uma revelação divina?
Iria brigar pelo dinheiro, pelas
joias e inclusive pela residência
londrina. Qualquer advogado decente
poderia lhe conseguir tudo sem muitos
problemas. Um contrato matrimonial e
um testamento eram documentos
legalmente vinculantes. Nenhum
advogado veria como um risco
importante o fato de cobrar uma
pequena antecipação sabendo de que
poderia cobrar o resto mais tarde.
Fechou os olhos e sentiu que o
mundo começava a dar voltas... Com
ela dentro. Sentia-se viva. E os
quentes dedos de Stephen, ainda
relaxados, seguiam entrelaçados aos
seus.
Tomara pudessem fazer que o
mundo girasse mais devagar. Tomara
pudesse prolongar esse momento. Era
muito consciente de que se quisesse,
ou melhor, se permitisse, poderia se
apaixonar por ele. Loucamente. Sem
remédio.
Não ia permitir isso. Só estava
desfrutando de uma prazerosa tarde.
Estava tomando emprestada um pouco
de sua luz. A luz que ela levava em
seu interior era muito tênue. Se
alguém lhe tivesse perguntado por ela
há muito pouco tempo, teria dito que
se apagara. Mas não era verdade.
Stephen a tinha reavivado. Ele era
todo luz. Ou isso lhe parecia.
Como não tinha nada tão
poderoso nem tão valioso que lhe
oferecer em troca, não o reteria. Iria
deixa-lo partir assim que pudesse.
Não obstante, havia dito a
verdade fazia um momento.
Lembraria dele. Sempre. É claro, não
carregaria um medalhão para
pendurar no pescoço. Mas tampouco
lhe seria preciso. Estava certa de que
sempre poderia fechar os olhos e vê-
lo... E ouvi-lo e sentir a calidez de sua
mão. Sempre recordaria o aroma
almiscarado de sua colônia.
Assim que dispusesse de suas
joias e de seu dinheiro, devolveria a
ele todo o dinheiro que lhe tinha
dado... E lhe agradeceria. Dessa
forma se romperiam todos os laços
que os uniam, todas as dívidas
estariam saldadas, não haveria mais
dependência de uma parte, nem mais
obrigação da outra.
Sua relação, se acaso se podia
qualificar o que tinham como tal,
sanaria de algum jeito. E chegaria a
seu fim.
Stephen a recordaria, se acaso
a recordasse, com respeito e
possivelmente com um pouco de
nostalgia e afeto.
Levantou ligeiramente a
cabeça e deu uma olhada para a
esquerda da encosta. Ao longe viu
duas figuras, e estava quase certa de
que caminhavam para eles. Também
estava quase certa de que se tratava
da Alice e do senhor Golding. Por
Deus! Se chegassem a vê-los deitados
na manta dessa forma, agarrados pela
mão e ela com o cabelo solto, Alice
colocaria Stephen para correr com
golpes de bolsa.
Seria muito injusto.
Embora tentasse se conter, riu
entre dentes ao imaginar a cena, e
voltou a cabeça para olhar Stephen
enquanto lhe dava um apertão na
mão.
—Acredito que é hora de
nos levantar e nos arrumar um pouco.
—lhe disse —Você não tem um
cabelo fora de lugar, mas eu tenho
que recolher o meu. Escova-me ele,
por favor?
Stephen a olhou com um
sorriso sonolento.
—Acho que estive a ponto
de dormir. —disse.
Soltou uma gargalhada ao
escutá-lo.
—Sim, a ponto.
Sentou-se, tirou a escova de
sua bolsa e a deu, virando-se ao
mesmo tempo em que recolhia as
forquilhas.
Stephen lhe escovou a parte
esquerda, passando-lhe da raiz às
pontas. Depois repetiu a operação
pelo direito. Em menos de um minuto
tinha o cabelo desenredado e liso, e a
cabeça lhe ardia um pouco.
—Está muito bem —disse
enquanto o recolhia na nuca e o
retorcia, depois do que passou a
segurá-lo com as forquilhas para que
não voltasse a se desfazer.
Uma vez que acabou, colocou-
se o chapéu.
—Cassandra, seu marido era
o pai da Belinda? —perguntou
Stephen.
Suas mãos, que estavam
atando as fitas do boné, se detiveram.
—Não. —respondeu
—O atual barão? —insistiu
—O filho?
—Não —repetiu, fazendo
um laço a um lado do queixo.
—Sinto muito. —disse ele —
Levo um tempo me perguntando isso.
—Não foi fruto de uma
violação. —lhe assegurou —Acredito
que Mary queria de verdade A... ao
pai.
Esperou que lhe fizesse
mais perguntas, mas Stephen guardou
silêncio.
Cassandra claudicou com
um suspiro e disse:
—Nigel tinha três filhos.
Bruce é o primogênito, depois Oscar e
William. Oscar está há vários anos no
exército. Vi-o duas ou três vezes, e
isso já faz muito tempo. Não voltou
para casa para ir ao funeral de seu
pai. William sempre foi um
aventureiro. Esteve na América uma
temporada. Mas há uns quatro anos
passou vários meses em casa antes de
partir para o Canadá com um
comerciante de peles. Belinda nasceu
sete meses depois dele ter ido. Mary
garante que não sabia que estava
grávida quando ele se foi. Quero
acreditar nela. Sempre tive carinho ao
William, embora reconheça que não é
perfeito.
—Paget não a despediu? —
quis saber Stephen.
—Nigel? —precisou —Não,
deixava os assuntos domésticos em
minhas mãos. Não lhe disse que a
filha da Mary era sua neta. De fato,
duvido muito que soubesse que havia
uma menina nas estadias dos criados.
Até o último momento,
acrescentou para si mesma.
—Mas Bruce a despediu
quando tomou posse do Carmel
House. —continuou —Mary não tinha
aonde ir, nenhum familiar estava
disposto a acolhê-la, se achava em
uma situação desesperada. Não as
ajudei muito ao trazê-las para a cidade
comigo, mas ao menos estávamos
juntas. E também tínhamos a Alice. E
Roger.
Alice e o senhor Golding
estavam já à vista. Cassandra levantou
um braço e lhes fez sinais.
—William Belmont continua
no Canadá? —perguntou Stephen.
—Não sei. —lhe respondeu
—Nem sequer deveria ter lhe contado
isso. Não tinha direito a lhe revelar o
segredo, não é? Mas lhe asseguro que
Mary não é uma cabeça de vento.
Acredito que queria a William de
verdade. Não, estou certa de que o
quer. E de que o está esperando.
Stephen lhe colocou uma mão
no ombro e lhe deu um apertão.
—Não estou julgando
ninguém, Cass. —disse ele —Não sou
ninguém para fazer isso.
Assim ele apartou a mão de
seu ombro e voltou a cabeça para
receber com um sorriso ao casal que
se aproximava.

Alice e o senhor Golding


deram um passeio até Pen Ponds.
Uma vez rodeado as duas lagunas,
empreenderam o caminho de volta a
passo tranquilo. Conversaram um bom
tempo sobre livros e depois
rememoraram experiências
compartilhadas na casa dos Young,
embora o período no qual coincidiram
foi muito breve. O senhor Golding a
surpreendeu ao lhe falar de sua
falecida esposa, com quem esteve
casado oito anos e que havia falecido
fazia três.
Não tinha pensado nem por
um instante que tivesse se casado...
Que possivelmente estivesse casado.
Primeiro a entristeceu, mas
acabou lhe fazendo graça que não
tivesse doente de amores por ela
durante todos esses anos. Claro que, é
claro, ela tampouco o tinha estado.
Trabalharam juntos, se apaixonara
loucamente por ele porque era uma
moça solitária sem possibilidade de
conhecer outros jovens, chorou sua
ausência por quase um ano e depois
foi esquecendo-o pouco a pouco...
Até que voltou a vê-lo dois dias atrás.
Seguia sendo um homem
bonito, apesar de sua magreza e seu
ar de erudito. Sua companhia seguia
sendo grata. E era maravilhoso que
um homem falasse exclusivamente
com ela durante uma hora. E passear
agarrada a seu braço. Se não andasse
com cuidado, voltaria a se apaixonar
por ele... E isso sim seria uma
estupidez.
Nesse momento lhe perguntou
por Cassie e ela compreendeu que
desconhecia a história.
—Deve ter sido um duro
golpe para lady Paget perder seu
marido tão jovem. Tinha-lhe muito
carinho? —perguntou ele.
Titubeou antes de responder.
Não era ela quem devia responder
essa pergunta. Claro que se ele
supusesse que o amava, poderia
apenas concordar, sem sentir que
estava revelando um segredo. Poderia
responder sem se comprometer, mas
também era possível, muito provável
de fato, que escutasse os rumores que
circulavam sobre Cassie e pensasse
que não tinha confiado nele.
—Era um agressor da pior
índole. —respondeu —Qualquer afeto
que sentisse por ele quando se casou,
morreu em seguida.
—Mãe de Deus! —
exclamou ele —Senhorita Haytor, isso
é espantoso! Acredito que não há
nada pior que um agressor. Não há
maior canalha.
Alice poderia ter ficado aí, mas
continuou:
—Morreu de forma violenta.
Alguns dizem que Cassie o matou.
Certamente, sei que é famosa na
cidade, onde a apelidam de "a
assassina do machado" por culpa de
certos rumores.
—Senhorita Haytor! —O
senhor Golding se deteve de repente, e
lhe soltou o braço para olhar seu rosto
com expressão escandalizada e
surpreendida —Não pode ser
verdade!
—Atiraram nele com sua
própria pistola. —seguiu.
—Fez isso...? —Deixou a
pergunta no ar e arqueou as
sobrancelhas —Lady Paget fez isso?
—Não. —respondeu Alice, e
acrescentou ao ver que ele não dizia
nada —Pode ter sido eu.
—Foi?
—Odiava-o o suficiente. —
respondeu —Nunca achei que
pudesse odiar a alguém dessa forma,
mas o odiava com toda minha alma.
Milhares de vezes pensei em
renunciar ao meu posto e procurar
outro, mas milhares de vezes recordei
que minha querida Cassie não
desfrutava da mesma liberdade para
partir e que eu era seu único consolo.
Podia ter feito isso, senhor
Golding. Podia tê-lo matado. Ele deu
umas surras terríveis em incontáveis
ocasiões, tal como aconteceu naquela
noite. Sim, podia ter feito isso. Podia
ter pego a pistola e... atirado nele.
—Mas não o fez, verdade?
—perguntou-lhe em voz muito baixa.
—Podia ter feito —repetiu
com teima —Possivelmente fiz isso.
Mas seria uma idiota se confessasse,
já que não há provas que incriminem
alguém. Seria um absurdo confessar a
culpa. Ele merecia morrer.
Adeus a possibilidade de
retomar o romance, Disse-se
enquanto ele tirava os óculos, tirava
um lenço do bolso da jaqueta e
passava a limpar as lentes sem as
olhar. Era uma lástima que estivessem
tão longe do lugar escolhido para o
chá. O pobre homem devia estar se
perguntando no que se colocara.
Devia estar desesperado para escapar.
Olhou-o diretamente nos olhos, com
uma expressão desafiante, enquanto
ele colocava de novo os óculos e lhe
devolvia o olhar, com o cenho
franzido.
—Se alguém não tivesse
parado os pés de lorde Paget, sua
esposa teria tido que suportar
muitíssimos anos de agressões e
violência. —o ouviu dizer —Não
posso perdoar um assassinato,
senhorita Haytor, mas tampouco
posso perdoar a violência contra as
mulheres. Muito menos contra uma
esposa, cujo marido ali está para
amar, cuidar e protegê-la de todo mal.
É uma dessas situações que não se
podem julgar com sucesso mediante
as normas estabelecidas, já sejam
legais ou morais. Não posso felicitar
ao assassino de lorde Paget, mas
tampouco posso condená-lo... Ou
condená-la. Se você fez isso porque
ama lady Paget, devo respeitá-la por
isso, senhorita Haytor. Mas não
acredito que tenha feito.
E sem mediar mais palavra,
ofereceu-lhe o braço de novo, ela o
aceitou e se puseram a andar para o
lugar onde tinham estendido a manta.
Ausentaram-se uma
eternidade, pensou Alice olhando para
a encosta, embora a princípio não
localizou as duas figuras sentadas na
manta que esperava ver. Entretanto,
na logo que olhou os viu ali, um junto
do outro, com a cesta a um lado. Por
estranho que parecesse, tinha
muitíssima fome. Sentia—se
incrivelmente livre.
O senhor Golding não a
condenaria embora o tivesse feito.
Mas não a achava culpada.
Achava que às mulheres, as
esposas, deviam ser amadas, cuidadas
e protegidas.

Stephen se entreteve pensando


no que diriam seus amigos se
soubessem que estava sentado no
Richmond Park, compartilhando um
lanche campestre com a infame lady
Paget, sua dama de companhia e o
secretário de um político. Não era o
que alguém esperaria do conde
Merton. De fato, haveria várias
pessoas procurando por ele no almoço
ao ar livre que dava lady Castleford
essa tarde.
Entretanto, estava desfrutando
muitíssimo. O chá que Golding tinha
levado, certamente preparado em
algum estabelecimento especializado,
estava delicioso.
É claro que tinha muito claro
que a comida desfrutada ao ar livre
era muito melhor. Também caiu na
conta, com certa ironia, de que se não
tivesse herdado o título de surpresa,
certamente ele fosse o secretário de
alguém a essas alturas e estaria muito
orgulhoso de sua posição.
Todo mundo parecia estar
desfrutando tanto como ele. A
conversa foi muito animada e todos
riram o bastante. Inclusive a senhorita
Haytor, que tinha as faces rosadas e
os olhos brilhantes. Estava muito
atraente e parecia rejuvenescer um
ano a cada hora que transcorria.
Cassandra, assim como sua
dama de companhia, também parecia
ter rejuvenescido. Em circunstâncias
normais aparentava seus vinte e oito
anos. Mas nesse preciso momento,
parecia vários anos mais jovem.
Ainda era cedo quando
terminaram de lanchar.
—Suponho que não deveria
ter proposto uma hora tão matinal
para sair de casa de lady Paget —
disse o senhor Golding —Ainda
restam várias horas de sol. Parece-me
uma lástima que voltaremos tão cedo.
Era uma opinião que todos
pareciam compartilhar. Ninguém
queria dar por finalizada a tarde.
—Talvez Cassie e lorde
Merton queiram dar um passeio
enquanto você e eu ficamos aqui
vigiando que não se levem a manta
nem a cesta, senhor Golding —sugeriu
a senhorita Haytor.
—Isso seria estupendo! —
Exclamou Cassandra ao mesmo
tempo em que ficava em pé antes que
Stephen pudesse lhe oferecer ajuda ou
dar sua opinião a respeito —Depois
de comer tanto, necessito com
urgência um pouco de exercício.
—Há algumas árvores que
podemos subir. —comentou ele com
um sorriso enquanto se levantava —
Mas talvez seja melhor um passeio
tranquilo. Vamos? —Ofereceu-lhe o
braço e Cassandra o aceitou.
A senhorita Haytor o observou
com certa rigidez enquanto se
afastavam. Talvez não devesse ter
feito esse comentário a respeito de
subir às árvores diante dela.
—Acredito que o chá ao ar
livre foi um êxito —disse quando se
afastaram o suficiente para que não
pudessem ouvi-los.
—Alice está radiante, não é
verdade? —perguntou ela —Nunca a
tinha visto assim. Ai, Stephen! Acha
que...? —deixou a frase no ar.
—Certamente que sim. —
afirmou —Pareceram muito felizes
juntos. Embora ainda esteja por ver se
surgirá algo mais. Tudo depende
deles.
—A voz da razão. —
replicou ela com um suspiro —Espero
que não acabe sofrendo.
—As pessoas nem sempre
acabam sofrendo. —disse ele —
Algumas vezes encontram o amor,
Cass. E a paz.
—Não me diga! —Sorriu —
Sério? De verdade encontram? Pois
isso é o que quero que Alice tenha,
amor e paz. Em parte me move o
egoísmo, porque assim me sentirei
menos culpada por tê-la presa a mim
todos estes anos.
Em vez de descer pela encosta
e caminhar pelo verde vale como tinha
feito o outro casal, conduziu-a para o
topo da colina e se introduziram em
uma antiga área arborizada, onde
tiveram que se agachar em mais de
uma ocasião para evitar os ramos mais
baixos. Gostava da panorâmica que se
desfrutava dali de cima, a sensação de
solidão, a sombra que protegia do
ardente sol. Gostava da proximidade
das árvores.
Caminharam imersos em um
silêncio cômodo enquanto ele contava
os dias. O primeiro foi o do parque,
quando Con indicou à viúva vestida de
negro e comentou que devia estar
assando com essa roupa e o véu
negro. Depois a noite do baile de
Meg, um dia depois de havê-la visto
no Hyde Park, e sua primeira noite
juntos. O passeio em tílburi e sua
segunda noite juntos. Depois chegou a
visita formal do dia anterior com o
Meg e Kate para tomar o chá com a
Cassandra e a senhorita Haytor.
E... Esse mesmo dia. Não
importava como fizesse a conta, do
primeiro dia ao último, ou do último
ao primeiro a soma sempre era a
mesma.
Quatro dias.
Conhecia a Cassandra há
quatro dias. Não chegava a uma
semana. Nem sequer se aproximava.
Tinha a sensação de conhece-
la há semanas, inclusive meses.
E entretanto, não a conhecia
tão bem, não é verdade? Mal sabia
nada dela.
—Conte sobre seu
matrimônio —lhe disse.
Cassandra voltou a cabeça
com brusquidão para olhá-lo.
—De meu matrimônio? —
repetiu—. O que fica por te contar?
—Como o conheceu? —
perguntou-lhe —Por que se casou
com ele?
Foram diminuindo o passo até
se deterem por completo. Cassandra
se soltou de seu braço e se afastou uns
passos, até se apoiar no tronco de
uma árvore enorme. Seguiu-a, embora
não se aproximasse muito, apoiando
uma mão em um ramo baixo. O
tronco teria bastado para ocultá-los à
vista dos ocupantes da manta, mas de
qualquer maneira, Stephen deu uma
olhada por cima do ramo onde tinha o
braço apoiado para se assegurar.
Afastaram-se mais do que pensava.
—Nunca tivemos um lar
fixo. —começou ela —Nunca houve
estabilidade nem segurança em casa.
Não nos faltou carinho, mas meu pai
não nos atendeu de forma
responsável. Era um homem muito
sociável e estava acostumado à
convidar muitos cavalheiros para onde
estivéssemos vivendo. Sempre
cavalheiros, nenhuma dama. Não
começou a me preocupar até que
completei quinze anos. De fato, eu
adorava a companhia e a atenção que
de vez em quando me prestavam.
Adorava que meu pai me sentasse
sobre seus joelhos enquanto falava
com eles. Mas quando comecei a me
desenvolver, tive que suportar olhares
lascivos e comentários picantes... E
um ou outro beliscão e toque às
escondidas. Inclusive um beijo. Meu
pai não o teria permitido se soubesse,
é claro. Sonhava em me ver desfrutar
de uma temporada social durante a
qual conheceria às pessoas
adequadas. Ao fim e ao cabo, era um
baronete. Mas ignorava o que
acontecia sob seu nariz, e eu nunca
contei. Nunca foi nada especialmente
perigoso, embora a situação piorasse
conforme ia crescendo.
—Deveria haver-lhe dito. —
disse ele.
—Possivelmente. — Deu de
ombros. —Mas não tinha nada com o
que comparar minha vida. Achava que
era normal. E Alice sempre estava
comigo para me proporcionar certo
amparo. Um dia, o barão Paget
acompanhou a meu pai a casa e a
partir desse momento suas visitas se
fizeram frequentes. Meu pai e ele
eram amigos. Eram mais ou menos da
mesma idade. Lorde Paget era
diferente dos outros. Era amável e
sempre muito educado e agradável, de
maneiras impecáveis. Começou a me
falar de sua casa senhorial no campo,
onde passava a maior parte do tempo,
e dos terrenos da propriedade, do
povoado e da vizinhança. Que eu
soubesse, não jogava. Um dia, ficamos
a sós, já que meu pai saiu da estadia
com algum pretexto, e me disse que
tudo isso podia ser meu se lhe
concedia a grande honra de me casar
com ele. Disse—me que estava a par
de que não tinha dote, mas que não
lhe importava. Que só me queria.
Assegurou-me que redigiria um
contrato matrimonial muito benéfico
para mim e que ele iria me amar e
cuidar de mim para o resto de sua
vida. A princípio fiquei espantada,
mas me recuperei depois da
impressão. É possível que não entenda
quão tentadora era para mim essa
proposta... Uma vida de segurança e
estabilidade em um paraíso rural.
Parecia um homem como meu pai,
mas sem seus defeitos. Embora me
casasse com ele, suponho que o via
como a um pai mais que como a um
marido.
—O que aconteceu? —
perguntou-lhe depois de um longo
silencio.
Cassandra colocou as palmas
das mãos no tronco, de ambos os
lados de seu corpo.
—Durante seis meses não
aconteceu nada. —respondeu—Não
posso dizer que fosse muito feliz. Era
um homem mais velho e eu não estava
apaixonada por ele. Mas parecia uma
boa pessoa, e era amável e atento
comigo, e eu adorava o campo e a
vizinhança. Estava grávida e delirante
de felicidade por meu estado. Sentia-
me contente, talvez inclusive um
pouco feliz. Um dia Nigel foi visitar
um vizinho longínquo, e não tive
notícias dele durante três dias. Estava
morta de preocupação e cometi o
engano de ir busca-lo. Alegrou-se
muito de me ver e me tratou com
grande amabilidade. Chamou seus
amigos, todos homens, para que
vissem o muito que o queria sua bela
esposa. Riu muito com eles e retornou
comigo a casa. Na carruagem se
manteve em completo silêncio. Sorriu-
me várias vezes, mas eu tinha medo.
Dava-me conta de que tinha estado
bebendo. Tinha uma expressão nos
olhos que me era desconhecida.
Quando chegamos em casa... —
Engoliu em seco e se deteve um
instante.
Quando continuou com o
relato, o fez com um fio de voz —
Quando chegamos em casa, ele me
levou a biblioteca e me disse em voz
muito baixa que o tinha envergonhado
tanto que não sabia se ia poder olhar
aos seus amigos na cara quando
voltasse a vê-los. Desculpei-me, mais
de uma vez. Mas ele começou a me
bater. Primeiro me esbofeteou e
depois começaram os murros... E os
pontapés. Não posso falar sobre isso...
O caso é que dois dias depois sofri um
aborto. Perdi meu filho... —Tinha
apoiado a cabeça contra o tronco e
tinha os olhos fechados. Seu rosto era
um mosaico de luzes e sombras.
Tinha perdido toda a cor.
—E não foi a única vez. —
disse ele em voz baixa.
—Não. —concordou ela —
Não foi a única surra nem o único
aborto. Eram dois homens diferentes,
Stephen. Não podia desejar um
homem mais amável, mais atento e
generoso quando estava sóbrio... E às
vezes ficava sóbrio durante meses. De
fato, esse era seu estado habitual.
Quando estava bêbado, não havia
sinais externos, só seus olhos... E sua
violência. Uma das vizinhas, que me
viu em uma ocasião quando ainda não
me tinha baixado a inflamação do olho
depois de uma surra, me disse que
sempre tinha suspeitado que Nigel
matara a sua primeira esposa. A
versão oficial é que morreu ao cair do
cavalo quando tentava saltar uma
cerca alta.
Stephen não sabia o que dizer,
salvo que se alegrava de que tivesse
matado Paget antes que ele a matasse
. Pelo amor de Deus! Esse homem
tinha matado seus filhos na barriga.
—Naquela época me achava
culpada de que se zangasse tanto
comigo. —seguiu Cassandra —Estava
acostumada a me esforçar por agradá-
lo. Fazia todo o possível por evitar
algo que acreditasse que podia lhe
desagradar. E quando sabia que estava
bebendo, costumava me esconder, me
afastar de seu caminho... Enfim, nada
dava resultado, é claro. —produziu-se
um longo silencio. —É isso. —disse
ela ao final, voltando a cabeça para
olhá-lo com uma careta nos lábios —
Você quis saber.
—E ninguém a ajudou? —
perguntou-lhe.
—Quem? —Perguntou ela
por sua vez —Meu pai morreu no ano
de meu casamento. De qualquer
maneira, não teria tido direito a
intervir. As visitas do Wesley não
eram frequentes, assim nunca viu a
face oculta de Nigel. Nunca lhe contei
das surras. Só era um menino. A
única vez que Alice tentou intervir,
Nigel bateu nela, jogou-a da estadia e
uma vez que fechou a porta com
chave se enfureceu ainda mais comigo
porque era uma má esposa, incapaz
de admitir meus defeitos e o castigo
que merecia.
—E seus filhos? —insistiu.
—Quase nunca estavam em
casa. —respondeu —Estou certa de
que o conheciam muito bem. Embora
a primeira lady Paget tenha sido mais
resistente que eu, do contrário, não
teria tido três filhos. Ou talvez os
períodos de sobriedade do Nigel eram
mais longos quando estava casado
com ela.
Não ia perguntar sobre a morte
do Paget. Já a tinha alterado muito.
Supôs que não deveria ter perguntado
nada. Tinha sido uma tarde muito
agradável até que começou com as
perguntas.
Entretanto, sua necessidade de
conhece-la melhor e de conseguir que
se abrisse a ele, ou a alguma outra
pessoa, tinha sido mais poderoso que
seu desejo de manter o ambiente
relaxado da tarde.
—Mmmm, falando de subir
em árvores. —disse em voz baixa ao
cabo de um momento, como se não
tivessem falado desde que se
afastaram da manta —Fez isso alguma
vez?
Cassandra jogou a cabeça para
trás para contemplar os extensos
ramos do carvalho.
—De menina fazia toda hora
—respondeu —Acredito que nasci
sonhando sair voando para o céu azul
ou me deixando cair nele. Esta árvore
é o sonho de qualquer um, não te
parece? —desatou as fitas do chapéu
e o deixou no chão antes de olhar os
ramos baixos, em busca da melhor
maneira de subir.
Stephen entrelaçou os dedos e
colocou as mãos como se quisesse
ajuda-la a subir a um cavalo, e quase
sem titubear lhe pôs o pé em cima
para que a levantasse.
Assim que o fez, subiu atrás
dela.
Depois desse primeiro impulso
foi muito fácil. Os ramos eram grossos
e fortes, e se estendiam quase em
paralelo com o chão. Subiram sem
falar até que, depois de olhar para
baixo, Stephen se deu conta de que
tinham subido o bastante.
Cassandra se sentou em um
ramo, com as costas apoiada no
tronco, e se levou as pernas ao peito e
as abraçou. Ele ficou em pé em um
ramo mais baixo, com um braço
apoiado no ramo superior e o outro ao
redor da cintura da Cassandra.
Ela o olhou com um sorriso
antes de se pôr a rir.
—Ai, tomara pudéssemos
voltar para a infância! —exclamou.
—Sempre podemos ser
crianças —respondeu ele —É um
estado mental. Tomara a tivesse
conhecido quando era mais jovem,
antes que usasse essa armadura de
cinismo e desdém para esconder toda
a dor e a raiva. Tomara não tivesse
tido que viver tudo isso, Cass. Tomara
pudesse fazer isso desaparecer ou
curar com um beijo, mas não posso.
Embora possa lhe dizer uma coisa: se
insistir em se manter afastada das
pessoas e de tudo de bom que o
mundo e a vida podem lhe oferecer,
será você quem sairá perdendo.
—Que garantia tem da vida
não voltar a me pôr um olho
arroxeado? —perguntou ela.
—Infelizmente, nenhuma. —
respondeu —Mas acredito que no
mundo há muitíssima mais bondade
que maldade. E se essa afirmação lhe
parece muito inocente, me permita
expressá-la de outra maneira.
Acredito que a bondade e o amor são
muitíssimo mais fortes que a maldade
e o ódio.
—Os anjos são mais fortes
que os demônios? —perguntou ela
com um sorriso.
—Sim. —respondeu ele—
Sempre.
Cassandra ergueu os braços e
lhe colocou as mãos de ambos os
lados do rosto com muita delicadeza.
—Obrigada, Stephen. —ela
disse antes de lhe dar um beijo fugaz
nos lábios.
—Além disso, sabe mais do
amor que imagina. —continuou ele —
Converteu-se em minha amante não
só por sua pobreza, essa nem sequer
foi sua primeira motivação. Tem uma
dama de companhia que
possivelmente esteja muito velha para
achar um emprego que a satisfaça,
tem uma criada que certamente não
pode conseguir trabalho algum se
quiser manter sua filha consigo. Tem
essa menina. E o cão, que também é
membro de sua família. Fez isso por
elas, Cass. Sacrificou-se por amor.
—Com um homem tão
bonito, tampouco se pode dizer que
foi um sacrifício, não? —replicou com
sua voz aveludada.
—Certamente que foi —
assegurou ele.
Cassandra deixou as mãos
sobre o ramo, de ambos os lados de
seus quadris, e apoiou a cabeça em
seu peito.
—É curioso, mas ao falar do
abominável me liberei um pouco. —
disse ela—Sinto-me muito... Feliz. Por
fez isso? Por isso me perguntou?
Stephen inclinou a cabeça e a
beijou no cabelo, temperado pelo
calor do sol.
—Está se sentindo feliz? —
ela lhe perguntou.
—Sim. —respondeu.
—Embora não seja essa a
palavra adequada. —indicou
Cassandra —Prometeu alegria para
hoje, Stephen, e me proporcionou
isso. Não são exatamente a mesma
coisa, verdade? Refiro-me à felicidade
e à alegria.
Ficaram tal como estavam um
momento, e ele desejou que o tempo
se detivesse, embora só por um
momento. Havia algo na Cassandra
que o atraía de forma irresistível. Não
se tratava só de sua beleza. Nem
muito menos de suas artimanhas
sedutoras. Era... Não sabia expressar
o que era exatamente. Nunca tinha
estado apaixonado e não achava estar
nesse momento. Que desconcertantes
podiam ser as emoções humanas em
algumas ocasiões! Uma ideia sobre a
qual nunca tinha refletido antes de
conhecer Cassandra.
—A felicidade é mais
efêmera. —disse —A alegria é mais
duradoura.
Cassandra suspirou e levantou
a cabeça.
—Mas depois vem o
desastre. —ela declarou. —Alguém
passa três dias inteiros bebendo e... e
adeus felicidade. A alegria
permanece? Como é possível?
—Algum dia aprenderá que
o amor nem sempre trai, Cass.
Ela sorriu.
—É a única pessoa que me
chama assim. —comentou —Eu
gosto. Irei me lembrar... desse
diminutivo pronunciado com sua voz.
—Deu-lhe um beijo fugaz nos lábios
antes de baixar as pernas ao ramo
onde ele se achava—. Agora é quando
a gente se dá conta de que subir a
uma árvore não é tão boa ideia depois
de tudo. —disse —Porque terá que
descer e a descida sempre é dez vezes
pior que a subida.
Entretanto, pôs-se a rir
quando ele fez gesto de ajudá-la e
começou a descer como se passasse
todos os dias de sua vida subindo às
árvores.
Uma vez que os dois estiveram
no chão, viu-a sorrir e chegou à
conclusão de que nunca tinha visto
uma mulher tão linda.
Cass invadida pela alegria.
Era uma imagem que levaria
consigo o resto de sua vida. Muito
perto do coração. Perigosamente
perto.
Porque, apesar de tudo, tinha
matado seu marido e era impossível
evitar a carga tão imensa e pesada que
teria que suportar durante o resto de
sua vida.
E também era impossível evitar
a certeza de que tal carga seria muito
pesada se decidisse compartilhá-la, se
decidisse se apaixonar por ela.
Como "se"? Recriminou-se.
Seria já muito tarde?
Que complicações sentiam as
pessoas ao se apaixonarem?
CAPÍTULO 15

