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GRH

Romances Históricos
Mary Balogh
Trilogia Amante 1

Mais que uma Amante


Tradução/Pesquisa:GRH
Revisão Inicial: Rosangela Mello
Revisão Final: Carol
Formatação:Ana Paula G.
Sobre a Autora

Mary Balogh nasceu e cresceu em Gales, Grã-Bretanha. Depois de graduar-se


na universidade, mudou-se para o Canadá, onde se dedicou ao ensino e a sua
família. Em 1983 pôde encontrar finalmente tempo para sua verdadeira vocação:
começou a escrever pelas tardes, depois do trabalho. Com seu primeiro livro
publicado ganhou o prêmio Rita de novela romântica. Após, vendeu mais de quatro
milhões de exemplares de seus livros, ambientados sempre no período da
Regência que descobriu nas novelas da escritora inglesa Georgette Heyer. Mais
que uma amante é a primeira entrega de sua nova trilogia Amante, que publicará
Plaza & Janés.

Comentário Revisão Inicial Rosangela Mello


O livro apresenta um casal peculiar, as discussões verbais estão presentes em
todo o livro, duas personalidades fortes soltando faíscas, o que acrescenta muito
conteúdo a história.
O mocinho é um aristocrata arrogante e cínico temido por todos. Sempre
envolvido em escândalos e com uma reputação horrível. Nossa mocinha é esperta,
determinada e abusada.(rs) e a sua chegada mudará tudo pois ela não tolerará seus
insultos , o que o intimidará e revelará o homem escondido em seu interior.
A história do livro é boa e divertida, há algumas cenas bem morninhas, mas o
foco está no casal.
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Me apaixonei por uma personagem bem extravagante do livro, que nunca para
de falar e tem um péssimo gosto, que estará no 3° livro da série.(esse eu vou ler).
Achei que o final deixou a desejar, mas vale a pena ler!

Comentário Revisão Final Carol


O livro é uma graça, a mocinha é decidida, firme, não se rebaixa perante o
mocinho, é um livro divertido, sem cenas hot, mas uma história muito interessante.
Boa leitura

Resumo
Ele entrou no campo desesperado para deter o duelo. No meio da confusão,
Jocelyn Dudley, Duque de Tresham, foi baleado e para sua surpresa, contratam
uma mulher para cuidar dele.
Jane Ingleby é inteligente demais para seu próprio bem. Seus olhos azuis tem um
brilho no qual um homem poderia se afogar... se não fosse por sua impertinência.
Ela questiona cada movimento do Duque, explora os seus segredos e toca sua
alma. Quando ele se oferece para estabelecê-la em sua casa em Londres, o amor é
a última coisa que passa por sua cabeça...

Jane tenta fingir que tudo é uma questão de negócios, um que foi forçada a aceitar
a fim de esconder um segredo perigoso. Certamente não havia nada mais
diabólico do que ser a amante de um homem assim. Apesar de sua fachada
diabólica, Jane vê sua nobreza interior e também sabe o que era mais perigoso: a
paixão que a levaria a jogar tudo para o alto e passar um mês com o cavalheiro
que pensa que o amor é para os tolos.

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Capítulo 1

Os dois cavalheiros que se encontravam em mangas de camisa apesar


do frio dessa manhã primaveril estavam a ponto de explodir os miolos.
Ou de tentá-lo, ao menos. Estavam isolados em uma clareira no meio de
um dos prados do Hyde Park, em Londres, de costas um para o outro,
alheios à existência de qualquer outra pessoa até que chegasse o
momento de apontar ao contrário e disparar para matar.
No entanto, não estavam sozinhos, já que se tratava de um duelo de
honra e se seguiu o protocolo indicado. Lançou-se uma luva, embora não
literalmente, e o desafiante e o desafiado tinham acordado o encontro
dessa manhã através de seus padrinhos. Ditos cavalheiros estavam
presentes nesse momento, assim como um cirurgião e um pequeno
grupo de espectadores interessados, todos homens, que tinham
abandonado cedo suas camas (ou não se deitaram ainda depois dos
excessos da noite anterior) pela emoção de ver como dois de seus pares
tentavam matar-se.
Um dos duelistas, o desafiante, o mais baixinho e atarracado dos dois,
golpeava o chão com os pés, flexionava os dedos e umedecia os lábios
secos com a língua mais seca ainda. Estava quase tão branco como sua
camisa.
—Sim, você pode perguntar a ele —disse a seu padrinho entre
dentes, enquanto tentava, em vão, que não batessem — Embora não o
fará claro, mas tem que ser honrado neste tipo de coisas.
Seu padrinho pôs-se a andar com passo decidido para seu homônimo,
que por sua vez se aproximou do outro duelista. Um cavalheiro alto e
elegante que ganhava superioridade sem a jaqueta. A camisa branca não
ocultava os fortes músculos de seus braços, de seus ombros e de seu
torso e as calças e botas de montar acentuavam suas longas pernas.
Dobrava com despreocupação o encaixe dos punhos da camisa sobre o
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dorso de suas elegantes e refinadas mãos, enquanto conversava de
temas banais com seus amigos.
—Oliver está tremendo como uma folha em uma brisa forte —
comentou o Barão Pottier colocando o monóculo— Seria incapaz de
acertar uma catedral a trinta passos de distância, Tresham.
—E seus dentes fazem mais ruído que os cascos de um cavalo —
acrescentou o Visconde de Kimble.
—Tem intenção de matá-lo, Tresham? —perguntou o Senhor
Maddox, um cavalheiro muito jovem, o que provocou que o duelista o
olhasse com frieza e arrogância.
—Esse é o propósito dos duelos, certo? —respondeu o aludido.
—Tomamos o café da manhã no White’s depois, Tresh? —sugeriu o
Visconde de Kimble— E logo vamos ao Tattersall’s? Estou de olho em
um par de tordos para meu tílburi.
—Assim que resolver este assunto —afirmou o duelista. No entanto,
deixou de endireitar os punhos e de conversar quando viu que seu
padrinho se aproximava— Bem, Conan? —perguntou com um toque de
impaciência— Há alguma razão para este atraso? Devo confessar que
estou ansioso para tomar o café da manhã.
Sir Conan Brougham estava acostumado aos nervos de aço desse
homem. Tinha atuado como seu padrinho em duelos anteriores, depois
dos quais seu amigo tinha ingerido um café da manhã saudável e
equilibrado, como se pela manhã não tivesse feito nada mais perigoso
que dar uma corrida pelo parque.
—Lorde Oliver está preparado para aceitar uma desculpa como é
devido —disse Conan.
Seus conhecidos riram entre dentes.
Uns olhos de um castanho tão escuro que a maioria das pessoas os
tinha por negros olharam Sir Conan sem piscar. O rosto acentuado,
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arrogante e oposto a que pertenciam era uma máscara inexpressiva,
com exceção de uma sobrancelha ligeiramente arqueada.
—Fui desafiado a duelo porque sua mulher lhe pôs chifres comigo,
mas está disposto a conformar-se com uma simples desculpa? —
perguntou— Tenho que me desculpar Conan? Precisa me consultar?
—Pode valer a pena considerar — aconselhou seu amigo— Não
estaria cumprindo com meu dever se não lhe dissesse isso, Tresham.
Oliver tem muito boa pontaria.
—Pois que demonstre e me mate —replicou o duelista sem mais— E
que seja em questão de minutos, não de horas, meu amigo. Os
espectadores começam a manifestar sinais de aborrecimento.
Sir Conan moveu a cabeça resignado e se afastou para comunicar ao
Visconde de Russell, o padrinho de Lorde Oliver, que Sua graça, o Duque
de Tresham, não via a necessidade de desculpar-se com Lorde Oliver.
De modo que só ficava continuar com o previsto. O Visconde de
Russell estava especialmente ansioso para terminar com esse encontro.
O Hyde Park, embora estivessem em um lugar tão isolado como esse, era
um lugar muito público para celebrar um duelo, dado que estavam
proibidos. O parque de Wimbledon Common, o lugar mais habitual para
resolver questões de honra, teria sido muito mais seguro. No entanto,
seu amigo tinha insistido no Hyde Park.
Carregaram as pistolas e os padrinhos as inspecionaram com
supremo cuidado. Enquanto se fazia um silêncio entre os espectadores,
os protagonistas escolheram uma arma sem olhar ao competidor.
Tomaram suas posições costas contra costas e ao sinal começaram a dar
os passos pertinentes antes de voltar-se. Apontaram com cuidado,
ambos de perfil para oferecer a menor opção possível a seu adversário.
E esperaram que o Visconde de Russell deixasse cair o lenço branco que
sustentava no alto, o sinal para disparar.
Fez-se um silêncio entristecedor.

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E nesse momento aconteceram duas coisas de uma vez.
O lenço caiu ao chão.
E alguém gritou:
—Pare! —A voz gritou.—Pare!
Era uma voz feminina e vinha de um arvoredo próximo. Os
espectadores começaram a cochichar, indignados, já que eles tinham
guardado silêncio e se mantiveram imóveis para não distrair os
duelistas.
O Duque de Tresham, surpreso e furioso, abaixou o braço direito e se
voltou para fulminar com o olhar à pessoa que se atreveu a interromper
semelhante encontro e nesse preciso momento.
Lorde Oliver, que também se distraiu um instante, recuperou-se em
seguida, voltou a apontar e disparou.
A mulher gritou.
Sua graça não caiu ao chão. O certo era que ao princípio nem sequer
parecia que ele tinha mesmo sido atingido. Mas uma brilhante mancha
vermelha apareceu em sua panturrilha, justo por cima do cano de suas
reluzentes botas de couro, como se de repente uma mão invisível a
tivesse tingido com um pincel.
—Que vergonha!—exclamou o Barão Pottier de uma lateral— Que
vergonha, Oliver!
Logo se somaram outras vozes, censurando o homem que se
aproveitou indevidamente da distração de seu oponente.
Sir Conan pôs-se a andar para o duque enquanto a mancha vermelha
aumentava de tamanho e o cirurgião se inclinou sobre sua maleta. No
entanto, Sua graça levantou a mão esquerda para fazer a eles um gesto
firme, indicando que ficassem onde estavam antes de levantar o braço
direito e apontar.Não lhe tremeu o pulso. Seu rosto não expressou

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emoção alguma exceto uma concentração intensa em seu objetivo, a
quem não ficava mais remédio que esperar a chegada da morte.
Lorde Oliver tinha que admitir, ficou muito quieto, embora a mão que
sustentava a pistola a um lado tremia visivelmente.
Os espectadores ficaram em silêncio novamente. Assim como a
desconhecida. No ar havia uma tensão insustentável.
E nesse momento o Duque de Tresham, como tinha feito em todos os
duelos anteriores nos que tinha participado, dobrou o braço e disparou
ao ar.
A mancha vermelha de suas calças se estendia com rapidez.

Ele teve de recorrer a toda sua força de vontade para manter-se


quieto enquanto sentia que lhe cravavam mil agulhas na perna.No
entanto, e embora estivesse furioso pelo fato de que Lorde Oliver tivesse
disparado quando qualquer cavalheiro de bem teria esperado a que se
reatasse o duelo, Jocelyn Dudley, o Duque de Tresham, jamais tinha tido
a intenção de matar, nem sequer ferir seu oponente. Só queria que
suasse um pouco, que tivesse tempo de ver a vida passar diante de seus
olhos e de perguntar-se se por fim se ele, um homem afamado por sua
pontaria, mas também por esbanjar suas balas ao ar durante os duelos,
mudaria sua forma de atuar.
Quando terminou e jogou a pistola à grama molhada, sentia como se
as agulhas lhe cravassem por todo o corpo. A dor era agonizante, e só se
manteve em pé porque preferia ir ao inferno antes de dar a Oliver a
satisfação de poder gabar-se de que o tinha derrubado.
Também seguia furioso. Um eufemismo… Estava consumido por uma
raiva absoluta que poderia ter dirigido a Oliver se não houvesse um alvo
mais óbvio.
Voltou à cabeça e olhou com os olhos entrecerrados para o arvoredo
pela que pouco antes tinha aparecido à mulher gritando como uma
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louca. Sem dúvida se tratava de uma criada, que fazia algum recado
muito cedo e que tinha esquecido uma das regras principais da servidão:
meter-se em seus próprios assuntos e deixar os cavalheiros com os seus.
Uma moça que merecia uma lição que não esqueceria jamais.
Seguia ali, observando como se paralisada à cena, com as duas mãos
pegas à boca, embora tivesse parado de gritar. Pena que era uma mulher.
Teria-lhe encantado lhe dar umas quantas chicotadas antes que o
levassem para atender sua perna. Maldição, doía-lhe horrores!
Tinha passado pouco tempo desde que disparou e jogou a pistola ao
chão. Tanto Brougham como o cirurgião corriam para ele. Os
espectadores estavam inquietos de tanta excitação. Escutou uma voz
inconfundível.
—Por Deus, muito bem feito, Tresh! —exclamou o Visconde de
Kimble— Teria poluído essa bala se dispara ao bastardo.
Jocelyn levantou a mão esquerda sem afastar o olhar da mulher que
estava no arvoredo. Com a mão direita lhe fez um gesto imperioso para
que se aproximasse dele.
Se fosse sensata, a moça teria saído correndo em direção contrária.
Ele não estava em condições para persegui-la e duvidava muito de que
algum dos presentes queria correr até os limites da terra em seu nome
para dar caça a uma insignificante criada vestida de cinza.
Não era sensata. Deu uns passos vacilantes antes de aproximar-se a
toda pressa e deter-se diante dele.
—Está louco! —exclamou ela com fúria, esquecendo-se de sua
posição social e das consequências de dirigir-se a um par do reino dessa
maneira—Que grande tolice! Tão pouco respeita sua vida que não lhe
importa bater-se em um duelo estúpido? E agora está ferido! Deixe-me
lhe dizer que está bem feito.

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Jocelyn estreitou os olhos ainda mais enquanto ignorava a palpitante
dor de sua perna e da cada vez mais iminente impossibilidade de seguir
em pé.
—Silêncio, moça. — ordenou com frieza—Se eu tivesse morrido esta
manhã, é muito possível que lhe tivessem enforcado por assassinato.
Tão pouco respeita sua vida para se colocar nos assuntos de outros?
A moça estava ruborizada pela raiva. Mas ficou pálida ao escutar as
palavras do duque enquanto o olhava com os olhos como pratos e os
lábios apertados.
—Tresham—disse Sir Conan de um lugar próximo— será melhor que
atendamos essa perna, meu amigo. Está perdendo sangue. Deixe-me te
acompanhar até onde está Kimble, à manta que o cirurgião acaba de
estender.
—Me acompanhar? —Jocelyn soltou uma gargalhada desdenhosa.
Não tinha afastado os olhos da criada—Você, moça. Se aproxime para
que me apoie em seu ombro.
—Tresham…—Sir Conan parecia exasperado.
—Estou no caminho para o trabalho—disse a moça—Chegarei tarde
se não me apressar.
No entanto, Jocelyn já se tinha levado ao ombro da moça. Deixou cair
quase todo seu peso nela, mais do que gostaria. Quando por fim ficou em
movimento e se apoiou na perna ferida, descobriu que, em comparação
com o que sentia nesse momento, a dor anterior era ridícula.
—Você é a causa disto, moça —a acusou com voz séria ao mesmo
tempo em que dava um passo vacilante para o cirurgião, que de repente
parecia estar muito longe—Você vai, por Deus,me emprestar sua ajuda
e morder essa língua tão impertinente.
Enquanto Lorde Oliver colocava o colete e o casaco, o Visconde de
Russell guardava sua pistola e passou junto a Jocelyn para recolher a
outra.
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—Seria melhor que engolisse o orgulho e permitisse que seus amigos
o levassem nos braços —disse a criada.
O ombro da moça não cedeu sob seu peso. Era bastante alta e magra,
mas não era fraca. Sem dúvida estava acostumada ao duro trabalho
manual. Certamente também estava habituada a receber bofetadas e
golpes por sua impertinência. Na vida tinha ouvido algo parecido da
boca de uma criada.
Estava a ponto de desmaiar quando por fim alcançou a manta que o
cirurgião tinha estendido na grama, sob um carvalho.
—Deite-se, sua graça — disse o médico— assim poderei ver que
danos lhe causaram. Eu não gosto do lugar da ferida, por certo. Nem todo
este sangue. Estou quase seguro de que terá que amputar a perna.
Falava como um barbeiro que acabava de descobrir uma mecha de
cabelo que desafinava com o resto. Era um médico do exército
aposentado, que tinha levado Lorde Oliver. Certamente as sangrias e as
amputações eram sua solução a todos os problemas físicos.
Jocelyn soltou um impropério espantoso.
—É impossível que esteja tão seguro com uma simples olhada —
comentou a criada dirigindo-se ao cirurgião com temeridade— nem que
possa fazer um diagnóstico tão severo.
—Conan —disse Jocelyn, que apertou os dentes em uma tentativa
inútil por controlar a dor—Vá buscar meu cavalo. Estava preso a um
ramo não muito longe daqui.
Escutou-se um coro de protestos, procedente de seus amigos, que se
reuniram ao seu redor.
—Seu cavalo? Está tão louco como de costume.
—Trouxe minha carruagem, Tresham. Pode ir nela. Ordenarei que a
aproximem.
—Fique onde está, Brougham. Está louco.
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—Isso mesmo Tresham, mostre do que é capaz, meu amigo.
—Me traga o maldito cavalo! —resmungou Jocelyn, que se agarrava
com força ao ombro da moça.
— Vou chegar muito tarde —protestou ela—Com certeza perderei o
emprego.
—E terá merecido —replicou Jocelyn, lhe devolvendo as palavras
sem piedade, enquanto seu amigo se afastava para aproximar o cavalo e
o cirurgião começava a protestar— Silêncio, senhor! —ordenou
Jocelyn—Mandarei chamar meu próprio médico para que vá me ver em
Dudley House. Ele terá mais respeito a seu futuro antes de sugerir me
amputar a perna. Ajude-me a montar, moça.
No entanto, Lorde Oliver apareceu diante dele antes que pudesse dar
a volta.
—Saiba que não estou satisfeito, Tresham —lhe disse com voz
ofegante e tremente, como se fosse ele quem estivesse ferido— Sem
dúvida alguma, usará a distração desta moça para manchar meu bom
nome. E todo mundo rirá de mim quando correr a voz de que disparou
ao ar com grande desdém.
—Está me dizendo que preferiria estar morto? —A morte lhe parecia
um estado muito desejável nesse instante. Se não se concentrasse, ia
perder o conhecimento de um momento a outro.
—No futuro se manterá afastado de minha esposa se souber o que é
bom para você —o ameaçou Lorde Oliver— Na próxima vez não lhe
concederei a dignidade de um duelo.Pode ser que dispare em você como
o cão que é.
Lorde Oliver se afastou sem esperar resposta enquanto se escutava
outro turno de «Que vergonha!» procedente dos espectadores, alguns
dos quais ficaram decepcionados ao verem-se privados da possibilidade
de assistir uma amputação no meio do Hyde Park.

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—Meu cavalo, moça. —Jocelyn lhe apertou o ombro ainda mais e se
aproximou uns passos do cavalo, cuja cabeça Conan estava segurando.
Montar foi uma tarefa muito difícil, e teria sido quase impossível
senão estivesse em jogo seu orgulho… e se não contasse com a ajuda de
seu silencioso, embora aborrecido, amigo. Jocelyn não conseguia
acreditar que uma ferida tão pequena causasse tanta dor. E o pior estava
por chegar. A bala estava alojada em sua panturrilha. E apesar do que
havia dito ao cirurgião, não estava convencido de que pudessem lhe
salvar a perna. Apertou os dentes e aceitou as rédeas das mãos de Conan.
—Acompanho-te, Tresham —disse seu amigo com voz seca— Que
idiota!
—Eu irei do outro lado —se ofereceu o Visconde de Kimble
alegremente—Assim um dos dois poderá te segurara qualquer lado que
caia. A propósito, bem feito, Tresh. Colocou aquele médico charlatão no
seu lugar.
A criada ficou olhando Jocelyn.
—Já levo meia hora de atraso pelo menos —disse— Tudo por sua
culpa, por sua disputa absurda e por seu duelo ainda mais absurdo.
Jocelyn rebuscou em um dos bolsos de sua jaqueta, mas nesse
momento recordou que só levava a camisa, as calças e as botas de
montar.
—Conan—disse com secura— Me faça o favor de tirar um soberano
do bolso de minha jaqueta e de dar a esta moça, quer? Isso compensará
de sobra à perda de meia hora de salário.
No entanto, a moça já tinha dado meia volta e se afastava pelo prado,
com as costas rígidas pela indignação.
—Menos mal que as empregadas não podem desafiar a duelo os
duques, Tresham —comentou o Barão Pottier, que olhava à moça
através do monóculo—Porque se não, amanhã te veria aqui de novo. —
pôs-se a rir—e eu não apostaria contra ela.
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Jocelyn deixou de pensar nela. Todos seus pensamentos, seus
sentidos e seu instinto se concentraram em si mesmo, na dor e na
necessidade de retornar a casa, a Grosvenor Square e mais
concretamente a Dudley House, antes de sofrer a vergonha de cair
desacordado do cavalo.

Jane Ingleby tinha procurado trabalho durante duas semanas. Assim


que assimilou que não conhecia ninguém em Londres a quem pedir
ajuda e que não podia retornar ao lugar de que tinha saído, e assim que
se deu conta de que o pouco dinheiro que levou a cidade apenas duraria
um mês, e isso sendo muito econômica, começou a procurar, a ir de loja
em loja, de agência de emprego em agência de emprego.
Ao final, quando à escassez de recursos se somou a ansiedade e ao
medo quase paralisante que já sentia por outros motivos, encontrou
trabalho como aprendiz de costureira. A tarefa consistia em passar
muitas horas realizando trabalhos pesados para uma patroa mal-
humorada e exigente, que se fazia chamar Madame Laurent, com acento
francês e mãos muito ativas, mas este acento se transformava no dos
bairros baixos londrinos assim que a mulher retornava à oficina com as
costureiras. O salário era mínimo.
Mas ao menos era um trabalho. Ao menos ganhava o suficiente na
semana para alimentar tanto o corpo como a alma e pagar o aluguel da
pequena casa que Jane tinha encontrado em um bairro pouco
recomendável.
Levava dois dias trabalhando. Esse era o terceiro. E chegava tarde.
Não queria nem pensar no que isso significaria, embora contasse com
uma boa desculpa. Não estava segura de que Madame Laurent fosse
muito pormenorizada com as desculpas.
E certamente que não era. Aos cinco minutos de chegar à loja, Jane já
saía correndo dela.

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—Dois cavalheiros batendo-se em duelo —disse madame com as
mãos na cintura depois de que Jane lhe contou sua história— Eu não
nasci ontem, querida. Cavalheiros já não se batem em duelo no Hyde
Park. Agora vão ao parque de Wimbledon Common.
Jane tinha sido incapaz de fornecer os nomes completos dos dois
cavalheiros implicados. Só sabia que o cavalheiro ferido (o homem
arrogante, mal-humorado e de cabelo escuro) chamava-se Tresham. E
que vivia em Dudley House.
—Em Grosvenor Square? Ah, Tresham! —exclamou madame
agitando as mãos— Bom, isso explica tudo. É impossível encontrar a um
cavalheiro mais perigoso e imprudente que Tresham. Recorda-se ao
diabo, não?
Por um momento Jane se permitiu um suspiro de alivio. Depois de
tudo, ia acreditar nela. No entanto, madame jogou a cabeça para trás de
repente e soltou uma gargalhada desdenhosa. Depois olhou ao redor da
oficina, olhando às outras moças, e estas, como bajuladoras, também
riram com desdém.
—E você quer que eu acredite que o Duque de Tresham necessitou a
ajuda de uma aprendiz de costureira depois de que lhe disparassem na
perna? —perguntou madame. A pergunta era claramente retórica.
Porque não esperou a resposta— Não pense que sou tola, menina.Viu
algo estranho e ficou para farejar, não é? Tiraram-lhe as calças para lhe
curar a perna? Não posso te culpar por ficar para olhar. Debaixo de suas
calças não há preenchimento, que saiba.
As outras moças puseram-se a rir enquanto Jane se ruborizava… Por
uma mescla de vergonha e de aborrecimento.
—Está me chamando de mentirosa? —perguntou ela sem pensar.
Madame Laurent a olhou, estupefata.
—Sim, senhorita—respondeu a costureira ao final—Isso mesmo. E já
não necessito seus serviços. A menos que…—Se deteve para olhar às
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demais com uma careta maliciosa— A menos que possa me trazer uma
nota assinada pelo Duque de Tresham em pessoa que confirme sua
história.
As moças estalaram em gargalhadas ao mesmo tempo em que Jane
dava meia volta e saía da oficina. Enquanto se afastava, recordou que
nem sequer tinha exigido o pagamento dos dois dias que tinha
trabalhado.
O que podia fazer nesse momento? Retornar à agência que lhe tinha
procurado esse emprego? Dois dias depois de ter começado a trabalhar?
Em parte, o problema na hora de encontrar trabalho se devia a que não
tinha referências, nem experiência prévia em nenhum posto. Mas
muitíssimo pior que a falta de referências e de experiência seria o fato
de ter trabalhado dois dias e acabar despedida por chegar tarde e ser
uma mentirosa.
Tinha gasto o pouco dinheiro que restava três dias antes em comida
para aguentar até o dia de pagamento e no vestido que levava.
Jane se deteve de repente na metade da calçada, com os joelhos
trementes pelo medo. O que podia fazer? Aonde ia? Não tinha dinheiro,
embora decidisse recorrer a Charles, não tinha dinheiro com o que
mandar uma carta. E talvez a estivessem procurando nesse preciso
momento. Afinal, levava mais de duas semanas em Londres e não tinha
feito nada por ocultar seu rastro. Talvez alguém a tinha seguido, sobre
tudo se…
No entanto, ficou em branco com sua mente descartando essa
possibilidade.
A qualquer momento poderia topar com um rosto conhecido e
descobrir a verdade neste rosto: que a estavam perseguindo.Não
obstante, acabava de ser privada da possibilidade de desaparecer no
mundo relativamente anônimo da classe trabalhadora.

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Deveria procurar outra agência de emprego e não mencionar a
experiência desses dois dias? Havia agências que não tivesse visitado
menos de seis ou sete vezes?
Nesse momento um cavalheiro gordinho colidiu com ela e a
amaldiçoou antes de continuar seu caminho. Jane esfregou o ombro
dolorido e sentiu que a raiva crescia em seu interior. Um sentimento
muito comum esse dia. Zangou-se com o duelista mal-humorado…
Aparentemente o Duque de Tresham. Tinha-a tratado como um objeto
cuja única função na vida era servi-lo. E tinha se zangado com madame,
que a tinha chamado mentirosa e que a tinha convertido em objeto de
escárnio.
Se sentiriam as mulheres das classes baixas tão impotentes,
careceriam do direito que as respeitassem?
Esse homem devia saber que tinha sido o culpado de que ela perdesse
o trabalho. Devia saber o que um emprego significava para ela: a
sobrevivência! E madame devia saber que não podia chamá-la de
mentirosa sem provas. O que era que lhe havia dito essa mulher? Que
podia conservar o trabalho se levava uma nota assinada pelo duque em
pessoa que confirmasse a veracidade de sua história?
Pois muito bem, conseguiria essa nota.
E ele a assinaria.
Sabia onde vivia o duque. Em Grosvenor Square. Conhecia essa
direção. Durante seus primeiros dias em Londres, antes de compreender
o terrivelmente só que estava,antes que o medo a atingisse e a obrigasse
a procurar refúgio como a fugitiva em que se converteu, tinha estado em
Mayfair. O duque vivia em Dudley House, em Grosvenor Square.
Jane pôs-se a andar pela calçada.

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Capítulo 2

O Conde de Durbury se alojava no hotel Pulteney. Como viajava


pouco a Londres, não tinha residência na cidade. Embora tivesse
preferido um estabelecimento mais barato, devia manter as aparências.
Tomara não tivesse que prolongar sua estadia muito tempo e pudesse
retornar logo a Candleford Abbey, na Cornualha.
O homem que se encontrava na sala de estar de sua suíte, chapéu na
mão e com atitude respeitosa, mais não subserviente, tinha muito a ver
com a duração da estadia do conde em Londres. Tratava-se de um
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indivíduo baixinho e elegante, com o cabelo penteado com fixador.
Embora não se ajustava à imagem que Seu Muito ilustre tinha de um
investigador da Bow Street, essa era sua ocupação.
—Espero que todos seus homens estejam a procurando —disse o
conde— Não deveria ser difícil localizá-la. Afinal, não é mais que uma
jovenzinha recém-chegada do campo e não tem nenhum conhecido na
capital, além de Lady Webb, que está fora da cidade.
—Desculpe-me, senhor —replicou o investigador— mas estamos
trabalhando em outros casos. Contarei com a ajuda de outros dois
investigadores. Dois homens muito capazes, eu garanto.
—Isso espero —resmungou o conde—considerando o que lhe pago.
O investigador se limitou a inclinar a cabeça em sinal de respeito.
—Se pudesse me dar uma descrição da jovem… —sugeriu.
—Alta e magra—disse Seu Muito ilustre—Loira. Muito bonita para
seu bem.
—De que idade, senhor?
—Vinte.
—Isso quer dizer que só se trata de uma fuga? —O investigador
arrumou sua postura e separou mais os pés, que descansavam sobre o
tapete— Tive a impressão de que havia algo mais em todo este assunto.
—E há, certamente. —O conde franziu o cenho—A jovem é uma
delinquente da pior índole. É uma assassina. Matou meu filho… Ou, em
realidade, poderia dizer-se que o fez. Ele esta em coma e não esperamos
que se recupere. Além disso, é uma ladra. Escapou com uma fortuna em
joias e dinheiro em efetivo. Tem que encontrá-la.
—E levá-la a justiça —acrescentou o investigador— E agora, senhor,
se me permitir lhe farei algumas perguntas mais concretas sobre a moça.
Peculiaridades sobre sua aparência, comportamento, preferências,

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lugares e atividades prediletas. Esse tipo de coisas. Qualquer detalhe que
possa nos ajudar a uma rápida localização da jovem.
—Suponho que será melhor que se sente —disse Seu Muito ilustre a
contra gosto— Como se chama?
—Boden senhor —respondeu o investigador— Mick Boden.

Jocelyn estava em um estado de agradável embriaguez. Muito


satisfatório, exceto pelo fato de estar deitado, já que neste estado
preferia a posição vertical. Nessa postura a estadia não tenderia a flutuar
dessa maneira a seu redor.
—Nem pensar! —Levantou uma mão, ou ao menos isso acreditou que
fez, quando sir Conan lhe ofereceu outra taça de brandi— Se seguir
bebendo, esse médico ruim me cortará a perna antes que possa
protestar. —Tinha a impressão de que nem a língua, nem os dentes eram
dele. Nem o seu o cérebro.
—Já lhe dei minha palavra de que não amputarei sua perna sem seu
consentimento, excelência —assegurou com tensão o doutor Timothy
Raikes, sem dúvida incomodado pelo apelativo de «médico ruim»— Mas
parece que a bala está alojada muito profundamente. Em caso de que
tenha chegado ao osso…
—Tir… Tir… —Jocelyn se concentrou com todas suas forças.
Desprezava os bêbados que arrastavam as palavras — Tira daí, então. —
O intumescimento tinha feito que o mal-estar desaparecesse, mas sua
atordoada mente compreendia o fato de que o álcool ingerido não
camuflaria a dor que estava para acontecer. Não havia motivos para
atrasar o inevitável— Adia… Adiante, doutor.
—Assim que chegue minha filha —replicou o doutor, inquieto— É
uma ajudante muito capaz e firme neste tipo de casos. Ordenei que
fossem procurá-la assim que vieram por mim, mas suponho que já não
estava na biblioteca de Hookham quando lhe chegou à mensagem.
20
—Ao diabo com sua filha! —exclamou Jocelyn rudemente— Tir...
No entanto, Conan o interrompeu:
—Aqui está—disse com evidente alívio.
—Não, senhor —o contradisse o doutor Raikes— É só uma donzela.
Mas terá que nos ajudar. Vem aqui, moça. É apreensiva? Desmaia ao ver
sangue como aconteceu ao valete de Sua Graça?
—Não a ambas as perguntas —respondeu à donzela—Mas acredito
que deve haver um err…
—Se aproxime —lhe ordenou o doutor com voz autoritária— Tenho
que tirar a bala da perna de Sua graça. Você irá me dando os
instrumentos conforme peça e limpará o sangue para que eu possa ver
o que estou fazendo. Chegue mais perto. Fique aqui.
Jocelyn se preparou apertando as extremidades do colchão com as
mãos. Antes que a moça desaparecesse atrás do doutor Raikes, espiou
seu rosto um instante. E após um momento, a coerência abandonou seus
pensamentos assim que seu corpo, sua mente e seu mundo se viram
alagados por uma dor abrasadora. Não havia canto algum de seu ser
onde esconder-se enquanto o médico cortava, pinçava e aprofundava em
busca da bala. Conan segurava sua coxa com ambas às mãos para
imobilizar sua perna. Jocelyn conseguiu manter o resto do corpo imóvel
graças a sua enorme força de vontade e à ânsia com a que se agarrava ao
colchão, com os olhos e os lábios apertados. Além disso, esforçava-se
para não gritar.
O tempo deixou de existir. Pareceu-lhe que tinha transcorrido uma
eternidade antes que o médico anunciasse com uma calma irritante que
tinha extraído a bala.
—Está fora, Tresham —repetiu Conan, que parecia ter estado
correndo um longo trecho de subida— O pior já passou.

21
—A mãe que o…! —exclamou Jocelyn, depois de uma fileira de
impropérios— Tinha que tomar toda a manhã, Rakes, para executar a
simples tarefa de tirar uma bala?
—Tenho-o feito o mais rápido possível, sua graça —repôs o médico—
Estava alojada nos músculos e tendões. É difícil avaliar o dano que
causou. Mas se houvesse extraído com pressa, certamente o teria
deixado aleijado e ao final a amputação teria sido inevitável.
Jocelyn voltou a jogar pestes pela boca. E depois sentiu o indescritível
consolo de um pano úmido, primeiro na testa e depois nas bochechas.
Não tinha percebido o acalorado que se encontrava. Abriu os olhos.
E a reconheceu imediatamente. Seu cabelo loiro dourado estava
penteado com implacável severidade. Tinha os lábios apertados, como a
primeira vez que a viu no Hyde Park. Tirou a capa cinza e o chapéu que
levava então, mas o vestido que usava não melhorava absolutamente seu
aspecto. Um vestido cinza barato e feio, com um recatado decote. Apesar
de seu estado de embriaguez, que a essa altura quase tinha desaparecido
pela dor, Jocelyn conseguiu recordar que estava deitado em sua cama,
em seu quarto, em sua residência londrina. A viu no Hyde Park, a
caminho de seu trabalho.
—Que diabos faz aqui? —exigiu saber.
—Ajudando a limpar o sangue e agora, o suor —respondeu a moça,
que se voltou para colocar o pano em uma bacia com água e espremê-lo
antes de voltar a colocá-lo em sua testa.
Moça impertinente, pensou ele.
—Minha Nossa! —exclamou Conan, que obviamente acabava de
reconhecê-la.
—Quem te deixou entrar? —Jocelyn fez uma careta de dor e soltou
um impropério quando o doutor Raikes lhe aplicou algum unguento
sobre a ferida.

22
—Seu mordomo, eu acho —respondeu — disse a ele que queria falar
com você, e me acompanhou escada acima. Segundo ele, estavam me
esperando. Devo aconselhá-lo que se mostre mais precavido com as
pessoas às que admite. É evidente que poderia ter sido uma qualquer.
—Você é uma qualquer! —rugiu Jocelyn enquanto moviam sua perna
e a dor o assaltava, afligindo-o por completo. O médico estava
enfaixando a ferida—Que diabos você quer?
—Quem quer que seja —atravessou o doutor parecendo nervoso—
está incomodando meu paciente. Se for tão amável…
—O que quero… O que exijo —se corrigiu ela com firmeza, passando
por cima as palavras do médico—é uma nota assinada em que você
assegure que esta manhã me demorei por sua culpa e que por isso
cheguei tarde ao trabalho.
Jocelyn achou que estava mais bêbado do que tinha pensado.
—Vá para o inferno!—disse à criada impertinente.
—Talvez tenha que fazê-lo —replicou ela— Se perder meu emprego.
—Começou a lhe passar o pano úmido pelo queixo e pelo pescoço.
—Se for tão amável… —repetiu o doutor.
—Por que eu deveria me preocupar que perca seu emprego e que
acabe na rua morta de fome?—replicou Jocelyn— Se não fosse por você,
eu não estaria aqui deitado, tão indefeso como uma baleia encalhada na
praia.
—Não fui eu quem lhe apontou com a pistola—assinalou ela— Nem
quem apertou o gatilho. Pedi aos dois que parassem se por acaso não
recorda.
De verdade estava discutindo com uma criada?Perguntou-se de
repente Jocelyn. Em sua própria casa? Em seu quarto? Separou seu braço
de um empurrão.

23
—Conan—disse com brutalidade— Dê à moça o soberano que antes
não quis, se for tão amável, e tire-a daqui à força se negar a sair por seus
próprios pés.
No entanto, seu amigo só conseguiu dar um passo à frente.
—Certamente que a moça se nega a sair por seus próprios pés —
replicou ela, que se endireitou enquanto o fulminava com o olhar e um
forte rubor cobria suas bochechas. Ao que parecia, tinha a suprema
desfaçatez de enfurecer-se com ele e demonstrar-lhe. —E não cederá até
ter em suas mãos a nota assinada.
—Tresham —disse Conan parecendo quase divertido—não
demorará nada, meu amigo. Ordenarei que tragam papel, pluma e tinta.
Eu mesmo escreverei a nota e tudo o que tem que fazer é assiná-la. É a
forma de sobreviver da moça.
—O Diabo! —exclamou Jocelyn— Não penso me dignar a responder
sequer a essa sugestão. Que fique aí plantada se quiser até que venha um
criado para tirá-la arrastando-a pela orelha. Terminou Raikes?
O médico, cujo trabalho tinha concluído, voltou-se para sua maleta.
—Acabei sua graça —respondeu— O dano é considerável, e meu
dever é adverti-lo. Espero que não seja permanente. Mas será a não ser
que deixe que a perna descanse elevada ao menos durante as próximas
três semanas.
Jocelyn o olhou, espantado. Três semanas de completa inatividade?
Não conseguia pensar em um destino pior.
— Se não quer escrever a nota, terá que me oferecer um emprego
para substituir o que perdi —exigiu a moça—Me nego a morrer de fome.
Jocelyn voltou à cabeça para olhá-la. Para olhar a fonte de todos os
seus males. Era seu quarto duelo. Nos três primeiros não tinha sofrido
nem um simples arranhão. Oliver teria falhado ao menos por um metro
se o grito dessa moça não o tivesse feito um alvo mais amplo ao que
apontar e um oponente que a sua vez não apontava.
24
—Você tem isso —resmungou—Já tem trabalho, moça. Para as
próximas três semanas. Será minha enfermeira. Asseguro-te que antes
que acabem pensará que morrer de fome teria sido a melhor alternativa.
A moça o olhou sem pestanejar.
—E quais são os meus honorários? —perguntou-lhe.

Jane despertou desorientada à manhã seguinte. Não escutava os


gritos dos bêbados, nem as vozes das mulheres, nem os prantos ou as
brigas dos meninos. Não sentia o aroma rançoso das couves cozidas, do
gin e nem de outras coisas piores ao que quase se acostumou. Só havia
silêncio, uma cama quente e um agradável perfume de limpeza.
Estava em Dudley House, em Grosvenor Square, recordou quase
imediatamente. Afastou as mantas e baixou os pés para desfrutar do luxo
de um piso com carpete. No dia anterior, depois de partir para
comunicar as notícias a sua senhoria e recolher seus poucos pertences,
voltou para Dudley House e se dirigiu à entrada de serviço. Embora
esperasse que a instalassem em algum dos quartos do sótão com as
criadas, a governanta lhe informou que a servidão da casa estava
completa, de modo que não havia nenhuma só cama disponível. A
enfermeira de Sua graça teria que alojar-se em um dos quartos de
convidados.
Era uma estadia pequena, certamente, situada na parte posterior da
casa, com vista para o jardim, mas para Jane era todo um luxo depois de
suas mais recentes experiências. Ao menos lhe oferecia privacidade. E
conforto.
Não tinha visto seu novo patrão desde o dia anterior pela manhã,
quando lhe exigiu com atrevimento, e grande desespero, que lhe
oferecesse um emprego se não queria ajudá-la a manter o que já tinha.
Ao que parecia depois que o médico partiu, o duque tinha tomado uma
dose de láudano sem sua aprovação, já que a governanta a tinha
camuflado em um caldo quente, e ele tinha reagido muito mal com o
25
álcool que tinha ingerido antes, de modo que tinha sofrido vômitos
violentos antes de mergulhar em um sono profundo.
Jane pensou que a dor de cabeça que sofreria essa manhã seria
monstruosa. Sem mencionar a dor da perna. Se o duque seguia contando
com duas pernas essa manhã, era graças ao trabalho de um grande
médico.
Lavou-se com água fria, vestiu-se rapidamente e escovou o cabelo
antes de trançá-lo com agilidade e o recolher em um coque. Depois
colocou uma das duas toucas brancas que comprou no dia anterior com
o dinheiro que tinha ganhado trabalhando para a costureira. Tinha
retornado ao estabelecimento para avisar de sua renúncia de forma
oficial e para explicar que ia trabalhar para o Duque de Tresham.
Madame Laurent tinha lhe entregado seu salário completo,
possivelmente pela surpresa, supunha Jane.
Saiu de seu quarto e foi até a cozinha, onde esperava poder tomar
algo no café da manhã antes que a chamassem para que iniciasse seu
trabalho de enfermeira.
Conforme havia predito o duque no dia anterior, obteria que
desejasse ter morrido de fome. Não tinha a menor duvida de que Sua
graça tentaria fazer sua vida impossível por todos os meios a seu
alcance. Era difícil encontrar uma pessoa mais arrogante, mais mal-
humorada e mais grosseira. Claro que suas circunstâncias eram
extremas, reconheceu Jane. O duque sofria uma dor considerável, que
tinha suportado com grande estoicismo, embora não tinha conseguido
conter a língua. Porque tinha se fartado, e bem que o tinham ouvido
todos.
Perguntou-se no que consistiriam suas obrigações. Bom, pensou
enquanto entrava na cozinha e descobria com grande desgosto que era
a última a chegar, ao menos sua vida trabalhista não seria tão aborrecida
como tinha sido no estabelecimento de madame Laurent. Além disso, ia
ganhar o dobro e contava com alojamento e manutenção.

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Claro que só duraria três semanas.

Quando despertou, Jocelyn descobriu que a perna doía uma


barbaridade. A julgar pela luz que entrava em seu quarto, supôs que
estava amanhecendo ou anoitecendo. Amanhecendo, decidiu. Tinha
dormido toda a tarde e toda a noite, e tinha sofrido um sem-fim de
pesadelos bizarros. Não se sentia absolutamente descansado. Mas
justamente o contrário.
Não havia forma de escapar da dor que sentia na perna. E não queria
pensar sequer na terrível dor de cabeça, que parecia ter aumentado.
Tinha a impressão de que uma mão invisível a estava usando como
tambor… Mas do interior. Quanto ao estômago, era melhor não lhe fazer
caso. E na boca pareciam ter colocado uma bucha de um sabor
asqueroso.
Talvez a única nota positiva de tão entristecedora situação foi o fato
de que, a primeira vista, não tinha febre. Porque mais que a ferida em si,
costumava ser a febre a causadora da morte depois de uma cirurgia.
Jocelyn puxou com impaciência o cordão da campainha do serviço
que pendurava junto a sua cama e depois desabou seu mau humor em
seu criado, que ainda não tinha trazido a água para barbeá-lo.
—Sua graça, pensei que quereria descansar esta manhã —aduziu o
homem.
—Pensou! Por acaso te pago para pensar, Barnard?
—Não, sua graça —respondeu o criado com voz serviçal e paciente.
—Pois então traga a água —ordenou Jocelyn—Tenho o rosto tão
áspero que poderia ralar queijo nele.
—Sim, sua graça —replicou Barnard— O Sr. Quincy deseja saber
quando poderá vê-lo.

27
—Quincy? —Jocelyn franziu o cenho. Seu secretário desejava vê-
lo?—Agora? Enquanto estou deitado? Por que diabos espera que o
receba em meu quarto?
Barnard olhou a seu senhor com evidente desconforto.
—Devia descansar durante três semanas, sua graça —lhe recordou.
Jocelyn ficou sem fala. Sua servidão esperava que guardasse cama
durante três semanas completas? Acaso tinham perdido o juízo?
Fazendo ornamento de uma colorida eloquência, começou a explicar ao
desafortunado criado o que pensava dos conselhos e da intromissão dos
médicos, dos criados, dos secretários e da servidão em geral. A seguir,
afastou as mantas, baixou os pés ao chão… E fez uma careta.
Nesse momento recordou outra coisa.
—Onde está essa maldita mulher? —perguntou— Essa criatura tão
intrometida a quem lembro ter contratado como enfermeira. Dormindo
rodeada de luxos, não é? Esperando o café na cama, eu acho?
—Está na cozinha, sua graça —respondeu Barnard—esperando suas
ordens.
—Também quer me atender aqui? —Jocelyn soltou uma
gargalhada—certamente que espera me atender aqui, enxugar o suor de
minha testa com seu pano úmido e excitar os meus nervos com essa
língua tão afiada que tem, não é?
Seu criado demonstrou ser prudente e não respondeu.
—Mande-a para a biblioteca —disse Jocelyn— uma vez que eu acabe
de tomar o café da manhã. E agora vá trazer a água para me barbear e já
pode ir apagando do rosto essa expressão recriminatória.
Durante a meia hora seguinte se lavou e se barbeou, vestiu uma
camisa e se sentou enquanto Barnard amarrava a gravata a seu gosto,
bem engomada, mas com um nó simples, não com essas artes ridículas
das que gostavam os dândis.No entanto, viu-se obrigado a reconhecer
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que não poderia usar nem meias, nem calças. Se a tendência da moda
não ditasse que ambos os objetos fossem justos, talvez as coisas
tivessem sido diferentes. Mas era impossível lutar contra os ditos da
moda. Jocelyn não tinha meias que não moldasse às pernas como se
fosse uma segunda pele. Assim vestiu uma bata de brocado de seda cor
de vinho que chegava aos tornozelos, e umas pantufas.
Um jovem lacaio, que se esforçou em todo momento em manter uma
expressão tão pétrea que parecia inanimado, o ajudou a descer as
escadas. Mas Jocelyn sentiu toda a humilhação de sua impotência.
Depois que tomou o café da manhã e leu o jornal, tiveram que ajudá-lo
de novo a ir para a biblioteca, onde se sentou em uma poltrona de couro
junto ao fogo em vez de fazê-lo atrás de sua escrivaninha, como estava
acostumado a fazer todas as manhãs durante uma hora.
—Uma coisa —disse com brutalidade a seu jovem secretário quando
este apareceu— Não quero ouvir nenhuma só palavra sobre o que estou
fazendo aqui ou sobre onde deveria estar. Nenhuma só palavra se
valorizar seu emprego.
Gostava de Michael Quincy, um cavalheiro dois anos mais novo que
ele,e que levava quatro a seu serviço. Um homem calado, respeitoso e
eficiente, que jamais se mostrava obsequioso. Nesse instante, se atreveu
a sorrir.
—O Jornal matinal está na escrivaninha, sua graça —lhe informou—
O trarei.
Jocelyn o olhou com os olhos entrecerrados.
—Aquela mulher —disse— A esta altura Barnard deveria ter dito a
ela que se apresentasse aqui. Já vai sendo hora de que ganhe seu
sustento. Michael, diga-lhe que venha imediatamente. Estou tão irritado
que acredito que desfrutarei de sua companhia.
Seu secretário abandonou a biblioteca com um sorriso nos lábios.

29
Jocelyn acreditou que tinha a cabeça quinze vezes maior do que o
normal.
Quando a mulher entrou na biblioteca, resultou evidente que tinha
decidido adotar totalmente o papel de empregada essa manhã. Sem
dúvida, já havia se espalhado entre a servidão que ele estava de mau
humor. A moça se deteve ao entrar pela porta da biblioteca, com as mãos
unidas à frente, à espera de instruções. A irritação de Jocelyn cresceu
imediatamente. Ignorou-a por completo durante alguns minutos,
enquanto tentava decifrar uma longa carta cheia de floretes e escrita
com a atroz caligrafia de sua irmã. Embora vivesse a escassos dez
minutos a pé, tinha-lhe escrito muito nervosa, ao ouvir sobre o duelo. Ao
que parecia, tinha sofrido palpitações, vertigens e outras indisposições
indecifráveis tão sérias que tinham tido que ir em busca de Heyward, seu
marido, na Câmara dos Lordes.
Heyward não via nem um pouco de graça.
Jocelyn elevou a vista. A moça estava espantosa. Levava o vestido
cinza do dia anterior, que a cobria do pescoço aos pés, passando pelos
braços. O objeto, de muito má qualidade, carecia por completo de
adornos que melhorassem um pouco sua aparência. Essa manhã pôs
uma touca branca. Seu porte era erguido e tinha as costas muito retas.
Jocelyn chegou à conclusão, depois de despi-la com os olhos experientes,
que seu aspecto por debaixo desse vestido era muito feminino, embora
tivesse que observá-la com atenção para ver os sinais. Acreditou
recordar que no dia anterior, imerso na maré de dor, tinha descoberto
que tinha o cabelo loiro dourado. Nesse momento o tinha coberto.
Sua atitude era servil. Mas seu olhar não estava decentemente fixo ao
chão. Estava olhando fixamente para ele.
—Se aproxime! —ordenou com impaciência.
A garota obedeceu com passos firmes e se deteve um metro de sua
poltrona. Esses olhos, de um azul surpreendente, seguiam olhando-o. Na
verdade, reconheceu Jocelyn com certa surpresa, tinha um rosto de
30
beleza clássica. As feições sem um só defeito, exceto possivelmente a
lembrança desses lábios apertados. Em repouso, eram deliciosos e
estavam deliciosamente formados.
—Bem? —perguntou-lhe com brutalidade—O que tem a dizer? Está
pronta para se desculpar?
Ela tomou seu tempo para responder.
—Não—respondeu ao final—Está você preparado para se desculpar?
Jocelyn se acomodou na poltrona e tentou passar por cima a dor
monstruosa que sentia na perna.
—Vamos deixar uma coisa bem clara —disse com esse tom de voz
sereno e quase agradável que sabia que aterrorizava sua servidão—
Você e eu não somos iguais nem por indício —Guardou silêncio e franziu
o cenho—Como diabos se chama?
—Jane Ingleby.
—Você e eu não somos iguais nem por indício, Jane —seguiu— Eu
sou o senhor e você é a criada. Uma criada muito humilde. Não é preciso
que acompanhe todos e cada um de meus comentários com alguma
impertinência engenhosa. Você me tratará com o devido respeito. E me
chamará «sua graça» sempre. Ficou claro?
—Sim —respondeu ela— De minha parte, sua graça, acredito que
deveria vigiar o uso da linguagem em minha presença. Não aprovo as
maldições, nem o uso do nome de Deus em vão, como parece ser o
habitual nesta casa.
Pelo amor de Deus!Exclamou Jocelyn para si mesmo enquanto
agarrava com força os braços da poltrona.
—Ah, sim? —replicou com sua voz mais gélida— Tem mais alguma
instrução que me comunicar Jane?
—Sim, mais duas —respondeu— Prefiro que me chame «Senhorita
Ingleby», e, portanto, que não use intimidade.
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Jocelyn procurou o monóculo com a mão direita e fez gesto de levá-
lo ao olho.
—E a outra?
—Por que não está na cama?

Capítulo 3

A jovem observou como o Duque de Tresham levava o monóculo ao


olho, cuja lente o aumentou dando a ele uma aparência grotesca,
enquanto apoiava a mão livre na pilha de cartas que tinha no colo. Estava
mostrando-se muito arrogante, é obvio, na tentativa de assustá-la. E
quase conseguiu. Mas seria um suicídio demonstrar.
Seus criados, segundo havia comprovado durante o café da manhã,
estavam aterrorizados com ele, especialmente quando estava de mau
humor como essa manhã, de acordo com seu criado. Tinha uma
aparência formidável, embora estivesse calçado com umas pantufas e
vestia uma bata sobre a camisa branca com uma gravata elegante.
Era um homem de aparência poderosa e cabelo escuro, com olhos
negros, nariz proeminente, lábios finos e rosto estreito, que parecia
refletir uma perpétua expressão cínica e dura. E arrogante.
É obvio, admitiu Jane, esse não devia ser um de seus melhores dias.
Tinha chegado à estadia acompanhando o senhor Quincy, o educado
e amabilíssimo secretário do duque, e tinha decidido comportar-se
como o que se supunha que devia ser: uma enfermeira tímida e humilde
que tinha sorte de contar com essa posição embora só por três semanas.

32
No entanto, era difícil não ser ela mesma… Assim como havia
descoberto para sua desgraça fazia quase um mês. O estômago deu um
tombo e afastou essas lembranças de sua mente.
—Como disse? —perguntou o duque nesse momento, deixando o
monóculo uma vez mais contra o peito.
Era uma pergunta retórica. O duque não tinha, a seu entender,
problemas de audição.
—O advertiram que deve ficar na cama ao menos três semanas e
manter a perna elevada —lhe recordou ela—No entanto, está sentado
com o pé no chão, embora seja evidente que está doendo. Sei pela tensão
de seu rosto.
—A tensão de meu rosto —repetiu ele com uma expressão
ameaçadora e os olhos entrecerrados— é o resultado de uma tremenda
dor de cabeça e de sua monumental impertinência.
Jane passou por cima suas palavras.
—Não acha uma tolice correr riscos só porque seria aborrecido ficar
na cama?
Os homens eram muito tolos. Tinha conhecido vários como o duque
ao longo de seus vinte anos de vida, homens cuja determinação para ser
mais varonis os levava a arriscar sua saúde e sua segurança.
O duque se recostou na poltrona e a observou em silêncio,
provocando nela muito a seu pesar um calafrio que correu por sua
espinha. Certamente em questão de dez minutos estaria na rua com a
pequena bolsa patética onde guardava seus poucos pertences, pensou.
Talvez sem a bolsa.
—Senhorita Ingleby —o duque pronunciou seu nome como se fosse
o pior dos insultos—tenho vinte e seis anos. Levo nove anos ostentando
o título, assim como as obrigações e as responsabilidades que a ele
suporta, desde a morte de meu pai. Faz muito tempo que ninguém me
fala como se fosse um menino travesso que necessitasse uma
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repreensão. E passará mais tempo ainda antes que eu tolere que alguém
volte a me falar assim.
Não havia réplica possível. Jane não deu nenhuma. Uniu as mãos
diante do corpo e o olhou em silêncio. Não era bonito, decidiu. Nem um
pouco. Mas a aura tão masculina que o rodeava o faria irresistível para
qualquer mulher que gostasse de ser intimidada, dominada ou agredida
verbalmente. E existiam muitíssimas mulheres assim, não tinha a menor
duvida.
Por sua parte, estava farta de homens como ele. Seu estomago agitou-
se desconfortavelmente.
—Mas tem razão em uma coisa, como suponho que adorará saber —
seguiu ele— Dói-me, e não só a cabeça. Está claro que manter o pé no
chão não é a melhor opção. Mas que me parta um raio se for ficar deitado
na cama durante três semanas só porque alguém me distraiu o suficiente
durante um duelo para que me colocassem um buraco na perna. E que
me parta outro raio se permitir que voltem a me drogar até perder o
sentido para esquecer a dor. Na sala de música ao lado encontrará uma
banquinho junto à lareira. Vá buscá-lo.
Enquanto virou-se para sair da estadia voltou a se perguntar quais
seriam seus deveres durante as próximas três semanas. O duque não
parecia ter febre. E certamente não estava disposto a interpretar o papel
de convalescente inválido. Cuidar, fazer recados elevar coisas até ele não
seria um trabalho a jornada completa. Certamente diria a governanta
que lhe atribuísse outras tarefas. Não se importava, sempre e quando
estes trabalhos não a obrigassem a relacionar-se com as visitas. Tinha
sido uma imprudência retornar a Mayfair, bater na porta de uma grande
mansão de Grosvenor Square e exigir um posto de trabalho. Expor-se ao
público.
No entanto, era todo um prazer voltar a estar em um ambiente limpo,
elegante, espaçoso e civilizado, admitiu para si mesma ao abrir a porta
adjacente à biblioteca e entrar na sala de música.

34
Perto da chaminé não havia nenhum banquinho.

Jocelyn a viu afastar-se e percebeu que ela andava com as costas


muito retas e movimentos elegantes. No dia anterior devia estar muito
aturdido, pensou, para supor que era uma criada, embora ao final
resultasse que era só uma simples aprendiz de costureira. É obvio, ia
vestida como lhe correspondia. Seu vestido era barato e de péssima
qualidade. E pelo menos um tamanho maior da conta.
No entanto, não era uma criada,apesar da aparência. Nem tão pouco
a tinham educado para passara vida na oficina de uma costureira, se não
lhe falhava a vista. Falava com o acento cultivado de uma dama.
Uma dama menor?
A moça levou seu tempo para retornar. Quando o fez, levava o
banquinho em uma mão e uma enorme almofada macia na outra.
—Foi ao outro lado de Londres pelo banquinho?—perguntou com
secura— E teve que esperar que o fabricassem?
—Não —respondeu ela com bastante calma— Mas não se encontrava
onde me disse que estaria. De fato, não estava em parte alguma. Trouxe
uma almofada, já que o banquinho parece muito baixo.
Jane Ingleby deixou o banquinho no chão, colocou a almofada em
cima e se ajoelhou para levantar sua perna. Jocelyn temia o momento do
contato. No entanto, suas mãos foram delicadas e seguras de uma vez.
Tanto que não sentiu mais dor. Talvez, pensou, deveria obrigá-la que
embalasse sua cabeça entre as mãos. Apertou os lábios para conter uma
gargalhada.
Ela tinha aberto sua bata, de modo que foi evidente que a bandagem
cravava na pele avermelhada da panturrilha. Jocelyn franziu o cenho ao
observá-lo.