Stephen esteve toda a manhã


seguinte na Câmara dos Lordes,
participando do debate de um tema
que lhe interessava em particular.
Depois partiu ao White"s, como era
seu costume, para desfrutar de um
tardio almoço com alguns amigos com
quem teria ido às corridas se algo, ou
melhor, alguém, não o tivesse
distraído justo antes de entrar no
clube.
Wesley Young.
Para não falar da distração que
supunha sua irmã, em quem não podia
deixar de pensar desde o dia anterior.
Inclusive tinha sonhado com ela. Em
seu sonho tinham de novo subidos nos
ramos da árvore, beijando-se e dali se
pondo a voarem pelo céu, felizes e
contentes até que ele tentou descobrir
o caminho de volta, entre seus
desordenados cachos ruivos, porque
ela recordou de repente que o cão
tinha que comer.
Um sonho muito absurdo.
Não recordava ter sonhado
nunca com uma mulher.
—Sabe alguém onde vive sir
Wesley Young? —perguntou ao
grupo.
Todos negaram com a cabeça,
salvo Talbot, que pareceu recordar
que Young tinha alugado uma
residência de solteiro em Saint
James’s Street, perto do clube. Em
concreto, a casa com a chamativa
porta amarela.
—Lembro ter esperado
diante dessa porta com umas taças a
mais no corpo, esperando que Young
conseguisse colocar a chave na
fechadura —seguiu Talbot —E a
verdade, Merton, essa cor amarela
não me assentou bem ao estômago.
Tirou-me a vontade de beber, só
tomei, no máximo, seis ou sete taças a
mais quando entramos.
O fato de ter visto Young perto
do clube poderia significar que voltava
para casa depois de almoçar ou que
acabava de sair para almoçar fora,
concluiu.
A decisão de não ir às corridas
foi uma decepção não só para alguns
de seus amigos, mas também para si
mesmo. De modo que foi em busca da
chamativa porta amarela, que acabou
não sendo tão chamativa à luz do dia e
em estado sóbrio.
Bateu e esperou.
E compreendeu que estava se
comportando de forma irracional. E
impulsiva. Nem sequer tinha claro por
que o estava fazendo, salvo que de
algum modo tinha acabado se
envolvendo com Cassandra, no âmbito
pessoal e emocional, e o reprovável
impulso de interferir em sua vida lhe
era irresistível.
Não deveria fazer o que estava
fazendo. Ela não tinha pedido.
Nem sequer havia ficado de
voltar a vê-la depois do chá ao ar livre
do dia anterior. Necessitava de um
tempo para se serenar. Tinham
bastado quatro dias para se descobrir
mergulhado na loucura. Coisa
imprópria nele, que costumava levar
uma vida tranquila e bastante
previsível. E gostava que fosse assim.
Seu sonho, pelo contrário, não
lhe tinha ajudado nada a manter essa
decisão tão sensata.
Como tampouco lhe tinham
ajudado as fantasias que passavam por
sua mente enquanto jazia acordado na
cama, desejando-a com um ardor
febril.
Decidiu que não podia
continuar assim. Precisava fazer algo
por ela antes de retomar o curso
normal e feliz de sua vida.
O criado de quarto de Young
abriu a porta e aceitou seu cartão de
visita. Pediu-lhe que esperasse no
salão saguão do andar térreo, uma
estadia tipicamente escura e pouco
acolhedora, enquanto subia para
comprovar se o senhor Young estava
em casa, um claro sinal de que estava.
Porque do contrário o criado não o
teria convidado a entrar.
Ao cabo de uns minutos
apareceu Young em pessoa, surpreso
e desconcertado. E arrumado como se
estivesse a ponto de sair.
—Merton? —perguntou-lhe
—Não esperava esta honra.
—Young? —disse ele por
sua vez, saudando-o com uma
inclinação de cabeça.
Era ruivo e bonito, embora
carecia da radiante beleza de sua
irmã. Não obstante, a semelhança
familiar era inegável. Sua expressão
afável e simpática lhe foi irritante.
Produziu-se um incômodo
silêncio.
—Deseja subir? —convidou-
Young, pondo fim a dito silêncio.
—Não, obrigado. —recusou.
Não tinha vontade de encetar em uma
conversa insossa. —Estou há alguns
dias meditando o tema a fundo e
cheguei à conclusão de que sob
nenhuma circunstância me imagino
dando as costas a uma de minhas
irmãs no Hyde Park ao me cruzar
com ela.
Young se sentou em uma
estragada poltrona de couro sem
convidá-lo sequer a fazer o mesmo.
De qualquer forma, Stephen se
acomodou na poltrona de frente, cujo
assento estava cheio de caroços.
—Sobretudo se está sem
amigos e em situação de desamparo
—acrescentou.
Young se ruborizou e sua
expressão se tornou aborrecida, não
sem razão talvez.
—Merton, —replicou —
deve entender que não sou um homem
rico. Ou talvez não o entenda, claro.
Para mim é importante contrair um
matrimônio vantajoso, e este ano
estou... não, estava a ponto de obtê-lo.
Cassie foi muito egoísta ao se
apresentar em Londres precisamente
agora, sobretudo depois de lhe
advertir que não fizesse isso.
—Egoísta... —repetiu
enquanto observava como Young
voltava a ficar em pé preso dos nervos
e caminhava para a lareira. —Para
onde iria se não para cá?
—Ao menos poderia ter
levado uma vida discreta e sem
chamar a atenção de ninguém. —
respondeu o jovem —Mas desde a
tarde que a vi no parque, me disseram
que já apareceu no baile de lady
Sheringford e no chá de lady Carling.
E não sei como, mas conseguiu
convencê-lo para que a acompanhasse
a dar um passeio de carruagem pelo
parque justo quando estava mais
concorrido. Deveria compreender que
depois do que fez, tem sorte de seguir
viva e em liberdade. É absurdo que
espere ser recebida por gente decente.
É absurdo que espere que eu... Mas
por que estou lhe contando tudo isto?
Nem sequer o conheço e não lhe
incumbe a maneira com a qual trato
minha irmã.
Stephen passou por cima de
suas recriminações, embora Young
tivesse toda a razão do mundo, é
claro.
—Acredita então em tudo o
que se diz sobre ela? —perguntou-lhe,
pelo contrário—Conhecia bem lorde
Paget?
Young franziu o cenho, mas
seguiu com o olhar cravado na lareira.
—Era o tipo mais simpático
do mundo. —respondeu —E generoso
até dizer chega. Deve ter gasto o
resgate de um rei em joias para a
Cassandra. Deveria vê-las. Fui
algumas vezes de visita a Carmel
House. E me decepcionou ver minha
irmã. Tinha mudado. Tinha perdido a
faísca e o bom humor que sempre
teve enquanto crescíamos. Mal falava.
Saltava à vista que se arrependia de
haver se casado com um homem
apenas uns anos mais jovem que
nosso pai, e me pareceu muito injusto
para Paget, que a adorava. Ao fim e
ao cabo, se casara com ele sabendo
muito bem a idade que tinha. Matou-
o? Enfim, alguém o fez, Merton. E
não me ocorre nenhuma outra pessoa
que tivesse mais motivos que ela.
Queria ser livre. Queria voltar para
Londres e se comportar tal qual está
fazendo. É claro que o enfeitiçou, e
todo mundo sabe que é mais rico que
Creso.
—A irmã que você conheceu
seria capaz de matar a um homem
para recuperar a liberdade e desfrutar
da vida? —perguntou-lhe Stephen.
Young retornou à poltrona de
couro e se deixou cair nela.
—Enquanto crescíamos foi
minha mãe, minha irmã e minha
amiga. —respondeu —Mas a pessoa
muda, Merton. Ela mudou. Vi com
meus próprios olhos.
—Talvez a obrigaram a
mudar. — replicou Stephen —Talvez
nem tudo fosse as mil maravilhas
nesse matrimônio. Pensei entender
que suas visitas foram escassas e
breves, certo?
Young cravou a vista em suas
botas com o cenho franzido e se
manteve em silêncio.
Estava a par de tudo, concluiu
Stephen. Possivelmente sempre
esteve, ou talvez só suspeitou. Às
vezes era mais simples passar por
cima as coisas, às vezes era mais
simples se negar a admitir a verdade.
—Eu era muito jovem —
aduziu sir Wesley, a modo de
desculpa.
—Entretanto, agora já é
maior de idade —indicou. —Sua irmã
necessita de um amigo, Young.
Necessita a alguém de sua família que
a queira de forma incondicional.
—A senhorita Haytor... —
protestou o aludido, embora teve a
decência de não completar a frase.
—Sim. —disse ele —A
senhorita Haytor é sua amiga. Mas
não é da família. E tampouco é um
homem.
Young se mexeu incômodo na
poltrona, mas em nenhum momento
confrontou seu olhar.
—A jovem que o
acompanhava no parque, —seguiu
Stephen—receio que não a conheço.
—É a senhorita Norwood.
—supriu Young.
—Continua tendo
esperanças de se casar com ela?
—Ontem de tarde passei
para procura-la, mas me
comunicaram que se sentia indisposta
para ir ao almoço ao ar livre. —
respondeu seu interlocutor com um
sorriso crispado —Disseram-me que
estaria indisposta alguns dias.
Entretanto, a vi ontem à noite nos
jardins do Vauxhall transbordante de
saúde. Estava com seus pais e com o
visconde de Brigham.
—Nesse caso, considere-se
afortunado por ter escapado a tempo.
—comentou —Entre a alta sociedade
haverá quem o respeite muito mais se
decidir apoiar a sua irmã abertamente
ai invés de fingir não conhece-la. E, é
claro, haverá quem não o respeite. A
que grupo prefere impressionar? —
ficou em pé para partir.
—Que interesse tem em
Cassie? —quis saber Young, que
seguiu sentado —É sua amante?
—Lady Paget necessita de
um amigo com desespero. —
respondeu Stephen —Sou seu amigo.
E embora saiba de boa tinta, porque
ela mesma me contou isso, que tinha
motivos de sobra para matar o mal
nascido que foi seu marido, algo me
diz que ela não o matou. Ignoro as
circunstâncias de sua morte, salvo o
fato de que atiraram nele, não que o
mataram com um machado. Mas vou
dizer lhe uma coisa, Young: Por mais
que em algum momento chegue a
descobrir, sem o menor indício de
dúvida, que foi ela quem disparou,
seguirei sendo amigo de lady Paget.
Porque o barão era um mal nascido.
Sabia que sua irmã sofreu dois abortos
e um parto prematuro, e não
precisamente por causas naturais?
Nesse momento Young o
olhou nos olhos enquanto seu rosto
perdia todo rastro de cor. Entretanto,
Stephen não esperou que dissesse
algo. Pegou seu chapéu e sua bengala,
que estavam ao lado da porta, e saiu
do escuro salão em direção à rua.
Enfim, não devia interferir na
vida daquelas pessoas que não eram
de sua conta...
De repente, tirou o chapéu
caminhando para o Portman Street,
em concreto para a casa da
Cassandra. O motivo lhe escapava.
Talvez precisasse lhe confessar o que
acabava de fazer. Estava certo de que
se zangaria muitíssimo ao se inteirar, e
tinha todo o direito do mundo a se
zangar, claro. Arrependia-se de ter
agido assim? Perguntou-se.
Absolutamente. Voltaria a fazer o
mesmo se lhe dessem a oportunidade.
De verdade pensava que
Cassandra era inocente do assassinato
de seu marido? Que era inocente
inclusive de tê-lo matado em defesa
própria? Seria seu desejo de que fosse
inocente? O que o levava a essa
conclusão?
Cassandra não estava em casa.
Coisa que foi quase um alívio.
—Saiu com a senhorita
Haytor, milorde —disse a criada.
—Ah! —exclamou ele —
Faz muito tempo?
—Não, milorde. Faz um
momento.
Entretanto, não havia rastro de
nenhuma das duas pela rua. Pelo que
deduziu que iriam demorar para
retornar.
—Mary, —disse —posso
falar com você?
Que complicações vou fazer!?
Perguntou-se para si mesmo.
—Comigo? —perguntou
Mary com os olhos arregalados
enquanto levava uma mão ao peito.
—Só serão uns minutos. —
lhe assegurou —Não lhe tirarei muito
tempo.
Mary se afastou para deixa-lo
passar, e ao ver que ele fazia um gesto
em direção à cozinha, o adiantou a
toda pressa.
Ao passar, Stephen reparou no
cartão com a borda dourada que
descansava contra o vaso da mesa do
saguão. Nela estava escrito o nome de
lady Paget com uma caligrafia muito
elegante. Um convite para o baile de
lady Compton, que se celebraria na
noite seguinte. Sobre a escrivaninha
de seu escritório havia um exatamente
igual a esse.
Isso queria dizer que seu plano
estava dando resultados? Que a alta
sociedade começava a abrir as portas
a Cassandra?
A menina estava sentada no
chão debaixo da mesa da cozinha,
com o cão deitado a seus pés. Ao
escutá-lo, o animal o olhou com seu
único olho e começou a mover o rabo
preguiçosamente sobre o chão, mas
não fez gesto de se levantar. A menina
estava cantando em voz baixa à
boneca, que tinha agasalhado com sua
mantilha branca enquanto a embalava.
Mary se voltou para olhá-lo e
de repente Stephen se percebeu de
que era uma mulher muito bonita,
apesar de sua magreza e a sua
palidez. Tinha uns olhos muito bonitos
e o rubor que tinha provocado sua
presença assentava muito bem a suas
faces.
—Mary... —disse-lhe, e
compreendeu que não podia lhe
perguntar o que mais desejava saber.
Era muito possível que nem sequer
soubesse a resposta. De repente,
sentiu-se ridículo —O que se passou
com o cão?
A moça baixou a vista e
começou a retorcer o avental.
—Alguém, um... um
desconhecido... —titubeou —tentou
golpear lady Paget nos estábulos e
Roger tratou de defende-la, a surra
não foi tão brutal como a que tinha
sofrido outras... como a que poderia
ter sofrido se não fosse por ele. Mas
lorde... mas o desconhecido pegou um
chicote e bateu em Roger com ele,
com tanta força que ficou cego de um
olho e perdeu quase toda a orelha.
Além disso, tinha a pata tão esmagada
que tiveram que lhe amputar a parte
inferior.
—Esmagada... com um
chicote? —quis saber.
—Com uma... pá, acredito
—respondeu Mary.
—E este desconhecido... Ou
talvez lorde Paget, também saiu
ferido? —perguntou-lhe.
Mary lhe lançou um olhar
fugaz antes de cravar os olhos de novo
no avental.
—Acabou com umas boas
dentadas, milorde. —respondeu —
Nos braços, nas pernas e na cara.
Esteve uma semana inteira de cama
antes de poder se levantar e levar uma
vida normal. Refiro-me a lorde Paget.
Que foi resgatar milady. Não sei o que
aconteceu ao desconhecido. Deve ter
escapado.
Perguntou-se o que faria Mary
quando rememorasse a conversa e
reparasse nos buracos que
apresentava a história.
—O encarregado dos
estábulos queria sacrificar Roger. —
continuou Mary —Dizia que era o
melhor que podiam fazer por ele. Mas
lady Paget ordenou que lhe
amputassem a parte esmagada da pata
e depois o levasse ao seu dormitório
que iria cuidar dele até que se
recuperasse, embora ninguém pensava
que isso fosse acontecer, só ela. Lorde
Paget nunca ordenou que
sacrificassem o animal, embora isso
era o que esperávamos todos. Roger
não deve tê-lo reconhecido quando foi
resgatar a sua esposa e por isso o
atacou também.
Stephen lhe colocou uma mão
no ombro e lhe deu um apertão.
—Não se passa nada, Mary.
—disse —Sei. Lady Paget me contou
tudo. Não me disse sobre Roger, mas
sim o resto. Tampouco me falou sobre
a morte de lorde Paget, mas não vou
tentar te surrupiar nada a respeito. —
Entretanto, reconheceu que era justo
isso o que tinha ido averiguar —Sinto
tê-la inquietado —acrescentou.
—Ela não o matou.—
sussurrou a criada com os olhos
novamente arregalados e o rosto
branco de repente. Deu-lhe outro
apertão antes de soltá-la.
—Eu sei —disse.
—Eu a adoro. —confessou a
moça com valentia —Fiz mal ao vir
com ela? Cozinho, limpo e faço tudo o
que posso, mas a estou
envergonhando? Sou uma carga para
ela porque tem que dar de comer a
mim e a Belinda? Sei que se sente
obrigada a me pagar. E sei que não
tem dinheiro ou que não tinha até
que... —Deixou de falar de repente e
mordeu o lábio.
—Fez o correto, Mary. —
lhe assegurou —Lady Paget necessita
a alguém que cuide dela, e me parece
que você o faz muito bem. E necessita
de amigos. Necessita de amor.
—Eu a quero muito. —
asseverou Mary —Mas fui a culpada
de tudo o que aconteceu afinal. Tenho
a culpa de tudo. —cobriu o rosto com
o avental e, ao vê-la, Belinda deixou
de embalar a sua boneca para olhá-la.
—Não, eu tenho a culpa de
tudo isto. — contradisse Stephen —
Não deveria ter vindo incomodá-la
com minhas perguntas. Como está
Beth hoje, Belinda? Está adormecida?
—Está sendo chata. —
respondeu —Quer brincar.
—Ah, sim? Pois então
deveria brincar com ela um pouquinho
ou lhe contar uma historia. Os bebês
dormem quando lhes contam uma
história.
—Pois lhe contarei uma. —
disse a menina —Sei uma. Acaba de
comer e se brincarmos agora, talvez
vomite.
—Já vejo que é uma mamãe
muito boa e esperta. Beth tem muita
sorte. — voltou-se para Mary, que
estava alisando o avental sobre as
saias. —Já a entretive muito quando
deveria estar trabalhando... Ou
descansando, não sei. Sinto muito lhe
ter feito tantas perguntas. Não estou
acostumado a me misturar nos
assuntos dos outros.
—Gosta dela? —perguntou-
lhe Mary.
—Sim. —respondeu ele,
arqueando as sobrancelhas. —Receio
que sim.
—Então, o perdoo. —
replicou a moça, que ficou muito
vermelha.
—Iria se ofender se lhe
desse dinheiro para comprar um
sorvete para Belinda no Gunter’s
alguma tarde que tenha livre? Todos
as crianças deveriam viver essa
experiência. E também os adultos.
—Tenho dinheiro. —
protestou Mary.
—Sei. —afirmou com um
sorriso —Mas gostaria muito de poder
oferecer isso a Belinda... e também a
você.
—De acordo. —claudicou a
criada por fim —Obrigado, milorde.
Stephen partiu a toda pressa
depois de deixar algumas moedas na
mesa, o justo para dois sorvetes. Foi
para casa, embora ainda fosse muito
cedo. Não estava de humor para fazer
nada do que estava acostumado a
fazer nessa hora. Nem sequer lhe
passou pela cabeça a ideia de ir as
corridas, embora teria chegado a
tempo para ver quase todas.
Tentou pensar nas jovenzinhas
com quem normalmente gostava de
dançar e falar, e inclusive paquerar de
uma forma inocente.
Não foi capaz de recordar a
cara de nenhuma.
Se a memória não lhe falhava,
não tinha reservado nenhuma dança
com ninguém para a festa de lady
Compton.
Mary acabava de dizer que ela
era a culpada de tudo o que aconteceu
no final. Da morte de lorde Paget,
conforme tinha entendido ele. Além
disso, havia dito com firmeza que
Cassandra não o tinha matado.
Claro que depois disso tinha
acrescentado que a adorava. Era
muito fácil mentir em benefício de um
ser querido.
O cão tinha sofrido as feridas
recebendo uma surra que a princípio
estava destinada a sua proprietária.
Tinham-lhe esmagado a pata com
uma pá... Com a que também tinha
ameaçado Cassandra? Estaria morta
nesse momento se Roger não tivesse
intervindo? Diria a versão oficial que
também caíra de um cavalo?
Ao chegar, descobriu que tinha
enxaqueca.
E ele nunca sofria de
enxaquecas.
—Vá, Philbin. —disse a seu
criado de quarto ao ver que estava em
seu roupeiro, colocando umas camisas
recém engomadas —Se abrir a boca,
com certeza digo-lhe algo
desagradável e que me parta um raio
se tiver que passar o resto da vida
pedindo-lhe perdão a três por quatro.
—As botas novas lhe
apertam, não é verdade, milorde? —
replicou Philbin com voz alegre —
Disse-lhe quando as comprou e...
—Philbin, — o interrompeu
enquanto levava uma mão à cabeça
para apertar as têmporas com os
dedos —Vá. Agora mesmo.
Philbin se foi.

Cassandra tinha dado uma


olhada no jornal que Alice comprou
alguns dias antes e tinha cotado os
nomes e os endereços de três
advogados que esperava que
estivessem dispostos a ajuda-la.
Quando se inteirou do que pensava
fazer, Alice lhe aconselhou que
falasse com o senhor Golding ou
inclusive com o conde Merton, já que
ambos saberiam quais eram os
melhores advogados para um caso
como o seu.
Entretanto, estava farta de
depender dos homens. Apenas se
podia confiar neles, e embora seguro
que era injusto pensar algo assim tanto
no caso do senhor Golding como no
de Stephen, o certo era que já se
cansara de não ter o controle de sua
própria vida. Há menos de uma
semana pensava que obteria tal
controle se conseguisse um protetor.
Nesse momento ia fazer o que deveria
ter feito a princípio.
Entretanto, não foi fácil, tal
como descobriu, depois de falar com
os três advogados, um após o outro,
acompanhada da Alice, que tinha
insistido em ir com ela. Nas palavras
de sua amiga, ninguém tomaria a sério
uma dama que aparecesse sozinha.
Com acompanhante ou sem
ela, ninguém tomou a sério.
O primeiro advogado lhe disse
que não aceitava clientes novos, já que
estava muito ocupado com os que
tinha. Apesar de anunciar seus
serviços no jornal.
O segundo foi mais direto na
hora de admitir que a reconhecia, e
lhe fez chegar a mensagem de que
não era um advogado criminalista e
que, no caso de ser, não representaria
assassinos desalmados.
Depois disso, Alice lhe disse
que deviam voltar para casa. Estava
muito aborrecida. Assim como ela
mesma, é claro, mas a grosseria desse
homem (que nem sequer teve a
decência de lhe falar em pessoa) fez-
lhe levantar o queixo, endireitar os
ombros e seguir adiante com passo
quase marcial.
O terceiro advogado convidou-
as a entrar em seu escritório, saudou-a
com uma reverência e com um sorriso
adulador, escutou sua história com
atenção e simpatia, e depois lhe
assegurou que seu caso era legítimo e
que se contratasse seus serviços,
conseguiria seu dinheiro, suas joias, a
residência da viúva e também a de
Londres, em um abrir e fechar de
olhos. Em seguida, comunicou-lhe
seus honorários, que a seus ouvidos
soaram exorbitantes, embora o
homem lhe assegurasse que lhe estava
fazendo um desconto considerável
levando-se em conta que seu caso
seria simples, e de que era uma dama
pela qual sentia enorme respeito e
simpatia. Acrescentou que só lhe
pediria a metade dessa quantidade por
antecipado, nem um tostão a mais.
Cassandra lhe ofereceu o que
tinha e acrescentou que se seu caso
fosse tão simples e ele lhe conseguisse
o dinheiro que lhe pertencia com
suma facilidade, não demoraria para
poder lhe pagar a quantidade
completa; mas que enquanto durasse
essa situação e não pudesse acessar
seu dinheiro, era impossível pagar
mais.
Parecia que ao advogado não
tinha passado pela cabeça que uma
mulher com o título de "lady Paget"
pudesse estar desamparada, apesar da
história que acabava de lhe contar.
Sua atitude mudou. Tornou-se brusca,
fria e irritada.
Não poderia levar a cabo seu
trabalho com essa antecipação tão
ridícula...
Tinha uma esposa e seis
filhos...
Tinha sido uma perda de
tempo que lamentava muito... Além
disso, devia lhe pagar a tarifa habitual
pela consulta... As investigações que
teria que levar a cabo seriam árduas...
E lady Paget não podia esperar
que ele...
Cassandra nem sequer lhe
prestou atenção. Ficou em pé e saiu
de seu escritório e do edifício seguida
da Alice, que disse uma vez que
estiveram caminhando pela rua:
—Talvez o conde Merton...
Voltou-se para sua antiga
preceptora lançando faíscas pelos
olhos.
—Faz só uns dias que o
conde Merton era o demônio
personificado em sua opinião, porque
me estava pagando um generoso
salário pelo uso de meu corpo. E
agora que já não faz uso de meu
corpo, vê perfeitamente lícito lhe pedir
uma pequena fortuna?
—Cassie, cale-se! —
exclamou Alice enquanto olhava a
todos lados, morta de vergonha. Por
sorte, os poucos transeuntes que havia
pela rua não estavam tão perto para
escutá-las. —Estava pensando em um
empréstimo. —explicou. — Se esse
homem diz a verdade, poderia lhe
devolver em breve.
—Nem que me desse
amanhã mesmo meu dinheiro
acompanhado das joias da Coroa
pagaria um quarto de centavo a esse
advogado. —sentenciou. Mas deixou
cair os ombros imediatamente. —
Sinto muito, Allie. Não tenho direito
de lhe falar dessa maneira. Mas me
diga que tenho razão. Diga que todos
os homens têm a alma podre.
—Nem todos. — corrigiu
Alice enquanto lhe dava uns tapinhas
no ombro e se colocavam a andar de
novo. —Embora esse em concreto a
tem. Compadeço-me de sua pobre
mulher e de seus seis filhos. Pensou
que podia lhe tirar uma boa fatia de
dinheiro só porque é uma mulher. E
poderia ter feito isso. Teria lhe dado a
quantidade que lhe pediu, sem
pigarrear, por mais abusiva que fosse.
Por desgraça para ele, a avareza
rasgou o saco.
Cassandra soltou um fundo
suspiro. Pouco lhe tinha servido sua
determinação de controlar sua vida.
Pouco lhe tinham servido sua
resolução e seus planos. Mas tentaria
outra vez. Não pensava em se render.
Embora não o faria esse dia.
Gostaria era de se arrastar para casa
para lamber as feridas. E, como se o
tempo se compadecesse de seu estado
de ânimo, o céu fechou e o vento
começou a levantar o pó das calçadas.
A temperatura desceu de repente.
—Vai chover. —disse Alice
levantando o olhar.
Apressaram-se a voltar para
casa e chegaram justo quando
começavam a cair as primeiras gotas.
Cassandra suspirou com alívio quando
a chave que tinha tirado debaixo do
vaso de barro virou na fechadura e
tanto Alice como ela entraram. A casa
começava a parecer um lar. Um
santuário.
Mary chegou correndo da
cozinha enquanto limpava as mãos no
avental.
—Há um cavalheiro na sala,
milady —disse.
—O senhor Golding? —
perguntou Alice, esperançosa.
Stephen? Pensou ela, embora
não chegasse a falar em voz alta.
No dia anterior durante o chá
ao ar livre não falaram sobre a
possibilidade de voltar a se verem. E
foi um alívio, porque tinha chegado à
conclusão de que se viam muito.
Entretanto, reconhecia que todo um
dia sem vê-lo era um tanto
deprimente. Uma ideia alarmante.
Abriu a porta da sala e
descobriu um jovem passeando de um
lado para outro.
Ficou gelada quando o viu se
voltar para olhá-la.
—Cassie. —lhe disse com
expressão desolada.
—Wesley.
Entrou e fechou a porta atrás
dela. Alice tinha desaparecido.
—Cassie, eu... —começou
seu irmão, mas se deteve e engoliu
saliva com força. Passou os dedos
pelo cabelo, um gesto que lhe era
muito familiar. —Ia dizer que não a
reconheci o outro dia, mas teria sido
uma tolice, não é?
—Sim. —concordou ela —
Teria sido uma tolice.
—Não sei o que dizer. —
reconheceu Wesley.
Embora não o tivesse visto
muito durante os últimos dez anos,
sempre o tinha querido com loucura.
Porque o sentia como seu. Que idiota
tinha sido.
—Talvez poderia começar
me contando o que se passou com a
viagem pelas Highlands —propôs.
—Ah! —Exclamou seu
irmão —É que alguns amigos.... Ao
diabo com as desculpas! Cassie, não
havia nenhuma viagem.
Tirou o chapéu, que soltou
junto a bolsa em uma cadeira próxima
à porta, e depois se aproximou de sua
poltrona habitual para se sentar junto
à lareira.
—Deve entender que papai
não deixou muito dinheiro... Melhor,
não deixou nada. Assim este ano me
tinha proposto começar a procurar a
sério uma noiva que possa contribuir
com uma boa fortuna ao matrimônio.
Não queria que aparecesse e
arruinasse tudo. Este ano não.
Nesse instante compreendeu
que seu irmão tinha feito algo
parecido ao que tinha feito ela:
Procurar a alguém que solucionasse
seus problemas econômicos.
—Suponho que suas
possibilidades de contrair um bom
matrimônio se reduzirão por culpa
dessa irmã que assassinou com um
machado seu marido, não é verdade?
Sinto muito.
—Ninguém acredita nessa
parte da história. —replicou Wesley
—Refiro-me ao machado.
O comentário lhe arrancou um
sorriso enquanto observava como
começava a ficar nervoso uma vez
mais.
—Cassie —disse seu irmão
—aquela vez que fui vê-la quando
tinha dezessete anos, lembra? Tinha
os restos amarelados de um
hematoma em um olho.
Ah, sim? Perguntou-se ela
para si mesma. Não recordava que as
visitas do Wesley tivessem coincidido
com alguma das numerosas surras que
tinha recebido.
—Bati na porta de meu
dormitório —disse. — Acredito
recordar que me aconteceu em uma
ocasião.
—Com a porta dos
estábulos. — a corrigiu —Cassie,
Paget... Paget chegou a bater em
você?
—Um homem tem direito a
disciplinar a sua esposa quando o
desobedece, Wesley —indicou ela.
Seu irmão a olhou com gesto
carrancudo e preocupado.
—Tomara me falasse com
sua verdadeira voz, Cassie, não com
esse tom... tão sarcástico. Bateu em
você?
Olhou-o em silêncio um bom
tempo.
—Era um bêbado ocasional.
—respondeu. —Quando bebia, fazia
durante dois ou três dias seguidos e
sem parar. E depois... ficava muito
violento.
—Por que não me disse
isso? —Reprovou-lhe Wesley —
Haveria... —Deixou a frase no ar.
—Wes, era sua legítima
esposa. —lhe recordou —E você só
era um rapaz. Não poderia ter feito
nada.
—Matou-o? —Perguntou
seu irmão —Deixando o machado de
lado, o matou? Foi em defesa própria,
enquanto batia em você?
—Isso não importa. —
respondeu —Não houve testemunhas
que possam falar, assim não há
provas. Merecia morrer e morreu.
Ninguém merece que o castiguem por
terem o matado. Deixa estar.
—Sim importa! —
contradisse —Importa-me. Só quero
saber. Embora a verdade não vá
mudar nada. Sinto-me profundamente
envergonhado de mim mesmo. E
espero que acredite em mim e me
perdoe. Estive todo este tempo
pensando só em mim, mas é minha
irmã e a amo. Foi uma mãe para mim
quando era pequeno. Nunca me senti
só nem desamparado, embora papai
passasse dias fora apostando nas
mesas de jogo. Deixe-me... Pelo
menos me deixe apoiá-la, Cassie.
Reconheço que é muito tarde, mas
espero que não seja muito.
—Não há nada a perdoar, de
verdade —assegurou ela —Wes, de
vez em quando todos fazemos coisas
egoístas e desprezíveis na vida, mas
esses momentos não chegam
realmente a nos definir se contarmos
com uma consciência bastante forte
para impedir que nos convertamos em
pessoas egoístas e desprezíveis. Não
matei Nigel. Mas não direi quem o
matou. Nem a você nem a ninguém.
Jamais. Assim seguirei sendo a
principal suspeita do crime, embora
opinassem que a morte dele foi
acidental. A maioria das pessoas
acreditará que o matei. Mas isso não
me afeta.
Wesley assentiu com a cabeça.
—A dama com quem o vi no
parque, —seguiu ela —continua
cortejando-a?
—Tinha muito mau gênio.
—respondeu seu irmão com uma
careta.
—Ah! Vejo que escapou a
tempo. —comentou com um sorriso.
—Sim.
—Venha e se sente. —
convidou —Se continuo olhando-o
assim, acabarei com o pescoço
dolorido.
Wesley se sentou na poltrona
adjacente à sua. Cassandra lhe
estendeu a mão e ele a aceitou, lhe
dando um apertão. A chuva golpeava
os vidros da janela. O ambiente era
quase acolhedor.
—Wes, —disse —conhece
algum bom advogado?
CAPÍTULO 16