35
—Vê isso? —perguntou Jane Ingleby—Sua perna inchou e
certamente agora dói muito mais do que deveria. Tem que mantê-la na
posição em que indicaram, por mais inconveniente e molesta que seja.
Suponho que acha pouco viril demonstrar mal-estar por uma doença. Os
homens podem ser tão de tolos.
—Sério? —replicou ele com gelidez, olhando enojado o topo de sua
espantosa e flamejante touca. Ainda não entendia por que não a tinha
expulsado, figurativamente falando, e a tinha jogado de quatro na rua
dez minutos antes. Nem tão pouco conseguia compreender por que a
tinha contratado, já que a culpava de suas desgraças. Era uma bruxa que
o afligiria com um sem-fim de preocupações antes que as três semanas
chegassem a seu fim.
No entanto, a alternativa era que o cuidasse Barnard e ficasse lívido
cada vez que visse a bandagem.
Além disso, ia necessitar um estímulo mental enquanto estava
encerrado em sua casa londrina, decidiu. Não podia esperar que seus
amigos e sua família acampassem no salão e lhe fizessem companhia a
todas as horas.
—Sim, é verdade—respondeu ela, que ficou em pé olhando-o.
Seus olhos não só eram de um azul muito claro, percebeu Jocelyn,
além disso, estavam emoldurados por umas largas pestanas mais
escuras que seu quase invisível cabelo. Era o tipo de olhos nos quais
qualquer homem poderia se afogar se o resto de seu corpo e de sua
pessoa estivesse à altura. No entanto, a boca situada não muito mais
abaixo seguia falando.
—Terei que trocar a bandagem —estava dizendo—Este é o mesmo
que lhe pôs o Dr. Raikes ontem pela manhã. Lembro-me que disse que
não voltaria até amanhã. É muito tempo para manter uma bandagem,
embora não haja inflamação. Eu enfaixarei sua ferida de novo.
Jocelyn não queria que ninguém se aproximasse menos de um metro
da bandagem, nem da ferida que esta cobria. Mas sabia que era uma
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atitude covarde. Além disso, a sentia muito apertada. E também estava o
fato de que a tinha contratado como sua enfermeira. De modo que
decidiu que devia ganhar o salário.
—O que você está esperando? —perguntou com irritação— Que lhe
dê permissão? É possível que lhe pareça necessário ter meu
consentimento para contornar o estabelecido por um dos médicos mais
eminentes de toda Londres e me manusear, senhorita Ingleby? —O
incomodava não ter insistido em chamá-la Jane. Um nome bonito e
vulgar. E totalmente inadequado para a harpia que o olhava com
serenidade.
—Não tenho intenção de manuseá-lo, sua graça —replicou ela—mas
sim de obter que se sinta mais cômodo. Não lhe farei mal. Prometo.
Jocelyn apoiou a cabeça no respaldo da poltrona e fechou os olhos. E
logo voltou a abri-los. As dores de cabeça, é obvio (ao menos uma do
calibre da que ele padecia desde que despertou há algumas horas), não
se aliviavam ao entreabrir as pálpebras.
A moça fechou a porta sem fazer ruído ao sair da estadia, ele
percebeu, como fez quando saiu em busca do banquinho. Bendito seja
Deus por esses pequenos favores. Agora só tinha que manter a boca
fechada…

Pela primeira vez em muitíssimo tempo Jane se sentia em território


conhecido. Retirou a bandagem do duque com supremo cuidado e
lentidão, separando-a da ferida, que tinha sangrado um pouco, e por isso
tinha grudado. Elevou a vista enquanto a removia totalmente.
O duque não se alterou embora devesse doer. Estava recostado na
poltrona, com um cotovelo apoiado em um dos braços e a cabeça apoiada
em uma mão enquanto a olhava com os olhos entrecerrados.
—Sinto muito —se desculpou ela—O sangue secou.

37
Viu-o meio assentir com a cabeça enquanto limpava a ferida com
água quente antes de aplicar o pó balsâmico que tinha encontrado entre
o material da governanta.
Tinha cuidado de seu pai ao longo de uma enfermidade degenerativa
até que morreu há um ano e meio. Pobre papai, pensou. Nunca foi um
homem muito forte e perdeu a ânsia de viver depois da morte de sua
mãe, como se tivesse permitido que a enfermidade acampasse a sua
vontade sem opor resistência. Ao final, tinha dependido dela para tudo.
Seu pai ficou muito magro. A perna desse homem era forte e musculosa.
—É nova em Londres? —perguntou ele de repente.
Elevou a vista ao escutá-lo. Oh! Que não quisesse entreter-se se
misturando em seu passado. Uma esperança que ficou esmagada
imediatamente.
—De onde vem? —seguiu ele.
O que devia responder? Detestava mentir, mas era impossível lhe
dizer a verdade.
—De um lugar muito, muito distante.
O duque deu um pulo quando aplicou o pó. Mas eram necessários
para evitar a infecção que ainda ameaçava lhe custando à perna. A
inflamação a preocupava.
—É você uma dama educada… —disse ele, como afirmação, não como
pergunta.
Jane tinha simulado o acento dos baixos recursos, com resultados
ridículos. Tinha fingido um tom mais neutro, algo que a fizesse parecer
uma mulher comum do povo.No entanto, e embora fosse capaz de
distinguir os distintos acentos, resultava-lhe impossível copiá-los. De
modo que deixou de tentá-lo.
—A verdade é que não —o contradisse—Não sou uma dama, mas sim
recebi uma boa educação.
38
— Onde?
Era uma mentira que já tinha contado. Se ateria a ela, pois assim
colocaria fim ao resto das perguntas.
—Em um orfanato —respondeu— Um excelente. Suponho que meu
pai era alguém que não podia me reconhecer, mas que sim podia
permitir-se que me criassem como é devido.
Ai, papai! Pensou. Ai, mamãe!
Seus pais lhe tinham dado todo seu amor e sua atenção, já que era
filha única, e lhe tinham dado uma maravilhosa família durante
dezesseis anos. Também teriam se ocupado de lhe deixar o futuro
resolvido e uma vida tão tranquila como a sua se a morte não os tivesse
reclamado antes.
—Mmm —se limitou a murmurar o Duque de Tresham.
Quisera isso fosse tudo o que tinha que dizer sobre o tema. Apertou
a bandagem o suficiente para que não se soltasse, mas não o bastante
para prender a inflamação.
—O banquinho não é alto o bastante nem com a almofada. —Franziu
o cenho e deu uma olhada a seu redor, momento no que reparou no divã
situado em um canto da biblioteca— Suponho que me dirá de tudo se
lhe sugerir que se deite no divã —disse ao mesmo tempo em que o
assinalava— Poderia manter seu orgulho masculino ao ficar na
biblioteca, mas poderia estender a perna todo o necessário e elevá-la
com a almofada
—Vai me desterrar a um canto, senhorita Ingleby? —perguntou ele—
Talvez de costas à sala?
—Suponho que o divã não está preso ao solo —replicou— Acho que
poderia levá-lo até o lugar que você prefira. Perto do fogo talvez?
— Ao inferno com o fogo —respondeu ele— Que o coloquem ao lado
da janela. E que o faça alguém mais corpulento que você. Não serei o
39
culpado de que desloque a coluna embora fosse uma forma de justiça
poética. O cordão da campainha está junto ao suporte da lareira. Avise.
Um criado moveu o divã até a luz da janela. No entanto, o duque se
apoiou no ombro de Jane enquanto mancava da poltrona até a nova
posição. Ele se recusou, é obvio que o levassem nos braços.
—Que a parta um raio —lhe disse o duque quando o sugeriu—Me
levarão em alto em meu enterro, senhorita Ingleby. Até esse momento
me deslocarei por meus próprios meios de um lugar a outro, embora
precise um pouco de ajuda.
—Sempre foi tão teimoso? —perguntou Jane enquanto o criado a
olhava boquiaberto, como se esperasse que a fulminasse um raio a
qualquer momento.
—Sou um Dudley —aduziu o Duque de Tresham a modo de
explicação— Somos teimosos desde que nos concebem. Os bebês Dudley
são famosos por chutar as entranhas de suas mães com ferocidade e por
lhes provocar muitíssima dor durante o parto. E isso só é o começo.
Tentava escandalizá-la, compreendeu Jane. Esses olhos negros a
olhavam fixamente, uns olhos que tinha descoberto que, em realidade e
vistos de perto, eram de um castanho muito escuro. Que homem mais
tolo. Ela tinha ajudado no parto de incontáveis bebês desde que tinha
quatorze anos. Sua mãe a tinha educado com a convicção de que o
serviço aos outros era uma parte integral de uma vida privilegiada.
O duque pareceu encontrar-se bastante cômodo assim que esteve
sentado no divã, com o pé apoiado na almofada. Jane se afastou, à espera
que a despachasse ou ao menos que lhe ordenasse apresentar-se
perante a governanta para receber mais instruções. O criado foi embora.
No entanto, o duque a olhou pensativo.
—Enfim, senhorita Ingleby —disse— como planeja me entreter estas
três semanas?

40
Jane sentiu uma pontada de alarme. O homem estava incapacitado e
não tinha ouvido nenhum deixe sugestivo em sua voz. Não obstante, ela
tinha bons motivos para recear dos cavalheiros aborrecidos.
Livrou-se de responder quando a porta da biblioteca se abriu. Mas
não o fez devagar, como caberia de esperar, para dar passagem ao
mordomo ou ao senhor Quincy. De fato, a porta não se abriu depois que
chamassem como ditavam os bons costumes, mas sim bateu de forma
estrondosa contra a prateleira que havia na parede. Depois do qual
entrou uma dama.
Jane se alarmou muitíssimo. Era uma moça, elegantemente
embelezada, embora com um gosto do mais questionável. Jane não a
reconheceu, mas nesse momento se deu conta da estupidez que cometia
ao estar ali. Se tivessem anunciado a visita, ela teria desaparecido sem
ser vista. No entanto, nesse instante só podia ficar onde estava ou, como
muito, retroceder um par de passos para afastar-se com a esperança de
ocultar-se entre as sombras que havia à esquerda das cortinas da
estadia.
A recém-chegada entrou correndo na biblioteca.
—Acredito que ordenei que não me incomodassem esta manhã—
murmurou o duque.
Não obstante, a dama seguiu avançando.
—Tresham! —exclamou—Está vivo! Não ia ficar tranquila até vê-lo
com meus próprios olhos. Se soubesse tudo o que passei ontem, nunca o
teria feito. Heyward partiu esta manhã à Câmara dos Lordes, um gesto
espantoso de sua parte quando tenho os nervos destroçados. Juro que
ontem à noite não preguei os olhos. Se me permite dizer, Lorde Oliver se
comportou muito mal ao disparar em você. Se Lady Oliver foi bastante
indiscreta para lhe permitir descobrir que você foi seu último amante, e
se ele for bastante tolo para proclamar seus chifres aos quatro ventos
com um desafio tão público (e no Hyde Park, nada mais e nada menos),
deveria ser ele que recebesse o tiro. Mas dizem que você, muito
41
galantemente, disparou ao ar, o que demonstra como cavalheiro e
civilizado você é. Teria bem merecido que o tivesse matado. Mas nesse
caso o teriam pendurado, ou o teriam feito se não fosse um duque. Teria
que ter fugido a França, e Heyward teve a coragem de me dizer que não
me levaria a Paris para te visitar. Embora todo mundo saiba que é o lugar
mais elegante para viver. Às vezes me pergunto por que me casei com
ele.
O Duque de Tresham segurava a cabeça com uma mão. Levantou a
mão livre quando a dama se deteve para tomar ar.
—Casou-se com ele, Angeline — lhe recordou— porque você gostava
e porque era um conde quase tão rico como eu. Embora sobretudo
porque você gostava.
—Sim. —A recém-chegada sorriu e revelou que era uma jovem muito
bonita apesar de sua semelhança com o duque— Foi por isso, não é?
Como está, Tresham?
—Exceto por uma perna torcida e uma cabeça muito grande para
meu pescoço —respondeu ele—muito bem, obrigado por perguntar,
Angeline. Sente-se.
Pronunciou a última palavra com ironia. A dama já estava sentada em
uma cadeira, junto ao divã.
—Quando eu for —seguiu ela— darei ordens para que ninguém
exceto a família possa vê-lo. Pobrezinho, só faltava que um montão de
visitas ponham sua cabeça como um tambor com seu bate-papo.
—Mmm —murmurou o duque, e Jane viu como ele levava o
monóculo ao olho e que de repente parecia mais compungido que
antes— Que chapéu mais espantoso —disse— Amarelo mostarda? Com
esse tom de rosa? Se pensa em pôr isso para o café da manhã veneziano
que Lady Lovatt celebrará a semana que vem, alegra-me poder te dizer
que será impossível te acompanhar.

42
—Heyward me contou —prosseguiu a dama, que se inclinou para ele
e fez caso omisso da opinião do duque sobre seu gosto para chapéus—
que Lorde Oliver anda dizendo por aí que não está satisfeito porque não
tentou matá-lo. Ocorre-te algo mais absurdo? Os irmãos de Lady Oliver
tão pouco estão satisfeitos, e já sabe como são. Estão dizendo, embora
tenha entendido que nenhum esteve presente no duelo, que se afastou
como um covarde e evitou que Lorde Oliver te matasse. Mas se o
desafiam a um duelo, tem que se negar. Pensa em meus nervos.
—Neste preciso instante, Angeline —assegurou ele— preocupam-
me os meus.
—Enfim, ao menos pode ter a satisfação de saber que de todas as
formas é a fofoca da alta sociedade —continuou ela— Que golpe de
efeito o de voltar para casa a cavalo quando tinha um tiro na perna,
Tresham! Gostaria de ter estado lá para presenciá-lo. Ao menos
conseguiu que deixem de falar de Hailsham e do assunto da Cornualha.
É verdade que uma vagabunda gritou e o distraiu?
—Não era exatamente uma vagabunda— respondeu ele— Está ali,
junto à cortina. Apresento-te à senhorita Jane Ingleby.
Lady Heyward girou na cadeira e olhou Jane com evidente surpresa.
Saltava à vista que não se deu conta de que havia alguém mais na estadia
além de seu irmão e dela. Certo que a cortina não oferecia muita
proteção, mas Jane ia vestida como uma criada. Sentiu-se aliviada ao dar-
se conta de que esse fato a convertia em um ser quase invisível.
—Você, moça? —perguntou Lady Heyward com tal altivez que a
tornou ainda mais parecida com o duque. Deveria ser um ou dois anos
mais velha que ela, pensou Jane— Por que está aí? Ordenou que a
açoitassem, Tresham?
—É minha enfermeira —respondeu ele—E prefere que a chame
senhorita Ingleby a «moça».—Sua voz destilava uma docilidade muito
enganosa.

43
—É mesmo? —A surpresa da mulher aumentou— Que curioso. Mas
tenho que ir já. Fiquei de me reunir com Martha Griddles na biblioteca
faz vinte minutos. Mas antes tinha que vir para te oferecer todo o consolo
possível.
—Para que são as irmãs? —murmurou sua graça.
—Precisamente —inclinou-se sobre ele e beijou o ar perto de sua
bochecha esquerda— É possível que Ferdie venha ver-te depois. Ontem
estava indignado pelo afã dos irmãos de Lady Oliver em manchar sua
honra. Estava decidido a desafiá-los a duelo… A todos eles. No entanto,
Heyward lhe disse que estava fazendo-o de idiota. Suas próprias
palavras, eu juro, Tresham. Não entende o temperamento dos Dudley. —
Suspirou e abandonou a estadia tão abruptamente como tinha entrado,
deixando a porta totalmente aberta.
Jane ficou onde estava. Sentia-se entorpecida, só e assustada.
O que era que se comentava nos salões da alta sociedade e ao que a
irmã de Tresham se referiu tão fugaz?
«Ao menos conseguiu que deixem de falar… Do assunto da
Cornualha.»
Que assunto da Cornualha ?Perguntou-se ela.
—Acredito que isto merece uma taça de brandi, senhorita Ingleby —
disse o duque— E pense nas consequências se me disser que beber mais
álcool só piorará minha dor de cabeça. Vá buscar a licoreira.
—Sim, sua graça —Jane não tinha vontade de discutir.

Capítulo 4

44
Lorde Ferdinand Dudley apareceu quase uma hora depois que Lady
Heyward partiu. Como ela tinha feito, entrou na biblioteca sem anunciar-
se e bateu a porta contra a prateleira.
Jocelyn deu um pulo e desejou não ter rejeitado o licor de brandi sem
ter provado nem uma gota. Acabava de beber uma taça de chocolate, já
que Jane Ingleby havia dito que talvez assentasse seu estômago e
aliviasse a dor de cabeça. No momento não tinha obtido nenhum dos
dois efeitos desejados.
Percebeu que a moça voltava a ocultar-se entre as cortinas.
—Que me crucifiquem! —exclamou seu irmão menor a modo de
saudação— Dom Carrancudo tentou me impedir a entrada, Tresham.
Pode acreditar nisso. De onde tira a servidão essas ideias tão
desatinadas?
—Normalmente de seus superiores —respondeu Jocelyn.
—Valha-me Deus! —Seu irmão se deteve— É verdade que está
fazendo-se de inválido. Mamãe estava acostumada passar dias nesse
divã assegurando estar às portas da morte depois de levar três noites
seguidas dançando e apostando. Os rumores não são certos, não é?
—Geralmente não —respondeu Jocelyn com desinteresse— A que
rumores em concreto se refere?
—Ao que assegura que não voltará a andar —respondeu seu irmão
ao mesmo tempo em que se deixava cair na poltrona que antes tinha
ocupado Angeline— Ao que diz que acabou lutando pelo chão com
Raikes para evitar que te cortasse a perna. Na verdade, Tresham, os
médicos de hoje em dia preferem tirar uma serra da maleta antes de
incomodar-se em procurar a bala.
—Asseguro-te que ontem não tinha vontade de lutar no chão com
ninguém —replicou Jocelyn— exceto possivelmente com o charlatão
que Oliver levou ao Hyde Park para que fizesse às vezes de cirurgião.
Raikes fez um magnífico trabalho e voltarei a andar.
45
—É o que eu pensava —comentou Ferdinand com um sorriso de
orelha a orelha— O tema está causando furor no livro de apostas do
White’s, apostei cinquenta libras que dentro de um mês estará dançando
valsa no Almack’s.
—Você vai perder. —Jocelyn levou o monóculo ao olho— Nunca
danço valsa. E nunca ponho um pé no Almack’s. As mães em geral
pensariam que estou no mercado matrimonial. Quando vai despedir
esse desastre de valete que tem e contratar alguém capaz de não te
cortar o pescoço cada vez que te barbeia, Ferdinand?
Seu irmão tocou o pequeno corte que tinha sob o queixo.
—Oh, isso? —perguntou— Foi minha culpa, Tresham. Voltei à cabeça
sem o avisar. Os irmãos Forbes virão por você. Três deles estão na
cidade.
Sim, era lógico, pensou. A reputação dos irmãos de Lady Oliver era
tão ruim como a sua própria e a de seus irmãos. E posto que a dama em
questão fosse à única mulher entre cinco irmãos, estes a protegiam com
excessivo zelo inclusive depois de levar três anos casada com Lorde
Oliver.
—Terão que vir a casa para me buscar —replicou Jocelyn— Coisa que
nãoresultará difícil, já que meu mordomo, ao que parece, deixa entrar
qualquer um que bate na porta.
—Nossa! —exclamou Ferdinand, ofendido—Eu não sou qualquer
um, Tresham. E devo protestar porque não me pediu para ser seu
padrinho, nem me informou sequer da celebração do duelo. Por certo, é
verdade que foi uma criada a causadora de todo o alvoroço? Brougham
assegura que te seguiu até sua casa feita uma fúria, que conseguiu chegar
a seu quarto e que te jogou um sermão porque tinha perdido seu
trabalho. —Riu entre dentes— Suponho que é um conto chinês, mas de
todas as formas é muito bom.

46
—Está aí mesmo, junto às cortinas —disse Jocelyn, assinalando com
a cabeça em direção a sua enfermeira, que parecia uma estátua desde a
chegada de seu irmão.
—Há! —Ferdinand pôs-se de pé e a olhou com evidente interesse—
Que diabos está fazendo aqui? Moça deveria saber que não está bem
visto intervir em questões de honra. São assuntos de cavalheiros.
Poderia ter causado a morte de Tresham e, em consequência, acabar na
forca.
Jocelyn percebeu que Jane Ingleby olhava seu irmão com a mesma
expressão com a que estava acostumado a vê-lo ele. Reconheceu os
sinais imediatamente: viu-a quadrar os ombros, apertar os lábios e
observar seu irmão sem pestanejar. Esperou com avidez que falasse.
—Se tivesse morrido —replicou ela— seria por culpa da bala que
disparou o homem com quem se batia em duelo. É uma grande tolice
chamar esse enfrentamento uma «questão de honra». Embora sim
acertasse ao pontuá-lo como um assunto de cavalheiros. As mulheres
possuem muito mais bom senso.
Lorde Ferdinand Dudley pareceu ficar perplexo depois de receber a
bronca de uma criada espantosamente vestida.
—Verá Ferdinand, o caso é que a moça vem equipada com uma mente
própria —assinalou Jocelyn com fingido desinteresse— e com uma
língua de duplo fio.
—Meu Deus! —Seu irmão voltou à cabeça para olhá-lo, atônito— Que
raios ela está fazendo aqui?
—Conan nãolhe contou a história completa? —perguntou— A
contratei como enfermeira. Não vejo necessidade que o resto de minha
servidão tenha que aguentar meu mau humor durante as próximas três
semanas enquanto estou encarcerado em minha própria casa.
—Que me crucifiquem! —exclamou seu irmão— Pensei que Conan
estava brincando.
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—Nada de brincadeiras —disse Jocelyn ao mesmo tempo em que
agitava uma mão— Apresento-te à senhorita Jane Ingleby, Ferdinand. A
sim tome cuidado se você tiver a necessidade de se dirigir a ela. Insiste
em ser tratada de você e em ser chamada «senhorita Ingleby» em vez de
Jane ou «moça». Ao qual concedi já que ela deixou de ignorar-me e de
vez em quando se dirige para mim com o tratamento de «sua graça».
Senhorita Ingleby, a apresento meu irmão menor, Lorde Ferdinand
Dudley. —Quase esperou que ela fizesse uma reverência. E quase
esperou que seu irmão explodisse. Porque essa devia ser a primeira vez
que o apresentavam a uma criada.
Jane Ingleby o saudou com uma elegante inclinação de cabeça que
Ferdinand correspondeu com uma breve reverência, obviamente
envergonhado.
— Meu deus, Tresham! —exclamou— A ferida afetou sua cabeça?
—Acredito que estava a ponto de partir—sugeriu ele, levando uma
mão à mencionada cabeça— não é, Ferdinand? Embora antes que vá, me
permita um conselho, claro que não sei para que esbanjo saliva
aconselhando-o quando os Dudley são famosos por não escutar
ninguém. Deixe que eu me encarregue dos Forbes. Estão furiosos
comigo, não com você.
—São um bando de libertinos e rufiões! —replicou seu irmão,
irritado— Mas bem deveriam dar uma boa lição em sua irmã. Não
entendo como acabou se relacionando com essa mulher ardilosa. Por
que…
—Basta! —interrompeu-o Jocelyn com brutalidade— Há uma… —
Estava a ponto de dizer que havia uma dama presente, mas se conteve a
tempo— Não tenho por que te dar explicações sobre meus assuntos.
Parte se for tão amável, e diga a Hawkins que venha. Vou deixar a ele
bem claro que se deixa entrar alguém mais o resto do dia, seu emprego
nesta casa correrá perigo. Acredito que vai me explodir a cabeça de um
momento a outro, e meus miolos vão ficar espalhados sobre os livros.

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Lorde Ferdinand partiu e após alguns minutos o mordomo entrou na
biblioteca, um tanto aterrorizado.
—Sua graça, peço-lhe desculpas… —começou, mas Jocelyn o
interrompeu levantando uma mão.
—Admito que necessitaria um regimento de soldados experientes e
uma bateria de artilharia para deter Lorde Ferdinand e Lady Heyward,
tão dispostos como estavam a entrar —disse— Mas ninguém mais,
Hawkins. Não deixe entrar ninguém mais, embora seja o próprio
príncipe regente quem bate na porta. Ficou claro?
—Sim, sua graça. —Seu mordomo executou uma servil reverência e
partiu, depois do qual teve a deferência de fechar a porta sem fazer
ruído.
Jocelyn exalou um fundo suspiro.
—E agora, senhorita Ingleby —disse— venha sentar-se aqui perto e
me conte como planeja me entreter durante as próximas três semanas.
Teve muito tempo para pensar uma resposta.

—Sim, conheço os jogos de cartas mais comuns —respondeu Jane a


uma pergunta— mas não jogo por dinheiro. —Essa tinha sido uma das
regras de seus pais: nada de apostas em casa, exceto que se jogasse com
piniques; e as apostas acabavam assim que se perdia meia coroa, quer
dizer, dois xelins e seis piniques— Além disso —acrescentou— não
tenho dinheiro para apostar. Suponho que a você não gostará de jogar a
menos que as apostas sejam altas.
—Me alegro de ver que tem a pretensão de que me conhece tão bem
—replicou o duque— Joga xadrez?
—Não. —Jane negou com a cabeça. Seu pai sim sabia jogar, mas
albergava umas ideias um tanto estranhas sobre as mulheres. O xadrez
era um jogo masculino, estava acostumado a dizer com carinhoso

49
paternalismo sempre que lhe pedia que a ensinasse a jogar. Sua contínua
negativa aumentava o desejo de Jane de aprender— Não me ensinaram.
O duque a olhou com expressão pensativa.
—Suponho que não sabe ler —disse.
—É obvio que sei ler! —Acaso a tinha tomado por uma analfabeta?
No entanto, recordou muito tarde o papel que estava interpretando.
—Claro, é obvio —replicou o duque em voz baixa ao mesmo tempo
em que entreabria as pálpebras— E suponho que também tem uma
preciosa caligrafia. Que tipo de orfanato era, senhorita Ingleby?
—Já disse—respondeu ela— Um excelente.
O duque lhe lançou um olhar sério, mas abandonou o tema.
—E que mais talentos possui com os que possa me entreter? —
perguntou-lhe.
—O trabalho de uma enfermeira consiste em entretê-lo?
—O trabalho de minha enfermeira consiste no que eu diga. —Seus
olhos a olharam de cima abaixo como se pudessem ver por debaixo da
roupa.
Jane encontrou dito escrutínio um tanto desconcertante.
—Afinal —seguiu o duque— não acredito que vá demorar as vinte e
quatro horas do dia para trocar a atadura e colocar meus pés sobre as
almofadas, não é?
—Não, sua graça —admitiu.
—No entanto, estou a oferecendo alojamento e manutenção —
recordou ele— E acredito que estou pagando um salário muito atrativo.
Vai me negar um pouco de entretenimento?
—Acredito que não demorará a cansar-se do que posso lhe oferecer
—respondeu Jane.
50
O duque esboçou um meio sorriso que, em vez de suavizar sua
expressão, outorgou-lhe uma aparência um tanto feroz. Jane viu que
tinha o monóculo na mão, embora não o levou ao olho.
—Já veremos —repôs ele— Tire a touca, senhorita Ingleby. Ofende-
me. É completamente feia e a acrescenta pelo menos dez anos mais.
Quantos anos têm?
—Sua graça, —respondeu Jane— não acredito que minha idade seja
de sua incumbência. E preferiria levar a touca enquanto cumpro com
minhas obrigações.
—Ah, sim? —De repente, sua atitude se tornou altiva e um tanto
alarmante só arqueando as sobrancelhas— Tire-a—acrescentou com
voz mais suave.
Mostrar-se rebelde parecia inútil. Afinal, Jane não tinha levado touca
até o dia anterior. Tinha parecido a ela um bom disfarce, algo sob o qual
poderia ocultar-se ao menos em parte. Tinha o cabelo muito claro o que
era sua característica mais marcante. Desatou com inapetência a fita que
segurava a touca sob o queixo e a tirou. Enquanto o olhar do duque se
fixava em seu cabelo, colocou o objeto no colo.
—É evidente, senhorita Ingleby —comentou o duque— que o cabelo
é sua característica mais gloriosa. Sobre tudo quando não o tiver
trançado e recolhido com um estilo tão severo. O que me obriga a lhe
perguntar a que vem esse afã por ocultá-lo. Tem medo de mim ou de
minha reputação?
—Desconheço sua reputação —respondeu. Embora não fosse
necessário muita imaginação para fazer uma ideia.
—Ontem me bati em duelo —assinalou ele— por ter mantido…
Digamos que… Um relacionamento com uma dama casada. Não foi o
primeiro duelo no que participei. Tenho fama de ser um homem sem
princípios e perigoso.
—E o diz com orgulho? —Jane arqueou as sobrancelhas.
51
Percebeu que o duque movia os lábios, mas não soube se devia ao
bom humor ou à ira.
—Tenho certos princípios —admitiu— Nunca me aproveitei de uma
criada. Nem tomei à força uma mulher sob meu próprio teto. Nem me
deitei com nenhuma contra sua vontade. Isso a tranquiliza?
—Por completo —respondeu ela— Já que acredito que me encaixo
nos três casos.
—Daria tudo —acrescentou o duque em voz baixa e com um deixe
tão perigoso como os rumores asseguravam que era— para vê-la com o
cabelo solto.

Os Liliputianos tinham rodeado o Homem Montanha e o tinham


imobilizado com grande ingenuidade no chão, lhe atando inclusive o
cabelo.
Jane Ingleby estava lendo As viagens de Gulliver, um livro ao que não
podia encontrar defeitos já que lhe tinha deixado à opção de escolher a
leitura. Tinha-a observado perambular pela biblioteca, de prateleira a
prateleira, durante meia hora, olhando e acariciando as capas dos livros
e tirando algum de vez em quando para abri-lo. Tratava os livros com
reverência, como se os adorasse. Ao final se voltou para ele com o
volume que estava lendo nas mãos.
—Este? —perguntou-lhe naquele momento— As viagens de
Gulliver? É um desses livros que sempre quis ler.
—Como quiser —respondeu ele, que deu de ombros.
Era perfeitamente capaz de ler em silêncio, mas não queria estar
sozinho. Nunca tinha desfrutado de sua própria companhia mais tempo
do necessário. Não, isso não era certo, corrigiu-se. Era algo que acontecia
há dez anos.

52
A irritação que sentia tinha ido aumentando com o passar do dia, à
medida que assimilava a realidade de sua condição. Era um homem
inquieto e vigoroso, que ocupava seus dias com um sem-fim de
atividades, a maioria das quais implicava exercício físico como a
equitação, o boxe, a esgrima ou… Sim, inclusive a dança, embora nunca
dançasse valsa, muito menos em uma instituição tão insípida como
Almack’s. Fazer amor também era, é obvio uma de suas ocupações
preferidas. Uma atividade que podia chegar a ser a mais vigorosa de
todas.
Mas durante três semanas, se acaso fosse capaz de suportar a tortura
todo esse tempo, teria que manter repouso, e só contaria com as visitas
de seus amigos e familiares. E com a presença da afetada e estirada Jane
Ingleby, é obvio. E com a dor.
Tinha tentado distrair-se despachando sua enfermeira e passando à
tarde com Michael Quincy. Essa manhã tinha chegado o relatório mensal
de Acton Park, sua propriedade rural. Embora sempre os examinasse
cuidadosamente, nunca os tinha analisado tão a fundo, nem tinha
prestado tanta atenção aos detalhes como fez esse dia.
No entanto, a noite prometia ser eterna. As noites eram o período do
dia no que mais se relacionava com outros, primeiro no teatro, na ópera,
em algum baile elegante ou em algum evento, e depois em algum de seus
clubes ou na cama, se a atividade em questão prometia ser o bastante
interessante para sacrificar uma noite com seus amigos.
—Quer que eu continue? —perguntou-lhe Jane Ingleby, que fez uma
pausa na leitura e levantou a vista do livro.
—Sim, sim. —Gesticulou com uma mão em direção à moça, que
devolveu o olhar ao livro e retomou a leitura.
Jocelyn percebeu que estava sentada de tal forma que suas costas não
tocavam o respaldo da poltrona. No entanto, parecia estar cômoda e sua
postura era muito elegante. Lia muito bem, nem muito rápido, nem
muito lento, e sua voz não era monótona, nem adoecia de um excesso de
53
dramatismo. Usava um tom modulado e tinha uma dicção deliciosa. A
sombra de suas pestanas caía sobre suas maçãs do rosto, já que tinha a
cabeça inclinada para ler o livro que tinha perto do colo. Seu pescoço era
comprido e elegante como o de um cisne.
E seu cabelo parecia puro ouro. Apesar do magnífico trabalho que
tinha realizado para que seu cabelo parecesse severo e insignificante, a
única maneira para que não chamasse a atenção seria que se raspasse a
cabeça. Essa mesma manhã tinha reparado na beleza de seu rosto e de
seus olhos. Mas foi essa tarde, ao tirar a touca, quando descobriu que a
realidade superava todas suas expectativas, já que Jane Ingleby era uma
mulher de beleza extraordinária.
Observou-a ler enquanto esfregava a coxa com a palma da mão, como
se dessa forma pudesse aliviar a dor que sentia na panturrilha. Era uma
criada, uma empregada a salário sob seu teto, e uma mulher virtuosa,
saltava à vista. Tal como ela mesma tinha assinalado com sua irritante
franqueza essa mesma manhã, estava triplamente protegida. Mas
adoraria ver seu cabelo sem as forquilhas, sem o coque e sem as tranças.
Tão pouco se importaria vê-la sem esse vestido tão barato, tão feio e
tão mal cortado, e sem qualquer objeto que levasse debaixo.
Suspirou e ela deixou de ler outra vez para olhá-lo.
—Gostaria de ir para a cama? —perguntou-lhe.
Jocelyn chegou à conclusão que essa mulher era capaz de endireitar
qualquer situação graças a sua prudência. Não havia nem rastro de
insinuação em seu rosto, apesar da escolha de palavras.
Jocelyn olhou o relógio em cima da lareira. Pelo amor de Deus, se não
eram nem as dez! A noite não tinha começado sequer.
—Senhorita Ingleby, já que nem Gulliver, nem você demonstraram
ser uma companhia estimulante —respondeu com crueldade—
suponho que essa é minha melhor opção. Pergunto-me se você reparou

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no baixo que tenho caído por culpa das circunstâncias.

Uma noite de sono sem o auxilio de algum licor, nem do láudano para
adormecê-lo não tinha melhorado o humor do Duque de Tresham, tal
como Jane descobriu à manhã seguinte. Quando chegou o médico,
chamaram-na para que subisse ao quarto de Sua graça, para o qual teve
que deixar o café da manhã pela metade na cozinha.
—Tomou seu tempo —comentou o duque a modo de saudação
quando entrou em seu quarto, depois de bater na porta apenas alguns
minutos depois que fossem buscá-la— Suponho que estava muito
ocupada desfrutando de minha casa e de minha comida.
—Já tinha acabado de tomar o café da manhã, obrigado, sua graça —
repôs ela— Bom dia, Dr. Raikes.
—Bom dia, senhorita —a saudou o médico, com uma educada
inclinação de cabeça.
—Tire essa monstruosidade! —ordenou-lhe o duque, assinalando
sua touca— Se volto a vê-la, asseguro-lhe que a faço migalhas com as
mãos.
Jane tirou a touca, dobrou-a cuidadosamente e a guardou no bolso de
seu vestido.
O duque se dirigiu ao médico:
—Foi à senhorita Ingleby quem trocou a bandagem —disse ao que
parecia em resposta a uma pergunta formulada antes que ela chegasse—
e quem limpou a ferida.
—Fez um trabalho admirável, senhorita —a elogiou o médico— Não
há indícios de infecção, nem de putrefação. Tem experiência no cuidado
dos doentes, equivoco-me?
—Mínima senhor —admitiu Jane.

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—Suponho que dava colheradas de purgante aos órfãos quando
sofriam de indigestão —murmurou o duque com voz irritada— E não
estou doente. Tenho um buraco na perna. Acredito que o exercício a
beneficiará mais que os mimos. Tenho a intenção de exercitá-la.
O Dr. Raikes pareceu horrorizado pela ideia.
—Com o devido respeito, sua graça —disse— advirto-lhe que não o
faça. Sofreu um grande dano nos músculos e nos tendões, que deve curar
antes de submetê-los ao uso mais suave.
O duque o pôs a girar.
—Acredito que deve uma desculpa ao doutor —atravessou Jane
nesse momento— Ele está se limitando a lhe oferecer sua opinião
profissional, para o qual o chamou e está pagando. As grosserias sobram.
Ambos os homens a olharam com idêntico assombro enquanto ela
observava com as mãos na cintura. E depois deu um pulo quando viu que
o Duque de Tresham apoiava a cabeça no travesseiro e punha-se a rir.
—Raikes —disse o duque— acredito que parte da bala da perna deve
ter se separado e a tenho alojada no cérebro. Pode acreditar que passei
um dia inteiro sofrendo esta impertinência sem lhe ter posto fim?
Era óbvio que o doutor não acreditava.
—Senhorita —respondeu o médico— asseguro-lhe que Sua graça
não me deve desculpa alguma. Terá que compreender a frustração que
lhe provoca a ferida.
Jane não estava pronta para resolver a questão por qualquer meio.
—Isso não é desculpa para que recorra ao insulto —sentenciou—
Muito menos para seus subordinados.
—Raikes —disse o duque, irritado— se pudesse, fincaria um joelho
no chão humildemente arrependido por minhas palavras. Mas devo
evitar semelhantes esforços, não é?

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—Certamente, sua graça. —O médico, que tinha acabado de enfaixar
de novo a perna do duque, parecia bastante sobressaltado.
E por sua culpa, pensou Jane. Tudo se devia à educação que tinha
recebido em um lar civilizado, onde se tratava à servidão como pessoas
que eram e onde se praticava a amabilidade para os outros. Realmente
devia aprender a morder a língua se queria contar com o salário dessas
três semanas, que a ajudaria a enfrentar o incerto futuro que a esperaria
depois.
O Duque de Tresham cedeu a ser levado nos braços ao primeiro
andar, embora não antes que tivesse despachado Jane com instruções de
manter-se fora de sua vista até que voltasse a chamá-la. A ordem chegou
meia hora depois. Esse dia estava no salão, acomodado em um sofá.
—Minha cabeça parece ter recuperado seu tamanho normal esta
manhã —lhe disse— A alegrará saber que não será necessário que
empregue seus numerosos talentos para me entreter. Dei permissão a
Hawkins para que deixe entrar qualquer visitante que bata na porta,
dentro do razoável,é claro. Proibi-lhe categoricamente admitir qualquer
costureira que se apresente na porta ou alguém de sua índole.
A simples ideia de receber visitas fez que a Jane encolhesse o
estômago.
—Sua graça partirei sempre que chegar alguém —disse.
—Ah, sim? —O duque a olhou com os olhos entrecerrados— Por quê?
—Suponho que as visitas serão do gênero masculino em sua maioria
—respondeu ela— Minha presença seria um estorvo que inibiria a
conversa.
O pronto sorriso do duque a surpreendeu, já que o transformou em
um cavalheiro de expressão travessa e lhe diminuiu anos. E o fez parecer
quase bonito.
—Senhorita Ingleby —disse— acredito que é um pouco parva.

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—Sim, sua graça —admitiu— sou.
—Vá à biblioteca em busca da almofada —lhe ordenou— E coloque
isso sob minha perna.
—Deixe-me dizer que de vez em quando poderia pedir as coisas, por
favor —replicou enquanto caminhava para a porta.
—Poderia —repôs ele— Ou não. Estou na posição de dar ordens ao
prazer. Por que fingir ser pedidos simples?
—Talvez para demonstrar um pouco de respeito—respondeu,
voltando-se para falar— Talvez por consideração para os sentimentos
de outros. A maioria das pessoas responde melhor aos pedidos que às
ordens.
—No entanto —replicou o duque em voz baixa— parece que você
está a ponto de cumprir minha ordem, senhorita Ingleby.
—O faço com um coração rebelde —repôs, e partiu da estadia antes
que ele pudesse dizer a última palavra.
Voltou para o salão após alguns minutos levando a almofada,
atravessou a estadia em silêncio e, sem olhá-lo sequer, a colocou com
cuidado sob sua perna. Essa manhã no quarto percebeu que o inchaço
diminuiu. Mas também tinha notado seu costume de esfregar a coxa e
apertar os dentes de vez em quando,ambos sinais da intensa dor que
sofria. Claro que, sendo um homem orgulhoso, era de esperar sua
relutância a admiti-lo.
—Se não fosse pela contração de seus lábios —comentou o duque—
não se nota que você está zangada comigo, senhorita Ingleby. Esperava
que ao menos me levantasse a perna sem muitos olhares e a deixasse
cair sobre a almofada. Estava preparado para lutar com esse
desdobramento temperamental. De modo que me privou a
oportunidade de uma boa reprimenda tal como o ensaiei.
—Sua graça, estou a seu serviço como enfermeira —recordou Jane—
Estou aqui para reconfortá-lo, não para lhe fazer danos a fim de me
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divertir. Além disso, em caso de que algo me indigne, usarei as palavras
para fazê-lo saber. Não preciso recorrer à violência.
Uma mentira tão grande como uma catedral, pensou Jane enquanto
falava. Por um momento se sentiu enjoada e a ponto de vomitar, e o
estômago se contraiu com a já conhecida sensação de pânico.
—Senhorita Ingleby —ouviu que dizia o Duque de Tresham com
docilidade— obrigado por me trazer à almofada.
Há. Isso a deixou sem palavras.
—Acredito que estive a ponto de lhe arrancar um sorriso —
comentou o duque— Sorri você alguma vez?
—Quando algo me faz graça ou quando estou contente, sua graça —
respondeu.
—E em minha companhia não acontece nem uma coisa nem outra —
repôs ele— Devo estar perdendo o brilho. Meu talento para entreter e
agradar as mulheres é amplamente reconhecido.
Jane tinha percebido sua masculinidade de uma forma puramente
acadêmica até que o duque pronunciou essas palavras e a olhou, como
já era habitual, com os olhos entrecerrados. Não obstante, o que sentia
de repente tinha muito pouco de acadêmico: uma onda de desejo físico,
desconhecido até então, com uns alarmantes efeitos em seus seios, na
parte baixa do abdômen e entre as coxas.
—Não duvido —replicou com impertinência— Mas suponho que este
mês já gastou todo seu arsenal de truques sedutores com Lady Oliver.
—Jane, Jane… —o ouviu dizer em voz baixa— Detecto certo rancor
em seu comentário —acrescentou devagar— Vá em busca de Quincy e
diga a ele que traga o correio. Por favor —acrescentou enquanto ela
caminhava para a porta.
Ela voltou à cabeça e lhe sorriu.
—Ah! —exclamou o duque.
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Capítulo 5

Angeline retornou no final da manhã, acompanhada nessa ocasião


por Heyward, que aceitou mostrar-se interessado pela saúde de seu
cunhado. Ferdinand chegou antes que eles partissem, mais para falar de
si mesmo que para comprovar como seguia a recuperação de seu irmão.
Tinha acabado envolto em uma aposta que consistia em conduzir sua
carruagem até Brighton contra Lorde Berriwether, cuja habilidade com
as rédeas era inigualável, exceto por Jocelyn.
—Você vai perder Ferdinand —disse Heyward sem rodeios.
—Você vai partir o pescoço, Ferdie —acrescentou Angeline— e meus
nervos nunca se recuperarão de semelhante golpe depois do de
Tresham. Mas estará muito bonito voando sobre o caminho tão rápido
como o vento. Vai solicitar uma jaqueta nova para a ocasião?
—O segredo está em dar rédea solta aos cavalos cada vez que tenha
um trecho reto —explicou Jocelyn— mas não se deixar levar pela
emoção, nem correr riscos desnecessários em curvas fechadas, como se
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fosse um charlatão. E todo mundo sabe que adoece de ambas as coisas,
Ferdinand. Mas será melhor que ganhe agora que se comprometeu à
corrida. Nunca alardeie de nada, nem lance um desafio que seja incapaz
de levar a cabo. Sobre tudo se for um Dudley. Certamente estava
blefando.
—Estava pensando que poderia me deixar usar seu novo tílburi,
Tresham —replicou seu irmão com despreocupação.
—Não —se negou Jocelyn— Nada disso. Surpreende-me que tenha
esbanjado fôlego em perguntá-lo, a menos que acredite que o buraco da
perna me abrandou os miolos.
—Somos irmãos —assinalou Ferdinand.
—Mas a este irmão o cérebro funciona e tem bastante bom senso —
repôs Jocelyn— As rodas de seu tílburi eram bastante redondas a última
vez que as vi. É a pessoa que leva as rédeas e não o veículo o que decanta
o resultado de uma corrida, Ferdinand. Quando será?
—Dentro de duas semanas —respondeu seu irmão.
Maldição! Isso queria dizer que não poderia presenciar nem o
começo, pensou Jocelyn. Não se obedecesse às ordens de Raikes, o ditoso
médico charlatão. No entanto, se seguia preso a um sofá duas semanas
mais, sua prudência estaria em grave perigo.
Jane Ingleby, que guardava silêncio um tanto afastada, leu seu
pensamento, não lhe cabia a menor duvida. Bastou um olhar para
comprovar que tinha os lábios apertados em sinal de desaprovação. O
que tinha pensado fazer? Atá-lo até o último dia dessas três semanas?
Jocelyn tinha recusado o pedido de Jane para retirar-se quando
chegaram os familiares. Voltou a recusá-lo quando anunciaram mais
visitas, enquanto ela aceitava uma a uma as cartas que ia dando depois
de lê-las a fim de as ordenar em três pilhas segundo suas indicações:
convites que devia recusar, convites que devia aceitar e cartas que

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necessitavam que as ditasse a seu secretário. Os convites, exceto aqueles
para eventos não muito próximos, é obvio, tinham que ser recusados.
—Será melhor eu ir, sua graça —disse ela, que ficou em pé depois que
Hawkins, que parecia controlar muito melhor seus domínios esse dia no
referente às visitas, aparecesse para anunciar a chegada de vários de
seus amigos.
—Não —replicou ele, com as sobrancelhas arqueadas— Vai ficar
aqui.
—Por favor, sua graça —suplicou ela— não posso lhe servir de ajuda
enquanto tem companhia.
Jane parecia, pensou ele, quase assustada. Acaso acreditava que seus
amigos e ele fossem participar de uma orgia com ela? Certamente a teria
despachado por iniciativa própria, supôs, se não houvesse dito que
pretendia partir. Nesse momento, por pura teimosia, negava-se a deixá-
la ir.
—Talvez toda esta excitação me provoque um desmaio e necessite os
cuidados de minha enfermeira, senhorita Ingleby —repôs.
Sem dúvida alguma Jane teria discutido com ele se não fosse porque
a porta se abriu para que entrassem as visitas. Não obstante, afastou-se
até um canto mais afastado da estadia, onde seguia de pé quando
ocorreu a Jocelyn olhar após alguns minutos. Estava conseguindo com
muito êxito fundir-se com a mobília. A touca voltava a adornar sua
cabeça, cobrindo todo seu cabelo.
Seus amigos mais íntimos tinham ido em massa: Conan Brougham,
Pottier, Kimble, Thomas Garrick e Boris Tuttleford, acompanhados por
seu bom humor. Produziu-se um grande escândalo enquanto o
saudavam, perguntavam por cortesia por sua saúde, exclamavam ao ver
sua bata e as pantufas, admiravam a bandagem e procuravam assentos.
—Onde está o clarete, Tresham? —perguntou Garrick, que deu uma
olhada a seu redor.
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—A senhorita Ingleby irá buscá-lo —respondeu Jocelyn. Nesse
preciso momento a procurou pela estadia e a encontrou no canto—
Cavalheiros, minha enfermeira, que me faz recados e que me provoca
desventuras e resolve isso ao mesmo tempo. Senhorita Ingleby, diga a
Hawkins que nos tragam clarete e brandi, e que um criado venha com
uma bandeja com as taças. Por favor.
—Por favor, Tresh? —Kimble se pôs a rir— Uma palavra nova em seu
vocabulário?
—Obriga-me a dizê-lo —respondeu Jocelyn com suavidade enquanto
via como Jane saía da estadia com o rosto voltado— Me repreende se me
esqueço.
Seus amigos puseram-se a rir de boa vontade.
—Há! —exclamou Tuttleford quando controlou as risadas—
Tresham, não é quão mesma gritou justo quando estava acovardando
Oliver ao apontá-lo diretamente à cabeça?
—Contratou-a como enfermeira —comentou Conan com um
sorriso— E ameaçou fazendo que se arrependa de ter nascido ou algo
parecido. Arrependeu-se, Tresham? Ou se arrependeu você?
Jocelyn brincou com a alça de seu monóculo e franziu os lábios.
—Você vê —começou— tem o irritante costume de replicar, e eu
tenho a irritante necessidade de estimulação mental, já que estou
fechado e imobilizado, e o estarei durante algumas semanas mais ou
menos.
—Estimulação mental, que bom! —Pottier golpeou a coxa e pôs-se a
rir, e o resto seguiu seu exemplo— Desde quando necessita uma mulher
para que o estimule mentalmente, Tresham?
—Por Deus! —Kimble balançou seu monóculo pela fita— Custa
acreditar, não é? De que outra forma o estimula, Tresh? Acredito que
essa é a questão. Vamos, vamos, chegou o momento de confessar.

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—Tem uma perna imobilizada. —Tuttleford se pôs a rir de novo—
Mas aposto o que quiserem que isso não lhe supõe impedimento
algum,não é, Tresham? Ao menos não no tema da estimulação. Gosta de
montar? E fazer todo o trabalho para que você possa ficar muito ainda?
As gargalhadas tinham uma aparência muito obscena nesse
momento. Todos se mostravam muito espirituosos… E aguçando o
engenho por momentos. Jocelyn levou o monóculo ao olho.
—Poderia mencionar como quem não quer a coisa, que a mulher em
questão trabalha para mim e que se encontra sob meu teto, Tuttleford
—comentou em voz baixa— Até eu tenho limites.
—Acredito queridos amigos —disse Conan Brougham, já que era
mais perspicaz que os outros— que ao infame duque não lhe faz graça.
O que tinha sido um engano percebeu Jocelyn em seguida, quando a
porta se abriu e Jane retornou à estadia levando dois licoreiros em uma
bandeja. Um criado a seguia com a bandeja das taças. Ela se converteu, é
obvio no centro da atenção de todos, um fato que a ele deveria ter feito
graça ao mesmo tempo em que a desconcertava. No entanto, só sentia
irritação ao pensar que qualquer de seus amigos o acreditasse capaz,
embora fosse por um instante, de ter o péssimo gosto de deitar-se com
sua própria criada.
Jane poderia ter tentado escapar com o criado, mas não o fez. Em
troca, retirou-se ao canto com a vista fixa no chão. Levava a touca ainda
mais imersa sobre a testa.
O Visconde de Kimble assobiou.
—Uma beleza oculta, Tresh? —murmurou, baixo demais para que ela
pudesse escutá-lo.
Só Kimble podia ver além de seu disfarce. Kimble, com esse ar de
Adônis loiro, era um Dom Juan, é obvio. Um entendido à altura do
próprio Jocelyn.

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—Mas é uma criada —replicou ele— sob o amparo de minha casa,
Kimble.
Seu amigo o entendeu. Kimble sorriu e piscou um olho. No entanto,
não faria propostas indecentes a Jane Ingleby. Jocelyn se perguntou por
que se importava.
A conversa logo se desviou para outros temas, dado que dificilmente
podiam falar de Jane em sua presença. Mas a ninguém pareceu
inapropriado discutir diante dela quão contente parecia estar Lady
Oliver por sua notoriedade a noite anterior no teatro, rodeada por uma
corte de admiradores; a presença de seus três irmãos e de seu marido
no camarote; a expressa determinação de ditos irmãos de desafiar a
duelo o Duque de Tresham assim que pudesse ficar em pé por ter
manchado a reputação de sua irmã; os extremos tão ridículos aos que
Hailsham pensava chegar para demonstrar que seu primogênito, de
nove anos, que se corria o rumor que era atrasado, era um bastardo, de
modo que pudesse declarar seu segundo filho, e seu preferido, como
herdeiro; e, finalmente, os últimos e sensacionais detalhes do escândalo
da Cornualha.
—Agora corre o rumor de que Jardine está morto —afirmou
Brougham a esse respeito— Que jamais recuperou a consciência depois
do ataque.
—Pois teve que ser um senhor golpe na cabeça —acrescentou
Kimble— Os rumores mais desatinados insistem em que podiam ver os
miolos através do cabelo e o sangue. Os salões londrinos estão cheios de
mulheres desmaiadas estes dias. O que alegra a vida aos que estamos o
bastante perto delas quando o fazem. Uma pena que esteja incapacitado,
Tresh. —pôs-se a rir.
—Se não me falhara memória —disse Pottier— Jardine não tinha
muito cabelo. Nem tão pouco muitos miolos.
—Nunca recuperou a consciência. —Jocelyn, em sua tentativa para
trocar de postura para aliviar as cãibras, atirou sem querer a almofada
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ao chão— Senhorita Ingleby, venha colocá-la no lugar certo, se quiser.
Nunca recuperou a consciência e ainda, segundo alguns rumores, foi
capaz de dar uma versão detalhada do ataque e de sua heroica e
impetuosa defesa. Foi capaz de identificar seu atacante e de explicar o
motivo de ele abrir sua cabeça. Que inconsciência mais estranha.
Jane se inclinou sobre ele e colocou a almofada na posição certa,
levantou a perna esquerda com a delicadeza habitual e ajustou a parte
superior da bandagem, que tinha se dobrado para dentro. Mas, tinha os
lábios brancos, conforme comprovou ao olhá-la.
Quase se arrependia de ter insistido em que ficasse na estadia. Era
evidente que se sentia incômoda acompanhada por tantos homens. E
sem dúvida alguma também a incomodava sua conversa. Por mais
estoica que se mostrasse com sua ferida, cabia à possibilidade de que
todo esse bate-papo sobre cabelo ensanguentado e miolos
esparramados fosse muito para ela.
—Pode ser que tenham exagerado ao dizer que ele morreu —
comentou Garrick com cinismo ao mesmo tempo em que se levantava
para se servir de outra taça— É possível que lhe dê vergonha deixar-se
ver em público depois de admitir que o tivesse derrotado uma
trombadinha.
—Não tinha uma pistola em cada mão? —perguntou Jocelyn— É
obvio isso o diz o homem que nunca recuperou a consciência desde que
essa trombadinha o golpeou com uma das pistolas… Mas basta de
tolices. Em que disparate se colocou Ferdinand desta vez? Uma corrida
de carruagem contra Berriwether nada menos! Quem lançou o desafio?
—Seu irmão —respondeu Conan— quando Berriwether começou a
dizer que teria que abandonar todos seus antigos esportes agora que te
veria obrigado a se arrastar com uma perna aleijada. Ele proclamou que
o sobrenome Dudley jamais voltaria a pronunciar-se com respeito e
admiração.

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—Diante de Ferdinand? —Jocelyn meneou a cabeça— Não foi muito
sensato.
—Não, não foi diante de Ferdinand —precisou seu amigo— Mas seu
irmão se inteirou, é obvio, e entrou no White’s jogando fumaça pelas
orelhas. Por um momento temi que atravessasse o rosto de Berriwether
com uma luva, mas se limitou a lhe perguntar com absoluta civilidade
qual acreditava Berriwether que era sua melhor habilidade, além das
armas. É obvio, disse que sua destreza com as rédeas. E nesse momento
chegou o desafio.
—E quanto apostou Ferdinand pelo resultado? —perguntou Jocelyn.
Garrick foi o encarregado de responder:
—Mil guinéus —disse.
—Mmm. —Jocelyn assentiu com a cabeça muito devagar— A honra
familiar vale mil guinéus. Bem, bem.
Jane Ingleby já não estava de pé no canto, percebeu de repente.
Estava sentada muito rígida em um banquinho, de costas à estadia.
Não se moveu até que seus amigos partiram mais de uma hora
depois.

—Me dê essa coisa! —O Duque de Tresham tinha uma mão estendida


com gesto imperioso.
Jane, de pé junto ao sofá, onde ele tinha ordenado colocar-se ao sair
às visitas pela porta do salão, desatou as fitas de debaixo do queixo e
tirou a espantosa touca. Mas a sustentou entre suas mãos.
—O que pensa fazer com ela? —perguntou.
—O que penso fazer —respondeu ele irritado— é mandá-la em busca
das tesouras mais afiadas que possa lhe dar a governanta. E depois vou

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a obrigar olhar enquanto faço farrapos a essa atrocidade. Não, corrijo-
me. Vou obrigar que você a faça farrapos.
—É minha —lhe recordou ela— A comprei. Não tem o menor direito
de destruir minha propriedade.
—Bobagens! —replicou ele.
E nesse momento, para sua mais absoluta consternação, Jane
compreendeu por que o duque se converteu em uma mancha imprecisa
diante de seus olhos. Lhe escapou um soluço justo quando se dava conta
de que tinha os olhos cheios de lágrimas.
—Pelo amor de Deus! —exclamou ele, espantado— Tanto significa
para você essa ditosa touca?
—É minha! —repetiu com veemência, mas também com um
lamentável tremor na voz— A comprei, junto com outra, há alguns dias.
Custaram-me tudo o que tinha. Não vou permitir que as destroce para
divertir-se. É você um déspota insensível.
Apesar da raiva e alarde de suas palavras, estava chorando,
soluçando e soluçando de forma espantosa. Secou as bochechas com a
touca e o fulminou com o olhar.
O duque a olhou em silêncio um bom momento.
—Não tem nada a ver com a touca, não é? —perguntou-lhe ao final—
É porque a obriguei a permanecer na estadia com uma horda de visitas
masculinas. Ofendi sua sensibilidade, Jane —disse— Suponho que no
orfanato havia segregação de sexos, não é?
—Sim —respondeu.
—Estou cansado —soltou ele de repente— Acredito que tentarei
dormir um pouco. Não vou requerer sua presença aqui para que escute
meus roncos. Vá para seu quarto e fique ali até a hora do jantar —
continuou, retomando o tratamento formal— Apresente-se ante a mim
esta noite.
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—Sim, sua graça —disse Jane, virando-se. Não podia agradecer
embora soubesse que era seu modo de ser amável com ela. Não
acreditava que o duque queria dormir. Em realidade, percebeu sua
necessidade de estar sozinha.
—Senhorita Ingleby —disse ele quando chegou à porta, embora não
se voltou para olhá-lo— Não volte a me provocar. Não levará touca
enquanto esteja a meu serviço.
Jane saiu em silêncio e correu escada acima até seu quarto, onde se
alegrou de poder fechar a porta ao resto do mundo para jogar-se sobre
o colchão. Ainda segurava a touca com uma mão.
Estava morto.
Sidney Jardine tinha morrido e não havia uma só pessoa sobre a face
da terra que fosse acreditar que ela não o tinha assassinado.
Agarrou a colcha com a mão livre e pressionou o rosto no colchão.
Estava morto!
Tinha sido detestável e ela o odiava mais do que nunca tinha
acreditado possível. No entanto, não tinha desejado sua morte. Nem
sequer uma desgraça. Tinha sido um ato reflexo agarrar esse pesado
livro e um ato instintivo, levada por seu desejo de sobrevivência, o
golpear na cabeça com ele. Só que ela tinha feito oscilar o livro em vez
de levantá-lo para golpeá-lo de acima porque pesava muito. E assim foi
como o golpeou com a ponta.
Mas Sidney não caiu ao chão. Levou uma mão à ferida, olhou seus
dedos ensanguentados e, estalando em gargalhadas, chamou-a bruxa e
avançou para ela. Mas conseguiu esquivá-lo. Então ele investiu contra
ela, e o movimento fez com que perdesse o equilíbrio, de modo que caiu
de bruços sobre a lareira de mármore e se ouviu um espantoso rangido
quando golpeou a testa. Ela congelou.
Houve várias testemunhas do sórdido incidente, mas não podia
esperar que nenhum deles contasse a verdade sobre o acontecido. Não
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cabia a menor duvida de que todos estariam encantados de perjurar que
a tinham surpreendido roubando. O bracelete de ouro com incrustações
de pedras preciosas que poderia indicar que estavam certos ainda se
encontrava no fundo de sua bolsa de viagem. Todas essas testemunhas
eram amigos de Sidney. Nenhum era amigo dela. Charles (Sr. Charles
Fortescue, seu vizinho, seu amigo e seu pretendente) não se encontrava
em casa. Embora tão pouco o teriam convidado a essa festa em
particular.
Sidney não tinha morrido após essa queda, embora todos os
presentes na estadia assim acreditaram. Ela foi quem se aproximou dele
com as pernas trementes e o estômago revolto. O pulso pulsava com
força. De modo que chamou vários criados para que o levassem a seu
quarto, onde ela mesma o atendeu e lavou as feridas até a chegada do
médico, quem chamaram por ordem dela.
No entanto, tinha permanecido inconsciente todo o momento. E tão
branco que tinha tido que comprovar seu pulso de novo com dedos
trementes e gelados.
—Lembre-se que os assassinos vão à forca —havia dito alguém da
porta do quarto, com um deixe zombador.
—Penduram no pescoço até morrer —tinha acrescentado outra voz
com alegria mórbida.
Fugiu durante a noite, levando unicamente os pertences necessários
para poder chegar a Londres na carruagem dos correios… E o bracelete,
é obvio, assim como o dinheiro que tinha pegado do escritório do conde.
Fugiu não porque acreditasse que Sidney ia morrer e a acusariam de seu
assassinato. Fugiu por que… Enfim, por um sem-fim de razões.

Havia se sentido muito sozinha. O conde, um primo de seu pai e seu


sucessor, e a condessa partiram esse fim de semana para uma festa
campestre. De todas as maneiras não lhe tinham muito apreço. Não
ficava ninguém em Candleford Abbey a quem recorrer em caso de
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apuros. E Charles não estava em casa. Partiu para fazer uma visita
prolongada a sua irmã mais velha, que vivia em Somersetshire.
Jane fugiu para Londres. Ao princípio não lhe ocorreu esconder-se, só
ansiava encontrar alguém que fosse pormenorizado com sua situação.
Seu destino era a casa de Lady Webb em Portland Agrada. Lady Webb
era a melhor amiga de sua mãe desde que foram apresentadas juntas em
sociedade durante sua juventude. A dama era uma assídua visitante em
Candleford Abbey. E, além disso, era sua madrinha. Jane a chamava tia
Harriet. No entanto, Lady Webb não se encontrava em casa e não se
esperava uma volta iminente.
Levava mais de três semanas quase paralisada pelo pânico, com
medo que Sidney tivesse morrido, com medo que a acusassem de
assassinato, com medo que a tachassem de ladra, com medo que os
agentes da lei fossem procurá-la. Saberiam, é obvio que tinha partido a
Londres. Não tinha feito nada para ocultar seu rastro.
O pior de tudo durante todas essas semanas era não saber nada.
Supunha quase um alívio sabê-lo por fim.
Saber que Sidney estava morto.
Que a história que circulava afirmava que o tinha matado depois que
a surpreendeu roubando na casa.
Que era considerada uma assassina.
Não, é obvio que não era um alívio.
Sentou-se de repente na cama e esfregou o rosto com as mãos. Seus
piores pesadelos se converteram em realidade. Sua única esperança
tinha sido desaparecer entre as hordas anônimas de londrinos. E esse
plano foi arruinado quando cometeu a estupidez de interferir nesse
duelo no Hyde Park. O que podia importar a ela que esses dois
cavalheiros não soubessem o que fazer com suas vidas além de explodir
os miolos?

71
Assim ali estava, em Mayfair, em uma das grandiosas mansões de
Grosvenor Square, como uma espécie de enfermeira ou dama de
companhia de um homem que obtinha algum tipo de satisfação ao
mostrar-lhe a todas suas amizades. Nenhum de seus amigos a conhecia
é obvio. Tinha vivido encerrada na Cornualha. Era bem possível que
nenhuma das visitas que passassem pela Dudley House nas próximas
semanas a reconhecesse. Mas não estava convencida.
Certamente era só uma questão de tempo…
Ficou em pé e atravessou a estadia para chegar até a pia com as
pernas trêmulas. Por sorte havia água no lavatório. Jogou-a na bacia e
pegou um pouco com ambas as mãos antes de baixar a cabeça.
O que devia fazer, o que deveria ter feito ao princípio, era entregar-
se às autoridades e confiar na justiça. Mas quais eram as autoridades? E
aonde devia dirigir-se? Além disso, ao fugir e esconder-se durante mais
de três semanas só tinha conseguido parecer culpada.
Ela saberia o que devia fazer e a quem dirigir-se com sua
história.Referia-se ao Duque de Tresham, é obvio. Podia contar tudo a
ele e deixar que desse o seguinte passo. No entanto, ao pensar nessa
expressão desanimada e cruel e em seu desdém por suas emoções sentiu
um calafrio.
A enforcariam? Poderiam pendurá-la por assassinato? Ou por roubo?
Não tinha a menor ideia. De todas as formas, teve que se agarrar a pia de
repente para evitar cambalear.
Como podia confiar na verdade quando todas as provas e todas as
testemunhas estariam contra?
Um dos cavalheiros que tinha ido de visita disse que Sidney talvez
não estivesse morto. Jane sabia muito bem como podiam os interpretar
maus rumores e distorcer a verdade. Acaso não diziam que ela enfrentou
Sidney com uma pistola em cada mão? Talvez os rumores sobre a morte
de Sidney se estenderam sozinhos porque dito final era o esperado para
as pessoas que gostavam de acreditar no pior.
72
Talvez só seguisse inconsciente.
Talvez estivesse se recuperando adequadamente.
Talvez já se recuperou de tudo.
E talvez estivesse morto…
Jane secou as acaloradas bochechas com uma toalha e se sentou na
dura cadeira situada junto a pia. Esperaria até descobrir a verdade,
decidiu com os olhos fixos nas mãos que tinha sobre o colo… E que
seguiam tremendo. Quando o fizesse, determinaria o que fazer.
Estariam procurando-a?Perguntou-se. Levou os dedos aos lábios e
fechou os olhos. No caso de estarem, devia permanecer longe das
próximas visitas. Devia permanecer fechada em casa todo o possível.
Quisera pudesse continuar levando suas toucas…
Nunca tinha sido covarde. Nunca tinha se escondido de seus
problemas nem havia se encolhido em um canto. Justamente o contrário.
Mas de repente se converteu nisso, em uma covarde.
É obvio nunca antes a tinham acusado de assassinato.

73
Capítulo 6

Mick Boden, o investigador da Bow Street, encontrava-se novamente


no hotel Pulteney, na sala de estar da suíte do Conde de Durbury, uma
semana depois de sua primeira visita. Não tinha notícias que informar
exceto o fato de não ter descoberto o menor rastro de Lady Sara
Illingsworth.
Um fracasso que não o agradava. Aborrecia esse tipo de trabalho. Se
tivessem reclamado seus serviços para que fosse a Cornualha e
investigasse a tentativa de assassinato de Sidney Jardine, poderia ter-se
empregado a fundo a fim de identificar e prender o assassino. No
entanto, não havia mistério algum nesse crime. A dama estava roubando
na residência do conde aproveitando a ausência deste quando Jardine a
descobriu. Ela o golpeou na cabeça com algum objeto pesado, sem
dúvida surpreendendo-o porquê eram conhecidos e possivelmente não
imaginava o que se propunha, e depois partiu com os objetos roubados.
O valete de Jardine tinha presenciado a cena. Tratava-se de um indivíduo
covarde na opinião de Mick, já que o ladrão era uma moça que tinha algo
tão letal como um objeto pesado a modo de arma com o que tentar
golpeá-lo.
—Se estiver em Londres, a encontraremos senhor —disse nesse
instante.
—Se estiver em Londres? Se estiver em Londres!? —O conde soltava
fumaça pelas orelhas— Ouça você, é obvio que está em Londres. Onde
vai estar se não?
Mick poderia ter enumerado uma lista de possíveis lugares sem ter
que quebrar muito os miolos, mas se limitou a puxar do lóbulo da orelha.
—Possivelmente em nenhum lado —admitiu— E se não partiu da
cidade há algumas semanas, agora resultará mais difícil fazê-lo, senhor.
Visitamos todas as casas de correio e interrogamos todos os cocheiros
da cidade. Ninguém recorda uma mulher que se encaixe nessa descrição
74
exceto o homem que a trouxe para Londres. Neste momento estamos
vigiando ditos estabelecimentos.
—Admirável —comentou sua senhoria com sarcasmo— E o que está
fazendo para localizá-la na cidade? Uma semana deveria ter bastado e
inclusive deveria ter demasiado tempo embora estivesse coçando a
barriga os primeiros cinco ou seis dias.
—Não voltou para a residência de Lady Webb, senhor —respondeu
Mick— O comprovamos. Descobrimos o hotel onde se alojou as duas
primeiras noites, mas ninguém sabe que caminho tomou depois.
Conforme você mesmo afirmou, não conhece ninguém na cidade. No
entanto, se levar consigo uma fortuna, o normal seria que procurasse
outro hotel ou talvez alguns aposentos de aluguel em um bairro
respeitável. Por agora não encontramos o menor rastro dela.
—Suponho que não lhe ocorreu que queira evitar chamar a atenção
gastando uma fortuna —sugeriu o conde, que se aproximou da janela e
começou a tamborilar com os dedos sobre o batente— não é?
A Mick Boden parecia estranho que alguém roubasse uma fortuna e
depois não a gastasse. Por que ia a jovem roubar qualquer coisa se, já
que era a filha do falecido conde e família do atual, vivia em Candleford
Abbey rodeada de luxos? Além disso, se tinha vinte anos e era tão bonita
como o conde afirmava, não estaria desejando comprometer-se com um
jovem rico para melhorar assim sua situação?
Mick pensou que ali havia algo suspeito, e não era a primeira vez que
chegava a essa conclusão.
—Refere-se a que possivelmente tenha procurado emprego? —
perguntou ao conde.
—Me passou pela cabeça, sim. —Sua senhoria seguia tamborilando
com os dedos enquanto olhava pela janela com o cenho franzido.
Quanto dinheiro teria roubado a jovem? Perguntou-se Mick. A
quantidade devia ser considerável se tinha se visto obrigada a assassinar
75
para consegui-la. No entanto, também estavam as joias, e tinha chegado
o momento de perseguir essa linha de investigação para localizá-la.
—Meus homens e eu começaremos a perguntar nas agências de
emprego, senhor — assegurou— Será o primeiro passo. Também
falaremos com os credores e os joalheiros que poderiam ter comprado
as joias. Necessitarei uma descrição de todas as peças, senhor.
—Não perca tempo —replicou o conde com voz gélida— Não
empenhará as joias. Tente nas agências. Fale com qualquer que tenha
podido contratá-la. Encontre-a.
—Certamente que não deixaremos solta uma assassina que ponha
em perigo a vida de quem a tenha contratado —conveio Mick— Lhe
ocorre algum nome falso que possa estar usando?
O conde se voltou para olhar o investigador da Bow Street.
—Um nome falso?
—Na residência de Lady Webb usou o verdadeiro — explicou Mick—
e também o fez no hotel, durante as duas primeiras noites. Depois
desapareceu. Ocorreu-me que a jovem chegou à conclusão de que é mais
sensato ocultar sua identidade. Que nome poderia usar além do
habitual? Sabe você se tem outro? Conhece o sobrenome de solteira de
sua mãe? Ou o nome de sua donzela? O de sua antiga babá? Qualquer que
possa ter usado nas agências de emprego, em caso de não ter registro de
nenhuma Sara Illingsworth.
—Seus pais sempre a chamavam Jane. —O conde coçou a cabeça e
franziu o cenho— Me deixe pensar. Sua mãe se chamava Donningsford.
Sua donzela…
Mick anotou todos os nomes que eram mais fáceis.
—A encontraremos, senhor —assegurou ao Conde de Durbury
novamente a modo de despedida, uns minutos depois.

76
No entanto, o assunto era muito estranho. O único filho do conde
estava em coma, às portas da morte ou de uma invalidez. Talvez
estivesse morto a essa altura. Não obstante, seu pai o tinha abandonado
para procurar à mulher que tinha tentado matá-lo. E não tinha saído da
suíte do hotel nenhuma só vez, até onde Mick sabia. A suposta assassina
tinha roubado uma fortuna, mas o conde suspeitava que talvez estivesse
procurando trabalho. Tinha roubado joias, mas sua senhoria se
mostrava relutante em descrevê-las ou a busca-las nas casas de
empenho.
Sim, havia algo suspeito.

Depois de passar uma semana indo da cama ao sofá do salão ou da


cama ao divã da biblioteca, Jocelyn adoecia de um aborrecimento mortal.
Um eufemismo como o topo de um pinheiro. Seus amigos o visitavam
com frequência, todos os dias, de fato, elevavam as últimas notícias e
fofocas. Seu irmão não falava de outra coisa que não fosse à corrida de
tílburis em que Jocelyn teria pagado uma fortuna para participar. Sua
irmã também foi vê-lo, mas só falava de chapéus e de seus nervos, ambos
os temas muito emocionantes. Seu cunhado o visitou em algumas
ocasiões e trataram temas políticos.
Os dias eram longos, as tardes mais longas ainda e as noites,
intermináveis.
Jane Ingleby se converteu em sua constante companhia. Um fato tão
gracioso como irritante. Começava a ver-se como um ancião com uma
dama de companhia contratada para fazer recados e evitar a solidão.
Jane trocava sua bandagem uma vez ao dia. Em uma ocasião lhe
massageou a coxa, um experimento que Jocelyn não quis repetir apesar
de encontrá-lo muito relaxante. Porque também resultou incrivelmente
erótico, daí que se burlasse dela por ter se ruborizado como uma
dissimulada e que lhe ordenasse que se sentasse. Além disso, fazia
recados. Organizava o correio enquanto ele lia as cartas e o devolvia a
77
Quincy com as instruções precisas. Ela também lia e jogava cartas com
ele.
Uma noite Jocelyn convidou Quincy a uma partida de xadrez e a
obrigou a se sentar para presenciá-la. Jogar xadrez com Michael resultou
ser tão emocionante como jogar críquete com um menino de três anos.
Embora seu secretário fosse um jogador competente, não era necessário
grandes dotes de engenho para derrotá-lo. Ganhar sempre era algo
satisfatório, é obvio, mas não era muito interessante quando se via a
vitória uns dez movimentos antes do final.
Depois dessa partida, começou a jogar xadrez com Jane. A primeira
vez Jane o fez tão completamente mal que se a convidou a repetir a
experiência ao dia seguinte, foi somente para não morrer de
aborrecimento. Nessa segunda ocasião ela se mostrou mais competente,
quase à altura do jogo de Michael, embora não se podia dizer o mesmo
dele. A quinta partida que jogaram ela ganhou.
Jane celebrou sua vitória com gargalhadas e palmas.
—Isto é o que acontece por não prestar atenção, mostrar-se tão
arrogante e me olhar por cima do ombro como se só fosse um inseto
enquanto dissimula os bocejos. Não estava concentrado —lhe disse.
Coisa que era certa.
—Nesse caso —replicou ele—reconhece que eu teria ganhado se
estivesse concentrado?
—É obvio! —admitiu— Mas não o estava e por isso perdeu. De uma
forma humilhante, devo acrescentar.
Depois dessa partida, Jocelyn se concentrou sempre.
Às vezes se limitavam a falar. Resultava-lhe estranho conversar com
uma mulher. Ele era muito bom em conversar com as damas nos eventos
sociais. Reconhecia sua habilidade para bater verbalmente com as
cortesãs. No entanto, não recordava ter falado na vida de forma normal
com uma mulher.
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Uma noite Jane estava lendo enquanto ele se distraía refletindo sobre
o fato de que com o cabelo afastado do rosto dessa forma tão apertada
seus olhos pareciam rasgados. Tratava-se de uma pequena rebelião por
parte da moça, claro, para tentar que sua cabeça fosse o menos atrativa
possível face à ausência da touca. Jocelyn desejava, embora fosse um
desejo implacável, que lhe provocasse uma dor de cabeça.
—Senhorita Ingleby —disse com um suspiro, interrompendo-a na
metade de uma frase— não posso seguir escutando-a. —De todas as
formas, tão pouco tinha prestado muita atenção— Em minha opinião,
embora talvez você discorde, Gulliver é um imbecil.
Tal como esperava, ela apertou os lábios com força. Um dos poucos
entretenimentos dos que tinha desfrutado ao longo dos últimos dias:
provocá-la. Viu-a fechar o livro.
—Suponho que acredita que deveria ter pisoteado aos liliputianos até
deixá-los esmagados no chão só porque era maior e mais forte que eles
—replicou ela.
—É você uma companhia muito relaxante, senhorita Ingleby —repôs
Jocelyn— Põe palavras em minha boca, me liberando desse modo da
necessidade de pensar e de falar por mim mesmo.
—Procuro outro livro? —perguntou-lhe.
—Certamente escolheria um compêndio de sermões —respondeu
ele— Não, vamos conversar.
—Sobre o que? —quis saber a moça depois de um breve silêncio.
—Me fale sobre o orfanato —respondeu Jocelyn— Que tipo de vida
levou nele?
Ela deu de ombros.
—Não há muito que contar.
O orfanato devia ter sido excelente, não cabia dúvida. No entanto, um
orfanato era um orfanato.
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—Sentiu-se sozinha? —quis saber— Se sente sozinha?
—Não.
Estava claro que não tinha a intenção de estender-se com suas
experiências pessoais, percebeu Jocelyn. Não era como muitas mulheres
(e outros tantos homens, para ser justo), que mal necessitavam de um
leve empurrãozinho para lançar-se a falar com grande entusiasmo e sem
freio sobre si mesmos.
—Por que não? —perguntou-lhe, olhando-a com os olhos
entrecerrados— Cresceu sem pai, mãe e irmãos. Mudou-se para Londres
com vinte anos, se não me equivoco muito, sem dúvida com o sonho de
fazer fortuna, mas sem conhecer ninguém. Como poderia não se sentir
sozinha?
Observou-a soltar o livro na mesinha auxiliar que tinha ao lado e
entrelaçar as mãos no colo.
—A solidão nem sempre implica sentir-se só —respondeu— Não se
a gente aprender a querer-se e a desfrutar de sua própria companhia.
Suponho que se você não quiser a si mesmo, é possível sentir-se só
embora se conte com a companhia de um pai, de uma mãe e de irmãos.
Ou se tem a impressão de que não merece o amor de outros.
—Quanta razão leva! —exclamou Jocelyn, irritado.
De repente, percebeu que esses olhos tão azuis o olhavam fixamente.
—Isso foi o que aconteceu com você? —ouviu-a perguntar.
Ao compreender o que estava perguntando, a natureza íntima do
interrogante, invadiu-o uma fúria tão grande que esteve a ponto de lhe
dizer que se retirasse a seus aposentos. A impertinência dessa mulher
não conhecia limites. No entanto, uma conversa era coisa de dois, é
obvio, e ele tinha sido quem a iniciou.
Em realidade, jamais mantinha conversas, nem sequer com seus
amigos. Não falava sobre temas pessoais. Nunca falava sobre si mesmo.
80
Foi isso o que tinha acontecido a ele?
—Sempre quis muito a Angeline e a Ferdinand — respondeu ao
mesmo tempo em quedava de ombros— Brigávamos a todas as horas,
como suponho que é o habitual entre irmãos, embora nossa herança
Dudley sem dúvida nos fazia ser mais ruidosos e travessos que outros.
Compartilhávamos jogos e aventuras. Ferdinand e eu estávamos
acostumados a nos oferecer cavalheirescamente para receber as
açoitadas que Angeline merecia por suas travessuras, embora suponha
que ao final a castigávamos a nossa maneira.
—Por que ser um Dudley implica ser mais travesso, mais cruel e mais
perigoso que outros? —perguntou-lhe ela.
Jocelyn refletiu sobre a pergunta, sobre sua família, sobre a visão que
tinham deles mesmos e do lugar que ocupavam no esquema das coisas.
Uma visão que os tinham inculcado desde que chegavam ao mundo ou
talvez inclusive antes.
—Se tivesse conhecido meu pai e meu avô —respondeu— essa
pergunta não seria necessária.
—E se sente na obrigação de estar à altura de suas reputações? —
quis saber ela— O faz de forma deliberada? Ou se viu apanhado de
repente no papel de irmão mais velho, de herdeiro e, finalmente, de
Duque de Tresham?
Jocelyn riu entre dentes.
—Senhorita Ingleby —respondeu— se você estivesse a par de minha
reputação, essa pergunta tão pouco seria necessária. Asseguro-lhe que
não me limitei a viver da fama de meus antepassados. Criei a minha
própria.
—Sei que se considera mais competente que à maioria dos
cavalheiros no uso de uma ampla variedade de armas —assinalou ela—
Sei que se bateu em duelo mais de uma vez. Suponho que todos foram
pela honra de alguma mulher, não é?
81
Jocelyn inclinou a cabeça.
—Sei que mantém relações com mulheres casadas —seguiu a
moça— sem mostrar o menor respeito pela santidade do matrimônio,
nem pelos sentimentos do cônjuge enganado.
—Presume saber muito sobre mim —comentou ele com ironia.
—Teria que ser cega e surda para não saber isso —replicou ela— Sei
que vê qualquer pessoa que está abaixo de você no escalão social,
virtualmente o mundo inteiro portanto, como um peão sempre disposto
a cumprir suas ordens sem protestar.
—E sem pedir por favor e nem agradecer —acrescentou Jocelyn.
—Suponho que participa das apostas mais arriscadas —continuou a
senhorita Ingleby— Não mostrou a menor preocupação pela iminente
corrida de tílburis até Brighton em que participará Lorde Ferdinand.
Poderia quebrar o pescoço.
—Ferdinand? Impossível —assegurou— Tem o pescoço de aço, como
eu.
—O único que importa é que ganhe a corrida —concluiu— De fato,
acredito que adoraria estar em seu lugar para que fosse seu próprio
pescoço o que acabasse quebrado.
—Senhorita Ingleby, não tem sentido participar de uma corrida a
menos que queira ganhar —aduziu ele— Embora, é obvio, tem que saber
comportar-se como um cavalheiro se perder. Por acaso você está me
exortando? Está me repreendendo por minhas maneiras e minha ética?
—Não são de minha incumbência, sua graça—respondeu— Me limito
a comentar o que observei.
—Você me vê com maus olhos —protestou.
—Mas suponho que minha opinião não lhe importa—apostilou ela.
Jocelyn riu entre dentes.
82
—Em outra época era diferente, o asseguro —disse— Meu pai me
resgatou. Certificou-se de que completasse minha educação a fim de me
converter em um cavalheiro a sua imagem e semelhança. Talvez,
senhorita Ingleby, tenha tido sorte ao não conhecer seus pais.
—Os seus devem amá-lo —replicou ela.
—Me amar? —Jocelyn se pôs a rir— Acho que tem um conceito
idealizado do amor porque nunca o experimentou, nem recebeu o que
às vezes só é um substituto. Se o amor for à devoção generosa para o ser
amado, não existe tal coisa. Porque somos egoístas e só procuramos
nossa própria comodidade, essa que o ser amado está acostumado a
intensificar. Depender de outra pessoa não é amor. Dominar a outra
pessoa não é amor. O desejo tão pouco o é, certamente, embora de vez
em quando possa ser um estupendo substituto.
—Sinto muito —repôs à senhorita Ingleby.
Jocelyn pegou a alça do monóculo e o levou ao olho. Ela devolveu o
olhar, ao que parecia, bastante tranquila. Submetida ao escrutínio de sua
lente, a maioria das mulheres se pavoneavam ou punham-se a tremer.
Nessa ocasião, seu uso foi uma mera afetação. Seu olho a via
perfeitamente sem necessidade do aumento. Ao cabo de um instante,
soltou o monóculo, que caiu sobre seu peito.
—Meus pais foram um casal muito feliz —afirmou— Nunca os ouvi
discutir, nem os vi olhar-se com o cenho franzido. Tiveram três filhos,
um sinal inequívoco da devoção que se professavam.
—Enfim —replicou ela— isso desmente sua teoria.
—Talvez porque só se viam alguns minutos três ou quatro vezes ao
ano. Quando meu pai chegava a Acton Park, minha mãe estava a ponto
de partir a Londres. Quando ela voltava para casa, meu pai estava a
ponto de partir. Um acerto sensato e amigável, você entende? —Uma
situação que naquele tempo lhe parecia normal. A capacidade dos
meninos para adaptar-se, em sua ignorância, a qualquer situação era
muito curiosa.
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A senhorita Ingleby ficou em silêncio e não se moveu sequer.
—Também demonstraram uma maravilhosa discrição —seguiu
Jocelyn— Como qualquer casal com o desejo de manter a harmonia
matrimonial. Jamais chegou a Acton Park o menor comentário sobre a
horda de amantes de minha mãe. Não soube nada deles até que vim a
Londres aos dezesseis anos. Por sorte, fisicamente me pareço com meu
pai. Igual a Angeline e Ferdinand. Seria humilhante albergar a suspeita
de que se é um bastardo, não é?
Não o havia dito com a intenção de resultar ofensivo. No entanto,
recordou muito tarde que Jane Ingleby não conheceu seus pais.
Perguntou-se quem lhe teria dado o sobrenome. Por que não Smith ou
Jones? Talvez fosse costume desse excelente orfanato diferenciar seus
órfãos dos comuns ao lhes dar sobrenomes distintivos.
—Sim —respondeu— O sinto. Nenhum menino deveria sentir-se
traído dessa maneira, embora fosse suficiente em idade, segundo a
opinião generalizada, para enfrentar à realidade. Deve ter sido um golpe
muito duro para você. Mas suponho que sua mãe o amava.
—Se o número e o esplendor dos presentes que levava a Acton Park
servem de indicação —repôs— minha mãe nos adorava. Meu pai não
dependia de suas estadias em Londres para divertir-se. Em Acton Park
há um pavilhão muito pitoresco situado em um canto bastante afastado
da propriedade. Com um lago que corre atrás do jardim traseiro, e
rodeado por colinas. Um lugar verdadeiramente idílico. Durante minha
infância foi o lar de uma parente pobre, uma mulher de grande simpatia
e beleza. Não compreendi quem era até completar os dezesseis.
Sempre tinha tido a intenção de ordenar que demolissem o pavilhão.
Ainda não o tinha feito. No entanto, nesse momento estava desabitado e
tinha ordenado a seu administrador que não gastasse nem um só
pinique nele. Com o tempo se derrubaria pela falta de manutenção.

84
—Sinto-o —repetiu ela como se fosse a responsável pela falta de
sutileza de seu pai ao alojar sua amante, ou a uma delas ao menos, na
propriedade onde residiam seus filhos.
Não obstante, Jane Ingleby não sabia nem a metade do que tinha
acontecido e ele não estava disposto a contar-lhe.
—Alcançar a fama é um desafio para mim —afirmou Jocelyn— Mas
sei que estou fazendo todo o possível para perpetuar a reputação
familiar.
—Não deveria sentir-se obrigado pelo passado —aconselhou ela—
Nem você, nem ninguém. O passado pode influir em nossas decisões,
sim, talvez inclusive nos afligir em certo modo com as expectativas que
nos impõe. Mas não deve ser uma obrigação. Para isso existe o livre-
arbítrio, e em seu caso mais que no de outros. Por sua posição social, por
sua fortuna e pelo poder para viver sua vida como quiser.
—Que é justo o que estou fazendo, minha pequena moralista —
replicou ele em voz baixa, olhando-a com os olhos entrecerrados—
Exceto nas atuais circunstâncias, claro. Toda esta inatividade é como
uma maldição. Mas talvez seja um castigo merecido por ter me metido
na cama de uma mulher casada, não parece?
A senhorita Ingleby se ruborizou e baixou o olhar.
—Chega-lhe à cintura? —perguntou-lhe ele— Ou mais abaixo?
—Refere-se ao cabelo? —perguntou ela a sua vez a tempo que
elevava a vista, surpreendida— Só é cabelo. Chega-me por debaixo da
cintura.
—Só é cabelo —murmurou Jocelyn— É puro ouro. Uma teia mágica
em que qualquer homem de bom grado se deixaria enredar, Jane.
—Não lhe dei permissão para que se dirija a mim com essa
familiaridade, sua graça —protestou ela de forma afetada.
Jocelyn riu entre dentes.
85
—Como é possível que siga tolerando tanto descaramento? —
perguntou— É minha criada.
—Mas não sua escrava—acrescentou ela— Posso me levantar e sair
por essa porta quando me agradar e não voltar nunca. O dinheiro que
vai me pagar por estas três semanas de trabalho não o converte em meu
dono. Nem tão pouco desculpa sua impertinência ao falar dessa forma
tão descarada de meu cabelo. E não vá negar que suas palavras e seu
olhar tinham uma clara tonalidade sugestiva.
—Não penso negá-lo. —admitiu— Senhorita Ingleby, sempre tento
dizer a verdade. Vá em busca do tabuleiro de xadrez na biblioteca. A ver
se esta noite demonstra ser uma oponente interessante. E de passagem
diga a Hawkins que traga o brandi. Tenho a língua tão seca como a areia
do deserto. E estou muito irritável.
—Sim, sua graça —disse ela, que ficou em pé imediatamente.
—E, senhorita Ingleby —acrescentou Jocelyn— advirto-lhe que não
volte a me chamar de impertinente. Minha paciência tem um limite e
poderia retaliar.
—Mas está confinado no sofá — recordou ela— enquanto eu posso
sair por essa porta quando queira. Acredito que isso me outorga certa
vantagem.
Quando você menos esperar, eu quem direi a última palavra. Pensou
enquanto a senhorita Ingleby desaparecia pela porta. Embora só fosse
uma vez durante as duas semanas que seguiria a seu serviço. Não
recordava que lhe tivesse ocorrido nada similar com outra pessoa, fosse
homem ou mulher, nos últimos dez anos.
No entanto,o alegrou que a conversa tivesse retomado os roteiros
habituais antes que ela partisse. Não sabia muito bem como tinha
conseguido Jane Ingleby fazer-se com as rédeas da situação. Foi ele
quem tentou surrupiar algo sobre si mesma e ao final tinha acabado lhe
confessando certas coisas sobre sua infância e sua adolescência nas que
nem sequer queria pensar, muito menos compartilhar com outra pessoa.
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Tinha estado a ponto de despir seu coração.
E preferia pensar que carecia de dito órgão.

Capítulo 7

—Venha aqui —ordenou uns dias mais tarde o Duque de Tresham a


Jane depois de uma partida de xadrez que ele tinha conseguido ganhar,
embora se tivesse visto obrigado a meditar cada movimento e a tinha
acusado de tentar distraí-lo com seu bate-papo.
Jane mal tinha falado durante a partida. Depois desta se afastou para
devolver o tabuleiro de xadrez ao armário.
O tom de voz do duque não lhe inspirava confiança. De fato, e se
parava para pensar, não confiava nele. Ao longo desses últimos dias
havia entre eles certa tensão que inclusive ela identificava, apesar de sua
inexperiência. O duque a via como uma mulher e ela, que Deus a
ajudasse, era muito consciente de que ele era um homem. Enquanto se
aproximava do sofá rezou uma prece agradecendo porque seguisse
confiando nele, embora perdesse o emprego assim que deixasse de
estar, é obvio.
A ideia de abandonar esse posto, e Dudley House em questão de
semana e meia resultava cada vez mais entristecedora. No meio de suas
distendidas conversas, os amigos do duque tinham comentado em várias
ocasiões que o primo de seu pai, o Conde de Durbury, encontrava-se em
Londres e que tinha feito que os temíveis investigadores da Bow Street
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começassem a procurá-la. Tanto o duque como seus amigos pareciam
estar do lado de Jane. Aplaudiram o fato de que tivesse vencido Sidney,
um homem que não parecia contar com o favor de muita gente. No
entanto, sua atitude mudaria em um abrir e fechar de olhos se
descobriam que Lady Sara Illingsworth e Jane Ingleby eram a mesma
pessoa.
—Me mostre suas mãos —lhe disse o duque. É obvio, era uma ordem,
não um pedido.
—Por quê? —perguntou ela, mas o duque se limitou a arquear as
sobrancelhas com esse gesto tão arrogante e a olhá-la fixamente.
Ela estendeu as mãos, hesitante, com as palmas para baixo. Mas o
duque as pegou e as virou.
Foi um dos momentos mais incômodos de sua vida. As mãos do
duque engoliam as suas, embora as tivessem tomado sem as apertar.
Poderia ter se afastado com suma facilidade, e seu instinto pedia a gritos
que o fizesse. No entanto, desse modo revelaria seu desconforto, assim
como o único motivo para senti-lo. Experimentava o atrativo de sua
masculinidade como algo tangível. Custava-lhe respirar.
—Não tem calos —assinalou ele— Isso quer dizer que não realizou
muitos trabalhos manuais, não é, Jane?
Quisera o duque não usasse de vez em quando o nome pelo que só a
tinham chamado seus pais.
—Não muitos, sua graça —respondeu.
—Tem as mãos bonitas —continuou ele— como era de esperar.
Igualam ao resto de sua pessoa. Trocam bandagens sem provocar mais
dor do que devido. Fazem que alguém se pergunte que outra magia
podem obrar com suas carícias. Jane seria a cortesã mais solicitada de
toda a Inglaterra, se o quisesse.
Nesse momento fez gesto de afastar as mãos, mas o duque as pegou
mais depressa do que ela se moveu.
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—Acrescentei «se o quisesse» —precisou ele com um brilho travesso
nos olhos— E que outra magia pode obrar, me pergunto. São mãos
musicais? Toca algum instrumento? O piano?
—Um pouco —admitiu.
Diferente de sua mãe, Jane nunca tinha sido uma virtuosa do piano.
O duque seguia segurando suas mãos. Seus olhos escuros a
atravessavam. Seu alarde de sair pela porta sem mais era ridículo nesse
momento. Se desse um pequeno puxão das mãos, poderia tendê-lo em
qualquer instante.
Fulminou-o com o olhar, decidida a não demonstrar nem medo,nem
desconforto.
—Demonstre-me.—Ele soltou as mãos para assinalar o piano
localizado no extremo mais afastado do salão.
Era um instrumento precioso, conforme tinha notado antes, embora
não tão magnífico como o da sala de música.
—Estou um pouco enferrujada —protestou ela.
—Pelo amor de Deus, senhorita Ingleby! —exclamou ele— Não seja
modesta. Tenho por costume me retirar à sala de jogos quando as
jovenzinhas da alta sociedade estão a ponto de demonstrar seus dotes
musicais em qualquer evento social. Mas tenho caído tão baixo que estou
quase ansioso por escutar a interpretação de uma jovem que admite sem
disfarces que só toca um pouquinho e que está um pouco enferrujada.
Agora se sente ao piano antes que ocorra a minha mente outro tipo de
entretenimento enquanto segue o bastante perto para agarrá-la.
E assim o fez.
Tocou uma das peças que tinha memorizado há muito tempo, uma
fuga de Bach. Por sorte, só cometeu dois erros, ambos nos primeiros
acordes e nenhum deles garrafal.
—Venha aqui —repetiu o duque quando terminou de tocar.
89
Cruzou a estadia, sentou-se na cadeira que estava acostumada a
ocupar e o olhou aos olhos. Tinha descoberto que se o fazia, evitava que
a avassalasse. Tal parecia que o duque tinha a sensação de que era capaz
de dar e tomar na mesma medida.
—Tinha razão —comentou ele com brutalidade— Toca um pouco.
Muito pouco. Toca sem sentimento. Toca cada nota como se fosse uma
entidade separada, sem conexão alguma com a que a antecede ou com a
que a precede. Pressiona cada tecla como se fosse uma peça de marfim
inanimada, como se acreditasse que é impossível tirar música dela. Deve
ter tido um professor bastante medíocre.
Podia aceitar a crítica para sua pessoa com bastante serenidade.
Afinal, nunca tinha se iludido a respeito de sua habilidade. No entanto,
indignou-se ao escutar as críticas para sua mãe.
—É obvio que não! —replicou— Como se atreve a julgar minha
professora por minha atuação? Tinha mais talento em um dedo
mindinho do que eu tenho em todo o corpo. Quando tocava dava a
impressão de que a música brotava dela mais que de um mero
instrumento. Ou que era ela quem a transmitia de uma procedência…
Enfim, de uma procedência divina. —Fulminou-o com o olhar,
indignadíssima e muito consciente de curtas que ficavam suas palavras.
O duque a olhou em silêncio um momento, com uma expressão
estranha e desconhecida em seus olhos.
—Ah —disse ao final— vejo que o entende, não é assim? Não se trata
de que seja um ser sem gosto pela música, mas sim carece de um talento
superior. Mas por que ia semelhante comparação ensinar em um
orfanato?
—Porque era um anjo —respondeu Jane, e enxugou as lágrimas que
ameaçavam escorregar por suas bochechas. O que lhe ocorria? Até
pouco tempo, jamais tinha sido dada a chorar.
—Pobre Jane —disse ele em voz baixa— Se converteu em uma figura
maternal para você?
90
Esteve a ponto de mandá-lo ao inferno, coisa que jamais tinha feito
com ninguém. Esteve a ponto de rebaixar-se a seu nível.
—Isso não é de sua incumbência —replicou com voz débil— Minhas
lembranças não são. Nem eu tão pouco sou.
—Suscetível —disse ele—Toquei em uma fibra sensível? Vai fazer o
que faz durante sua hora livre pelas tardes. E diga a Quincy que venha.
Tenho que ditar umas cartas.
Jane saiu ao jardim como estava acostumada a fazer a maioria das
tardes, exceto quando chovia. As flores primaveris estavam em todo seu
esplendor e no ar flutuava um aroma adocicado. Sentia falta do ar livre
e o exercício que tinha sido uma parte integral de sua vida na Cornualha.
No entanto, o medo a fechava cada vez mais. Temia pôr um pé além das
portas de Dudley House.
Temia que a apanhassem. Que não acreditassem. Que a castigassem
como a uma assassina.
Em ocasiões, se descobria a ponto de contar toda a verdade ao Duque
de Tresham. Uma parte de si mesma acreditava que o duque se
comportaria como um amigo. Mas seria uma tolice confiar em um
homem conhecido por sua crueldade.

Transcorridas duas semanas Jocelyn decidiu que se passava outra


mais como as duas anteriores, se voltaria louco. Raikes estava certo, é
obvio, maldita fosse sua imagem. Sua perna ainda não estava preparada
para aguentar seu peso. No entanto, havia um termo médio entre apoiar
o peso sobre as duas pernas e estar convexo com uma cama.
Ia se fazer com o auxilio de muletas.
Sua determinação de não atrasar mais esse momento foi assegurada
depois de duas visitas vespertinas em concreto. Ferdinand foi o primeiro
a chegar, emocionadíssimo com os últimos detalhes da corrida de
tílburis, que se celebraria ao cabo de três dias. Parecia que as apostas
91
jogavam fumaça no White’s, e que a maioria eram contra Ferdinand e a
favor de Lorde Berriwether. Mas seu irmão não se intimidava. E assim
ele falava de outro tema.
—Os irmãos Forbes resultam cada vez mais ofensivos —lhe
assegurou— Estão insinuando que se esconde em casa, Tresham, que
finge estar ferido porque a ideia de que o estejam esperando fora faz que
ponha-se a tremer. Se ocorre a eles sussurrá-lo sequer diante de mim, os
atravessarei a cara com uma luva com tal força que sairão correndo.
—Não se meta em meus assuntos —replicou Jocelyn com secura—
Se tiverem algo que dizer sobre mim, que me digam isso à cara. Não
terão que esperar muito tempo.
—Seus assuntos são meus, Tresham —protestou seu irmão— Um
insulto dirigido a um de nós é um insulto dirigido a todos. Espero que
Lady Oliver valha a pena. Embora suponha que assim foi. Jamais conheci
uma mulher com uma cintura mais estreita e semelhantes… —Mas se
interrompeu imediatamente e olhou com expressão incômoda e por
cima do ombro a Jane Inglebly, que estava sentada em silêncio um pouco
afastada, como era habitual.
Ferdinand, assim como Angeline e os amigos de Jocelyn, não parecia
saber muito bem como tratar à enfermeira do Duque de Tresham.
Moravam-se problemas, pensou Jocelyn com inquietação depois que
partisse seu irmão. Como era habitual, por uma coisa ou por outra. Só
que, em circunstâncias normais ele estava na rua para enfrentar ao que
fosse. Sempre tinha gostado do perigo. Não recordava ter pensado
nunca, tal como aconteceu há uns dias, por mais surpreendente que
parecesse, que seu estilo de vida era absurdo e banal.
Quanto antes saísse e retornasse a suas atividades habituais, melhor
iria sua sanidade. No caso de que Barnard não tivesse comprado às
muletas que lhe tinha encarregado, ao dia seguinte lhe perguntaria o
motivo.

92
E nesse momento chegou à segunda visita. Hawkins, que apareceu
para anunciar à pessoa em questão, parecia desaprovar sua presença.
Jane Ingleby fechou o livro que estava lendo e se retirou ao canto onde
sempre se escondia cada vez que ele recebia visitas.
—Lady Oliver, sua graça —anunciou Hawkins— deseja falar-lhe em
privado. Informei à dama que não estava seguro de que se encontrasse
em condições de receber visitas.
—Que me crucifiquem! —rugiu Jocelyn— Sabe muito bem que não
deve deixar que ponha um pé nesta casa, Hawkins. Joga essa mulher
daqui.
Não era a primeira vez que a mulher tinha visitado Dudley House.
Parecia que ignorava a norma de não visitar um cavalheiro em sua
residência de solteiro. Além disso, tinha-o feito à uma hora em que a alta
sociedade fazia suas rondas de visitas e poderiam vê-la ou espionar
algum indício de sua presença.
—Tenho que supor que veio na carruagem de Lorde Oliver e que a
está esperando na porta? —perguntou ele de forma retórica.
—Sim, sua graça. —Hawkins fez uma reverência.
No entanto, antes que Jocelyn pudesse ordenar de novo que jogassem
à mulher em seguida da casa, a dama em questão apareceu na porta.
Hawkins pensou Jocelyn com secura, teria muitíssima sorte se antes que
acabasse o dia não se encontrava rebaixado ao posto de ajudante de
engraxate.
—Tresham —o saudou Lady Oliver com sua voz doce e sensual.
Levou um lenço de renda aos lábios como prova visual de que era uma
mulher muito sensível e que estava angustiada.
É obvio, era a personificação da elegância e o aprimoramento graças
aos distintos tons de verde que ressaltavam seu cabelo vermelho. Era
baixa, magra e delicada, embora também possuísse, em efeito, o busto
ao que Ferdinand se referiu antes.
93
Jocelyn franziu o cenho enquanto a observava entrar na estadia, com
uma expressão preocupada em seus olhos castanhos.
—Não deveria estar aqui.
—Mas como não vir? —Seguiu caminhando com elegância até chegar
ao divã. Uma vez ali se joelhou a seu lado e pegou uma de suas mãos
entre as suas. Para levá-la aos lábios.
Hawkins, o canalha, retirou-se e tinha fechado a porta.
—Tresham —repetiu ela— Meu pobrezinho, meu pobrezinho!
Comenta-se que disparou muito galantemente ao ar quando poderia ter
matado Edward. Todo mundo conhece sua excelente pontaria. E depois
permitiu com valentia que te disparasse na perna.
—Aconteceu ao contrário —a corrigiu com secura— E a valentia não
teve nada a ver. Não estava prestando atenção naquele momento.
—Uma mulher gritou —disse ela, beijando de novo sua mão e
apoiando-a em uma fria bochecha, ruborizada por efeito do ruge— Não
posso culpá-la, embora eu tivesse desmaiado se estivesse ali. Meu
pobrezinho, que valente foi. Esteve a ponto de te matar?
—A perna está bastante longe do coração —assinalou enquanto
afastava a mão com firmeza— Levante-se. Não penso lhe oferecer
assento, nem convidá-la a um refresco. Parta. Agora mesmo. A senhorita
Ingleby a acompanhará à porta.
—A senhorita Ingleby? —De repente, apareceram dois pontos
rosados em suas bochechas e seus olhos jogaram faíscas.
Jocelyn assinalou Jane com uma mão.
—Senhorita Ingleby, apresento-a Lady Oliver. Que parte… Agora
mesmo!
No entanto, o olhar ciumento e irritado de Lady Oliver se tornou
indiferente e desdenhoso quando seus olhos se pousaram em Jane. O que
ela via, claramente, era a uma criada.
94
—É cruel, Tresham —comentou a dama— Estive morta da
preocupação por você. Estive adoecendo por vê-lo.
—Coisa que já conseguiu —a despachou— Bom dia.
—Me diga que você também desejava me ver —acrescentou ela—
Que cruel é ao me obrigar a suplicar uma palavra amável!
Jocelyn a olhou com algo que beirava ao ódio.
—Francamente —disse— só pensei em você da última vez que a vi…
Foi na casa dos George, não é? Ou na Bond Street? Não me lembro. E
estou seguro de que não voltarei a pensar em você assim que se for.
A dama voltou a levar o lenço aos lábios e o olhou com expressão
desgostosa por cima do lenço.
—Está zangado comigo —disse.
—Asseguro-lhe, senhora, que meus sentimentos não vão além da
irritação —replicou.
—Se permitisse me explicar…
—Rogo-lhe que me economize a moléstia.
—Vim para te advertir —continuou ela— Que saiba que vão te matar.
Refiro-me a meus irmãos, Anthony, Wesley e Joseph. Para defender
minha honra, já que não acreditam que Edward a tenha defendido
convenientemente. Se não lhe matam, encontrarão outra maneira de
machucá-lo. Eles são assim.
Comportar-se com um absoluto desdém pela honra devia ser uma
característica familiar dos Forbes, pensou Jocelyn.
—Senhorita Ingleby —disse— teria a amabilidade de acompanhar
lady Oliver à porta e de assegurar-se de que parta? E diga a Hawkins que
quero falar com ele.
Lady Oliver chorava de forma desconsolada.

95
—É um homem muito duro, Tresham, como me advertiu todo mundo
—disse entre soluços— Acreditava que se equivocavam. Acreditava que
me amava. E não necessito que uma criada me acompanhe à porta. Posso
ir sozinha, obrigado. —O que procedeu a fazer com uma dramática
interpretação que teria arrancado uma ovação com uma plateia exigindo
um bis se estivesse em uma peça.
—Enfim, senhorita Ingleby —disse Jocelyn depois que uma mão
invisível fechou a porta da biblioteca— o que acha de minha amante?
Pode me culpar por ter me metido na cama da dama, casada ou não?
—É muito bonita —admitiu ela.
—E a resposta a minha segunda pergunta? —Fulminou-a com o olhar
como se ela fosse a responsável pelas continuas indiscrições de Lady
Oliver. Teria preferido que a mulher o evitasse como à peste durante
toda a vida, e também além.
—Não sou ninguém para julgar, sua graça —respondeu Jane Ingleby
com seriedade.
—Isso quer dizer que tolera o adultério? —quis saber, olhando-a com
os olhos entrecerrados.
—Não, é obvio que não—assegurou ela— Sempre é errado. Mesmo
assim, foi muito cruel com ela. Falou-lhe como se a odiasse.
—Faço-o —reconheceu— Por que fingir que não é assim?
—No entanto —insistiu Jane— deitou-se com ela e fez com que se
apaixonasse por você. E agora a rejeita quando desafiou as normas da
decência para vir vê-lo e a adverti-lo.
Jocelyn sorriu ao escutá-la.
—É possível que se possa ser tão inocente? —perguntou— Eu fiz que
Lady Oliver se apaixonasse por mim, Jane? A única pessoa a quem Lady
Oliver ama é a si mesma. E desafiou as normas da decência para que a
alta sociedade acredite que os dois mandamos ao inferno as convenções
96
ao continuar com nossa relação. Essa mulher é uma exibicionista. A
notoriedade a agrada, sobre tudo se for com alguém como eu. Adora que
se comente que domou o coração de um Dudley… O coração do Duque
de Tresham em pessoa. Adoraria que me visse obrigado a disparar ao ar
três vezes mais enquanto seus irmãos me usam como alvo para praticar
sua pontaria. Cinco vezes se os outros dois irmãos vierem à cidade.
—Está ridicularizando as emoções da dama — reprovou Jane.
—Acreditava que não ia julgar-me —replicou em voz baixa.
—Tentaria você a um santo —assegurou ela com secura.
—Isso espero. —Sorriu— Mas, me diga, por que está tão convencida
de que me deitei com Lady Oliver?
Jane o olhou fixamente um momento.
—Todo mundo sabe —respondeu ao final— Por isso se celebrou o
duelo. Você mesmo me disse isso.
—Ah, sim? Ou a deixei supor que esse era o motivo?
—Suponho que agora vai negar —disse, com voz indignada.
Jocelyn apertou os lábios e tomou seu tempo antes de responder.
—Não, acredito que não —disse— Verá, Jane, se negar, teria você a
impressão de que me importa que opine bem de mim. E não posso
permitir que acredite nisso, não é?
Jane se aproximou e se sentou novamente em sua cadeira. Colocou o
livro aberto no colo com grande serenidade enquanto procurava a
página correta. Depois, pôs uma mão em cada página. Tinha o cenho
franzido.
—Se não é verdade, por que não negou? —perguntou-lhe ao final—
Por que bater em um duelo e arriscar-se a morrer?
—Jane, Jane, deve um cavalheiro contradizer uma dama em público?
—perguntou-lhe ele a sua vez.
97
—Mas a odeia.
—Sigo sendo um cavalheiro —assinalou— e ela segue sendo uma
dama.
—Isso é ridículo! —Franziu o cenho— Permitiria Lady Oliver que seu
marido pensasse o pior dos dois do que lhe dizer a verdade? Permitiria
que a alta sociedade pensasse o pior de você?
—Ah, mas esse é o motivo pelo que me adoram —aduziu— Sou o
perigoso e perverso Duque de Tresham. Se nesta ocasião proclamasse
ser tão inocente como um cordeirinho, seria uma terrível decepção para
a alta sociedade. Não sou tão inocente, é obvio. Porque paquerei sim com
a dama algumas vezes. Estou acostumado a paquerar com damas
casadas. É o que se espera de mim.
—Grande tolice! —exclamou ela, irritada— E não acredito. Me diz
tudo isto para depois rir de mim e me dizer quão ingênua sou por
acreditar em sua inocência.
—Mas, senhorita Ingleby —protestou— já disse que sua opinião não
me importa.
—É desprezível. Não sei por que sigo trabalhando para você.
—Talvez, Jane, porque necessita um teto sobre a cabeça e comida que
levar a boca —disse— Ou talvez porque desfruta me abrindo e me
repreendendo com sua afiada língua. Pode ser que esteja sentindo um
pouquinho de carinho? —De forma deliberada, baixou a voz até
convertê-la em uma carícia.
Jane Ingleby tinha os lábios apertados. E o olhava com frieza.
—Mas tenha algo muito presente —continuou ele— Eu não minto
Jane. Pode ser que siga a corrente às mentiras de outros, mas não minto.
Pode acreditar ou não, isso depende de você. Agora deixa esse livro e me
traga um café. E que Michael Quincy te dê minha correspondência. E o
tabuleiro de xadrez.

98
—Exijo que não me chame Jane e que não use de intimidade —
ordenou ela ao mesmo tempo em que ficava em pé— Algum dia ganharei
no xadrez quando estiver concentrado. E apagarei essa expressão
presunçosa do seu rosto.
Jocelyn a olhou com um sorriso.
—Vá e faça o que lhe ordenei —disse, recuperando a formalidade—
Por favor, senhorita Ingleby.
—Sim, sua graça —replicou ela com voz ressentida.
Por que de repente era tão crucial para ela conhecer a verdade sobre
Lady Oliver, apesar de ter dito o contrário? Perguntou-se Jocelyn
enquanto a observava sair da biblioteca. Importava-lhe o mínimo o que
pensasse as pessoas. De fato, sempre tinha se orgulhado de sua péssima
reputação, inclusive nos poucos casos nos que, como esse, não era
merecida.
Lady Oliver tinha alardeado ante seu marido, certamente durante
uma discussão, e havia dito que o Duque de Tresham era seu amante. E
dito marido, furioso, tinha-o desafiado a um duelo. Quem era ele para
contradizer a dama?
Por que tinha se visto na necessidade de que Jane Ingleby soubesse
que nunca se deitou com Lady Oliver? Nem com nenhuma outra mulher
casada, por sinal.
Como Barnard não levou as muletas ao dia seguinte, pensou Jocelyn
de repente, as bateria em sua cabeça assim que as tivesse em seu poder.

Capítulo 8

99
—Mas o que está fazendo? —perguntou Jane, sobressaltada, ao
entrar na manhã seguinte na biblioteca e descobrir ao Duque de
Tresham de pé, apoiado em umas muletas e olhando pela janela.
—Olhando pela janela da biblioteca —respondeu ele ao mesmo
tempo em que voltava a cabeça para vê-la com as sobrancelhas
arqueadas de forma arrogante— De minha casa. E me rebaixando a
responder uma pergunta impertinente de uma criada impertinente. Vá
em busca de sua capa e de seu chapéu. Pode me acompanhar ao jardim.
—Aconselharam-lhe a manter a perna imobilizada e elevada —o
recordou Jane enquanto se aproximava dele. Não recordava que fosse
tão alto.
—Senhorita Ingleby —replicou o duque sem que sua expressão
trocasse um ápice— vá em busca de sua capa e de seu chapéu.
Mais tarde, Jane percebeu que ao princípio o duque parecia incômodo
com as muletas, mas esse fato não o impediu de passear pelo jardim com
ela durante meia hora antes que se sentassem em um banco de ferro
situado sob uma cerejeira. Estavam tão juntos que seu ombro quase
roçava o ombro do duque. Jane se manteve em silêncio enquanto o
escutava respirar com dificuldade.
—Damos muitas coisas por certo —o ouviu comentar, falando mais
consigo mesmo que com ela, ao que parecia— O ar fresco e os aromas da
natureza, por exemplo. A saúde. A habilidade para nos mover sem
impedimento.
—Nos ver privados de todas essas coisas, assim como o sofrimento,
podem nos ajudar a pôr os pés no chão —conveio ela— Pode nos ajudar
a deixar de esbanjar a vida com meras trivialidades e a apreciar as coisas
importantes. —Se alguma vez voltasse a ser livre…
Sua mãe tinha morrido depois de uma breve enfermidade pouco
depois que ela cumpriu os dezessete anos, e seu pai adoeceu e teve que
ficar acamado apenas um ano depois do falecimento de sua esposa. A
Jane só ficou as lembranças do que eram a felicidade e a segurança
100
familiar, duas coisas que em sua ingenuidade e juventude tinha
acreditado que durariam eternamente. Só ficou a realidade de que o
primo de seu pai herdasse o título e a propriedade, Candleford Abbey. O
novo conde a odiava e a adulava ao mesmo tempo, fazendo planos sobre
seu futuro muito convenientes para ele, embora não para ela. Quisera
poder recuperar sequer um só daqueles dias de sua inocência.
—Suponho que deveria recomeçar —comentou o duque, que voltou
a cabeça para olhá-la— é isso, senhorita Ingleby? Deveria me converter
no mais reservado dos espécimes sociais, em um libertino reformado?
Deveria desafiar minha herança, me casar com uma Santa e me retirar a
minha propriedade rural para me transformar em um latifundiário
exemplar? Deveria gerar um monte de meninos exemplares e educá-los
para convertê-los em cidadãos exemplares? Deveria abraçar a
monogamia e viver feliz para sempre?
Tinha falado com um tom tão sofrido que Jane se pôs a rir.
—Eu gostaria de ver esse milagre, o asseguro —replicou ela— Deixou
claro o que pretendia? Dói à perna, não é? Volta a esfregar a coxa. Vamos
para dentro para que possa ajudá-lo a ficar a vontade.
—Por que será que quando a ouço dizer essas coisas me esquece a
ideia de recomeçar e me sinto muito pecaminoso? —perguntou-lhe o
duque enquanto se inclinava para um lado.
Jane notou que seu braço pressionava seu ombro, e uma vez que não
havia mais espaço no banco para afastar-se, ficou de pé.
Essa tensão quase insuportável se repetia com muita frequência. No
caso do duque, o fazia de forma deliberada. Parecia que adorava fazer
comentários indecentes enquanto a olhava com as pálpebras
entreabertas. Ele passava em grande a torturando dessa forma, porque
sabia perfeitamente até que ponto a afetava. Porque a afetava, e muito.
Não podia negar que só vê-lo, só pensar nele, acelerava seu coração. Que
o simples roce descuidado de uma mão despertava nela o desejo de
sentir muito mais.
101
—Nesse caso, me leve para dentro —prosseguiu ao mesmo tempo em
que ficava em pé e se apoiava nas muletas sem sua ajuda— e me submeta
a qualquer cuidado que considere necessário. E a seguirei obediente, por
certo, já que não está de humor para flertes.
—E nunca o estarei, sua graça —concluiu Jane com firmeza.
Uma afirmação e uma resolução que seriam postas a prova essa
mesma noite.

Jocelyn não podia dormir. Levava uma semana ou mais sofrendo de


insônia. Era compreensível, é obvio, já que não havia nada que fazer
depois das onze da noite, às vezes das dez, exceto ir para cama e
imaginar todos os bailes e as noitadas que estariam se celebrando;
imaginar seus amigos indo de clube em clube até que a alvorada os
obrigasse a partir a suas respectivas casas.
Essa noite a insônia estava acompanhada de um terrível nervosismo.
Porque a tentação lhe resultava quase irresistível. O tipo de tentação que
por regra geral o tinha conduzido a muitos problemas quando era um
adolescente até que aprendeu a controlar seus impulsos, sobre tudo
quando seu pai estava em Acton Park. Ao final conseguiu reprimi-los por
completo, salvo nesses momentos nos que baixava a guarda e o afligiam
sem remédio.
Em certas ocasiões estava acostumado a procurar uma mulher com a
que passar a noite até que só ficavam forças para dormir e para depois
retomar seu dia a dia habitual.
Pensou com certa melancolia em Jane Ingleby, mas não demorou em
tirá-la da cabeça. Gostava de mortificá-la, flertar com ela e incomodá-la.
É obvio, era uma beleza de grande atrativo. Mas estava vedada. Era uma
criada alojada em sua casa.
Ao final, passadas às doze da noite, a tentação pôde com ele. Afastou
as mantas, levantou-se e com ajuda das muletas caminhou até o closet,
102
onde colocou uma camisa, umas calças e umas pantufas, embora não se
incomodou em procurar um colete e nem jaqueta. Tão pouco acendeu
uma vela, já que carecia de uma terceira mão com a que levá-la. Já
acenderia alguma quando estivesse abaixo.
E assim, devagar e com certa dificuldade, encaminhou-se ao andar de
baixo.

Jane não podia dormir.


O Duque de Tresham já não necessitava bandagem. A ferida tinha
sarado. Começava a mover-se bem com as muletas. Estava inquieto, mal-
humorado e não demoraria a sair de casa. Já não a necessitaria.
Em realidade, nunca a tinha necessitado.
Possivelmente a despachassem antes que as três semanas chegassem
a seu fim. No entanto, no caso de que não o fizessem, só ficavam sete dias.
O mundo além das portas de Dudley House se converteu em um lugar
ameaçador que a aterrava ver-se obrigada a pisar. Todos os dias chegava
alguma visita que comentava o que já se conhecia como «o incidente da
Cornualha». Esse dia o duque e seus amigos tinham falado alegremente
do tema.
—Pergunto-me —havia dito o muito bonito e loiro Visconde de
Kimble— por que Durbury se fecha a um canto no hotel Pulteney em vez
de pedir ajuda à alta sociedade para localizar sua sobrinha, sua prima ou
ao que seja essa mulher. Por que veio à cidade para procurá-la se
pensava esconder-se e deixar todo o trabalho aos investigadores da Bow
Street?
—Talvez esteja de luto —sugeriu sir Conan Brougham, um jovem de
cabelo castanho e rosto agradável— Embora não vista o negro. Poderia
ser que Jardine não esteja morto depois de tudo, mas sim siga na
Cornualha com uma fratura no crânio?