Stephen tinha passado outra


noite ruim. Não deveria ter-se
misturado em assuntos que não eram
de sua incumbência. Não deveria ter
ido ver Wesley Young, e certamente
não deveria ter interrogado a criada,
nem sequer para lhe perguntar o que
tinha se passado com o cão.
Não tinha por costume
interferir nos assuntos dos outros.
No fundo esperava não voltar a
ver Cassandra. Queria retomar sua
plácida vida de antes. Tinha sido
plácida de verdade?
Tão aborrecido era... a
avançadíssima idade de vinte e cinco
anos?
No fundo esperava não voltar a
vê-la. Porque se a visse, uma parte de
sua mente ficaria a dar saltos com
algo muito parecido à felicidade.
Nesse momento caminhava
com sua irmã Vanessa por Oxford
Street, já que tinha ido vê-la de manhã
e ela se queixara de que estava
aborrecida porque as crianças
continuavam dormindo e Elliott estava
fora da cidade e seguramente
retornaria com o tempo justo para se
arrumar e ir ao baile dessa noite, justo
quando ela necessitava
desesperadamente de uma fita de
renda com a qual substituiria a bainha
rasgada do vestido que queria usar.
Já tinham comprado a renda
quando ouviu que Vanessa exclamava
encantada. Seguiu o olhar de sua irmã
e viu Cassandra, que caminhava para
eles pelo braço de seu irmão.
Nesse momento uma parte de
si mesmo, talvez o coração? Saltou de
felicidade. Cassandra estava muito
elegante e bonita com um vestido de
passeio rosa claro e o mesmo chapéu
que tinha usado no chá ao ar livre.
Tinha as faces rosadas e parecia muito
contente.
Tirou o chapéu e lhe fez uma
reverência.
—Senhora, — saudou-a —
Young. Uma tarde linda, não é
verdade?
Young pareceu se envergonhar
de repente ao vê-lo.
—Certamente. —respondeu
Cassandra —Como está, excelência?
E você, milorde?
—Estou maravilhosamente
bem. —respondeu Vanessa —É sir
Wesley Young, verdade? Acredito que
já nos apresentaram.
—Assim é, excelência. —
concordou o aludido, que a saudou
com uma inclinação de cabeça —
Lady Paget é minha irmã.
—Que bom! —Exclamou
Vanessa com um cálido sorriso—.
Não sabia que tivesse família na
cidade, lady Paget. Alegro-me muito
por você. Pensou em ir ao baile de
lady Compton esta noite?
—Pois sim. —respondeu
Cassandra —Recebi um convite.
Isso queria dizer que tinha
aceitado ir. Até esse momento
Stephen ignorava se preferia que
aceitasse ou não. Acabava de se
decidir. Alegrava-se muito de ela ter
aceitado o convite.
A expressão radiante de seu
rosto se devia porque seu irmão a
acompanhava? Nesse caso, já não se
arrependia de ter se intrometido em
seus assuntos.
—Lady Paget, seria amável
de me reservar a primeira peça do
baile? —perguntou.
Cassandra abriu a boca para
responder.
—Receio que essa peça é
minha, Merton —informou Young
com secura.
—Pois outra, então. —disse
ele.
Reparou no sorriso que
brincava nos lábios da Cassandra.
Talvez estivesse pensando no muito
que tinha avançado em apenas uma
semana.
—Obrigada, milorde. —
replicou ela com sua voz rouca e
aveludada —Será um prazer.
Saltava à vista que sir
Wesley Young não queria prolongar a
conversa. Depois de fazer outra
reverência forçada, despediu-se deles
e prosseguiu rua abaixo com
Cassandra pelo braço.
— Acho que lady Paget
poderia vestir um saco e continuaria
sendo mais bonita que qualquer
mulher de toda Londres. —comentou
Vanessa quando continuaram a
caminhada à direção contrária —É
muito irritante, Stephen.
—Nessie, você é tão bonita
que as pessoas se voltam para olhá-la
—replicou com um sorriso.
Vanessa sempre tinha sido a
menos atraente de suas irmãs.... e a
mais alegre. Sempre lhe tinha
parecido bonita.
—Ah! Por Deus! —
exclamou ela —Parecia que estava
procurando um elogio, não é verdade?
E recebi um. Que amável é. É hora de
voltar para casa, Stephen, espero que
não se importe. E se Elliott voltar e eu
não estiver?
—Desmaiaria? —perguntou.
Sua irmã se pôs a rir e fez virar
a sombrinha.
—Certamente que não. —
respondeu —Mas pode ser que sim se
descobrir que perdi mais de dez
minutos de sua companhia.
Apartou-a com cuidado para
se desviar de um ruidoso grupo que ia
em sentido contrário sem olhar.
—Quanto tempo estão
casados? —perguntou-lhe.
Sua irmã se limitou a rir.
—Stephen, —lhe disse
depois de uma pausa —você gosta?
—De Lady Paget? —
precisou —Sim, gosto.
—Não, pergunto se você
gosta de verdade. —insistiu sua irmã.
—Sim, —repetiu —gosto de
verdade, Nessie.
—Ah! —exclamou ela.
Não havia maneira de
interpretar o que queria dizer com a
interjeição e não perguntou.
Tampouco refletiu sobre a resposta
que tinha dado a suas duas perguntas.
Ao fim e ao cabo, acabava de admitir
que gostava de Cassandra. Que
gostava de verdade. Variava o
significado da palavra se lhe
acrescentasse esse adendo?
Meneou a cabeça, exasperado.
Já basta. —se ordenou —Já
basta!
Sir Wesley Young esteve a
ponto de dar um severo sermão a sua
irmã quando se inteirou de que nem
lutou por seus pertences e nem
reclamou o que lhe pertencia por lei
quando o novo lorde Paget a mandou
embora de sua casa. Se tivesse feito
um pequeno esforço, a essas alturas
seria uma mulher rica e não uma
mulher desamparada.
Entretanto, conteve-se. Ele
tinha quase vinte e dois anos quando
lorde Paget morreu e foi a Carmel
House para ir ao funeral. Enquanto
esteve ali presenciou os primeiros
indícios de problemas, mas partiu
antes de começarem a lançar
acusações, depois de assegurar à
Cassie que a queria e que sempre o
faria, que poderia ir a ele em busca de
apoio e amparo a qualquer momento.
Mas depois, quando os
rumores a respeito de como
desagradável era a situação chegaram
a Londres, ele deu para trás de
repente. Deu-lhe medo que lhe
afetasse a ruína social de sua irmã e
deixou de escrever a ela.
Não podia se defender com a
desculpa de que era um menino, pelo
amor de Deus! Era um homem feito!
Depois ainda tinha a crueldade
e covardia de sua parte, que
certamente o impediria de dormir e
lhe provocaria pesadelos durante
muito tempo, quando tratara de evitar
que ela fosse a Londres. Quando lhe
mentira dizendo que ele ia de viagem
às Highlands. E depois, quando ela foi
a Londres de qualquer maneira e se
encontraram no parque, voltando-lhe
a cara e ordenando ao cocheiro de sua
carruagem alugada que seguisse
adiante.
Sim, ia ter pesadelos pelo que
tinha feito, e bem merecidos.
Não obstante e já que o
passado não se podia mudar, só podia
tentar emendar seus enganos o melhor
possível e esperar que nos próximos
cinquenta anos pudesse se perdoar.
De modo que no dia anterior e nessa
mesma manhã esteve fazendo
averiguações para conseguir o melhor
advogado para um caso como o de
Cassie, e tinha marcado uma
entrevista na qual a acompanhou
nessa tarde.
Tudo parecia muito bem. De
fato, o advogado estava aniquilado ao
ver que lady Paget via como algo
difícil recuperar suas joias, uma
propriedade pessoal que deveriam lhe
entregar de acordo com o contrato
matrimonial e com o testamento de
seu falecido marido. O advogado
estava encantado de aceitar uma
modesta antecipação, que Wesley
insistiu em pagar, com o firme
convencimento de que o assunto se
solucionaria em questão de um par de
semanas ou um mês quando muito.
Retornavam a casa dando um
passeio por Oxford Street quando se
encontraram de frente com Merton.
Não lhe fez muita graça. Merton tinha
sido sua consciência no dia anterior,
ou ao menos foi o despertar de sua
consciência, de modo que não se
sentia muito predisposto ao conde.
Sua consciência não deveria ter
necessitado de nenhum
empurrãozinho para despertar.
De qualquer maneira, o
encontro foi breve e ele pôde levar sua
irmã de volta a casa dela, onde a
senhorita Haytor a aguardava com
impaciência para lhe contar sua visita
a um museu com um antigo
conhecido... Que era nem mais nem
menos que o senhor Golding, o único
tutor que lhe deu aulas, embora não
durara muito no posto e ele mal o
recordava.
Retornou para casa para
relaxar um pouco antes de jantar e se
preparar para o baile dessa noite.
Entretanto, seu criado de quarto lhe
informou que outro cavalheiro o
esperava no salão saguão do andar
térreo para falar com ele.
Não o reconheceu, pensou
quando o viu ficar em pé ao entrar. O
desconhecido se aproximou dele com
uma mão estendida. Era forte, de
compleição atlética, cabelo castanho
claro e com a cara queimada pelo sol.
—Young? —perguntou-lhe.
— William Belmont.
Ah, sim! Pensou. Era o irmão
de lorde Paget, um dos enteados de
Cassie. Conheceu-o nas bodas de sua
irmã e voltou a vê-lo em uma de suas
estadias em Carmel House, há vários
anos. Pensava recordar que pouco
depois partira a América.
—Alegro-me de voltar a vê-
lo — disse, lhe estreitando a mão.
—O navio no qual vinha do
Canadá atracou faz um par de
semanas, —comentou Belmont— e
fui diretamente a Carmel House, onde
me inteirei de que as coisas tinham
mudado muito. Onde está sua irmã,
Young? Está em algum lugar de
Londres, não é verdade?
Isso o pôs em guarda
imediatamente.
—Seria melhor que a
deixasse tranquila. —disse —Não
matou seu pai. Nunca se acharam
provas concludentes contra ela e
nunca lhe imputaram acusações
porque não havia nada que lhe
imputar. Está tentando forjar uma
nova vida e eu vou me assegurar de
que tenha a oportunidade de fazer isso
sem que ninguém a incomode.
Deveria ter sido assim desde
que Cassie chegou à cidade. Mas ia
ser assim a partir desse momento.
Qualquer um que quisesse chegar até
ela teria que passar por cima de seu
cadáver. E embora não fizesse muita
graça a largura de ombros do
Belmont, nada lhe impediria de
defende-la.
Entretanto, Belmont se limitou
a tirar importância à situação com um
gesto da mão.
—Já sei que não matou meu
pai. —replicou —Pelo amor de Deus,
eu estava ali! Não vim a lhe criar
problemas, Young. Vim achar Mary.
Está com a Cassandra?
—Mary? —Olhou a seu
visitante sem compreender.
—Partiu de Carmel House
com Cassandra. —lhe explicou
Belmont —Suponho que continua
com ela. E também Belinda. Espero
que estejam com ela.
Continuava sem compreender.
A senhorita Haytor se chamava Alice,
não Mary.
—Mary. —insistiu Belmont
com impaciência —Minha esposa.

Enquanto se vestia para ir ao


baile dessa noite, Cassandra refletia
sobre as diferenças com aquela
primeira vez, quando o fez para o
baile de lady Sheringford. Nessa
ocasião tinha recebido um convite e
tinha acompanhante, além de ter
reservado a primeira peça e outra
mais ao longo da noite.
Não deveria se sentir tão
ansiosa para dançar com Stephen essa
noite.
Olhou o cabelo no espelho
para se assegurar de que o coque
estava bem preso e não se desfaria
assim que começasse a dançar.
Grande desastre se isso chegasse a
acontecer! Durante os dez últimos
anos se acostumara mais da conta a
desfrutar dos serviços de uma criada.
Colocou as luvas longas e as
esticou até que não ficou nem a
menor ruga.
O advogado achava que seu
caso era excelente. Tinha-lhe
assegurado que lhe conseguiria todos
seus pertences em duas semanas, o
mesmo se daria se fosse em um mês.
Poderia devolver o dinheiro a Stephen
e se esquecer de que tinha feito algo
tão sórdido como se oferecer a ser sua
amante.
Embora não se arrependia das
duas noites que tinha passado com
ele. Nem do chá ao ar livre. Estava
certa de que a tarde que passaram no
campo sempre seria uma de suas
lembranças mais apreciadas. Ia custar
lhe muito trabalho esquecê-lo.
Entretanto, Stephen tinha
conseguido que recuperasse um pouco
a fé nos homens. Nem todos eram
inconstantes, traiçoeiros e
decididamente cruéis.
Recordaria dele como seu anjo
loiro. Pegou o leque de marfim e o
abriu para se assegurar de que estava
em perfeitas condições.
O senhor Golding tinha
aproveitado o passeio dessa tarde para
convidar Alice a passar uns dias no
Kent ao final da semana, onde
celebrariam o septuagésimo
aniversário de seu pai com o resto de
sua família. Sem dúvida era um
convite significativo.
Alice não havia dito que
sim... Mas tampouco havia dito que
não. Tinha demorado a responder até
saber se Cassie a necessitaria.
Entretanto, tinha sido incapaz de
conter a alegria e a emoção. Dez
minutos depois de retornar a casa,
cinco depois de Wesley partir, já
estava sentada à escrivaninha da
saleta, redigindo uma nota em que
aceitava o convite do senhor Golding.
Nesse preciso instante, Alice
estava em seu dormitório do último
piso, tentando decidir que roupa levar.
Cassandra colocou os sapatos
e desceu a escada para esperar
Wesley. Terminou de se arrumar bem
a tempo. Seu irmão bateu na porta
enquanto descia a escada, de modo
que indicou a Mary que retornasse à
cozinha já que ela abriria.
—Cassie! —Exclamou seu
irmão enquanto a olhava com
admiração —Vai eclipsar o resto das
damas.
—Muito obrigado, amável
cavalheiro. —pôs-se a rir e deu um
par de voltas para ele, muito contente
de repente. —Você também está
muito bonito. Estou preparada. Não é
preciso que façamos esperar à
carruagem.
Entretanto, Wesley entrou de
qualquer maneira e fechou a porta a
suas costas.
—Continuo indignado por
suas joias. —disse. —Uma dama não
deveria ir a um baile sem elas.
Trouxe-lhe isto para que ponha.
Cassandra reconheceu o estojo
de couro marrom ligeiramente
arranhado. Quando era pequena, uma
de suas atividades preferidas era abrir
o baú de seu pai com muito cuidado e
depois tirar esse estojo e abrir para ver
seu conteúdo. Algumas vezes até o
acariciara com as pontas dos dedos.
Em algumas ocasiões inclusive
chegara a colocá-lo e a se olhar no
espelho, embora sentira que estava
fazendo algo muito ruim.
Aceitou o estojo das mãos do
Wesley e o abriu. E viu a corrente de
prata tal como a recordava, embora
polida até reluzir, e o pendente de
pequenos diamantes com forma de
coração. Seu pai o tinha dado a sua
mãe como presente de bodas, e era o
único objeto de valor que não chegou
a vender nos maus tempos. Nem
sequer chegou a empenhá-lo.
Não era uma joia ostentosa e
certamente tampouco valia muito. De
fato, cabia a possibilidade de que os
diamantes fossem falsos. Talvez por
isso seu pai nunca o tinha vendido
nem empenhado. Mas seu valor
sentimental era incalculável.
Wesley o tirou do estojo e o
colocou no pescoço.
—Wes, é maravilhoso! —
Exclamou ao mesmo tempo em que
acariciava o pendente —Mas só o
levarei esta noite. Tem que guarda-lo
para sua futura esposa.
—Ela não o valorizaria—
replicou seu irmão —Só nós podemos
fazer isso, Cassie. Eu gostaria que o
aceitasse como uma espécie de
presente. Acredito que pertence mais
a você que a mim. A mãe que... Não
está chorando, não é verdade?
—Acredito que sim —
respondeu Cassandra entre
gargalhadas enquanto secava as
lágrimas com dois dedos. Depois
jogou os braços ao seu pescoço e o
abraçou com força.
Seu irmão lhe deu uns tapinhas
nas costas com certo desconforto.
—Sua criada se chama
Mary? —perguntou-lhe.
—Sim. —afastou-se do
Wesley e voltou a acariciar o pendente
enquanto o olhava. Por que?
—Por nada em particular.
Ao cabo de um minuto
estavam na rua. Wesley a ajudou a
subir à carruagem que tinha alugado
para essa noite, depois do que
empreenderam o caminho para a
mansão dos viscondes Compton.
Que diferente foi sua
chegada nessa ocasião! Nessa noite
um criado com libré a ajudou a
desembarcar da carruagem sobre o
tapete vermelho e entrou na casa pelo
braço de seu irmão. Essa noite foi
capaz de apreciar o esplendor que a
rodeava e de admirar o vestíbulo de
mármore, o resplandecente lustre que
pendia do teto, os criados com libré e
os convidados vestidos com suas
melhores roupagens.
Nessa noite algumas pessoas
cruzaram seus olhares com ela e a
saudaram com uma inclinação de
cabeça. Algumas inclusive lhe
sorriram. Não lhe importou se
desentender por completo dos que não
fizeram nem uma coisa, nem outra.
Wesley a acompanhou
enquanto saudavam os anfitriões e
nessa noite pôde olhá-los no rosto
porque a haviam convidado e porque
seu nome já não inspirava a
indignação como na semana anterior.
E nessa noite, ao transpor a
porta do salão enquanto dava uma
olhada a seu redor, admirando os
arranjos de flores púrpura e brancas e
as frondosas samambaias, sir Graham
e lady Carling se aproximaram para
falar com ela e a solicitaram que lhes
apresentassem Wesley, a quem não
conheciam. Pouco depois, os condes
do Sheringford quiseram saudá-los e o
senhor Huxtable a convidou a dançar
a segunda peça da noite. Um par de
amigos do Wesley se aproximou para
falar com ele, e um deles, um tal
senhor Bonnard, também a convidou
para dançar.
—Que me parta um raio,
Wes! —Exclamou o senhor Bonnard,
que levou o monóculo a meio caminho
da cara, embora não pôde mover a
cabeça por culpa do engomado e alto
que era o colarinho da camisa. —Não
sabia que lady Paget era sua irmã.
Está claro que foi ela quem levou toda
a beleza da família. Para você não
sobrou muito, não é verdade?
O senhor Bonnard e o outro
amigo de seu irmão, cujo nome já
tinha esquecido, puseram-se a rir de
boa vontade pelo engenhoso
comentário.
E depois apareceu Stephen,
que lhe fez uma reverência, sorriu-lhe
e lhe perguntou com um brilho
travesso nos olhos se tinha tido a
amabilidade de lhe reservar uma peça.
—As duas primeiras já estão
reservadas —disse enquanto se
abanava, — assim como a peça
posterior ao jantar.
—Espero de todo coração
que nenhuma delas seja uma valsa.
Ficarei com uma terrível decepção se
esse for o caso. Concede-me a
primeira valsa e a dança anterior ao
descanso do jantar, se não
coincidirem? E no caso de que
coincidam, concede-me outra dança
depois?
Estava demonstrando seu
interesse publicamente. Não era de
mau gosto dançar duas vezes com a
mesma dama durante a mesma noite,
mas sim um detalhe de que todos os
presentes tomavam boa conta. Porque
costumava indicar que o cavalheiro
em questão estava cortejando a dama.
Deveria aceitar uma só dança.
Mas seus olhos azuis seguiam
sorrindo-lhe e o advogado lhe havia
dito que demoraria duas semanas,
inclusive tinha admitido que o assunto
poderia se estender em um mês, e
depois ela partiria de Londres para
sempre e viveria em uma casinha em
uma aldeiazinha perdida no campo, e
não voltaria a vê-lo. Nem voltaria a
enfrentar a alta sociedade.
—Obrigada. —disse e
deixou de se abanar para lhe sorrir.
Nesse instante recordou como
se havia sentido sozinha fazia apenas
uma semana, em um salão de baile
semelhante a esse enquanto
examinava todos os cavalheiros
presentes antes de escolhê-lo como
sua presa.
Nesse momento, Stephen era o
dono de um cantinho de seu coração
que sempre lhe pertenceria. Que
idiota era!
—Vamos? —perguntou
Wesley, e ela se deu conta de que os
casais já ocupavam a pista de baile.

A noite, entretanto, não ia


transcorrer sem algum contratempo.
O senhor Huxtable foi
reclamar a segunda peça muito logo e
a conduziu à pista de baile muito antes
que o resto dos casais ocupasse seus
lugares. Isso lhe deixou claro que
queria falar com ela... Sem que
ninguém os escutasse.
Era um homem incrivelmente
bonito, pensou quando já estavam no
meio da pista de baile e se viraram
para ficar um de frente para o outro.
Era bonito apesar de ter o nariz
ligeiramente torcido, ou talvez fosse
bonito justo por esse detalhe. A muitas
mulheres seria irresistível. Não era
uma delas. Não gostava dos homens
morenos e taciturnos rodeados por
uma aura de perigo. Alegrava-se
muitíssimo de não tê-lo escolhido na
semana anterior. Teria conseguido?
Teria conseguido seduzi-lo e enredá-
lo para que lhe pagasse um abundante
salário como sua amante?
—Não é preciso ir com
sutileza para abordar o tema de que
quero lhe falar, verdade? —perguntou
o senhor Huxtable.
Era um homem muito
perigoso, sim.
Suas palavras a
surpreenderam, mas não deu mostras
disso. Abanou o rosto muito devagar.
—É claro que não. —
respondeu —Prefiro falar com
franqueza. Suponho que quer me
dizer para me mantenha afastada de
seu primo. Necessita que alguém
grande e forte como você o proteja e
espante as mulheres de má reputação
como eu, não é assim? E eu sempre
achando que a missão do demônio era
destruir a inocência, não protegê-la...
—Já vejo que gosta de
franqueza, sim. —replicou ele... e a
olhou com um sorriso que parecia
muito real. —Merton não é um fraco,
lady Paget, embora muita gente
acredite que sim. A diferença de
muitos homens, não sente a
necessidade de pôr a prova seus
músculos em todas as horas, para
demonstrar o duro e viril que é.
Escolheu-o porque achava que era
fraco?
—Eu o escolhi? —perguntou
ela com altivez.
—Vi dar de encontro com
ele no salão de baile da Margaret —
disse.
—Foi um acidente. —
replicou.
—Foi deliberado.
Arqueou as sobrancelhas e
seguiu se abanando.
—Mas não é assunto seu, ou
sim? —respondeu.
—Quando ficamos sem
argumentos, —disse ele—sempre é
uma boa estratégia, talvez a única
possível, recorrer a um outro assunto.
Acaso os músicos iam ficar
preparando seus instrumentos toda a
vida? Quando os outros casais iam
ocupar seus postos e a conversar
enquanto começava a música?
Quantas pessoas os estavam
observando? Sorriu.
—Como encaixa você na
família de lorde Merton, senhor
Huxtable? —perguntou-lhe.
—Ele não contou? —
Perguntou por sua vez o aludido —
Sou esse primo malvado e perigoso
que odeia a todos os outros com todas
suas forças e que sempre está disposto
a lhes fazer mal. Meu pai era o conde
de Merton e eu era seu primogênito.
Por desgraça para mim, minha mãe
fugiu para Grécia quando se inteirou
de que estava grávida e quando seu
pai – meu avô – a obrigou a retornar
para Inglaterra, lançando pestes por
todo caminho, exigiu que meu pai
fizesse o correto ou enfrentasse às
consequências. A essas alturas minha
paciência tinha esgotado e decidi fazer
ato de presença no mundo dois dias
antes que o feliz casal se casasse.
Portanto, nasci bastardo. Por desgraça
para meu pai, as mortes de meus
irmãos e irmãs aconteceram com
assiduidade, fosse durante o parto ou
durante a infância. O único
sobrevivente foi o caçula da família
que, em palavras de meu pai, era um
completo idiota. Jonathan se
converteu em conde à morte de meu
pai, mas morreu na noite de seu
décimo sexto aniversário e Stephen
herdou o título.
O breve e desapaixonado
relato esteve tingido de uma manifesta
dor, mas não o tinha contado para
despertar sua compaixão, de modo
que reprimiu o sentimento.
—Nesse caso me surpreende
que não o odeie com todas suas
forças. —comentou Cassandra —Ele
desfruta do que devia ser seu. Tem
seu título, sua casa e sua fortuna.
Vários casais começavam a
ocupar a pista de baile.
—Sim, é surpreendente. —
concordou ele.
—Por que não o odeia? —
perguntou—lhe.
—Por uma simples razão. —
respondeu —Sei de uma pessoa que o
teria querido, e eu quero a essa
pessoa.
O senhor Huxtable não se
aprofundou no tema, e ela não insistiu.
—Espera que Stephen se
case com você? —perguntou ele.
Soltou uma discreta gargalhada
ao escutá-lo.
—Pode ficar tranquilo a
respeito —respondeu —Não estou
interessada em pôr fim à liberdade de
lorde Merton. Sei que tipo de servidão
implica o matrimônio para uma
mulher, e uma vez me basta e me
sobra.
Não restava muito tempo para
continuar falando sem que os casais
que saíam à pista de baile os
ouvissem. Os músicos tinham deixado
de afinar seus instrumentos e estavam
preparados para interpretar a primeira
melodia da contradança.
— Que tal lhe parece
falarmos sobre o tempo? —propôs.
O senhor Huxtable soltou uma
rouca gargalhada.
—De tormentas, terremotos
e furacões? —completou ele —Parece
um tema muito seguro.
CAPÍTULO 17

Stephen não conseguia se


decidir sobre a cor do vestido da
Cassandra. Era vermelho ou laranja
escuro? Um tom intermediário, mas
bem. Em todo caso, o tecido
resplandecia à luz das velas e era
magnífico. O decote era bastante
pronunciado para destacar seu busto e
as saias, que caíam vincadas do talhe
alto, ressaltavam suas curvas e
acentuavam o contorno de suas longas
e torneadas pernas. Recolhera a
brilhante cabeleira no alto da cabeça,
mas trazia algumas mechas soltas que
se frisavam junto ao pescoço.
Embora seu porte sempre
fosse orgulhoso, essa noite parecia
quase feliz. Que diferente daquela
misteriosa mulher de reputação
escandalosa que penetrara na semana
anterior o baile de Meg e Sherry e que
olhava por cima do ombro a todos os
que a rodeavam, como se os
desprezasse.
Dançou todas as peças que
precederam à valsa, que era a dança
anterior ao jantar. Inclusive a viu
dançar com Constantine, a quem
sorriu e com quem conversou cada
vez que os passos o permitiram.
Por sua parte, também dançou
todas as peças que precederam à
valsa. Seus pares eram jovenzinhas
que desfrutavam de sua apresentação
em sociedade nessa temporada e que
lhe tinham deixado claro o interesse
que sentiam por ele desde o começo.
Um fato do qual não se vangloriava
absolutamente. Ao fim e ao cabo, era
um dos solteiros de ouro de Londres.
Esteve conversando amigavelmente
com todas elas enquanto dançavam,
sorriu lhes e lhes prestou toda a
atenção que mereciam.
Entretanto, também esteve
pendente de Cassandra todo o tempo.
Começava a se perguntar se
sua vida recuperaria algum dia a
normalidade... Fosse isso o que fosse.
Passou toda a noite desejando que
chegasse a dança anterior ao jantar, e
lhe pareceu que o momento não
chegava nunca.
Não obstante, devia ser
cuidadoso. Não podia fazer nada
impulsivo do que acabasse se
arrependendo durante o resto de sua
vida.
Ainda não se sentia preparado
para o matrimônio. Só tinha vinte e
cinco anos. Sempre havia dito que não
começaria a considerar o tema a sério
até que completasse os trinta. E
inclusive então tomaria com calma e
escolheria uma mulher capaz de ver
além de seu título e sua fortuna.
Capaz de vê-lo. Inclusive de amá-lo.
Escolheria uma mulher que
gostasse de verdade, uma mulher a
quem admirasse e quisesse.
Quando por fim chegou a hora
da dança anterior ao jantar,
aproximou-se de Cassandra para
reclamar a dança. Achava-se com seu
irmão e um grupo de pessoas a quem
não conhecia.
Em um dado momento, ela se
voltou e o olhou enquanto se
aproximava.
—Lady Paget, —disse a
modo de saudação —acredito que
esta peça me corresponde.
—Certamente, lorde Merton
—replicou ela com sua voz aveludada
enquanto lhe colocava a mão no
braço.
Quanta formalidade! O chá ao
ar livre lhe pareceu um sonho
longínquo. Que estranho que
recordasse com mais clareza o chá
que as duas noites que tinha passado
em sua cama.
—A peça anterior ao jantar
vai ser a valsa —disse enquanto a
acompanhava à pista —Reservará a
última da noite para voltar a dançar
comigo?
—Sim. —respondeu ela.
Colocaram-se na pista de baile
olhando um ao outro enquanto o resto
dos casais ocupavam seus postos.
—Há alguma novidade
relevante no florescente romance da
senhorita Haytor? —perguntou-lhe
com um sorriso.
—Certamente que sim! —
respondeu Cassandra, que passou a
lhe contar o sobre o passeio da tarde e
a iminente festa de aniversário no
campo.
—Com a família do senhor
Golding? —perguntou. —Acredito que
estamos muito perto de uma proposta
matrimonial.
—Acredito que ocorrerá
muito em breve, sim. —concordou ela
—Talvez durante sua estadia no Kent.
E acredito que Alice será muito feliz.
Estou convencida de que abandonou
as esperanças de se casar faz já
muitos anos, não lhe parece? A
preocupação que sentia por mim a
manteve confinada no campo durante
todos esses anos.
—Não se culpe. —
aconselhou, e não era a primeira vez
que o fazia.
—Tem razão. —reconheceu
Cassandra com uma gargalhada —
Não vai permitir que me sinta culpada
por todos os males do mundo, certo?
—Pode estar certa disso. —
Nesse momento reparou no pendente
que levava. Era a primeira vez que a
via com joias —É bonito, —disse, o
olhando. O extremo inferior do
coração quase lhe roçava entre os
seios.
—Era de minha mãe. —
informou ela, ao mesmo tempo que
acariciava a joia com uma mão
enluvada. —Meu pai o deu de
presente quando se casaram e foi o
único objeto de valor pertencente à
família que jamais vendeu. Wesley me
deu isso antes de sair. — Seus olhos
adquiriram um brilho suspeito.
—Isso quer dizer que se
reconciliou com seu irmão, não?
—Acredito que a lembrança
do incidente do parque quando passou
a meu lado fingindo que nem me via
nem me conhecia deve ter lhe pesado
muito na consciência. Talvez inclusive
lhe roubou o sono. Ontem foi me ver.
—E não lhe guarda rancor?
—quis saber Stephen.
—Por que ia guardar? É meu
irmão e o amo. Mostrou-se
sinceramente arrependido por ter sido
um covarde e por tentar evitar minha
existência. Quem teria sofrido mais se
tivesse me negado a perdoá-lo? A
resposta não é tão simples. É possível
que ambos tivéssemos sofrido por
igual. E tudo para que? Para satisfazer
o orgulho ferido ou a indignação pela
injustiça padecida? O importante é
que Wesley estava arrependido de
verdade e que foi arrumar as coisas. E
agora está arriscando sua reputação
ao aparecer em público comigo e ao
me apresentar a seus conhecidos
como sua irmã.
De modo que Wesley Young
não lhe tinha mencionado a visita que
lhe fez no dia anterior, pensou ele,
que agradeceu muito o gesto. Mesmo
que tivesse tido um final feliz, não
tinha nenhum direito em se misturar
na vida de Cassandra, ela poderia lhe
recriminar pelo que fez.
Embora não se arrependesse.
As rixas familiares eram algo muito
triste.
A orquestra tocou um acorde e
ao escutá-lo fez uma reverência a
Cassandra que a correspondeu. Em
seguida, colocou-lhe uma mão na
cintura com um sorriso e lhe pegou a
mão direita. Cassandra lhe devolveu o
sorriso enquanto lhe punha a mão
esquerda no ombro.
—Acho que a valsa é a
dança mais bonita de todas. —disse
ela —Estou a noite toda desejando
que chegasse este momento. É um
grande bailarino. Tem um ombro e
uma mão firmes e fortes, e cheira
divinamente. —Stephen não afastou o
olhar de seus olhos e Cassandra
acabou soltando uma gargalhada. —E
aqui estou eu, falando de forma tão
escandalosa quanto à do baile de sua
irmã há uma semana. Deveria fingir
esse tédio que está tão em voga.
Deveria fingir que é uma espécie de
tortura me deixar levar pela pista de
baile com você.
Suas palavras lhe arrancaram
uma gargalhada.
Entretanto, seus olhares
seguiram entrelaçados e os olhos
verdes de Cassandra faiscaram de
alegria e felicidade. Ele a fez virar
para começar a dançar e continuou a
virando até que o mundo se converteu
em um redemoinho de luz e cor, com
ela como magnífico eixo central.
Cassandra.
Cass.
Estava sorridente, com as
faces ruborizadas, os lábios
entreabertos e as costas arqueada a
fim de manter a distância adequada
entre ambos. Não importava. De
qualquer forma percebia seu calor
corporal. Cheirava-o, e também a
cheirava. Uma mescla de perfume
suave e mulher. O aroma da sedução.
Detiveram-se um instante entre
melodias, mas não falaram nem
deixaram de se olhar, e depois
seguiram dançando, embora a
orquestra interpretasse uma melodia
mais lenta e imensamente mais
emotiva.
Gostava de verdade dela, havia
dito a Vanessa. Grande eufemismo...
O rubor de suas faces se
intensificou e ele começou a se sentir
acalorado. O aroma das flores se
tornou opressivo. Inclusive a música
pareceu soar de repente a um volume
muito alto.
Passaram dançando junto a
umas portas francesas, que estavam
abertas para que o ar da noite
refrescasse o ambiente. Um pouco
mais adiante havia outras e ao chegar,
Stephen executou um giro que os
levou ao exterior, a um balcão amplo
que por sorte estava deserto.
E no qual também por sorte
estava muito fresco. Seguiram
dançando, porém sem mais giros.
Seus passos foram diminuindo pouco
a pouco, e em um dado momento,
colocou a mão direita de Cassandra
sobre o coração. A outra mão, a que
descansava em seu ombro, foi subindo
até se deter em sua nuca. Nesse
instante a abraçou pela cintura e a
aproximou dele de modo que seus
peitos e suas faces ficassem unidos.
Nem sequer pensou no decoro,
nem na realidade, nem nas formas que
normalmente eram algo instintivo nele.
Deixaram de dançar quando a
música acabou, mas não se
separaram. Mantiveram-se muito
juntos em silêncio uns instantes, com
os olhos fechados. Ao menos ele os
tinha fechados.
Depois endireitou a cabeça e
Cassandra fez o mesmo. Olharam-se
nos olhos a tremulante luz da lanterna
pendurada em uma esquina do balcão.
Beijaram-se.
Não foi um beijo ardente, mas
um pouco mais apaixonado do que
tinham compartilhado durante o chá
ao ar livre. Foi um beijo muito
eloquente, que deixou claras muitas
coisas sem necessidade de palavras.
E não se apressou a lhe pôr
fim. Porque uma vez que acabasse,
teria que usar palavras, e não sabia o
que ia dizer. Nem o que ia dizer
Cassandra.
Quando por fim se afastou,
olhou-a com um sorriso. Que ela
correspondeu.
E ficaram conscientes, quase
ao uníssono, de que tinham público.
Algumas pessoas deviam ter decidido
sair em busca de ar fresco, uma vez
finalizada a valsa. E algumas outras
deviam ter olhado para as portas
francesas e ver a cena recortada
contra a luz da lanterna. Outros
possivelmente se aproximaram pela
curiosidade de descobrir aquilo que
tinha chamado a atenção dos dois
primeiros grupos.
Em todo caso, era um público
vergonhosamente numeroso, e saltava
à vista que tinha presenciado o beijo.
Estava certo de que não tinha sido um
beijo impudico, mas qualquer tipo de
beijo era impudico em público,
sobretudo se os que se beijavam eram
duas pessoas que não tinham desculpa
alguma para se beijarem.
Não estavam casados.
Não estavam comprometidos.
Stephen percebeu três coisas,
ou melhor, quatro, se contasse o
brusco ofego da Cassandra. Percebeu
o olhar de Elliott, que o observava
com as sobrancelhas arqueadas e um
gesto muito sério do interior do salão
de baile. Percebeu Con, que o olhava
com uma sobrancelha arqueada e
gesto inescrutável.
E viu Wesley Young, que abria
caminho a cotoveladas entre a
multidão com gesto assassino.
E de repente compreendeu que
tinha estragado todos os progressos
que Cassandra tinha conseguido
depois de uma semana de árduo
trabalho para recuperar sua
respeitabilidade, para conseguir que a
alta sociedade a acolhesse em seu
seio, onde era o lugar dela.
—Ai, Deus! —Exclamou
enquanto pegava sua mão e
entrelaçava seus dedos enquanto
passava a outra pelo cabelo. — Esta
não era precisamente a maneira em
que tínhamos planejado fazer o
anúncio, mas parece que minha
impulsividade me estendeu uma
armadilha. Damas e cavalheiros,
permitam-me apresentar lady Paget
como minha noiva. Acaba de me
conceder a honra de aceitar minha
proposta, e temo que me deixei levar
pelo entusiasmo até o ponto de
esquecer as boas maneiras.
Deu um apertão na mão de
Cassandra quando acabou de falar.
E esboçou seu sorriso mais
encantador.

Cassandra se sentia petrificada


pela mortificação.
Tinha estado a um tris de
arquear as sobrancelhas, compor sua
expressão mais altiva e entrar entre a
multidão de caminho a sala de jantar.
Enfrentara situações muito piores que
esse beijo. Podia voltar a afrentar.
Salvo que sempre havia uma
gota que enchia o copo e essa devia
ser a sua.
Não obstante, antes que
pudesse reagir, Stephen tomou o
controle da situação e realizou o
anúncio.
E agora o que? Pensou ela.
Stephen lhe soltou a mão, a
colocou no braço e a encostou a seu
flanco. Quando tudo falhava, o único
que se podia fazer era sorrir, concluiu
Cassandra.
E sorriu.
Nesse momento Wesley
apareceu no balcão, depois de ter
aberto passagem entre todos os
outros, e se plantou frente a eles. A
expressão enfurecida se tornou em
cômica estupefação.
—Cassie, — disse —é
verdade?
O que podia fazer a não ser
mentir?
—Sim, Wes, é verdade —
respondeu e se deu conta enquanto
falava que, de qualquer forma, não
teria podido se afastar depois do beijo
com a cabeça erguida, nem evitar o
desastre.
Wesley acabava de redescobri-
la. Tinha expiado suas culpas por tê-la
evitado quando mais o necessitava e
nesse momento se erigiu em seu
protetor sem que ninguém o pedisse.
Se Stephen não tivesse feito o
anúncio, teria se produzido uma cena
espantosa diante de todos. Wesley
teria lhe atirado um murro no nariz ou
talvez lhe teria cruzado a cara com
uma luva... ou ambas as coisas.
Melhor não pensar nisso.
Seu irmão sorriu de repente.
Talvez ele também tinha reparado na
necessidade de atuar para sair de
semelhante enredo. Depois de abraça-
la com força disse:
—Merton, confesso que no
primeiro momento interpretei mal a
situação. Mas me alegro do anúncio,
embora me pareça que possivelmente
deveria ter falado antes comigo.
Entretanto... Que complicações!
Cassie já é maior. —Ofereceu-lhe a
mão direita e Stephen a estreitou.
O público não se dispersou
com rapidez apesar do jantar estar
servido. O murmúrio das conversas
tinha um som alegre, quase
congratulatório. Ou isso pareceu a ela,
embora não lhe cabia a menor duvida
de que entre os espectadores havia
muitos horrorizados pela ideia de que
o belo e cobiçado conde Merton se
comprometera com a assassina do
machado.
Muitas jovenzinhas estariam
inconsoláveis essa noite, disso
tampouco lhe cabia a menor duvida.
As irmãs de Stephen o
rodearam imediatamente, procedentes
de diferentes lugares do salão, e o
abraçaram, depois a abraçaram com
aparente carinho e alegria. Seus
maridos felicitaram Stephen lhe
estreitando a mão enquanto lhe
dedicaram uma reverência. O mesmo
fez o senhor Huxtable, embora lhe
pareceu que esses olhos tão escuros a
espetaram até chegar à parte posterior
do crânio.
Era difícil saber com certeza
se o anúncio alegrava ou não a sua
família. Era impossível que estivessem
encantados, mas eram pessoas
amáveis e educadas... Obrigadas a
lutar com o surpreendente anúncio
ante o ávido escrutínio de uma boa
parte da alta sociedade.
Não ficava mais remédio que
parecer encantados.
—Meu amor —lhe disse
Stephen com um sorriso enquanto a
impelia a tomar seu braço, —
devemos falar com os viscondes
Compton.
—É claro. —concordou ela,
lhe devolvendo o sorriso.
Deviam falar com os
viscondes? Perguntou-se. Por quê?
Nesse momento nem sequer
recordava quem eram.
A maioria dos convidados
parecia ter perdido o interesse neles
ou melhor, tinham decidido comentar
o escandaloso episódio enquanto
jantavam. A multidão tinha minguado.
Lady Compton estava com seu marido
junto à porta do salão e ao vê-los
recordou – por fim! – que eram os
anfitriões do baile.
—Sim, é claro. —repetiu.
Os viscondes tinham tido a
gentileza de lhe enviar um convite, o
primeiro além do convite verbal de
lady Carling para que fosse a seu chá
na semana anterior.
—Senhora, —disse Stephen
enquanto tomava a mão da
viscondessa uma vez que atravessaram
o salão de baile; depois de uma
reverência, levou-a aos lábios —peço-
lhe perdão por ter usado sua festa
para fazer meu anúncio sem consulta-
la previamente. Não tinha intenção de
comunica-lo esta noite, mas a beleza
de seu salão de baile somada a da
música me impulsionou a me declarar
à dama. E depois, quando lady Paget
me deu o sim... Enfim, receio que
perdi a cabeça. Assim não me ficou
mais remédio que explicar a todo
mundo por que a estava beijando em
seu balcão.
O visconde Compton torceu
ante o gesto. Sua esposa sorriu com
calidez.
—Lorde Merton, —disse —
não é preciso que se desculpe por ter
feito seu anúncio esta noite. Alegra-
me muitíssimo e me honra que o
tenha feito. Como bem saberá, não
temos filhos em comum, embora
Alastair tenha dois filhos de seu
primeiro matrimônio, claro. Assim
nunca tinha imaginado que se pudesse
fazer um anúncio semelhante em
minha casa. Tenho a intenção de
aproveitá-lo ao máximo. Acompanhe-
me, lady Paget.
Depois de tomar seu braço, a
viscondessa se afastou com ela em
direção à sala de jantar, sorrindo e
saudando os convidados enquanto
caminhavam. Ao chegar à mesa dos
anfitriões, indicou-lhe que se sentasse
a seu lado. Stephen, que as seguia
com o visconde, ocupou a cadeira
colocada do outro lado.
Cassandra percebeu com certo
alívio que quase todos os convidados
estavam pendentes da comida e de
suas próprias conversas. Não
obstante, o murmúrio geral parecia
algo mais festivo que de costume. E
houve alguns que os olharam para
saudá-los com um sorriso, ou que os
olharam sem mais. Em conjunto a
atmosfera não era hostil. Embora
fosse muito possível que o estado
anímico da alta sociedade mudasse
por completo no dia seguinte, quando
todos assimilassem a notícia e
compreendessem que uma viúva que
continuava sendo uma pária (ao fim e
ao cabo só tinha recebido um convite)
estava a ponto de conseguir o solteiro
mais cotado, o melhor partido de toda
a Inglaterra.
O engraçado era que desde o
beijo Stephen e ela mal se olharam.
Não tinham intercambiado nenhuma
só palavra. Embora estivessem
sentados cotovelo com cotovelo
durante o jantar, não falaram entre
eles, ocupados como estavam
conversando com outras pessoas. E
sorrindo... Sempre sorrindo.
Stephen ia padecer um terrível
embaraço durante um tempo, quando
as pessoas compreendessem que em
realidade não estavam comprometidos
ao ver que os jornais não publicavam
nenhum anúncio oficial do
compromisso.
Entretanto, os homens se
recuperavam com rapidez desse tipo
de embaraços. E a população
feminina se alegraria das notícias e o
perdoaria rapidamente.
Tomara não tivesse ido à
festa! Exclamou para si mesma. E
tomara não tivesse aceitado seu
convite para dançar a valsa. E tomara
não tivesse o deixado levá-la
dançando ao balcão. E tomara não lhe
tivesse permitido que a beijasse.
Embora isso fosse injusto. Em
realidade, o uso da palavra permitir
não era muito acertado. Porque tinha
participado de forma voluntária, na
mesma medida que ele.
Salvo no anúncio que se viu
obrigado a fazer.
Claro que, para ser sincera,
reconhecia que não lhe tinha ficado
outra alternativa que fazer justo o que
tinha feito.
Tomara o advogado não
tivesse exagerado com as duas
semanas.
Lorde Compton ficou em pé,
instigado por sua esposa, e propôs um
brinde pelo casal comprometido, de
forma que o resto dos convidados se
levantou para erguer as taças e beber,
depois disso todos voltaram para o
salão e o baile se reatou. Stephen
dançou com a duquesa Moreland, sua
irmã, e ela com o duque. Por sorte,
tratava-se de uma complicada
contradança que não permitia muitos
momentos de conversa. O gesto sério
do duque do Moreland punha de
manifesto que tinha um sem-fim de
coisas para lhe dizer assim que
surgisse a oportunidade. Recordou
que em algum momento do passado
tinha sido o tutor legal do Stephen.
O duque só disse uma coisa de
índole pessoal, que de algum modo
lhe provocou um calafrio.
—Lady Paget, deve vir jantar
em nossa casa algum dia destes. Direi
à duquesa que o organize. Assim
poderá nos contar em detalhe o que
pensa fazer para obter a felicidade de
Merton.
Cassandra lhe sorriu.
—Pode estar tranquilo,
excelência —replicou enquanto
contemplava esses olhos tão azuis, o
único traço diferente entre ele e o
senhor Huxtable, cujos olhos eram
muito escuros. —As esperanças e os
sonhos que albergo para o conde
Merton devem ser muito similares aos
seus.
O duque inclinou a cabeça e se
afastou para dançar os seguintes
passos com outra dama.
Depois da contradança a única
coisa que gostaria era suplicar ao
Wesley que a levasse para casa.
Entretanto, não podia fazer isso. Não
podia abandonar tão logo o homem
cuja oferta matrimonial acabava de
aceitar, muito menos em umas
circunstâncias tão públicas.
Entretanto, esse pensamento a
levou a outro e teve uma ideia melhor.
O duque já a tinha levado de novo
junto ao Wesley, mas seu irmão estava
ocupado conversando com um grupo
de amigos e se limitou a lhe sorrir de
forma fugaz. De modo que ela abriu o
leque e olhou o salão. Localizar
Stephen foi fácil, caminhava para ela
com um carinhoso sorriso nos lábios.
Certamente estava ressentido
com ela!
Da mesma forma que estava
com ele. Estava certa de que poderia
ter confrontado a crise de alguma
outra maneira. Embora bem sabia
Deus que não lhe ocorria nenhuma.
—A última peça está a ponto
de começar. —disse Stephen —E
acredito que me reservou ela.
—Stephen, me leve a casa.
—lhe pediu.
Esses olhos azuis se cravaram
nos seus, mas o sorriso não
desapareceu de seus lábios.
—É uma boa ideia. —disse
ele —Evitaremos a aglomeração da
saída. Veio com seu irmão?
Assentiu com a cabeça.
—Direi-lhe que volto para
casa com você. —disse—Está aqui
mesmo.
Wesley se afastou de seu
grupo de amigos justo enquanto ela
falava.
—Wes, —disse —importa-
se que Stephen me leve para casa em
sua carruagem?
—Não. —respondeu seu
irmão enquanto estendia uma mão a
Stephen. —Merton, espero que a trate
com respeito. De outro modo, terá
que se ver comigo.
Homens! Pensou ela. Eram
umas criaturas ridículas e possessivas.
Às vezes pareciam pensar que as
mulheres eram incapazes até de
respirar se não contavam com sua
ajuda.
Entretanto, era, de certo
modo, reconfortante que seu irmão já
fosse um homem.
Terá que se ver comigo. Havia
dito. No caso do Nigel não contou
com ninguém que dissesse algo assim,
salvo seu pai, que sempre foi um
homem muito afável e confiante para
seu próprio bem.
Beijou seu irmão na face.
—Young, estou seguro de
que nunca será necessário chegar a
esses extremos —replicou Stephen.
—Sua irmã está em boas mãos.
Uma vez que localizaram os
viscondes Compton, aproximaram-se
para se desculparem por não
participar da última peça do baile. A
viscondessa pareceu mais encantada
que ofendida, e tanto ela como seu
marido os acompanharam ao andar
térreo e aguardaram na porta que
aparecesse a carruagem de Stephen
para se despedirem deles.
Já no interior, Cassandra
apoiou a cabeça na tapeçaria macia
do assento enquanto a carruagem se
colocava em marcha e fechou os
olhos.
A mão do Stephen achou a sua
na escuridão e lhe deu um aperto nos
dedos. Estava tão cansada que não
tinha forças para retirá-la dali.
—Cassandra, —o ouviu
dizer —sinto muitíssimo. Deveria tê-la
cortejado de forma mais íntima e
muito menos arriscada. E, sobretudo,
deveria ter lhe proposto matrimônio
antes de anunciar nosso compromisso
aos quatro ventos. Mas a pus à beira
do abismo e não me ocorreu outra
coisa a fazer.
—Sei. —reconheceu ela —
A princípio fiquei muito zangada com
você, mas me passou depois. Fomos
terrivelmente indiscretos. Os dois. Não
o culpo e lhe asseguro que não era um
ardil para seduzi-lo. Longe disso. Foi
uma... Indiscrição. Por desgraça, sua
reação o vai pôr em um apuro
bastante incômodo durante os
próximos dias, quando não aparecer o
anúncio de compromisso que as
pessoas esperam. Mas as pessoas
depois voltarão a normalidade. Como
sempre. Note que só demoraram uma
semana para convidar a suas festas a
assassina do machado.
—Cass, haverá um anúncio.
— contradisse ele enquanto lhe dava
outro aperto na mão — Certo que não
será no jornal de amanhã, porque já é
tarde. Mas sim o haverá no de depois
de amanhã. E teremos que decidir
quando e onde se celebrará as bodas.
Ou aqui no Saint George com a alta
sociedade, ou em algum lugar mais
íntimo. No Warren Hall,
possivelmente. De qualquer forma, as
pessoas irão querer saber. Irão nos
encher de perguntas.
Ai, deveria ter imaginado que
Stephen levaria o cavalheirismo ao
extremo!
—Mas, Stephen, —protestou
sem abrir os olhos e sem voltar a
cabeça. — não me fez nenhuma
proposta de matrimônio, certo? E eu
não aceitei me casar com você. E não
aceitarei embora me peça isso agora.
Nem agora nem nunca. Não me
casarei nem com você, nem com
ninguém. Se houver algo que jamais
voltarei a fazer na vida é voltar a me
casar.
Escutou-o tomar ar para
replicar, mas não disse nada.
Mantiveram-se em silêncio o
resto do trajeto.
Assim que chegaram a sua
casa, Stephen se apeou sem perda de
tempo, desdobrou os degraus e a
ajudou a descer. Depois, pregou os
degraus, fechou a portinhola e
levantou a vista para indicar ao
cocheiro que voltasse para casa.
—Stephen, não vai entrar
comigo. —advertiu com voz cortante
—Não está convidado.
A carruagem se afastou
estralando pela rua.
—Penso entrar de qualquer
forma. —assegurou ele.
E compreendeu, tal como tinha
compreendido na semana anterior,
depois de escolhê-lo, que Stephen
Huxtable, conde Merton, possuía uma
veia acerada, e que em certas
questões se mostrava extremamente
inflexível. Essa era uma de tais
questões. Podia ficar toda uma hora
na rua discutindo com ele, porque ao
final acabaria entrando. Melhor deixá-
lo entrar sem mais. Estava começando
a faiscar, e no céu não se via nenhuma
só estrela. Possivelmente faltava
pouco para que começasse a cair um
dilúvio.
—Muito bem! —claudicou,
irritada, e se inclinou para pegar a
chave debaixo do vaso de barro.
Stephen tirou a chave de sua
mão, abriu a porta e a convidou a
entrar em primeiro lugar. Uma vez
dentro, fechou e passou o fecho na
porta.
Alice, Mary e Belinda deviam
estar há horas na cama. Não podia
contar com sua ajuda. Embora, se
estivessem presentes, tampouco a
ajudariam. Um simples olhar ao rosto
de Stephen à mortiça luz da vela do
vestíbulo, foi suficiente para confirmar
suas suspeitas: estava zangado e
decidido a se manter firme. Seria
muito difícil lutar com ele.
Viu-o entrar na sala, da qual
saiu com uma vela que prendeu com a
do vestíbulo. Uma vez que apagou
esta última, retornou a sala de estar.
Como se fosse o dono da casa.
Claro que era ele quem pagava
o aluguel...
CAPÍTULO 18

Era uma situação terrivelmente


delicada.
Estava obrigada a se casar com
ele. E com certeza era consciente
disso. Sua posição na alta sociedade
era já bastante precária, para dizer
suavemente. Se Cassandra rompia o
compromisso nesse momento, jamais
voltariam a aceitá-la.
—Cass, —disse enquanto
deixava a vela no castiçal situado na
lareira. —Amo-a.
Tremeram-lhe os joelhos ao
pronunciar as palavras em voz alta.
Perguntou-se se as dizia a sério.
Nessa mesma tarde havia dito à
Nessie que gostava de verdade como
contraposição a gostar simplesmente,
mas isso significava que seu amor era
eterno?
Possivelmente era, pensou.
Mas tudo tinha acontecido muito
depressa. Não tinha tido tempo para
se apaixonar. Embora nada disso já
importava.
Pelo amor de Deus, nunca
tinha beijado uma mulher em público,
ou quase em público, na vida! Era
imperdoável que o tivesse feito essa
noite. Ainda mais com a Cassandra.
—Não, não me ama, — ela
o contradisse, se sentando em sua
poltrona de costume, cruzando as
pernas e começando a balançar um
pé, fazendo que o sapato pendesse de
seus dedos. Viu-a estender os braços
sobre a poltrona com atitude
relaxada... E um tanto desdenhosa. A
velha máscara. —Acredito que você
gosta o bastante, Stephen, e por
razões que só você conhece decidiu
fazer amizade comigo e fazer que a
alta sociedade me aceite... Além de
me apoiar economicamente até que eu
possa me valer por conta própria. Sem
dúvida alguma há um componente de
desejo na mescla, porque já esteve
duas vezes em minha cama e
desfrutou bastante de ambas as
experiências para chegar à conclusão
de que não lhe importaria repetir. Mas
não me ama.
—Está me dizendo que me
conhece melhor do que eu mesmo? —
perguntou-lhe, irritado.
Embora reconhecesse que suas
palavras tinham algo de verdade.
Desejava-a inclusive nesse momento.
O vestido vermelho alaranjado reluzia
à luz da solitária vela e seu cabelo
brilhava com a mesma intensidade;
seu rosto continuava formoso apesar
da expressão altiva. De novo estava
em sua casa a altas horas da
madrugada, e lhe era impossível não
pensar nos prazeres que poderia obter
se subissem a seu dormitório e
voltassem a fazer amor.
—Assim é. —respondeu ela,
e sua expressão se suavizou um tanto
quando o olhou nos olhos —Acredito
que sua compaixão e seu
cavalheirismo são inatos, Stephen.
Herdar o título, as propriedades e a
fortuna não o modificou, como teria
acontecido na prática totalidade dos
casos. Ao contrário, crê-se obrigado a
ser mais compassivo e cavalheiresco
que antes, para demonstrar a si
mesmo que é merecedor de tão boa
sorte. Ofereceu-se cavalheirescamente
a se casar comigo esta noite... Em
realidade, anunciou nosso
compromisso. E agora tenta com
muita galanteria, convencer a si
mesmo de que deseja se casar
comigo. Em sua cabeça isso equivale
a que me ama e por isso acredita que
ama. Mas não é assim.
A irritação se transformou em
raiva. Embora ao mesmo tempo se
perguntasse se Cassandra não teria
razão. Como podia ter se apaixonado
tão de repente? E com uma mulher
tão diferente de seu ideal de futura
esposa, além disso. Como podia
contemplar sem desânimo um
matrimônio que se via forçado a
propor?
Entretanto...
—Engana-se —lhe
assegurou— e já se dará conta de seu
engano. Mas nada disso importa,
Cass. Seja lá quem tenha razão, isso
não muda o que aconteceu. Viram-
nos juntos o suficiente para ter
despertado a curiosidade e as
especulações, e esta noite nos
pilharam a sós no balcão, abraçados e
nos beijando. Só podemos fazer uma
coisa. Temos que nos casar.
—E temos que sacrificar o
resto de nossa vida por uma pequena
e imprudente indiscrição? —Protestou
ela enquanto tamborilava devagar com
os dedos sobre os braços da poltrona.
—Sei perfeitamente que isso é o que
espera a alta sociedade agora. É o que
exige. Mas não vê quão absurdo é,
Stephen?
Era absurdo e seria algo que
valeria a pena desafiar caso se
detestassem com toda sua vontade.
—Uma pequena e
imprudente indiscrição. —repetiu —
Esse beijo foi isso, Cass? Não
significava nada mais?
Viu-a arquear as sobrancelhas,
mas Cassandra guardou silêncio um
momento.
—Passamos duas noites
juntos, Stephen. —respondeu ao final
—mas depois voltamos ao celibato. É
um homem muito bonito e acredito
que eu também tenho meus encantos.
Estávamos dançando uma valsa e o
desejo nos assaltou no salão de baile.
Procuramos a frescura da noite no
balcão e descobrimos também um
pouco de intimidade. O que se passou
foi algo quase inevitável... Uma
indiscrição, é claro. Imprudente.
—Só foi fruto do desejo? —
perguntou ele.
—Exato, só foi desejo. —
Cassandra sorriu.
—Sabe muito bem que
houve algo mais. —replicou, olhando-
a nos olhos —Se alguém se está
enganando, esse alguém é você, Cass.
Não eu.
—É muito doce. —
respondeu ela com sua voz aveludada.
Voltava a estar zangado. E
frustrado. Colocou-se de costas à
lareira, com as mãos entrelaçadas por
trás.
—Se romper o
compromisso, —disse — irá se
produzir um terrível escândalo.
Viu-a encolher os ombros.
—As pessoas irão lidar com
isso. Sempre o fazem. Além disso,
assim proporcionaremos algo que a
alta sociedade adora, acima de todas
as coisas: uma suculenta fofoca.
—Sim —concordou —Em
circunstâncias normais talvez
poderíamos albergar a esperança de
que tudo se solucionasse com um par
de semanas de intenso desconforto.
Mas, perdoa que lhe diga isso, Cass,
as circunstâncias não são normais. Ao
menos em seu caso.
Cassandra franziu os lábios e o
olhou com um sorriso divertido.
—A alta sociedade irá se
lambuzar em seu caso, Stephen. —
replicou —O filho pródigo que volta
para seu seio. Todas as damas
chorarão de alegria. Ao final irá
escolher uma delas e viverá feliz para
sempre ao seu lado. Prometo-lhe isso.
Olhou-a até que ela arqueasse
de novo as sobrancelhas e acabou
baixando a cabeça com brusquidão.
Observou como colocava bem o
sapato no pé com um simples
movimento dos dedos, depois
descruzou as pernas e alisou o vestido
sobre os joelhos.
—Às vezes seus olhos são
tão intensos que é impossível olhá-lo
no rosto, Stephen, e são mais
eloquentes que as palavras. É muito
injusto. Não se pode discutir com uns
olhos.
—Isso será sua ruína —lhe
disse.
Cassandra soltou uma
gargalhada.
—Não estou arruinada já?
—Está recuperando sua
reputação. —indicou ele —As pessoas
começam a aceita-la. Está começando
a receber convites. Minha família a
aceitou. Seu irmão se reconciliou com
você. E agora está comprometida
comigo. O que tem de mau? Acha que
vou bater em você depois de nos
casar? Que lhe farei perder nossos
filhos? Acredita nisso? Olhe em meus
olhos e me diga que me acha capaz de
um comportamento tão covarde.
Cassandra negou com a
cabeça e fechou os olhos.
—Não posso contribuir com
nada nesse matrimônio, Stephen. —
aduziu —Nem esperanças, nem
sonhos, nem luz, nem juventude. Só
as cadeias que arrasto como se fossem
espectros. Além das que arrastarei
assim que termine a cerimônia e tenha
prometido lhe entregar minha
liberdade. Não, não acredito que me
maltratasse, nunca. Mas não posso
fazer isso, Stephen. Não posso. Por
seu bem e pelo meu. Seríamos
desventurados. Os dois. Acredite
quando digo que seríamos.
A ele lhe gelou o coração. Não
havia máscara alguma nesse
momento. A voz da Cassandra tremia
pela sinceridade de suas palavras.
Casar-se era algo que não
podia voltar a fazer. Uma vez tinha
sido suficiente. Tinha sido muito.
Não havia argumento algum
que pudesse fazê-la trocar de opinião.
E assim o deixava em liberdade,
embora já não quisesse ser livre.
Talvez no dia seguinte visse as coisas
de outro modo. Talvez no dia seguinte
recuperasse o bom senso.
Produziu-se um longo silêncio,
durante o qual se sentou na poltrona
situada frente ao que ocupava ela.
Acomodou-se contra o espaldar e
apoiou um cotovelo no braço da
poltrona, antes de descansar o peso da
cabeça na mão.
Não podia se sentir aliviado
porque estava experimentando outros
sentimentos muito mais fortes.
Decepção.
Pena.
Desconcerto. Desespero.
E nesse momento lhe ocorreu
algo.
—Cass, estaria disposta a
aceitar um meio termo? —perguntou-
lhe.
—Casar com você pela
metade? —Precisou ela com um
sorriso ligeiramente sério e um olhar...
Ofegante?
—Deixe-me publicar o
anúncio do compromisso nos jornais.
— lhe suplicou —Não, não negue
ainda com a cabeça. Espere para
ouvir o que me ocorreu. Deixe-me
celebrar uma festa de compromisso
em Merton House. Sigamos
comprometidos pelo o que resta da
temporada social. Depois poderá
romper o compromisso de forma
discreta durante o verão, quando a
alta sociedade se dispersar por todo o
país. Decidiremos juntos de que
maneira vai se manter o resto de sua
vida. Mas ao menos...
—Não vou necessitar de sua
ajuda para isso, Stephen —ela o
interrompeu —Inclusive poderei lhe
devolver o dinheiro que me deu. Hoje
mesmo fui ver um advogado com
Wesley e está convencido de que pode
recuperar minhas joias e conseguir o
dinheiro que me pertence segundo o
contrato matrimonial e o testamento
do Nigel. E também poderei usar a
casa de Londres, e inclusive a
residência da viúva, apesar de não
querer essa última. Bruce me
intimidou até eu acreditar que devia
escolher entre minha liberdade e
minha herança como viúva de seu pai,
mas não me teria dado essa opção se
tivesse acreditado possível que me
condenassem por assassinato, não é
verdade? Muito recentemente tenho
caído nesse detalhe e decidi deixar de
fugir e enfrenta-lo. Depois de tudo,
vou ter uma vida bastante acomodada.
Vou ser independente.
Alegrou-se muitíssimo por ela.
Tomara tivesse ocorrido a ele, já que
Cassandra tinha toda a razão. Paget
tinha apostado tudo que podia
avassalar à mulher que seu pai tinha
aterrorizado durante nove anos.
Entretanto, uma breve reflexão
o fez mudar de ideia. Era bom para a
Cassandra que tivesse ocorrido a ela,
que tivesse sido ela quem encontrasse
a maneira de represar sua vida e seu
futuro, e o mais importante, a maneira
de começar a fechar feridas.
—E o que vai fazer com sua
independência? —perguntou-lhe.
—Comprarei uma casinha
em um povoado e viverei feliz para
sempre em completo anonimato —
respondeu ela. E lhe sorriu de verdade
—. Deseje-me o melhor, Stephen?
—E isso é preferível a se
casar comigo. —disse ele. Não era
uma pergunta. A resposta era
evidente, e o alegrava e entristecia ao
mesmo tempo.
—Sim. —respondeu ela em
voz baixa —Mas vou aceitar esse
meio termo, Stephen. Tem direito a
seu cavalheirismo. Não vou humilhá-lo
diante de toda a alta sociedade quando
foi tão amável comigo. Publica o
anúncio do compromisso. Irei celebrar
com você e com quem quer convidar
a Merton House. Interpretarei o papel
da noiva apaixonada o que resta da
temporada social. E depois o deixarei
livre.
Ou não.
Não disse em voz alta.
Limitou-se a olhá-la e a assentir com a
cabeça. E lhe devolveu o olhar e
sorriu.
—Por fim parece que
poderei lhe devolver todo o dinheiro
que me deu, — disse ela —posso me
considerar livre de qualquer obrigação
como sua amante?
—É claro. —respondeu,
muito doído. — Mas nunca lhe exigi
nada nesse aspecto, Cass. Se lhe
impus minha companhia, não foi para
que fosse minha amante, mas sim
porque queria ajudá-la.
—Sei, e lhe agradeço —
confessou ela. —Também sou livre,
ou assim serei quando devolverem
meu dinheiro e meus pertences. Dado
que se pode dizer que sou livre, vou
lhe fazer um convite livremente. Fica
esta noite comigo.
Stephen sentiu uma repentina
pontada de desejo e vontade.
Entretanto, meditou em sua resposta.
Seria o mais sensato? Sabia Cass
como evitar a concepção? Iria coloca-
la em perigo uma terceira vez?
Embora já fosse um pouco tarde para
se preocupar com isso, visto os dois
encontros anteriores.
—Seria muito humilhante
que dissesse não. — comentou ela
com um sorriso.
Sua dama de companhia estava
na casa, dormindo no último piso.
Assim como Mary e a pequena
Belinda. Tomara...
—Deveria ser a coisa mais
simples do mundo, —acrescentou ela
—não a mais difícil.
—O que? —perguntou
enquanto ficava em pé e cortava a
escassa distância que os afastava, para
colocar as mãos nos braços de sua
poltrona e se inclinar sobre ela.
—Seduzir um anjo. —
respondeu Cassandra.
Beijou-a.
Não haveria mais sordidez
entre eles. Ia se casar com ela.
Ignorava como conseguir isso, mas
definitivamente conseguiria.
Cassandra ia se converter em
sua esposa.
Colocou-a em pé, ainda
abraçados, e a beijou com paixão e
crescente desejo.
—Acho que deveríamos
continuar com isso lá em cima,
Stephen. — disse ela ao final, depois
de se afastar um pouco.
—Porque poderiam nos
interromper aqui? —perguntou com
um sorriso.
—Como nos interromperam
no balcão do salão de baile há um
momento? — replicou ela —Não,
mas...
Nesse inoportuno momento
alguém bateu com suavidade à porta
da sala.