103
—Não seria uma surpresa conhecendo-o —respondeu o duque com
secura.
—Em minha opinião —comentou o Visconde de Kimble— essa
mulher merece uma medalha mais que a corda em caso de que Jardine
tenha morrido. O mundo será um lugar muito melhor sem sua presença.
—Isso sim, Tresham, será melhor que te guarde bem as costas como
nós fazemos uma vez que deixe o santuário de seu lar —acrescentou sir
Conan com uma gargalhada— Deverá te manter alerta se por acaso vê
alguma moça de gesto feroz empunhando um par de pistolas ou uma
enorme machado. Os rumores sobre a arma com que cometeu o atroz
crime não ficam de acordo.
—Que aspecto tem a jovem, se forem tão amáveis? —perguntou
então o duque— Para que possa me esconder quando a vir chegar.
—É uma bruxa muito feia de olhos e cabelo negros — respondeu sir
Conan— Ou uma sereia loira tão formosa como um anjo. Escolhe o que
você mais goste. Ouvi ambas as descrições e algumas mais que vão de
um extremo a outro. Ao que parece, ninguém a viu, exceto Durbury, que
não dá nem um pio. Sabe o do novo tiro de Ferdinand? Suponho que sim,
e de boca do interessado, por assim dizê-lo. Crê que os cavalos irão à
direita quando ordenar que vá à esquerda?
—Se de verdade for meu irmão, o obedecerão —respondeu o
duque— Suponho que são tão nervosos que demorará um ano em domá-
los, verdade?
E a conversa prosseguiu por esses roteiros.
Jane não podia dormir. Nem podia deixar de se mover. Tinha gravada
na mente o rosto pálido de Sidney com o sangue na têmpora. Não parava
de pensar no fato de que o conde tinha ido a Londres para procurá-la. E
de que os investigadores da Bow Street estavam vasculhando as ruas e
interrogando às pessoas para encontrá-la. E tão pouco podia deixar de
imaginar-se tomando as rédeas de seu destino e encaminhando-se ao
hotel Pulteney para falar com o conde.
104
Seria um alívio deixar de esconder-se e permitir que tudo viesse à
tona.
Mas a jogariam no cárcere. A submeteriam a julgamento. A
pendurariam. Podiam sentenciar à forca à filha de um conde? A um
conde certamente que não. Mas e sua filha? Não sabia.
Por que não levava luto o primo de seu pai? Talvez porque, depois de
tudo, Sidney não tinha morrido? Claro que seria absurdo albergar essa
esperança.
Ao final, afastou as mantas e deixou de fingir que estava tentando
dormir. Acendeu uma vela, colocou a capa sobre os ombros e saiu de seu
quarto sem incomodar-se sequer em vestir-se, nem em calçar-se. Talvez
encontrasse um livro na biblioteca que a permitisse perder-se entre suas
páginas até que sua mente se tranquilizasse.
À medida que descia as escadas, percebeu um detalhe. Um som.
Quando chegou ao primeiro andar, já o tinha reconhecido.
Música. De piano.
Procedente da sala de música.
Quem estaria tocando? Era muito tarde para que houvesse visitas.
Deviam ser mais de meia noite. Além disso, o vestíbulo estava às escuras.
Os criados se retiraram. Por debaixo da porta da sala de música se via
um feixe de luz.
Jane se aproximou a contra gosto, colocou a mão no trinco, onde a
manteve um instante, e depois o girou para abrir a porta.
Era o Duque de Tresham.
Estava sentado no banquinho do piano e as muletas descansavam no
chão, a seu lado. Estava inclinado sobre as teclas, tocando sem partitura
e com os olhos fechados, com uma expressão de dor no rosto. A peça era
comovedora por sua beleza, desconhecida para Jane.

105
Ficou plantada na porta, hipnotizada enquanto o escutava tocar. E
voltou a sentir essa espécie de opressão no coração, a sensação de que a
música não procedia do instrumento, nem sequer do homem que o
tocava, mas sim de uma fonte divina conectada a ambos. Jamais tinha
pensado que existisse outra pessoa com um talento musical que
igualasse o de sua mãe.
Mas a tinha diante dos olhos.
Deve ter passado uns cinco minutos antes que a música parasse. O
duque seguiu sentado com as mãos suspensas sobre as teclas, à cabeça
inclinada e os olhos ainda fechados. Nesse preciso momento Jane
compreendeu que era uma intrusa.
Mas muito tarde. Enquanto contemplava a possibilidade de retirar-
se e fechar a porta sem fazer ruído, o duque voltou à cabeça e abriu os
olhos. Durante um momento a olhou sem vê-la. E depois a ira relampejou
neles.
—Que diabos está fazendo aqui! —rugiu.
Jane sentiu verdadeiro medo pela primeira vez. Nunca o tinha visto
tão furioso como nesse momento. Temia que o duque se levantasse e se
aproximasse dela com atitude ameaçadora.
—Sinto-o muitíssimo —se desculpou— Desci em busca de um livro e
escutei música. Onde aprendeu a tocar assim?
—Assim como? —perguntou ele a sua vez com os olhos
entrecerrados.
Era evidente que estava se recuperando da surpresa e recuperando a
compostura.
—Senhorita Ingleby, sou um simples aficionado, não era consciente
de que tinha público.
De repente, Jane compreendeu que o duque se escondeu atrás de uma
máscara que já resultava familiar. Nunca o tinha visto como um homem
106
necessitado de erguer defesas. Jamais lhe tinha ocorrido que tivesse uma
personalidade muito mais profunda que a que mostrava a ela ou a suas
visitas.
—Ah, não —o contradisse, consciente enquanto falava de que talvez
fosse mais sensato ficar em silêncio. Entrou na sala de música e fechou a
porta— Sua graça, não é um simples aficionado. É abençoado com um
dom maravilhoso e um talento extraordinário. Assim de aficionado, não
tem nada. Estava usando seu talento do fundo da alma.
—Bobagem! —exclamou o duque com brutalidade depois de um
breve silêncio— Jamais recebi uma lição, e não sou capaz de ler uma
partitura. Assim adeus a sua teoria.
Não obstante, Jane o olhava com os olhos exagerados.
—Alguma vez recebeu lições? O que estava tocando então? Como
aprendeu a tocá-lo?
Ela sabia as reposta, mesmo antes de formular as perguntas. O duque
não respondeu, limitou-se a apertar os lábios.
—Não o deixa solto nem sequer para deitar-se? — ele perguntou em
troca.
Referia-se ao cabelo. Estava falando de seu cabelo, que tinha
recolhido em uma grossa trança que caía pelas costas. Mas não pensava
deixar-se distrair.
—Você a compôs —disse— Não é?
O duque encolheu os ombros.
—Como disse, sou um simples aficionado.
—Por que se envergonha de seu talento? —quis saber— Por que se
mostra tão disposto a desdenhá-lo e inclusive a negá-lo?
Nesse momento o viu esboçar um lento sorriso.
—Não conhece absolutamente minha família —assinalou o duque.
107
—Suponho que tocar piano, compor música e amar a música é algo
indigno de um Dudley.
—Qualidades quase efeminadas —conveio ele.
—Bach era um homem —disse Jane, que se aproximou do duque e
deixou a vela no piano, junto ao candelabro que iluminava o
instrumento— Todos os compositores eram efeminados?
—O teriam sido se fossem um Dudley. —Olhou-a com um sorriso
feroz— Jane! Está descalça? Que atrevimento mais indecoroso!
—Quem disse? Não irei permitir que troque de assunto.Você, seu pai
ou seu avô?
—Todos somos um —respondeu ele— Como a Santíssima Trindade.
—Isso é uma blasfêmia —o corrigiu com firmeza— Seu pai deve ter
sido consciente de seu talento. Não é algo que possa esconder-se
indefinidamente. Porque acaba saindo à luz com força, como aconteceu
esta noite. Não o encorajou a desenvolvê-lo?
—Aprendi logo que não devia tocar quando ele estava em casa —
respondeu o duque— Depois que me pegou duas vezes. Nunca gostei
muito de ter que dormir de barriga para baixo toda a noite por culpa de
um traseiro dolorido.
Jane estava muito furiosa para falar. Limitou-se a olhá-lo fixamente
com os lábios apertados. Limitou-se a olhar esse cínico e perigoso
libertino a quem seu pai lhe tinha arrancado a base de golpes todo
vestígio de sua natureza artística e sensível. Um pai tão ignorante e débil
para temer algo que parecesse feminino. Por que esse tipo de homens
não compreendiam que uma pessoa amadurecida e equilibrada,
independentemente de seu gênero, era uma sutil mescla de qualidades
masculinas e femininas? Mas aí estava esse pobre homem, tratando de
ajustar-se ao ideal masculino que o tinham inculcado um par de
ignorantes com bastante êxito.

108
O duque se voltou para o piano e começou a tocar com suavidade.
Uma peça que nessa ocasião sim resultou familiar a Jane.
—Conhece? —perguntou ele sem olhá-la.
—Sim —respondeu— É Barbara Allen. —Uma peça popular preciosa
e muito triste.
—Você canta? —quis saber o duque.
—Sim —respondeu ela em voz baixa.
—Sabe a letra?
—Sim.
—Pois cante-a —disse quando se deteve para observá-la— Sente-se
a meu lado no banco e cante. Já que veio, faça algo útil. Tentarei tocar
medianamente bem.
Jane o obedeceu e contemplou as mãos do duque enquanto tocava
algumas notas de introdução. Já tinha notado em outras ocasiões, que
tinha os dedos largos. Dado que se tratava do Duque de Tresham, nunca
tinha pensado que fossem mãos artísticas. Mas nesse momento lhe
resultou óbvio. Viu-o acariciar as teclas como se estivesse fazendo amor
à música em vez de limitar-se a produzi-la.
Jane cantou a canção do princípio ao fim, face ao longa que era. Uma
vez superada a vergonha inicial, esqueceu-se de tudo exceto da música
e cantou a triste história de Barbara Allen. Cantar sempre tinha sido uma
de suas maiores satisfações.
Quando a canção chegou a seu fim, produziu-se um longo silêncio.
Jane seguiu sentada com as costas muito retas e as mãos entrelaçadas no
colo. O duque seguiu acariciando as teclas. Esse foi, pensou Jane mal
assimilando o significado do pensamento, um dos momentos mais
maravilhosos de sua vida.

109
—Meu Deus! —exclamou o duque em voz baixa, rompendo o silêncio
e pronunciando as palavras sem seu habitual tom ofensivo— Contralto.
Esperava que tivesse voz de soprano.
O momento passou e Jane foi muito consciente de que se encontrava
sentada ao lado do Duque de Tresham na sala de música, vestida só com
a camisola e com uma capa, com o cabelo recolhido em uma trança. E
descalça. Ele levava umas calças muita justas e uma camisa branca, com
o pescoço desabotoado.
Não lhe ocorria uma maneira de levantar-se e sair da estadia sem
montar uma cena.
—Jamais na vida ouvi uma voz tão formosa —afirmou o duque—
Nenhuma voz que se adapte com tal perfeição à música e ao sentimento
da canção.
Apesar do incomodo, o comentário a adulou.
—Por que não me disse isso quando pedi que tocasse o piano e lhe
falei com franqueza de seu talento? Por que não me disse que cantava?
—Não me perguntou —respondeu ela.
—Maldição, Jane! Como se atreve a manter algo assim escondido? Um
talento como o seu merece ser compartilhado, não oculto do mundo.
—Touché —replicou em voz baixa.
Seguiram sentados em silêncio um momento. E depois o duque pegou
sua mão e a sustentou sobre a banqueta, entre eles. De repente, teve a
impressão de que a estadia ficava sem ar.
—Não deveria ter descido —disse ele— Ou talvez devesse ter se
limitado a entrar na biblioteca sem fazer ruído e escolher seu livro sem
se deixar levar pela curiosidade. Surpreendeu-me em um mau momento.
Jane entendia ao que se referia. Porque para ela também era um mau
momento. Estavam apanhados em uma situação desconhecida para
ambos: um doce instante de melancolia. E estavam juntos a sós, como
110
era o habitual, é obvio. No entanto, nessa ocasião estavam
completamente a sós, sem criados ao outro lado da porta. A meia-noite.
—Sim —foi o único que lhe ocorreu dizer. Depois ficou em pé,
afastando as mãos da do duque. Não obstante, exceto o bom senso, tudo
a insistia a ficar.
—Não vá —o ouviu dizer com uma voz extraordinariamente rouca
enquanto se voltava até ficar de costas ao piano— Não me deixe ainda.
Jane apenas se permitiu um momento, um breve instante, para tomar
uma decisão. Podia fazer caso ao bom senso, o desejar boa noite e sair
da estadia. O duque não poderia detê-la, não o tentaria sequer. Ou podia
ficar e prolongar essa situação tão tensa com as defesas baixas por
completo. Não havia tempo para debater consigo mesma. Deu os dois
passos que a separavam do duque e se deteve justo frente a ele.
Depois levantou as mãos e as colocou na cabeça como se estivesse
benzendo-o. Seu cabelo era sedoso e quente. O duque a pegou pela
cintura e a aproximou dele. Com um suspiro, apoiou a cabeça entre seus
seios.
Tola! Disse-se enquanto fechava os olhos e desfrutava das sensações
físicas produzidas por seu toque, sua proximidade e o aroma de sua
colônia.
Tola! Repetiu-se, mas sem muita convicção.
Quando o duque por fim levantou a cabeça e a olhou aos olhos, viu
neles uma expressão insondável. Jane se ajoelhou no chão entre suas
pernas separadas. Não soube por que o fez, talvez porque notou a
pressão de suas mãos ou talvez induzida por algum instinto que não
requeria pensamento algum. Ao colocar os braços sobre o ajustado
tecido que lhe cobria as coxas sentiu a dureza de seus músculos.
Levantou a cabeça.
O duque estava inclinado sobre ela enquanto seus dedos acariciavam
seu rosto com a suavidade de uma pluma, mas deixando por onde
111
passava um rastro de fogo que a abrasava até o mais profundo de seu
corpo. Tomou seu rosto entre as mãos e a beijou.
Não era seu primeiro beijo. Charles tinha sido seu pretendente
durante quatro anos, além de ser seu amigo de infância. Em algumas
ocasiões ficaram a sós e lhe tinha permitido beijá-la. Gostou de seus
lábios.
Mas nesse momento compreendeu que jamais a tinham beijado. Não
de verdade. Não como o estava fazendo o Duque de Tresham.
Nunca a tinham beijado assim!
Apenas estava lhe roçando os lábios. Esses olhos escuros estavam
abertos, igual aos seus. Era impossível não deixar-se levar pelas
sensações físicas, o desejo estalava por todo seu corpo até um ponto
quase doloroso. Era impossível ignorar o que estava acontecendo e com
quem estava ocorrendo. E depois lhe seria impossível enganar-se com a
desculpa de que a tinha cegado uma paixão irrefletida.
Porque não havia nada de irrefletido no que estava acontecendo.
O duque deixou uma chuva de beijos sobre suas maçãs do rosto, os
olhos, as têmporas, o nariz e o queixo. E depois retornou aos lábios para
roçá-los com suavidade e convidá-la a que lhe devolvesse o beijo da
mesma forma.
Jane descobriu com crescente assombro que um beijo não tinha por
que ser um mero roce de lábios. Também se usava a língua, que notou
como acariciava o úmido interior dos lábios. Ela também usou a sua,
movendo-a devagar sobre o lábio superior do duque e depois sobre o
inferior. Em certo momento, ambas as línguas se roçaram antes que a do
duque decidisse explorar o interior de sua boca. Sugou-a, acariciou-a e
lhe arrancou profundos gemidos, embora ele também gemesse.
E depois seus braços a rodearam com força enquanto se inclinava
sobre ela, quase a elevando contra seu forte peito, e o beijo se

112
transformou em um momento apaixonado e delirante que despertou em
Jane o anseio por experimentar muito mais.
De repente, se descobriu ajoelhada no chão. O duque cobria a mão
que ela tinha apoiada em sua coxa com a sua e esses olhos escuros a
olhavam com as pálpebras entreabertas.
—Pela manhã nos veremos obrigados a nos castigar mutuamente por
isso, Jane — advertiu— Descobrirá com surpresa o diferente que te
parecerá então o que aconteceu. Proibido. Impossível. E inclusive
sórdido.
Ela negou com a cabeça.
—Já o verá —insistiu o duque— Só sou um libertino, querida, sem
outras pretensões exceto a de te deitar no chão para desfrutar me
enterrando em seu corpo virginal. E você é tão inocente que contempla
tudo com assombro. Minha criada. Minha empregada. É impossível. E
sórdido, certamente. Agora mesmo acredita que o que aconteceu é
precioso. Vejo-o em seus olhos. Mas não o é, Jane. Isso é o que um
libertino experiente consegue que pensem as mulheres. Em realidade,
não é mais que desejo sexual puro e duro. Desejo por lançar-se a uma
relação rápida e vigorosa. Vá para cama. Sozinha.
Tanto sua voz como sua expressão eram desanimadas. Jane ficou de
pé e se afastou dele. No entanto, não partiu imediatamente. Olhou-o
fixamente aos olhos para examinar a máscara que havia tornado a
colocar-se em seu lugar. A máscara impenetrável. O duque lhe devolveu
o olhar com o indício de um sorriso zombador nos lábios.
Tinha razão. O que tinha acontecido era de índole física. Muito carnal.
Mas também estava equivocado. Não saberia explicar com exatidão o
que estava errado na análise que acabava de fazer. Mas estava.
Equivocava-se.

113
Mas, tinha razão ao dizer que era impossível. E ao afirmar que
pareceria muito distinto pela manhã. Não poderia encará-lo com a
mesma tranquilidade com a que o olhava nesse instante.
—Boa noite, sua graça — disse.
—Boa noite, Jane.
O duque já tinha dado as costas para voltar a enfrentar o piano
enquanto ela agarrava a vela para partir e fechava a porta ao sair. Estava
tocando uma melodia serena e melancólica.
Ela estava na metade da escada quando recordou que tinha descido
em busca de um livro. Não voltou a descer.

Capítulo 9

—Sim, um banquinho me virá muito bem —disse Jocelyn,


gesticulando de forma vaga ao criado que o tinha perguntado. Seria uma
maravilha.
Tinha ido ao White’sde carruagem em vez de fazê-lo a cavalo, mas ele
deveria ter usado as muletas ao descer ao invés de uma bengala robusta.
A bota oprimia angustiosamente a panturrilha, que seguia dolorida. Se
não tomasse cuidado, teriam que cortar a bota quando retornasse a casa.
E já tinha perdido assim as suas preferidas no dia do duelo.

114
—E me traga o Jornal matutino — ordenou ao criado enquanto
apoiava a perna no banco sem esforço aparente, mas com um suspiro de
alivio ao seu coração.
Tinha saído de casa cedo, para evitar encontrar-se com ela já que essa
mulher madrugava muito. Pegou o Morning Post e olhou a capa,
franzindo o cenho enquanto o fazia. Que diabos fazia escapando tão cedo
de sua própria casa para adiar o encontro com uma criada?
Não sabia o que o envergonhava mais… Se acaso era correto aplicar
o termo «vergonha». Talvez fosse mais adequado à palavra
«desconforto». Mas nenhuma dessas emoções o resultava especialmente
conhecidas.
Tinha-o surpreendido tocando piano. Interpretando uma de suas
próprias composições. E a tinha beijado. Maldição! Mas estava sozinho e
inativo muito tempo, razão pela que tinha quebrado uma de suas regras
sagradas e tinha caído ainda mais baixo em sua própria estima. Se não
tivesse doído a perna até o ponto de distraí-lo, provavelmente a teria
deitado no chão e teria se apropriado do tesouro que se ocultava sob a
barreira de sua camisola transparente. E a muito inocente não o teria
impedido.
—Tresham? Valha-me Deus, mas é você! Como está, meu amigo?
Jocelyn agradeceu poder abaixar o jornal, que tão pouco estava lendo,
para conversar e saudar os conhecidos que começavam a chegar ao
clube em busca dos rumores matutinos e os jornais.
—São, salvo e me movendo muito devagar para meu ritmo habitual
—respondeu.
Os seguintes minutos foram uma sucessão de alegres saudações e
comentários engenhosos sobre a perna do Duque de Tresham e o
elegante banquinho sobre o que descansava, assim como a grossa
bengala apoiada na poltrona.

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—Começávamos a acreditar que estava desfrutando de sua corte em
Dudley House, Tresh —brincou o Visconde de Kimble— e que fosse ficar
ali para sempre.
—Com a deliciosa senhorita Ingleby para atender todas suas
necessidades —acrescentou o Barão Pottier— Já está usando botas
novamente, Tresham?
—Quer que eu venha ao White’s com sapatos de dança? —Jocelyn
arqueou as sobrancelhas.
No entanto, Sir Isaac Wallman tinha pegado um detalhe interessante.
—A deliciosa senhorita Ingleby? —perguntou— A enfermeira? A
mesma que gritou durante o duelo? Grande trapaceiro, Tresham. Como
esteve atendendo suas necessidades?
Jocelyn colocou o monóculo e olhou ao dândi de cima abaixo muito
devagar.
—Me diga, Wallman —disse com sua voz mais enfastiada— a que
atroz hora da madrugada se levantou para que seu valete tivesse tempo
de criar semelhante obra de arte com sua gravata? Teria resultado
exagerada inclusive para o baile mais grandioso. Embora talvez não para
uma noitada com o regente, o príncipe de todos os dândis.
—Levou-lhe uma hora inteira —replicou Sir Isaac com certo orgulho,
distraído imediatamente— E destroçou oito gravatas antes de fazê-lo
tão bem com a nona.
Jocelyn baixou o monóculo enquanto o Visconde de Kimble bufou
com desdém.
Uma vez concluídas as brincadeiras de rigor, a conversa se desviou
para a corrida de tílburis de Londres a Brighton que se celebraria dentro
de dois dias e a presença em Londres do Conde de Durbury, que tinha
ido à cidade em busca da assassina de seu filho, embora se mantivesse
fechado. Quase todos os cavalheiros presentes estavam muito

116
decepcionados pelo fato de que o conde não se deixasse ver e assim dar
de presente à enfastiada alta sociedade os detalhes mais macabros.
Sidney Jardine, que tinha ascendido um ano antes à posição de
herdeiro de um condado quando o título recaiu sobre seu pai, nunca
tinha sido muito popular entre seus pares. Jocelyn só tinha tratado com
ele durante um baile da alta sociedade celebrado há alguns anos quando,
diante dele, Jardine fez um comentário muito vulgar dirigido a uma
jovenzinha e a sua mãe (na presença de ambas), pelo simples fato de que
tinham recusado seu convite para dançar. Jocelyn o tinha convidado
para dar um passeio pelo terraço ao lado do salão de baile.
Uma vez no terraço ordenou a Jardine com suma amabilidade que
fosse para casa imediatamente, ou ao inferno se o preferia, a menos que
desejasse ficar e que o lavassem a boca com sabão. Quando um furioso
Jardine tentou desafiá-lo a duelo, Jocelyn levou o monóculo ao olho e
informou a seu suposto adversário que tinha uma regra inquebrável
pela que só se batia em duelo com cavalheiros.
—Sou da opinião —disse nesse momento— de que deveriam felicitar
Lady Sara Illingsworth em vez de repreender sua atitude. Embora se for
sensata, a esta altura já terá abandonado Londres.
—Mas não o fez em uma carruagem do correio, Tresh —comentou o
Visconde de Kimble— Tenho entendido que os investigadores da Bow
Street levaram a cabo uma investigação muito exaustiva. Ninguém que
encaixe em sua descrição foi vista viajando na carruagem do correio.
—Isso quer dizer que aprendeu algo desde que chegou à cidade —
comentou Jocelyn— Me alegro por ela. Estou certo de que a obrigaram a
fazê-lo. Por que se não ia uma jovem golpear um cavalheiro na cabeça?
—Você deveria sabê-lo, Tresham —respondeu Sir Isaac com uma
risada, por isso ganhou outro escrutínio do duque através do monóculo.
—Onde guarda Ferdinand seus cavalos novos? —perguntou Jocelyn
ao grupo em geral, embora seguisse olhando a um aumentado e
visivelmente incômodo Sir Isaac— E onde os exercita? Suponho que está
117
muito ocupado preparando-os para a corrida. Será melhor que eu vá vê-
lo para comprovar se for matar-se na sexta-feira. Nunca teve muito bom
olho para os cavalos.
—Acompanho-te, Tresh —se ofereceu o Visconde de Kimble
enquanto Jocelyn baixava o pé do banco e se voltava para pegar sua
bengala— Necessita ajuda?
—Se aproxime e verá o que é bom! —grunhiu Jocelyn ao mesmo
tempo em que ficava em pé com toda a elegância da que foi capaz e
apertava os dentes ao sentir a aguda dor que subiu pela perna direita—
E não necessito que me acompanhe Kimble. Vim em minha carruagem.
Essa admissão provocou outra explosão de brincadeiras e
comentários engenhosos de seus conhecidos, é obvio.
Jane lhe jogaria um bom sermão por isso quando voltasse para casa,
pensou Jocelyn, e imediatamente se zangou consigo mesmo por pensar
sequer em casa.
Deu com seu irmão justo onde esperava encontrá-lo, exercitando e
adestrando seus novos cavalos. Ao menos Ferdinand sim tinha tido bom
olho com esse par, descobriu com certo alívio. Não só eram bonitos, mas
também corredores soberbos. O problema era, como não, que Ferdinand
não levava com eles o tempo suficiente para conhecê-los bem, além de
ser um jovem impulsivo, nervoso e imprudente (um Dudley típico, de
fato), com mãos impacientes e a tendência a jogar maldições quando se
sentia frustrado.
—Tem que deixar que suas mãos sejam firmes e sedutoras ao mesmo
tempo —aconselhou Jocelyn com um suspiro depois de uma colorida
fileira de impropérios depois que os cavalos se negaram a mover-se ao
mesmo tempo— E tem que descansar um pouco a voz, Ferdinand,
porque do contrário quando chegar a Brighton não ficará nenhuma para
celebrar sua vitória.
— Abençoados cavalos! —resmungou seu irmão— Comprei um par
de divas.
118
—O que comprou é um par de cavalos excelentes a muito bom preço.
O que tem que fazer, se possível antes de sexta-feira, é lhes ensinar quem
manda.
Albergava certas esperanças de ganhar a substancial aposta que
tinha feito no White’s. Ferdinand era muito bom com as rédeas, embora
um pouco errático, e acreditava que a superioridade consistia em
assumir riscos desnecessários.
—Mas com seu tílburi, Tresham —comentou Ferdinand com falsa
indiferença— faria que Berriwether comesse pó deixando-o a cinco
quilômetros atrás. É mais ligeiro e tem uma suspensão melhor que o
meu.
—Pois vai ter que se contentar deixando-o dois quilômetros atrás —
replicou Jocelyn com ironia.
—Um dia destes vou dar uma surra em Wesley Forbes —disse
Ferdinand mais tarde, uma vez cômodos em sua residência de solteiro,
onde Jocelyn tinha apoiado o pé direito em uma mesinha auxiliar—
Ontem à noite estava fazendo comentários ofensivos sobre certa pessoa
que passeia por aí com muletas para convencer o mundo de sua
fraqueza, mas a quem esquece que a perna está ferida. Às vezes a certa
pessoa oscila com a perna direita elevada e depois com a esquerda. E
pensa ser o tipo mais esperto do mundo.
Jocelyn bebeu um sorvo de seu clarete.
—Nesse caso não podia estar referindo-se a mim, não acha? —
assinalou ele— Não se deixe provocar Ferdinand. Não te convém uma
briga antes da corrida. E nunca por minha causa.
—O teria dado um murro ali mesmo, no salão de jogos —continuou
Ferdinand— se não fosse porque Max Ritterbaum me agarrou pelo
braço e me levou arrastado ao Brookes’s. O assunto, Tresh, é que
nenhum deles tem a guelra de lhe dizer isso à cara. E pode estar seguro
de que nenhum terá a decência de atravessá-lo com uma luva. São muito
covardes.
119
—Deixa-me isso —disse Jocelyn— Concentre-se na corrida.
—Permita-me que te sirva outra taça —sugeriu Ferdinand— Viu a
última monstruosidade de Angeline?
—Um chapéu? —perguntou Jocelyn— De cor mostarda? Horrível.
—Azul —o corrigiu seu irmão— com listras violetas. Queria que a
levasse para dar um passeio pelo parque com ele posto. Disse-lhe que ou
o chapéu ou eu a levaríamos ao parque, mas não os dois juntos. Me
converteria em um bobo, Tresham. Nossa irmã nasceu com um terrível
defeito: mau gosto. O fato de que Heyward a anime pagando todas as
faturas me escapa por completo.
—Está apaixonado por ela —aduziu Jocelyn— E o sentimento é
mútuo. Ninguém o adivinharia ao vê-los juntos, ou ao não vê-los juntos,
que é o mais habitual. São tão discretos sobre sua relação como amantes
clandestinos.
Ferdinand soltou uma gargalhada.
—Por Deus, imagine alguém apaixonado por Angie! —exclamou.
—Ou por Heyward —acrescentou Jocelyn, enquanto balançava o
monóculo pela fita.
Era um enorme alívio, pensou mais tarde enquanto retornava a casa,
ir recuperando sua vida.

Se Jane tinha acreditado por um instante que o acontecido à noite


anterior tinha significado algo para o Duque de Tresham, não demorou
muito em averiguar a verdade. Embora não albergasse essa esperança,
em ocasiões as emoções desafiavam a razão.
O Duque não retornou até o final da tarde. E nem sequer então lhe
ordenou apresentar-se ante ele, mas sim se trancou na biblioteca com o
senhor Quincy. Era quase a hora do jantar quando a mandou chamar.

120
Seguia na biblioteca. Estava sentado no divã, com a perna direita
apoiada na almofada. Ia totalmente vestido exceto pela bota direita.
Também tinha o cenho franzido.
—Nenhuma só palavra —disse ele antes que pudesse abrir a boca
sequer— Nenhuma só palavra, senhorita Ingleby. É obvio que tenho a
perna dolorida e é obvio que a Barnard há custado à própria vida me
tirar à bota. Mas era hora de que a exercitasse, e também era hora de que
eu saísse desta casa durante o dia. Ou do contrário me rebaixaria à
violação e ao abuso.
Não tinha esperado que o duque se referisse ao incidente da noite
anterior depois de estar ausente todo o dia. A véspera lhe parecia um
sonho. Talvez não seu abraço, um pouco alheia a sua experiência e a suas
expectativas que não poderia nem ter imaginado, a não ser ao feito de
ter visto e ouvido o Duque de Tresham tocar piano e criar música com
suas teclas.
—Suponho que pensou que era amor, não, Jane? —começou ele,
intimamente e olhando-a pela primeira vez com esses olhos negros e
com um humor ainda mais negro— Ou afeto? Ou algum sentimento
nobre?
—Não, sua graça —respondeu— Não sou tão inocente como você
pensa. Reconheci o desejo físico em ambos. Por que ia pensar que um
libertino que se gaba de sê-lo teria sentimentos por sua criada? E por
que teme que uma mulher como eu caia rendida a seu perigoso e
legendário encanto quando levo padecendo com seu mau humor e
grosseiro vocabulário há mais de duas semanas?
—Que por que… «temo»? —O duque apertou os olhos— Deveria ter
suposto que diria a última palavra, Jane. Que tolo fui ao imaginar que
ontem à noite te alterei algo.
—Sim —conveio ela— Suponho que sua perna está inflamada. Tem
que colocá-la em água fria. E mantê-la aí um momento.
—E congelar meus dedos?
121
—Imagino —disse ela— que semelhante desconforto é melhor que
ver como se enegrecem nas próximas semanas.
O duque apertou os lábios e por um instante viu algo parecido a um
sorriso em seus olhos. Mas não cedeu à tentação.
—Se amanhã planeja sair de novo —continuou ela— rogo-lhe que me
dê meio-dia livre, sua graça.
—Por quê? —Voltou a franzir o cenho.
As mãos que tinha unidas ficaram geladas e umedeceram ao pensar
no motivo, mas já não podia deixar-se vencer pelo pânico. Cedo ou tarde
devia aventurar-se a abandonar o refúgio de Dudley House.
—Chegou o momento de que comece a procurar outro emprego —
respondeu— Resta menos de uma semana aqui. De fato, já não me
necessita. Nunca me necessitou. Você nunca precisou uma enfermeira.
O duque a olhou fixamente.
—Isso quer dizer que vai me abandonar, Jane?
Tinha estado reprimindo com todas suas forças a dor que sentia ao
pensar em fazê-lo. Uma dor que não tinha causa nem racional, nem
justificada. Embora, é obvio, a noite anterior tinha visto uma faceta de
sua personalidade totalmente distinta.
—Meu trabalho aqui logo chegará a seu fim, sua graça —lhe
recordou.
—Quem disse isso? —Olhava-a com expressão pensativa— Não diz
mais que bobagens, sobre tudo quando não tem nenhum outro lugar
para ir.
De repente, sentiu um raio de esperança. Tinha estado considerando
a ideia de perguntar ao duque, ou de perguntar a governanta, já que era
ela quem contratava o pessoal, se podia ficar como criada ou como
donzela. No entanto, não acreditava poder fazê-lo. Seria incapaz de viver
em Dudley House desempenhando funções inferiores às que tinha
122
estado realizando até esse momento. Claro que não podia permitir que
o orgulho ditasse seus atos.
—Foi acordado que eu ficaria como sua enfermeira enquanto sua
ferida o obrigasse a permanecer em repouso. Durante três semanas.
—Isso quer dizer que fica quase uma semana —recordou ele— Não
penso tolerar que procure outro trabalho, Jane, até que tenha
completado o prazo. Não a pago para que passe a manhã percorrendo
Londres em busca de outro patrão que a pague mais que eu. Quais são
seus honorários, por certo?
—Mais do que mereço —respondeu— O dinheiro não é o problema,
sua graça.
No entanto, estava se mostrando teimoso.
—Não quero escutar nada mais sobre este tema por pelo menos uma
semana— ordenou— Mas tenho uma tarefa para você na quinta-feira de
noite, Jane. Amanhã. E a pagarei bem por ela. A recompensarei com o
que merece.
Olhou-o com cautela.
—Não fique junto à porta como se estivesse a ponto de sair correndo
—resmungou ele, irritado— Se quisesse atacá-la, faria sem importar a
distância. Aproxime-se. Sente-se aqui.
O duque assinalou a cadeira que estava acostumada a ocupar.
Não tinha sentido discutir. Fez o que ordenava embora isso a colocou
a uma distância muito incômoda dessa aura tão viril que o rodeava.
Podia sentir sua colônia, e recordou que tinha sido uma parte muito
importante na experiência sensual da noite anterior.
—Vou celebrar uma festa amanhã à noite —disse o duque— Quincy
está redigindo os convites para enviá-los. Os convidados só às receberão
com um dia de antecedência, é obvio, mas a maioria virá. Verá, os

123
convites a Dudley House são tão escassos para ser muito solicitado,
apesar de minha reputação. Talvez precisamente por ela.
Passaria toda a noite atrás da porta fechada de seu quarto, pensou
Jane, que apertou as mãos com força sobre o colo.
—Me diga uma coisa, senhorita Ingleby —continuou o duque, que
deixou de usar de intimidade e seu primeiro nome— possui algum
vestido mais favorecedor que a atrocidade que leva agora mesmo e a
outra com a que a alterna?
Não. Nem pensar, pensou Jane. Certamente que não. Definitivamente
não, sem dúvida não.
—Não vou necessitar —assegurou com firmeza— Não vou ser uma
de suas convidadas. Não seria apropriado.
O duque arqueou as sobrancelhas com gesto arrogante.
—Por uma vez, senhorita Ingleby —disse ele— estamos de acordo
em tudo. Mas não respondeu minha pergunta. E apague essa expressão
obstinada de seu rosto. A faz parecer uma menina petulante.
—Tenho um vestido de musselina —admitiu— Mas não porei isso,
sua graça. Não é adequado para minha posição.
—O colocará amanhã à noite —a informou ele— E fará algo com seu
cabelo. Perguntarei a Barnard se alguma das donzelas tem experiência
em pentear uma dama. Se não houver nenhuma, contratarei uma para a
ocasião.
A Jane estava revolvendo o estômago.
—Mas acaba de dizer que não posso ser uma de suas convidadas —o
recordou— Não vou necessitar um vestido de musselina, nem um
penteado elegante para ficar sentada em meu quarto.
—Não se faça de tola —disse ele— Haverá um jantar, jogos de cartas,
conversas e música… Da que se encarregarão as damas às que vou
convidar. Todas as damas têm muito talento, por certo. Parece que entre
124
as mães é muito comum a crença errônea de que a habilidade de tocar
as teclas de um piano com aspecto primoroso é a forma mais fácil de
conquistar o coração de um homem e também sua fortuna.
—Pergunto-me o que o levou a ser tão cínico.
—Sério? —O duque esboçou esse sorriso ameaçador tão
característico— É o resultado de ter crescido com o título de conde e
logo de marquês. E de me converter em duque à tenra idade de dezessete
anos. Demonstrei uma e outra vez que sou o homem mais desalmado e
cruel de toda a Inglaterra. Mas todas as mães com filhas em idade
casadoura seguem beijando o chão que piso como se fosse o arcanjo
Gabriel, e todos os pais querem se fazer meus amigos. Por não
mencionar às sorridentes jovenzinhas virginais em questão.
—Um dia destes —replicou ela com secura— vai se apaixonar por
uma dessas jovenzinhas virginais e descobrirá que ela desdenhará seu
cortejo. Tem muito pouco respeito pela inteligência feminina, sua graça.
Pensa ser o melhor partido matrimonial de toda a Cristandade e,
portanto despreza a todos os que acredita que o seguem. Pois me deixe
lhe dizer que há umas quantas damas sensatas neste mundo.
O duque voltou a apertar os lábios, mas o brilho risonho de seus olhos
era inconfundível.
—A fim de proteger meu orgulho —disse ele— parece que incluímos
o mundo islâmico além da Cristandade?
Estava aprendendo a derrotá-la muito depressa, pensou Jane.
—Mas estamos em desacordo.
Sua expressão se tornou mais séria enquanto a olhava e Jane se
assustou, até o ponto de sentir um calafrio nas costas.
—Senhorita Ingleby, você será a atração principal da noite. Vai cantar
para meus convidados.
—Não! —ficou em pé de um salto.
125
—Certamente que sim —insistiu ele em voz baixa— Eu a
acompanharei ao piano. Acredito que admitirei ante a alta sociedade que
sou um músico aficionado. Não me assusta que minha masculinidade
fique em questão se me limitar a acompanhar uma vocalista. Acredita
que deveria fazê-lo?
—Não —respondeu ela— Não a todo o plano, refiro-me. Não vou
fazer. Não sou uma artista que atue em público e nem quero sê-lo. Não
pode me obrigar a fazê-lo e tão pouco acredito que possa. Não permitirei
que me intimide.
—Pagarei quinhentas libras, Jane —disse o duque em voz baixa,
usando de intimidade e voltando a usar seu nome de batismo.
Ela inspirou fundo para replicar, mas fechou a boca de repente. E
franziu o cenho.
—Quinhentas libras? —repetiu incrédula— Que coisa mais ridícula.
—Para mim não —replicou ele— Quero que cante em público, Jane.
Quero que a alta sociedade descubra o que eu descobri ontem à noite.
Tem um talento raro.
—Não pensa que vai me convencer com adulações para que aceite —
soltou. No entanto, sua mente já funcionava a marcha forçada.
Quinhentas libras. Não precisaria trabalhar em muito tempo. Poderia
ocultar-se em um lugar mais seguro que essa casa. Inclusive poderia
partir a algum lugar onde o conde e os investigadores da Bow Street não
ocorressem procurar.
—Quinhentas libras a liberariam da necessidade de ter que
encontrar outro emprego imediatamente, não é verdade? —perguntou
ele, que claramente tinha lido seu pensamento, ou uma parte.
Não obstante, primeiro teria que enfrentar uma casa cheia de
convidados. Haveria alguém em Londres, além do Conde de Durbury,
que conhecesse sua identidade real, que a tivesse visto como Lady Sara
Illingsworth? Perguntou-se. Não acreditava. Mas e se havia?
126
—Inclusive lhe direi, por favor, Jane —acrescentou o Duque de
Tresham, com uma falsa nota de humildade na voz.
Jane lançou um olhar de recriminação. Caberia a mais remota
possibilidade de que o Conde de Durbury estivesse entre os convidados?
Havia uma maneira de averiguá-lo, é obvio. Poderia perguntar ao senhor
Quincy se a permitia ver a lista de convidados.
—Pensarei —disse ela depois que seu estômago desse um tombo
muito incômodo.
—Suponho que é o máximo que posso esperar de você agora, não,
Jane? Não pode aceitar muito rápido ou dará a sensação de que permitiu
que a avassalassem. Muito bem. Mas sua resposta deve ser afirmativa.
Estou decidido que assim seja. Ensaiaremos amanhã pela tarde.
—Está esfregando a coxa de novo —assinalou ela— Suponho que não
vai admitir que cometeu uma estupidez ao sair hoje de casa, e uma
estupidez ainda maior ficar fora por tanto tempo. Permita chamar
alguém para que o ajude a subir a seu quarto e ordenar que lhe levem
água fria.
—Estive tentando ensinar meu irmão a distinguir a cabeça de um
cavalo de seus quartos traseiros —comentou o duque— Apostei uma
importante soma a seu favor no White’s, senhorita Ingleby, e estou
decidido a que ganhe a corrida.
—Mas que tolos são os homens —disse— Empregam suas mentes em
trivialidades e esbanjam suas energias em assuntos insignificantes. Se
Lorde Ferdinand resulta ferido na sexta-feira, talvez se dê conta de que
ele é muito mais importante para você que ganhar uma simples aposta.
—Se já terminou com o sermão —repôs o duque— pode fazer o que
sugeriu senhorita Ingleby, e enviar o criado mais forte que encontre.
Jane saiu da biblioteca sem dizer nada mais.
O que aconteceria se sua descrição circulava por Londres? Pensou de
repente. O que aconteceria se entrasse na sala de música na quinta-feira
127
de noite e os convidados reunidos se levantavam em uníssono para
assinalá-la com dedos acusadores?
Foi incapaz de reprimir a absurda sensação de que de certa forma
seria um alívio.

128
Capítulo 10

O duque não tinha por costume celebrar eventos sociais em casa, mas
quando o fazia, não regulava os gastos. Seu chefe não parava de
resmungar na cozinha, protestando pelo pouco tempo que lhe tinham
deixado para preparar o grande jantar com que se abriria a noite e o
refresco que se serviria a meia-noite. No entanto, lançou-se à tarefa em
um arranque de criatividade em vez de renunciar a seu emprego, como
ameaçava cada vez que se detinha o suficiente para recuperar o fôlego.
A governanta não protestou, mas ordenou com firme determinação a
suas tropas que limpassem até a última bolinha de pó das estadias que
se abririam para o evento e que deixassem todas as superfícies polidas
e brilhantes. Ela mesma se encarregou de dispor os frondosos arranjos
florais que Michael Quincy tinha encomendado.
Como Jocelyn havia previsto quase todo mundo aceitou o convite
embora dessa forma tivessem que cancelar outros planos prévios no
último momento. A oportunidade de ir a um jantar e um baile em Dudley
House não acontecia todos os dias.
O duque ordenou à governanta que selecionasse ou contratasse uma
donzela perita no penteado de uma dama. Também expôs a ideia de
levar Jane Ingleby a alguma costureira prestigiosa para encomendar um
vestido de noite que deveriam confeccionar em tempo recorde (ele tinha
uma influência considerável sobre duas ou três das costureiras mais
exclusivas de Londres que bastaria para obtê-lo), mas não o fez. Sem
dúvida, ela armaria um alvoroço e acabaria negando-se a cantar. Além
disso, não queria que aparentasse ser uma dama elegante, decidiu, já que
129
seus convidados questionariam a decência de ter acolhido durante três
semanas uma dama sob seu teto em qualidade de enfermeira.
Durante a tarde passou um bom momento com ela na sala de música,
ensaiando duas canções com as que poderia mostrar sua voz, e uma
terceira para fazer um bis, uma possibilidade que ela pontuou de
absurda, mas em que ele insistiu ser plausível.
Enquanto se arrumava para o baile, Jocelyn descobriu que estava
nervoso. Um fato que o alarmou muito e que fez que desprezasse a si
mesmo.

Quando era mais jovem, e seus pais eram vivos, Jane assistia aos
lanches campestres, aos jantares e aos bailes que organizavam com
frequência em Candleford Abbey. Seus pais adoravam organizar esse
tipo de eventos. No entanto, não recordava que tivessem convocado
alguma reunião em que a cifra de convidados se aproximasse sequer aos
cinquenta. As festas às que tinha assistido lhe pareciam muito
longínquas no tempo. Só era uma menina naquele tempo.
Essa tarde esteve sentada durante várias horas em seu quarto antes
de arrumar-se para descer, escutando as vozes e as risadas dos
convidados, imaginando o que estava acontecendo e o que aconteceria
quando a chamassem para cantar. No entanto, era impossível saber o
momento exato no que isso teria lugar. Jane era consciente de que as
festas da alta sociedade londrina não se pareciam absolutamente às que
se celebravam no campo, que quase nunca se prolongavam depois das
onze da noite ou da meia-noite o mais tardar. Na cidade não era estranho
passar toda a noite em bailes e depois, é obvio, dormir durante todo o
dia seguinte.
Talvez não a chamassem até meia-noite. Se tivesse que esperar tanto,
os nervos acabariam matando-a.

130
Por fim viu no relógio acima da lareira que Adèle, a donzela francesa
que tinham contratado só para que a penteasse essa noite, chamaria em
dez minutos a sua porta. Era hora de vestir-se.
Resultava muito tarde para arrepender-se da loucura que ia cometer.
Não havia ninguém entre os convidados que pudesse reconhecê-la, tinha
repassado com meticulosidade a lista com seus nomes. No entanto, o
Conde de Durbury se encontrava na cidade. E se algum dos convidados
estava a par de sua descrição física? Seu estômago encolheu. Mas já era
muito tarde.
Tirou o vestido de criada com determinação e colocou com cuidado o
vestido de musselina estampada recém-engomado que tinha esperado
seu momento estendido na cama. Era um traje perfeito para tomar chá
em uma propriedade campestre. Mas não o era absolutamente para um
baile noturno, nem sequer no campo. Mas isso não importava. Afinal, não
era uma convidada à festa.
Estremeceu com uma mescla de frio, nervos e medo.
Sua intenção quando fugiu a Londres não foi esconder-se. O que
deveria ter feito depois do terrível descobrimento de que Lady Webb
não se encontrava na cidade, pensou muito depois, era ficar no hotel
onde se alojava e contatar com o procurador do conde na cidade para
lhe pedir recursos. Deveria ter proclamado aos quatro ventos que
tinham abusado dela, que um descarado bêbado a tinha agredido e
tentado violar em Candleford Abbey durante a ausência dos condes e
que ela se limitou a defender-se o golpeando com um livro e afastando-
se todo o possível dele.
Mas não o tinha feito, e a essa altura já era muito tarde.
Escondeu-se. E agora estava a ponto de mostrar-se a cinquenta
convidados pertencentes à flor e nata da sociedade britânica.
Que loucura!

131
Ao longe se escutou a risada aguda de uma mulher. Alguém chamou
a sua porta, sobressaltando-a bobamente. Adèle tinha chegado para
penteá-la.

As onze em ponto, Lady Heyward, que fazia às vezes de anfitriã na


casa de seu irmão, anunciou o final dos jogos de cartas enquanto Jocelyn
indicava a uns quantos criados que levassem o piano do salão ao centro
da estadia e colocassem as cadeiras a seu redor. A parte musical da noite
estava a ponto de começar.
Várias damas jovens se fizeram voluntárias ou foram persuadidas
para tocar piano ou para cantar. Um cavalheiro, Lorde Rinding,
demonstrou a valentia de cantar um dueto com sua prometida. Todos se
mostraram muito competentes. Os convidados escutaram o recital mais
ou menos atentos e aplaudiram educadamente. A final, todos estavam
familiarizados com esse tipo de noitadas. Entre a alta sociedade só havia
uns quantos patronos que contratavam artistas profissionais para suas
festas, mas em certas ocasiões o evento se anunciava como um «concerto
privado».
Ao final, Jocelyn ficou em pé com a ajuda de uma bengala.
—Têm alguns minutos para esticar as pernas —anunciou assim que
obteve a atenção dos presentes— Consegui a colaboração de uma
convidada especial que vai entretê-los antes do jantar. Subirei para
procurá-la.
Sua irmã o olhou, surpreendida.
—Quem pode ser Tresham? —perguntou-lhe— Acaso está
esperando na cozinha? Como a encontrou se esteve quase três semanas
fechado em casa?
Não obstante, ele se limitou a inclinar a cabeça antes de sair do salão.
Durante toda a noite tinha sido incapaz de pensar em outra coisa que
não fosse esse momento, era um tolo. Quis que ela não tivesse mudado
132
de opinião. Quinhentas libras pareciam um incentivo poderoso, é obvio,
mas era consciente de que se Jane Ingleby decidia não cantar, nem
sequer cinco mil libras poderiam convencê-la.
Depois de enviar Hawkins por ela, esteve dois minutos passeando de
um lado a outro do vestíbulo, apoiado na bengala, até que a viu aparecer
na escada. Jane Ingleby se deteve no terceiro degrau e a pose recordou a
uma decente imitação de uma estátua. De uma estátua muito branca e
séria, com os lábios apertados, mas com um aspecto angélico. O simples,
leve e elegante vestido de musselina ressaltava sua figura
maravilhosamente, já que acentuava sua esbelta silhueta. Quanto a seu
cabelo… Enfim, foi incapaz de afastar a vista dele durante um bom
momento. Não levava um coque complicado. Não havia um excesso de
cachos de cabelo como tinha esperado. Tinha-o preso, mas sem a tensão
habitual. O penteado fazia que seu cabelo parecesse suave, são, lustroso
e elegante. Puro ouro brunido.
—Há, há —comentou— A mariposa acaba de abandonar o casulo.
—Seria melhor que não fizéssemos isto —replicou ela.
No entanto, Jocelyn se aproximou do degrau inferior da escada e
estendeu uma mão sem deixar de olhá-la aos olhos.
—Jane, não vou permitir que se acovarde agora —sentenciou— Meus
convidados aguardam a convidada especial.
—Terão uma decepção —o advertiu ela.
Era muito impróprio dela acovardar-se. Embora na realidade não
parecesse assustada. Mantinha-se muito erguida, elevando
orgulhosamente o queixo. E dava o aspecto de ter criado raízes no
terceiro degrau.
—Vamos —convidou, usando seus olhos de forma desavergonhada
para convencê-la.
Ela desceu até o penúltimo degrau e quando o viu estender a mão
com a palma para baixo, apoiou a sua e lhe permitiu acompanhá-la até o
133
salão. Seu porte era o de uma duquesa, pensou Jocelyn com o que em
outras circunstâncias teria pontuado de ironia. Mas nesse momento teve
a impressão de que lhe caía um venda dos olhos. Uma órfã? Criada em
um orfanato? Abandonada no mundo para fazer seu próprio caminho
porque já era maior? Nem por indício. Que tolo tinha sido ao deixar-se
enganar por essa história.
Uma história que convertia a Jane Ingleby em uma mentirosa.
—Barbara Allen em primeiro lugar —disse— Algo que me resulte
familiar para esquentar os dedos.
—Sim. Muito bem —conveio ela— Seguem aqui todos os convidados?
—Está esperando que quarenta e oito ou quarenta e nove se foram a
suas casas em busca de um sono reparador, não é? —replicou— Não
partiu ninguém, Jane.
Escutou-a inspirar fundo várias vezes enquanto um criado com libré
se apressava a abrir a porta do salão. Nesse momento a viu elevar o
queixo um pouco mais.
Parecia uma flor fresca do jardim entre um buquê de estufa, pensou
Jocelyn enquanto a conduzia entre as duas fileiras de cadeiras nas que
os convidados haviam tornado a sentar-se e das que olhavam com
interesse a sua convidada.
—Nossa! —exclamou Conan Brougham— Se não é a senhorita
Ingleby.
Produziu-se um murmúrio enquanto aqueles que conheciam a
senhorita Ingleby explicavam quem era a aqueles que não sabiam dela.
Todos, é obvio, estavam a par da história da aprendiz de costureira que
tinha distraído o Duque de Tresham durante o duelo com Lorde Oliver e
que depois se converteu em sua enfermeira.
Jocelyn a conduziu até o piano, situado no espaço disposto no centro
da estadia, e soltou sua mão.

134
—Damas e cavalheiros —disse— convenci à senhorita Ingleby para
que compartilhe com todos nós a que certamente seja a voz mais
gloriosa que tive o privilégio de escutar. Por desgraça, carece de um
pianista que lhe faça justiça, já que serei eu quem a acompanhe. E meu
talento não é nada do outro mundo. Mas suponho que ninguém o notará
assim que ela comece a cantar.
Ajustou as abas do fraque enquanto tomava assento no banco e
depois soltou a bengala no chão e flexionou os dedos várias vezes sobre
as teclas. Jane seguia de pé no mesmo lugar onde a tinha deixado, mas
em realidade não lhe prestou muita atenção. Porque estava apavorado.
Ele, que tinha enfrentado o canhão de uma pistola em quatro ocasiões
sem acovardar-se, assustado por ter que tocar piano frente a uma
audiência que nem sequer prestaria atenção mele porque estaria
absorta em Jane. Sentia-se muito exposto, quase nu.
Concentrou-se na tarefa que tinha por diante e começou a tocar os
primeiros acordes de Barbara Allen.
Durante a primeira estrofe da canção, a voz de Jane pareceu hesitante
e sem fôlego, mas depois relaxou como aconteceu com ele. De fato, não
demorou a esquecer-se de sua tarefa e começou a tocar mais por instinto
que de forma deliberada. Jane interpretou a canção melhor que nunca,
com muito mais sentimento, se acaso era possível. Compreendeu que era
o tipo de cantora que crescia ante o público. E seus convidados
formavam uma audiência muito atenta. Tinha certeza de que ninguém
se moveu até que Jane cantou a última sílaba da balada. E depois se
produziu uma pausa, um momento de silêncio absoluto.
E os aplausos. Não o aplauso discreto com o que a aristocracia
demonstrava seu respeito para seus pares, a não ser apreciação
entusiástica de um público que durante um bom momento tinha sido
transportado à outra dimensão graças ao talento de um verdadeiro
artista.

135
Jane pareceu surpreendida e um tanto envergonhada. Mas não
perdeu a compostura. Inclinou a cabeça e esperou que os aplausos
finalizassem e fossem substituídos por um silêncio espectador.
E começou a cantar Art thou troubled?De Handel. Talvez uma das
peças mais formosas compostas para uma voz de contralto. Ou isso tinha
pensado Jocelyn sempre. No entanto, essa noite teve a impressão de que
tinha sido escrita para ela em especial. Esqueceu-se da dificuldade de
procurar um acompanhamento ao piano apropriado para as palavras. E
se limitou a tocar e a escutar a voz de Jane, essa voz tão rica, tão
disciplinada e ao mesmo tempo tão carregada de emoção que lhe
provocou um nó na garganta, como se estivesse a borda das lágrimas.
—Está preocupado? —cantava Jane— A música te aliviará. Está
esgotado? Dará-te descanso. Dará-te descanso.
Jocelyn encontrou-se pensando que devia ter se preocupado e
esgotado muitíssimo tempo. Sempre tinha sido consciente do sedutor
poder da música para proporcionar alívio. Mas sempre tinha sido um
bálsamo proibido, um descanso negado. Porque a música era tenra,
efeminada e inapropriada para ele, para um Dudley, para o Duque de
Tresham.
—A música —seguiu Jane, tomando ar para que sua voz flutuasse nas
notas mais altas— A música te apanhará com sua voz divina.
Sim, pensou ele, sua voz era divina. Mas um Dudley só falava com voz
firme, masculina e humana, e poucas vezes se detinha para escutar. Ao
menos não escutava nada alheio à agitação de suas atividades diárias,
através das quais exercia seu domínio e seu poder. Certamente não
escutava música, nem prestava atenção a nada pertencente ao âmbito
espiritual que se pudesse alcançar com a música, já que levava o ouvinte
a um lugar que transcendia o físico e o mundo evidente, a um lugar que
só podia sentir-se, não descrever-se com palavras.
O doloroso nó que sentia na garganta não tinha desaparecido ainda
quando a canção chegou a seu fim. Fechou os olhos um instante
136
enquanto uma nova ovação quebrava o silêncio. Ao abri-los, comprovou
que seus convidados ficavam em pé, sem deixar de aplaudir, e que Jane
parecia muito envergonhada.
Levantou-se e, sem pegar a bengala, tomou a mão direita de Jane e a
levantou. Ela sorriu por fim e executou uma reverência a modo de
agradecimento.
A seguir interpretou a alegre, preciosa e complicada Robin Adair a
pedido da plateia. Ao dia seguinte a recordaria que já a tinha advertido,
pensou Jocelyn, mas sabia que essa noite seria incapaz de burlar-se dela.
Depois do bis, Jane teria fugido gostosa do salão. Viu-a dar alguns
passos apressados em direção ao corredor arrumado pelas duas fileiras
de cadeiras, mas seus convidados tinham outra ideia em mente. A noite
não tinha terminado. Tinha chegado a hora de tomar o refresco.
Ferdinand interrompeu seu caminho.
—Minha nossa, senhorita Ingleby! —exclamou com sincero
entusiasmo— Uma interpretação genial! Você canta maravilhosamente.
Nos acompanhe a sala de jantar para o refresco.
Seu irmão executou uma reverência e ofereceu o braço com um
sorriso, fazendo ornamento do considerável encanto que era capaz de
demonstrar quando deixava de pensar em cavalos, caça, boxe e as
apostas mais arriscadas dos clubes.
Jocelyn foi preso de um humor assassino.
Jane tentou escapar. Deu várias desculpas, mas após alguns instantes
descobriu que Ferdinand não era o único a quem tinha que convencer.
Estava rodeada de convidados de ambos os sexos ansiosos por falar com
ela. No entanto, embora seu emprego de enfermeira em Dudley House e
as circunstâncias que tinham levado a sua contratação podiam despertar
a curiosidade das pessoas viciadas nos falatórios e os escândalos,
Jocelyn não pensava que esses fossem os únicos motivos que a tinham
convertido no centro da atenção. Tratava-se de sua voz.

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Como era possível que a tivesse escutado duas noites antes sem dar-
se conta de que não se tratava só de uma voz extraordinária? Perguntou-
se nesse instante. Também era uma voz muito bem educada. E esse tipo
de educação não se adquiria em um orfanato, por muito bom que fosse.
Viu-a partir para a sala de jantar acompanhada por Ferdinand e com
Heyward ao outro lado, mantendo uma animada conversa sobre
Mesíahde Handel. Jocelyn se dispôs a atender ao resto dos convidados.