Que diabos estava


acontecendo? Pensou Cassandra.
Devia ser mais de meia-noite.
Alguém estava doente, concluiu, de
modo que se afastou de Stephen e
cruzou a estadia para abrir a porta.
Seria Alice? Belinda?
Mary estava do outro lado da
porta e junto a ela...
—William! —exclamou
enquanto dava um passo para abraçar
seu enteado... Embora só fosse um
ano mais jovem que ela. —Voltou! E
nos encontrou.
—Mas não a tempo. —
replicou o recém-chegado quando se
separaram. Passou um braço em
Mary por cima dos ombros. —Fugi de
Carmel House sem pensar e descobri
um navio a ponto de zarpar para o
Canadá. Subi a bordo e quando me
dei conta do que tinha feito,
estávamos no meio do oceano.
Embora a ideia fosse me afastar um
tempo para ver se o assunto ficava
esquecido. Acabei me afastando
demais. Demora-se uma eternidade
para ir e voltar do Canadá. Sobretudo
quando a pessoa se vai com o posto e
se vê obrigado a trabalhar para pagar
a passagem de ida. E uma vez em
terra firme tive que trabalhar de novo
para comprar a passagem de volta.
Tive sorte de não ter que esperar até o
ano que vem.
—Entre, aqui há mais luz. —
lhe disse —Mary, você também. É
claro que tem que entrar.
Tinha que entrar... Porque
William era o pai de Belinda.
—Cassie, não pode nem
imaginar o que senti quando cheguei a
Carmel House e descobri que Mary e
Belinda não estavam lá. —disse
William ao entrar na saleta —E
quando me inteirei de que lhe
haviam... —Guardou silêncio de
repente quando percebeu que havia
alguém mais na estadia.
—Stephen, apresento
William Belmont —disse ela —É o
segundo filho de Nigel. William,
apresento o conde de Merton.
Os dois se saudaram com uma
reverência.
—Não tinha tido o prazer até
agora. —disse Stephen.
—Vim muito pouco a
Londres. — disse William —Sempre
detestei a cidade. Passei vários anos
nos Estados Unidos e depois dois no
Canadá. Acabo de voltar depois de
uma segunda estadia no país. Os
espaços abertos sempre me atraíram
muito, embora deva confessar que
durante este último ano hei sentido
outro tipo de atração muito mais
poderosa. —Olhou para trás, já que
Mary ficara no vão da porta, e
estendeu um braço para ela —
Conhece minha esposa, Merton? —
perguntou-lhe —Cassie, sabia que
Mary é minha esposa? Ela me disse
que não, mas me custa muito
acreditar. Foi o que causou a bendita
briga.
A briga? A briga daquela
noite!? Exclamou Cassandra para si
mesma.
Olhou ao casal com assombro.
—Está casada com o
William, Mary? —perguntou a criada.
—Sinto muito, milady. —
respondeu Mary sem se mover do
lugar que ocupava —Quando Billy
voltou do Canadá e se inteirou da
existência de Belinda, saiu em busca
de uma licença especial e casamos a
trinta quilômetros de Carmel House
no dia antes de... O dia antes de partir
de novo. Disse-me que voltaria
quando pudesse, e voltou. —Olhou ao
William com os olhos arregalados e
uma ternura inegável.
—Venha aqui, querida —
disse William, fazendo-lhe um gesto
com os dedos até que ela obedeceu e
pôde pegar sua mão. Entretanto, se
manteve um tanto afastada.
— Mary se adaptaria
estupendamente à dura vida dos
pioneiros, não é, Cassie? Parece frágil,
mas não é. Não vou pôr sua fortaleza
a prova. Vou assentar a cabeça aqui,
neste país, que Deus me ajude, e
cuidar da Belinda e dela. Depois de
emendar sua situação, é claro. Não sei
como Bruce pôde ser tão idiota para
acreditar que... —interrompeu-se de
novo e olhou Stephen, que estava
diante da lareira com as mãos
entrelaçadas à costas, como antes —
Será melhor que fale amanhã com
você —disse, mudando de assunto. —
Não irei a lugar algum essa noite, se
não for um inconveniente, é claro.
Quero ficar com minha esposa e
minha filha.
Cassandra olhou para Stephen
com expressão pensativa. Em
realidade, não estava comprometida
com ele. Nunca se casariam.
Entretanto, tinha sido muito amável
com ela. Devia-lhe algo: sinceridade.
Embora Stephen lhe tivesse
perguntado por sua vida e por seu
matrimônio, e também lhe tinha
perguntado se ela tinha matado Nigel
(ao que tinha respondido que sim),
não lhe tinha pedido detalhes. Embora
devesse se perguntar o que tinha
acontecido. E, é claro, tinha-lhe
mentido.
—Diga o que precisa dizer,
William —disse —O conde do Merton
é meu noivo. Anunciamos isso essa
mesma noite.
Mary levou uma mão ao peito
e depois, quando William cruzou a
estadia para estreitar a mão ao
Stephen, fez o mesmo com a outra.
—Alegro-me de escutar isso,
—replicou William —se for um
homem decente, Merton. Cassie
merece um pouco de felicidade. Não
acredita em todas essas tolices que
contam dela, não é verdade? A
assassina do machado. Por Deus!
Nem sequer há muitas mulheres
capazes de brandir um machado...
Para fazer muito mal a alguém, ao
menos.
—Não acredito em nada do
que se diz —assegurou Stephen em
voz baixa e olhou Cassandra com
expressão séria —E mesmo se fosse
verdade, estou certo de que teria sido
em defesa própria e não um
assassinato a sangue frio.
—Meu pai podia ser um
animal, —reconheceu William —mas
era o álcool que o endemonizava.
Claro que para se endemoniar até esse
ponto, ele tinha que levantar o copo,
verdade? Enfim, o culpado era ele.
Quando bebia, coisa que fazia pouco,
mas que deveria ter feito menos, se
convertia em outra pessoa. Parece-me
que Cassie lhe proporcionou alguns
detalhes.
—Sim. —respondeu
Stephen.
—Não lhe terá dito que
atirou nela em uma dessas ocasiões,
não é verdade? —Perguntou William,
que entrecerrou os olhos —Não lhe
haverá dito isso, verdade, Cassie?
—Acredito que deveríamos
nos sentar. —interrompeu ela, depois
de dar de ombros, dirigindo-se ao
velho e desmantelado divã em vez de
se sentar em sua poltrona habitual.
Stephen se sentou a seu lado e notou
o toque da manga de sua jaqueta no
braço nu.
William indicou a Mary a
poltrona que costumava ocupar Alice,
e esta se sentou na beira com
muitíssimo desconforto. William se
sentou em um braço e pegou uma das
mãos de sua esposa.
—O problema de meu pai
era que nunca parecia estar bêbado,
não é verdade, Cassie? —Perguntou
William, embora seus olhos estivessem
cravados em Stephen. —A menos que
alguém se fixasse em seu olhar, claro.
Além disso, poucas vezes bebia em
casa e rara vez o fazia estando só.
Entretanto, acredito que estava sóbrio
quando lhe contei sobre meu
matrimônio aquela manhã. Deve ter
começado a beber depois de eu partir.
Não gostou nem um pouco do que lhe
disse. E assim que começava a beber,
era incapaz de parar. De noite...
Enfim, escutei-o gritar e fui ver o que
acontecia.
—Enviaram-me com outra
garrafa —explicou Mary com um fio
de voz enquanto olhava ao William
com tristeza —E isso não fazia parte
de meu trabalho, nunca fazia essas
coisas. Mas o senhor Quigley queimou
a mão com o bule e a senhora Frise a
estava curando, e era tarde e não
restavam muitos criados na cozinha.
Alguém me disse que a levasse eu.
Não deveria ter ido. Sabia que Billy
tinha contado a ele, que me disse que
viria me buscar antes de anoitecer, e...
E a senhora Frise me disse que
tomasse cuidado porque Sua Senhoria
já estava bêbado.
—Não foi sua culpa,
querida. — replicou William —Você
não teve a culpa de nada. Não deveria
ter ido reservar um quarto na
estalagem para passar a noite depois
de me dizer que não podíamos dormir
juntos sob seu teto. Cassie te escutou
gritar e foi em sua ajuda. Mas o único
que conseguiu foi uma surra por tratar
de a ajudar. A senhorita Haytor
também tentou. Quando cheguei e o
escutei gritar, não ouvi mais nada.
Abri a porta da biblioteca e o vi com
uma pistola na mão. Assim tampouco
teria sido boa ideia que gritassem.
—Acredito que não há
necessidade de acrescentar nada mais,
William —atravessou Cassandra nesse
momento, e de repente se deu conta
de que apertava a mão de Stephen
com força —Oficialmente se achou
que foi uma morte acidental. Seu pai
estava limpando a pistola e disparou.
Ninguém poderá demonstrar o
contrário. Não quero que...
—Saberá Deus o que teria
feito com a pistola se eu não tivesse
entrado. —interrompeu William —
Talvez tivesse atirado em alguma. O
caso é que quando tentei tirá-la das
mãos dele, mal lutou. Depois apontou
para si mesmo com toda deliberação e
disparou. No coração.
Durante uns minutos se fez um
silêncio absoluto. Cassandra viu Alice
em pé, no vão da porta.
—É o mesmo que lhe disse,
Cassie —disse Alice —Eu o vi. De
onde você estava, não pôde vê-lo. O
senhor Belmont estava entre vocês. E
Mary tinha o rosto coberto com as
mãos. Mas eu sim o vi. Lorde Paget
disparou em si mesmo.
—Suponho que devia se
odiar muito por ter chegado à situação
em que se achava. —aventurou
William —Talvez se deu conta de
repente de que tinha uma pistola nas
mãos. Talvez se deu conta de repente
de que estava a ponto de cometer um
assassinato. Talvez a bebedeira lhe
passou de repente e teve um instante
de lucidez. Fosse como fosse, Cassie,
não foi nem assassinato, nem
acidente. Foi um suicídio.
Stephen lhe deu um beijo no
dorso da mão. Ao olhá-lo, Cassandra
viu que tinha os olhos fechados.
—Fugi porque quando
descobrissem meu casamento com
Mary, as pessoas iriam supor que
houve uma discussão e acabei
disparando em meu pai. —seguiu
William —Poderiam ter me acusado
de assassinato. Poderiam ter acusado
Mary de cumplicidade. Fugi porque
tudo parecia confuso. Achava que o
melhor seria deixar as coisas se
acalmarem um pouco. Achava que
sem minha presença e sem ninguém
que soubesse de meu matrimônio, a
morte se declararia acidental... Tal
como aconteceu, ao menos
oficialmente. Disse a Mary que não
contasse a ninguém sobre nosso
matrimônio. Disse que voltaria a
procurá-la em um ano. Demorei um
pouco mais em cumprir minha
promessa, sinto muito, querida. Mas,
Cassie, pensei que você estivesse a par
de meu matrimônio. Pensei que meu
pai lhe havia dito isso ou que Mary lhe
diria. Não podia imaginar que a
culpassem de sua morte, que
acreditassem que era culpada. De tê-
lo matado com um machado, nada
mais e nada menos. O mundo se
tornou louco ou o que?
—Cassie não acreditou em
mim porque pensava que eu quisesse
consolá-la. —disse Alice da porta —
Tampouco queria acreditar que o
senhor Belmont tivesse matado o pai,
por mais que fizesse isso para
proteger Mary. Supôs que eu lhe
mentia para que se sentisse melhor.
—É verdade. —admitiu ela.
Mas se tudo era verdade, a
explicação da Alice a qual William
acabava de confirmar com seu próprio
relato, Nigel se havia suicidado. Se a
verdade tivesse saído à luz, lhe teriam
negado um enterro decente.
Teria se importado com isso
naquele tempo?
Importava-se com isso nesse
momento?
Nigel poderia ter matado
alguém aquela noite. Entretanto, havia
se suicidado.
Estava muito aturdida para
analisar o que pensava ou o que
sentia.
—Foi uma grande estupidez
que saísse do quatro. —disse William
—Perdão pela linguagem.
—Certamente. —concordou
Stephen —Mas todos nós fazemos
coisas estúpidas, Belmont. Embora
recomendo a você que não agrave a
situação soltando a verdade aos quatro
ventos. É muito desagradável e talvez
ninguém acredite de qualquer forma.
O melhor será que nos retiremos
todos. Eu vou para casa. É preferível
deixar as decisões para amanhã ou
depois de amanhã.
—Um conselho muito sensato.
—replicou Alice, que olhou para
Stephen com aprovação. —Alice,
você não estava presente quando
contei a William que lorde Merton é
meu noivo.
Alice olhou aos dois.
—Sim. —Foi a única coisa
que disse sua antiga preceptora.
Assentiu com a cabeça — Sim. —E
partiu, possivelmente em direção a seu
dormitório.
William ficou em pé, ajudou
Mary a fazer o mesmo, passou-lhe um
braço pelos ombros e saíram juntos da
sala.
Eram marido e mulher, pensou
ela. Tinham casado há mais de um
ano. No mesmo dia que Nigel morreu.
Por sua própria mão.
Alice não tinha mentido.
—Por que me disse que
tinha matado seu marido? —
perguntou Stephen, que estava em pé,
esperando que ela se levantasse.
Entretanto, estava muito
cansada para abandonar o divã.
—Era o que todo mundo
achava. —respondeu Cassandra —
Uma parte de mim desejava ter feito
isso.
—E queria proteger esse
miserável horror de homem? —
replicou ele.
—Não julgue William tão
duramente. —respondeu —Não é um
homem mau. Mary o ama e além
disso, é o pai de Belinda. Casou-se
com ela, uma criada ao serviço de seu
pai, porque tinha dado luz a sua filha.
E veio procura-la, embora devesse
acreditar que ainda podiam
responsabilizá-lo pela morte de Nigel.
Acredito que no fundo a ama.
Stephen, negava-me a que o
acusassem de assassinato. Por Deus, é
o pai da Belinda!
Stephen tomou seu rosto entre
as mãos e lhe sorriu. Grande momento
para se dar conta de que estava
loucamente apaixonada por ele,
pensou Cassandra.
—Se houver um anjo neste
aposento, —disse ele —garanto que
não sou eu. —Inclinou a cabeça e a
beijou nos lábios.
—Vai ficar esta noite? —ela
perguntou.
—Não. —respondeu
Stephen —Vamos fazer amor de
novo, Cass. Mas será em nossa noite
de núpcias, em nosso leito nupcial. E
será uma experiência que não
esquecerá jamais.
—Que alarde. —replicou.
Enfim, pensou um tanto
decepcionada, não voltaria a
acontecer. Nunca voltaria a se deitar
com ele.
—Já me dirá no dia seguinte
de nossa noite de núpcias se estava
fazendo alarde ou não. —Esses olhos
azuis adquiriram um brilho brincalhão
enquanto lhe passava um braço pela
cintura e a levava até a porta de
entrada —Boa noite, Cass. — disse e
a beijou uma vez mais antes de abrir a
porta —Saiba que vai ter de se casar
comigo. Ficará terrivelmente só se não
o fizer. Toda sua família a abandonará
em altares do matrimônio.
—Salvo Wesley. —lhe
recordou.
Viu-o assentir com a cabeça.
—E salvo Roger. —
acrescentou.
—E salvo Roger. —
concordou ele, que seguiu sorrindo
enquanto saía da casa e fechava a
porta.
Cassandra apoiou a fronte na
porta e fechou os olhos. Tentou se
lembrar do porquê não podia se casar
com ele.
CAPÍTULO 19

—Vou dar um passeio —


disse Cassandra, embora não fizesse
gesto de pôr em prática suas palavras.
Estava em pé junto à janela da saleta,
contemplando um dia que não
terminava de se decidir entre o sol e a
chuva, embora parecia mais inclinado
ao segundo.
Não tinha dormido bem...
Nada surpreendente dadas as
circunstâncias.
E nessa manhã todo mundo se
rebelara.
Mary se negava a deixar de
trabalhar na cozinha, assim como a
não chama-la "milady".
—É da família, Mary, está
casada com meu enteado. —tentou
explicar, mas sem êxito algum.
—Alguém tem que preparar
o café da manhã, fazer o chá, lavar os
pratos e todo o resto, milady —
replicou a aludida —e será melhor
que eu o faça porque nem a senhorita
Haytor, nem Billy, nem você sabem
pôr uma frigideira no fogo. Além
disso, sigo sendo a mesma de ontem e
a mesma do mês passado, não é
verdade?
William estava arrumando a
porta da sala quando ela desceu, de
modo que já fechava bem sem ter que
lhe dar um empurrãozinho extra.
Assim que terminou com a porta,
consertou o varal, de forma que não
corresse perigo de cair ao chão
quando a roupa estivesse estendida.
Nesse momento estava limpando todas
e cada uma das janelas de casa, por
dentro e por fora. Seu enteado sempre
tinha sido um homem enérgico e
inquieto, e era muito mais feliz
realizando algum trabalho físico que
matando o tempo com atividades
próprias de um cavalheiro. Nigel quis
que fizesse carreira na Igreja, mas
William se rebelou depois de acabar
seus estudos em Cambridge.
Alice foi a pior de todos eles
nessa manhã. Estava atacando os
lençóis com a agulha, e de um humor
de cães. Mostrava uma irritante
expressão de "já lhe disse isso",
embora estivesse em seu direito
porque certamente lhe havia dito que
William não tinha atirado em seu pai,
mas Nigel se havia suicidado.
E para cúmulo lhe tinha dado
um ultimato, ou algo que a fim de
contas soava como tal.
Ou aceitava seguir com o
compromisso que tinha anunciado a
noite anterior no baile de lady
Compton e que sairia publicado nos
periódicos do dia seguinte ou ela
cortaria qualquer relação com o
senhor Golding.
Era uma ridicularia sem pés
nem cabeça. Mas Alice não estava
disposta a dar seu braço a torcer.
—Estou segura de que o
senhor Golding me convidou a ir ao
aniversário de seu pai movido pela
amizade que nos une. Estou segura de
que quando voltarmos, não voltarei a
vê-lo, salvo se nos encontrarmos por
acaso. Mas como continua com este
absurdo plano de comprar uma
casinha em algum rincão perdido da
Inglaterra, advirto-lhe que não voltarei
a vê-lo jamais, Cassie.
—Mas é que para mim seria
o paraíso! —protestou ela.
—Tolices. —replicou Alice
—Irá se aborrecer como uma ostra
em menos de duas semanas e
começará a puxar os cabelos. Seria
muitíssimo melhor que se casasse com
o conde Merton, porque apesar de
tudo, parece que lhe têm carinho e
acredito que no fundo é um jovem
agradável, inclusive decente. Além
disso, se romper o compromisso a
estas alturas, haverá outro escândalo,
e isso é a última coisa que lhe faz
falta. Deveria ter pensado nas coisas
antes de lhe permitir que a beijasse no
meio do baile. Se insistir em ir viver no
campo, eu vou com você. E já pode
me olhar como quiser. As olhadas não
matam. Ao fim e ao cabo, Mary não
irá com você, não é verdade?
E embora possa contratar meia dúzia
de criados para substitui-la, todos
serão completos desconhecidos.
Assim como seus vizinhos. O que vão
pensar de uma viúva forasteira que vai
viver em seu povoado sem contar
sequer com uma dama de companhia
para fazer que sua casa seja
respeitável? Não, Cassie, se for ao
campo, eu vou também. — Se isso
fosse pouco, Alice parecia ter um ás
na manga para ganhar a discussão —
E não voltarei a ver o senhor Golding
na ida — acrescentou para reforçar
sua postura enquanto cortava o fio
com os dedos.
De modo que Cassandra
ameaçou sair para dar um passeio.
—Levarei Roger. — disse
nesse momento, enquanto tamborilava
com os dedos sobre o batente.
Entretanto, o muito traidor do
Roger levava toda a manhã grudado
em William. Assim como Belinda, que
seguia a seu pai com a boneca contra
o peito e os olhos arregalados.
—Parece-me bem, Cassie —
disse Alice sem levantar a vista da
costura —E leve um guarda-chuva.
Não obstante, já era muito
tarde. Uma carruagem muito luxuosa
para circular pelo Portman Street
entrou na rua, e na distância era
impossível distinguir o brasão ducal
que luzia na portinhola.
Quando o veículo se deteve
diante de casa, sentiu uma estranha
resignação. O cocheiro desceu da
boleia, desdobrou os degraus e ajudou
a duquesa do Moreland a descer.
Nem sequer se surpreendeu ao ver
que fazia o mesmo com a condessa do
Sheringford e lady Montford.
Como não! O trio completo.
Seu irmão tinha anunciado seu
compromisso na noite anterior.
—Temos visita, Alice. —
disse.
A aludida deixou de lado a
costura.
—Irei lhe deixar a sós com
elas —disse —Ainda tenho que me
ocupar de minha bagagem.
Partiu antes que Mary batesse
na porta para anunciar as três damas.
Assim tudo começava, pensou
ela. A grande charada.
—Lady Paget — saudou-a a
duquesa de Moreland enquanto
cruzava a estadia e a abraçava. —
Bom, como vai ser nossa irmã, vou
me comportar como tal e vou chama-
la de Cassandra. Importa-se? E você
tem que me chamar Vanessa, nos
negamos a esperar uma hora mais
respeitável para lhe fazer uma visita,
assim terá que nos perdoar. Ou não,
tudo depende de você. O caso é que
aqui estamos — concluiu a duquesa
com um sorriso radiante.
A condessa de Sheringford
também a abraçou.
—Ontem à noite nos coibiu a
grande quantidade de espectadores,
por isso não pudemos lhe dar as boas-
vindas à família como teríamos
gostado. Stephen se comportou muito
mal ao beijá-la dessa maneira no
balcão, sobretudo porque o eduquei
para que soubesse que essas coisas
não se fazem, mas foi maravilhoso
descobrir que está tão apaixonado que
é capaz de cometer uma imprudência.
É muito estranho que Stephen se
mostre imprudente. E estamos
encantadíssimas de que tenha
acontecido com você. Sempre
desejávamos que encontrasse o amor
e a felicidade, Cassandra. E por favor,
me chame Margaret.
—E a mim, Katherine. —
atravessou a baronesa Montford, que
foi a terceira em abraçá-la —Stephen
está comprometido e vai se casar!
Ainda não consegui assimilar. Mas
temos tanto para fazer que nem
sequer sabemos por onde começar.
Sabemos que não tem nem mãe, nem
irmãs, embora tenha sido uma grata
surpresa nos inteirar de que sir
Wesley Young é seu irmão e de que
não está sozinha neste mundo. Meg,
Nessie e eu seremos suas irmãs
quando se casar com Stephen, mas
não vamos esperar tanto para
exercermos tal função. Ajudaremos
você a celebrar seu compromisso e a
organizar suas bodas.
—A verdade é que somos
um pouco malvadas por nos alegrar de
que não tenha parentes mulheres. —
confessou Vanessa —Mas nos
alegramos. Vamos nos divertir muito
durante o que fica da temporada
social... A menos que queiram se
casar antes que ela acabe, claro.
Onde...?
—Nessie! —Interrompeu-a
Margaret que depois se pôs a rir e
tomou Cassandra pelo braço. —Se
não refrearmos um pouco nosso
entusiasmo e nosso bate-papo, a
Cassandra vai ter um troço. Viemos
para levá-la a tomar um café e uns
doces... Desde que não tenha outros
planos para esta manhã, é claro. E
quando nos sentarmos e relaxarmos
um pouco, falaremos do baile de
compromisso que se celebrará em
Merton House. Será o baile mais
memorável desta temporada.
Cassandra olhou às três irmãs,
tão bonitas e elegantes, tão bem
casadas, e se perguntou como era
possível que se mostrassem tão
entusiasmadas com o compromisso de
seu irmão. Até um cego se daria conta
de que o adoravam.
Sabia muito bem que no fundo
o entusiasmo não era genuíno.
Deviam estar horrorizadas, alarmadas,
preocupadas... Supôs que estavam
fazendo boa cara ao mau tempo, já
que consideravam que a situação era
irremediável.
Tomou uma decisão impulsiva.
Representar um papel ante a alta
sociedade durante o que ficava de
temporada social era uma coisa.
Enganar as irmãs de Stephen, outra
muito diferente.
—Obrigada. —disse —Será
um prazer tomar um café com vocês.
E estarei encantada de ajudar na
organização do baile. Mas não haverá
casamento a planejar.
As três irmãs a olharam sem
compreender.
—Não haverá casamento. —
repetiu.
Nenhuma das três falou. A
duquesa levou as mãos ao peito.
—Eu gosto de seu irmão —
lhes assegurou —Certamente ele é o
homem mais amável e decente que
conheci em minha vida. Certamente
que é o mais bonito. Também é
muito... Muito atraente. Acredito que
a atração é mútua. De fato, sei que é
assim. Esse beijo foi o resultado de
uma atração mútua, nada mais. Foi
algo incrivelmente imprudente... Por
ambas as partes. O conde Merton se
comportou com grande aprumo e
cavalheirismo ao se dar conta de que
tínhamos espectadores. Por isso
anunciou o compromisso. Mas é uma
solução que nenhum dos dois deseja e
tampouco podemos permitir que o
resto de nossas vidas fiquem marcadas
por culpa de um beijo irrefletido e
tolo. É evidente que ele se sente
obrigado a proteger minha reputação.
Não posso humilhá-lo obrigando-o a
não publicar o anúncio do
compromisso nos jornais e a evitar a
celebração disso, de modo que aceitei
seguir comprometida com ele até o
final da temporada social. Depois
romperei o compromisso em privado.
A reputação de seu irmão não sofrerá
absolutamente, asseguro-lhes isso. De
fato, todo mundo se sentirá aliviado
por ele. Vocês, inclusive.
As três irmãs se olharam entre
si.
—Bravo, Cassandra! —
exclamou Vanessa.
—É muito amável em se
justificar conosco. —comentou
Katherine.
—E agora temos que decidir
se dizemos a Stephen que sabemos
tudo. —disse Margaret com firmeza
— Irá se zangar com você por nos
dizer isso Cassandra?
—Certamente. —respondeu
—Estou convencida de que ele
acredita que nosso compromisso é
real e que espera poder me fazer
mudar de opinião. É claro, não quer
se casar comigo de verdade. Mas seu
cavalheirismo não tem limites.
—Além de estar loucamente
apaixonado. — acrescentou Vanessa
com ironia —Faz um tempo que
sabemos disso com certeza. E há um
par de dias me confessou que gostava
de verdade de você, Cassandra. E essa
admissão, “gostava de verdade", é um
passo tremendo para um homem.
Acredito que a boca masculina está
desenhada para que lhes seja quase
impossível pronunciar qualquer
palavra relacionada ao amor,
sobretudo quando têm que conjugar
um verbo e formar uma frase como
"amo-a".
—E por isso não podemos
lhe dar razão. — afirmou Margaret —
Parece mais lógico que Stephen queira
se casar com você de verdade.
Cassandra guardou silêncio,
incapaz de rebater seus argumentos.
—Não contaremos a
Stephen nada do que nos disse —disse
Katherine, que olhou a suas irmãs em
busca de confirmação. —E talvez
nunca seja preciso. Mas lhe asseguro
que valorizamos muitíssimo sua
felicidade e se ele só pode obtê-la se
casando com você, faremos tudo o
que esteja em nossas mãos para nos
assegurar de que haja um casamento a
planejar.
—Mas é impossível que me
queiram como sua esposa. —
protestou enquanto levava uma mão
ao peito —Tenho vinte e oito anos,
estive casada durante nove anos, meu
marido morreu em circunstâncias tão
misteriosas que a opinião pública me
tem por sua assassina e lorde Merton
e eu nos conhecemos recentemente,
há mais de uma semana. —À medida
que enumerava as razões, ia
estendendo os dedos da outra mão.
—Cassandra, deveria saber
algo sobre nós. —disse Margaret com
um suspiro —Embora nos
comportemos a perfeição quase todo
o tempo, não crescemos nem nos
educamos como a maioria dos
aristocratas e, portanto, somos
incapazes de pensar como eles, daí
que tenhamos conseguido fazer
funcionar nossos respectivos
matrimônios, embora em seus
começos todos fossem potencialmente
desastrosos. E mais, conseguimos
convertê-los em matrimônios por
amor. Por que ia Stephen ser
diferente? Por que vamos indicar-lhe
todos os desastres que poderiam lhe
acontecer se existir a possibilidade de
que encontre a felicidade?
—Aprendemos a confiar no
amor —acrescentou Katherine com
um sorriso —Somos umas otimistas
natas. Contarei a você minha história
um dia destes. Ficará de cabelos em
pé!
—Se não formos logo, —
comentou Vanessa —vamos tomar
esse café e esses doces como almoço
em vez de lanche.
—Vou buscar meu chapéu
—disse Cassandra.
Enquanto subia a escada, se
perguntou se sua decisão de explicar a
verdade às irmãs do Stephen a tinha
liberado de complicações ou lhe tinha
criado mais.
Stephen havia dito a Vanessa
que gostava de verdade dela e fez isso
antes dos acontecimentos da noite
anterior.
Sorriu... E sentiu a ardência
das lágrimas na garganta.
William estava de joelhos no
corredor do primeiro piso, arrumando
um taco solto do chão que estava
rangendo desde que se mudaram a
casa.

Depois de sair da Câmara dos


Lordes, Stephen partiu para casa em
vez de se pôr rumo ao White"s, como
era seu costume. Tinha muitas coisas
na cabeça.
De qualquer maneira, o clube
seria um lugar muito incômodo depois
da noite anterior. Seria a vítima de
incontáveis piadas se o vissem. A
Câmara dos Lordes já tinha sido
bastante má e embora ninguém lhe
havia dito nada abertamente, havia
visto alguns sorrisos simulados muito
eloquentes.
O pesadelo de todo cavalheiro
era que o surpreendessem em alguma
pequena e imprudente indiscrição
durante um ato público, de modo que
se visse exposto a um matrimônio
indesejado.
Sua indiscrição não tinha sido
pequena, mas sim muito imprudente.
Pelo amor de Deus!
Mas seria um matrimônio
indesejado?
Estava apaixonado por
Cassandra. Passava toda a noite em
claro, tentando que a verdade surgisse
de entre as camadas da culpa, do
cavalheirismo e de desejos fantasiosos
que o afligiam, de modo que pudesse
conhecer seus verdadeiros
sentimentos. Embora a verdade fosse
irrelevante por completo. Tinha que
convencer Cassandra para que se
casasse com ele.
Entretanto, a verdade era o
que era, independente de quantas
camadas estivessem por cima.
Estava apaixonado por ela.
E depois de reconhecer isso,
queria se casar com ela? De verdade,
queria se casar, fosse com quem
fosse, a uma idade tão jovem?
Evidentemente não tinha por
que espremer os miolos tentando
responder a essas perguntas.
Pegaram-no beijando Cassie e devia
se casar com ela. Sobretudo tendo em
conta a reputação dela.
De caminho para casa, decidiu
que faria um rápido almoço e que
depois voltaria a sair. Tinha que falar
com William Belmont. Foi
maravilhoso escutar a verdade sobre o
desastre da outra noite, mas não tinha
tão claro que proclamar tal verdade
aos quatro ventos fosse o mais
adequado.
Lorde Paget havia se suicidado
enfurecido pelo álcool.
Se a verdade viesse à luz,
certamente iriam querer exumar seus
restos e tirá-los do cemitério para
voltar a enterrá-los em um lugar não
consagrado.
E Cassandra era sua viúva.
Sem dúvida alguma se veria
envolvida de novo em outro escândalo
muito desagradável.
Se alguém acreditasse na
história de Belmont. Havia a
possibilidade de que a maioria das
pessoas seguisse acreditando na
história do machado. Era muito mais
sórdida. A verdade só conseguiria
avivar um escândalo que estava se
convertendo em águas passadas. A
maioria das pessoas nem sequer
acreditava mais e já estava achando as
fofocas aborrecidas.
Talvez pudesse convencer
Belmont para que se limitasse a apoiar
a tese oficial sobre a morte, que dizia
ter sido acidental. Não mentiria se
declarasse ter estado presente e visto
o que acontecera. Sua palavra teria
bastante peso na opinião de outros,
salvo na daquelas pessoas dispostas a
acreditar no pior. Ao fim e ao cabo,
era filho do falecido.
Além disso, tinha que ver
Cassandra depois do almoço. Iria levá-
la para dar um passeio, se o sol
decidisse sair de uma vez. Poderia
começar com sua campanha de
persuasão. Utilizaria todo seu encanto
para convencê-la a se apaixonar por
ele.
De fato, morria de vontade de
voltar a vê-la.
Subiu os degraus da entrada
com rapidez e bateu na porta em vez
de abrir com sua chave. Lançou o
chapéu ao criado que lhe abriu a porta
e sorriu a seu mordomo, que acabava
de sair da parte traseira da casa.
—Que não estenda o pânico,
Paulson. —lhe disse —Almoçarei
frios, pão e manteiga. Pode ter isso
preparado para dentro de meia hora?
Entretanto, Paulson tinha certa
informação que lhe comunicar.
—Milorde, lady Sheringford,
a duquesa do Moreland e a baronesa
Montford estão aqui. Acredito que no
salão de baile. Disseram que não
ficariam para o almoço, mas já estão
há mais de uma hora esperando e é
possível que tenham perdido a noção
de tempo. Ordenei que preparem um
almoço frio para as damas.
Acrescentarei um talher a mais para o
senhor, milorde. Estará preparado em
dez minutos.
Suas irmãs? No salão de baile?
Não precisava ser um gênio
para adivinhar o motivo. Estavam
tomando as rédeas até antes de pedir.
Estavam organizando seu baile de
compromisso.
—Obrigado, Paulson —disse
ao mordomo enquanto se dirigia a
escadaria.
Subiu os degraus de dois em
dois.
Deveria lhes dizer?
Perguntou-se. Seu compromisso não
era real, ao menos para Cass, é claro.
Não diria, decidiu antes de chegar ao
patamar. Era algo irrelevante. No final
da temporada social o compromisso
seria real para os dois. Iriam se casar
no verão. Esperava que o casamento
se celebrasse em Warren Hall,
embora não lhe importasse casar em
Saint George se isso era o que ela
quisesse, chegado o momento.
Descobriu suas irmãs em pé no
meio do salão de baile, com a cabeça
jogada para trás enquanto
inspecionavam os lustres que pendiam
do teto. Havia três, já que era uma
estadia muito espaçosa, e nunca a
tinha usado desde que herdara o
título. Um cavalheiro solteiro não tinha
muitas oportunidades para celebrar
festas suntuosas em sua casa.
Seu baile de compromisso
seria uma exceção. Estava ansioso e
entusiasmado pela ideia. Ficou na
porta com as mãos entrelaçadas às
costas.
—Contei setenta velas nesse
lustre. E suponho que haverá outras
tantas no do fundo. O do centro é o
maior. Deve ter espaço para ao menos
cem velas. Isso soma um mínimo de
duzentas e cinquenta velas, sem
contar os candelabros de parede.
Seria um esbanjamento
despropositado. Só as velas custarão
uma verdadeira fortuna.
A voz procedia do estrado da
orquestra, situado no extremo mais
afastado da estadia. Não tinha
percebido sua presença até que a
ouviu falar.
Cassandra.
Ela também tinha a cabeça
jogada para trás.
Como se Paulson e a
governanta não soubessem quantas
velas seriam necessárias para iluminar
o salão de baile... Sem ter que contar
os candelabros e acabar com dor de
pescoço no processo.
—Estava a ponto de mandar
chamar o guarda ao me inteirar de
que tinham invadido minha casa. —
disse, erguendo a voz —Mas já vejo
que seria inútil. Devo supor que
tomaram conta dela até o baile de
compromisso?
—A menos que você queira
organizar a festa sozinho, Stephen. —
indicou Margaret enquanto ele entrava
na estadia.
Sorriu e deu um beijo na face
de sua irmã mais velha antes de fazer
o mesmo com suas outras duas irmãs.
—Talvez devesse chamar o
guarda de qualquer maneira para que
não possam escapar antes que chegue
esse dia —replicou.
Cassandra estava atravessando
a pista de baile, com um ligeiro rubor
nas faces.
Encontrou-se com ela a meio
caminho, passou-lhe um braço pela
cintura e lhe deu um beijo fugaz nos
lábios. Vê-la em sua própria casa lhe
produzia uma sensação incrível.
—Meu amor — disse ele.
—Stephen — saudou ela
enquanto a fazia virar para ficar de
frente a suas irmãs.
As três os observavam com
idênticas expressões alegres.
—Tomamos café e doces
juntas —lhe informou Cassandra —
Felicitaram-me, pelo menos, vinte
pessoas, e isso sem nem sequer se
publicar o anúncio do compromisso.
Foi vertiginoso. E maravilhoso. —
acrescentou, como se lhe tivesse
ocorrido depois essa ideia.
—Menos mal que fomos
sinceros ao anunciar nosso
compromisso no baile de ontem à
noite. —replicou ele.
Cassandra lhe sorriu com os
olhos. Suas irmãs também sorriam.
Até esse momento se esteve
perguntando o que pensariam de seu
compromisso.
—Menos mal, certamente.
—concordou Cassandra —Embora
tenha sido você a fazer o anúncio.
—Tal como Deus manda. —
interveio Meg —Não quero nem
pensar o que teria acontecido se
chegar a anunciá-lo você, Cassandra.
O comentário fez que todas se
pusessem a rir de boa vontade.
—Olhe a ideia de fazer um
anúncio assim, sem que fosse
verdadeiro! Stephen, que coisas tem.
Não quero nem imaginar o que teria
acontecido se Cassandra tivesse te
contrariado. Só de pensar nisso me
põem os cabelos em pé.
—Não teríamos nenhum
baile fastuoso a organizar. —
acrescentou Kate —E nenhum
casamento ainda mais suntuoso este
verão.
Puseram-se a rir de novo,
como se fossem cúmplices de uma
conspiração contra ele. Abraçou
Cassandra com mais força e lhe
sorriu.
—Já vejo que minhas irmãs e
você se dão às mil maravilhas. —
comentou —Deveria tê-la avisado que
não esperariam o casamento para
tomá-la sob suas asas.
—Estávamos debatendo
sobre a cor dos arranjos florais antes
que nos concentrássemos nos lustres
— disse ela —Decidimos que
queremos criar um ambiente luminoso
e ensolarado, como um jardim,
embora ainda não decidimos que
cores vamos usar nem quantos tons
diferentes.
—Amarelo e branco. —
propôs Stephen —Com muitas plantas
verdes.
—Perfeito. —Cassandra o
olhou com um sorriso.
—Magnífico. —disse Nessie
— Cassandra vai usar um vestido
amarelo, Stephen. Ressaltará sua cor
de cabelo e pele, claro que estaria
muito bonita mesmo se vestisse um
saco. Morro de inveja por esse cabelo.
—Paulson me estará
cesurando durante um mês se não
levar todas à sala de jantar em menos
de cinco minutos — disse—Preparou-
nos um almoço frio.
—Oh! —Exclamou
Cassandra —Não deveria...
—...recusar o almoço —ele
se apressou a dizer —Estou de acordo
com você. Não deveria recusá-lo sob
nenhum pretexto. Cass, asseguro-lhe
que é melhor congraçar-se com o
Paulson e não começar com pé
esquerdo.
—A verdade é que tenho
fome. —disse Kate, que parecia
surpreendida —Claro que não comi
nenhum doce com o café. Paulson é
um encanto e penso dizer isso a ele.
Suas irmãs saíram do salão
sem dizer nada mais, mas ele manteve
Cassandra a seu lado um momento,
até que ficaram a sós na estadia.
—Ia vê-la mais tarde —lhe
disse —Não podia esperar. Passei
toda a manhã pensando em você, em
vez de me concentrar nos assuntos da
Câmara dos Lordes. Está muito bonita
com esse tom de rosa. Com seu
cabelo deveria lhe assentar mal. Que
perspicaz de sua parte saber que lhe
assentaria bem.
—Ai, Stephen! —Exclamou
ela com um suspiro. —Tomara não
tivesse se passado nada ontem à noite.
Suas irmãs e você são incrivelmente...
Decentes!
Olhou-a com um sorriso.
—Se continua teimando que
tenhamos um compromisso
temporário, vai descobrir o
incrivelmente indecente que posso
chegar a ser. Brigarei por você com
unhas e dentes, e com todas as
mutretas que me ocorram.
Cassandra soltou uma
gargalhada e lhe colocou uma mão no
rosto.
Beijou-a e se demorou fazendo
o necessário para lhe roubar um
pouco o fôlego.
—Um anjo com as asas sujas
—disse ela —Grande contradição.
Pegou sua mão, entrelaçou
seus dedos e a conduziu para a sala de
jantar. Benditas fossem suas irmãs por
tê-la levado ali.
Ao seu próprio lar.
CAPÍTULO 20

Foi quase uma sorte que o


compromisso temporário e os
preparativos para o baile a
mantivessem tão ocupada, pensou
Cassandra ao longo da semana
seguinte. Era muito difícil ser
paciente. Seu advogado lhe tinha
advertido que embora esperasse uma
rápida resolução a seu favor, o
assunto poderia chegar a se dilatar um
par de semanas, inclusive mais.
Enquanto isso, não devia se
preocupar.
É claro, não receberam
nenhuma notícia. E é claro, ela se
preocupava.
Entretanto, a vida se tornara
muito ocupada. Uma noite teve que ir
a um jantar na casa de Wesley. Não
tinha se explicado para ele como fez
com as irmãs de Stephen. Seu irmão
não aceitaria. E sem dúvida alguma,
culparia Stephen, coisa que seria
muito injusta. Wesley estava
encantado com o compromisso. Via
como a solução de todos seus
problemas.
—Porque embora recupere
seu dinheiro e suas joias, seguirá
estando sozinha, —lhe disse seu irmão
— e continuará havendo pessoas que
pensarão o pior de você. Merton
poderá protegê-la de tudo isso.
O que tinha contado a seu
irmão era o que William lhes disse
sobre a morte do Nigel. Também lhe
havia dito que tinham convencido seu
enteado para que não contasse a mais
ninguém, ao menos até que sua
reclamação fosse atendida. Wesley
reconheceu a contra gosto que
certamente fora uma boa ideia não
reviver o velho escândalo justo quando
as pessoas começavam a perder o
interesse.
Também foi a outro jantar e a
um evento na casa de sir Graham
Carling, e a um concerto privado cujo
convite recebeu no mesmo dia que se
publicou o anúncio de seu
compromisso. No dia posterior ao
concerto se realizou um almoço ao ar
livre para o qual também recebeu um
convite pessoal.
Saía para passear todos os dias
com Stephen, fosse à carruagem ou a
pé.
No dia do almoço ao ar livre a
levou a dar um passeio a cavalo por
Rotten Row, alugando um cavalo
especialmente para ela. Teve a
sensação de que anos tinham passado
desde a última vez que montara a
cavalo, e sem dúvida tinha sido assim.
Quase tinha esquecido como era
maravilhoso estar na garupa de um
cavalo, sentir sua força e sua energia
debaixo dela, e controlá-lo com a
habilidade de suas mãos.
Entretanto, os preparativos do
baile de compromisso consumiam
tanto tempo que inclusive chegou a
sugerir que talvez devesse renunciar a
dormir de noite até que tivesse tempo
para desfrutar de novo de um cochilo.
Havia listas intermináveis para
fazer e redigir. Havia convites para
enviar, flores para comprar, uma
orquestra para contratar, um menu
para planejar, um programa de baile
para perfilar e... Enfim, parecia que as
tarefas não acabavam nunca. As irmãs
de Stephen poderiam ter se
encarregado de tudo sem sua ajuda,
tinha muita certeza. Certamente,
qualquer delas sozinha teria feito isso.
Embora tivessem sido criados em um
vicariato de um vilarejo perdido,
converteram-se em perfeitas damas da
alta sociedade. Entretanto, todas
insistiram que tinham que trabalhar
juntas e que ela era uma a mais.
—Vai ser divertidíssimo ter
outra irmã. — assegurou Vanessa,
que decidiu fazer ouvidos surdos a sua
intenção de não se casar com Stephen
—Tenho duas cunhadas de meu
primeiro matrimônio e três por parte
de Elliott, mas sempre há lugar para
mais. Não há nada mais maravilhoso
que família, não é?
Começou a pensar com certa
melancolia que não havia. As irmãs do
Stephen não se envenenavam entre si.
Cada uma tinha sua própria vida e
residiam em diferentes partes do país,
salvo na primavera, quando se
achavam em Londres durante as
sessões parlamentares e a temporada
social. Entretanto, tinham uma relação
tão estreita que lhe encolhia o coração
de inveja e desejo.
Durante essa semana
conheceu a viscondessa de Burden e a
condessa de Lanting, cunhadas de
Vanessa e de Katherine
respectivamente, e elas também
declararam estarem ansiosas por lhe
dar as boas-vindas a sua extensa
família.
Sim, a família e a fraternidade
eram bens muito valiosos.
E a vida era muito ocupada.
Nem sequer em casa tinha
tranquilidade.
William era um homem rico.
Além da herança recebida por parte
de seu pai, ao longo dos anos
passados no Canadá e Estados Unidos
tinha conseguido uma considerável
fortuna graças ao comércio de peles.
E estava preparado para assentar a
cabeça. Queria comprar uma
propriedade, converter-se em um
cavalheiro com terras, acompanhado
por Mary e pela família que já tinham
criado.
Entretanto, Mary se negou
firmemente a partir. Segundo ela,
estaria vagando pelos caminhos da
Inglaterra sem um teto para se cobrir
ou estaria na prisão por
vagabundagem, se não fosse pela
amabilidade de lady Paget que, bem
sabia Deus, mal tinha para cobrir suas
necessidades quando partira de
Carmel House. Tinha levado Belinda e
ela (pra não falar de Roger).
Acrescentou que não ia abandonar a
sua senhora de um dia para outro só
porque Billy voltou; ou ao menos não
faria isso até que estivesse casada com
lorde Merton, que era um cavalheiro
dos pés à cabeça, apesar do que tinha
feito quando a conheceu...
Mas tudo aconteceu porque
ele se apaixonara por ela, quem não
se apaixonaria por lady Paget? Bonita
como era? Na opinião de Mary, o
conde tinha expiado seus pecados de
sobra. E se lady Paget decidisse não
se casar com o conde, embora fosse
absurdo não fazer isso, ela não era
ninguém para julgar seus superiores,
muito menos para chamá-los de tolos.
Ficaria com ela até que recebesse seu
dinheiro e se mudasse para outra casa
com bons criados. Deixou bem claro
que queria ver esses criados com seus
próprios olhos, porque sabia que tipo
de gentinha havia em Londres que se
achava capaz de cozinhar e de limpar
para uma dama.
De modo que decidiu ficar
onde estava e disse a Billy que se não
gostasse, partisse em busca das terras
que queria, antes que ela estivesse
pronta para ir com ele.
Cada vez que Mary soltava
essa argumentação ou alguma
variante, acabava com o rosto coberto
com o avental, desfeita em lágrimas,
com William lhe oferecendo um
ombro para chorar enquanto lhe dava
tapinhas nas costas, sorria e lhe
assegurava que não pensava em ir
embora antes que Cassie estivesse
com seu futuro resolvido. Depois lhe
dizia que era boba por pensar que ele
ia partir sem ela.
O caso da Alice era muito
parecido. Retornou de Kent com
menos dez anos. Brilhavam-lhe os
olhos. Assim como as faces. Ela
brilhava toda.
—Cassie, —disse sua antiga
preceptora depois de dez minutos de
entrar na casa —Aliam tem uma
família maravilhosa. São um grupo
muito unido, mas me abriram os
braços e me ofereceram sua amizade.
De fato, muito mais que amizade.
Trataram-me como alguém da família.
Assim como Aliam... Pensou
ela.
—Alegro-me muitíssimo, —
lhe disse —isso quer dizer que vai
continuar vendo o senhor Golding?
—O grande idiota quer que
me case com ele. —respondeu Alice.
—Certamente que é idiota.
—concordou —Aceitou?
—Não. —respondeu Alice,
que deixou a xícara no pires com um
golpezinho, antes de sequer tê-la
levado aos lábios.
—Não?
—Não. —repetiu Alice com
firmeza—Pedi um pouco de tempo
para meditar em minha resposta.
—Suponho que por minha
culpa. —aventurou ela depois de
soltar a xícara e o pires na mesinha
auxiliar que tinha ao lado.
Alice apertou os lábios, mas
não negou suas palavras.
—Alice, se Mary e você me
obrigarem a me casar com o Stephen,
—lhe disse com uma severidade que
não teve que fingir —não lhes
perdoarei pelo resto da vida.
A expressão de sua antiga
preceptora se tornou ainda mais
obstinada.
—É claro, qualquer das duas
negará estar fazendo algo assim. —
continuou —Só estão adiando seu
futuro, inclusive rechaçando-o de
início, se por acaso não me caso com
ele. Não penso permitir semelhante
tirania. Aviso-lhes isso e faço muito a
sério. Se esse for o caso, demito as
duas.
—Vai nos despedir? —
Replicou Alice —Como? Não recebi
salário há quase um ano. Acredito que
isso quer dizer que já não trabalho
para você, Cassie. Só sou sua amiga.
Não pode se despedir de suas amigas.
E se tentar se livrar de Mary, irá se
limitar a lhe dar um bom sermão antes
de ficar a chorar como uma
Madalena, e acabará se sentindo mal.
Depois, teimará em ficar e não
aceitará que lhe pague, e você se
sentirá ainda pior. E o senhor Belmont
ficará com ela porque, e isso o honra,
está apaixonado pela moça... E quer
muito a Belinda. E passará o dia
tropeçando nele enquanto arruma
todas as imperfeições desta casa. Uma
tarefa interminável, que saiba. Ao
final, irá se sentir tão mal, que não
poderá dormir pelos remorsos, que
saiba.
Meneou a cabeça ao escutar a
Alice e pegou de novo a xícara e o
pires.
—Vou me mudar para uma
casinha com um só dormitório, onde
só haverá lugar para mim — lhe disse.
E depois de dizer a última
palavra, bebeu o chá com certa
satisfação.
Por que Alice e Mary se
puseram de repente do lado de
Stephen quando apenas duas semanas
antes o viam como o próprio
demônio? Claro que isso tinha sido
antes de conhecê-lo. Como ia resistir
uma mulher a esse ar angélico uma
vez que o via de perto? Como ia
resistir uma mulher quando utilizava
seu encanto com ela?
Stephen jogava sujo. Porque
cada vez que ia vê-la, coisa que fazia
diariamente, conversava com Mary e
lhe sorria, e depois fazia o mesmo
com a Alice.
Stephen jogava muito sujo.
Porque ela também tinha que ver sua
atitude todos os dias e todos os dias
estava exposta a seu encanto. E além
disso, contava com lembranças de
algo mais que sua atitude e seu
encanto.
No fundo de sua mente se
repetia constantemente a mesma
pergunta: Por que não se casar se
estava louca e irremediavelmente
apaixonada por ele?
Não tinha matado Nigel e
Stephen sabia. Não era tão idiota para
seguir acreditando que todos os
homens tinham a alma podre. Tinha
tido a desgraça de se casar com um
afligido de uma triste enfermidade, tão
destrutiva para si mesmo como para
os que o rodeavam. Não tinha sido
culpa dela que Nigel não se
recuperasse de sua enfermidade.
Como tampouco tinham sido sua
culpa as surras recebidas, embora
tenha se culpado ao longo de seu
matrimônio.
Não havia um motivo concreto
pelo qual não devesse se casar com
Stephen e procurar um pouco de
felicidade após anos de aflição. Salvo
que se sentia utilizada, suja e cansada
do mundo, e Stephen parecia
justamente o contrário. Era incapaz de
se convencer que casando com ele,
não lhe estaria fazendo mal de algum
jeito.
De que não lhe estaria
roubando um pouco de sua luz.
Além disso, ele a queria de
verdade? Se não houvesse aquele beijo
que o obrigou a lhe propor matrimônio
e a declarar com tanto cavalheirismo
que estava apaixonado por ela, faria
alguma dessas duas coisas por vontade
própria?
Talvez passado um tempo,
pensou, recuperaria a autoestima e a
confiança em si mesmo, de modo que
pensaria em voltar a se casar. Mas
não nesse momento. Ainda não. E
menos ainda com Stephen.
Entretanto, como ia se casar
com outro que não fosse Stephen?
Porque havia algo que tinha
muito claro no fundo de seu coração.
Amava-o com toda sua alma.
Stephen não tinha estado tão
ocupado como Cassandra, ou ao
menos não tinha estado mais ocupado
do que o habitual. Oferecera-se para
colaborar nos preparativos do baile,
que se realizaria em sua casa para
festejar seu compromisso, mas suas
irmãs o tinham olhado com a mesma
expressão entre terna e impaciente
com que o olhavam quando retornava
para casa quando pequeno, com as
calças rasgadas ou as botas
manchadas justo antes de irem à rifa
benéfica da igreja.
Parecia que os homens
sobravam nas festas da alta sociedade,
salvo para serem pares de dança e se
assegurar de que nenhuma dama
ficasse sem dançar.
Concentrou quase todas suas
energias em convencer Cassandra a se
casar com ele no verão, sem chegar a
dizer uma só palavra a respeito.
Concentrou-se em conseguir que se
apaixonasse por ele.
Já não era um assunto de
cavalheirismo. Estava em jogo sua
felicidade.
Embora isso não confessasse,
claro. A última coisa que queria era
conseguir que se casasse com ele por
simples compaixão. Já lhe havia dito
em uma ocasião que a queria, de
modo que tinha chegado o momento
de lhe demonstrar a verdade com suas
atitudes.

O salão de baile era uma


maravilha. Parecia um jardim em
pleno verão, incluindo a luz do sol. É
claro, não havia luz do sol, mas as
flores brancas e amarelas, assim como
o intenso verde das frondosas
samambaias conseguiam recrear a
atmosfera estival, e os lustres do teto
brilhavam tanto depois de os terem
polido que as trezentas velas quase
pareciam desnecessárias.
Além de parecer um jardim, o
salão cheirava como tal. Parecia cheio
de ar fresco. É claro, a sensação não
duraria muito. Em questão de uma
hora os convidados começariam a
chegar e nem sequer as janelas
abertas poderiam manter uma
temperatura agradável. Meg havia
predito que o baile seria o maior êxito
de toda a temporada social, e tinha
que lhe dar razão. Não só porque os
bailes no Merton House eram uma
raridade, mas sim porque com esse
baile celebrariam seu compromisso
com a assassina do machado. Sabia
que seguiam se utilizando desse
apelido em alguns clubes de
cavalheiros e em alguns dos salões
mais refinados, mas duvidava muito
que as pessoas acreditassem
literalmente nisso. Tomara pudessem
contar a verdade, mas no fundo estava
convencido de que o melhor era
enterrar o assunto.
Acabava de oferecer um jantar
familiar justo antes do baile, uma ideia
de sua própria colheita. Tinham vindo
suas irmãs, seus cunhados, Con e
Wesley Young.
Nesse momento todos
passeavam pelo salão de baile,
relaxando antes da estadia se encher
de convidados.
Os instrumentos da orquestra
estavam no estrado, mas os músicos
tinham descido às dependências dos
criados para jantar.
—É tão bonito como
imaginava? —perguntou à Cassandra
depois de se aproximar dela pelas
costas e lhe rodear a cintura com um
braço.
—Muito mais. —respondeu
ela com um sorriso.
Cassandra levava um vestido
amarelo, como lhe tinham prometido.
O tecido reluzia com cada movimento.
Era mais claro que o dourado e mais
intenso que o amarelo limão. As
mangas de farol e o decote estavam
adornados por um festão e por um
sem-fim de florzinhas brancas. Assim
como os babados da bainha. No
pescoço levava o pendente com forma
de coração que seu irmão lhe tinha
dado e no braço tinha o bracelete de
pequenos diamantes com forma de
coração que lhe tinha dado como
presente de compromisso e que
parecia fazer par com o pendente.
Ele tinha dado nessa mesma
tarde, e Cassandra não demorou para
lhe assegurar que o devolveria ao
romper o compromisso... E essa tinha
sido a única referência que tinham
feito durante toda a semana sobre esse
possível fato.
—Vai ser uma noite perfeita
—ele disse —Vou ser a inveja de
todos os cavalheiros pressentes.
—Pois eu acredito que todas
as damas solteiras vão levar luto
rigoroso por você —replicou ela —
Todas chorarão sua perda, menos a
dama com quem se case chegado o
dia, Stephen.
— Neste verão? —perguntou
e lhe sorriu, mas voltou a cabeça para
a entrada.
A voz do Paulson se escutava
mais forte e crispada do habitual.
—Ainda não se formou a
recepção, senhor. —estava dizendo o
mordomo —Não esperamos os
convidados até dentro de uma hora.
Permita-me levá-lo à sala e lhe
oferecer um refresco.
Arqueou as sobrancelhas ao
escutar essas palavras. Se o recém-
chegado tinha insistido até o ponto de
chegar ao salão de baile apesar da
vigilância do Paulson, certamente fora
impossível conseguir que partisse da
sala. Pôs-se a andar para a porta
seguido de Cassandra.
—Pouco importa a
recepção, o baile, a hora de chegada e
o salão, imbecil! —Exclamou uma voz
impaciente e brusca, que
possivelmente se dirigia ao Paulson —
Onde está essa mulher? Vou vê-la
mesmo que tenha que jogar essa casa
abaixo. Ah, o salão de baile! Está aí
dentro?
Stephen se deu conta de que
toda sua família girava com certa
surpresa para a porta justo na hora
que aparecia um cavalheiro vestido
com um capote negro, uma cartola e
uma expressão feroz.
—Bruce. —disse Cassandra.
Os olhos do recém-chegado
posaram nela nesse preciso instante,
de modo que Stephen indicou ao
Paulson que se fosse com um gesto da
cabeça.
—Paget? —disse Stephen
enquanto dava um passo a frente com
a mão direita estendida.
Lorde Paget se desentendeu de
sua mão... e dele.
—Você! —Exclamou, pelo
contrário, dirigindo-se a Cassandra
com brusquidão e apontando-para ela
com um dedo acusador —Que
complicações acha que está fazendo?
—Bruce, será melhor que
falemos em privado. —disse
Cassandra em voz baixa e distante,
embora Stephen se percebeu de que
lhe tremia um pouco —Estou certa de
que o conde Merton nos permitirá o
uso da sala de estar ou da biblioteca.
—Não penso falar com você
em privado nem morto! —Replicou
lorde Paget, entrando na estadia —
Todo mundo tem que se inteirar de
quem é e todo mundo vai se inteirar
por mim, começando por estas
pessoas. Que complicações...?
Stephen deu outro passo a
frente. Paget não era um homem
baixo. De fato, era um pouco mais
alto que a média e tampouco podia se
dizer que era magro. Entretanto,
pegou-o pela gola do capote e do
colarinho da camisa e o obrigou a
ficar nas pontas dos pés com uma só
mão. Depois se inclinou para diante
até que mal ficaram um par de dedos
entre o nariz de Paget e o seu.
—Paget, não vai falar em
minha casa a menos que eu lhe dê
permissão —disse sem elevar a voz —
E não vai usar um vocabulário tão
vulgar diante das damas aqui
presentes. —A ligeira pressão que
aplicava com os dedos sobre o pomo
de Adão dele fez que lorde Paget
começasse a ficar arroxeado.
—Que damas? —Replicou
Paget —A única mulher que tenho
diante de mim não é uma dama,
Merton.
Essa foi a gota que encheu o
copo de sua paciência. Stephen
estampou ao Paget contra a parede
que tinha por detrás sem lhe soltar o
pescoço. A mão livre, com o punho
apertado, estava já à altura de seu
ombro. O chapéu do Paget tinha
ficado em um ângulo impossível, de
modo que acabou no chão.
—Acredito que me falha o
ouvido. —disse —Mas no caso de não
ser assim, vai se desculpar.
—Danem-se as desculpas!
—Exclamou Wesley Young, que
fervia de fúria, por detrás dele —
Deixe isso comigo, Merton. Ninguém
fala assim com minha irmã e se saia
bem depois.
—Será melhor que se
desculpe, Paget —aconselhou Elliott
com voz altiva do outro lado —e que
aceite a proposta de lady Paget.
Depois chegarão os convidados e
ninguém quer que o vejam com o
nariz quebrado. Você principalmente.
Será melhor que mantenham esta
discussão em privado. O irmão de
lady Paget e seu noivo estarão
encantados de acompanha-lo, não me
cabe a menor duvida.
—Peço desculpas às damas
presentes pelo vocabulário
empregado. —resmungou Paget.
Stephen se viu obrigado a
baixar o punho e lhe soltar o pescoço
embora o significado e a insolência de
suas palavras fossem evidentes.
Cassandra não estava incluída na
desculpa.
Paget endireitou o capote e a
fulminou com o olhar.
—Em outra época e em
outro lugar, há muito que a teriam
queimado como bruxa, antes que
pudesse fazer algum dano. Teria me
encantado jogar lenha à fogueira.
O punho de Stephen fez com
que a cabeça de Paget ricocheteasse
contra a parede e que lhe brotasse
sangue do nariz.
—Bravo, Stephen! —
exclamou Vanessa.
Paget tirou um lenço de um
bolso do capote e o levou ao nariz,
depois do que lançou um olhar à
mancha que se estendeu pelo tecido.
—Merton, suponho que ela
convenceu você e todos os homens de
Londres, inclusive a alguma dama, de
que não assassinou meu pai a sangue
frio. —disse Paget —E suponho que o
convenceu de que não lhe acontecerá
o mesmo quando se cansar de você e
queira buscar outra vítima. Suponho
que também apoia incondicionalmente
sua escandalosa demanda para
conseguir o dinheiro de meu pai e
todas as joias que ele lhe deu de
presente, antes de atirar nele no
coração. Além de ser o próprio
demônio, também é muito esperta.
—Não, não faça isso,
Stephen —atravessou Margaret —
Não volte a lhe bater. A violência só
proporciona uma satisfação
momentânea, mas não soluciona os
problemas.
Era a lógica feminina.
—Não, Wes —lhe suplicou
Cassandra a seu irmão.
Stephen não afastou o olhar da
cara do Paget.
—E eu suponho que você se
convenceu durante toda uma vida de
autoengano que seu pai não era um
alcoólico convertido em agressor cruel
e violento quando bebia. —replicou
em voz baixa —Suponho que achava
que a violência exercida por ele não se
podia qualificar de tal forma porque a
exercia contra sua esposa. As esposas
necessitam disciplina e os maridos
estão em seu direito legal de fazerem
o que desejarem, por mais que tal
violência tenha tido como
consequência a perda dos filhos que
esperava a mulher.
—Ai, Stephen! —exclamou
Katherine com voz gritante e
estrangulada.
—Meu pai raramente bebia.
—se defendeu Paget, que olhou aos
presentes com fúria e desdém —Bebia
muitíssimo menos que a maioria dos
homens. Não vou consentir que
manche sua memória com as mentiras
que esta mulher lhe contou, Merton. É
certo que quando o fazia podia perder
um pouco o controle, mas só quando
a pessoa em questão merecia castigo.
Esta mulher tinha todos os homens da
vizinhança atrás dela. Ou seja o que...
—E sua mãe também? —
Interrompeu Stephen em voz baixa —
Sua mãe também merecia ser
castigada? Merecia inclusive esse
último castigo? —passou dos limites.
Estava furioso e não parou para medir
suas palavras.
Entretanto, Paget se havia
posto branco. Viu-o limpar os fios de
sangue que lhe caíam pelo nariz.
—O que lhe disse de minha
mãe? —quis saber Paget.
—Mesmo se Cassie tivesse
matado seu pai, —interveio Wesley
Young —continuaria apoiando-a.
Aplaudiria de pé. Esse bode merecia
morrer. Peço desculpas às damas por
meu vocabulário, mas não penso
retirar a palavra. De qualquer
maneira, ela não o matou.
—O que lhe contou sobre
minha mãe? —repetiu Paget, como se
Young não tivesse falado.
—Só os rumores que
circulam —respondeu Stephen com
um suspiro —Todos sabemos o pouco
confiáveis que são os rumores. Mas o
que minha noiva padeceu às mãos de
seu marido, seu pai, durante nove
anos não é um rumor. E você sabe,
Paget. E também sabe que se o tivesse
matado, o teria feito para salvar sua
própria vida ou a de outra pessoa que
estivesse em perigo por causa de sua
violência. Com certeza sabe que não o
matou. Mas lhe veio muito bem fingir.
Essa atitude, junto com sua forma de
assediá-la para lhe fazer acreditar que
estava a sua mercê, te assegurou uma
enorme fortuna.
—Minha mãe morreu ao cair
de um cavalo. —lhe assegurou Paget
—Tentou saltar uma cerca muito alta
para ela.
Stephen assentiu com a
cabeça. O tempo passava voando.
Que hora era?
—Bruce, —disse Cassandra,
e ele se virou para olhá-la —se quer
me dizer algo mais, pode vir me ver
amanhã. Vivo no Portman Street.
—Sei. —replicou o aludido
—Venho dali.
—Não matei seu pai. —
assegurou ela —Não posso provar que
não fiz e você não pode provar que
fiz. Opinou-se que sua morte foi um
trágico acidente, e assim foi. Não
tenho desejo de me intrometer em sua
vida. Não tenho desejo algum de viver
na residência da viúva, nem na
residência da cidade. Só quero o que é
meu para poder viver minha vida sem
ter que vê-lo nem incomodá-lo nunca
mais. O melhor é que aceite a
demanda mais que razoável de meu
advogado. Não pode objetar nada
contra ela.
Paget fervia novamente de
fúria. Apontou para Cassandra com
um dedo e inspirou fundo para falar.
Mas alguém mais apareceu na porta.
Por um terrível instante Stephen
acreditou que era um convidado que
chegava cedo, embora a hora se
aproximasse. Entretanto, tratava-se de
William Belmont.
—Por Deus, Bruce! —
Exclamou o recém-chegado, que
percorreu com o olhar os presentes.
— Faz meia hora que voltei para casa
e Mary me disse que tinha estado ali...
E que lhe havia dito que Cassie estava
aqui. Mary não está acostumada a dar
esse tipo de informação, sobretudo
quando foi você quem a pôs de quatro
na rua. Já vejo que tem o nariz
ensanguentado. Cortesia de Merton?
Ou de Young?
—Não tenho nada para lhe
dizer —respondeu Paget com o cenho
franzido.
—Pois eu sim, tenho algo
para lhe dizer. —disse Belmont, que
voltou a olhar a seu redor — E como
parece que não teve o bom senso de
solicitar falar em privado com Cassie
ao chegar, falarei diante de todos os
presentes.
—Não, não é preciso,
William —replicou Cassandra.
—É sim. —insistiu seu
enteado —Era meu pai, Cassie, além
de seu marido. Também era o pai de
Bruce, e meu irmão deveria saber a
verdade. Assim como todas estas
pessoas que estão dispostas a lhe abrir
os braços como a esposa de Merton.
Cassie não atirou em nosso pai,
Bruce. Nem eu tampouco, embora
deva saber que estava na biblioteca,
agarrando-o pelo pulso em uma
tentativa de lhe tirar a pistola da mão.
A essas alturas tinha batido em Mary
porque nessa mesma manhã eu lhe
tinha contado que tinha casado com
ela e que Belinda era minha filha.
Esse foi o motivo de ele começar a
beber. Cassie acudiu primeiro e depois
a senhorita Haytor, ao escutar os
gritos de Mary. Quando cheguei em
casa, escutei-o vociferar na biblioteca
e fui ver o que acontecia. Estava
apontando para Cassie com uma
pistola. Mas quando me joguei sobre
ele para lhe tirar a arma, apontou para
o próprio coração e apertou o gatilho.
—Mentiroso! —Gritou
Paget —É uma mentira desprezível.
—A senhorita Haytor já
tinha contado esta mesma versão
antes que eu voltasse há alguns dias e
contasse o mesmo. —lhe assegurou
William —Se acredita que me seria
fácil repetir essa historia contra meu
próprio pai para proteger a minha
madrasta, Bruce, não tem nem ideia
do que é a lealdade familiar. Nem o
que são os pesadelos. Matou-se em
um arrebatamento de fúria, quando
estava bêbado. E se soubermos o que
nos convém, rodearemo-nos ao juízo
oficial de que foi uma morte acidental
e trataremos Cassie com o respeito
devido à viúva de nosso pai.
Paget tinha abaixado a cabeça
e fechado os olhos.
—É quase a hora de
começar o baile. —anunciou Stephen
em voz baixa. —Em menos de um
quarto de hora começarão a chegar os
convidados mais pontuais. Paget,
deixe que um de meus cunhados o
leve a um quarto de hóspedes para
que cuide do nariz e arrume a roupa.
Não importa que não esteja vestido
adequadamente para o baile. Fique de
qualquer maneira. E sorri e finge que
te alegra por Cassandra. Diga a todo
aquele disposto a escutar que a morte
acidental de seu pai foi uma tragédia,
mas que se alegra muitíssimo de que
sua madrasta vá refazer sua vida. Diga
que é o que seu pai teria desejado.
—Ficou louco? —perguntou
Paget com ferocidade.
Entretanto, Con se tinha
colocado a um lado do homem e
Monty ao outro, e ambos sorriam.
—Escolheu um bom
momento para chegar à cidade —
disse Monty.
—Tenho certeza de que lady
Paget lhe escreveu para comunicar
seu compromisso e lhe pediu que lhe
desse sua bênção, —acrescentou Con
ao mesmo tempo que o pegava pelo
ombro —não é verdade, Paget?
Inclusive ocorreu-lhe ir além do que
lhe pedia e vir em pessoa. De fato,
cavalgaste sem descanso para chegar
a tempo ao baile, não é verdade?
—E chegou na hora, —
continuou Monty com um sorriso —
não teve tempo para pôr seus
melhores trajes. É uma história
comovedora. As damas se desfarão
em lágrimas se chegarem a se
inteirarem.
—Embora seja melhor que
inventemos uma desculpa para o
nariz. —indicou Con enquanto
tiravam Paget entre os dois —Não
deveria ser difícil. Um homem pode
tropeçar com todo tipo de acidentes
quando está ansioso por felicitar a sua
madrasta por seu compromisso.
Stephen estendeu o braço e
pegou a mão da Cassandra. Estava
muito branca e tinha a mão gelada.
Sorriu-lhe antes de desviar o olhar
para o William Belmont.
—Fica? —perguntou-lhe. Já
o tinha pedido, mas William tinha
recusado porque Mary se negava
firmemente a ir a um ato tão elegante
embora fosse a senhora de William
Belmont e, portanto, cunhada de lorde
Paget.
—Não. —respondeu o
aludido. —Volto para casa para
jantar, algo que deveria ter feito faz
meia hora. Quero que fique claro que
Bruce adorava a nossa mãe, mas não
queria admitir a verdade. Suponho que
tinha medo de fazer isso. Passou
quase toda sua vida de adulto tão
longe de Carmel House quanto foi
capaz. Assim como eu, é claro.
Deveria tê-la ajudado mais do que fiz,
Cassie. Sinto muito não ter feito, mas
de nada serve se lamentar agora,
verdade? —Dito isso, deu meia volta e
se foi.
Stephen olhou para o rosto de
Cassandra.
—Está bem? —perguntou-
lhe.
Viu-a assentir com a cabeça.
Sua mão começava a recuperar o
calor.
—Quanto drama. —disse
ela —Stephen, sinto muito!
Seguramente está amaldiçoando o dia
que me viu no parque pela primeira
vez.
Sorriu muito devagar sem
deixar de olhá-la e lhe deu um beijo
fugaz nos lábios, embora fosse muito
consciente de que sua família os
rodeava enquanto cochichavam sobre
o que acontecera.
— Ou melhor, dou graças a
Deus por esse dia — a corrigiu.
Cassandra se limitou a
suspirar.
—Stephen, já é hora de nos
prepararmos para receber os
convidados. —disse Meg com secura
—Começarão a chegar a qualquer
momento.
—E um homem só celebra
seu compromisso uma só vez. —disse
a todos, olhando-os com um sorriso.
Suas irmãs abraçaram a
Cassandra e a ele.
—Terá filhos com o Stephen
—escutou que sussurrava Vanessa a
Cassandra—. Nunca substituirão os
que perdeu, mas lhe alegrarão o
coração. Prometo que o farão. Já
verá.
CAPÍTULO 21