Seu professor de canto, a quem seu pai tinha levado a Cornualha após
gastar uma fortuna, tinha afirmado que poderia dedicar-se ao canto de
forma profissional se decidisse. Que podia atuar em Milão, em Viena ou
no Covent Garden, onde quisesse. Que podia converter-se em uma
estrela internacional.
Seu pai tinha declarado com delicadeza, mas também com firmeza
que uma carreira profissional, por brilhante e ilustre que fosse, era
impossível para a filha de um conde. Jane não se importou. Nunca havia
sentido a necessidade de conseguir a fama e o favor do público. Cantava
porque desfrutava fazendo-o e porque gostava de entreter seus amigos
e sua família.
Mas admitia que o êxito obtido essa noite em Dudley House era
sedutor. A mansão tinha sido transformada em um cenário maravilhoso
com todas as velas acesas e um sem-fim de frondosos arranjos florais
distribuídos em qualquer parte. Todo mundo se mostrava muito amável
enquanto a felicitava. Quase todos os convidados se aproximaram dela
uma vez na sala de jantar, alguns para lhe sorrir e dizer o muito que
tinham desfrutado com sua interpretação, e outros para falar um
momento com ela.
Nunca antes tinha estado em Londres. Nunca tinha se movido nesses
círculos tão seletos. No entanto, parecia-lhe muito adequado estar em
dita companhia. Porque esses eram seus pares. Esse era o mundo ao que
pertencia. Se sua mãe tivesse vivido mais tempo, se seu pai tivesse
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conservado a saúde, teria desfrutado sem dúvida alguma de uma
temporada social em Londres. Teria participado do grande mercado
matrimonial a fim de selecionar um marido adequado. Sentia-se em casa
entre os convidados do Duque de Tresham.
De modo que teve que fazer um grande esforço para lembrar-se que
não era uma deles. Já não. Entre eles se interpunha um enorme obstáculo
que apareceu quando Sidney, bêbado e ofensivo, decidiu tentar seduzi-
la e assim persuadi-la para que se casasse com ele. Sua intenção tinha
sido a de violá-la, com a cumplicidade de seus amigos, também bêbados.
No entanto, seu caráter nunca o tinha permitido tolerar os abusos sem
protestar. Daí que o golpeasse com um livro na cabeça.
E assim começou a cadeia de acontecimentos que a tinham
convertido em uma fugitiva. Grande fugitiva! Porque estava
participando de uma seleta reunião da alta sociedade, comportando-se
como se não tivesse a menor preocupação na vida.
—Com sua permissão… —murmurou, sorrindo ao mesmo tempo em
que ficava em pé.
—Nossa permissão? —perguntou Lady Heyward, surpreendida, mas
fazendo ornamento de sua educação— Não o damos senhorita Ingleby.
Acaso não vê que se converteu na convidada de honra? Heyward a
convencerá para que fique. Não é, meu amor?
No entanto, o aludido estava conversando de forma muito animada
com uma viúva vestida de roxo coberto por um turbante da mesma cor
coroado por uma pluma.
—Se me permite —atravessou o visconde de Kimble, tomando Jane
pelo cotovelo e conduzindo-a a uma cadeira que ficou vazia— Senhorita
Ingleby, você converteu-se em todo um enigma. A vimos atravessar
correndo o Hyde Park a caminho de seu trabalho, depois esteve
cuidando de Tresh como se fosse um espectro cinzento e agora fica a
cantar como se fosse um rouxinol adestrado. Me permita que a submeta

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a um interrogatório. —E esboçou um simpático sorriso mais que
ensaiado que suavizou o efeito de suas palavras.
Lady Heyward, que seguia de pé, deu umas palmadas para fazer-se
com a atenção dos convidados.
—Nego-me a que todo mundo parta depois do jantar —disse—
quando mal é meia-noite. Nego-me a que Tresham se converta amanhã
em um bobo. Assim vamos dançar no salão. A senhora Marsh tocará para
nós, não é assim, senhora? Tresham ordeno que enrolem o tapete ou o
faz você?
—Valha-me Deus! —exclamou Sua graça, segurando a alça de seu
monóculo— É todo um detalhe que se mostre tão preocupada com
minha reputação, Angeline. Darei a ordem. —E abandonou a estadia.
—Você deve me desculpar —disse Jane, após alguns minutos, depois
de responder de forma vaga às perguntas de Lorde Kimble— Boa noite,
milord.
—Agora terei um motivo mais para visitar Tresham durante os
próximos dias —afirmou o Visconde ao mesmo tempo em que se
inclinava sobre sua mão, que depois levou aos lábios enquanto a olhava
aos olhos com expressão admirada.
Outro cavalheiro perigoso pensou Jane, que se apressou a abandonar
a estadia, despedindo-se de alguns convidados à medida que caminhava.
Um cavalheiro que devia saber quão atrativo estava vestido de azul claro
e prata com seu cabelo loiro.
Mas essa noite não ia resultar fácil escapulir para seu quarto,
compreendeu conforme se aproximava do salão. O Duque de Tresham
acabava de sair do mesmo, caminhando com a ajuda da bengala. Vários
convidados já se encontravam na estadia, conforme comprovou Jane ao
passar pela porta. Outros já se aproximavam da sala de jantar.
—Já vai à cama, Jane? —perguntou o duque— Ainda é meia-noite.
—Sim, sua graça —respondeu— Boa noite.
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—Bobagens! —exclamou ele— Já ouviu Angeline. Segundo ela, você
se converteu na convidada de honra. E apesar de seu horrível gosto para
vestir-se, como terá podido comprovar por esse espantoso tom de rosa
choque que não lhe cai nada bem, sobre tudo com tantos babados, tão
franzido e com as infelizes plumas azuis que tem no cabelo… Apesar de
tudo isso, Jane, não há dama mais estrita que minha irmã. Terá que nos
acompanhar ao salão.
—Não —se negou.
O duque arqueou as sobrancelhas.
—Insubordinação? Vai dançar Jane. Comigo.
Ela pôs-se a rir.
—E com sua bengala?
—Jane —replicou o duque levantando a bengala e assinalando-a com
ele— isso foi um golpe baixo. Dançarei sem a bengala. Uma valsa, para
ser exato. Dançará uma valsa comigo.
O duque se moveu até interpor-se entre ela e a escada. Bastou um
simples olhar a seu rosto para comprovar que se encontrava de um
humor que não admitiria uma negativa. Claro que não pensava claudicar
sem apresentar uma boa batalha. Afinal, não podia obrigá-la a dançar.
—Você jamais dança valsa —afirmou.
—Quem disse isso? —perguntou ele.
—Você mesmo —respondeu Jane— Eu o escutei. Durante uma
conversa em que alguém mencionou o Almack’s.
—Esta noite farei uma exceção —sentenciou— Sabe dançar valsa,
Jane? Conhece os passos?
Acabava de lhe oferecer uma via de escape. Só tinha que dizer que
não. De fato, jamais tinha dançado em uma festa, exceto com Charles e
com alguns de seus amigos durante algumas reuniões familiares. No
141
entanto,a assaltou o repentino desejo de dançar uma valsa em Dudley
House entre seus pares antes de esconder-se em algum lugar onde não
a encontrassem jamais. De dançar uma valsa com o Duque de Tresham.
De repente, a tentação era esmagadora.
—Vejo que tem dúvidas —murmurou o duque, que se inclinou para
ela— Jane, agora não poderá negá-lo. Seu silêncio te traiu. —Ofereceu o
braço— Vamos.
Jane hesitou apenas um instante antes de colocar a mão em seu braço
para entrar no salão.
E dançar.
Para dançar uma valsa com o Duque de Tresham.

Jocelyn tinha uma coisa muito clara enquanto conversava com alguns
de seus convidados de mais idade, já que os mais jovens estavam
dançando uma alegre contradança: Jane Ingleby teria que partir logo.
Teria que afastar-se de Dudley House. Dele.
Essa noite se converteu no centro das atenções. Não estava dançando,
mas se encontrava rodeada por um nutrido grupo de admiradores, entre
os quais se encontrava Kimble e Ferdinand, que deveriam estar
dançando. Jane parecia um tanto imprópria com seu vestido de
musselina estampada e seu simples coque, pois as damas foram cobertas
de sedas, cetins, joias, plumas e turbantes. Mas todas elas pareciam
exageradas e pretensiosas em comparação a Jane.
Era a personificação da simplicidade. Como uma solitária rosa. Não,
uma rosa era muito magnífica. Como um lírio. Ou uma margarida.
Se lhe permitia ficar mais tempo em Dudley House, começariam os
rumores. Seus convidados deviam ter suposto que se tratava de uma
dama da cabeça aos pés, tal como devia ter acontecido a ele fazia já
algumas semanas. Certamente que a tinham tomado pela órfã de um
cavalheiro falido. Mas uma dama, afinal. E deliciosa, por certo.
142
Teria que buscar um emprego em algum lugar. Uma ideia do mais
deprimente, que decidiu arrancar de seus pensamentos ao menos por
essa noite. A contradança tinha acabado. Ficou em pé e deixou a bengala
apoiada na cadeira. Descobriu com alívio que caso se apoiasse por
completo na perna direita, não sentia uma dor exagerada. Caminhou até
a senhora Marsh, sentada ao piano.
—Cavalheiros, procurem seus casais —anunciou depois de falar com
a dama— para a valsa. —aproximou-se de Jane e, enquanto o fazia, teve
a má sorte de que seu olhar se cruzasse com os de Kimble e Brougham.
Ambos o olharam como se acabasse de lhe brotar uma segunda cabeça.
E sabia por que. Era de conhecimento de todos que o Duque de Tresham
não dançava valsa. Estendeu a mão direita
—Senhorita Ingleby?
—Vai se arrepender disto —o advertiu ela enquanto ocupavam seu
lugar sobre o parquet de madeira polida, ao descoberto depois de que
enrolassem o tapete— Possivelmente se verá obrigado a passar as
próximas duas semanas com a perna elevada.
—Nesse caso, terá a satisfação de me recordar que me advertiu —
replicou enquanto colocava a mão direita em sua cintura e com a
esquerda segurava sua mão direita.
Jamais dançava valsa pela simples razão de que era um baile muito
íntimo para um perito em evitar armadilhas que o levassem ao altar. No
entanto, sempre tinha pensado que quando a ocasião e a mulher fossem
adequadas, descobriria que a valsa era um dança maravilhosa.
Essa noite, tanto a ocasião como a mulher eram as adequadas.
As costas de Jane se arqueavam de forma deliciosa sob a palma de sua
mão. Estava muito perto dele, já que sua mão livre estava apoiada em
seu ombro, mas seus corpos nem sequer se tocavam enquanto giravam
pela estadia olhando-se aos olhos, alheios por completo ao resto dos
bailarinos e dos espectadores, como se não existissem. Percebia seu
calor corporal e a envolvia um sutil aroma de rosas.
143
Dançava divinamente, como se seus pés mal tocassem o chão, como
se formasse parte de si mesmo, como se ambos formassem parte da
música ou a música fosse parte deles. Encontrou-se sorrindo para ela.
Embora ela seguisse muito séria, acreditou ver um cálido sorriso em
seus olhos azuis.
Quando a música chegou a seu fim, Jocelyn compreendeu duas coisas:
que tinha abandonado sua acostumada arrogância e que a perna doía
muitíssimo.
—Vou à cama —disse ela, quase sem fôlego.
—Ah, Jane! —exclamou Jocelyn em voz baixa— Não posso te
acompanhar. Tenho convidados que atender.
Jane se separou de seus braços enquanto outros trocavam de casal ou
voltavam para o perímetro do salão.
—Mas te acompanharei até seu quarto —se ofereceu— Não, não tem
por que olhar minha perna dessa maneira. Não sou um aleijado, Jane, e
não vou me comportar como se fosse. Aceite meu braço.
Não importava se os viam partir juntos. Não demoraria muito em
voltar. E ela não seguiria tanto tempo em Dudley House para que se
produzissem falatórios. Nesse momento estava mais claro que nunca.
O vestíbulo e a escada pareciam muito tranquilos em comparação ao
ambiente que tinham deixado no salão, de onde lhes chegavam às
conversas. Jocelyn não mediu palavra enquanto subiam, devagar, já que
não levava a bengala. Não falou até que chegaram ao corredor,
tenuemente iluminado, que conduzia ao quarto de Jane.
—Teve o êxito que sabia que teria —disse então— Ou mais, se
couber.
—Obrigado —replicou ela.
Deteve-se ao chegar à porta do quarto, colocando-se frente a ela para
lhe impedir o passo.
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—Seus pais devem estar muito orgulhosos de você —disse.
—Si… —Jane se corrigiu a tempo. Olhou-o aos olhos com interesse,
como se quisesse assegurar-se de que o comentário se devia a um lapso
de cor— Meus conhecidos o estavam —replicou com tato— No entanto,
sua graça, um talento não é algo do que tenho que me orgulhar em
excesso. Minha voz não é nada do que presumir. Porque é um dom que
me foi concedido, igual a você sua habilidade de tocar piano.
—Jane… —sussurrou ele antes de inclinar a cabeça para beijá-la nos
lábios.
Não a tocou em nenhum outro lugar. Ela tão pouco o tocou. Mas seus
lábios se roçaram com suavidade e desejo, ansiosos como estavam desde
há tanto tempo, antes que um dos dois se afastasse. Jocelyn não soube
bem quem o fez.
Jane tinha uma expressão sonhadora nos olhos, produto da paixão, e
as bochechas rosadas pelo desejo. Seus lábios estavam entreabertos e
úmidos, a modo de convite. Jocelyn escutava o ensurdecedor ritmo de
seu coração nos ouvidos, e sabia que estava a ponto de esquecer a
realidade.
Ai, Jane! Quisera pudesse, pensou.
Olhou-a aos olhos fixamente antes de voltar-se para lhe abrir a porta.
—Menos mal que tenho convidados, Jane. Isto não vai funcionar, não
é? Não podemos seguir assim mais tempo. Boa noite.

Jane entrou a toda pressa em seu quarto sem olhar para trás. Ouviu
que a porta se fechava a suas costas e levou as mãos às ruborizadas
bochechas.
Ainda sentia o toque das mãos do duque na cintura enquanto
dançavam. Ainda sentia seu calor, cheirava sua colônia e tinha a
sensação de estar movendo-se com um ritmo perfeito ao compasso da
145
música. Ainda sentia a cercania da valsa, o erotismo e a sensualidade,
muito diferentes da simples alegria que havia sentido quando dançava
com Charles.
Sim, menos mal que tinha convidados.
Ainda sentia seu beijo, um beijo absolutamente apaixonado ou
lascivo. Muito pior. Um beijo tenro e doce. Não, não podiam seguir assim
muito tempo. Nem muito, nem pouco, em realidade. De repente, foi
consciente do enorme vazio que acabava de aparecer em seu interior.

Capítulo 11

A corrida até Brighton começaria no Hyde Park Corner às oito e


meia da manhã seguinte. Por sorte, parecia que ia fazer um dia claro e
sem vento, descobriu Jocelyn ao sair da casa, apoiado em sua bengala.
Subiu sem ajuda ao alto assento de seu tílburi e despachou com um
gesto seu lacaio quando este fez gesto de subir atrás. Depois de tudo, só
iria ao parque e voltaria em seguida. Ofereceria umas últimas palavras
de ânimo a Ferdinand… Não conselhos. Os Dudley não aceitavam muito
bem os conselhos, em especial da família.
Chegaria muito cedo, mas queria passar uns minutos a sós com seu
irmão antes que as pessoas aparecessem para animar os corredores
enquanto punham rumo a Brighton. Vários cavalheiros seguiriam os
tílburis em seus cavalos, é obvio, para assim presenciar o final da corrida
e celebrar com o ganhador ao chegar a seu destino. Em circunstâncias
normais Jocelyn teria sido um desses cavaleiros (não, em circunstâncias
normais teria sido um dos corredores), mas não nessa ocasião. Sua
perna estava muitíssimo melhor do que deveria depois de ter dançado
valsa a noite anterior, mas seria uma tolice submetê-la a uma longa e
dura cavalgada.
146
Ferdinand estava corado, impaciente e ansioso enquanto verificava
seus cavalos e conversava com Lorde Heyward, que tinha chegado
inclusive antes que Jocelyn.
—Estou obrigado a te dizer em nome de Angeline —dizia Heyward,
arqueando uma sobrancelha com evidente ironia— que tem que ganhar
a todo custo, Ferdinand; que não deve correr riscos suscetíveis de que
parta o pescoço; que a honra dos Dudley está em suas mãos; que não tem
que preocupar-se de nada exceto sua própria segurança… E um sem-fim
de coisas tão contraditórias como as anteriores, embora não vou te
martirizar com elas.
Ferdinand sorriu a seu cunhado e se voltou para saudar Jocelyn.
—Estão tão ansiosos como eu por ficar em marcha. —disse ao mesmo
tempo em que assinalava os cavalos com um gesto de cabeça.
Jocelyn levou o monóculo ao olho e examinou o tílburi que seu irmão
tinha comprado por um impulso há alguns meses antes somente por que
parecia elegante e veloz ao mesmo tempo. Ferdinand tinha se queixado
após, e certamente adoecia de certa estupidez que só se detectava
quando se conduzia. Jocelyn o tinha dirigido em uma só ocasião e não
sentia o menor desejo de repetir a experiência.
As chances eram contra Ferdinand nesta corrida, embora o duque
não desse por perdida sua aposta. A juventude e a vontade estava de
parte de seu irmão, igual à determinação familiar de nunca ficar em
segundo em qualquer competição masculina. E os dois cavalos
castanhos formavam um par que Jocelyn já quereria para ele. O tílburi
era sua debilidade.
Lorde Berriwether, o oponente de Ferdinand, aproximava-se entre
um verdadeiro rodeio de cavaleiros que tinha ido para animá-lo. Todos
eles tinham apostado por ele, é obvio. Alguns saudaram Ferdinand com
afabilidade.
—Bonitos cavalos, Dudley. —exclamou o senhor Wagdean
alegremente— Que pena que coxeiem de três patas cada um.
147
—Mais pena darão quando ganharem —replicou Ferdinand com um
sorriso— e façam comer o pó aos de Berriwether, que não têm essa
desculpa.
Berriwether demonstrou o pouco que o preocupava seu adversário
ao sacudir com o chicote uma invisível bolinha de pó da parte alta das
botas. A vestimenta do homem parecia mais adequada para um passeio
pela Bond Street que para uma corrida até Brighton. No entanto, isso
seria assunto dele, é obvio, assim que tivesse dado começo a corrida.
—Ferdinand —disse Jocelyn de forma impulsiva— será melhor que
troquemos os tílburis.
Seu irmão o olhou com indisfarçável esperança.
—Diz a sério, Tresham?
—Tenho muito apreço a minha aposta para te mandar rumo a
Brighton nessa caixa desmantelada —respondeu Jocelyn, que assinalou
com a cabeça o tílburi vermelho e amarelo.
Ferdinand não pensava discutir o tema. Em um abrir e fechar de
olhos, e com uma margem de apenas cinco minutos antes do começo
oficial da corrida, o lacaio de Ferdinand soltou os cavalos castanhos de
seu tílburi e os trocou pelos cavalos do duque.
—Lembre-se —disse Jocelyn, incapaz depois de tudo de resistir à
tentação de dar um conselho— que é um pouco mais leve que o teu,
Ferdinand, e que responde muito mais rápido às manobras. Assim freia
um pouco nas curvas.
Ferdinand subiu ao alto assento e pegou as rédeas que estendia seu
lacaio. Nesse momento estava sério, concentrado na tarefa que tinha por
diante.
—E devolva-me em uma única peça —acrescentou Jocelyn antes de
reunir-se com o resto dos espectadores— ou te esfolarei vivo.

148
Um minuto depois o marquês de Yarborough, o cunhado de
Berriwether, apontou com uma pistola ao céu, produziu-se um silêncio
espectador, soou um disparo e a corrida começou entre aplausos, uma
nuvem de pó e o barulho dos cascos dos cavalos.
Parecia uma carga de cavalaria, pensou Jocelyn enquanto observava
com certa melancolia os tílburis e os cavaleiros que se afastavam.
Dirigiu-se para a carruagem de Ferdinand e trocou algumas saudações
com outros espectadores.
Quisera tivesse levado seu lacaio com ele depois de tudo. Teria que
retornar para casa para que se fizessem cargo dos cavalos e para que
guardassem o tílburi na garagem antes de ir ao White’s. Mas não tinha
que entrar em casa. Não tinha motivo para fazê-lo e lhe sobravam os
motivos para não fazê-lo.
Havia tornado a beijá-la na noite anterior. E tinha admitido que não
podiam seguir como estavam. Terei que arrumar esse assunto. Ela tinha
que ir.
O problema era que não queria que ela se fosse.
Deveria ter se dirigido às cavalariças, recordou enquanto entrava em
Grosvenor Square e se aproximava da porta principal de Dudley House.
Tinha a cabeça em outro lugar. Daria a volta à praça e sairia dela.
No entanto, justo quando estava indicando aos cavalos que caminho
seguir, produziu-se uma série de incidentes que alterou seus planos por
completo, com tal rapidez que inclusive depois não soube bem o que
aconteceu primeiro. Escutou-se um forte rangido, o tílburi cambaleou
para a esquerda, os cavalos bufaram e empinaram, um homem gritou e
uma mulher chiou. E seu corpo golpeou de forma dolorosa, algo bastante
duro para deixá-lo sem fôlego.
Estava convexo de barriga para baixo na rua, diante da porta de sua
casa, quando conseguiu pensar de novo. Com os relinchos assustados
dos cavalos que alguém tentava acalmar, com a sensação de que haviam
recolocado todos os ossos de seu corpo e com alguém acariciando seu
149
cabelo (que diabos ocorreu a seu chapéu?) enquanto o assegurava em
um maravilhoso exemplo de estupidez feminina que ficaria bem, que
tudo se arrumaria.
—Maldição! —exclamou ele com ferocidade ao mesmo tempo em que
inclinava a cabeça e observava do chão o que tinha restado do tílburi de
seu irmão, que estava derrubado para um lado com o eixo partido.
Tal parecia que todas as casas do lugar estavam vomitando hordas de
interessados e preocupados espectadores… Estavam pegos às janelas
para presenciar sua humilhação?
—Dê tempo para recuperar o fôlego —disse Jane Ingleby, que seguia
acariciando seu cabelo— Alguns criados o levarão ao interior. Não tente
mover-se.
Isso era tudo o que ele precisava para a tremenda mortificação que
supunha o pior mês de toda sua vida.
—Se não é capaz de dizer algo sensato —replicou ele, que meneou a
cabeça com irritação para liberar-se de sua mão— melhor não dizer
nada.
Plantou as mãos no chão, momento no que se deu conta de que tinha
um buraco na palma de uma de suas caras luvas de couro e de que dita
palma estava esfolada, e se incorporou, fazendo caso omisso do grito
silencioso de seus músculos que tinham recebido um severo castigo.
—Mas que tolo é! —repreendeu-o Jane Ingleby, e para sua vergonha
se viu obrigado a apoiar-se com força em seu ombro… De novo.
Olhou o tílburi de Ferdinand com os olhos entrecerrados.
—Teria se partido quando estivesse na campina, conduzido a toda
velocidade —comentou.
Jane o olhou com o cenho franzido.
—É o tílburi de Ferdinand — explicou— O eixo está quebrado. Teria
se matado. Marsh! —chamou a gritos o encarregado de seus estábulos,
150
que seguia acalmando os cavalos enquanto alguém de outra das casas
soltava os ganchos— Examina até o último milímetro deste tílburi assim
que tenha a oportunidade. Quero um relatório dentro de meia hora.
—Sim, sua graça —replicou o aludido.
—Me ajude a entrar —ordenou Jocelyn a Jane— E deixe de
dramalhões. Não me cabe a menor dúvida de que vou ter muitos
arranhões que poderá atender tudo o que deseje, mas quando
estivermos na biblioteca. Alguém fez isto. Deliberadamente.
—Para matar Lorde Ferdinand? —perguntou ela enquanto entravam
na casa— Para que perdesse a corrida? Tolice. Ninguém estaria tão
desesperado por ganhar uma corrida. Foi um acidente. Eles acontecem,
você sabe.
—Tenho inimigos —replicou ele com secura— E Ferdinand é meu
irmão.
Desejou com todas suas forças que só tivessem alterado o tílburi.
Esse acidente tinha o selo dos irmãos Forbes. Desses bastardos
matreiros e trapaceiros.

Jane tinha se levantado com a firme decisão de abandonar Dudley


House esse mesmo dia. Sua utilidade nessa casa, por pouca que tivesse
sido, tinha chegado a seu fim. As três semanas tinham expirado. E o que
tinha aceitado fazer, e tinha feito à noite anterior para entreter os
convidados do duque tinha sido uma loucura absoluta. Cinquenta
membros da alta sociedade a tinham visto de verdade, vestida se não
com o esplendor da roupa que a teria posto a seu mesmo nível, sim com
um estilo que a diferenciava muitíssimo de uma criada.
Certamente era só questão de tempo que as pessoas que a buscavam
ouvissem a descrição de seu aspecto que circulava entre a alta
sociedade. De fato, surpreendia-lhe muitíssimo que não tivesse

151
acontecido já. No entanto, quando ocorresse, um grande número dos
convidados da noite anterior recordaria a Jane Ingleby.
Tinha que abandonar Dudley House. Tinha que desaparecer.
Aceitaria as quinhentas libras (outra loucura, mas estava decidida que o
Duque de Tresham cumprisse com sua parte do trato) e se esconderia.
Mas não em Londres.
Partiria a outro lugar. Sairia da cidade a pé e se afastaria o quanto
pudesse antes de tentar abordar um meio de transporte público.
Estava decidida a partir. Além de todas essas razões, estava o tenro
beijo da noite anterior, que tinha estado a um alarmante passo de
converter-se em uma paixão descontrolada. Já não era possível ficar em
Dudley House. E nãoia se permitir nem um só desejo pessoal. Ao menos
de momento não podia permitir-se ter sentimentos pessoais.
Foi em busca de água quente, unguentos e ataduras assim que deixou
o duque de Tresham na biblioteca. Estava sentada em um banco diante
da lareira,esfregando as maltratadas palmas com um bálsamo, quando o
encarregado dos estábulos pediu permissão para entrar.
—Bem? —perguntou o duque— O que encontrou Marsh?
—Definitivamente alteraram o eixo, sua graça—respondeu o
homem— Não se quebra dessa forma por uma causa natural.
—Eu já sabia —disse o duque com expressão séria— Envia alguém
de confiança ao estábulo de meu irmão, Marsh. Não, melhor ainda, vê
você em pessoa. Quero saber quem teve acesso a esse tílburi nos últimos
dias. Sobre tudo ontem e esta noite. Maldito seja! Estou certo de que
tanto meu irmão como seu lacaio foram bastante cuidadosos para
inspecionar o tílburi antes de uma corrida tão longa.
—Sei que esse seria nosso caso se você tivesse ido,sua graça— o
assegurou o encarregado.
O homem partiu e Jane ficou de cenho franzido.

152
—Se está pensando em usar essas ataduras —disse ele— esqueça-o.
Não penso andar por aí com duas patas enfaixadas durante uma semana.
—Esses cortes irão doer sua graça — o advertiu.
O duque esboçou um sorriso desanimado, e Jane se endireitou no
banco. Sabia que estava distraído com o acontecido nessa manhã e com
a preocupação pela segurança de seu irmão. Mas tinha chegado o
momento. Não podia esperar mais.
—Vou partir —disse de repente.
O sorriso do duque se torceu um pouco.
—Da biblioteca, Jane? —perguntou-lhe— Para guardar as ataduras?
Quisera o fizesse.
Em vez de responder, olhou-o fixamente. Estava segura de que não
tinha interpretado mal suas palavras.
—Isso quer dizer que irá me abandonar? —disse ele ao final.
—Tenho que fazê-lo —respondeu— Sabe que tenho que fazê-lo. Você
mesmo o disse ontem à noite.
—Mas hoje não. —Franziu o cenho e dobrou os dedos da mão
esquerda, que tinha sofrido menos danos que a outra— Sou incapaz de
enfrentar a outra crise hoje, Jane.
—Isto não é uma crise —o corrigiu— Tinha um trabalho temporário
e chegou o momento de que eu parta… Depois que me pague.
—Talvez hoje não possa me permitir te pagar, Jane. Não te prometi a
astronômica quantidade de quinhentas libras pela atuação de ontem à
noite? Duvido muito que Quincy tenha tanto dinheiro em efetivo na casa.
Jane piscou, mas foi incapaz de eliminar as espantosas lágrimas que
alagaram seus olhos.
—Não o converta em uma piada — suplicou— Por favor. Tenho que
ir. Hoje.
153
—Para ir aonde? —perguntou-lhe ele.
No entanto, ela se limitou a menear a cabeça.
—Não me abandone, Jane —disse ele— Não posso te deixar partir.
Não se dá conta de que necessito uma enfermeira? —Levantou as mãos
com as palmas para cima— Ao menos durante outro mês.
Meneou de novo a cabeça e o duque se ajeitou na poltrona para olhá-
la com os olhos entrecerrados.
—Por que está tão ansiosa para me abandonar? Tão déspota fui
contigo, Jane? Tão mal te tratei? Tão mal te falei?
—Certamente o fez, sua graça —respondeu.
—Isso se deve a que me mimaram desde que era jovem —aduziu
ele— Não o fazia a sério, que saiba. E nunca deixou-se intimidar, Jane.
Você me intimidou!
Sorriu ao escutá-lo, embora em realidade sentisse desejo de tornar a
chorar. Não só pela aterradora e desconhecida situação a que teria que
enfrentar, mas sim pelo que ia deixar para trás, embora levasse toda a
manhã tentando não pensar nisso.
—Deve ir desta casa —conveio ele de repente— Nisso estamos de
acordo, Jane. Depois do de ontem à noite é mais imperativo que nunca
que parta.
Assentiu com a cabeça ao escutá-lo e olhou as mãos, que tinha no colo.
Em caso de ter albergado a esperança de que o duque tentasse convencê-
la para que ficasse empregando a absurda desculpa de suas mãos
danificadas, teria tido uma decepção.
—Mas poderia viver em outro lugar —continuou ele— onde
poderíamos nos ver diariamente, longe dos olhares curiosos e das
línguas viperinas da alta sociedade. Você gostaria dessa solução?
Jane elevou a vista muito devagar para olhá-lo aos olhos. Era
impossível interpretar mal o que queria lhe dizer. O que não entendia
154
era sua própria reação, ou a falta desta. Sua falta de indignação. Seu
desejo. E a tentação.
O duque a estava olhando fixamente, e seus olhos pareciam muito
escuros.
—Cuidaria de você, Jane —disse ele— Poderia viver com
comodidade. Com um lar, criados e uma carruagem própria. Com roupa
e joias. Um salário decente. Certa liberdade. Muita mais liberdade do que
a que desfruta uma mulher casada, certamente.
—Em troca de me deitar com você —particularizou ela em voz baixa.
Não era uma pergunta. A resposta era muito evidente.
—Tenho certa experiência — assegurou ele— Estaria encantado de
empregá-la para te satisfazer, Jane. Enfim, seria uma troca muito justa.
Não pode me dizer, sem mentir, que nenhuma vez pensou em se deitar
comigo, verdade? Que nunca quis isso. Que você de alguma forma me
repele. Vamos, seja sincera. Eu saberei se mentir.
—Não tenho que mentir —replicou— Não tenho por que responder.
Quero minhas quinhentas libras, mais o salário de três semanas. Posso
ir aonde queira e fazer o que goste. Esse dinheiro é uma fortuna para
uma pessoa comedida, sua graça. Não me sinto obrigada a aceitar carta
branca de você.
O duque riu suavemente.
—Jane, não acredito que exista no mundo alguém tão tolo para te
obrigar a fazer algo. —disse ele— Não a estou seduzindo. Não a estou
tentando. Estou fazendo a você uma proposta, de negócios se o preferir
assim. Necessita uma casa e uma fonte de ganhos além da que já tem.
Necessita certa segurança e alguém que te faça esquecer sua solidão,
estou convencido disso. Depois de tudo, é uma mulher com necessidades
sexuais e se sente atraída sexualmente por mim. E eu necessito uma
amante. Estou sem uma mulher uma temporada alarmante. Inclusive me
rebaixei a encurralar enfermeiras para roubá-las um beijo às portas de
suas habitações quando as acompanho ao retirar-se. Necessito alguém a
155
quem poder visitar a meu desejo, alguém que possa satisfazer minhas
próprias necessidades sexuais. Você pode Jane. Desejo-te. E é obvio
tenho os meios para que possa viver comodamente.
E escondida.
Jane olhou as mãos, mas mentalmente estava considerando sua
proposta. Não podia acreditar que o estava fazendo, mas de forma
deliberada se negou a escandalizar-se e a espantar-se.
Embora dessa forma nunca conseguissem apanhá-la, jamais poderia
assumir a identidade de Lady Sara Illingsworth. Jamais poderia reclamar
a herança que lhe correspondia ao cumprir vinte e cinco anos. Tinha que
pensar em seu futuro de forma pragmática. Tinha que viver em algum
lugar. Tinha que trabalhar. Quinhentas libras não lhe durariam
eternamente embora fosse servir por agora. Poderia desempenhar um
trabalho adequado para uma dama, como professora, instrutora ou
dama de companhia. Mas isso implicava ter que apresentar uma
solicitação e referências, por isso se arriscaria que a descobrissem.
A alternativa era sobreviver com algum trabalho duro. Ou converter-
se na amante do Duque de Tresham.
—Bem, Jane? —perguntou ele para romper o longo silêncio que se
fez após suas últimas palavras— O que me diz?
Inspirou fundo e o encarou.
Não teria que abandoná-lo.
Poderia deitar-se com ele. À margem do matrimônio. Seria uma
amante, uma mulher mantida.
—Que tipo de casa? —perguntou— E quantos criados? Qual seria o
salário? E como protegeria meus interesses? Como saberei que não vai
despedir-me assim que se cansar de mim?
O duque a olhou com um lento sorriso.
—Essa é minha garota —afirmou ele em voz baixa— Combativa.
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—Tem que haver um contrato —lhe disse— Discutiremos e
acordaremos as cláusulas juntos. Tem que estar redigido, comprovado e
assinado por ambas as partes antes que me converta em sua amante.
Enquanto isso, não posso permanecer aqui. Há já uma casa? É você um
desses cavalheiros que mantém uma casa especialmente para suas
amantes? Se for assim, me mudarei a ela. Se não pudermos nos pôr de
acordo com o contrato, voltarei a me mudar.
—É obvio que tenho uma casa assim —respondeu ele— Está
desocupada, exceto por dois criados que residem ali neste momento,
reconheço-o. A levarei mais tarde, Jane, depois que Marsh retorne do
estábulo de meu irmão. Preciso me distrair com algo enquanto chegam
notícias de Brighton. Discutiremos as cláusulas amanhã.
—Muito bem. —ficou em pé e recolheu a bacia e as ataduras— Farei
a bagagem e estarei pronta para partir assim que me avise, sua graça.
—Tenho a sensação de que vai ser uma negociante muito dura, Jane
—disse ele com uma enganosa suavidade quando ela chegou à porta e
agarrou o trinco— Jamais tinha tido uma amante que insistisse em
assinar um contrato.
—Pois são umas tolas —replicou ela— E ainda não sou sua amante.
O duque estava rindo suavemente quando fechou a porta.
Jane se apoiou na madeira, agradecida de que não tivesse criados à
vista. A valentia a abandonou de repente, levando consigo a força de suas
pernas.
Que diabos acabava de fazer?
A que tinha aceitado? Ou quase aceitado…
Tentou experimentar certo espanto, apropriado dado o caso. No
entanto, só sentia um enorme alívio porque não teria que abandoná-lo
esse dia, porque tinha evitado a possibilidade de não voltar a vê-lo.

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Capítulo 12

A casa era de Jocelyn há cinco anos. Encontrava-se em uma rua


decente, em um bairro respeitável. Depois de adquiri-la, pagou uma
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dinheirama a fim de decorá-la e mobiliá-la. Contratou criados decentes
e confiáveis, dois dos quais residiam nela após, já que se encarregavam
de sua manutenção quando carecia de ocupante.
Era uma casa que gostava muito, já que representava um mundo
privado e um sem-fim de prazeres sensuais. No entanto, assim que
entrou acompanhado por Jane Ingleby, sentiu-se incômodo.
E não era pela casa. Era pela ideia de convertê-la em sua amante.
Desejava-a, sim. Na cama. De todas as formas possíveis. No entanto, a
ideia de que Jane Ingleby fosse sua amante não parecia se encaixar.
—Jacobs —ele disse ao mordomo, que o saudou com uma
reverência— apresento-te à senhorita Ingleby. Viverá aqui durante um
tempo. Ela será quem dará as ordens a você e à senhora Jacobs.
No caso de que Jacobs estivesse surpreso ao ver que seu senhor tinha
elegido uma amante de classe trabalhadora (que era o que parecia com
a espantosa capa cinza e o chapéu que lhe tinha visto no Hyde Park),
levava muitos anos no ofício para delatar-se.
—Faremos tudo o que esteja em nosso alcance para que se encontre
cômoda, senhora —replicou, saudando-a com uma reverência.
—Obrigado, Sr. Jacobs —disse ela, que inclinou a cabeça com grande
elegância antes que o mordomo se retirasse para as estadias da parte
traseira da casa.
—Contratarão outros criados, é obvio —assegurou Jocelyn enquanto
tomava Jane pelo braço a fim de mostrar a casa— Quer que eu dê as
ordens ou prefere estar ao cargo?
—Ainda não sei —respondeu com frieza, observando a sala de estar
com o tapete lavanda e os móveis, as cortinas rosa e as almofadas de
renda— Talvez só fique uns dias. Ainda não chegamos a um acordo.
—Mas o faremos —recordou Jocelyn enquanto a acompanhava até a
sala de Jantar— Amanhã pela manhã virei para que mantenhamos essa

159
discussão, Jane.Mas antes a acompanharei a uma costureira que conheço
na Bond Street. Tomarão suas medidas para as roupas que irá necessitar.
—Colocarei minha própria roupa, obrigado —protestou ela, coisa
que a Jocelyn não surpreendeu— até que seja sua amante. Se chegarmos
a um acordo, poderá mandar chamar uma costureira para que venha
tomar medidas se assim o deseja você. Não penso pôr um pé na Bond
Street.
—Porque todos saberão que é minha amante? —perguntou-lhe,
observando-a enquanto ela passava as pontas dos dedos pela polida
superfície da mesa redonda da sala de jantar. A mesa podia estender-se
em caso de que tivesse convidados, mas se jantava a sós com sua amante
preferia tê-la à mão— Acha que é motivo para envergonhar-se?
Asseguro-te que não é assim. Jane, as cortesãs de mais alta fila estão
quase ao mesmo nível que as damas. Em alguns casos, estão por cima.
Porque costumam ter muita mais influência. Como minha amante, será
uma mulher muito respeitada.
—Se aceitar ser sua amante, sua graça —repôs ela— não me sentirei
envergonhada, nem orgulhosa. Me limitarei a dar o passo prático de me
assegurar um emprego lucrativo ao mesmo tempo em que agradável
para mim.
Jocelyn riu ao escutá-la.
—Agradável, Jane? —perguntou-lhe— Seu entusiasmo me desarma.
Vamos ao próximo andar?
Nesse momento se perguntou se seria tão desapaixonada como
aparentava ser. Mas recordou os dois beijos que tinham compartilhado
e tirou suas próprias conclusões, sobre tudo ao relembrar o beijo da sala
de música. Naquela ocasião não se mostrou absolutamente
desapaixonada. Inclusive na porta de seu quarto, depois de cantar para
seus convidados, percebeu nela um desejo que podia ter incitado se
quisesse.

160
Ainda estava na porta do quarto quando ela, que caminhava uns
passos adiante, voltou-se.
—Hoje vamos deixar uma coisa muito clara —disse com as mãos na
cintura e elevava o queixo como se estivesse disposta a iniciar uma
batalha a julgar pelo brilho belicoso de seu olhar— Se de fato eu ficar,
terá que remodelar a casa de cima abaixo.
—Ah, sim? —Jocelyn arqueou as sobrancelhas, levou o monóculo ao
olho e tomou seu tempo para dar uma olhada ao quarto.
A ampla cama de mogno tinha quatro postes esculpidos, um cobertor
de brocado de seda e um dossel da mesma seda, vincada em forma de
rosa. As cortinas da cama eram de um grosso e custoso veludo, igual às
das janelas. O tapete era amaciado e suave.
Tudo era de um intenso tom escarlate.
—Sim! —respondeu ela com firmeza e de forma desdenhosa— Esta
casa é asquerosa. A caricatura de um ninho de amor. Não dormiria neste
quarto nem sozinha, assim que muito menos vou fazê-lo com você. Me
sentiria como uma prostituta.
Em ocasiões, quando se tratava com Jane Ingleby, era necessário
deixar as coisas claras. O problema era que Jocelyn não estava
acostumado a deixar as coisas claras, já que jamais houve necessidade.
—Jane —replicou ao mesmo tempo em que separava os pés e levava
as mãos às costas com sua expressão mais desanimada— acredito que é
necessário te recordar que não é para mim a quem ofereceram um
emprego. Fiz a você uma oferta que é livre de aceitar ou rejeitar. Há
muitas outras que correriam encantadas para ocupar seu lugar se lhes
desse a oportunidade.
Ela o olhou em silêncio.
—Cometi um engano, sua graça —disse ao cabo de um momento
durante os quais Jocelyn teve que esforçar-se para manter a postura e
não mover-se por causa do desconforto— Pensava que tínhamos
161
acordado discutir os termos. Mas vejo que tornou a adotar sua ridícula
atitude de aristocrata autoritário cujas ordens ninguém vai questionar.
Será melhor que dê a oportunidade a outra. Estou partindo.
Jane deu um passo para ele. Só um. Mas Jocelyn se manteve firme na
porta. Se desejasse partir, ia ter que afastá-lo.
—O que tem de mau esta casa? —rebaixou-se a perguntar— Jamais
escutei uma queixa sobre ela.
No entanto, no fundo sabia que Jane tinha razão, maldita fosse. Tinha
percebido ao entrar na casa com ela. Porque era como se ele mesmo
tivesse entrado em um lugar desconhecido que visse pela primeira vez.
Essa casa não era para Jane.
—Me ocorrem duas palavras para descrevê-la —respondeu ela—
Possivelmente poderia oferecer um dicionário inteiro se me desse mais
tempo. Mas os dois conceitos que ocorreram agora são um vulgar
«clichê» e uma vulgar «ridícula». Dois conceitos que não tolero.
Jocelyn apertou os lábios. Ambos os conceitos descreviam a casa à
perfeição. Tinha ordenado que decorassem a sala de estar seguindo um
critério feminino, é obvio, não o seu. Ou o que ele imaginava que seria
um critério feminino. Effie sempre tinha parecido encontrar-se muito a
gosto. Assim como Lisa, Marie e Bridget. Quanto ao quarto… Bom, à luz
das velas sempre conseguia avivar seu desejo sexual. Os tons vermelhos
obravam maravilhas com um corpo feminino nu.
—É uma de minhas primeiras condições —seguiu ela— Esta estadia
e a sala de estar. Serão redecoradas segundo minhas instruções. Este
ponto não é negociável. Ou aceita ou não.
—Uma de suas primeiras condições? —Jocelyn arqueou as
sobrancelhas— Jane me diga uma coisa. Me permitirá estabelecer
alguma condição neste nosso contrato? Ou vou ser seu escravo? Eu
gostaria de sabê-lo. Em realidade, a ideia de ser um escravo apresenta
certo atrativo. Haverá correntes e chicotes? —Sorriu.

162
Mas Jane não devolveu o sorriso.
—Um contrato é um acordo entre duas partes —repôs— É obvio que
você poderá insistir em certos pontos. Como um acesso ilimitado a
minha…
—Cama? —sugeriu ele ao ver que titubeava.
—Sim. —Assentiu com a cabeça de forma vigorosa.
—Um acesso ilimitado. —Jocelyn a percorreu com o olhar e o alegrou
ver que o rubor de suas bochechas rivalizava com os tons do quarto—
Embora não esteja disposta, Jane? Embora tenha dor de cabeça ou algum
outro mal-estar? Aceitaria por escrito fazer de mártir em caso de que
meus apetites se demonstrem insaciáveis?
Jane meditou a resposta um instante.
—Imagino que seria uma exigência razoável por sua parte, sua graça.
—respondeu—Afinal, para isso são as amantes.
—Bobagens! —Olhou-a com os olhos entrecerrados— Se essa for à
atitude com a que vai enfrentar nossa relação, não haverá acordo, Jane.
Não quero um corpo que possuir cada vez que meus desejos sexuais se
descontrolem. Há um sem-fim de bordéis que poderia usar nesse caso. O
que quero é alguém com quem relaxar. Alguém com quem compartilhar
o prazer mais sublime. Alguém a quem agradar também.
O rubor das bochechas de Jane se intensificou, mas manteve as costas
bem erguidas e o queixo elevado.
—E se viesse dez dias seguidos e eu lhe dissesse que não? —replicou
ela.
—Nesse caso, me consideraria um desastre absoluto —respondeu
Jocelyn— Possivelmente iria para casa e explodiria meus miolos.
De repente, Jane soltou uma gargalhada e a risada lhe outorgou tal
beleza que vê-la tão loira entre os tons vermelhos do quarto o deixou
sem fôlego.
163
—Que tolice! —ouviu-a exclamar.
—Se durante dez dias consecutivos um homem não é capaz de levar
sua amante à cama —repôs com docilidade— é melhor que morra, Jane.
O que fica na vida depois de perder o atrativo sexual?
Jane inclinou a cabeça e o observou com expressão pensativa.
—Está brincando —disse— Mas em parte também fala a sério. A
virilidade é uma questão importante para você, não é?
—Acaso a feminilidade não é importante para você?
Ela voltou a meditar a resposta. Era algo característico de Jane, uma
qualidade que já tinha notado antes, esse afã por não apressar-se a dizer
o primeiro que lhe ocorria.
—O que me importa é ser quem sou —respondeu— E posto que sou
uma mulher, suponho que minha feminilidade é importante, sim. Mas
não me guio por uma imagem idealizada da mulher perfeita, não tento
me adaptar ao aspecto que os outros esperam de mim pelo fato de ser
mulher. Não submeto minha aparência, meu comportamento, nem
minha imagem a esse ideal. Preciso ser fiel a mim mesma.
Jocelyn percebeu de repente o absurdo da situação.
—Nunca estive nesta porta, tão perto de uma mulher, discutindo a
natureza dos sexos e da sexualidade. Enfim, a esta altura deveríamos ter
consumado nossa tentativa de estabelecer uma relação. Deveríamos
estar exaustos, nus e mutuamente satisfeitos nessa cama.
Nessa ocasião suas palavras lhe acenderam as bochechas, não havia
melhor forma de descrevê-lo.
—Suponho que esperava que uma vez que conseguisse me levar à
cama, sucumbiria a seu charme devastador e ao fascínio deste quarto,
não é?
Isso era exatamente o que pensava que ia acontecer… Ou o que
esperava que acontecesse.
164
—E eu suponho —replicou ele com um suspiro— que não me
permitirá te pôr um lascivo dedo em cima até que este quarto pareça à
cela de um monge. Adiante, Jane. Fale com Jacobs. Faz com minha casa o
que deseje. Eu cumprirei com minha parte e as faturas. O que acha de
descermos? Suponho que a senhora Jacobs terá preparado o chá e que a
curiosidade por lhe conhecer a estará matando.
—Vamos à sala de Jantar —comentou ela enquanto passava a seu
lado quando por fim se separou da porta.
—Onde dormirá esta noite? —perguntou-lhe, seguindo-a pelo
corredor— Na mesa de jantar?
—Encontrarei algum lugar —assegurou— Não é necessário que se
preocupe comigo, sua graça.
Jocelyn abandonou a casa uma hora depois, caminhando com a
bengala apesar à dolorida palma da mão, já que tinha despachado o
chofer. Estava desejando escutar o relatório de Marsh quando voltasse
dos estábulos de Ferdinand. Talvez fosse impossível demonstrar que
algum dos Forbes tinha tido acesso ao tílburi. Mas o único que precisava
era a possibilidade de que o eixo quebrado tivesse sido a cortesia de um
deles.
Porque nesse momento teriam que enfrentar ao Duque de Tresham.
Perguntou-se se saberia algo do resultado da corrida. O único que lhe
preocupava, excepcionalmente, era que Ferdinand tivesse chegado a
Brighton são e salvo.
Nesse momento pensou que não deveria ter proposto a Jane Ingleby
que fosse sua amante. Não estava bem.
No entanto, ardia de desejo por ela.
Por que a maldita mulher não se limitou a passar despercebida pelo
Hyde Park como teria feito qualquer mulher decente aquela manhã
quando viu que estava se celebrando um duelo?

165
Se não a tivesse visto, a essa altura não estaria caminhando com a
estranha sensação de que ele ou seu mundo estava em sua cabeça.

Jane dormiu no sofá da sala de estar. Os tons da tapeçaria, assim como


as cortinas e os objetos decorativos denotavam um gosto atroz, mas ao
menos não era uma estadia tão vulgar como o quarto.
Essa tarde, enquanto falavam em dita estadia, imaginou-se deitada
nessa cama com ele, abraçados entre toda essa seda escarlate, e isso lhe
tinha resultado incômodo. Ignorava o que era o desejo sexual, mas
supunha que devia parecer-se muito ao que havia sentido então. O
acordo ao que tinha chegado, ou estava prestes a chegar, converteu-se
em uma realidade assustadora.
Como ia ser sua amante? Perguntou-se antes de deitar-se, sentada no
sofá. Simples e sinceramente, não podia fazê-lo a menos que sentisse
algo por ele como pessoa. Sentia-o? Não o amava, é obvio; seria muito
precipitado. Mas gostava? Sentia algum tipo de afeto por ele? Respeito,
ao menos?
Relembrou suas intermináveis batalhas verbais e sorriu de forma
inesperada. Era um homem arrogante, autoritário e do mais irritante. No
entanto, tinha a impressão de que ele gostava de sua impertinência. E
respeitava suas opiniões, embora em realidade não o tivesse admitido.
O fato de estar sozinha essa noite, sem que sua relação fosse consumada,
era prova suficiente. Além disso, estava seu estranhamente admirável
senso de honra. Porque tinha se enfrentado em duelo com Lorde Oliver
ao invés de chamar lady Oliver de mentirosa.
Jane suspirou. Sim, gostava muito do Duque de Tresham. Porque, é
obvio, não tinha esquecido a faceta artística e sensível de seu caráter que
viu aquela noite na sala de música. E também era um homem inteligente.
Com senso de humor. Fascinantes facetas de sua personalidade todas
elas que tinha mantido ocultas do resto do mundo.

166
E, por último, estava o desejo que sentiam um pelo outro. Porque não
lhe cabia dúvida que era mútuo. Se fosse qualquer outra, qualquer
amante potencial, a teria posto na rua assim que mencionou o tema do
contrato. Claro que devia ter presente (em todo momento, enquanto
durasse sua relação) que o único que sentia o duque era desejo. Paixão
sexual. Jamais deveria confundir esses sentimentos com o amor.
Não seria fácil ser sua amante.
Jane dormiu no sofá e sonhou com Charles. Com seu melhor amigo.
Com seu pretendente. Como se pertencesse a uma vida anterior. Viu-o
sentado no caramanchão de Candleford Abbey com ela, lhe contando
que sua irmã acabava de dar a luz e dizendo que eles não demorariam
em aumentar a família assim que ela cumprisse os vinte e cinco e
pudesse casar-se com quem quisesse.
Despertou com as bochechas úmidas pelas lágrimas. Tinha evitado
pensar em Charles desde que fugiu de Candleford Abbey. E o tinha
obtido. Por que não lhe tinha ocorrido ir em sua busca quando por fim
tinha dinheiro para viajar? Seguiria na casa de sua irmã em
Somersetshire ou teria voltado para a Cornualha? Poderia ter
encontrado alguma maneira de ficar em contato com ele sem chamar a
atenção. Certamente que Charles saberia o que fazer, como protegê-la,
como ocultá-la se era necessário. E, sobre tudo, teria acreditado nela.
Porque Charles sabia quão desesperado estava o novo conde de Durbury
para conseguir que ela se casasse com seu filho. Porque Charles sabia
quão desprezível Sidney podia chegar a ser, sobre tudo se estava ébrio.
Ainda podia fazê-lo, é obvio. Tinha recebido seu pagamento no dia
anterior, justo antes de sair de Dudley House. Ainda não tinha se
convertido na amante do Duque de Tresham. Podia partir antes que ele
retornasse e assim evitar a necessidade de perder a virgindade.
A simples ideia de ter que enfrentar semelhante destino lhe teria
provocado um desmaio apenas umas semanas antes. A essa altura,
quando já era muito tarde, tinha encontrado uma alternativa decente.

167
No entanto, o problema era que não queria Charles. Não o queria
como uma mulher devia querer seu marido. Não o queria como sua mãe
tinha querido seu pai. Sempre tinha sido consciente desse fato, é obvio.
Mas tinha tentado querê-lo porque gostava e porque ele a queria.
Se recorresse a ele nesse momento, se de alguma forma conseguia
sair do atoleiro no que se colocou, estaria unida a ele para sempre. Umas
semanas antes não lhe teriam importado. A amizade e o afeto lhe teriam
bastado.
Já não.
Isso queria dizer que preferia ser a amante do Duque de Tresham do
que contrair um matrimônio honrado com Charles?
Era uma pergunta que não pôde responder de forma satisfatória
antes que Sua graça voltasse no meio da manhã. Era uma pergunta cuja
resposta reconheceu a contra gosto ao escutá-lo chamar a casa,
momento no que abriu a porta da sala de estar para vê-lo entrar no
vestíbulo e entregar o chapéu, as luvas e a bengala ao Sr. Jacobs. Junto
com ele chegaram sua energia, sua impaciência e sua virilidade. E
compreendeu que tinha sentido sua falta.
—Jane —disse ele enquanto se aproximava para entrar na sala de
estar— Ferdinand ganhou. Por uma distância mínima. Berriwether
tinha uma carruagem de vantagem ao entrar na última curva, mas
Ferdinand acelerou depois de passá-la, surpreendendo-o. Entraram em
Brighton virtualmente ao mesmo tempo. Mas ganhou Ferdinand, e três
quartos dos sócios do White’s estão de luto.
—Não sofreu dano algum então? —perguntou— Alegro-me.
Poderia ter comentado de novo quão absurdas eram essas corridas,
mas o duque parecia muito satisfeito E, em realidade, ela se alegrava.
Lorde Ferdinand Dudley era um jovem simpático e agradável.
—Não, nenhum dano. —De repente, o duque franziu o cenho— No
entanto, não sabe escolher à servidão. Seu valete não tem em conta que
168
um homem pode virar a cabeça em ocasiões enquanto o barbeia. E seu
lacaio deixa entrar meio mundo em seu estábulo e em sua garagem a
véspera de uma corrida, para que todos possam admirar a equipe de seu
senhor. Não há provas que demonstrem quem planejou a morte de
Ferdinand durante a corrida.
—Mas suspeita do Sr. Anthony Forbes ou de algum de seus irmãos,
não é? —perguntou.
Sentou-se no sofá e ele tomou assento a seu lado.
—É muito mais que uma simples suspeita. —O duque examinou a
estadia enquanto falavam— Porque assim é como operam. Eu toquei sua
irmã; eles tocam meu irmão. Mas se arrependerão, é obvio. Me
encarregarei deles. O que fez a esta estadia?
A mudança de tema a aliviou.
—Só tirei algumas coisas —respondeu— As almofadas e alguns
objetos decorativos. Tenho mudanças substanciais previstas aqui e no
quarto. Não seriam modificações muito extravagantes, mas de todas as
formas o custo vai ser considerável.
—Quincy se encarregará das faturas —comentou o duque, que agitou
a mão para subtrair importância ao tema— Mas, Jane, quanto vai
demorar? Tenho a impressão de que me negará o acesso a sua cama até
que tudo esteja a seu gosto, estou certo?
—Exato —respondeu, com a esperança de que sua voz soasse
bastante firme— Uma semana bastará assim que o encarreguemos tudo.
Falei com o senhor Jacobs, e diz que os fornecedores farão tudo o que
esteja em suas mãos assim que se mencione seu nome.
O duque não replicou. Estava claro que estava acostumado a essa
reação.
—Nesse caso, vamos discutir as cláusulas do contrato —disse—
Além de carta branca para derrubar esta casa e remodelá-la, que outras
exigências têm Jane? Te pagarei um salário mensal cinco vezes superior
169
ao que te pagava como enfermeira. Terá carruagem própria e tantos
criados como estima necessário. Vestirá com a elegância que deseje e
comprará todos os acessórios que deseje muito, e carregará as faturas
em meu nome. Serei generoso com as joias, embora prefira escolhê-las
eu. Assumirei a responsabilidade de manter e educar qualquer menino
resultante de nossa relação. Passei algo por alto?
Jane tinha ficado gelada de repente. Sentia-se mortificava por ter sido
tão ingênua.
—Quantos filhos têm? —Nem sequer tinha pensado na possibilidade
de ficar grávida.
O duque arqueou as sobrancelhas.
—Como sempre, perguntando o que não deve perguntar Jane —
replicou— Não tenho nenhum filho. As mulheres que ganham a vida
desta forma conhecem a maneira de evitar a concepção. Suponho que
não é seu caso. É virgem, não é?
A Jane custou um enorme esforço não afastar os olhos do olhar direto
do duque. Desejou poder controlar da mesma forma o rubor.
—Sim. —Manteve o queixo elevado— Há um gasto que poderá
prescindir. Não necessito carruagem.
—Por que não? —O duque colocou o cotovelo no respaldo do sofá e
levou o punho fechado ao rosto, sobre os lábios. Seu olhar não a
abandonou em nenhum momento— Jane, terá que ir às compras, terá
que sair para admirar as paisagens. Seria insensato depender de mim
para sair. As compras me aborrecem. Quando vier te ver, estarei mais
ansioso para te levar a cama que para sair para passear.
—Os criados sairão para comprar a comida —assinalou ela— E se
não gostar da roupa que tenho, pode ordenar às costureiras que venham.
Não desejo sair.

170
—Por que vai fazer algo vergonhoso para você? —quis saber— De
verdade tem a sensação de que jamais poderá voltar a enfrentar o
mundo?
Jane tinha respondido essa pergunta no dia anterior. No entanto,
pensou, talvez fosse melhor que o duque ficasse com essa impressão.
Embora não fosse certa. A vida se converteu em uma questão prática que
devia dirigir e controlar na medida do possível.
O duque se manteve em silêncio um momento. Um silêncio que se
alargou enquanto a contemplava com expressão pensativa e ela o
olhava, incômoda, mas relutante a desviar a vista.
—Há uma alternativa —disse o Duque de Tresham por fim— Uma
alternativa que te reportará fama, fortuna e uma grande avaliação, Jane.
Uma opção que evitará a degradação de se deitar com um libertino.
—Não o considero degradante —particularizou ela.
—Ah, não? —Levantou a outra mão e segurou seu queixo, depois do
qual acariciou brandamente os lábios com o polegar— Não me relaciono
muito com os círculos culturais, Jane, mas suponho que minha palavra
tem suficiente peso em qualquer âmbito. Poderia te apresentar lorde
Heath ou ao Conde de Raymore, dois dos mais importantes patronos da
arte. Estou convencido de que se algum deles ouvir sua voz,a ajudaram
a empreender o caminho da fama. Porque é muito boa, sabe? Dessa
forma não me necessitaria.
Jane o olhou, surpreendida em certo modo. O duque a desejava, não lhe
cabia a menor dúvida. No entanto, estava disposto a renunciar a ela? A
ajudá-la para não depender dele? De forma inconsciente, entreabriu os
lábios e roçou a ponta do dedo com a ponta da língua.
Seus olhares se encontraram. E o desejo a assaltou profundamente.
Não o tinha feito de forma premeditada. E supunha que ele tão pouco.
—Não quero uma carreira como cantora —disse.

171
Era certo, até sem contar com o fato de que devia evitar o perigo de
voltar a expor-se. Não queria usar sua voz para ganhar a vida. Queria
usá-la para desfrute de seus seres queridos. Não ambicionava a fama.
O duque se inclinou e colocou os lábios onde tinha estado seu dedo.
E a beijou com paixão.
—Mas você quer ser minha amante? —perguntou-lhe— Com suas
condições? Diga-me então. O que quer que ainda não a tenha devotado?
—Segurança —respondeu— Quero sua palavra de que me pagará um
salário até o dia de meu vigésimo quinto aniversário, embora me
despeça antes. Sempre e quando não for eu quem rompa nosso acordo,
é obvio. Agora mesmo tenho vinte, por certo.
—Cinco anos —assinalou ele— E como pensa se manter depois, Jane?
Não sabia. Supostamente nesse momento receberia sua herança, a
fortuna íntegra de seu pai que não estava vinculada ao título e que não
tinha recebido o herdeiro. Mas talvez não pudesse reclamá-la nunca. Não
poderia deixar de ser uma fugitiva por arte de magia, só por ter
alcançado a idade em que por fim seria livre.
Negou com a cabeça.
—Talvez nunca me canse de você, Jane —disse o duque.
—Bobagens! —exclamou ela— É obvio que se cansará. E muito antes
que tenham passado quatro anos e meio. Por isso devo proteger meu
futuro.
O duque sorriu. Um gesto pouco habitual nele. Embora fosse muito
para sua tranquilidade mental. Perguntou-se se era consciente do
encanto devastador de seu sorriso.
—Muito bem, então —replicou— Se acrescentará por escrito ao
contrato. Um salário mensal até que a relação se rompa ou até que
cumpra os vinte e cinco anos. O que antes aconteça. Algo mais?
Ela negou com a cabeça.
172
—E suas condições? —perguntou-lhe— Acordamos o que você fará
por mim. O que terei que fazer eu?
O Duque de Tresham encolheu de ombros.
—Estar disponível para mim —respondeu— Manter relações sexuais
comigo sempre que puder te persuadir de que o deseja tanto como eu.
Nada mais, Jane. É impossível legislar a relação entre um homem e sua
amante, sabe? Nem sequer penso mencionar uma palavra sobre
obediência e submissão. Seria incapaz de manter sua palavra a respeito
mesmo que obtivesse que o prometesse. E que me crucifiquem pelo que
estou a ponto de dizer, mas acredito que o que me atrai a você é
precisamente seu atrevimento. Quer que ordene a Quincy que redija o
contrato e que lhe traga isso para que o revise? Não serei eu quem o
trarei, Jane. Não voltarei até que me chame. Suporei que quando tiver
notícias tuas, o quarto do segundo andar estará preparado para usar-se.
—Muito bem, sua graça —disse Jane enquanto ele ficava em pé. Ela
também se levantou. Uma semana pareceria uma eternidade.
O duque tomou seu rosto entre as mãos.
—Isso também terá que mudar Jane —advertiu— Não poderá seguir
me chamando sua graça enquanto estamos na cama. Meu nome é
Jocelyn.
Jane ignorava seu nome de batismo até esse momento. Ninguém o
tinha usado em sua presença.
—Jocelyn —repetiu em voz baixa.
Esses olhos tão escuros mostravam por regra geral uma expressão
séria. Era impossível ver mais do que ele queria revelar, que tão pouco
era muito, suspeitava ela. No entanto, ao pronunciar seu nome, teve a
impressão de que nas profundidades desses olhos brilhou algo por um
instante e quase acreditou afogar-se neles.
Embora só fosse um instante.

173
O duque afastou as mãos de seu rosto e se voltou para a porta.
—Uma semana —a recordou— Se a reforma não se concluir até
então, cabeças vão rolar, Jane. O deixará bem claro aos trabalhadores,
não é?
—Sim, sua graça —respondeu— Jocelyn.
Ele a olhou por cima do ombro e abriu a boca como se fosse dizer
algo. Mas mudou de opinião e saiu da estadia sem dizer uma palavra.

174
Capítulo 13

Muitos dos conhecidos de Mick Boden invejavam seu trabalho. O fato


de ser um dos famosos investigadores da Bow Street tinha certo
glamour. A falsa crença mais estendida afirmava que ele passava os dias
literalmente perseguindo até dar caça a todos os criminosos mais
violentos de Londres, e da metade da Inglaterra, para levá-los ante o
magistrado mais próximo, onde recebiam o justo castigo por seus maus
atos. Ditos conhecidos acreditavam que sua vida era uma contínua
aventura cheia de perigo, ação e… Êxito.
A maioria do tempo seu trabalho era muito rotineiro e bastante
aborrecido. Em ocasiões se perguntava por que não era um estivador ou
um varredor. Tal como o questionava nesse momento. Lady Sara
Illingsworth, uma dama de apenas vinte anos que tinha crescido no
campo e que se supunha que jamais tinha pisado na capital, estava
demonstrando ser inesperadamente escorregadia. Levava quase um
mês de busca e não tinha descoberto seu rastro, exceto por aqueles
primeiros dias.
O Conde de Durbury seguia convencido de que estava em Londres.
Não havia outro lugar que pudesse ir, assegurava o conde, dado que não
tinha amigos, nem familiares em outra parte, excetuando por uma antiga
vizinha que na atualidade vivia com seu marido em Somersetshire. Mas
não estava com eles.
175
Algo dizia a Mick que o conde tinha razão. Estava em alguma parte da
cidade. Mas não tinha retornado a casa de Lady Webb, embora a
baronesa estivesse de volta à cidade. Tão pouco tinha se posto em
contato com o antigo procurador de seu pai, nem com o que o conde
empregava nesse momento. Em caso de ter gasto dinheiro, não o tinha
feito nas lojas mais seletas. Em caso de que tivesse tentado vender ou
empenhar alguma das joias roubadas, não o tinha feito em nenhum dos
lugares que Mick conhecia… E se gabava de conhecer a todos. Em caso
de que tivesse tentado procurar alojamento respeitável em um bairro
decente, não o tinha feito em nenhuma das casas a cujas portas seu
ajudante e ele tinham chamado incansavelmente. Não tinha procurado
trabalho em nenhuma das casas nas que tinha perguntado… E tinha
perguntado em todas as possíveis, exceto nas grandiosas mansões de
Mayfair. A moça não teria sido tão tola para pedir trabalho em uma
dessas casas, concluiu. A nenhuma das agências de emprego tinha
chegado uma jovem procurando trabalho com qualquer dos nomes que
Mick acreditava que podia usar. Em nenhuma recordavam uma beldade
alta, magra e loira.
Por isso se encontrava uma vez mais sem nada do que informar ao
Conde de Durbury. Era humilhante. Bastava para que uma pessoa
pensasse seriamente em trocar de ofício. Também era suficiente para
despertar a obstinada determinação de um homem que não queria
deixar que uma menina ganhasse a partida.
—Não solicitou trabalho como faxineira, senhor —disse com
convicção a um exasperado e furioso conde, que sem dúvida estava
pensando na avultada fatura que teria que abonar por ter se hospedado
um mês no hotel Pulteney— É improvável que tenha procurado
emprego como instrutora ou dama de companhia, muito arriscado. Pela
mesma razão é improvável que tenha procurado trabalho como
acompanhante. O lógico é que procure um trabalho em um lugar onde
não seja vista. Em alguma oficina. Talvez no de uma costureira ou uma
chapelaria.

176
No caso de que estivesse trabalhando. O conde não tinha especificado
quanto dinheiro tinha roubado a moça. Mick começava a suspeitar que
não fosse muito. Não o suficiente para lhe permitir viver bem,
certamente. Sem dúvida uma jovem inexperiente teria cometido algum
engano a essa altura se tivesse uma enorme fortuna que a tentasse para
sair ao descoberto.
—E a que espera? —perguntou o conde com frieza— Por que não
está procurando em todas as oficinas de Londres? Acaso uma jovenzinha
vai ser mais esperta que os ilustres investigadores da Bow Street? —O
sarcasmo era evidente em sua voz.
—Estou procurando uma assassina? —perguntou Mick Boden—
Como está seu filho, senhor?
—Meu filho está às portas da morte —respondeu o conde, irritado—
Está procurando uma assassina. Sugiro-lhe que a encontre antes que
cometa outro crime.
E assim foi como Mick começou a busca de novo. Londres, é obvio,
tinha uma boa quantidade de oficinas. Quisera soubesse com segurança
que nome estava usando a moça. E não tivesse encontrado o modo de
ocultar seu cabelo loiro, já que ao que parece era sua característica mais
distintiva.

Foi uma semana muito longa. Durante a mesma, Jocelyn passou mais
tempo da conta bebendo e jogando pelas noites e tentando ficar em
forma durante o dia, para o qual empregou horas e horas melhorando
sua habilidade com a espada e sua resistência no ringue de boxe do clube
do Jackson. Sua perna respondia bem ao exercício.
Ferdinand se indignou muitíssimo ao inteirar-se do que tinha
acontecido a seu tílburi e estava decidido a perseguir os irmãos Forbes,
que tinham desaparecido no dia posterior ao duelo, para atravessar a
cara com uma luva a todos e cada um deles. Em um primeiro momento

177
não reconheceu que o problema fosse de seu irmão. Depois de tudo, era
sua vida a que tinham tentado pôr fim. No entanto, Jocelyn insistiu.
Angeline tinha sofrido um desmaio ao se inteirar do eixo quebrado,
tinha mandado chamar Heyward, que se encontrava na Câmara dos
Lordes, e depois, para aliviar seus destroçados nervos, comprou um
novo chapéu.
—Pergunto-me se ficou alguma fruta nas barracas de Covent Garden,
Angeline —comentou Jocelyn enquanto o olhava desolado através do
monóculo. Cruzou com ela um dia que passeava a cavalo pelo Hyde Park
na hora de moda, enquanto Angeline ia em um cabriolé com sua sogra—
Estou convencido de que leva todas elas decorando a monstruosidade
que tem na cabeça.
—É a última moda —se gabou ela— diga o que diga Tresham. Tem
que me prometer que nunca mais ira conduzir um tílburi na vida. Nem
você, nem Ferdie. Vai matá-los e eu nunca me recuperarei dos nervos.
Mas Heyward diz que não foi um acidente. Estou segura de que foi um
dos irmãos Forbes. Como não se descobre qual foi e o desafia a um duelo
por isso, me envergonharei de ser uma Dudley.
—Já não se chama assim —a recordou ele com secura antes de levar
mão à asa do chapéu para saudar a Condessa viúva de Heyward—
Adotou o sobrenome de seu marido ao se casar com ele, Angeline.
Jocelyn não estava tão impaciente como seus irmãos por encontrar
os Forbes e castigá-los. Já chegaria o momento. E os Forbes eram tão
conscientes como ele. Enquanto isso, não lhe importava que seguissem
escondidos, imaginando o que aconteceria quando por fim ficassem
frente a frente com ele. Os faria suar.
Várias pessoas o perguntaram por Jane Ingleby. Tinha criado muito
mais sensação com sua interpretação do que ele tinha esperado.
Queriam saber quem era, se seguia trabalhando em Dudley House, se ia
cantar em algum outro lugar e quem tinha sido seu professor de canto.
Uma noite no White’s o Visconde de Kimble inclusive chegou a lhe
178
perguntar sem rodeios se era sua amante… Uma pergunta que ganhou
um frio olhar através do monóculo do duque.
Que estranho. Jocelyn nunca tinha mantido em segredo suas amantes.
De fato, tinha usado frequentemente a casa para celebrar jantares e
festas quando desejava que esses eventos fossem menos formais do que
estavam acostumados a ser em Dudley House. Suas amantes sempre
tinham atuado de anfitriãs, um papel que a Jane sentaria
admiravelmente.
No entanto, não queria que seus amigos soubessem que a estava
mantendo. Parecia-lhe que seria injusto com ela, embora não poderia
explicar o motivo de tê-lo tentado. Disse a eles que tinha ocupado um
posto temporário em algum lugar e que partiu.
—Grande lástima, amigo Tresham —se lamentou Conan Brougham—
Alguém deveria comentar sobre essa voz a Raymore. Poderia ganhar
muito bem a vida com ela.
—Eu mesmo lhe teria oferecido trabalho, Tresh —disse Kimble—
mas deitada de costas, não por sua voz. O caso é que tive medo de estar
invadindo seu terreno. Se inteirar-se de onde está, poderia me dizer.
Jocelyn, que sentiu uma incomum hostilidade por um de seus
melhores amigos, mudou de tema.
Essa mesma noite retornou para casa caminhando apesar do risco de
ser vítima de algum roubo. Nunca o tinham assustado os ladrões. Levava
uma grossa bengala e era muito experiente com os punhos. Em mais de
uma ocasião tinha pensado que gostaria de enfrentar um par de rufiões.
Talvez os rufiões que o tinham visto tinham sido bastante inteligentes
para calcular bem as possibilidades de ganhar. Nunca o tinham atacado.
A menção de Jane Ingleby o tinha incomodado de um modo
insuportável. Tinham passado cinco dias, embora parecessem mais
cinco semanas. Quincy tinha se encarregado em pessoa desse absurdo
contrato no segundo dia. Para sua surpresa, ela o tinha assinado. Tinha
esperado que discutisse alguns detalhes só por maldade.
179
Era oficialmente sua amante.
Sua amante virgem com quem não se deitou. Qualquer um que o
conhecesse morreria de tanto rir caso se inteirasse de que tinha
contratado uma amante que o tinha jogado de sua própria casa, que
tinha insistido em ter um contrato por escrito e que tinha mantido sua
relação sem consumar uma semana depois de que lhe fizesse a proposta.
De repente, soltou uma gargalhada e se deteve no meio da rua, vazia
e silenciosa. Sua irascível Jane. Nem sequer durante a consumação
interpretaria o papel de uma virgem tímida e assustada a ponto de ser
deflorada.
Sua inocente e ingênua Jane, que não se dava conta do quão
inteligente estava sendo. Uma semana antes a desejava. Cinco dias antes
estava desesperado por ela. A essa altura ardia da impaciência. Custava-
lhe muito pensar em outra coisa. Jane, com seu cabelo dourado e em cuja
rede estava ansioso para cair.
Obrigou-o a esperar dois dias mais antes que por fim chegasse uma
nota. Redigida com sua habitual brevidade e concisão.
«Os trabalhos na casa terminaram», escreveu-lhe ela. «Pode vir
quando achar conveniente.»
Umas palavras frias e muito pouco apaixonadas que o deixou em
chamas.

Jane não deixava de passear de um lado a outro. Tinha enviado a nota


a Dudley House justo depois do café da manhã, mas sabia que ele estava
acostumado a sair de casa cedo e não retornava até o entardecer. Talvez
não a lesse até o dia seguinte. Era possível que não fosse vê-la em mais
alguns dias.
No entanto, estava passeando de um lado para outro. E tentando em
vão não olhar mais de uma vez a cada dez minutos pelas janelas que
davam à rua.
180
Levava um vestido novo de delicada musselina verde claro. De
cintura alta, com um decote recatado e mangas bufantes, tinha um
desenho muito simples. Mas estava confeccionado para que se
amoldasse a seu corpo e ressaltasse seu busto. Por debaixo do peito, caía
em pregas suaves até os tornozelos. Tinha sido muito caro. Acostumada
aos preços das costureiras rurais, Jane tinha ficado chocada. No entanto,
não despachou à costureira da Bond Street e seus dois ajudantes. O
duque tinha escolhido essa mulher e a tinha mandado com instruções
concretas a respeito da quantidade e do estilo de objetos que devia ter.
Ela tinha escolhido os tecidos e os desenhos, encantando-se por cores
claras em vez de tons fortes e pela simplicidade em vez de pelo excesso
de adornos, mas não tinha discutido nem a quantidade de objetos, nem
seu preço,exceto para insistir em que só houvesse dois vestidos de
passeio, um para ir a pé e outro para fazê-lo em carruagem. Não tinha a
intenção de passear, fosse como fosse, em um futuro próximo.
O duque não lhe teria dado carta branca com a renovação da casa se
não tivesse intenção de retornar, pensou enquanto aparecia à janela
uma vez mais, no meio da tarde. Não teria mandado à costureira, nem
tão pouco teria enviado o contrato. De fato, este último o tinha mandado
em duas ocasiões: na primeira lhe fez chegar duas cópias para que as
lesse, assinasse e as devolvesse; e na segunda só lhe chegou à cópia que
ela devia guardar, com a assinatura ducal (Tresham) estampada com
letra grande sob sua própria assinatura. O Sr. Jacobs tinha servido de
testemunha a ela; e o senhor Quincy, a ele.
Não obstante, custava-lhe desprender-se da certeza de que não ia
voltar. A semana lhe pareceu interminável. Estava segura de que a essa
altura se esqueceu dela. Estava segura de que a essa altura estava com
outra.
Não entendia, nem queria analisar, sua própria ansiedade.
No entanto, toda essa ansiedade desapareceu imediatamente,
substituída pela alegria, quando viu que uma figura conhecida se
aproximava andando pela rua. Sem coxear, notou antes de dar meia
181
volta e correr para abrir a porta da sala de estar. Deteve-se antes de
apressar-se a abrir a porta principal. Ficou onde estava, esperando
ansiosa que chamasse, esperando que o Sr. Jacobs abrisse.
Tinha esquecido como seus ombros eram largos, seu aspecto
perigoso e imponente, a vitalidade e a força que irradiava, quão viril era.
O duque franziu o cenho como de costume quando deu seu chapéu e suas
luvas ao mordomo. Não a olhou até ter terminado. Nesse momento pôs-
se a andar para a sala de estar e por fim fixou os olhos nela.
Uns olhos que não só se fixaram no vestido, em seu rosto e em seu
cabelo, pensou Jane, a não ser em tudo o que ela era. Uns olhos que se
fixaram nos seus com um intenso e estranho brilho que nunca tinha visto
antes.
Eram os olhos de um homem que tinha ido reclamar sua amante?
—Bom Jane —disse ele— terminou de brincar de casinha?
Tinha esperado um beijo na mão? Nos lábios? Doces palavras de
amor?
—Havia muito a fazer —respondeu com frieza— a fim de que esta
casa parecesse mais uma residência que um bordel.
—E conseguiu? —Entrou na sala de estar e olhou a seu redor, com os
pés separados e as mãos às costas. Parecia encher a estadia— Mmm —
murmurou— Isso quer dizer que não derrubou as paredes?
—Não —respondeu— Mantive muitas coisas. Não cometi muitas
extravagâncias.
—Não gostaria de ver Quincy se esse fosse o caso —replicou ele—
Estes últimos dias está com uma expressão muito estranha. Tenho
entendido que estiveram chegando um sem-fim de faturas.
—Em parte é culpa sua —lhe disse— Não necessitava tantos
vestidos, nem tantos acessórios. Mas a costureira que enviou disse que
foi muito concreto e não aceitou que contradissesse suas ordens.
182
—Enfim, algumas mulheres sabem qual é seu lugar, Jane. Sabem
como ser submissas e obedientes.
—E como ganhar uma boa quantidade de dinheiro no processo —
acrescentou ela— Mantive o tom lavanda nesta estadia, como pode ver,
embora não o teria escolhido se tivesse tido que decorar a sala a partir
do zero. Combinado com o cinza e o prata em vez do rosa, e sem tantos
adornos e cacarecos, a sala de estar parece refinada e elegante. Eu gosto.
Posso viver aqui sem problemas.
—Pode Jane? —Voltou à cabeça e a olhou… Uma vez mais, com
expressão ardente— E também obteve êxito no quarto? Ou vou
encontrar duas camas duras e um cilício sobre cada uma?
—Se considerar a cor escarlate um estímulo necessário —respondeu
enquanto se desentendia dos ensurdecedores batimentos de seu
coração com a esperança que não lhe notassem na voz— acredito que
não vai gostar do que fiz no quarto. Mas eu gosto, e isso é o que importa.
Sou eu quem vai dormir ali todas as noites.
—Isso quer dizer que estou proibido fazê-lo? —Jocelyn arqueou as
sobrancelhas.
E o rubor absurdo apareceu de novo. O único indício de emoção
impossível de ocultar. Era consciente de que suas bochechas ardiam.
—Não —respondeu— Afirmei, por escrito, que é livre de ir e vir a seu
desejo. Mas estou segura de que sua intenção não é viver aqui, como eu.
Só virá quando… Enfim, quando… —Foi incapaz de seguir falando.
—Queira me deitar contigo? —sugeriu ele.
—Sim. —Assentiu com a cabeça— Nesses momentos.
—E não tenho permissão para lhe visitar quando não o desejar? —
Apertou os lábios e a olhou em silêncio durante um momento muito
incômodo— Está no contrato? Refiro-me a que só possa vir por sexo,
Jane. Não para tomar o chá? Nem para conversar? Nem talvez só para
dormir?
183
Seria como uma verdadeira relação. Era uma ideia muito sedutora.
—Você gostaria de ver o quarto? —perguntou-lhe.
O duque a olhou um bom momento antes que aparecesse um sorriso
em seu rosto… Esse meio sorriso que iluminava seus olhos e elevava as
comissuras dos lábios, e que afrouxava seus joelhos.
—Para ver os móveis novos? —perguntou-lhe— Ou para manter um
encontro sexual, Jane?
Essa crua escolha de palavras a desconcertou. Mas qualquer
expressão eufemística teria significado o mesmo.
—Sou sua amante —respondeu.
—Sim, é. —aproximou-se dela, sem afastar as mãos das costas.
Inclinou a cabeça e a olhou aos olhos— Não vejo sinais de resignado
martírio. Isso quer dizer que está preparada para a consumação?
—Sim. —Também acreditava estar preparada para cair enfraquecida
a seus pés, mas essa circunstância não tinha nada a ver com uma
debilidade moral, mas bem com uma debilidade nas pernas.
O duque se endireitou e ofereceu o braço.
—Subamos, então —disse ele.

Os móveis não tinham mudado, só as cores das tapeçarias. No


entanto, não teria pensado que se encontrava no mesmo quarto se lhe
tivessem enfaixado os olhos, tivessem-no pego pelos pulsos e o tivessem
deixado ali. O quarto era uma mescla de verde cinza, bege e dourado. A
elegância em estado puro.
Se Jane Ingleby tinha algo em abundância, era bom gosto, além de um
bom olho para a cor e a decoração. Outra habilidade que aprendeu no
orfanato? Ou na reitoria, na casa rural ou onde tivesse crescido?
No entanto, não tinha subido para inspecionar a decoração.
184
—Bem? —Jane tinha os olhos brilhantes e as bochechas acesas— O
que acha?
—O que acho, Jane —respondeu, olhando-a com os olhos
entrecerrados— é que por fim verei seu cabelo solto. Tire as forquilhas.
Não o tinha recolhido com sua habitual severidade. O tinha ondulado
e recolhido de um modo que combinava com o bonito e elegante vestido
que levava. Mas queria vê-lo solto.
Jane tirou as forquilhas com destreza e sacudiu a cabeça.
Oh! Exclamou para si mesmo. Chegava por debaixo da cintura, tal
como havia dito. Uma cascata de puro ouro brunido. Antes parecia
bonita. Inclusive com o espantoso vestido de criada e a horrível touca
tinha sido bonita. Mas nesse momento…
Não havia palavras. Uniu as mãos às costas. Tinha esperado muito
tempo para apressar-se nesse instante.
—Jocelyn. —a viu inclinar a cabeça para olhá-lo com esses enormes
olhos azuis— Não sei muito bem o que fazer agora. Terá que levar as
rédeas.
Assentiu com a cabeça, desconcertado pela enorme onda de… Enfim,
não era exatamente desejo o que o afligia. Desejo? Um desejo profundo
e opressor, que o assaltava de improviso e que sempre desterrava
imediatamente. Porque o associava à música e à pintura. No entanto,
nesse momento foi seu nome o motivo que aparecesse.
—Jocelyn é um nome que está a gerações em minha família —
comentou— Me puseram isso quando ainda estava no ventre materno.
Não me ocorre nenhuma só pessoa que o tenha pronunciado em voz alta
até agora.
Jane abriu os olhos de par em par.
—Sua mãe? —perguntou— Seu pai? Seus irmãos? Certamente que…

185
—Não. —tirou a ajustada jaqueta e desabotoou os botões do colete—
Nasci sendo o herdeiro do título que ostento agora. Nasci com o título de
conde, Jane. Toda minha família me chamou por dito título até que me
converti em Tresham aos dezessete anos. É a primeira pessoa que me
chama por meu nome de batismo.
Ele mesmo o tinha sugerido. Nunca o tinha feito com outras amantes.
O conheciam por seu título, igual aos outros. Nesse momento recordou
o muito que o tinha alterado escutar seu nome dos lábios de Jane uma
semana antes. Não esperava que o provocasse essa sensação de
intimidade. Nunca tinha percebido o muito que desejava essa confiança.
Esse simples gesto. Que alguém o chamasse por seu nome de batismo.
Tirou o colete e desatou o nó de sua gravata. Jane o olhava com as
mãos apertadas à altura da cintura, envolta em ouro.
—Jocelyn —repetiu ela em voz baixa— todo mundo deveria saber o
que se sente quando lhe chamam por seu nome. Pelo nome desse
indivíduo único que somos em nossos corações. Quer que me dispa
também?
—Ainda não. —tirou a camisa pela cabeça e se desfez das botas de
montar. Só ficou com as calças.
—É muito formoso —disse Jane, surpreendendo-o, com os olhos
fixos em seu torso nu. Só Jane podia fazer semelhante comentário! —
Suponho que te ofendi ao usar esse adjetivo em concreto. Certamente
que não é bastante masculino. Mas não é bonito. Não no sentido
convencional. Seus traços são muito duros e afiados, e tem o cabelo e a
pele muito escuros. Assim só é formoso.
Uma cortesã experiente não o teria excitado mais, nem sequer com
as sugestões mais eróticas.
—E o que posso te dizer agora? —perguntou ao mesmo tempo em
que dava um passo para diante para tocá-la por fim. Tomou seu rosto
entre as mãos, enterrando os dedos em seu sedoso cabelo— Não pode
dizer-se que seja bonita, Jane. Suponho que sabe. Além disso, esse tipo
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de beleza não dura muito tempo. É passageira. Você será formosa com
trinta anos, com cinquenta e também com oitenta. Aos vinte é
deslumbrante, de tirar o fôlego. E é minha. —Inclinou a cabeça e a beijou
com os lábios separados, saboreando-a com a língua, antes de afastar
alguns centímetros.
—Sim, Jocelyn. —mordeu o suave e úmido lábio inferior— No
momento sou tua. Segundo nosso contrato.
—Maldito contrato. —pôs-se a rir suavemente— Quero que me
deseje Jane. Me diga que não se trata só do dinheiro, desta casa e nem da
obrigação contraída por esse pedaço de papel. Me diga que me deseja. A
mim… Ao Jocelyn. Ou me diga de verdade que não me deseja e partirei
para que desfrute de sua casa e de seu salário durante os próximos cinco
anos. Não me deitarei contigo a menos que me deseje.
Uma circunstância que jamais lhe tinha importado em outras
ocasiões. Sem pecar em vaidade, sabia que não era o tipo de homem que
repelia às mulheres que ganhavam a vida.No entanto, nunca tinha
importado que uma mulher desejasse a ele ou desejasse ao aristocrata
rico e dissoluto de reputação perigosa. De fato, se no passado parou para
pensá-lo, certamente teria chegado à conclusão de que não queria que
nenhuma mulher chegasse a desejá-lo como pessoa.
Nunca antes tinha sido Jocelyn para ninguém. Não para os membros
de sua família. Não para uma mulher. Nem sequer para seus amigos mais
íntimos. Preferia dar meia volta e partir para nunca voltar, antes de
permitir que Jane se deitasse nessa cama por obrigação. E reconhecer
esse fato era um pouco alarmante.
—Desejo-te, Jocelyn —sussurrou ela.
Não lhe cabia a menor dúvida de que o dizia a sério. Seus olhos azuis
só olhavam a ele. Estava dizendo amais pura verdade.
E nesse momento Jane se inclinou para frente, deixando que todo seu
corpo se apoiasse ligeiramente contra ele. Colocou os lábios na base da
garganta. A modo de doce rendição.
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Ainda mais doce porque não parecia próprio de Jane. A conhecia
bastante bem para compreender que jamais o faria porque se esperava
que se rendesse.
Sentiu-se estranhamente abençoado.
E curiosamente desejado. De um modo que jamais havia sentido.
—Jane —disse com o rosto apoiado em seu sedoso cabelo— Jane,
preciso estar dentro de seu corpo. Dentro de você. Me deixe entrar.
—Sim. —Jogou a cabeça para trás e o olhou aos olhos— Sim. Te
deixarei entrar, Jocelyn. Mas tem que me ensinar como. Não tenho
certeza se eu sei.
Ah. Jane em estado puro. Com essa voz serena e pragmática… Que
mascarava seu nervosismo, compreendeu de repente.
—Será todo um prazer —disse, com os lábios sobre os seus e
enquanto seus dedos atacavam os botões de seu vestido, situados nas
costas.

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Capítulo 14

Não estava nervosa. Sim, corrigiu-se, sim que estava. Estava nervosa
porque não sabia o que fazer e temia cometer alguma estupidez.
Mas não estava assustada. Nem se sentia horrorizada pelo que estava
fazendo. Nem envergonhada. Não tinha mentido. Desejava-o. Desejava-
o com desespero. E Jocelyn era formoso, não cabia dúvida: musculoso,
com os ombros e o torso largos, a cintura e os quadris estreitos, e as
pernas longas. Seu corpo irradiava calor e cheirava a uma colônia
almiscarada.
Era Jocelyn, e só ela tinha pronunciado em voz alta seu nome de
batismo. Era consciente da importância dos nomes. Só seus pais a
tinham chamado por seu segundo nome, por seu autêntico nome, que
parecia englobar sua verdadeira personalidade. Seus pais e, nesse
momento, Jocelyn. Tinha tentado evitar que a chamasse Jane, mas ele o
tinha feito de todas as formas.
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E assim, de uma maneira quase inefável, conheciam-se intimamente
desde muito antes de cercar uma relação física entre ambos, que estava
a ponto de começar nesse momento. Porque a estava despindo. Jane não
se sentia envergonhada por sua nudez. Via-se refletida no olhar desses
olhos escuros e sabia que era formosa e desejável.
Devolveu-lhe o olhar.
—Jane. —Jocelyn colocou levemente as mãos em sua cintura e a
puxou contra ele. Ela tomou ar muito devagar ao sentir o roce de seu
torso nu contra os mamilos. —Estamos preparados para nos deitar. Vem
para a cama —a convidou.
Por um momento, a frieza do lençol contra as costas roubou o fôlego.
Tinha trocado os tons da decoração, mas não os materiais. Supôs que o
cetim seria um bom acompanhamento erótico tendo em conta o que ia
acontecer nessa cama.
Observou como Jocelyn acabava de despir-se. Não se voltou e ela não
desviou o olhar. Tinha que acostumar-se a seu aspecto e a seu corpo na
mesma medida que estava familiarizada com o seu. Por que começar
com acanhamento ou recato?
Sabia muito bem o que tinha que acontecer. Depois de tudo, tinha
passado toda a vida no campo. No entanto não pôde evitar a surpresa.
Porque era impossível que houvesse espaço para isso.
Jocelyn esboçou seu característico meio sorriso enquanto se colocava
a seu lado na cama e se apoiava em um cotovelo para olhá-la.
—Jane, você se acostumará a ver e a sentir—assegurou— Nunca
desvirginei uma mulher. Suponho que a primeira vez haverá dor e
sangue, mas te prometo que também desfrutará. E não te penetrarei com
este instrumento de tortura até que seu corpo esteja preparado. Minha
obrigação é me assegurar de que o está. Sabe o que são as preliminares?
Ela negou com a cabeça.
—Não o tinha ouvido nunca.
190
—É muito simples. —Olhou-a com ternura e com um brilho
zombador nos olhos— Vamos jogar Jane, por quanto tempo tivermos até
que te monte e ambos estejamos saciados. Suponho que tão pouco sabe
no que consiste essa parte, verdade? A dor desaparecerá imediatamente.
Você vai gostar, confia em mim.
Jane não duvidava dele. Já sentia algo parecido à dor entre as coxas e
a parte inferior do abdômen. Quanto aos seios, pareciam ser vítimas de
um estranho formigamento.
—Já estamos nas preliminares, não é? —perguntou-lhe— Por isso
fala assim.
—Poderíamos nos sentar em extremos opostos do quarto e nos
excitar até estar a ponto de estalar só com palavras —assegurou Jocelyn
com um repentino sorriso— E talvez o façamos algum dia. Mas hoje não.
Hoje é para as carícias, Jane. Para nos explorar com as mãos e as bocas.
Para nos despojar das diferenças que nos separam e que nos impedem
de nos converter na unidade que ansiamos. Porque o ansiamos,
verdade? Os dois?
—Sim. —Jane levantou uma mão para acariciar uma bochecha— Sim,
Jocelyn. Quero ser parte de seu nome, parte da pessoa que leva esse
nome, parte da alma que habita nessa pessoa. Quero me unir a você.
—Você, eu, nós. —Inclinou a cabeça e disse contra seus lábios—
vamos inventar um novo pronome, Jane. A unidade do «eu» e a
pluralidade do «nós» fundidas em uma nova palavra que englobe «Jane»
e «Jocelyn» sem implicar nenhum número.
Jane separou os lábios, repentinamente excitada e comovida por suas
palavras. Pelas que tinha pronunciado e pelas que não. Não tinha
esperado algo assim. Essa não era a relação entre um homem e sua
amante. Era a relação entre duas pessoas que se amavam.
Embora não formasse parte do acordo. Nem para ela, nem
(certamente) para ele.

191
Mas isso era o que estava acontecendo.
Jane compreendeu muito tarde o que significava o termo
«preliminares». O compreendeu enquanto ele explorava sua boca com a
língua e mostrava com as mãos os sensuais e mágicos prazeres que
estavam por chegar. Compreendeu, muito tarde, por que tinha escolhido
essa alternativa em vez de qualquer outra que poderia ter sido mais
lógica e decente. Compreendeu por que tinha aceitado sua proposta sem
sentir-se ofendida, nem espantada.
Porque o amava. Ou talvez não fosse exatamente amor. Mas sim
estava apaixonada por ele. Daí o desejo de entregar-se ao ser amado até
ter lhe dado o que levava em seu interior. E o desejo de receber até que
o vazio estivesse repleto com uma mescla de ambos.
Jocelyn tinha razão. Não havia palavra. Não havia pronome. Nunca
havia palavras para a realidade mais profunda.
—Jane…
Suas mãos, esses dedos experientes, sua boca a exploravam por todos
os lados. Sabia com exatidão onde e como tocá-la, onde roçá-la com a
suavidade de uma pluma, onde lhe fazer cócegas, onde pressionar, onde
massagear, onde beliscar ou arranhar. Sabia onde beijar, onde lamber,
onde sugar e onde mordiscar.
Jane perdeu a noção do tempo. Apesar de sua inexperiência, sabia
onde tocá-lo, como acariciá-lo ou quando mudar a natureza de cada
carícia. Sabia como se o tivesse conhecido sempre, como se levasse em
seu interior uma fonte de sabedoria feminina da que extraía
conhecimentos para o ser amado sem necessidade de ter recebido lição
alguma.
Talvez porque seu corpo não fosse o de uma mulher qualquer, nem
tão pouco o de Jocelyn fosse o corpo de um homem qualquer. O instinto
lhe dizia que o que estavam fazendo estava acostumado a ocorrer na
escuridão e com os olhos fechados, que o prazer estava acostumado a
silenciar-se no mais fundo de cada um, que o afã por agradar ao outro
192
não era habitual. Apesar de sua inexperiência, intuiu que os amantes
nem sempre se amavam com os olhos abertos e concentrados um no
outro, embora fosse possível.
—Jane…
Jocelyn pronunciou seu nome uma e outra vez. E ela pronunciou o
seu. Porque era seu amado, da mesma forma que ela era sua amada.
A dor, o desejo e a necessidade se fizeram mais persistentes e mais
localizados. O necessitava justo aí.
Aí.
Nesse mesmo momento.
A mão de Jocelyn, que tinha introduzido entre as coxas, estava
obrando magia nesse lugar mais íntimo até provocar um frenesi de
desejo.
—Jocelyn —disse ao mesmo tempo em que o agarrava pelos
braços— Jocelyn… —Não sabia o que queria lhe dizer. Mas ele a
entendeu.
—Úmida, ardente e preparada —o ouviu dizer antes que a beijasse
de novo nos lábios— Vou te fazer amor, Jane. Fique relaxada. Quando
estiver enterrado em você, conheceremos o prazer mais sublime.
—Venha —lhe disse— Oh,por favor, Venha.
Seu peso a imobilizou sobre o colchão enquanto ele introduzia as
pernas entre suas coxas para separá-las e colocava as mãos sob seu
traseiro. Por puro instinto ela entrelaçou as pernas sobre as dele. Nesse
momento, ele levantou a cabeça e a olhou em seu rosto com as pálpebras
entreabertas pela paixão. Não com uma paixão cega. Seu olhar a
atravessou.
E nesse instante notou que algo duro pressionava ali onde o desejo
palpitava de forma dolorosa. Pressionou até introduzir-se nela, devagar,
mas com firmeza. A invasão a incomodou e a alarmou. De repente, teve
193
a impressão de que a dor seria terrível, de que não poderia avançar mais.
Era muito grande.
—Jane… —disse e a olhou com algo parecido ao arrependimento—
quisera pudesse te evitar a dor. Mas o sofrimento sempre recai sobre a
mulher. —Empurrou com força e franziu o cenho sem deixar de olhá-la
aos olhos.
Ela se esticou de forma involuntária, por temor à dor e… De repente
se deu conta de que o momento tinha passado, de que Jocelyn estava
nela até o fundo. No interior de seu corpo. E de seu coração. De si mesma.
Olhou-o com um sorriso.
—Sigo viva.
Ele devolveu o sorriso e esfregou o nariz com o seu.
—Essa é minha garota —disse— Nada de lágrimas e desmaios
tratando-se de Jane Ingleby, não é?
Jane contraiu os músculos que rodeavam seu membro, grosso e duro,
e fechou os olhos para assimilar o maravilhoso momento.
Mas Jocelyn tinha prometido mais. E uma vez superado o terrível
momento da perda da virgindade, o desejo, o doloroso desejo, retornou
com força.
—Agora vai me fazer amor? —perguntou, abrindo de novo os
olhos— Me mostre como se faz, Jocelyn.
—Se quer ficar quieta, pode fazê-lo —disse ele— Se quer me
acompanhar, também. Não há regras em nossa cama, Jane. E não há nada
neste absurdo contrato a respeito. Só você e eu, e o que nos resulte
mutuamente prazeroso.
Jocelyn inclinou a cabeça para apoiá-la no travesseiro, sobre seu
cabelo. Depois, retirou-se até sair quase por completo dela… E voltou a
penetrá-la.

194
Nessa ocasião não houve dor. Só umidade, calor e, após alguns
instantes, o rítmico som de seus corpos ao mover-se. Não demorou
muito em ajustar-se à perfeição ao movimento de Jocelyn. A experiência
consistia em uma energética fricção concentrada nesse lugar onde seu
corpo tinha acolhido seu membro. No entanto, a sensação não se
localizava só aí, mas sim se estendia além. Essa era a união de um homem
e de uma mulher, de Jane e de Jocelyn. Um momento de união, um
momento no que o «eu» e o «você» deixavam passo a outra entidade não
individual, e o indivíduo perdia o foco e seu significado. Um momento no
que a pluralidade se convertia em singularidade.
Desejo, desejo febril… Com um matiz doloroso e a impressão de que
havia algo… Algo ao alcance…
—Agora, Jane —o ouviu dizer, e viu que levantava a cabeça. Beijou-a
nos lábios e a olhou aos olhos— Agora. Venha comigo. Agora, Jane.
Venha.
Sim, agora, pensou. Agora, repetiu para si mesma. Deixou-se arrastar
para o desconhecido, para a plenitude. Para o esquecimento. Para a
experiência mais sublime. Para a unidade.
Sim, agora.
—Jocelyn!
Escutou que alguém gritava o nome de Jocelyn. E em resposta
escutou que alguém murmurava o seu.
Sentiu que ele se derramava em seu interior e soube que o momento
se completou.
Depois escutou murmúrios e sentiu frio quando ele se separou dela.
Mais murmúrios e o conforto de seu peito úmido contra o dela quando a
puxou para ele e a atravessou o braço por cima. A calidez das mantas
sobre os ombros.
—Jane… —Escutou seu nome de novo— Não sei se poderá repetir
isso de que está viva.
195
Ela sorriu sonolenta.
—Mmm… —murmurou antes de suspirar— Estamos no paraíso
então?
Estava muito cansada para escutar a risada de Jocelyn. E deslizou em
um sono delicioso.

Jocelyn não dormiu. Sentia-se completamente satisfeito, mas


também estava inquieto. Que tolices havia dito? Que Jane não as tivesse
ouvido, pensou.
Mas é obvio que as tinha ouvido.
Tinha sido uma experiência compartilhada. Não tinha sido a união de
duas entidades individuais entregando-se e recebendo em troca agrado
físico. Tinham compartilhado…
Maldição! Exclamou para si mesmo. Ao que parecia não podia deixar
de pensar as mesmas tolices que tinha estado dizendo. Era consciente
de que nesse instante de união, ele tinha se convertido nela e ela, nele.
Embora isso não explicasse nada. Juntos, unidos, converteram-se em
uma nova entidade formada pelos dois, mas que não era nenhum dos
dois.
Se não tomasse cuidado, acabaria em um manicômio.
Porque o que tinha ocorrido transcendia sua própria experiência. E
certamente não tinha sido sua intenção. O que procurava era uma nova
amante. Alguém com quem deitar-se quando gostasse. Algo simples e
básico. Jane tinha despertado seu desejo. Necessitava uma casa e um
emprego.
De modo que lhe pareceu um acerto sensato.
Até que soltou o cabelo. Não, esse gesto só avivou o desejo.

196
Até que o chamou por seu nome. E disse algo mais. Que diabos havia
dito? Esfregou a bochecha com seu cabelo e a puxou um pouco mais para
ele.
«Todo mundo deveria saber o que se sente quando lhe chamam por seu
nome. Pelo nome desse indivíduo único que somos em nossos corações.»
Sim, esse comentário tinha sido o culpado. Essas absurdas palavras.
Nasceu sendo conde na fila para marquês, herdeiro a um ducado.
Toda sua educação, tão formal como informal, tinha estado enfocada a
prepará-lo para assumir tanto o título de seu pai como sua
personalidade quando chegasse o momento. E tinha aprendido muito
bem as lições. Tinha assumido ambas as coisas à idade de dezessete
anos.
«… Desse indivíduo único que somos em nossos corações.»
Mas ele carecia de coração. Como era habitual entre os Dudley.
E não tinha uma personalidade única. Era o que seu pai e os outros
tinham esperado que fosse. Durante anos se manteve envolto em sua
reputação de homem sombrio, cruel e perigoso.
O cabelo de Jane cheirava a esse aroma de rosas que sempre parecia
rodeá-la. Recordou a um jardim rural no inicio do verão. E provocou nele
um estranho desejo. Estranho porque sempre tinha odiado o campo. Só
tinha ido duas vezes a Acton Park, sua casa rural, desde que partiu
depois da amarga discussão que teve com seu pai aos dezesseis anos. A
primeira ocasião foi para o funeral de seu pai, um ano depois de partir.
E a segunda, para o de sua mãe, quatro anos mais tarde.
Sua intenção tinha sido a de não retornar jamais até o dia de seu
próprio enterro. No entanto, se fechasse os olhos nesse momento
enquanto abraçava Jane, via as suaves colinas que se estendiam pelo
leste da mansão onde tinha brincado com Ferdinand e Angeline fingindo
serem salteadores de caminhos, ladrões, Robin Hood e exploradores. E
onde, às vezes, quando estava sozinho, tinha fingido ser poeta e místico,
197
envolto pelos aromas da natureza enquanto experimentava a
grandiosidade e o mistério dessa coisa tão abstrata chamada «vida» e
tentava dar forma verbal a seus pensamentos e intuições, as escrevendo
em versos. De vez em quando inclusive gostava do que escrevia.
Antes de partir de seu lar, em um arranque de paixão e fúria, fez
migalhas todos seus poemas.
Levava muito tempo sem pensar em seu lar. Em seu lar, porque,
quanto à propriedade, mantinha-se sempre bem informado. Inclusive
tinha esquecido que Acton Park foi sua casa em outra época. Porque o
tinha sido. Em outra época. Recordava uma babá que lhes tinha
demonstrado afeto e disciplina em grandes doses. Esteve com eles até
que ele tinha oito ou nove anos. Inclusive se lembrava de por que a
despediram. Recordava o dia que o consolou no quarto infantil porque
tinha dor de dente. Recordava sua mão gordinha e grande acariciando
sua bochecha. Seu pai entrou sem avisar no quarto infantil… Um
acontecimento pouco habitual.
E a despediu na hora.
Ele, Jocelyn, foi convocado ao escritório de seu pai para que esperasse
a palmadas depois da qual lhe arrancaram o dente.
O Duque de Tresham, seu pai, recordou-lhe, com cada doloroso golpe
da vara que lhe dava nas costas, que não educava seus filhos para que
fossem meninas. Muito menos seu herdeiro.
—Jocelyn… —Jane despertou.
Viu-a jogar a cabeça para trás para olhá-lo aos olhos. Seu formoso
rosto estava ruborizado, tinha as pálpebras entreabertas e os lábios
avermelhados e inchados por seus beijos. Parecia envolta em um
flagrante halo dourado.
—Fui muito torpe?

198
Jocelyn pensou que era uma das poucas mulheres para as que a
paixão e a sexualidade eram instintivas. Porque tinha se entregado a
ambas essa tarde como se não temesse a dor. A humilhação. A rejeição.
No entanto, antes que pudesse responder lhe acariciou a ponta do
nariz com a ponta de um dedo que foi subindo até cobrir seu cenho
franzido.
—O que é isto? —ouviu-a perguntar— Por que está carrancudo? Fui
torpe, não é? Que absurdo supor que porque para mim tenha sido uma
experiência estremecedora, também o tenha sido para você.
Que absurdo era que se expusesse dessa forma ao ridículo e à dor.
Pegou seu pulso e afastou a mão de seu rosto.
—Jane, é uma mulher — disse— Uma mulher extraordinariamente
bela. Com tudo em seu lugar e muito bem posto. Desfrutei muitíssimo.
Percebeu que algo acontecia a seus olhos. Algo se fechou no fundo
desses olhos azuis. E reconheceu a repentina irritação que o invadia pelo
que era em realidade. Era a vergonha o que lhe tinha provocado um nó
na garganta e uma opressão no peito, devido às lágrimas contidas. E
fúria porque Jane o tivesse feito cair tão baixo.
Jamais deveria lhe ter dito que o chamasse por seu nome de batismo.
—Está zangado —afirmou ela.
—Porque está falando de experiências estremecedoras e temo que a
confundi —aduziu com voz cortante— Te pago para ser minha amante.
Quão único fiz é te pôr para trabalhar. Estou acostumado a me esforçar
muito para que minhas amantes encontrem agradável seu trabalho, mas
isso é o que é: trabalho. Acaba de ganhar o salário.
Perguntou-se se Jane teria sentido o açoite de suas palavras tanto
como o tinha sentido ele. Nesse momento odiou a si mesmo, embora isso
não fosse novidade, exceto possivelmente pelo fato de que a paixão
desse ódio que se professava foi se suavizando com o passar dos anos
até converter-se em um desdém pelo mundo em geral.
199
—Certamente que ganhei —replicou ela com frieza— Sua graça —
acrescentou, voltando parao tratamento de cortesia— recordo-lhe que
me contratou para o uso e desfrute de meu corpo. Não está pagando para
o uso de minha mente, nem de minhas emoções. Se dito que parte de
meu trabalho me resulta estremecedor, sou livre de experimentá-lo
sempre e quando lhe garantir o acesso a meu corpo.
Suas palavras lhe provocaram uma ira cega em um primeiro
momento. Se Jane houvesse se desfeito em lágrimas como teria sido o
caso de uma mulher normal, ele poderia ter se flagelado mais ao tratá-la
com desdém. Mas, como era habitual nela, estava o atacando com gélida
dignidade apesar de estar nua na cama com ele.
Jocelyn riu entre dentes.
—Nossa primeira discussão, Jane —disse— E não será a última,
suspeito. No entanto, te advirto que não permitirei que os sentimentos
sejam envolvidos em nossa relação. Não quero que sofra quando chegar
o inevitável final. O que acontece neste quarto é sexo. Nada mais. E você
não foi torpe. Foi uma experiência sexual tão satisfatória como qualquer
das que tive até agora. Muito satisfatória. Ai, está mais tranquila?
—Sim —respondeu ela, ainda com voz fria— Obrigado.
Jocelyn voltou a excitar-se. Por sua própria ira e pela gélida relutância
de Jane para que a pusesse em seu lugar, por sua loira beleza e pelo sutil
aroma de rosas. Fez o que tinha que fazer para reafirmar que tinha o
controle da situação: A virou de costas no colchão e voltou a lhe fazer
amor, mas nessa ocasião se esforçou para manter o encontro no âmbito
estritamente carnal, com um empenho quase clínico. Um homem e sua
amante. Nada mais.
E depois dormiu, embalado pelo tamborilar da chuva nos cristais.

—Pensei que você gostaria de ficar para jantar —disse Jane.


—Não.
200
Vestiram-se e estavam na sala do primeiro andar. No entanto, Jocelyn
não se sentou como tinha feito ela. Colocou-se frente à lareira e olhou
para as brasas apagadas. Depois caminhou até a janela para contemplar
a chuva.
Sua presença e sua energia enchiam a estadia. Enquanto observava
sua imaculada elegância, seu porte orgulhoso, seus largos ombros e suas
poderosas coxas, Jane não conseguia acreditar que apenas meia hora
antes tinha estado nu a seu lado na cama. Nem sequer acreditava no que
tinha acontecido, face às consequências físicas: a dor entre as coxas, a
sensibilidade nos seios e o tremor nas pernas.
—Tenho um compromisso —aduziu— E depois um baile infernal ao
que ir. Não, não vim para ficar, Jane. Só para consumar nossa relação.
Não ia ser fácil ser sua amante. Não tinha esperado fosse. Era um
homem arrogante com muito temperamento. Estava acostumado a sair
com a sua, sobre tudo com as mulheres. Mas o mais difícil seria lutar com
suas repentinas e estranhas mudanças de humor.
Sua resposta a tinha magoado, como a tinham magoado e humilhado
às palavras que lhe havia dito na cama. No entanto, percebeu que
nãotinha falado ao descuido, mas sim suas palavras eram muito
deliberadas. Não estava certa do motivo. Para lhe recordar que lhe
pagava para ser sua amante?
Ou para convencer a si mesmo que só era um corpo feminino com o
que obter prazer?
Pois apesar de sua ignorância e inexperiência, Jane juraria que a
primeira vez que a tinha penetrado não a estava utilizando para esse
propósito. Não tinha sido um mero corpo feminino. Não tinha sido
somente prazer carnal.
Tinha-lhe feito amor. A ela, como pessoa.
E depois se arrependeu de demonstrar semelhante debilidade.

201
—É um alívio, então —repôs ela com frieza— Tinha a esperança de
poder começar com as mudanças que quero realizar em outras estadias,
mas já perdi a maior parte da tarde.
Jocelyn voltou à cabeça sem se mover do lugar que ocupava e a olhou
fixamente.
—Jane, não há forma de te pôr em seu lugar, não é?
—Se está se referindo que não vou permitir que me faça me sentir
como uma prostituta —particularizou ela— tem razão. Estarei
disponível quando me necessitar. Assim o acordamos. Mas minha vida
não girará em torno de suas visitas. Não passarei os dias olhando pela
janela, nem estarei pendente da porta pelas noites.
Recordou com certa culpa que passou toda a manhã passeando
inquieta frente à janela. Não voltaria a fazê-lo.
—Jane, se te convém —disse ele em voz baixa ao mesmo tempo em
que entrecerrava os olhos de forma perigosa— te enviarei uma nota
para avisar de minha visita cada vez que queira me deitar contigo a fim
que me encaixe em sua ocupada agenda.
—Não me escutou —o repreendeu— Assinei um contrato, de modo
que penso manter minha palavra e me assegurar de que você também o
faça.
—O que faz em seu tempo livre? —perguntou-lhe enquanto dava as
costas à janela e olhava ao redor da estadia— Sai?
—Ao jardim traseiro —respondeu— É muito bonito, embora
necessite um pouco de trabalho. Tenho certas ideias e comecei a pô-las
em marcha.
—Lê? —Jocelyn franziu o cenho— Há livros nesta casa?
—Não —respondeu, e bem que sabia ele.
—Amanhã pela manhã te levarei a biblioteca de Hookham —
sentenciou Jocelyn de forma brusca— para comprar uma assinatura.
202
—Não! —exclamou com firmeza, mas depois relaxou o tom de voz—
Não, obrigado, Jocelyn. Tenho muitas coisas s fazer. Converter um bordel
em um lar suporta muito trabalho e energia, sabe?
—Jane, esse comentário foi uma insolência imerecida, indigna de
você. —aproximou-se dela até deter-se diante da poltrona. Parecia
muito grande e ameaçador, com os pés separados e seu cenho
franzido— Suponho que se te disser que virei para te acompanhar para
dar um passeio pelo Hyde Park também estará muito ocupada, não é?
—Sim —respondeu, assentindo de uma vez com a cabeça— Não é
necessário que se preocupe comigo.
Jocelyn a olhou em silêncio com uma expressão tão inescrutável que
não viu nada nele do homem que a tinha amado pouco antes com uma
paixão inconfundível. Parecia um homem sério, sem senso de humor e
inalcançável.
A seguir, fez-lhe uma repentina reverência se voltou e saiu da sala.
Jane cravou o olhar na porta depois que ele a fechou, e aguçou o
ouvido para escutar como se abria e se fechava a porta principal. Foi-se.
Sem lhe dizer adeus, nem lhe dizer sequer quando voltaria.
Nessa ocasião sim,se sentiu mal.
Desolada.

203
Capítulo 15

A estadia contigua a sala de estar contava com um divã, um tapete


peludo, uma incrível quantidade de espelhos (que multiplicavam por
dez o próprio reflexo dependendo do lugar que se ocupasse, já fosse de
pé, sentado ou convexo) e as inevitáveis almofadas e cacarecos. Na
opinião de Jane, as antigas amantes do duque, que preferiam sua própria
companhia a de qualquer outra pessoa, tinham-na usado como sala
privada, ou talvez como alternativa ao quarto. Supunha que se tratava
do segundo.
Tinha passado por cima a estadia enquanto redecoravam as duas
estadias principais. Mas nesse momento, a seu próprio ritmo, estava se
apropriando dela. A sala de estar lavanda era elegante por fim, mas não
era dela.
Os espelhos e o divã desapareceram, sem lhe importar o que fosse
deles. Enviou o Sr. Jacobs para comprar uma escrivaninha, uma cadeira,
papel, plumas e tinta. Enquanto isso mandou à senhora Jacobs comprar
linho de boa qualidade, um bastidor, meadas de seda de todas as cores e
vários acessórios mais.
O gabinete, uma espécie de refúgio privado, tal como Jane pensava na
estadia, se converteria em sua sala de escrita e de costura. Ali daria rédea
solta a sua paixão pelo bordado.
A noite posterior à consumação de sua relação com Jocelyn estava
sentada em seu gabinete, com o fogo crepitando na lareira. O imaginou
204
em um grande jantar, seguido de um baile ainda maior, e tentou não
sentir inveja. Jamais tinha desfrutado de uma temporada social.
Primeiro passou o ano de luto por sua mãe e depois seu pai adoeceu
gravemente, embora a animou a aceitar a oferta de Lady Webb para
apresentá-la em sociedade. No entanto, ela tinha insistido em ficar para
cuidar dele. E depois aconteceu a morte de seu pai e o conseguinte ano
de luto. E a partir desse momento as circunstâncias a fizeram ficar sob a
tutela do novo conde.
Dançaria Jocelyn essa noite? Perguntou-se. Dançaria uma valsa?
No entanto, não ia desfrutar em pensamentos deprimentes.
O coração quase parou ao escutar que alguém batia na porta do
gabinete. Tinha retornado? Mas nesse instante viu que o mordomo
aparecia à cabeça, com expressão ansiosa.
—Peço-lhe desculpas, senhora —disse o senhor Jacobs— mas
acabam de chegar duas caixas muito grandes. O que quer que faça com
elas?
—Caixas? —Jane arqueou as sobrancelhas e largou o trabalho.
—De Sua Graça —explicou o mordomo— Quase muito pesadas para
levantá-las.
—Não espero nada. —ficou em pé— Será melhor que vá ver do que
se trata. Está seguro de que as envia Sua Graça?
—Oh, sim, senhora —assegurou ele— Seus próprios criados as
trouxeram e explicaram que são para você.
Jane estava intrigada, sobre tudo depois de ver as duas grandes
caixas no meio do chão da cozinha.
—Por favor, abra uma —disse, e a senhora Jacobs pegou uma faca
para que seu marido cortasse a corda que fechava uma das caixas.
Jane afastou a tampa e todos os criados (o mordomo, o governanta, a
cozinheira, a donzela e o lacaio) inclinaram-se para dar uma olhada.
205
—Livros! —A donzela parecia decepcionadíssima.
—Livros! —A senhora Jacobs parecia surpreendida— Enfim, nunca
tinha mandado livros. Pergunto-me por que os enviou agora. Você lê
Senhora?
—É obvio que sim —disse o senhor Jacobs com secura— Para que
então ia querer uma escrivaninha, papel e tinta? Eu pergunto.
—Livros! —exclamou Jane com um deixe reverente na voz e as mãos
pegas ao peito.
Notou que os primeiros eram de sua própria biblioteca. Antes de
tocar os exemplares viu um de Daniel Defoe, outro de Walter Scott, outro
de Henry Fielding e um de Alexander Pope.
—Parece-me um presente um pouco estranho —comentou a
donzela— perdoe que o diga senhora. Talvez haja algo melhor na outra
caixa.
Jane estava mordendo o lábio superior.
—É um presente que não tem preço —replicou— Senhor Jacobs, as
caixas são muito pesadas para que Phillip e você as levem ao gabinete?
—Posso levá-las eu sozinho, senhora —se apressou a assegurar o
jovem criado— Quer que também tire os livros?
—Não. —Jane sorriu— Isso o farei eu, obrigado. Quero vê-los um a
um. Quero ver o que escolheu para mim.
Por acaso havia uma estante no gabinete, embora estivesse decorada
com adornos de péssimo gosto antes que Jane a limpasse.
Passou duas horas ajoelhada junto às caixas, tirando os livros de um
a um, organizando-os com cuidado nas prateleiras, meditando qual
deveria ler primeiro.
E de vez em quando teve que piscar depressa e inclusive limpar os
olhos com um lenço porque o imaginou voltando para casa essa tarde e
206
escolhendo todos esses livros para ela. Sabia que não se limitou a
ordenar ao Sr. Quincy que os escolhesse em seu lugar. Entre os livros
estavam alguns dos que ela tinha mencionado como seus preferidos.
Nenhuma joia cara a teria agradado tanto como os livros. E sabia que
suas arcas nem sequer teriam notado o gasto de dito presente. Mas os
livros…! Seus próprios livros, porque não os tinha comprado. Tinha
tirado esses exemplares de sua própria biblioteca, e entre eles também
se encontravam alguns dos títulos preferidos de Jocelyn.
Uma parte da solidão que a tinha embargado ao longo da tarde se
dissipou. Assim como também o fez parte do desconcerto que sentiu ao
vê-lo partir de forma tão repentina, sem despedir-se. Sem dúvida tinha
retornado direto a sua casa e tinha passado um momento na biblioteca.
Por ela.
Não podia permitir-se apaixonar-se ainda mais por ele, disse-se com
firmeza. E não podia, sob nenhuma circunstância, permitir-se amá-lo.
Jocelyn estava agradando a uma nova amante. Nada mais.
Mas leu feliz até a meia-noite.