Ao longo da seguinte hora,


Cassandra se perguntou como foi
capaz de aguentar na recepção
sorrindo, saudando os numerosos
convidados e lhes agradecendo suas
felicitações depois de tudo o que tinha
acontecido. Mas conseguiu.
Também se perguntou como ia
ser capaz de dançar durante toda a
noite sem que seu sorriso fraquejasse,
como ia ser capaz de conversar e rir
entre peça e peça como se essa fosse
realmente a noite mais feliz de sua
vida, como se não tivesse nenhuma
preocupação.
Mas conseguiu.
E quase se divertiu.
Em realidade, podia dizer que
se divertiu se passasse por cima da
pontada de culpa que lhe produzia o
fato de estar enganando a todo
mundo. Salvo a Stephen, claro. E a
suas irmãs. E suspeitava que elas
tinham contado a seus respectivos
maridos.
O ambiente foi festivo, de
acordo com a celebração, e a
decoração do salão de baile era a mais
bonita que tinha visto em sua vida.
Stephen parecia mais contente e mais
bonito que nunca. Justo o aspecto que
devia ter durante o baile de celebração
de seu compromisso, concluiu
Cassandra com tristeza.
Talvez ela também o
parecesse.
Dançaram juntos a primeira
peça.
—Ele ficou — comentou
Stephen enquanto esperavam a música
começar —Surpreende você?
Bruce estava no salão de baile.
Inclusive se tinha vestido como
requeria a ocasião. Aparentemente era
verdade que acabava de chegar a
Londres, porque quando apareceu em
Merton House ainda levava a bagagem
na carruagem. Tudo indicava que
tinha ido ao Portman Street e depois a
Merton House sem se deter antes em
um hotel.
—Bruce sempre gostou de
guardar as aparências. —comentou
ela— Manteve-se afastado de casa
durante anos, acredito que com a
esperança de desligar sua reputação
da do Nigel em caso de que estalasse
algum escândalo, coisa que não
aconteceu até depois de sua morte. É
possível que em parte me mandasse
embora da propriedade com a
esperança de se desligar também dos
rumores que começavam a circular
sobre mim. Talvez esta noite percebeu
o engano que cometeu. Talvez tenha
compreendido que a melhor opção
para seguir conservando a
respeitabilidade passa por se aderir
com firmeza ao veredicto oficial sobre
a morte de seu pai. E a melhor forma
de obtê-lo consiste em me prestar seu
apoio e dar a impressão de que o
propósito de sua viagem a Londres
não foi outro que o de me felicitar
pelo motivo de meu compromisso com
você. Pobre Bruce.
Stephen lhe sorriu e depois
sorriu a seus convidados. Foram
dançar a peça que inaugurava seu
baile de compromisso e, como não
podia ser de outra maneira, quase
todos os olhares estavam cravados
neles.
Ai, quase parecia real!
Pensou Cassandra quando a orquestra
começou a tocar uma contradança
alegre e complicada. Ao cabo de uns
momentos, ambos riam a gargalhadas.
Ao longo da noite dançou com
os três cunhados do Stephen. E
também com Wesley. Dançou com o
senhor Golding, que tinha ido com a
Alice, e também com o senhor
Huxtable.
—Lady Paget, —disse ele—
parece que todo mundo a julgou mau.
E acredito que todos começam a se
dar conta disso, sobretudo ao ver o
sorridente apoio de lorde Paget. Uma
pena o ocorrido com seu nariz, mas
terá que estar muito atento às
portinholas das carruagens nos dias de
vento, porque podem se fechar de
repente.
—Se alguém acredita nisso,
com certeza também espera me ver
brandindo o machado antes que tudo
isto acabe —replicou ela.
O senhor Huxtable arqueou
uma sobrancelha.
—A que se refere? —
perguntou —Ao baile? Esperemos que
não esteja se referindo a outra coisa,
lady Paget. Meu primo é um homem
alegre por natureza, mas não acredito
tê-lo visto jamais tão feliz como hoje.
—Acredita que posso fazê-lo
feliz?
—Pode-se dizer que salta à
vista —respondeu o senhor Huxtable.
—Então, perdoou-me por ter
dado um encontrão com ele no baile
da Margaret de forma intencional?
—Irei perdoar no dia de suas
bodas. Depois da cerimônia. —
precisou.
—Nesse caso, —replicou
entre gargalhadas —estou desejando
com todas minhas forças que chegue
esse dia, senhor Huxtable.
—Poderá me chamar de Con
depois das bodas —acrescentou ele.
Era um homem difícil de
desentranhar. Guardava-lhe alguma
antipatia ou não? Guardava por
Stephen ou não?
Seu par para a dança anterior
ao jantar foi Bruce. Tinha solicitado e
não pôde se negar. Entretanto, era
difícil esquecer a amargura por todas
as coisas horríveis que lhe havia dito
antes de manda-la embora de Carmel
House; pelo terror que a tinha
invadido enquanto viajava com seu
pequeno séquito de desamparados
sem saber como ia mantê-los e como
ia manter-se ela mesma; pelos
espantosos rumores que ele nem
sequer tinha tentado frear e que talvez
inclusive tivesse contribuído a
espalhar; pela maneira como tinha
feito ato de presença essa noite, sem
ter em consideração quem pudesse
escutar seu virtuoso e indignado
sermão. Tinha sido questão de sorte
que tivesse aparecido quando o fez em
vez de uma hora mais tarde.
A única satisfação que sentia
era vê-lo com o nariz torcido e
avermelhado.
Grande imagem a de Stephen
enquanto...
Entretanto, não devia se sentir
satisfeita por nenhum tipo de
violência. Embora fosse o contrário.
Ainda se sentia. Pela primeira vez em
sua vida alguém havia brandido os
punhos por ela em vez de contra ela.
E sabia muito bem o que doía um
murro no nariz.
—Cassandra, —lhe disse
Bruce enquanto a conduzia à pista de
baile —deve saber que nunca me
agradou. Casou-se com meu pai
porque era uma simples caça-fortunas
e uma oportunista. Depois de ter
crescido com esse inútil que teve por
pai não tinha onde cair morta e
pensou que poderia viver rodeada de
luxos durante o resto de sua vida.
Quase conseguiu. As joias que lhe deu
de presente meu pai custam uma
fortuna, tal como estou certo que
sabe. Mas pagou bem por seus ardis.
Levou seu castigo. Duvido muito de
que esse seja o caso com Merton. É
um frouxo e um fraco. Desta vez
escolheu melhor. Entretanto e se
William disser a verdade, como
suponho que faz, não matou meu pai.
Daí que esta noite esteja fazendo todo
o possível para apaziguar os rumores
que parecem tê-la seguido até
Londres. Alegro-me de poder
apaziguá-los. Alegro-me de que se
case com Merton e de poder me
liberar de ti por fim, de esquecê-la e
possivelmente, se tiver muita sorte, de
não ter que voltar a vê-la jamais.
Disse tudo com um afável
sorriso nos lábios.
A música estava a ponto de
começar.
—Bruce, está pensando já
no matrimônio? —perguntou ela, lhe
devolvendo o sorriso.
—Não. —respondeu.
—Alegro-me. —replicou—
Alegro-me pela dama que pudesse se
converter em sua esposa, é claro.
—Amanhã de manhã irei ver
meu advogado — informou—a ele—
Acompanharei-o para ver o seu.
Espero vê-la em seu escritório ao
meio-dia, Cassandra. Terá tudo o que
legalmente te pertence desde que
estiver disposta a assinar um
documento no qual renuncie a receber
nada mais do resto de minhas
propriedades. Para sempre.
Bruce sorriu. Devolveu-lhe o
sorriso.
—Irei com o Wesley. —
disse —E meu advogado se
encarregará de me dizer o que tenho
que consentir e o que não, seja por
escrito ou verbalmente.
Dançaram em silêncio,
sorrindo sem chegar a se olharem nos
olhos. Porque Cassandra sabia que
muitos convidados os observavam com
curiosidade, ávidos por descobrir o
significado da aparição de lorde Paget.
Claro que para eles só podia significar
uma coisa. Porque teria aparecido em
seu baile de compromisso se de
verdade acreditasse que tinha
assassinado seu pai? Teria aparecido
se não lhe desejasse o melhor, se não
estivesse disposto a felicitá-la por esse
segundo matrimônio?
Quase podia escutar os
pensamentos dos convidados, o que
estavam comentando e o que
comentariam nos dias vindouros.
Certamente diriam que todos a
tinham julgado mau. Que os rumores
tinham sido, ao fim e ao cabo,
exagerados. No fim de contas, que
mulher era capaz de brandir um
machado com a força suficiente para
partir o crânio de um homem em dois?
Afirmariam não ter acreditado nunca
em algo assim, é claro. Mas alegariam
que ela não tinha negado nada. E que
todo mundo acreditaria capaz de tudo
uma mulher com sua cor de cabelo.
Embora se reiterariam na ideia de tê-
la julgado mau. Porque lorde Paget
não só tinha assistido a seu baile de
compromisso, mas também tinha
dançado e tinha conversado com ela,
e inclusive lhe tinha sorrido. Era
evidente que mantinham uma relação
cordial.

Stephen chegou à conclusão


de que Paget se comportara como
devia. O baile quase chegava a seu fim
e lhe alegrava poder dançar com a
Cassandra de novo.
Não podia se dizer que lhe
fizesse graça a presença desse
homem, como tampouco lhe fez graça
se ver obrigado a convidá-lo ao baile
em vez de lhe dar uma boa sova, coisa
que teria sido muito mais satisfatória.
Mas analisando tudo em
conjunto, ocorreu o melhor. Embora
muita gente seguiria pensando o pior
da Cassandra, essa era ao fim e ao
cabo a natureza humana, a maioria
compreenderia que se deixara enganar
pelos rumores. E essa maioria se
convenceria de que como jamais se
fazia caso aos rumores, tampouco se
fez a esse em concreto. E assim a
reputação da Cassandra ficaria
restituída.
Além disso, depois de ter
passado a noite sorrindo e inclusive de
ter dançado com a Cassandra, não
podia lhe negar o direito a recuperar
seus pertences pessoais e a quantidade
de dinheiro estipulada tanto no
contrato matrimonial como no
testamento do falecido barão.
Ignorava a quanto ascendia
essa quantidade, mas supunha que ao
menos lhe permitiria viver
comodamente. Seria uma mulher
independente. Poderia viver a vida
como achasse conveniente.
A conclusão não o entristeceu.
Mas bem justamente o contrário.
Porque sabia que Cassandra se
haveria oposto com unhas e dentes a
um matrimônio entre eles se as
circunstâncias tivessem dado a
entender que o necessitava. E nesse
caso ele se teria sentido obrigado a
convencê-la para que se casasse só
porque carecia de qualquer outra
alternativa. De modo que se teria
passado o resto da vida se
perguntando se tinha casado com ele
de forma voluntária. E se perguntando
também se ele se casara movido em
parte por compaixão.
A mudança em suas
circunstâncias lhe permitia lutar por
ela sem remorso algum. E Cassandra
acabaria aceitando-o. Mas o faria
porque de verdade o desejava, porque
era livre para decidir o que queria de
verdade. Por sua parte, lutaria por ela
porque a amava. Não havia outra
razão.
Sorriu-lhe enquanto tomava
entre seus braços. Estava sorrindo
toda a noite, é claro, mas nessa
ocasião só a viu, só sentiu esse amor
tão imenso que era envolvente. Mal
podia acreditar que lhe tivesse
acontecido. E muito antes de ter
começado a buscar e onde menos
teria esperado encontrar, em caso de
ter saído a seu encontro.
—Continua empenhada em
romper o compromisso no final do
verão? —perguntou.
—É claro. —respondeu ela
— A honradez me exige isso. Não vou
falhar nem o reter, Stephen. Tudo isto
é temporário.
Sentiria algo por ele?
Perguntou-se. Era impossível saber.
Estava quase certo de que ao menos
lhe tinha carinho. E no aspecto físico
sabia que o desejava. Mas sentia algo
próximo ao amor, ao amor romântico,
a esse amor profundo que perduraria
durante toda uma vida?
Já era uma mulher livre para
amar.
Ou para não amar.
Entretanto, não era livre para
confessar que o amava, não é
verdade? Tinha-lhe prometido romper
o compromisso quando acabasse a
temporada social.
Não vou falhar nem o reter,
Stephen.
Cortejá-la ia ser árduo.
Estavam apanhados em um
compromisso que ela se sentia
obrigada a romper e que ele se sentia
obrigado a converter em um
matrimônio.
O amor parecia o de menos.
Salvo que era tudo.
Dançaram a valsa em silêncio.
Encerrados em um espaço onde só
existiam eles. Cheirava o perfume das
flores que Cassandra tinha ajudado a
escolher, a fragrância de seu cabelo e
a de seu corpo. Sentia seu calor
corporal e escutava sua respiração. E
via a orgulhosa curva de seu pescoço,
a beleza de seu rosto, o esplendor de
seu cabelo e a reluzente cor de seu
vestido.
E teve a sensação de que a
escuridão que antes a rodeava tinha
desaparecido para ser substituída pela
luz. Teria contribuído ele em algo? Se
contribuiu e a perdia ao final da
temporada, talvez essa ideia lhe
servisse de consolo durante os
solitários anos que teria que
confrontar antes de chegar a esquecê-
la.
Mas não ia perde-la.
Não necessitaria de nenhum
consolo. A vida sempre lhe tinha sido
bastante fácil. Desde pequeno, sempre
soube que Meg tinha guardado parte
da herança que lhes correspondia
depois da morte de sua mãe para que
pudesse estudar em Oxford e contar
com a educação necessária para obter
um emprego digno e lucrativo com o
que se manter durante o resto de sua
vida.
Uma vida que tinha desfrutado
muito desde que herdara o título e
tudo o que este implicava. Uma vida
muito feliz. Nunca tinha tido que se
esforçar muito para conseguir o que
queria.
Mas estava disposto a se
esforçar e lutar nesse momento.
Porque queria Cass.
—Tem uma expressão quase
feroz — disse ela.
—Ferozmente decidida. —
redarguiu.
—Para fazer o que? Para se
manter afastado dos dedos de meus
pés durante o resto da valsa?
—Isso também. —respondeu
— Mas não é o único motivo. Estou
decidido a desfrutar do que resta da
temporada. Estou decidido a obter que
você também desfrute.
—Como não vou desfrutar
de um pedacinho de eternidade em
companhia de um anjo? —replicou
Cassandra.
Entretanto, disse entre
gargalhadas e com um brilho risonho
nos olhos, de modo que não soube se
se tratava de uma resposta frívola e
sem a menor importância, ou se tinha
surgido do fundo de seu coração, o
que explicava o gosto tão sentimental
de suas palavras.
A valsa chegou a seu fim,
assim como o baile em si.
Ao cabo de uns vinte minutos
todos os convidados partiram, salvo
por uns quantos atrasados, quase
todos familiares. A carruagem alugada
de Wesley Young já estava preparada
às portas de Merton House e ele
aguardava sua irmã para ajuda-la a
subir ao veículo. A senhorita Haytor e
o senhor Golding já estavam no
interior.
Stephen se achava na rua,
junto à portinhola da carruagem, com
as mãos da Cassandra entre as suas.
Levou-as primeiro aos lábios uma e
depois a outra.
—Boa noite, Stephen —
disse ela.
—Boa noite, meu amor.
E era. Seu amor.
Como ia convencê-la sem
afligi-la com a verdade? Os cortejos
não tinham nada de simples. E talvez
fosse melhor. Conforme rezava o
ditado popular: "Quem algo quer, algo
lhe custa".
Os refrões costumavam estar
carregados de razão e sensatez.
Cassandra se despediu agitando a mão
pela janela antes de a carruagem se
colocar em marcha.
O mês seguinte transcorreu
com muita lentidão, mas também com
muita rapidez, para a Cassandra.
E o que queria era que
acabasse para poder começar com o
resto de sua vida. Os problemas entre
ela e Bruce se resolveram com
facilidade graças à ajuda de seus
respectivos advogados e também
graças a Wesley. Não só tinha
conseguido recuperar o que lhe
pertencia segundo o acordo
matrimonial, mas, além disso, tinha
conseguido que Bruce lhe passasse a
pensão estipulada no testamento do
Nigel, atrasos incluídos. Sem esquecer
que já chegaram as joias que teve que
deixar em Carmel House.
Era uma mulher relativamente
rica. Podia viver com comodidade
durante o resto de sua vida, mais
ainda, tendo em conta que aspirava a
desfrutar de uma vida tranquila no
campo sem mais gastos que a
manutenção de uma casinha e os
salários de uma criadagem muito
reduzida.
Mary, é claro, iria com
William, que estava em processo de
comprar uma propriedade com uma
pequena mansão em Dorsetshire.
Esperavam poder se mudar no outono.
Enquanto isso, ficariam com ela, e
Mary insistiu em seguir exercendo de
governanta, criada e cozinheira.
Belinda estava emocionada
pela ideia de se mudar a uma casa
grande com sua mamãe e seu papai.
Alice ia se casar com o senhor
Golding em menos de um mês. Depois
de lhe prometer desavergonhadamente
que se casaria com Stephen, Alice
decidiu seguir os ditados do coração
porque confiava em sua palavra.
Estava radiante de felicidade, de modo
que ela não sentiu o menor remorso
de consciência por lhe haver mentido.
Chegado o momento só teria que
convencê-la de que tinha mudado de
opinião e lhe era impossível se casar
com Stephen.
Então já seria muito tarde, já
que Alice estaria casada e não poderia
chantageá-la.
Necessitava que Alice fosse
feliz. Era a única forma de perdoar a
si mesma pelo egoísmo que tinha
demonstrado ao retê-la tanto tempo a
seu lado.
O tempo passava com muita
lentidão embora houvesse muitos
motivos para estar contente, inclusive
para ser feliz. E havia muitas coisas
que planejar com emoção. O
procurador que tinha ajudado William
a encontrar a propriedade que tinha
comprado, estava lhe buscando uma
casinha adequada.
O tempo passava tão devagar
porque cada dia a aproximava mais de
Stephen e intensificava o carinho que
sentia por ele. Via-o todos os dias, às
vezes em mais de uma ocasião. Saíam
a cavalgar de manhã, por exemplo, e
depois iam, com um grupo de amigos,
aos jardins do Vauxhall, de noite.
Gostava de Stephen. Como
gostava! O sentimento era quase pior
que o amor. Porque era consciente de
que podia chegar a ser sua amiga, de
que uma amizade com ele duraria
toda a vida. Tinha muita certeza disso.
Salvo Alice, que tinha ocupado o
posto de preceptora e o de mãe
suplente durante tantos anos, não
tinha tido amigos.
Ou ao menos não tinha
contado com ninguém com quem
pudesse relaxar e conversar (e dar
umas risadas!) sobre qualquer tema
sem ter que se esforçar absolutamente
para que a conversa não decaísse.
Não tinha contado com ninguém com
quem mergulhar em um cômodo
silêncio durante um momento, sem
espremer os miolos em busca de um
tema de conversa.
E o amava, é claro. Desejava-o
fisicamente com um desejo envolvente
pela simples razão de ter estado duas
vezes com ele e de saber que tinha o
êxtase ao alcance da mão. Mas o
amor não se reduzia a esse plano
físico. Os sentimentos que albergava
por ele eram muito profundos e
complicados para poder descrevê-los
em palavras.
Ou, em caso de que houvesse
palavras que os descrevessem, não
tinha certeza de conhecê-las. A
palavra "amor", em sua opinião, era
como a portinhola de entrada a uma
gigantesca mansão que ocupava o
vasto universo.
Às vezes se perguntava por
que não podia se casar com ele e ser
feliz a seu lado o resto de sua vida. Ao
fim e ao cabo, Stephen lhe tinha
confessado que a amava em uma
ocasião. E sempre parecia feliz
quando estavam juntos.
Claro que, como não ia
demonstrar essa atitude sendo um
cavalheiro de palavra?
Como podia obriga-lo a se
casar com ela?
Cada vez que a assaltavam as
dúvidas, obrigava-se a enumerar as
razões pelas quais não podia se casar
com ele. Tinha-o escolhido de forma
premeditada para seduzi-lo. Tinha-o
enganado para que se convertesse em
seu protetor. Aceitou seu dinheiro,
embora a essas alturas já havia
devolvido tudo. Não lhe tinha
impedido que a beijasse no balcão de
lady Compton. Permitiu anunciar seu
compromisso depois que os
descobriram e não acabou com a farsa
ao dia seguinte de tais
acontecimentos. Havia... Enfim,
sempre se detinha ao chegar nesse
ponto. Para que seguir? A lista já era
suficientemente longa.
Era evidente que não podia se
casar com ele.
Às vezes a lista continuava
crescendo por mais que tentasse
deixar de pensar nela. Era três anos
mais velha que ele e foi casada com
antecedência. Seu pai fora um jogador
contumaz e seu falecido marido, um
alcoólico. Uma mulher assim não era
a esposa adequada para o jovem e
carismático conde Merton.
Não obstante e embora o
último mês da temporada social
parecesse transcorrer a passo de
tartaruga, de certo modo também
passou voando. Porque uma vez que
chegasse a seu fim, Stephen voltaria,
sozinho, a Warren Hall para passar o
verão e ela partiria a um lugar ainda
desconhecido: seu novo lar.
E não voltariam a se ver.
Nunca.
Era o mês de julho. As pessoas
tinham começado a abandonar pouco
a pouco Londres para voltar para suas
respectivas propriedades campestres
ou em busca de ambientes mais
frescos da costa ou dos balneários. As
sessões parlamentares estavam a
ponto de concluir. A vida social
começava a diminuir seu frenético
ritmo um ano mais.
E Cassandra tinha abandonado
Londres. Só por uns dias, certo. Tinha
ido a Kent para ir ao casamento da
senhorita Haytor com o senhor
Golding, mas Stephen começava a se
sentir um pouco nervoso. Ou melhor,
seguia se sentindo bastante nervoso,
para ser mais exato. Tinha-a cortejado
de forma insistente durante todo o
mês, mas continuava sem saber se
sentia algo mais que carinho e
amizade por ele.
Porque nenhuma dessas coisas
lhe bastavam.
Começou a se perguntar,
quando já era muito tarde, se não
deveria lhe haver dito todos os dias
que a amava. Claro que se o tivesse
feito e não tivesse funcionado,
possivelmente estaria se perguntando
se não deveria ter se mostrado mais
discreto com seus sentimentos.
Parecia que não havia regras
para o cortejo. E não havia garantias
de que nem sequer os esforços mais
impetuosos produzissem frutos.
Entretanto, não podia
continuar demorando o momento de
trazer o assunto à baila. Já tinha
deixado passar muito tempo, e era
consciente de que o tinha feito por
temor à resposta. Porque uma vez que
a pergunta obtivesse sua resposta,
uma vez que Cassandra lhe desse uma
resposta definitiva, não haveria
capacidade nem sequer para a
esperança.
Caso, claro, sua resposta fosse
um não.
Desde quando era tão
pessimista?
Cassandra retornaria a
Londres na terça-feira posterior às
bodas. Entretanto, Stephen se
encontrou por acaso com William
Belmont na segunda-feira e descobriu
que acabavam de chegar.
De modo que não perdeu
tempo em ir vê-la.
Sua visita a tomou de surpresa.
Mary, acostumada a sua presença
depois de um mês e meio, tornou-se
descuidada em seus trabalhos e não
entrou na sala para perguntar a
Cassandra se queria recebe-lo.
Limitou-se a saudá-lo com um sorriso
enquanto abrilhantava a aldrava de
bronze da porta, e depois o precedeu
ao interior da casa para bater na porta
da sala e abri-la sem mais, a fim de
convidá-lo a entrar.
Cassandra estava em pé, frente
à lareira, com uma mão apoiada na
beirada da lareira e a outra tampando
a boca. Estava chorando.
Olhou-o com os olhos
avermelhados e expressão espantada
antes de voltar a cabeça com rapidez.
—Ah! —Exclamou com
fingida alegria— Tomou-me de
surpresa. Pareço um desastre. Acabo
de chegar faz uma hora e pus roupa
confortável, mas não muito elegante.
—Enquanto falava, se dedicou a
afofar a almofada de uma das
poltronas próximas à lareira, de costas
a ele.
—Cass, —lhe disse antes de
cruzar a estadia a toda pressa para lhe
pôr as mãos nos ombros, gesto que a
sobressaltou —o que se passa?
—A mim? —replicou ela
com voz alegre enquanto se
endireitava e escapava de suas mãos
para trocar de lugar o vaso que
descansava na mesa, situada atrás da
poltrona, embora apenas o movesse
um centímetro —Nada. Tenho algo
no olho.
—Sim. —concordou ele —
Lágrimas. O que se passou? —Seguiu-
a para lhe oferecer um lenço.
Cassandra o aceitou e enxugou
as lágrimas antes de se voltar, mas não
o olhou. Estava sorrindo.
—Nada. —respondeu —
Salvo que Alice se casou e vai ser feliz
ao lado do senhor Golding, e que
Mary e Belinda se irão com o William
e também serão felizes. Deixei-me
levar por um arranque de
autocompaixão. Mas em parte são
lágrimas de alegria. Porque me alegro
muitíssimo por elas.
—Tenho certeza que sim. —
replicou —Você também vai achar a
felicidade, Cass? Vai casar comigo?
Amo-a, já sabe. E sabe que não o digo
só para que aceite melhor a situação.
Amo-a. Não imagino uma vida sem
você. Às vezes acredito que se
converteu no ar que respiro. Você me
quer? Há alguma esperança de que
abandone a ideia de romper nosso
compromisso e de se casar comigo?
Este verão? Em Warren Hall?
Pronto. Tinha falado. Tinha
contado com um mês para ensaiar
uma declaração decente, mas o
momento o pegou despreparado. E
não era o melhor momento para se
declarar. Cassandra estava muito
afetada e suas palavras tinham piorado
a situação. Nem sequer tinha acabado
de falar quando a viu cruzar a estadia
para olhar pela janela, de costas para
ele.
Entretanto, não lhe havia dito
que não. Esperou com ansiedade, mas
ela guardou silêncio.
Não, em realidade não estava
guardando silêncio. Ao cabo de uns
momentos compreendeu que estava
chorando outra vez e que não
conseguia conter os soluços.
—Cass... —aproximou-se de
novo, embora nessa ocasião não a
tocou. Sabia que tinha pronunciado
seu nome com voz triste —Não é só
autocompaixão, não é verdade? Está
tentando achar o modo de me deixar,
sem me fazer mal? Não pode se casar
comigo?
Cassandra demorou um
momento em tranquiliza-lo o
suficiente para poder lhe responder.
—Acredito que não resta
mais remédio que casar. —disse por
fim —Acredito que estou grávida,
Stephen. Não, não acredito. Sei. Estou
há algumas semana tentando me
convencer do contrário, mas já tenho
duas faltas e... Estou grávida.
Pôs-se a chorar com tanta
pena que a agarrou pelos ombros,
obrigou-a a se voltar e a abraçou para
que chorasse sobre seu ombro.
Suas palavras lhe tinham
afrouxado os joelhos. A alma lhe tinha
caído aos pés.
—E isso é tão horrível? —
perguntou quando os soluços se
acalmaram um pouco —É tão mau
que a tenha deixado grávida? É tão
mau que tenha que se casar comigo?
Assim não —suplicou para si
mesmo, derrotado —Assim não.
Assim não, por favor.
Entretanto, deitara-se com ela
em duas ocasiões durante duas noites
consecutivas, por mais que não
devesse ter feito isso, e nesse
momento devia confrontar as
consequências. Ambos deviam
confrontá-las.
Cassandra tinha afastado a
cabeça e o estava olhando com o
cenho franzido e a cara avermelhada
pelo pranto.
—Não queria que soasse
assim. — assegurou —Nada mais
longe de minha intenção. Mas,
Stephen, vou ser capaz de passar por
isso de novo? Depois da última vez
achei que já não poderia ficar grávida.
Foi dois anos antes da morte de Nigel.
Como vou passar outra vez por isso?
Não posso!
As lágrimas voltaram a correr
copiosamente por suas faces e ele por
fim entendeu.
—Cass, não posso lhe
assegurar nada —sussurrou ao mesmo
tempo que tomava seu rosto entre as
mãos para lhe secar as lágrimas com
os polegares. —Tomara pudesse, mas
não posso. Entretanto, posso lhe
prometer que durante os meses que
restam de gravidez, receberão todo o
amor, o cuidado e a melhor atenção
médica. Teremos este bebê porque o
queremos e o desejamos. — E piscou
para evitar as lágrimas.
Cass ia ter um filho.
Dele.
E estava aterrada pela
possibilidade de sofrer outro aborto.
Ele também.
—Posso fazer isso sozinha,
Stephen —lhe assegurou —Não é
necessário que...
Beijou-a. Com brusquidão.
—Sim é necessário —
contradisse —Porque é meu filho e
porque você é minha mulher. E
porque a amo. Não importa que você
me ame ou não, mas continuarei a
cortejando com esperança de que
algum dia me ame. E a farei feliz.
Prometo isso.
—Amei-o quase desde o
primeiro momento —confessou ela —
Mas, Stephen, é tão injusto que...
Voltou a beijá-la com
brusquidão e depois a olhou com um
sorriso.
Ela o devolveu, embora de
forma um tanto trêmula.
—Viu algum médico? —
perguntou Stephen.
—Não.
—Amanhã, então. —disse
—Direi à Meg que a acompanhe.
—Irá se escandalizar quando
se inteirar —protestou.
—Não conhece minhas
irmãs muito bem, não é verdade? —
replicou ele.
Cassandra apoiou a fronte em
seu queixo.
—Cass, —disse, afligido de
novo pelo pânico —a manterei a
salvo, juro isso.
Uma promessa absurda
quando seria ela a passar pela
gravidez e, se tudo saísse como ele
esperava, o parto.
Com razão muitas mulheres
pontuavam aos homens de ser
criaturas necessitadas e inúteis.
—Sei que fará isso. —a
ouviu dizer enquanto o abraçava —Ai,
Stephen! Não queria que as coisas
fossem assim, mas o amo. E me
esforçarei para que não se arrependa
de nada.
Voltou a beijá-la.
A cabeça lhe dava voltas. Já
acontecia. E nada tinha saído
conforme o planejado. Não o tinha
aceito como consequência de seu
insistente cortejo, mas sim porque
fazia já mais de um mês que se
deixara seduzir uma noite por ela e
tinha aceitado ser seu protetor porque
ela estava desamparada e ele zangado.
Um começo pouco
prometedor.
Um começo que tinha dado
lugar a uma nova vida.
Um começo um tanto sórdido
graças ao qual tinham descoberto o
amor e a paixão.
A vida era estranha.
O amor era ainda mais.
Cass ia se converter em sua
esposa. Porque estava grávida. E
porque o amava. Iam se casar.
Pôs-se a rir, agarrou-a pela
cintura e a levantou no ar para fazê-la
rodar até escutar suas gargalhadas.
CAPÍTULO 22