À manhã seguinte o Duque de Tresham montou a cavalo no Hyde


Park à hora em que estava acostumado a encontrar com um grupo de
amigos na Rotten Row. A chuva tinha descampado durante a noite e o
sol brilhava, fazendo que as gotas reluzissem como diamantes sobre a
erva. Por sorte,para sua necessidade de distração, topou com Sir Conan
Brougham e o Visconde de Kimble quase imediatamente.
—Tresh —o saudou o Visconde quando Jocelyn se uniu ao grupo— o
esperávamos para jantar no White’s.
—Jantei em casa —replicou. E o tinha feito. Tinha sido incapaz de
jantar com Jane já que tinha as emoções à flor de pele e não tinha querido
que ela se desse conta. E embora tenha se arrumado para sair, não o
tinha feito. Não sabia muito bem por que.
207
—Sozinho? —perguntou Brougham— Nem sequer com a companhia
da deliciosa senhorita Ingleby?
—Jamais jantou comigo —respondeu Jocelyn— Como recordará, era
uma criada.
—Eu adoraria que me servisse —comentou Kimble com um suspiro
dramático.
—E não foi ao baile de Lady Halliday —assinalou Brougham.
—Fiquei em casa —disse Jocelyn.
Deu-se conta de que seus amigos trocavam um olhar antes de
começarem a rir a gargalhadas.
—Há, Tresham —disse Brougham—Quem é? Alguma conhecida?
—Acaso um homem não pode dizer que passou uma noite tranquila
em casa sem levantar suspeitas? —Jocelyn esporeou seu cavalo para pô-
lo a galope.No entanto, seus amigos, que fizeram o mesmo para não ficar
atrás, não se deram por vencidos e o flanquearam após um momento.
—É nova se o impediu que fosse para jantar no White’s e o manteve
afastado da sala de jogos de Lady Halliday, Cone —sentenciou Kimble.
—E o manteve acordado toda a noite a julgar pelo mau humor desta
manhã —comentou Brougham.
Estavam falando com Jocelyn entre eles, os dois muito sorridentes,
como se ele não estivesse ali.
—Vá para o diabo—lhes disse.
Mas seus amigos receberam o desagradável convite com mais
gargalhadas.
Foi um alívio ver que Angeline se aproximava caminhando com sua
amiga, a senhora Stebbins. Estavam dando um passeio matinal.

208
—Que homem mais irritante! —exclamou sua irmã assim que Jocelyn
esteve bem perto para escutá-la— Por que nunca está em casa quando
vou te ver Tresham? Tomei a moléstia de ir a Dudley House ontem pela
tarde porque Heyward me disse que você tinha partido do White’s antes
do almoço. Estava convencida de que teria voltado para casa.
Jocelyn brincou com o cordão de seu monóculo.
—De verdade? —perguntou— Seria uma redundância te informar
que se equivocou. Se me permite perguntá-la, a que se deve essa amostra
de afeto fraternal? Bom dia, senhora Stebbins. —tocou a aba do chapéu
com o chicote e inclinou a cabeça.
—É a fofoca de todo o mundo —disse Angeline enquanto sua amiga
fazia uma reverência a Jocelyn— O ouvi três vezes nos dois últimos dias,
por não mencionar que Ferdie também me contou isso ontem quando o
vi. Assim ouso dizer que você o ouviu também. Mas insisto em que me
prometa que não vai cometer uma tolice, Tresham, ou meus nervos não
suportarão. E também tem que me prometer que defenderá a honra
familiar, custe o que custar.
—Espero que cedo ou tarde tenha a intenção de me comunicar o tema
desta fascinante conversa, Angeline. Posso sugerir que seja o segundo,
já que Cavalier segue bastante inquieto?
—Comenta-se que os irmãos Forbes abandonaram a cidade por
medo de que se vingasse do que tentaram fazer a Ferdie.
—E fazem bem em ter medo —replicou— Se esse foi o verdadeiro
motivo de seu desaparecimento, vejo que entre os três há um pequeno
grau de sabedoria.
—Mas agora o comentam como uma verdade absoluta… Não é certo
Maria? —Angeline se voltou para a senhora Stebbins em busca de
confirmação— O senhor Hammond o mencionou no baile da senhora
Bury-Haugh há dois dias e todo mundo sabe que sua esposa é segunda
prima da senhora de Wesley Forbes. Assim deve ser verdade.

209
—Inequivocamente, diria eu —conveio Jocelyn com secura,
enquanto observava com seu monóculo os outros caminhantes que
transitavam pelo outro lado da cerca e aos cavaleiros que cavalgavam
pela pista.
—Não estão satisfeitos —anunciou Angeline— Você pode imaginar a
tremenda ousadia deles? Quando Ferdie poderia ter se matado! Não
estão satisfeitos porque você foi no tílburi e só acabou com as luvas de
couro estragadas. E eles seguem jurando que vão se vingar de você.
Quando todo mundo sabe que é você o ofendido. Foram-se em busca de
reforços e se espera que retornem a qualquer momento.
Jocelyn se voltou com um floreio para olhar o extenso prado que tinha
atrás.
—Mas ainda não retornaram Angeline —repôs— Devo supor que os
reforços aos que você se refere são o reverendo Josiah Forbes e o Capitão
Samuel Forbes?
—Serão cinco contra um —assinalou sua irmã com gesto teatral—
Ou cinco contra dois, se contarmos Ferdie, porque insiste em que deve
ser assim. Seriam cinco contra três se Heyward não se negasse a somar-
se, com esse odioso costume de não envolver-se em criancices. Acredito
que vou lhe tirar uma arma e começar a praticar tiro de novo. A final, sou
uma Dudley.
—Rogo-te que não o faça —disse Jocelyn com firmeza— Se
demonstra ter a mesma pontaria que de pequena, não saberíamos onde
íamos correr mais perigo, se diante ou atrás de você. —Levantou de
novo o monóculo e a olhou da cabeça aos pés— Leva um chapéu
surpreendentemente elegante —comentou— Mas as papoulas
desafinam infelizmente com o rosa de seu vestido matinal.
—Lorde Pym se deteve para falar conosco há dez minutos —replicou
ela com um movimento de cabeça— e o tolo me disse que pareço um
vale delicioso onde desejaria poder passear a sós. Não é, Maria?

210
—De verdade? —Jocelyn adotou imediatamente uma atitude
gélida— Espero, Angeline, que recorde a Lorde Pym que é a irmã do
Duque de Tresham.
—Suspirei melancolicamente e depois ri dele —assegurou sua
irmã— Só foi uma adulação inocente, Tresham. De verdade acredita que
permitiria que algum homem tomasse liberdades? Quando o disser a
Heyward, olhará ao teto e depois me dirá que… Enfim… —Se ruborizou
e soltou uma gargalhada antes de despedir-se de Kimble e de Brougham
com um gesto de cabeça, agarrou o braço de Maria Stebbins e continuou
com seu passeio.
—Londres necessita outro escândalo —comentou Jocelyn enquanto
reatava a marcha com seus amigos— Ao que parece ninguém tem outra
coisa do que falar estes dias exceto desses canalhas covardes que
afirmam ser parentes de Lady Oliver.
—Por Deus, sem dúvida estão tremendo de medo —disse o Visconde
de Kimble— desde que Joseph Forbes cometeu a imprudência de
assumir a responsabilidade em nome de todos eles pelos arranhões de
suas mãos. Mas também é certo que estão planejando mais… Nada tão
direto como um duelo, é obvio.
—Pode ser que não haja mais remédio… A não ser que queiram
perder o respeito e o pouco que fica de honra —repôs Jocelyn— Mas já
basta do tema. Estou farto, vamos desfrutar do ar fresco e do sol.
—Para limpar as teias de aranha? —sugeriu Brougham, inclinando-
se um pouco a diante para dirigir-se a seu outro amigo, que seguia ao
outro lado de Jocelyn— Kimble se fixou em que segundo Lady Heyward,
Tresham não esteve em casa ontem pela tarde? Esteve contigo?
—Não esteve comigo, Cone —respondeu o visconde, muito sério— E
contigo?
—Não o vi desde ontem pela manhã e até há um momento —
respondeu Brougham— Tem que ser muito nova e muito brincalhona.

211
—Maldição! —Kimble deteve seu cavalo de repente e jogou a cabeça
para trás com uma gargalhada tão forte que quase caiu da cadeira e
necessitou de toda sua habilidade para controlar seu cavalo— A tivemos
diante do nariz, Cone —disse quando foi capaz de falar— Me refiro à
resposta.
Os cavalos de Conan Brougham e de Jocelyn estavam empinando não
muito longe dele.
—A deliciosa senhorita Ingleby! —exclamou Kimble— Grande
canalha, Tresh. Mentiu para nós. Está a mantendo. E ela te manteve
afastado dos amigos, das obrigações e de sua cama (a de sua casa, digo)
quase todo o dia de ontem e quase toda a noite. Deve ter completado
com acréscimo o tremendo potencial que demonstrava ter.
—Tínhamos diante todo o tempo, não? —conveio Brougham com um
sorriso— Inclusive dançou com ela, Tresham. Uma valsa nada menos. E
não podia tirar os olhos dela. Por que tanto sigilo, meu amigo?
—Acredito que levarei luto a partir de agora —disse Kimble com um
suspiro exagerado— Tinha pensado contratar um investigador da Bow
Street para procurá-la.
—Ao diabo os dois com minhas benções —replicou Jocelyn com sua
habitual arrogância— Agora, e se me perdoam, o café da manhã me
espera em Dudley House.
Ao princípio reinou o silêncio, mas depois seus amigos estalaram em
gargalhadas enquanto ele punha rumo com parcimônia para sua casa.
Não era assim, repetia-se como um tolo. Não era assim.
Mas se não era assim, se não era um homem com uma nova amante
que desfrutava da novidade desse corpo feminino com o que sentia
prazer, como era?
Detestava a ideia de que inclusive seus amigos íntimos rissem de
Jane.

212
Devia tê-lo ouvido chegar. Voltava a estar na porta da sala de estar,
com um vestido amarelo claro nessa ocasião, outro vestido novo de corte
clássico e simples. Parecia que Jane tinha um gosto excelente quanto à
roupa, uma vez que se viu obrigada a tirar essas monstruosidades cinza.
Entregou o chapéu e as luvas ao mordomo e se aproximou dela. Jane
sorriu com uma calidez surpreendente e estendeu as duas mãos para ele,
desconcertando-o por completo. Tinha estado em um humor de cão com
o mundo, inclusive com ela, e enfadadíssimo consigo mesmo por não
poder controlar o impulso de visitá-la de novo essa tarde.
—Obrigado —disse ela ao mesmo tempo em que lhe dava um aperto
nas mãos quando ele as estendeu— Como posso te agradecer?
—Pelos livros? —Franziu o cenho. Esqueceu-se dos livros. Sua
intenção era de levá-la diretamente à cama e saciar seu desejo com ela
antes de partir para continuar com o resto do dia, sem que o distraíssem
os pensamentos sobre Jane. Sua intenção era a de corrigir o rumo dessa
relação e levá-la aonde queria. Ao mesmo tempo detestava pensar nos
comentários obscenos de Kimble e de Brougham, que certamente teria
que suportar essa noite, sabendo que tinham um pouco de razão.—Não
é nada —comentou com secura.
Escapou de suas mãos e fez um gesto para que ela entrasse em
primeiro lugar.
—Para você, talvez —repôs ela— Mas para mim é muito importante.
Não faz ideia do muito que senti falta de ler desde que me mudei.
—E por que não me deixou te levar a biblioteca? —perguntou,
irritado, enquanto fechava a porta e dava uma olhada a seu redor.
E por que se envergonhava tanto de que a vissem? Suas outras
amantes se tornavam loucas de felicidade quando as acompanhava a
algum lugar onde pudessem vê-las em sua companhia.

213
Certamente era a filha de um clérigo. Mas que o partisse um raio se
começava a sentir-se culpado por ter tirado sua virgindade.
É obvio Jane não pensava responder a pergunta. Limitou-se a sorrir,
inclinando a cabeça.
—Esta tarde está de mau humor —assinalou— Mas não penso me
deixar intimidar. Ocorreu algo de que deseje falar?
A pergunta esteve a ponto de lhe arrancar uma gargalhada.
—Os irmãos Forbes fugiram da cidade em busca de reforços —
respondeu— Lhes dá medo enfrentar a mim embora fosse três contra
um. Planejam ampliar essa vantagem ao ser cinco contra um. Logo
descobrirão que as chances ainda são a meu favor. Lutar com valentões
e covardes me provoca certo prazer.
Jane suspirou.
—Os homens e seu orgulho —disse— Suponho que seguirá brigando
quando tiver oitenta anos, se acaso chegar a cumpri-los. Por que não se
senta? Peço que nos tragam chá? Ou quer subir imediatamente?
De repente, por estranho e alarmante que parecesse não a desejava.
Não na cama. Não nesse momento. Porque parecia muito… Muito o que?
Sórdido? De novo esteve a ponto de soltar uma gargalhada.
—Onde estão os livros? —quis saber— No quarto? No sótão?
—Na sala contigua —respondeu ela— A redecorei para meu uso
particular quando não estiver aqui. Considero esse gabinete como meu
refúgio privado.
Jocelyn detestava a sala de estar. Embora a tivesse convertido em um
lugar elegante e refinado, seguia lhe recordando uma sala de espera, a
esse espaço impessoal onde se observavam certas convenções antes do
inevitável passo ao quarto. E não havia toques pessoais que
convertessem essa estadia na sala de estar de Jane.
—Me leve —lhe ordenou.
214
Deveria ter adivinhado que Jane não daria a volta sem mais e o
conduziria, cabisbaixa, ao gabinete.
—É minha estadia —disse ela— Aqui é onde te entretenho… E
suponho que de vez em quando também usaremos a sala de jantar. O
quarto é onde te concedo seus direitos contratuais. Considero o resto da
casa como meus domínios pessoais.
Jocelyn apertou os lábios, indeciso entre elevar a voz só pela
satisfação de vê-la saltar de medo e jogar a cabeça para trás para soltar
uma gargalhada.
Direitos contratuais, pelo amor de Deus!
—Senhorita Ingleby —disse com voz zombadora, fazendo sua
reverência mais elegante—, me concederia o privilégio de ver seu
gabinete privado?
Viu-a titubear, mordendo o lábio inferior, antes de assentir com a
cabeça.
—Muito bem —aceitou ela, e se voltou para sair da estadia diante
dele.
O gabinete era Jane. Sentiu-o nada mais ao entrar. Teve a sensação de
ter entrado em seu mundo pela primeira vez. Um mundo elegante e
refinado, ao mesmo tempo em que acolhedor e dedicado ao trabalho.
O tapete e as cortinas em tons bege sempre tinham dado um ar muito
triste à estadia, e todas as tentativas de suas predecessoras para
iluminar o lugar com almofadas, mantas e ninharias espantosas só
tinham conseguido aumentar a melancolia. Os espelhos, acrescentados
por Effie, tinham-na multiplicado. De modo que tinha adquirido o
costume de não pisar nessa estadia.
Nesse momento, os tons neutros, que Jane não tinha tentado
mascarar, conferiam uma sensação de paz à estadia. O divã tinha
desaparecido. Também os espelhos, embora não fosse uma surpresa.
Tinha acrescentado algumas poltronas elegantes, assim como uma
215
escrivaninha e uma cadeira; e na mesa havia papéis suficientes para
indicar que não estavam ali só para efeitos decorativos. A estante estava
cheia com seus livros, embora um estivesse aberto sobre uma mesinha
auxiliar junto à poltrona situada perto da lareira. Diante da poltrona, do
outro lado da lareira, encontrava-se um bastidor onde tinha montado
uma parte de linho. Sobre o tecido descansavam fios de linho de seda,
tesouras e agulhas.
—Posso me sentar? —perguntou.
Jane indicou a poltrona junto ao livro.
—Se quiser —sugeriu ela— pode deduzir o custo da escrivaninha e
da cadeira de meu salário, já que os comprei para meu uso privado.
—Acredito recordar que te dei carta branca quanto à reforma da
casa, Jane. Deixa de dizer tolices e sente-se. Enfim, é que sou muito
educado para me sentar antes que você o faça.
Sentia-se incômoda, era evidente. Sentou-se na borda de uma
poltrona, um pouco afastada.
—Jane —disse impaciente— Sente-se diante do bastidor. Deixe que
te veja bordar. Devo supor que é outra habilidade que aprendeu no
orfanato?
—Sim —respondeu ela ao mesmo tempo em que ocupava seu lugar e
pegava a agulha.
Observou-a em silêncio durante um momento. Era a personificação
da beleza e da elegância. Uma dama dos pés à cabeça. Que caiu em
desgraça, sem dúvida alguma, obrigada a ir a Londres em busca de
trabalho, obrigada a trabalhar como aprendiz de costureira, obrigada a
converter-se em sua enfermeira, obrigada a converter-se na amante de
alguém. Não, nesse caso não estava obrigada. Não ia aceitar essa culpa.
Tinha-lhe dado uma alternativa magnífica. Raymore a teria convertido
em uma estrela.

216
—Isto sempre foi meu ideal de felicidade doméstica —disse após um
momento, surpreendendo a si mesmo por essas palavras, que tinha
pronunciado sem pensar.
Jane elevou a vista brevemente do bordado.
—Uma mulher bordando junto ao fogo —continuou— Um homem ao
outro lado da lareira. Paz e tranquilidade a seu redor e o mundo em
ordem.
Jane baixou a cabeça uma vez mais para concentrar-se em seu
trabalho.
—Não o obteve em sua casa quando foi pequeno? —quis saber ela.
Soltou uma gargalhada desanimada ao escutá-la.
—Estou convencido de que minha mãe não diferenciava a ponta do
buraco da agulha —respondeu— e meus pais não estavam inteirados de
que era possível sentar-se de vez em quando com a família frente à
lareira.
Ele tão pouco o fazia. De onde saíam essas ideias?
—Pobre menino —se compadeceu ela em voz baixa.
De repente, Jocelyn ficou em pé e se aproximou da estante.
—Leu Mansfield Park? —perguntou a Jane ao cabo de um minuto.
—Não. —Ela voltou a levantar a vista— Mas li Razão e sensibilidade
da mesma autora e eu gostei muitíssimo.
Tirou o exemplar da prateleira e retornou a sua poltrona.
—Vou lê-lo em voz alta enquanto borda —se ofereceu.
Não recordava ter lido em voz alta, exceto durante suas aulas quando
menino. Não recordava que ninguém tivesse lido em voz alta para ele até
que Jane o fez enquanto estava incapacitado. A experiência lhe resultou

217
inesperadamente tranquilizadora, embora nunca lhe tivesse prestado
especial atenção. Abriu o livro e começou a ler.
—Fará coisa de trinta anos, a senhorita Maria Ward, de Huntingdon,
com apenas sete mil libras, teve a boa sorte de cativar Sir Thomas
Bertram, de Mansfield Park…
Leu dois capítulos mais antes de parar e deixar o livro em seu colo.
Depois, seguiram sentados em silêncio durante um momento. Um
silêncio que parecia muito cômodo. Percebeu que estava deitado na
poltrona. Poderia adormecer com toda a facilidade do mundo. Sentia-
se… Como se sentia? Contente? Certamente. Feliz? A felicidade era algo
com o que tinha muito pouca experiência, se acaso tinha alguma, de
modo que não saberia apreciá-la.
Sentia-se isolado do mundo. Afastado da pessoa que estava
acostumado a ser. Com Jane. Que certamente estava separada de seu
mundo e da pessoa que tinha sido, fosse o que fosse. Poderia se
perpetuar essa sensação? Perguntou-se. Indefinidamente? Para sempre?
Ou poderia converter-se ao menos em um refúgio ocasional esse
lugar que era tanto de Jane e onde ele se sentia cômodo, em paz e
contente… Justamente o contrário a seu habitual estilo de vida?
Deveria acabar com esses sonhos tolos, irreais e atípicos sem mais
demora, pensou. Deveria partir… Ou levá-la para a cama.
—O que está fazendo? —perguntou em troca.
Jane sorriu sem elevar a vista.
—Uma toalha —respondeu— Para a mesa da sala de jantar. Tinha
que me ocupar com algo. Bordar sempre foi uma paixão para mim.
Observou-a um bom momento com as pálpebras entreabertas e
expressão sonolenta. O bastidor estava inclinado para o lado contrário,
de modo que não podia ver o desenho. Mas os fios de seda eram em tons
outonais, e todos combinavam com muito bom gosto.
—Se importa se me aproximar para olhar? —perguntou-lhe.
218
—É obvio que não. —Parecia surpreendida— Mas não tem a
obrigação de ser educado, que saiba. Certamente que não o interessa
meu bordado.
Não se incomodou em responder. Levantou-se de sua fofa e cômoda
poltrona, e deixou o livro fechado sobre o que ela tinha aberto.
Jane estava bordando uma paisagem de outono em um canto do
tecido.
—De onde tirou o desenho que está bordando? —perguntou. —
Gostaria de ver a cena completa.
—De minha cabeça —respondeu ela.
—Ah. —Nesse momento entendeu a paixão a que se referiu. Não se
tratava unicamente de que era hábil com a agulha. — Quer dizer que
para você é uma arte. Tem muito bom olho para as cores e os desenhos.
—Por estranho que pareça —repôs ela— nunca fui capaz de capturar
minhas visões em papel ou em tecido. Mas através da agulha as imagens
fluem com facilidade de minha cabeça ao tecido.
—Nunca fui bom em pintar paisagens —confessou— Sempre me
pareceu que a natureza o fazia muitíssimo melhor do que eu poderia
fazê-lo. Os rostos humanos são outra questão. Há muita vida e caráter
para capturar.
Assim que pronunciou essas palavras, desejou ter mordido a língua.
Endireitou-se com certa vergonha.
—Pinta retratos? —Jane o olhou com um brilho de interesse nos
olhos— Sempre o considerei a expressão artística mais difícil de todas.
—Sou um simples aficionado —respondeu com tensão ao mesmo
tempo em que se aproximava da janela e fixava a vista no pequeno
jardim, que, conforme percebeu, estava muito bem cuidado. Sempre
tinham estado aí essas rosas?— No passado. Era um aficionado.

219
—Suponho que não era uma atividade viril —aventurou ela em voz
baixa.
Seu pai tinha usado umas palavras mais mordazes.
—Eu gostaria de pintá-la —se ouviu dizer— Seu rosto tem
muitíssimas coisas além de uma beleza deliciosa. Será um desafio
monumental.
A suas costas só houve silêncio.
—No quarto satisfaremos nossas paixões sexuais —continuou—
Aqui poderíamos satisfazer outras, Jane, se assim desejar. Longe dos
olhares indiscretos e dos sorrisos condescendentes do mundo. Para isso
criou esta sala, não é? Um refúgio privado, em suas próprias palavras,
um lugar onde pode ser você mesma, onde o resto das circunstâncias da
vida, incluído o fato de ser minha amante, podem ficar relegadas e ser…
Simplesmente Jane.
Voltou à cabeça. Jane o olhava sem pestanejar, com a agulha suspensa
sobre o tecido.
—Sim —reconheceu ela.
—E eu sou a última pessoa com quem gostaria de compartilhar a
estadia. —Olhou-a com um sorriso triste— Não vou insistir. No futuro
me entreterá na sala de estar quando não nos encontrarmos no quarto.
—Não. —Jane demorou um instante em explicar-se— Não, já não
penso que esta estadia seja minha, agora acredito que é nossa. Um lugar
onde nosso contrato e nossa suposta posição social na vida não têm
importância. Ou um lugar onde pode pintar e ler, onde eu posso bordar
e escrever; um lugar onde pode haver uma mulher a um lado da lareira
e um homem ao outro. Um lugar de paz e de tranquilidade, onde o
mundo está em ordem. Está convidado a se sentir como em casa nesta
sala cada vez que queira Jocelyn.
Olhou-a por cima do ombro em silêncio um bom momento. O que estava
acontecendo? Só podia ter um motivo, uma paixão que o levasse a essa
220
casa. Não queria que houvesse nenhum outro. Porque podia acabar
dependendo de dito motivo… Dela. No entanto, sentia um doloroso
desejo no coração.
Por quê?
—Quer um pouco de chá? —Jane cravou a agulha no tecido enquanto
ficava em pé— Peço que nos tragam uma bandeja?
—Sim. —Uniu as mãos às costas— Sim, por favor.
Jane puxou o cordão da campainha.
—Aqui há lugar de sobra —comentou ele— Vou fazer que tragam um
piano. Posso? —Mal podia acreditar que lhe estivesse pedindo
permissão.
—É obvio. —Ela o olhou muito séria— É nossa estadia, Jocelyn. Tão
sua como minha.
Por um momento pensou que talvez fosse felicidade a emoção que
estava a ponto de embargá-lo. No entanto, logo reconheceu outra
emoção igualmente desconhecida.
Pânico.

221
Capítulo 16

Apesar de deitar-se cedo, Jane não pôde conciliar o sono. Depois de


uma hora, retrocedeu no empenho. Saiu da cama, acendeu uma vela,
colocou uma bata por cima da camisola de linho e umas pantufas, e
baixou a seu gabinete. Ao gabinete de ambos. Ao refúgio, como ele o
tinha chamado.
O senhor Jacobs seguia acordado. Pediu-lhe que acendesse o fogo. O
moço que tinham contratado como criado levou o carvão e perguntou se
necessitava algo mais.
—Não, obrigado, Phillip —respondeu ela— Isso é tudo. Acredito que
serei capaz de voltar sozinha ao quarto quando cansar.
—Sim, senhora —replicou o criado— Não se esqueça de pôr a tela
protetora diante da lareira quando partir.
—O Farei. —Sorriu— Obrigado por me recordar isso, boa noite.
—Boa noite, senhora.
Decidiu que leria até que os olhos fechassem pelo cansaço. Sentou-se
junto ao fogo, na poltrona que Jocelyn tinha ocupado essa tarde, e pegou
um livro. Não o que ele tinha estado lendo em voz alta. Esse o deixou
onde estava. Talvez quisesse continuar pelo terceiro capítulo a próxima
vez que a visitasse. Abriu o livro que ela tinha estado lendo a noite
anterior pela página marcada e o colocou no colo.
Olhou para o fogo.
Não deveria ter permitido sua entrada a essa estadia. Sabia que já não
voltaria a pensar no gabinete como dela. Porque era dos dois. Ainda
222
sentia sua presença. E o via como o tinha visto essa tarde, deitado sem
perder a elegância na poltrona que ela ocupava nesse instante. Escutava
sua voz enquanto lia Mansfield Park como se estivesse imerso na
história, igual a ela. E o via plantado frente à janela…
Era injusto. Poderia ter enfrentado sua nova vida se a relação tivesse
corrido por seu leito natural, pelo leito esperado: um leito puramente
sexual. Possuía experiência suficiente para compreender que o sexo não
era amor, sobretudo caso se tratasse de sexo entre um duque libertino e
sua amante. Mas não sabia o que era o que havia entre eles.
Jocelyn tinha passado mais de duas horas com ela essa tarde no
gabinete. Com sua amante. Sem tocá-la nenhuma só vez. Não a tinha
levado a cama. Depois do chá, durante o que tinham falado sobre a
guerra e a reforma política (ela era pacifista, ele não; ela estava
completamente a favor das reformas, ele se mostrava mais precavido),
Jocelyn ficou em pé de repente, disse-lhe adeus enquanto fazia uma
reverência e partiu.
E a deixou vazia por dentro. Embora essa definição não fosse muito
exata, porque se fosse assim não teria se sentido tão agitada. Física,
mental e emocionalmente.
Porque durante todo o tempo que tinham estado juntos no gabinete,
Jocelyn não tinha sido o Duque de Tresham. Tinha sido Jocelyn. Mas um
Jocelyn com muito menos reservas que as acostumadas. Um Jocelyn sem
máscara. Uma pessoa necessitada de ser quem era porque nunca o tinha
sido. Um homem que procurava amizade, aceitação e… Ai, sim!
Jane suspirou.
Um homem necessitado de amor.
Mas duvidava muito que ele aceitasse alguma vez o presente maior,
mesmo que no fundo de si mesmo reconhecesse que o necessitava.
Duvidava ainda mais de sua capacidade para devolver dito presente.

223
E quem era ela para oferecer-lhe.Uma fugitiva. Uma assassina. Não,
isso não. Começava a acreditar. Era impossível que o golpe que tinha
dado em Sidney fosse o culpado de sua morte.
Estremeceu pelas lembranças.
E depois apoiou a cabeça no respaldo da poltrona e escutou que o
senhor Jacobs ou Phillip fechavam a porta principal. Após um momento
alguém bateu na porta do gabinete.
—Entre —disse. Devia ser meia noite, ou possivelmente mais tarde.
Os criados deveriam estar na cama.
Jocelyn entrou com uma aparência poderosa e satânica, já que uma
longa capa negra o cobria do pescoço até os pés. Deteve-se no vão da
porta, com uma mão no trinco, e Jane sentiu que o coração dava um
tombo. Soube sem dúvidas que essa tarde tinha sido desastrosa para ela.
—Ainda acordada? —perguntou Jocelyn— Vi luz por debaixo da
porta.
—Tem chave? —perguntou ela a sua vez.
—É obvio —respondeu ele— A casa é minha.
Jane ficou em pé e se aproximou dele. Não esperava vê-lo essa noite.
E depois algo estranho aconteceu. Enquanto ela se aproximava,
Jocelyn soltou o trinco e estendeu os braços, um movimento que deixou
à vista o forro de seda branca da capa e seu elegante traje de noite, em
preto e branco. No entanto, mal se fixou em sua esplendorosa
vestimenta. Seguiu andando e não demorou a encontrar-se envolta pela
capa enquanto levantava a cabeça e ele inclinava a sua.
Foi um beijo longo, apaixonado e feroz. Mas, estranhamente, não
houve nada sexual nele. Jane tinha pouca experiência no tema, mas
soube de forma instintiva que não se tratava de um homem beijando sua
amante antes de levá-la para cama. Era Jocelyn. E estava beijando a ela,
Jane.
224
Quando o beijo chegou ao fim, voltava a ser o Duque de Tresham.
—Esta noite te farei trabalhar, Jane —disse.
—É obvio. —Ela se afastou com um sorriso.
E depois ofegou assustada, quando ele a agarrou com força pelos
braços e a olhou com expressão fria e desanimada.
—Não! —exclamou feroz— Nem pense me sorrir dessa forma, Jane.
Como se fosse uma coquete enfastiada, que oculta seu cinismo com um
frio sorriso a modo de convite. Nada de «é obvio». Se não me desejar, me
mande ao diabo e irei.
Jane escapou de seus dedos com um puxão.
—O que espera quando me diz que vai me fazer trabalhar? —
perguntou-lhe, furiosa— Acaso uma mulher trabalha na cama quando
está com um homem a quem deseja? Quando o chama «trabalho»,
converte-me em uma prostituta.
—Você é a que falou de termos contratuais, obrigações e direitos —
recordou com um olhar tão frio como o aço— No que me converte
isso?Em um homem que paga para ter acesso a seu corpo. Em um
homem que comprou os serviços de uma prostituta. Converte-te em uma
mulher que trabalha quando abre as pernas para mim. Assim não me
venha com esses arranques de indignação e espere que eu me limite a
abaixar a cabeça. Por mim pode ir ao diabo.
—E você pode… —Deixou a frase no ar e se obrigou a tomar fôlego
para acalmar-se. Seu coração pulsava desbocado— Outra vez estamos
discutindo. Foi minha culpa nesta ocasião? Sinto muito se for assim.
—A culpa a tem esse maldito contrato —resmungou ele.
—Do qual eu sou culpada. —Jane esboçou um sorriso fugaz—
Jocelyn, eu realmente me alegro em vê-lo.
A ira e a frieza desapareceram de seu rosto.

225
—De verdade, Jane? —perguntou-lhe.
Ela assentiu com a cabeça.
—E de verdade que te desejo.
—De verdade? —Jocelyn a olhou com expressão pensativa. Seus
olhos pareciam muito negros.
Esse era o Duque de Tresham? Um homem inseguro? Um homem que
duvidava em ser bem recebido?
—Acabo de dizê-lo aqui, na estadia onde concordamos não aplicar as
condições do contrato —respondeu— de modo que deve ser verdade.
Me acompanhe à cama.
—Venho do teatro —explicou ele— Kimble me convidou para jantar
em sua casa com seu grupo, mas disse que preferia caminhar até ali a ir
apertado em uma carruagem. Mas em troca descobri que minhas pernas
me traziam até aqui. Como o interpreta, Jane?
—Suponho que necessitava uma boa discussão com alguém que não
desse o braço a torcer —respondeu ela.
—Mas foi primeira a se desculpar —recordou Jocelyn.
—Porque estava equivocada —reconheceu— Enfim, não tenho por
costume insistir para ganhar uma discussão a todo custo. Não como
fazem outros que conheço…
Jocelyn a olhou com um sorriso feroz.
—O que significa, suponho —replicou— que disse a última palavra,
como sempre. Vem, Jane. Já que vim para isso e você me convidou, vamos
à cama.
O desejo físico voltou a deixá-la sem fôlego enquanto passava ao lado
de Jocelyn e o precedia escada acima. Percebeu que ele não a seguiu
imediatamente. Deteve-se para colocar a tela protetora diante da lareira.

226
O que era, provavelmente, pensou com um sorriso, um dos gestos
mais domésticos que o Duque de Tresham já tinha feito na vida.

Kimble tiraria o sarro sem piedade pela manhã, mas a Jocelyn não
importava. Quando o tinha importado o que pensassem ou dissessem
dele… Embora fossem seus amigos? E as brincadeiras seriam benévolas
em seu caso.
O certo era que se viu obrigado a voltar essa noite. Os estranhos
acontecimentos da tarde o tinham perturbado mais do que estava
disposto a admitir. Viu-se obrigado a voltar sozinho para recuperar a
normalidade na relação com sua amante. Para pô-la para trabalhar.
Tinha sido um engano empregar essas palavras com ela, é obvio. Mas
não estava acostumado a ir com cuidado para não ferir a sensibilidade
de outros.
Despiu-se, apagou as velas e subiu na cama com ela. Tinha ordenado
que deixasse sua recatada e bonita camisola. Por estranho que
parecesse, resultou muito erótico agarrá-la pela borda e subir pelas
pernas e os quadris, até chegar à cintura. Essa noite não queria
preliminares. Queria fazer o que tinha ido fazer antes de perder outra
vez o controle da situação. Deslizou uma mão entre suas coxas e a
explorou. Estava preparada. Colocou-se sobre ela, separou suas pernas
com um joelho, colocou as mãos sob as nádegas e a penetrou.
Seu corpo o acolheu depravado e úmido. Começou a mover-se com
um ritmo vigoroso enquanto procurava vê-la simplesmente como uma
mulher. Enquanto tentava convencer-se que seu desejo era só sexual.
Não obstante, falhou miseravelmente em ambos os casos.
Ele raramente beijava suas companheiras de cama. Era
desnecessário, além de ser um gesto muito pessoal para seu gosto. Mas
beijou Jane.

227
—Jane… —murmurou sobre seus lábios— me diga que queria que
voltasse, que não deixou de pensar em mim em toda a tarde.
—Para que? —pergunto ela— Para que volte a me advertir que não
devo depender até esse ponto de você? Não me incomoda que tenha
vindo. Alegra-me. Parece-me o adequado.
—Maldita seja —resmungou— Maldita seja.
Jane guardou silêncio enquanto ele seguia ao seu. Mas justo quando
estava à beira do clímax, quando estava a ponto de acelerar o ritmo e a
profundidade de suas investidas, ela o abraçou pela cintura e dobrou as
pernas para levantar os quadris a fim de lhe permitir um melhor acesso.
—Jocelyn —sussurrou— não tenha medo. Por favor, não tenha medo.
Posto que se encontrava a beira do êxtase, não foi consciente de suas
palavras. No entanto, uma vez que acabou, enquanto estava exausto a
seu lado, escutou o eco do comentário em sua mente e chegou à
conclusão de que as tinha imaginado.
—Vem aqui —lhe disse, estendendo a mão para que ela se
aproximasse.
Jane se aconchegou a seu lado e ele baixou sua camisola, agasalhou-a
com as mantas, abraçou-a e adormeceu com a bochecha apoiada em sua
cabeça.
Tinha passado muitas noites nessa casa e tinha voltado para Dudley
House ao amanhecer para dormir. Jamais tinha dormido nesta casa.
Nessa ocasião tinha ido com a intenção de passar um bom momento na
cama para que tanto ele como Jane tivesse presente à natureza básica de
sua relação.
Quando despertou, a luz entrava em torrentes no quarto. Jane,
despenteada, ruborizada e deliciosa, seguia adormecida entre seus
braços.

228
Afastou o braço e saiu da cama, despertando-a no processo. Ela sorriu
sonolenta.
—Sinto-o — ele se desculpou com tensão enquanto voltava a colocar
seu traje de noite— Suponho que segundo esse maldito contrato não
tenho direito a me intrometer em seus momentos de intimidade a não
ser reclamar meus direitos. Irei agora mesmo.
—Jocelyn… —disse ela com tom de recriminação, depois do qual teve
a desfaçatez de começar a rir.
Com vontade.
Dele.
—Eu a divirto? —Olhou-a com o cenho franzido.
—Acredito que te dá vergonha teradormecido em vez de passar a
noite me demonstrando sua legendária fama como amante —respondeu
ela— Sempre parece estar obrigado a demonstrar quão viril é.
O fato de que tivesse toda a razão não melhorou nem um pouco seu
humor.
—Me alegro de te ter feito rir ao menos —repôs ao mesmo tempo em
que jogava a capa pelos ombros com um gesto brusco e a abotoava ao
pescoço— Terei a honra de te visitar outro dia, quando te necessitar.
Bom dia.
—Jocelyn —o chamou em voz baixa depois que abriu a porta do
quarto. Ele a olhou arqueando as sobrancelhas com arrogância— foi
uma noite extraordinária. Dormir com você é maravilhoso.
Jocelyn não esperou para comprovar se ela estava burlando dele ou
não. Saiu e fechou a porta sem muita delicadeza.
Que me parta um raio! Exclamou ao ver o relógio do corredor
enquanto descia as escadas. Fez uma careta ao reparar na presença de
Jacobs, que o esperava no vestíbulo. Eram às sete da manhã. Levava sete

229
horas nessa casa. Tinha passado sete horas na cama de Jane e só lhe tinha
feito amor uma vez. Uma vez!
Desejou bom dia ao mordomo com brutalidade e caminhou pela rua,
momento no que notou com certa satisfação que a rigidez que ainda
sentia na perna direita melhorava dia a dia.
«Dormir com você é maravilhoso.»
Jocelyn riu entre dentes de si mesmo. Jane tinha razão, maldita fosse.
Tinha sido uma noite estupenda e se sentia muito mais descansado que
de costume.
Decidiu ir para casa para banhar-se e trocar de roupa, e depois ir às
compras. Um pequeno piano, e material de desenho e pintura. Talvez o
melhor que podia fazer, imerso como estava nessa estranha situação, era
seguir adiante, deixar-se levar, deixar que continuasse de forma natural
até chegar a inevitável conclusão. Cedo ou tarde se cansaria de Jane
Ingleby. Assim como tinha se cansado de todas as mulheres que tinha
conhecido ou com as que se deitou. Também se cansaria dela; talvez
dentro de um mês, de dois ou possivelmente dentro de um ano.
Enquanto isso, por que não desfrutar da novidade de estar…? Ah, sim,
as terríveis palavras que rondavam seus pensamentos a algum tempo e
que ameaçavam tomar forma.
Por que não?
Por que não desfrutar da emoção de estar apaixonado?
Por que não regozijar-se por uma vez na vida dessa loucura tão
extrema?

Essa mesma manhã, enquanto trabalhava no jardim, encantada com


o exercício, e enquanto desfrutava do brilho e do calor do sol nas costas,
Jane tomou uma decisão.

230
Estava apaixonada por Jocelyn, é obvio. Não, era pior que isso. Porque
acreditava que começava a amá-lo. Era inútil tentar negar seus
sentimentos e também o era lutar contra eles.
Amava-o.
Em vão, claro. Não era tão tola para imaginar que ele corresponderia
seu amor, embora tivesse muito claro que estava obcecado com ela.
Além disso, embora a quisesse, para eles não haveria um final feliz. Ela
era sua amante. E ele era quem era.
Não obstante, tão pouco imaginava toda uma vida como fugitiva. Não
deveria ter cedido ao covarde impulso que a insistiu a fugir e a esconder-
se. Porque tinha sido uma reação contrária a seu caráter. Teria que sair
à luz e fazer o que devia ter feito logo que descobriu que Lady Webb não
se encontrava em Londres para ajudá-la.
Encontraria o Conde de Durbury se este seguia em Londres. Se não
era assim, procuraria o lugar onde se convocava a sede dos
Investigadores da Bow Street e se apresentaria nela. Escreveria a
Charles. Contaria sua história a todo aquele que quisesse escutá-la.
Aceitaria seu destino. Talvez acabasse presa, submetida a julgamento e
considerada culpada de assassinato. Talvez isso a levaria a morte na
forca ou, ao menos, a deportação ou a prisão perpétua. Mas não sem
lutar. Porque combateria como uma leoa até o último momento. Não
seguiria fugindo nem se escondendo.
Daria por fim a cara e lutaria!
Mas ainda não. Esse foi o acordo ao que chegou consigo mesma
enquanto arrancava as ervas daninhas que cresciam entre as roseiras e
removia a terra até que esteve de uma cor marrom escura. Devia
estabelecer um limite de tempo para não seguir pospondo o assunto
semana após semana, mês após mês. Se daria um mês, um mês marcado
pelo calendário, que começaria esse mesmo dia. Um mês para ser a
amante de Jocelyn, seu amor, embora ele não fosse consciente do último,

231
estava claro. Um mês para passá-lo a seu lado como uma pessoa, como
uma amiga no gabinete, se acaso retornasse, como uma amante na cama.
Um mês.
E depois se entregaria. Sem contar a ele. Era possível que se visse
envolto no escândalo, quando se tornasse conhecido que a tinha
abrigado em Dudley House durante três semanas ou se alguém estava a
par de que a mantinha como sua amante. No entanto, não pensava
preocupar-se por isso. Ao que parecia, a vida de Jocelyn consistia em
uma sucessão de escândalos. Parecia nutrir-se deles. Talvez o seu em
concreto lhe parecesse gracioso.
Um mês.
Inclinou-se sobre os calcanhares para inspecionar seu trabalho, mas
viu que Phillip se aproximava da casa.
—Envia-me o Sr. Jacobs para informá-la de que acaba de chegar um
novo piano e uns quantos pacotes, senhora — disse— Quer saber onde
quer que coloquemos tudo.
Jane ficou em pé com o coração transbordante de alegria e seguiu o
criado de volta a casa.
Um mês glorioso durante o qual nem sequer tentaria ocultar seus
sentimentos. Um mês de amor.

Jocelyn ignorou por completo sua família, os Oliver, os Forbes e os


comentários com os que a alta sociedade estava acostumada
entreterem-se durante a semana que se seguiu. Uma semana em que
cavalgou pelas manhãs no Hyde Park para depois passar algumas horas
no White’s, tomando o café da manhã, lendo o jornal e conversando com
seus amigos, mas durante a que foi a contados eventos sociais.
Kimble e Brougham encontravam a situação hilariante, é obvio, e o
fizeram o alvo de suas brincadeiras mais grosseiras. Até que uma manhã,
232
enquanto caminhavam por uma rua felizmente deserta depois de tomar
o café da manhã no White’s, Kimble abriu a boca.
—Tresh —disse, fingindo um tom de voz entediado— quão único
posso te dizer é que quando a deliciosa senhorita Ingleby por fim te
deixar esgotado, a passe para mim, se for tão amável, para ver se eu
posso esgotá-la. Suponho que conheço mais de um truque que ela não
terá aprendido com você e se…
Seu monólogo foi interrompido com brutalidade pelo murro que
Jocelyn acertou na parte esquerda do queixo, depois do qual Kimble caiu
ao chão, mudo pela surpresa. Jocelyn olhou, com não menos surpresa, o
punho que ainda mantinha fechado.
— Diabos! —protestou Conan Brougham.
—Requer reparação com um duelo? —perguntou Jocelyn com
brutalidade a seu amigo enquanto este tocava com cuidado o queixo.
—Diabos! —repetiu Brougham— Não posso ser o padrinho dos dois.
—Amigo, deveria ter me dito isso —comentou Kimble com ironia
enquanto sacudia a cabeça para limpar-se. Depois, ficou em pé e sacudiu
a roupa— Assim não teria metido o pé. Por Deus, está apaixonado pela
moça! Dadas às circunstâncias, o murro é compreensível. Mas deveria
ter sido um pouco mais justo e me advertir, Tresh. Sofrer a carícia de um
de seus punhos não é uma experiência muito agradável. Não, é obvio que
não vou atravessar sua cara com uma luva, assim tira já essa expressão
tão séria. Minha intenção não era a de faltar o respeito à dama.
—E eu não queria pôr em perigo nossa amizade —replicou Jocelyn,
que estendeu a mão direita. Seu amigo a aceitou com receio— Kimble,
não me importa que Conan e você se burlem de mim. Eu faria o mesmo.
Mas não quero que ninguém mais se some às brincadeiras. Não
permitirei que faltem o respeito à Jane.
— Oh! —Brougham parecia muito indignado— Tresham, não
pensará que demos com a língua, não? Grande ideia! Embora jamais
233
tenha pensado que viveria para vê-lo apaixonado. —pôs-se a rir de
repente.
—Ao diabo com o amor! —exclamou Jocelyn de mau humor.
No entanto, exceto por esse incidente, essa semana esteve totalmente
concentrado na casa onde Jane vivia e onde passava a maior parte de seu
tempo, de duas formas distintas, mas, estranhamente, complementares.
As tardes e algumas noites as passavam no gabinete, com ela, mas sem
tocá-la. As noites passava no quarto, com ela, fazendo amor e dormindo
a seu lado.
Foi uma semana mágica.
Uma semana para recordar.
Uma semana de um desfrute tão intenso que não podia durar. E não
o fez, é obvio.
Mas antes que acabasse ao menos tiveram essa semana.

Capítulo 17

234
Em algumas ocasiões passearam pelo jardim, e Jane lhe mostrou o
que já tinha feito e também explicou o que queria fazer a seguir. Mas
passaram a maior parte do tempo dentro. Foi uma semana úmida e
chuvosa, de todas as formas.
Jane se abandonou ao prazer sem mais. Passava as horas bordando
junto à lareira acesa, necessária pelo frio e a umidade, enquanto o
bosque outonal se estendia gloriosamente por uma das pontas da toalha
até a outra. De vez em quando lia para ela em voz alta; já quase tinham
chegado à metade de Mansfield Park. A maioria das noites Jocelyn tocava
piano. Quase todas eram composições próprias. Às vezes tocava de
forma entrecortada, hesitante ao princípio, como se não soubesse de
onde procedia a música, nem aonde ia. Mas Jane aprendeu a reconhecer
o ponto no que passava de uma atividade mental e manual a converter-
se em uma atividade que brotava do coração e da alma. Porque nesse
ponto era onde a música fluía.
Às vezes se colocava atrás dele ou se sentava a seu lado e cantava…
Quase sempre baladas populares e canções que os dois conheciam.
Inclusive, por surpreendente que parecesse, uns quantos hinos
eclesiásticos nos que ele a acompanhou com sua voz de barítono.
—Obrigavam-nos a ir à igreja todos os domingos —disse ele— para
hospedar nossos superiores traseiros no macio banco da família
(embora nunca devêssemos nos mover ou nos veríamos forçados a
suportar as consequências) enquanto os simples mortais se sentavam
em banco duros de madeira e nos olhavam assombrados. E você, Jane?
Aos órfãos os obrigavam a ir a uma pulcra fila, de dois em dois, à igreja
para se sentarem em bancos sem encosto e dar graças a Deus pelas
benções que derramou sobre eles? —Seus dedos tocavam um alegre
arpejo.
—Sempre gostei de ir à igreja —respondeu ela em voz baixa— E
sempre há benções pelas que agradecer.

235
Jocelyn riu suavemente.
A maioria das vezes ele pintava pelas tardes. Ao final decidiu que não
queria pintar só o rosto. Queria pintá-la, tal como era. Jane o olhou sem
dizer nada quando lhe escutou dizer isso, e ele se limitou a arquear as
sobrancelhas.
—Pensa que vou obrigá-la a posar de forma lasciva no chão, Jane,
embelezada somente com seu cabelo? —perguntou— Se o fizesse, seria
para dar outro uso muito melhor que esse, e que não teria nada a ver
com a pintura, acredite. Esta noite lhe demonstrarei isso. Sim,
definitivamente. Esta noite haverá velas, nudez e cabelos soltos, e te
ensinarei a posar para mim como a sereia que poderia ser caso se
propusesse a isso. A Pintarei enquanto borda. É o momento no que é
mais fiel a si mesma. —Olhou-a com os olhos entrecerrados—
Silenciosa, trabalhadora, elegante e ocupada criando uma obra de arte.
De modo que a pintou enquanto bordava, os dois em silêncio. Jocelyn
tirou a jaqueta e o colete, e depois colocou um blusão largo sobre a
camisa. Conforme os dias passavam, dito blusão ia acumulando manchas
de pintura.
Não a permitiu ver o quadro até que estivesse acabado.
—Eu te deixei ver meu bordado —recordou ela.
—Eu te pedi permissão e você me deu —replicou ele— Você me
pediu e eu a neguei.
E contra essa lógica não havia argumento.
Jane trabalhava em seu bordado, mas também o observava.
Discretamente, é obvio. Se o olhava de frente ou deixava de bordar
durante muito tempo, Jocelyn franzia o cenho, distraía-se e resmungava.
Às vezes lhe custava conciliar a ideia de que esse homem com quem
compartilhava seu espaço mais íntimo com tanta naturalidade era o
mesmo que em uma ocasião vaticinou que acabaria pensando que

236
morrer de fome teria sido melhor que trabalhar para ele. O infame e
desumano Duque de Tresham.
Tinha a alma de um artista. A música tinha estado apanhada em seu
interior a maior parte de sua vida. Ainda não tinha visto nenhum quadro
produzido por seu pincel, mas Jane reconhecia a absorção total em seu
trabalho, o gesto de um verdadeiro artista. Quase toda a crueldade e o
cinismo desapareciam de seu rosto. Parecia mais jovem e sua atitude o
deixava mais convencionalmente bonito.
E absolutamente merecedor de ser amado.
No entanto, não foi até a quarta noite quando começou a falar de
verdade, quando começou a deixar ver com palavras à pessoa que se
escondia por trás da arrogante, segura, inquieta e perversa fachada que
ele tinha mostrado ao mundo durante toda sua vida de adulto.

Jocelyn estava desfrutando da novidade de estar apaixonado, embora


não deixasse de repetir-se que era só isso, uma novidade, e que logo
passaria, de modo que voltaria a estar em território conhecido e seguro.
Mas a certeza de que Jane acabasse parecendo como qualquer outra
mulher formosa da que tinha desfrutado antes de cansar-se, a certeza de
que chegaria o momento em que o fato de estar com ela, dentro ou fora
da cama, não lhe provocaria essa imensa alegria tão deslumbrante como
a luz do sol, o entristecia muito, embora também o tranquilizasse.
O desejo sexual que sentia por ela aumentava conforme avançava a
semana. Não se dava por satisfeito com as duas primeiras experiências
sexuais que tinham desfrutado ambas quase castas, de modo que se
dispôs a ensiná-la (e acostumar a si mesmo) uns prazeres diferentes,
mais eróticos e prolongados. Na semana anterior, poderia ter desfrutado
dos jogos de quarto com sua nova amante e prosseguir com sua vida.
Mas não estavam na semana anterior. Era essa semana. E essa semana
havia muito mais que simples jogos de quarto. De fato, suspeitava que

237
no quarto fossem tão compatíveis precisamente porque havia
muitíssimo mais que isso.
Atreveu-se a fazer coisas que tinha desejado de menino: tocar piano,
pintar, sonhar, deixar que sua mente vagasse em lugares que
transcendiam o prático. Sua pintura o frustrava e o deleitava de uma vez.
Era incapaz de capturar a essência de Jane, talvez porque a buscava com
excessiva ânsia e pensava muito nela, compreendeu por fim. Assim
reaprendeu o que em outro tempo foi instintivo para ele: observar não
com os sentidos, nem sequer com a mente, a não ser com essa parte
alheia ao cérebro e desconectada do mundo que também formava parte
da essência que estava procurando. Aprendeu a deixar de dobrar sua
arte a sua vontade. Aprendeu que para criar tinha que permitir de algum
modo que a criação surgisse através dele.
Não teria explicado bem o conceito se alguma vez o tivesse
expressado com palavras. Mas tinha aprendido que as palavras nem
sempre serviam para expressar o que ele desejava dizer. Tinha
aprendido a ultrapassar a fronteira das palavras.
Pouco a pouco a mulher que se converteu na grande obsessão de sua
vida foi tomando forma no tecido.
Mas foram as palavras as que por fim a levaram a uma nova dimensão
com sua amante durante a quarta noite. Tinha estado tocando piano, ela
tinha estado cantando. Depois, Jane ordenou que lhes levassem a
bandeja de chá e desfrutaram em silêncio. Sentados de forma relaxada a
ambos os lados da lareira. Jane observando o fogo; e ele, observando a
ela.
—Havia alguns bosques em Acton Park —comentou ele de repente, a
propósito de nada— Umas colinas que se estendiam até a fronteira leste
da propriedade. Uma zona selvagem, sem cultivar e habitada pelas
criaturas da floresta e por pássaros. Estava acostumado a escapar para
ali, para longas horas de solidão, até que aprendi que era melhor não
fazê-lo. Foi quando me dei conta de que nunca poderia pintar uma
árvore, uma flor nenhuma fibra de erva sequer.
238
Jane esboçou um sorriso preguiçoso. Pela primeira vez, ele notou,
tinha as costas e a cabeça apoiadas por completo no respaldo da
poltrona.
—Por quê? —perguntou ela.
—Estava acostumado a passar as mãos pelos troncos das árvores —
respondeu— e inclusive pegava-os e os abraçava. Estava acostumado a
sustentar as flores silvestres entre as palmas das mãos e acariciar as
fibras de erva com os dedos. Havia muitíssimo ali, Jane. Muitas
dimensões. Estou dizendo bobagens, não é?
Quando a viu negar com a cabeça, soube que ela o entendia.
—Nem sequer podia assimilar tudo o que havia ali —continuou—
Estava acostumado a me sentir… Como descrever essa sensação? Sem
fôlego? Não, totalmente inadequado. Mas tinha essa sensação, como se
estivesse em presença de um mistério insondável. E o mais estranho era
que não queria penetrá-lo jamais. O que parece isso um exemplo de falta
de curiosidade humana?
Jane não ia permitir que ele risse de si mesmo.
—Foi um contemplativo —repôs ela.
—Um quê?
—Algumas pessoas… Quase todas, de fato —se corrigiu—
contentam-se com uma relação com Deus que lhes permite descrevê-lo
com palavras, e utilizam as palavras para dirigir-se a Ele. É inevitável
que todos o façamos em certa medida, é obvio. Nós humanos nos
comunicamos com palavras. Mas algumas pessoas descobrem que Deus
é muito mais vasto que todas as palavras de todas as línguas e que todas
as religiões do mundo juntas. Descobrem vislumbres muito próximos de
Deus nos silêncios… Em um nada mais absoluto. Só se comunicam com
Deus dando todos os esforços para fazê-lo.
—Maldita seja, Jane! —exclamou— Nem sequer acredito em Deus.

239
— A maioria dos contemplativos não—repôs ela— Ou ao menos não
acreditam em um Deus que possa ser nomeado, descrito com palavras
ou imaginado.
Jocelyn pôs-se a rir ao escutá-la.
—Estava acostumado a pensar que era uma blasfêmia acreditar que
tinha mais possibilidades de encontrar Deus nas colinas que na igreja —
disse— Mas eu gostava dessa blasfêmia.
—Conte-me sobre Acton Park — pediu ela em voz baixa.
E o fez. Falou longamente sobre da propriedade e a mansão; de seu
irmão e de sua irmã; dos criados que tinha tido contato diário quando
menino, incluída sua babá; de seus jogos; de suas travessuras; de seus
sonhos; e de seus medos. Ressuscitou uma vida que fazia muito tempo
tinha relegado a um recôndito compartimento de sua memória, onde
esperava que se esfumasse por completo.
Por fim se fez o silêncio.
—Jocelyn —disse ela após alguns minutos— deixe que tudo volte a
formar parte de você. Está dentro de você o queira ou não. E ama Acton
Park muito mais do que pensa.
—Esqueletos, Jane — disse— Esqueletos. Não deveria ter permitido
que saíssem. Não deveria ser uma acompanhante tão reconfortante.
—Nenhum de seus esqueletos me parece muito ameaçador —
comentou ela.
—Ah, mas você não sabe o que se esconde atrás deles, Jane. —ficou
em pé e lhe estendeu uma mão— É hora de pôr você para trabalhar no
quarto. —Mas sorriu quando viu que Jane soltava faíscas pelos olhos—
E é hora de que você me ponha para trabalhar também. Será que você,
Jane,me dará um trabalho físico muito duro? Te ensinarei a me montar,
e assim poderá me usar para obter prazer todo o tempo que queira. Vem
e me monte até me deixar exausto, Jane. Obrigue-me a te pedir
clemência. Converta-me em seu escravo.
240
—Que absurdo! —Ela se levantou e aceitou sua mão— Não tenho o
menor desejo de te escravizar.
—Mas já o fez, Jane —replicou com docilidade, rindo dela com o
olhar— E nem pense me dizer que minhas palavras não te excitaram.
Tem um rubor muito eloquente nas bochechas e fala com essa voz
entrecortada que começo a reconhecer.
—Nunca fingi que o dever não seja prazeroso — disse ela, muito
afetada.
—Pois venha e deixe que te ensine quão prazeroso resulta levar as
rédeas do momento em vez de deixar-se fazer, Jane. Deixa que te ensine
a ser minha dona.
—Não tenho o menor desejo de… —Mas Jane soltou uma gargalhada
de repente, uma risada alegre que o encantava — Não é meu dono,
Jocelyn. Por que eu ia querer ser sua dona? Mas tudo bem. Mostre-me
como te montar. É como montar a cavalo? Gosto muito de cavalgar. E é
obvio a essas maravilhosas criaturas tem que lhes ensinar quem está no
comando…
Riu com ela enquanto a conduzia fora da estadia.

Jocelyn terminou o retrato no último dia dessa primeira semana, no


final da tarde. Comprometeu-se a ir a um jantar essa noite, um fato que
decepcionou muito Jane, mas esperava poder retornar mais tarde. Já
tinha passado uma semana de seu precioso mês. Só ficavam três. E
entesourava cada dia, cada hora.
Gostava de vê-lo pintar muito mais que vê-lo tocar piano. Com o
piano se inundava em um mundo próprio, onde a música fluía livre de
obstáculos. Com o pincel, em troca, tinha que trabalhar mais. Franzia o
cenho e resmungava obscenidades, absorto em seu trabalho.
Mas por fim o terminou. Jocelyn limpou o pincel e disse:

241
—Enfim, suponho que o olhou sorrateiramente cada vez que eu saia
da casa.
—Claro que não! —exclamou, indignada— Grande tolice, Jocelyn! E
diz isso por que certamente que você sim o faria.
—Não se tivesse dado minha palavra de honra —assegurou ele—
Além disso, não teria que dar uma olhada. O olharia sem disfarces. Vem
vê-lo. Me diga se você gosta.
—Está terminado? —Não tinha dado o menor indício de que o estava
acabando. Enfiou a agulha no tecido e ficou em pé de um salto.
—Vem descobrir a verdade de minha afirmação que sou um
aficionado —disse ele, que deu de ombros como se não o importasse seu
veredicto enquanto se dispunha a limpar a paleta de cores.
Nesse momento a Jane deu medo olhar, deu-lhe medo que de verdade
encontrasse um retrato inferior e tivesse que ser diplomática. Claro que
Jocelyn a despedaçaria, não lhe cabia a menor dúvida, se não dizia a
verdade por mais brutal que esta fosse.
Sua primeira impressão foi que tinha melhorado sua imagem. Estava
sentada diante do bordado, com o corpo arqueado de forma elegante.
Seu rosto estava de perfil. Parecia muito ocupada e absorta em seu
trabalho. Mas ela nunca se via dessa maneira, é obvio. Supôs que em
realidade era uma semelhança muito boa. Ruborizou-se de prazer.
Sua segunda impressão foi que a semelhança, ou não, do retrato não
era a essência da questão. Não estava olhando um quadro criado para
que a modelo exclamasse por quão bem a tinha retratado. Estava
olhando algo… Algo mais.
As cores eram mais vivas do que tinha esperado, embora ao observá-
las com olho crítico se deu conta de que eram as corretas. No entanto,
havia algo mais. Franziu o cenho. Não sabia o que era. Jamais tinha sido
uma perita em arte.