Cassandra chegou a Warren


Hall, a casa senhorial de Stephen em
Hampshire, num ensolarado e fresco
dia de julho. Até o dia de suas bodas
se alojaria em Finchley Park, uma das
propriedades do duque de Moreland,
situada a alguns quilômetros, mas
Stephen queria leva-la em primeiro
lugar a Warren Hall. Queria lhe
mostrar onde seria seu lar.
Cassandra se apaixonou assim
que a carruagem passou entre os altos
pilares de pedra que marcavam a
entrada à propriedade. O caminho
atravessava um espesso arvoredo, e
por um instante a assaltou uma
sensação de paz e tranquilidade, e,
por estranho que parecesse, também
teve a impressão de que tinha chegado
em casa. Possivelmente fosse porque
tinha os dedos entrelaçados com os do
Stephen e a felicidade deste por estar
ali era óbvia.
—Foi meu lar durante oito
anos. —disse ele com a atenção
dividida entre a paisagem que foram
deixando para trás e ela —Não cresci
aqui. Mas experimentei uma imediata
sensação de... Afinidade quando vi a
casa pela primeira vez. Como se
tivesse me esperado toda a vida.
—Sim. —Voltou a cabeça
para olhá-lo com um sorriso —
Acredito que também me esteve
esperando, Stephen, ou espero que
sim. Tenho a impressão de que estive
aguardando todo esse tempo para que
minha vida começasse e, agora, à
avançada idade de vinte e oito anos,
assalta-me a estranha sensação de que
a hora chegou. Não está a ponto de
começar, mas sim está começando.
Falo em presente, não em futuro.
Parou para pensar que grande parte
de nossa vida acontece no futuro e,
portanto, não é uma vida real?
Só com o Stephen podia falar
dessa maneira e estar segura de que a
entendia. O futuro tinha sido a única
faceta de sua vida que parecia
passível. Entretanto, em algumas
ocasiões, inclusive o futuro se viu
truncado e ela sem esperança.
Mergulhada no desespero. Mas isso se
acabara. Por uma vez na vida estava
vivendo o presente e desfrutando cada
passo.
Stephen lhe deu um apertão na
mão.
—Às vezes parece que todas
as coisas boas da vida acontecem
devido à desgraça de outras pessoas.
—comentou ele —Jonathan Huxtable
teve que morrer aos dezesseis anos e
Con teve que nascer ilegítimo para
que eu herdasse o título.
—Jonathan era seu irmão?
—perguntou-lhe.
—Padecia de uma espécie
de... Enfermidade. —disse Stephen —
Comigo confessou uma vez que seu
pai o chamava de imbecil. Mas
também me disse que Jonathan era
puro amor. Não me refiro a que
quisesse muito às pessoas, Cass, mas
sim a que era o amor em si mesmo.
Tomara que tivesse o conhecido.
—O mesmo digo. —lhe
assegurou ela, que lhe devolveu o
apertão —Como morreu?
—Enquanto dormia. —
respondeu Stephen. —Na noite de seu
décimo sexto aniversário. Ao que
parecia já tinha ultrapassado a
esperança de vida que prognosticaram
os médicos. Con diz que Jonathan
teria querido a mim, à pessoa que
ocuparia seu lugar quando ele
morresse. É estranho?
—Acredito que começo a
compreender que o amor sempre é
estranho —replicou ela.
Entretanto, não tiveram tempo
de seguir debatendo essa ideia. A
carruagem tinha deixado atrás o
arvoredo e quando Cassandra olhou
pela janela conseguiu ver a mansão,
um enorme edifício de planta
quadrada e cor cinza, com uma
cúpula, um grande pórtico e uns
degraus de pedra que conduziam à
porta principal. Diante da mansão se
estendia uma espécie de terraço
delimitado por uma balaustrada de
pedra da qual descia uma escadaria
através da qual se chegava a um
espaçoso jardim de floridos canteiros,
rodeado por atalhos e sebes baixas.
—OH! —exclamou —É
linda.
Seria possível que essa casa
fosse se converter em seu lar? A sua
mente acudiu a fugaz lembrança do
esplendor esmagador de Carmel
House, que sempre lhe tinha parecido
algo lúgubre e opressivo, inclusive
durante os seis primeiros meses de seu
matrimônio. Desterrou as lembranças.
Já não tinham a menor importância.
As lembranças eram o passado. E ela
estava vivendo o presente.
—É, verdade? —Replicou
Stephen, que parecia agradado e
nervoso ao mesmo tempo. — E dentro
de duas semanas terá uma nova
condessa.
Stephen tinha comprado uma
licença especial para não ter que
esperar que os proclamas corressem.
Entretanto, tinha proposto que
esperassem duas semanas em vez de
se casarem imediatamente. Talvez
devessem casar sem mais demora
dadas as circunstâncias, mas ele
queria que suas bodas fossem um
momento memorável, queria celebrá-
la rodeado de familiares e amigos. E
também queria, se ela não se
importasse, casar na capela de
Warren Hall em vez de casar em
Londres ou na igreja do povoado.
Não lhe tinha importado a
espera, embora lhe causasse pena a
escassez de familiares e amigos de sua
parte. Claro que os poucos que tinha a
acompanhariam nesse dia.
Wesley viria; de fato, partiu
diretamente para Finchley Park com
os duques e se veriam essa noite.
Alice e o senhor Golding, assim como
Mary, William e Belinda, chegariam a
véspera da cerimônia.
Todos os familiares de Stephen
viriam ao casamento. Também o
fariam a mãe do duque do Moreland,
sua irmã menor acompanhada de seu
marido e sir Graham e lady Carling,
além da irmã de lorde Montford e seu
marido. E o senhor Huxtable, é claro.
E sir Humphrey e lady Dew, que
chegariam de Rundle Park, uma
propriedade perto do Throckbridge,
no Shropshire, acompanhados de suas
filhas e seus genros, e do vigário do
Throckbridge, que tinha sido o tutor
do Stephen até que completou
dezessete anos.
Segundo ele, os Dew tinham
sido como da família para os Huxtable
enquanto viveram
em Throckbridge. Tinham-lhe
permitido montar os cavalos de seus
estábulos. Vanessa tinha estado
casada com o filho menor durante um
ano, até que morreu de tuberculose.
De fato, consideravam os filhos da
Vanessa como seus próprios netos.
—Uma nova condessa. —
repetiu ela —A condessa de Merton.
Será um prazer me desfazer do
personagem de lady Paget, Stephen. É
o único motivo pelo que me caso com
você, é claro. —Olhou-o nos olhos e
pôs-se a rir.
Stephen esboçou um sorriso.
—Adoro esse som —disse
ele.
Suas palavras fizeram que ela
arqueasse uma sobrancelha com um
gesto interrogante.
—Sua risada. —explicou ele
—E o que faz a sua boca, a seus
lábios e a todo seu rosto. Acredito que
desfrutou de muito poucas risadas na
vida, Cass. Se isso for o que consegui,
fazê-la rir, parece-me muito mais
valioso que o título ou o sobrenome.
De repente, Cassandra se
achou piscando invés de rir, enquanto
caíam duas lágrimas pelas faces.
—Talvez tenha sido você
primeiro quem deu a este lugar sua
aura de paz e amor, Stephen. —disse
quando a carruagem chegou ao
terraço e viu a fonte de pedra
colocada na zona que sobressaía por
cima do jardim —E talvez tenha sido
você quem lhe deu sua aura de
felicidade. E talvez tenha sido o
destino, ou um anjo, quem me
manteve à espera todos estes anos, até
estar pronta para vir aqui e curar
minhas feridas. E as de qualquer
pessoa que compartilhe nosso lar.
Transmitirei sua paz, seu amor e sua
felicidade a todo aquele que venha,
Stephen. E também o transmitirei a
nossos filhos. —Em um primeiro
momento desejou poder retirar essas
palavras, já que lhe tinham escapado.
O terror se apoderou dela uma vez
mais, embora nunca a abandonasse de
todo.
Stephen lhe passou um braço
por cima, aproximou-a dele e a beijou.
Estava-se arriscando a confiar na
felicidade. Estava se arriscando a
confiar. Roger, que estava deitado no
outro assento, soprou em sonhos
quando a carruagem diminuiu a
marcha e depois ergueu a cabeça.
Ao cabo de uns instantes a
carruagem se deteve frente ao pórtico
e Stephen a ajudou a apear. A
carruagem onde viajavam Margaret, o
conde Sheringford e seus filhos não
demorou para chegar, seguido da de
Katherine e lorde Montford.
Estava em casa, pensou
Cassandra. E depois estaria rodeada
de família.
E com o Stephen a seu lado.
Seu anjo loiro.
Quase não podia acreditar.
Mas estava aprendendo a
confiar.
Roger desembarcou da
carruagem, levantou a cabeça e
começou a ofegar a modo de convite
para que lhe acariciasse o pescoço.
A capela de Warren Hall era
pequena. Raramente se utilizava, já
que o povoado contava com uma
igreja muito bonita e espaçosa, a
pouco mais de um quilômetro e meio
da mansão.
Entretanto, a capela sempre
fora usada para os batismos, bodas e
funerais familiares, e a tradição era
importante para o Stephen, embora a
tivesse descoberto já com certa idade.
Durante os últimos oito anos tinha
passado muito tempo passeando pelo
cemitério situado junto à capela, lendo
as lápides de seus antepassados ,
sentindo a conexão familiar com eles.
Durante um tempo não se sentiu
muito predisposto por seu bisavô, que
tinha expulsado de casa seu filho, que
fora seu avô, por se casar com uma
mulher de posição social inferior, que
era sua avó. O distanciamento durou
duas gerações, até que o primeiro
ramo familiar desapareceu com a
morte do Jonathan e precisou se
investigar para dar com os
descendentes do filho banido, e assim
o acharam.
Entretanto, as disputas
familiares eram muito tristes. Por que
perpetuar essa quando seu bisavô já
estava morto? Tinham dado instruções
ao jardineiro chefe para que cuidasse
de todas as tumbas com o mesmo
esmero e regularidade.
Sempre tinha sonhado em se
casar nessa capela quando chegasse a
hora, embora tivesse sido consciente
todo tempo de que sua noiva, fosse
quem fosse, poderia ter outras ideias.
Vanessa casou com Elliott
nesse lugar.
E ele se casaria com
Cassandra nesse lugar.
A capela estava decorada com
flores de cor branca e púrpura. Havia
velas no altar. Todos os bancos
estavam ocupados. Os familiares e
amigos presentes sussurravam entre si.
Alguém falou em voz alta, Sam, o
filho de Nessie e Elliott, e o
mandaram se calar imediatamente.
Alguém se pôs a rir, Sally, a filha de
Meg e Sherry, e levou uma
repreensão pela falta de respeito.
Stephen, que estava sentado no
primeiro banco com a vista cravada
nas trêmulas chamas das velas,
inspirou fundo para se tranquilizar.
Estava nervoso, um fato que o tinha
surpreendido por completo essa
manhã, já que as últimas semanas se
tinham feito eternas e estava
convencido de que esse dia nunca
chegaria. Coçava-lhe o nariz, mas
resistiu ao impulso de esfrega-lo ao
recordar que o tinha feito fazia um par
de minutos, e que possivelmente tinha
sido a segunda vez que o fazia.
Seguramente alguém se dera conta,
Sherry ou Monty com toda
probabilidade, e riria dele mais tarde.
Rangeu os dedos, mas deu um
pulo ao escutar, ou isso lhe pareceu,
que o som reverberava por toda a
capela. Elliott, que estava a seu lado, o
olhou de esguelha com ironia, não lhe
cabia a menor duvida.
Era normal que os casados
achassem graça em sua situação.
Nesse momento se escutou a
chegada de uma carruagem às portas
da capela, e como todos os
convidados já estavam lá dentro e a
maioria tinha chegado a pé, só podia
se tratar de Cassandra, que chegava
de Finchley Park. Depois se
escutaram ruídos procedentes do
atalho que conduzia à capela a voz de
alguém que dizia a outra pessoa que
esperasse um momento enquanto lhe
arrumava a cauda do vestido.
E depois a viu na porta e ficou
em pé sem se dar conta de que o
fazia. Claro que os outros também
estavam se levantando de seus
assentos e compreendeu que o vigário
incentivava os convidados a que o
fizessem.
Cassandra usava um vestido de
talhe alto e manga curta
confeccionado com cetim púrpura e
rematado por uma cauda adornada
com uma profusão de babados.
Atreveu-se a não levar chapéu, de
modo que o único adorno que luzia no
cabelo eram as flores púrpuras.
Stephen espremeu os miolos
em busca de uma palavra mais
adequada que "linda", mas não achou
nada.
Por um instante se esqueceu
de respirar. Mas depois lhe ocorreu
que podia sorrir, embora descobrisse
que já o estava fazendo.
Deus! Por que ninguém lhe
tinha avisado sobre o que acontecia no
dia das bodas? Embora, bem pensado,
tanto Sherry como Monty não tinham
falado de outra coisa durante o café
da manhã, do qual ele não tinha
provado bocado. Recordou nesse
momento que Meg se zangou muito
com seu marido e lhe tinha
perguntado se não se dava conta de
que seu pobre irmão já tinha má cor
de cara e se o que pretendia era que
acabasse vomitando.
Deu-se conta de que
Cassandra o olhava enquanto seu
irmão se colocava a seu lado,
certamente depois de ter terminado de
lhe arrumar a cauda. Seus olhos, esses
enormes olhos verdes e amendoados,
pareciam maiores que de costume.
Quando viu que mordia o lábio
inferior, soube que estava tão nervosa
como ele.
Mas depois a viu soltar o lábio
e sorrir.
E ele se sentiu tão feliz que
esteve a ponto de soltar uma
gargalhada.
Isso teria sido muito estranho.
Recordou vagamente vê-la no
Hyde Park, vestida de negro dos pés à
cabeça e com o rosto oculto atrás do
véu. Também recordou vê-la no baile
de Meg na noite seguinte, uma
autêntica sereia com o vestido verde
esmeralda, o cabelo avermelhado e
essa máscara de altivo desdém.
Mas estava certo de tê-la
intuído inclusive então. Com muita
certeza.
Porque a teria reconhecido em
qualquer parte do universo em
qualquer momento da eternidade. Seu
amor.
Salvo que o amor, essa
misteriosa, vasta e maravilhosa força,
não cabia em uma só palavra.
Cassandra se colocou a seu
lado e juntos se viraram para o vigário,
enquanto Young entregava a mão de
sua irmã ao homem que a cuidaria
durante toda essa vida e na outra, se
fosse possível. Depois o vigário
pronunciou o "queridos irmãos" com
uma voz que parecia digna de uma
catedral e antes de se dar conta,
Stephen tinha jurado amá-la, honrá-la
e cuidá-la, depois do que chegou a vez
de Cassandra que jurou amá-lo,
honrá-lo e obedecê-lo. E depois
aceitou o anel que Elliott lhe dava com
mãos firmes enquanto continha a
respiração com a esperança de
coloca-la no dedo, sem que lhe caísse
ao chão. Ao ver que conseguia fazer
isso sem problemas, sorriu a
Cassandra e ao cabo de uns instantes
o vigário os declarava marido e
mulher.
Quando tudo terminou, se deu
conta de que perdera suas próprias
bodas, de que já acontecera, de que
Cass era sua esposa e de que se não a
levasse ao altar para comungar sem
mais demora, ficaria em ridículo
chiando de alegria ou fazendo algo
igualmente espantoso.
Cass era sua esposa.
Estava casado.
E depois, antes que se desse
conta, já tinham comungado, tinham
assinado o registro, tinham saído da
capela, sorrindo à direita e à esquerda,
e todo mundo os esperava no exterior
para abraça-los.
Sobre eles caiu uma chuva de
pétalas de rosa procedente do céu
azul.
E por fim pôde se colocar a rir.
O mundo era um lugar
maravilhoso, e embora fosse certo que
o felizes para sempre não existia, ao
menos se podiam viver momentos de
felicidade pura e indiscutível, que
deviam desfrutar ao máximo para que
sua lembrança fizesse mais
suportáveis os tempos difíceis.
Esse dia era feliz e, a julgar
por sua expressão, Cass também
estava sendo.

O banquete de bodas, ao qual


foram vários vizinhos junto com o
resto dos convidados, durou até bem
avançada tarde. Entretanto e ao final,
todo mundo partiu de Warren Hall.
Inclusive aqueles que se alojavam na
mansão se transladaram ao Finchley
Park para que os noivos tivessem
intimidade.
Cassandra descobriu que seu
dormitório era uma estadia de planta
quadrada e muito espaçosa. Tinha um
enorme roupeiro adjacente e um
acolhedor gabinete, além de tal
aposento, no qual havia uma porta que
possivelmente comunicava com o
roupeiro de Stephen e com seu
dormitório.
Compartilhavam vários
aposentos com vistas ao jardim dos
canteiros e à fonte situada diante da
fachada principal.
Enquanto escovava o cabelo,
embora sua nova criada já o tinha
deixado reluzente, e esperava
Stephen, cravou o olhar na escuridão
da noite e escutou o relaxante barulho
da fonte que lhe chegava através da
janela aberta.
Não demorou muito. Escutou-
o bater na porta do roupeiro e se
voltou para vê-lo entrar.
—Cass, por fim sós. —disse
enquanto se aproximava dela com as
mãos estendidas. — Quero bem a
todos, mas achava que não se iam
nunca.
Ela pôs-se a rir ao escutá-lo.
—Seus criados estariam
rindo todo um mês se todo mundo se
fosse cedo e nos tivéssemos retirado
antes que anoitecesse.
Stephen riu entre dentes.
—Suponho que tem razão.
—replicou —Claro que rirão durante
um mês quando virem que batem as
doze do meio-dia e que não descemos
para tomar o café da manhã.
—Caramba! —exclamou —
Pensa dormir até tarde?
—Quem falou dormir? —
replicou ele.
—Caramba! —repetiu
Cassandra.
Soltou as mãos do Stephen
para lhe desatar o cinto do robe que
tinha posto. Não tinha nada mais.
Abriu-lhe o robe e se juntou contra ele
para sentir esse corpo forte e quente
contra a seda da camisola.
—Stephen, se arrepende? —
perguntou-lhe contra a garganta.
Enterrou os dedos no cabelo
dela e tomou seu rosto com as palmas
das mãos para que o olhasse.
—Você se arrepende? —
perguntou-lhe por sua vez.
—Isso não vale. —disse ela
—Perguntei primeiro.
—Acredito que a vida é uma
constante tira de decisões. —
comentou Stephen —Para onde vou
agora? Como? O que faço? E todas
essas decisões, mais ou menos
importantes, nos levam
inexoravelmente na direção em que
queremos ir, embora não seja de
forma consciente. Quando nos vimos
no Hyde Park e depois no baile do
Meg, tivemos várias opções. Naquele
momento não sabíamos aonde nos
levariam, verdade? Acreditávamos ir
em uma direção, mas em realidade
nos traziam até aqui, através das
numerosas decisões e escolhas que
tomamos depois. Não me arrependo
absolutamente de nada, Cass.
—Está me dizendo que o
destino nos trouxe até aqui? —
respondeu ela.
—Não. —respondeu ele —
O destino só nos mostra alternativas.
Nós tomamos as decisões. Poderia ter
escolhido outra pessoa no baile de
Meg. Poderia ter me negado a dançar
com você.
—Nem pensar, —o corrigiu
—não teve alternativa porque
empreguei minhas melhores arma.
—Certo. —admitiu ele com
um sorriso.
—Poderia tê-lo deixado
partir quando compreendi que só
aceitaria uma relação entre nós se
impusesse suas condições.
—Nem pensar, —repetiu ele
—não teve alternativa porque
empreguei minhas melhores armas.
—E que armas vai usar
agora? —Perguntou-lhe ao mesmo
tempo em que entreabria as pálpebras
e baixava a voz —Vai passar toda a
noite de núpcias falando?
—Enfim, como as palavras
não parecem lhe bastar, será melhor
passar a ação.
Sorriram-se até que os sorrisos
desapareceram e Stephen a beijou.
Conhecia seu corpo. Conhecia
sua maneira de fazer amor. Conhecia
o que era o ter dentro. Conhecia seu
rosto, seu aroma e seu toque.
Entretanto, descobriu que não
sabia nada durante a seguinte meia
hora... E durante toda a noite. Antes
dessa noite tinha conhecido Stephen
embargado pela luxúria e pela culpa.
Havia sentido seu prazer e quase o
tinha experimentado ela mesma.
Não o conhecia apaixonado.
Não até essa noite, não até sua
noite de núpcias.
Nessa noite reconheceu seu
corpo e forma de lhe fazer o amor,
mas essa noite houve algo mais. Nessa
noite ele estava em corpo e alma.
Assim como ela. E em quatro ocasiões
se fundiram em um só ser. Porque
antes tinham sido duas pessoas bem
diferenciadas, mas nessa noite criaram
uma entidade única ao saltar do
precipício do clímax mais intenso e
chegar ao lugar que havia do outro
lado; um ponto que não era nem um
lugar nem um estado que se pudesse
descrever com palavras, nem que se
pudesse recordar com clareza uma
vez passado o momento... Até que
voltasse a acontecer.
—Cass. —murmurou
Stephen com voz sonolenta quando o
sol começava a brilhar do outro lado
da janela e um pássaro começava a
praticar seus gorjeios em algum ramo
próximo, —tomara houvesse milhares
de formas de dizer que a amo. Ou um
milhão.
—Por que? —perguntou —
Vai me dizer todas elas? Ficaria
adormecida muitíssimo antes de
terminar.
Escutou-o rir baixo.
—Além disso, não acredito
que me canse nunca de escutar essas
palavras.
—Amo-a — disse ele, que
lhe esfregou o nariz com o seu, depois
de se apoiar em um cotovelo.
—Sei. — asseverou antes de
se colocasse sobre ela e o voltasse a
demonstrar sem palavras.
—Amo-o — disse ela ao
terminar.
Stephen correspondeu com um
grunhido antes de ficar adormecido.

Outro pássaro, ou talvez o


mesmo, cantava para outra pessoa,
para alguém que já se levantara no
amanhecer. Não tinha passado a noite
em Warren Hall. Tampouco se tinha
ido ao Finchley Park com o resto da
família. Como fazer isso quando tinha
trocado apenas um par de palavras
com Elliott há anos?
Elliott o acusava de lhe roubar
Jonathan, que era presa fácil. Elliott o
acusava de ser um canalha, de ter
engendrado vários bastardos com um
bom número de mulheres da
propriedade.
Elliott, que em outro tempo foi
seu melhor amigo e seu companheiro
de travessuras.
Constantine nunca tinha
negado as acusações.
Nunca faria isso.
Passou a noite na casa de
Phillip Grainger, um velho amigo
residente na zona.
Nesse momento estava no
cemitério situado junto a capela onde
Stephen se casara com lady Paget no
dia anterior. Ainda restavam pétalas
de rosa no atalho e na erva, as
mesmas que as crianças tinham
atirado aos noivos.
Estava ao pé de uma tumba,
olhando-a com expressão
meditabunda. O longo capote e a
cartola, que levava para se proteger do
frio matinal, conferiam-lhe um aspecto
quase sinistro.
—Jon, —disse em voz baixa
—parece que a família verá outra
geração. Ninguém o admitiu ainda,
mas apostaria uma fortuna que lady
Merton já está esperando um filho.
Acredito que é uma boa pessoa depois
de tudo. Sei que Stephen é, embora a
princípio desejava que não fosse.
Agradavam-lhe os dois.
Algumas pétalas de rosa, algo
murchas já, salpicavam a tumba.
Agachou-se para tirá-las e também
tirou a única que tinha caído sobre a
lápide.
—Não, você os amaria, Jon.
Você sempre amava sem medida e
sem verificação. Inclusive me amava.
De um tempo para cá não
costumava ir muito a Warren Hall.
Para falar a verdade, era um pouco
doloroso. Mas às vezes tinha saudades
de Jon. Embora só fosse isso, a única
coisa que restava de seu irmão: o
contorno de uma tumba e uma lápide
que já acusava o passar do tempo.
Jon teria completado vinte e
quatro anos.
—Já vou. —disse —Até que
voltemos a nos ver, Jon. Descansa em
paz.
Virou-se e se afastou sem
olhar atrás.
EPÍLOGO

O mundo se reduziu a uma


sucessão de intervalos de dor e de
bendito alívio durante os quais
recuperava o fôlego, mas que não
bastavam para descansar.
O parto era longo e doloroso,
tal como Margaret estava há horas lhe
repetindo. Porque as crianças
chegavam ao mundo com dor.
—Os homens são uns
ignorantes. — tinha comentado sua
cunhada depois de uma das frequentes
visitas do Stephen, que não opôs muita
resistência quando o obrigaram a sair.
—Nem sequer suportam ser
testemunhas da dor.
Talvez fosse difícil ser
testemunha da dor, pensou Cassandra
imersa nesse mundo de intervalos,
quando um homem se sabia culpado
daquilo e não podia fazer nada para
compartilhar. Não afundou muito
nesse tipo de reflexões solidárias.
Estava muito ocupada repetindo-se
que não voltaria a deixar que Stephen
se aproximasse dela na vida.
— Por favor, por favor, por
favor, por favor... —repetia uma e
outra vez enquanto tomava fôlego ao
sentir a chegada de outra dolorosa
contração que lhe esticou o ventre de
forma insuportável e lhe atravessou as
entranhas.
Por favor, o que? Perguntou-
se.
Que parasse a dor?
Que o bebê nascesse?
Que nascesse vivo?
Que nascesse são?
— Por favor, por favor...
Nos sete meses de matrimônio
que Stephen e ela tinham haviam sido
incrivelmente felizes. Embora o
terror sempre estivesse presente. De
sua parte. E da do Stephen, embora
ele o dissimulasse atrás de uma
máscara de alegria.
—Está agindo bem —
escutou que dizia o médico com voz
tranquila. Mas era um homem, e os
homens eram uns ignorantes.
—Está à beira da
extenuação. — disse a voz da
Margaret.
—Já não falta nada. —
replicou a voz do médico. Depois
tomou uma funda baforada de ar e...
— Por favor, por favor...
O desejo irresistível de
empurrar. E empurrou, empurrou e
empurrou até que uma voz a
incentivou a se deter para conservar as
forças até a seguinte contração. E
depois...
— Por favor, por favor...
Empurrou de forma frenética e
com todas suas forças até ficar sem
fôlego. Empurrar e a dor, se
converteram em todo seu mundo.
De repente, a insuportável
pressão abandonou seu corpo como se
de um jorro de água se tratasse, lhe
dando um instante para respirar e...
O choro de um bebê.
OH!
E ela exclamou:
—OH!
—Tem um filho, milady. —
lhe comunicou o médico —E parece
ter os dez dedos dos pés, os dez dedos
das mãos, um nariz, dois olhos e uma
boca que durante um bom tempo se
encarregará de avisá-la cada vez que
tenha fome.
Margaret saiu a toda pressa do
dormitório para dizer a Stephen, a
quem de qualquer forma não deixou
entrar porque tinha que banhar ao
bebê, ao qual envolveu em uma grossa
mantilha antes de coloca-lo nos braços
de Cassandra. Depois passou a limpá-
la e a trocar a roupa da cama, e uma
vez que acabou, demorou um instante
para olhá-los, à mãe e a seu filho, com
enorme satisfação.
Margaret e o médico saíram
do dormitório enquanto ela
contemplava maravilhada a carinha
avermelhada, feia e ao mesmo tempo
linda, de seu filho.
Seu filho.
Onde estava Stephen? Pensou.
E então o viu, pálido e com
umas enormes olheiras como se
tivesse sido ele quem tinha sofrido o
longuíssimo parto. E de certo modo
assim tinha sido, pobrezinho. Viu-o se
aproximar da cama como se temesse
fazer isso, com os olhos cravados
nela. E como se temesse olhar a esse
vulto que tinha nos braços.
—Cass, —o ouviu dizer —
está bem?
—Estou tão cansada que
poderia dormir um mês inteiro. —
respondeu com um sorriso —
Apresento nosso filho.
Maravilhado, Stephen se
inclinou com os olhos totalmente
abertos para olhá-lo.
—Imagina um menino mais
lindo? —perguntou ao cabo de uns
momentos de assombrada
contemplação.
Via seu filho através dos olhos
de um pai, tal como acontecia a ela.
Tanto Margaret como o médico, lhe
tinham assegurado que a ligeira
deformação que apresentava o bebê
na cabeça desapareceria em questão
de horas, ou quando muito ao cabo de
alguns dias.
—Não. —respondeu —Não
imagino.
—Está chorando. —disse
Stephen —Não deveria fazer algo,
Cass?
—Acredito que quer que o
pegue seu papai. —respondeu ela.
Ou talvez que sua mãe lhe
desse o peito.
—Não sei se... —Dava a
sensação de estar apavorado.
Entretanto, levantou o vulto
envolvido na mantilha, que não
parecia pesar nada, e Stephen pegou o
bebê, que deixou de chorar
imediatamente.
—Enfim, —comentou ela —
note quão agradecido está por tudo o
que passou sua mãe...
Stephen se pôs a rir entre
dentes e ela se limitou, relaxada e
exausta sobre os almofadões, a
contemplá-lo. A contemplar os dois.
Seus dois homens.
Seus dois amores.
Talvez depois de um longo e
merecido descanso, um larguíssimo
descanso, permitisse que ele voltasse a
tocá-la.
Talvez o permitisse.
Bom, é claro que o permitiria.
Stephen a estava olhando com
tanto amor que virtualmente brilhava
em seus olhos.
—Obrigado. —o ouviu dizer
—Obrigado, meu amor.
Tinha um filho, pensou
Cassandra sem deixar de olhá-lo,
muito cansada para fazer outra coisa
que sorrir apenas sem forças.
Tinha um filho vivo. Uma vida
cheia de amor, de esperança.
Tinha Stephen. Que mais
podia pedir?
Tinha seu anjo da guarda.

FIM

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