242
—Bem? —Em sua voz havia impaciência e uma enorme arrogância. E
talvez um deixe de ansiedade também?— Não te retratei o bastante
bonita, Jane? Não se sente adulada?
—De onde…? —Voltou a franzir o cenho. Não estava segura do que
queria perguntar— De onde provém a luz?
Isso era. O quadro era um retrato excelente. Era colorido e elegante.
Mas era mais que um simples quadro. Tinha vida. E havia luz nele,
embora não estava segura do que queria dizer com isso. É obvio que
havia luz. Era uma vibrante cena diurna.
—Ah —disse ele em voz baixa— isso quer dizer que o fiz, Jane?
Capturei-a? Capturei sua essência? A luz provém de você. É o efeito que
você tem no que te rodeia.
Mas como o tinha feito?
—Está decepcionada —comentou Jocelyn.
Voltou-se para ele e negou com a cabeça.
—Suponho que nunca teve um professor de pintura —disse— Isso
não estaria permitido ao futuro Duque de Tresham. Jocelyn é um homem
em todos os sentidos que você acha importante. Deve se atrever a ser
mais homem ainda, como foi durante esta semana nesta sala. Tem um
assombroso talento como músico, e um impressionante talento como
pintor. Deve continuar usando estes dons inclusive depois que eu vá. Por
seu bem assim como pelo bem do resto do mundo.
Era típico dele, é obvio escolher responder a um detalhe sem
importância.
—Isso quer dizer que vai abandonar-me, Jane? —perguntou— Talvez
em busca de pastos mais verdes? Em busca de alguém que te ensine
truques novos?
Reconheceu o motivo do insulto. Seu sincero louvor o tinha
envergonhado.
243
—Por que iria te abandonar quando as cláusulas do contrato me são
tão favoráveis desde que seja você quem me deixe? —perguntou com
secura.
—Como acabarei fazendo de forma inevitável, é obvio —
particularizou ele, olhando-a com os olhos entrecerrados— Geralmente
uma ou duas semanas de paixão absoluta, Jane, seguidas por mais
algumas que o interesse vai diminuindo e ao final a relação acaba por
completo. Quanto tempo levo totalmente obcecado por você até agora?
—Eu gostaria de ter tempo para praticar outras habilidades além do
bordado —comentou ao mesmo tempo em que retornava a sua poltrona
e recolhia os fios de seda para guardá-los na bolsa da costura— O jardim
necessita mais cuidados. Tenho muitos livros para ler. E eu gostaria de
escrever mais do que escrevo. Suponho que quando seu interesse se
apagarem, descobrirei que meus dias estão repletos de atividades
agradáveis.
Jocelyn riu suavemente.
—Pensei que não devíamos discutir aqui, Jane —disse.
—E eu pensei que o Duque de Tresham não podia entrar aqui —
replicou com descaramento— Acreditei que tínhamos acordado que
esse homem arrogante e desagradável não poderia ultrapassar a soleira.
Grande desfaçatez me dizer quando devo esperar que perca interesse
em mim e quanto tempo vou desfrutar de seus enfastiados favores a
partir desse momento. Se vier até aqui acreditando que me faz um favor,
Jocelyn, vai mais depressa do que chegou, não tenha a menor dúvida.
Porque recorda que tenho que te dar meu consentimento antes que me
ponha um dedo em cima.
—Você gosta do retrato? —perguntou ele com acanhamento.
Jane soltou a bolsa de costura e o olhou, exasperada.
—Por que se vê obrigado a me fazer dano cada vez que se sente
vulnerável? —quis saber ela— Eu adoro. Eu adoro porque o pintou e
244
porque sempre me recordará esta semana. Mas suspeito que se
soubesse mais de pintura, eu adoraria porque é uma obra de arte.
Acredito que é, Jocelyn. Mas vai ter que consultar um perito. O quadro é
meu? Posso ficar com ele para sempre?
—Se o quiser, Jane —respondeu ele— O quer?
—É obvio que o quero. E agora será melhor que vá se não quiser
chegar tarde a seu jantar.
—Jantar? —Franziu o cenho antes que parecesse recordar a
entrevista— Ah, o jantar! Ao diabo com o jantar! Ficarei contigo e
jantaremos juntos Jane.
Uma noite mais de seu mês que entesourar.

Desfrutaram de um chá depois do jantar e ele retomou a leitura de


Mansfield Park enquanto ela relaxava em sua poltrona. No entanto,
depois se sentaram perdidos em um cômodo silêncio até que ele voltou
a falar de sua infância, como tinha feito às duas últimas noites. Uma vez
que começou, parecia incapaz de deter-se.
—Acredito que deveria retornar Jocelyn —disse ela durante uma
pausa— Acredito que precisa retornar.
—A Acton Park? —perguntou— Jamais! Somente para meu funeral.
—Mas fala dessa propriedade com carinho —insistiu— Quantos anos
tinha quando partiu?
—Dezesseis —respondeu— Jurei que nunca voltaria. E não o fiz,
exceto para dois enterros.
—Devia estar na escola ainda —comentou ela.
—Sim.
Jane não fez a pergunta. Era típico dela. Não se intrometer. No
entanto, bem poderia tê-la feito a gritos. Seguiu sentada em silêncio e à
245
espera. Jane, a quem ele tinha mostrado muitíssimo de sua pessoa na
última semana.
—Você não gostará de sabê-lo, Jane —assegurou.
— Acho que talvez você precise contá-lo —repôs ela.
Isso foi quão único disse. Jocelyn fixou o olhar no fogo e recordou a
iniciação. O momento no que se converteu em seu pai. E em seu avô. Em
um verdadeiro Dudley. Em um homem.
—Tinha dezesseis anos e estava apaixonado —começou— Pela filha
de um vizinho que naquele tempo tinha quatorze anos. Juramos amor
eterno e fidelidade. Inclusive consegui ficar com ela a sós em uma
ocasião e beijá-la… Nos lábios. Durante três segundos. Era muito sério
Jane.
—Nem sempre é prudente nos burlar de quando fomos jovens —
replicou ela, em resposta à ironia de sua voz, já que lhe tinha falado como
se ela tivesse oitenta anos— O amor é tão sério e tão doloroso para os
jovens como para os adultos. Mais ainda. Porque há muita mais
inocência.
—Meu pai tomou conhecimento e temeu que o pior —continuou—
Embora se tivesse esperado alguns meses, certamente que eu teria me
apaixonado por outra moça. Os Dudley não levam no sangue ser
constantes no amor, Jane… Nem sequer na luxúria, já que estamos.
—Separou-lhes? —quis saber ela.
—Há um pavilhão. —Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos— Já
mencionei isso antes, Jane. E sua inquilina, uma parente sem recursos
dez anos mais velha que eu.
—Sim —disse ela.
—Havia um lago não muito longe do pavilhão —prosseguiu— Era
idílico Jane. Ao pé das colinas, verde pelo reflexo dos ramos das árvores,
isolado, onde se podia escutar o gorjeio dos pássaros. Estava
246
acostumado a ir os verões para me banhar, já que o preferia ao lago que
havia perto da casa. Ela chegou um dia, antes de mim, estava se
banhando, vestida unicamente com uma fina regata.
Jane guardou silêncio enquanto ele fazia uma pausa.
—É obvio, estava convenientemente envergonhada ao sair do lago,
embora parecesse que não levasse nada. E depois se pôs a rir, começou
a brincar e se mostrou encantadora. Imagina Jane? A perita e bem dotada
cortesã e o jovenzinho ignorante e virgem? A primeira vez nem sequer
chegamos ao pavilhão. Nos deitamos no gramado junto ao lago. Descobri
aonde ia cada coisa e o que acontecia quando tudo encaixava em seu
lugar. Acredito que tudo terminou em questão de meio minuto.
Acreditava-me um tipo genial.
Jane tinha os olhos fechados, percebeu Jocelyn quando abriu os seus.
—Foi minha primeira obsessão. —ele riu— Ao dia seguinte fui ao
pavilhão, e ao seguinte também. Trabalhei duramente essa última vez,
depois de ter descoberto que podia prolongar o prazer muito mais que
meio minuto. Estava orgulhoso e exausto quando por fim terminei de
demonstrar minha destreza. E nesse momento ela começou a falar, Jane,
com uma voz muito normal e risonha. «É um tutelado muito aplicado e
demonstra um grande potencial», disse. «Logo estará me ensinando
truques.» E depois, antes que pudesse levantar a cabeça e averiguar de
que estava falando, escutei outra voz, Jane. A de meu pai. Que procedia
da porta do quarto, situada a minhas costas. «Tem-no feito muito bem,
Phoebe», disse ele. «sacudiu-se fervorosamente entre suas coxas.» Meu pai
pôs-se a rir quando saltei da cama, ao lado contrário de onde tinha
deixado à roupa, como se me tivessem escaldado. Vi-o com o ombro
apoiado na ombreira da porta, como se levasse ali um bom tempo. É
obvio, tinha estado observando e avaliando minha atuação,
possivelmente trocando piscadas e olhares lascivos com sua amante.
«Não tem que te envergonhar», disse-me. «Todo homem deveria
desvirginar-se com uma perita. Meu pai o arrumou para mim e eu o
arrumei para você. Não existe ninguém mais experiente que Phoebe,
247
embora hoje fosse sua última vez com ela, moço. A partir de agora está
fora de seu alcance. Não posso permitir que meu filho corra farras com
minha amante, não é?»
—Oh! —exclamou Jane em voz baixa, fazendo que Jocelyn retornasse
ao presente imediatamente.
—Recolhi minha roupa e saí correndo do pavilhão —disse— sem me
deter para me vestir antes. Precisava vomitar. Em parte porque meu pai
tinha observado algo tremendamente íntimo. E em parte porque tinha
sido sua amante com quem eu estava me deitando e ele tinha planejado
tudo. Até esse momento nem sequer sabia que tinha amantes. Tinha
suposto que meus pais eram fiéis. Quando jovem era muito inocente,
Jane.
—Pobre menino —disse ela em voz baixa.
—Nem sequer me permitiram vomitar em paz. —Soltou uma
gargalhada seca— Meu pai tinha ido acompanhado por outra pessoa:
seu vizinho, o pai da moça da que me acreditava apaixonado. E dali saiu
meu pai, me pisando os calcanhares, para contar a brincadeira com
todos os detalhes escabrosos. Queria levar a ambos ao botequim do
povoado para brindar por minha recém-adquirida dignidade com uma
caneca de cerveja. Disse-lhe que podia ir ao inferno, e me espraiei mais
tarde quando voltamos para casa. Parti de Acton Park no dia seguinte.
—E por isso que se sente culpado desde então? —quis saber Jane.
De repente, Jocelyn descobriu que ela levantou de sua poltrona e que
tinha atravessado o tapete para colocar-se diante dele. Antes que se
desse conta do que estava a ponto de fazer, Jane se sentou em seu colo e
se aconchegou até apoiar a cabeça em seu ombro. Abraçou-a por um
mero reflexo.
—Para mim foi como um incesto —continuou— Era a prostituta de
meu pai, Jane.

248
—Estava à mercê de um homem cruel por uma parte e de uma
experiente cortesã pela outra — recordou ela— Não foi sua culpa.
—Estava apaixonado por uma moça inocente —replicou— E, no
entanto, não pensei nenhuma só vez nela enquanto me deitava com uma
mulher dez anos mais velha que eu, a que acreditava que era de minha
família. Tirei uma lição muito valiosa desse incidente, Jane. Era digno
filho de meu pai. Sou digno filho de meu pai.
—Jocelyn, tinha dezesseis anos —assinalou ela— Não importa quem
fosse, teria que ter sido sobre-humano (ou infra-humano) para resistir
semelhante tentação. Não deve se culpar. Deixe de se culpar. Esse
incidente não demonstrou que é depravado por natureza. Justamente o
contrário.
—Demorei alguns anos mais em demonstrá-lo —assegurou.
—Jocelyn. —Podia sentir os dedos de Jane brincando com um botão
de seu colete— Me diga uma coisa. Algum dia, quando passarem os anos
e tiver um filho, fará isso? O iniciará com uma de suas amantes?
Inspirou fundo muito devagar e imaginou o maravilhoso ser humano
que seria seu filho, produto de sua semente, e visualizou a mulher com a
que saciaria seus apetites em vez de ser fiel a sua esposa. Correndo
juntos, deitando-se enquanto ele olhava.
—Antes prefiro me arrancar o coração —disse— O que não tenho.
—Nesse caso não é como seu pai —repôs ela— nem como seu avô. É
você mesmo. Foi um moço sensível, artístico e romântico a quem
reprimiram e a quem seduziram cruelmente. Isso é tudo, Jocelyn.
Permitiu que sua vida ficasse truncada por esse incidente. Mas ainda tem
muita vida em seu interior. Perdoe-se.
—Esse dia perdi meu pai —continuou— E perdi minha mãe pouco
depois, assim que cheguei a Londres e averiguei a verdade sobre ela.
—Sim —conveio ela com tristeza— Mas também tem que perdoá-los,
Jocelyn. Foram produtos de sua educação e de sua experiência.
249
Com os demônios que guardavam em seu interior. Os pais não são
só pais. Também são pessoas. Fracos como outros mortais.
Jocelyn percebeu que estava brincando com as mechas do cabelo de
Jane.
—O que fez você ser tão sábia?
Jane demorou a responder.
—Sempre é mais fácil olhar a vida de outra pessoa e ver seu padrão
—respondeu— sobre tudo a vida de alguém que te importa.
—Isso quer dizer que te importo Jane? —perguntou ao mesmo tempo
em que beijava sua nuca— Embora agora já conheça os detalhes mais
sórdidos de meu passado?
—Sim, Jocelyn, me importa —respondeu ela.
Essas foram às palavras que acabaram por romper suas defesas. Nem
sequer se deu conta de que estava chorando até que sentiu como as
lágrimas caíam sobre seu cabelo e como seu próprio peito
convulsionava. Ficou espantado. No entanto, Jane se negou a que a
afastasse. Rodeou seu pescoço com o braço livre e se agarrou ainda mais
a ele. E foi assim como soluçou e soluçou vergonhosamente com ela
entre os braços, depois do qual teve que procurar um lenço com o que
soar o nariz.
—Maldita seja, Jane —disse— Maldita seja.
—Me diga uma coisa. Tem alguma boa lembrança de seu pai? —
perguntou ela— Por pequeno que seja.
Impossível! Mas quando se deteve para pensar, recordou que seu pai
lhe tinha ensinado a montar em seu primeiro pônei, e também que tinha
jogado críquete com Ferdinand e com ele.
—Costumava jogar críquete conosco —respondeu— quando éramos
jovens o suficiente para que batêssemos e lançássemos a bola a dez

250
centímetros de nós. Teve que ser tão emocionante para ele como ver
crescer a grama.
—Recorde esses momentos —aconselhou ela— Procure mais
lembranças parecidas. Não era um monstro, Jocelyn. Tão pouco era um
homem agradável. Não acredito que eu teria gostado dele. Mas não era
um monstro apesar de tudo. Só era um homem. E inclusive quando o
traiu, no fundo acreditava estar fazendo algo necessário para sua
educação.
Jocelyn voltou a beijar sua nuca antes que ambos caíssem no silêncio.
Não conseguia acreditar que por fim tivesse revivido essas
lembranças. Em voz alta. Diante de uma mulher. De sua amante, nada
menos. Mas por estranho que parecesse, sentia-se bem ao tê-lo feito.
Esse incidente sórdido e espantoso parecia menos atroz uma vez
expresso. Ele parecia menos atroz. Inclusive seu pai o parecia.
Sentia-se em paz.
—É terrível ter esqueletos no armário, Jane —disse ao final—
Suponho que você não tem nenhum, verdade?
—Não —respondeu ela depois de um silêncio tão prolongado que ele
acreditou que não ia responder— Nenhum.
—Vamos para a cama? —perguntou-lhe com um suspiro quase de
contentamento absoluto— Só para dormir, Jane? Se não me falha a
memória, ontem à noite estivemos ocupados com tarefas muito
extenuantes. Vamos apenas dormir esta noite?
—Sim —respondeu ela.
Jocelyn esteve a ponto de começar a rir. Ia para a cama com sua
amante.
Para dormir.
Seu pai estaria revolvendo-se na tumba.

251
Capítulo 18

O Duque de Tresham retornou diretamente a sua casa na manhã


seguinte, como estava acostumado a fazer, para banhar-se, barbear-se e
trocar de roupa antes de pôr rumo a seus clubes e começar com as
restantes ocupações matutinas. No entanto, Hawkins o estava
esperando nada mais entrar para lhe comunicar uma muito importante
informação. O senhor Quincy queria falar com Sua graça. O antes
possível.
—Que vá ver-me à biblioteca em meia hora —disse Jocelyn enquanto
subia as escadas— E que Barnard suba. O advirta de que não necessito
urgentemente sua companhia pessoal, Hawkins e sugira que sim vou
necessitar água quente e os utensílios de barbear.
Michael Quincy entrou na biblioteca meia hora depois. Jocelyn já
estava dentro.
—Bem? —Olhou seu secretário com as sobrancelhas arqueadas—
Alguma crise em Acton Park, Michael?

252
—Chegou um homem, sua graça —respondeu seu secretário— Está
na cozinha, onde leva esperando duas horas. Nega-se a partir.
Jocelyn arqueou as sobrancelhas ainda mais e uniu as mãos às costas.
—De verdade? —perguntou— Não tenho a meu serviço suficientes
criados para que o tirem? Vou ter que fazê-lo em pessoa? Por isso está
me falando deste assunto?
—Pergunta pela senhorita Ingleby, sua graça —disse Quincy.
Jocelyn ficou petrificado.
—Pela senhorita Ingleby?
—É um investigador da Bow Street —continuou seu secretário.
Jocelyn se limitou a olhá-lo fixamente.
—Hawkins me enviou ele para que eu atendesse suas perguntas —
explicou Quincy— Lhe disse que não sabia nada de nenhuma senhorita
Ingleby. Ao que me respondeu que esperaria para falar com você.
Quando lhe disse que talvez tivesse que esperar uma semana antes que
dispusesse de um tempo livre para ele, disse-me que esperaria uma
semana. Está na cozinha, sua graça, e não parece disposto a partir.
—Com perguntas a respeito da senhorita Ingleby. —Jocelyn
entrecerrou os olhos— Será melhor que o faça entrar, Michael.

Mick Boden se sentia incômodo. Muito de vez em quando seu


trabalho o levava a alguma das grandiosas mansões de Maifair. Para
falar a verdade, a aristocracia o amedrontava um pouco. E o dono de
Dudley House era o Duque de Tresham, afamado por ser um homem a
quem seus próprios pares temiam enfrentar.
No entanto, sabia que estava perto. Os criados mentiam mais que
falavam, todos e cada um deles. Nenhum conhecia a tal senhorita Jane
Ingleby, incluído o secretário de Sua graça, a quem, para sua vergonha,
253
tinha confundido com o próprio duque a princípio, por seu elegante
porte.
Mick sabia quando mentiam. E sabia por que mentiam essas pessoas.
Não se tratava de que a estivessem protegendo ou escondendo, mas sim
de que esses criados valorizavam seu trabalho. E uma das principais
normas de dito trabalho era que não se falava com desconhecidos sobre
os habitantes da casa, embora se tratasse de outros criados. Uma atitude
respeitável.
Depois, o mordomo, um homem que parecia cheirar o ar como se
quisesse detectar o fedor dos meros mortais, apareceu na cozinha e fixou
seu desdenhoso olhar em Mick.
—Me siga —ordenou.
Mick o seguiu, além da cozinha, depois do qual subiram a escada e
atravessaram a porta estofada que conduzia à parte posterior do
vestíbulo. O repentino esplendor da parte nobre da casa quase o deixou
sem fôlego, embora se esforçasse para não demonstrar quão
impressionado estava. O secretário o esperava ali.
—Sua graça lhe concederá cinco minutos —disse— O acompanharei
à biblioteca. Esperarei fora para acompanhá-lo à porta quando tiver
terminado.
—Obrigado, senhor —disse Mick Boden.
Estava um pouco nervoso, mas entrou com passo bastante seguro na
biblioteca depois que o mordomo abriu a porta. Deteve-se após afastar-
se seis passos e plantou os pés com firmeza no chão, bastante separados.
Sustentou o chapéu entre as duas mãos e abaixou a cabeça a modo de
saudação. Não pensava lhe fazer uma reverência.
O duque (supunha que nessa ocasião sim o era) estava de pé diante
de uma carregada lareira de mármore, com as mãos unidas às costas.
Levava um traje de montar, mas estava tão bem confeccionado e lhe
sentava tão bem que Mick sentiu uma vergonha imediata pelo seu,
254
barato, embora se orgulhasse de seu esmero. Estava sendo observado
por uns olhos tão escuros que teria jurado que eram negros.
—Tem algumas perguntas a me fazer —disse o duque a Mick— É um
investigador da Bow Street?
—Sim, senhor. Mick Boden, senhor. —Mick reprimiu o impulso de
assentir com a cabeça de novo— Me informaram que a senhorita Jane
Ingleby esteve a seu serviço.
—Sério? —Jocelyn arqueou as sobrancelhas, adotando uma
expressão certamente aterradora— E quem, se me permite perguntar,
informou-lhe?
—Madame Laurent, Senhor —respondeu Mick Boden— Uma
costureira. Deu trabalho à senhorita Ingleby faz coisa de um mês,
quando a jovem lhe apresentou a renúncia e indicou que devia trabalhar
para você.
—De verdade? —O duque entrecerrou os olhos— E que interesse
tem na senhorita Ingleby?
Mick titubeou, mas só por um instante.
—A buscamos por crimes atrozes —respondeu.
Os dedos de Sua graça procuraram e agarraram a manga do
monóculo, embora não o levou ao olho.
—Crimes atrozes? —repetiu em voz baixa.
—Roubo, senhor —explicou— E assassinato.
—Fascinante —comentou o duque suavemente, e Mick, que sabia
julgar bem às pessoas, soube sem dúvidas que esse homem podia ser
muito perigoso— Um conto chinês?
—Certamente que não, senhor —assegurou Mick com secura— É de
tudo certo. O nome é um invento. Em realidade, é Lady Sara Illingsworth,
que assassinou o Senhor Sidney Jardine, filho e herdeiro do Conde de
255
Durbury, e depois fugiu com o dinheiro e as joias do conde. Talvez tenha
ouvido falar do incidente, Senhor. É uma fugitiva desesperada e acredito
que se encontra nesta casa.
—Valha-me Deus! —exclamou Sua graça depois de um breve
silêncio— Nesse caso tenho muita sorte de não ter despertado uma
manhã qualquer do mês passado com a garganta degolada.
Mick sentiu uma intensa satisfação. Por fim! O Duque de Tresham
bem podia ter admitido que a moça se encontrava em Dudley House.
—Está aqui, senhor? —perguntou.
O duque levou o monóculo a meio caminho do olho.
—Estava aqui —repôs— A senhorita Ingleby esteve trabalhando
aqui durante três semanas em qualidade de minha enfermeira depois
que recebi um disparo na perna. Partiu há algumas semanas. Deve
continuar sua busca em outra parte. Acredito que o senhor Quincy está
esperando no corredor para mostrar-lhe a saída.
Mas Mick Boden não estava disposto que o despachassem tão cedo.
—Pode me dizer aonde foi, senhor? —insistiu— É muito importante.
O Conde de Durbury está sofrendo o inexprimível e não terá paz até que
a assassina de seu filho seja levada a justiça.
—E suas joias sejam devolvidas à caixa forte de Candleford Abbey —
acrescentou o duque— A senhorita Ingleby foi uma criada nesta casa.
Acaso estou obrigado a saber aonde vão os criados depois de abandonar
meu serviço? —Voltou a arquear as sobrancelhas com gesto arrogante.
Mick soube que acabava de topar com uma parede. Tinha estado
muito perto.
—Isso é tudo? —perguntou Sua graça— Acabou o interrogatório?
Devo confessar que estou ansioso para tomar o café da manhã.
A Mick teria gostado de fazer mais perguntas. Em ocasiões, quando a
gente não ocultava informação de forma premeditada, sabiam mais do
256
que imaginavam. Possivelmente a moça tinha deixado cair algo a
respeito de seus planos futuros, alguma pista, ou inclusive talvez tivesse
confiado em outro criado. Mas era muito improvável, admitiu para si
mesmo. Sabia que era uma fugitiva. Sem dúvida alguma se inteirou, ao
longo das semanas nessa casa, que os investigadores da Bow Street a
seguiam.
—Bem? — Havia uma força de incredulidade arrogante por trás da
palavra.
Mick se despediu com um gesto de cabeça, desejou um bom dia ao
Duque de Tresham e partiu. O secretário do duque o acompanhou à
porta principal, de modo que se encontrou em Grosvenor Square, com a
sensação de que tinha voltado para o ponto de partida.
Ou talvez não.
Inteirou-se do duelo antes inclusive que madame Laurent o
mencionasse. O Duque de Tresham tinha recebido um disparo na perna
e esteve incapacitado durante três semanas. O resto dos cavalheiros
londrinos certamente tinha feito fila diante de sua porta para lhe fazer
companhia. A moça tinha sido sua enfermeira. Sem dúvida, alguma
dessas visitas a tinha visto. Alguns dos cavalheiros talvez fossem mais
comunicativos que o duque.
Não, não tinha topado com uma parede depois de tudo, decidiu Mick
Boden. Ao menos não de momento. A encontraria.

Tinha tido todas as provas diante do seu nariz, pensou Jocelyn


enquanto observava através da janela da biblioteca como o investigador
da Bow Street cruzava a passo lento a praça. Tão perto que, de fato, sua
cabeça as tinha passado por cima e tinha sido incapaz de vê-las.
Saltava à vista que tinha contado com a educação de uma dama. Tinha
demonstrado ter todas as virtudes de uma dama desde o começo, exceto
pela forma de vestir. Falava com um acento refinado; movia-se com
gestos régios e elegantes; estava instruída; sabia tocar piano com certa
257
soltura, embora não com muita habilidade; cantava maravilhosamente…
Com uma voz educada e com conhecimentos de compositores como
Handel; sabia organizar e mandar nos criados; não se acovardava na
presença de um aristocrata, como ele mesmo, nem sequer quando era
muito autoritário.
De verdade tinha acreditado na história de que tinha crescido em um
orfanato? Talvez durante um breve lapso. Mas levava certo tempo
sabendo que Jane tinha mentido a respeito de seu passado. Perguntou-
se de forma vaga por que. Ao final, tinha chegado à conclusão de que
havia algo que queria manter oculto. Nunca havia sentido uma
curiosidade insaciável pelos segredos que as pessoas decidiam manter.
Lady Sara Illingsworth.
Não Jane Ingleby, a não ser Lady Sara Illingsworth.
Entrecerrou os olhos enquanto olhava a praça já vazia.
Tinha interpretado mal uma e outra vez a maior prova de todas: sua
relutância a que a vissem. Não tinha querido sair de Dudley House
enquanto esteve empregada como enfermeira, exceto ao jardim; não
queria sair da casa onde vivia nesse momento. Tinha sido muito
relutante a cantar para seus convidados.
Tinha preferido converter-se em sua amante a iniciar o que sem
dúvidas teria sido uma brilhante carreira como cantora.
Em seu momento acreditou que estava envergonhada; ao princípio,
pensou que se envergonhava do que as pessoas pensariam de sua
relação com ele e depois, da verdade de dita relação. Mas não tinha
demonstrado mais indícios de sentir vergonha. Tinha negociado seu
ridículo contrato com um prático bom senso. Havia redecorado a casa
porque se negava a sentir-se como uma prostituta vivendo em um
bordel. Não tinha se intimidado ao enfrentar a seu destino a tarde que
consumaram a relação, não houve lágrimas, nem amostras de remorsos
depois.

258
Sua mente deveria ter analisado tudo até chegar à conclusão de que
lhe dava medo ser vista em público se por acaso alguém a reconhecia e
a capturavam. Não tinha visto o evidente: Jane estava se escondendo.
Buscavam-na por roubo e assassinato.
Jocelyn se separou da janela, dirigiu-se ao outro extremo da sala e
plantou as mãos na escrivaninha de carvalho.
Não lhe importava estar encobrindo uma fugitiva. A ideia de que
fosse perigosa resultava totalmente absurda. Mas sim que lhe
importava, e muito, o detalhe de ter descoberto sua identidade muito
tarde.
Oferecer trabalho como sua amante a uma órfã sem dinheiro ou
inclusive a uma dama empobrecida não era nada fora do comum. Mas
oferecer o mesmo posto à filha de um conde era completamente
diferente. Talvez não devesse sê-lo. Se vivessem em uma sociedade
perfeita em que todas as pessoas fossem iguais, não haveria diferença
alguma.
Mas não viviam em dita sociedade.
E, portanto havia uma diferença abismal.
Tinha desvirginado Lady Sara Illingsworth, filha do falecido Conde de
Durbury, de Candleford Abbey, na Cornualha.
Nesse preciso momento não se sentia muito magnânimo para Lady
Sara Illingsworth.
Maldita seja, pensou. Golpeou a mesa com o punho e apertou os
dentes. Deveria ter dito a ele. Deveria ter pedido ajuda. Acaso não sabia
que ele era um homem no qual podia admitir sem disfarces o pior sem
temor a que desse um ataque e mandasse chamar os investigadores da
Bow Street? Acaso não entendia que os homens como Jardine eram
merecedores de todo seu desprezo? Maldição! Voltou a golpear a
escrivaninha com força. O que lhe tinha feito esse bastardo para que ela

259
o matasse? No caso de que estivesse morto… Levaria todo esse tempo
consumida pela culpa, o medo e a solidão?
Ao diabo com Jane! Não tinha confiado nele o suficiente para lhe
contar a verdade.
Em troca, tinha-lhe colocado um grilhão no pescoço e tinha jogado a
chave fora. Embora o tivesse feito sem querer (de fato, não lhe cabia a
menor dúvida de que essa não tinha sido sua intenção, já que confiava
tão pouco nele), tinha-o feito de forma muito eficaz.
E por isso ia custar muitíssimo perdoá-la.
Maldita fosse essa mulher!
E havia algo mais. Sim, claro que havia algo mais. A noite anterior
tinha despido sua alma ante ela como nunca o tinha feito com outro ser
humano. Tinha confiado nela até esse extremo.
No entanto, ela não havia devolvido essa confiança. Desde que a viu
pela primeira vez, devia estar padecendo uma tortura. Mas não havia
dito nada. Nem sequer a noite anterior.
«É terrível ter esqueletos no armário, Jane —lhe havia dito— Suponho
que você não tem nenhum, verdade?»
«Não —tinha respondido ela— Nenhum.»
Maldita fosse!
Jocelyn golpeou a madeira uma vez mais, fazendo que o tinteiro se
agitasse no tabelionato de prata.

Jocelyn passou o dia em seus clubes, no salão de boxe do Jackson, na


quadra de esportes de tiro e nas corridas. Jantou no White’s e passou
algumas horas em uma velada insípida, durante a qual sua irmã lhe
informou que estava muito estranho e que tinha convencido Heyward
para que a levasse para passar umas semanas em Brighton durante o
260
verão para mesclar-se com o grupo do príncipe regente e provar os
prazeres do Pavilhão Real. Seu irmão, que também lhe comentou que
estava muito estranho, ardia de indignação.
—Tresham, o assunto é que os Forbes seguem escondidos em algum
lugar, mas seguem alardeando que é você quem teme enfrenta-los. E,
além disso, agora andam dizendo que eu me escondo atrás das botas de
meu irmão mais velho. O que pensa fazer a respeito? Isso é o que quero
saber. Nunca tinha te visto tão parcimonioso. Se não sair à luz em uma
semana, vou buscá-los eu mesmo. E ao diabo com a arrogante ordem de
irmão mais velho de que são teu assunto. Foi a mim que tentaram matar.
Jocelyn suspirou. Sim, tinha estado atrasando o momento. Tudo por
ter se apaixonado por uma mulher.
—É a mim a quem queriam humilhar —assinalou— Me encarregarei
deles, Ferdinand. Logo. —negou-se a seguir discutindo o tema.
No entanto, enquanto se divertia com sua amante essa última
semana, enquanto falava com ela, lia, tocava piano e pintava, tinha
deixado que sua reputação diminuísse. Não podia permiti-lo.
Não foi até tarde da noite quando por fim pôde ficar a sós com
Brougham e Kimble. Voltavam dando um passeio ao White’s depois de
ter abandonado o baile.
—Não terão mencionado nenhum dos dois, o nome de minha amante
a ninguém, verdade? —perguntou.
—Caramba, Tresham! —Brougham parecia irritado— Precisa
perguntá-lo depois de nos ter pedido que não o fizéssemos?
—Se for assim, Tresh —disse Kimble com uma serenidade que não
pressagiava nada bom— talvez devesse te dar um murro. Embora possa
ser que a pergunta seja retórica…
—Há uma pessoa —aduziu Jocelyn— um investigador penteado com
fixador e com um gosto espantoso na hora de vestir, mas de olhar

261
penetrante, que não demorará em lhes fazer uma visita para perguntar
pela senhorita Jane Ingleby.
—Um investigador da Bow Street? —Brougham se deteve.
—Perguntando pela senhorita Ingleby? —O cenho de Kimble era
visível inclusive na escuridão da rua.
—Aliás Lady Sara Illingsworth —acrescentou Jocelyn.
Seus amigos o olharam em silêncio.
—Os interrogará junto a outras pessoas — assegurou Jocelyn.
—A senhorita Jane Ingleby? —O gesto de Kimble se tornou
inexpressivo— Jamais tinha ouvido falar dela. E você, Cone?
—De quem? —Brougham franziu o cenho.
—Não, não —os corrigiu Jocelyn em voz baixa antes de recomeçar a
marcha. Seus amigos o flanquearam— Todo mundo sabe que foi minha
enfermeira enquanto me recuperava do disparo. Eu mesmo o admiti esta
manhã enquanto este tipo me interrogava na biblioteca de minha casa
tentando por todos os meios não parecer servil. Jane Ingleby esteve em
minha casa durante três semanas. Depois das quais deixou de estar a
meu serviço. Mas quem sou eu para seguir as aventuras de uma simples
criada uma vez que sai de minha casa?
—Teve essa criada? —perguntou Brougham desinteressado—
Confesso que não me fixei, Tresham. Claro que não estou acostumado a
me fixar nos criados dos outros.
—Não foi a que cantou em sua velada, Tresh? —perguntou Kimble—
Bonita voz para os amantes desse tipo de música. E bonita jovem para
os que gostem das jovenzinhas recém-chegadas do campo vestidas com
musselina quando o resto das damas presentes usam cetins, plumas e
joias. O que aconteceu a ela?
—Obrigado —disse Jocelyn com secura— Sabia que podia confiar em
vocês.
262
—Uma coisa, Tresham —acrescentou Brougham, já com voz
normal— o que aconteceu com Jardine de verdade? Espero que não
queira nos fazer acreditar que Lady Sara o assassinou a sangue frio
porque a surpreendeu roubando.
Kimble soprou com desdém.
—Não sei o que aconteceu —respondeu Jocelyn entre dentes— Não
confiou em mim. Mas vou dizer algo a vocês: será melhor que Jardine
esteja bem morto. Porque se não o está, vou ter o enorme prazer de fazê-
lo desejar que estivesse.
—Se necessitar ajuda —se ofereceu Brougham— não tem mais que
pedir a seus amigos íntimos, Tresham.
—O que vai fazer com Lady Sara, Tresh? —quis saber Kimble.
—Lhe dar umas palmadas que não esquecerá na vida —respondeu
com ferocidade— Chegar ao fundo desta ridícula história. Me casar com
ela e fazer que passe o resto de sua vida arrependendo-se de ter nascido.
Por essa ordem.
—Te casar. —Conan Brougham fez uma careta— Mas é sua aman…
—De repente, assaltou-o um golpe de tosse, embora talvez fosse devido
à cotovelada que lhe deu o Visconde de Kimble nas costelas.
—Me casar —repetiu Jocelyn— Mas primeiro vou beber. E me
embebedar. Até perder o sentido e não recordar nem meu nome.
O problema, é obvio, era que por mais que bebesse nunca parecia
poder embebedar-se quando queria. Estava convencido de que, quando
saiu sozinho do White’s passada a meia-noite, tinha ingerido uma boa
quantidade de álcool. No entanto, a menos que estivesse mais bêbado do
que pensava, estava caminhando em linha reta em direção à casa de sua
amante, e ainda sentia uma ira gélida em vez de uma fúria abrasadora.
Como ia lhe dar umas palmadas? Jamais faria isso, literalmente, nem a
ela, nem a nenhuma outra mulher. Como ia lhe dar um de seus famosos
sermões se não fervia de fúria?
263
Quando por fim chegou a casa e abriu com sua chave, só pensava em
humilhá-la, em lhe recordar o posto tão subordinado que ocupava em
sua vida. Ia ter que casar-se com ela, é obvio, embora Jane ainda não
soubesse. Seria sua esposa de nome. Mas logo compreenderia que
durante o resto de sua vida seria para ele muitíssimo menos que uma
amante.

264
Capítulo 19

Passada a meia-noite, Jocelyn chegou a casa, muito depois que Jane


deixasse de esperá-lo, embora ainda estivesse acordada, passeando
nervosa do gabinete a sala de jantar e da sala de jantar ao salão, segura
de que tinha acontecido algo terrível. Estava no gabinete, contemplando
o retrato que ele tinha pintado e com as mãos na cintura com gesto
protetor, quando o escutou abrir a porta com sua chave. Correu para
recebê-lo, e pegou uma vela no caminho. Mas obrigou-se a aparecer
serena no vestíbulo. Após alguns momentos se alegrou de tê-lo
conseguido. Jocelyn levava a capa negra. Tirou a cartola e as luvas com
deliberada parcimônia antes de voltar-se para olhá-la. Quando o fez,
Jane se encontrou ante o Duque de Tresham, esse desconhecido que
tinha ficado no passado. O sombrio, cínico, frio e possivelmente bêbado
Duque de Tresham. Sorriu.
—Vamos! —ordenou ele com um gélido desprezo, uma ordem que
acompanhou com um brusco gesto de cabeça em direção à escada.
—Por quê? —Jane franziu o cenho.
Ele arqueou as sobrancelhas e a olhou como se fosse uma barata.

265
—Por quê? —repetiu em voz baixa— Por que, Jane? Confundi-me de
direção por acaso? Não, porque a chave abriu a fechadura. Não é esta a
casa onde alojo minha amante? Vim para fazer uso dos serviços de
minha amante. Necessito uma cama para fazê-lo com comodidade e
necessito minha amante em dita cama. A cama está acima, acredito.
—Está bêbado! —exclamou Jane com a mesma frieza que lhe
demonstrava.
—Ah, sim? —Jocelyn pareceu surpreso— Não tanto para não
encontrar o caminho à casa de minha amante. Não tanto para não subir
as escadas até seu quarto. Não tanto para que não me levante Jane.
O frio comentário fez que Jane se ruborizasse enquanto o olhava e
sentia uma opressão no coração capaz de esmagá-lo. Porque sabia que
acabaria feito migalhas quando essa noite chegasse a seu fim. Que tola
tinha sido! E não só por ter-se apaixonado por ele, mas sim por ter
sonhado que a correspondia.
—Vamos! —ordenou de novo, depois do qual assentiu com a
cabeça— Ah, já sei por que titubeia. Me esqueci de acrescentar «por
favor». Por favor, Jane, sobe. Por favor, tire a roupa e as forquilhas
quando estiver no quarto. Por favor, deite-se na cama para que possa
fazer uso de seus serviços. Por favor, mantenha o estipulado no contrato.
Sua voz era tão fria como o gelo. Seus olhos, tão negros como a noite.
Não tinha nenhum motivo de peso para rejeitá-lo. Nunca tinha
formado parte do trato que ele tivesse que amá-la para lhe outorgar seus
favores. No entanto, de repente se sentiu desorientada, como se a
semana, a semana mais formosa de sua vida, acabasse de desaparecer
sem deixar rastro. Como se só a tivesse sonhado. Como se ele não se
converteu em seu companheiro, em seu amigo, em seu amante. Na outra
metade de sua alma.
A final de contas, só era sua amante a salário.

266
Voltou-se para precedê-lo escada acima com a vela em alto e o
coração convertido em pedra. Não, corrigiu-se. Porque as pedras não
podiam sentir dor. Piscou para livrar-se das lágrimas. Jamais lhe
demonstraria semelhante debilidade.
Jamais!
—Jane —o ouviu dizer após um momento ao chegar ao vão da porta
do quarto, onde se deteve com expressão inescrutável. Quão único
deixava entrever era a embriaguez e certa atitude ameaçadora— vim
para que minha amante me entretenha. Como vai me entreter?
Voltou a sentir de novo que a semana anterior não tinha existido.
Mas, nesse caso não veria nada ofensivo em suas palavras. Porque em
realidade não havia nada ofensivo nelas. De modo que não devia
responder como se houvesse. Simplesmente devia esquecer aquela
semana. Mas titubeou mais da conta.
—Jane, não te doerá à cabeça, verdade? —perguntou com evidente
ironia— Ou tem o período?
Ainda faltavam uns dias, e levava um tempo bastante nervosa a
respeito. Mas não queria preocupar-se antes que fosse necessário. Tinha
assumido desde o começo as possíveis consequências de sua relação.
Inclusive havia uma cláusula no contrato concernente aos filhos que
nascessem de dita relação.
—Ou é que esta noite te dou asco? —seguiu Jocelyn, olhando-a com
os olhos entrecerrados, uma expressão que o outorgava um ar ainda
mais perigoso— Vai exercer seu direito de me mandar ao inferno sem
satisfazer meu desejo, Jane?
—Não, é obvio que não. —Olhou-o com tranquilidade— Estarei
encantada de te entreter. A final, no que outra coisa vou pensar e sonhar
durante todas as horas que passo sem te ter a meu lado?
—Reconforta-me descobrir que, depois de tudo —replicou ele
enquanto se aproximava da cama— segue sendo uma descarada, Jane.
267
Porque não desfrutaria se te limitasse a te deitar total de costas. Bom,
vamos ver que prazeres sensuais sonhou para mim…
Jane tinha desenvolvido um bom número de habilidades eróticas
durante a semana e meia transcorrida. Tinha aprendido a não mostrar-
se tímida com sua própria sexualidade, nem tão pouco com a de Jocelyn.
Era evidente que estava disposto a deixar que ela o entretece. Porque
seguia de pé junto à cama, com os pés separados e as mãos às costas,
olhando-a com as sobrancelhas arqueadas. Uma atitude mais que
desconcertante e decididamente molesta face de como tinha esperado
que fosse seu seguinte encontro.
Jane despiu-se lentamente, torturando-o com a pele que ia deixando
à vista, pouco a pouco. À medida que tirava os objetos, dobrava-as e as
colocava em uma cadeira. Quando esteve nua, levantou os braços e tirou
as forquilhas uma a uma até que seu cabelo a envolveu. E então sorriu.
Depois de tudo, talvez pudesse lhe fazer esquecer o constrangimento
pelo acontecido a noite anterior. Se esse acaso era o motivo de sua
abrupta mudança.
Jocelyn ainda levava a capa, mas tinha afastado os extremos, jogando-
a sobre os ombros. Não fez a menor tentativa para dissimular a ereção
que esticava o tecido apertado de sua calça. No entanto, não se moveu. E
sua expressão seguiu sendo impassível.
Jane lhe desabotoou a capa do pescoço, que acabou no chão, atrás
dele. No entanto, ao fazê-lo descobriu algo que ignorava até esse
momento: quão erótica resultava a nudez quando alguém ainda está
totalmente vestido.
—Sente-se —disse, a modo de convite, assinalando a cama.
Ele arqueou as sobrancelhas, mas se sentou ao lado dela com os pés
separados e as mãos sobre o colchão, e depois se tornou para trás,
apoiando-se nos braços.
—Está aprendendo umas lições muito pecaminosas por sua conta,
Jane —comentou, observando-a enquanto desabotoava a calça e
268
liberava seu membro de seus limites de seda— O que me preparou? Vai
me agradar com a boca?
Soube por instinto o que queria dizer. E embora sua mente
encontrasse a ideia repulsiva, seu corpo lhe disse que não seria. De todas
as formas, não se acreditava capaz de fazê-lo. Ainda não. Não até que
chegasse o dia em que fossem amantes de verdade, não um homem com
sua mantida.
Acariciou-o com as mãos enquanto ele observava seus movimentos
com os olhos entrecerrados. Depois se ajoelhou escarranchada sobre
seus quadris, colocou seu membro em sua entrada e desceu sobre ele.
Seguiu erguida, com as costas um tanto arqueada e as pontas dos dedos
sobre o cetim de seu fraque.Olhou-o aos olhos.
—Bem, Jane —disse o— Muito entretido. —E seguiu sem mover-se.
Notava seu membro rígido e grande em seu interior, mas Jocelyn não
se moveu. Ela podia sentir o cheiro de Licor em seu hálito.
Tinha-lhe ensinado a montá-lo. Mas o tinha feito com ele convexo na
cama e ela inclinada sobre seu corpo. E Jocelyn a tinha acompanhado em
todo momento. Ambos tinham colaborado para alcançar o prazer mais
sublime.
Essa noite se limitava a seguir sentado e a contemplá-la com esses
olhos escuros de olhar perigoso.
Sabia que estava molhada, mais que preparada e muito excitada. Lhe
teria encantado que ele respondesse a seu desejo com algo mais que
simples excitação, lhe teria encantado lhe entregar as rédeas para que
fosse ele quem os levasse ao êxtase. Mas não parecia disposto a fazê-lo.
Envolvia-o uma escuridão que ela parecia incapaz de iluminar. Chegou à
conclusão que os estava submetendo a um castigo, aos dois, por isso
interpretava como uma humilhação por lhe ter confessado tantas
intimidades a noite anterior.

269
Apoiou-se nos joelhos e nas pernas e começou a mover-se sobre ele.
Não como o tinha feito na outra ocasião, contraindo e relaxando os
músculos internos ao compasso das investidas de Jocelyn. Naquela
ocasião lhe pareceu que mantinha certo controle sobre as perturbadoras
sensações, sobre os movimentos, ao menos até os últimos momentos. No
entanto, nesse instante se moveu sem defesa alguma, com os músculos
relaxados, sem barreiras que a protegessem da rigidez de seu membro
que seu corpo acolhia uma e outra vez conforme levantava e baixava os
quadris com um erótico frenesi. Arqueou mais as costas, jogou a cabeça
para trás, fechou os olhos e apoiou as mãos nos joelhos de Jocelyn,
cobertas pela seda, atrás dela.
Tentou demonstrar com seu corpo que lhe importava, que jamais lhe
negaria nada quando a necessitasse. Porque apesar de seu estranho mau
humor, percebia que a necessitava.
Não soube quanto tempo seguiu movendo-se sobre ele enquanto
Jocelyn seguia duro em seu interior, imóvel. Mas o desejo se tornou
doloroso. Uma dor distinta de qualquer outra. E antes que chegasse o
final (felizmente!) suas mãos agarraram seus quadris com uma força tão
inesperada que Jane perdeu o ritmo e seu controle se esfumaçou
enquanto ele a penetrava com urgência uma e outra vez, derrubando as
barreiras que ela tinha erguido deliberadamente. Escutou-se soluçar
como se o fizesse outra pessoa a distância. Escutou-o grunhir ao chegar
ao clímax e notou que a alagava a cálida umidade de sua semente.
A união. Bendita união! Por fim poderia consolá-lo. Se deitariam
juntos, suados e saciados, e falariam. O consolaria e ele voltaria a ser
Jocelyn, em vez do sombrio e perigoso Duque de Tresham.
Ao dia seguinte lhe confiaria seus mais escuros segredos.
Ofegava e tinha frio porque estava suada. Seguia escarranchada sobre
ele na cama, com as coxas separadas e as pernas rígidas. Jocelyn ainda
estava enterrado nela. Levantou a cabeça e lhe sorriu com expressão
sonhadora.

270
—Muito entretido, Jane —o escutou dizer com voz brusca— Está
avançando maravilhosamente bem em sua profissão. Começa a merecer
cada pinique de seu salário.
Levantou-a para afastá-la, deixou-a estendida sobre o colchão e ficou
em pé. E abotoou as calças de novo.
Para Jane foi como se jogasse um jarro de água fria pela cabeça.
—E você, é obvio —replicou— sempre foi um mestre do insulto
velado. Sei muito bem que me paga para isto. Não é necessário que me
recorde isso só porque ontem à noite baixou a guarda e se humilhou ao
me contar coisas das que agora se arrepende de ter me confessado. —
Puxou as mantas para agasalhar-se. De repente, sentiu-se muito nua.
—Jane, te parece um insulto que adule suas habilidades na cama? —
perguntou— Não sei, mas te asseguro que não estou acostumado afazê-
lo. —colocou a capa sobre os ombros.
—Parece-me um insulto que ache necessário me degradar —
particularizou ela— com esta conversa sobre habilidades e meu salário.
Parece-me um insulto que te envergonhe de ter confiando em mim só
por que sou uma mulher e, além disso, sua amante. Acreditei que
fossemos amigos. E os amigos demonstram confiança. Compartilham
seus segredos mais escuros e suas feridas mais profundas. Equivoquei-
me. Não deveria ter esquecido que me paga para isto —disse, fazendo
um gesto com o braço para assinalar a cama— E agora estou cansada.
Trabalhei para ganhar o pão. Faz o favor de partir. Boa noite.
—Jane, os amigos demonstram confiança? —Olhava-a jogando
faíscas pelos olhos, que de repente pareciam muito negros.
Por um momento se assustou muito. Porque pensou que ia inclinar-
se sobre ela para levantá-la à força. Em troca, viu-o executar uma
reverência zombadora, depois do qual partiu do quarto.
Jane ficou encolhida e tremente, mais só e mais triste do que tinha
estado na vida.
271
Jocelyn retornou a Grosvenor Square com um humor do cão. A essa
altura odiava a si mesmo com todas as suas forças. Um sentimento
familiar e satisfatório, ao menos. Sentia-se como se a tivesse violado,
embora a tinha tratado tal como estava acostumado a tratar suas antigas
amantes. Como a odiava! Jane não deveria ter permitido que se
aproximasse dela essa noite; em troca, tinha-o atendido como uma
cortesã experiente.
Odiava-a por tê-lo enganado durante toda essa semana até lhe fazer
acreditar que tinha encontrado uma amiga, uma alma gêmea e ao mesmo
tempo uma magnífica companheira de cama. Por tê-lo induzido de
algum modo a baixar suas defesas, a compartilhar tudo o que ocultava
no mais recôndito de seu ser. Por tê-lo distraído até o ponto de não ter
percebido que quão único ela compartilhava em resposta era seu corpo,
que em sua relação não havia reciprocidade.
Jane tinha ganhado sua confiança, mas tinha se mantido escondida
atrás de seu papel de amante e atrás do nome de Jane Ingleby. E para
cúmulo tinha a desfaçatez de exortá-lo sobre a amizade verdadeira.
Ela, que tinha lhe arrebatado tudo, até o amor que se acreditou
incapaz de sentir.
Odiava-a por tê-lo enganado até fazê-lo acreditar que valia a pena
viver a vida depois de tudo. Por tê-lo arrancado da comodidade do
grosso casulo no que levava dez anos vivendo.
Odiava-a.
Nem sequer podia pensar nela como sendo Sara.
Era Jane.
Mas Jane Ingleby não existia.

272
Enquanto se aproximava de casa notou com satisfação os primeiros
sintomas de uma dor de cabeça. Com sorte, pela manhã contaria com a
distração de uma ressaca colossal.

Escondido entre as sombras de um portão situado ao outro lado da


rua, Mick Boden observou como o Duque de Tresham se afastava pela
calçada e pouco tempo depois viu que se apagava a luz do que devia ser
o quarto da casa. Saltava à vista que era um ninho de amor. O duque
tinha aberto com sua chave, ficou tempo suficiente para desfrutar de
uma boa queda ou duas nessa casa cuja luz se acendeu logo que ele
chegou e depois tinha voltado para casa, aparentemente muito satisfeito
consigo mesmo.
Tinha sido um dia muito longo. Não tinha sentido seguir mais tempo
com a vigilância. Era pouco provável que a amante saísse da casa para
ver como partia seu protetor, nem que aparecesse pela janela, já que
nem sequer o tinha feito para despedir-se.
No entanto, teria que sair em algum momento. Pela manhã, a pé, para
dar um passeio ou para ir às compras. Só precisava vê-la. Ao menos
assim saberia se o amorzinho do duque era Lady Sara Illingsworth, aliás
Jane Ingleby. Mick Boden tinha um palpite sobre a identidade da mulher
que residia na casa, e durante os anos que levava trabalhando como
investigador da Bow Street tinha aprendido a confiar em sua intuição.
Decidiu que voltaria pela manhã e vigiaria a casa até que ela saísse.
Também podia enviar um subordinado para que se ocupasse de levar a
cabo uma tarefa tão mundana, enquanto ele se encarregava de outras
linhas de investigação mais importantes, mas sentia muita curiosidade
e inclusive certo respeito por essa mulher, frutos da longa busca. Queria
ser o primeiro a vê-la e ser quem a prendesse.

273
274
Capítulo 20

O duque faltou a sua habitual cavalgada matutina pelo parque. Estava


muito ocupado com uma tremenda dor de cabeça, o estômago revolto e
um criado que abriu as cortinas de seu quarto para deixar entrar a
brilhante luz do sol, depois do qual pareceu surpreender-se ao descobrir
seu senhor dormido em sua própria cama, com a claridade lhe dando de
cheio na cara.
No entanto, Jocelyn não pensava permitir-se o luxo de aguentar a
ressaca e aterrorizar a servidão durante muito tempo. Tinha coisas a
fazer. Por sorte, teve a oportunidade de falar com Kimble e Brougham a
noite anterior. Não podia dizer o mesmo do conde de Durbury, que
jamais aparecia em público. Igual a sua sobrinha, sua prima ou o que
fosse Lady Sara Illingsworth para ele.
Não obstante, o conde seguia na cidade, hospedado ainda no hotel
Pulteney, conforme descobriu Jocelyn quando perguntou na recepção no
meio da manhã. E estava disposto a receber o Duque de Tresham,
embora a visita talvez o tivesse surpreendido. A final, jamais tinham
cruzado palavra exceto para saudar-se. Depois que Jocelyn lhe fez
chegar seu cartão e o valete do conde baixasse para acompanhá-lo,
encontrou-o na sala de estar privada de sua suíte.
—Tresham? —disse a modo de saudação— Como está?
—Muito bem, obrigado —respondeu Jocelyn— Tendo em conta que
agora mesmo bem poderia estar em minha própria cama, degolado. Ou
na tumba, mas bem, posto que Lady Sara Illingsworth partiu de minha
casa recentemente a menos de duas semanas.
—Ah, sim, sente-se. Me permita que lhe sirva uma taça.

275
Era evidente que o investigador da Bow Street o tinha posto a par das
últimas notícias.
—Sabe onde está, Tresham? Ouviu algo?
—Nada, obrigado —respondeu enquanto o licor queimava seu
estômago de forma desagradável. Aproximou-se de uma poltrona para
sentar-se, posto que o tinham convidado a fazê-lo— Compreenderá que
quando estava a meu serviço se vestia como uma criada e usava um
pseudônimo. Era uma simples empregada. Quando partiu, não me
ocorreu lhe perguntar aonde ia.
—Não, claro, é obvio. —O conde se serviu uma taça e se sentou à mesa
quadrada situada no centro da estadia. Parecia decepcionado— Esses
ditosos investigadores da Bow Street não merecem nem um pinique do
que cobram Tresham. De fato, são uns incompetentes. Levo um mês aqui
me consumindo enquanto uma criminosa perigosa anda solta entre o
crédulo povoado. E passou três semanas desse tempo em Dudley House.
Se eu soubesse!
—A verdade é que tive sorte de sair ileso —repôs Jocelyn— Matou
seu filho, verdade? Meus mais sentidos pêsames, Durbury.
—Obrigado.
O conde parecia muito incômodo. Tanto era assim que Jocelyn tirou
suas próprias conclusões enquanto o observava com atenção, embora
adotasse uma pose indolente para dissimular o escrutínio.
—E, além disso, roubou-lhe para adicionar insulto a injúria —
seguiu— Depois de passar três semanas em Dudley House,Lady Sara
deve ser muito consciente da grande quantidade de objetos valiosos que
possuo. Estou muito preocupado desde que ontem pela manhã me
inteirei das notícias, porque temo que tente me roubar e eu também
acabe morto em caso de ter a má sorte de topar com ela em um mau
momento.

276
O conde o olhou fixamente, mas Jocelyn era um perito em controlar
as expressões faciais para não revelar o que estava pensando.
—É lógico —conveio o homem.
—Entendo muito bem a sua… Chamemos ira, porque um familiar,
uma mulher que dependia de você, suponho, tenha lhe causado tanto
sofrimento e tenha deixado publicamente em ridículo sua autoridade.
Em seu caso, eu estaria esperando impaciente sua captura para lhe dar
umas chicotadas antes de entregá-la à lei. É a única maneira de tratar às
mulheres rebeldes, conforme entendo. De todas as formas, quero lhe
comentar duas coisas. O motivo de minha visita, de fato.
O conde de Durbury não sabia muito bem se acabava de insultá-lo ou
de lhe demonstrar sua solidariedade.
—Interroguei alguns de meus criados —seguiu Jocelyn, embora fosse
mentira, é obvio— e me asseguraram que a enfermeira que conheci
como Jane Ingleby chegou a Dudley House com uma única bolsa de
viagem onde levava seus pertences. Um detalhe que me leva a me
perguntar algo. Onde ocultou a fortuna em dinheiro e joias que lhe
roubou? Ocorreu ao investigador da Bow Street que você contratou para
seguir essa linha de investigação? Se encontrar o tesouro, seguro que
dará com o rastro da mulher. —Guardou silêncio com as sobrancelhas
arqueadas, à espera da resposta do conde.
—É uma ideia —reconheceu Durbury com tensão.
Jocelyn confirmou dessa forma suas suspeitas de que não existia
tesouro algum, ou ao menos nada que fosse de relevância.
—Certamente cumpriria melhor com seu trabalho se procurasse o
dinheiro e as joias em vez de estar me perseguindo —acrescentou com
voz amigável.
O conde de Durbury pareceu surpreso.
—Suponho que depois da entrevista que mantive ontem pela manhã
com ele —continuou Jocelyn— chegou à conclusão de que sou o tipo de
277
homem que encontraria excitante deitar-se com uma mulher que
poderia me roubar até o último pinique enquanto durmo e depois me
abrir à cabeça com um machado para rematar a tarefa. Dita conclusão é
compreensível, dada minha reputação de levar uma vida imprudente e
perigosa. No entanto, embora ontem me resultasse muito gracioso que
me seguisse a todos os lados, acredito que se hoje se repetisse a
experiência, acabaria me cansando.
Saltava à vista que o conde não sabia o que seu investigador tinha
estado fazendo no dia anterior. Olhou-o sem saber muito bem como
reagir.
—De momento não aconteceu —admitiu ele— suponho que está
acampado às portas da casa de certa… Hã...Dama, a quem visitei ontem
à noite. A dama em questão é minha amante, mas deve compreender
Durbury, que qualquer amante a meu serviço conta com meu amparo
completo e que qualquer um que a incomode terá que responder ante
mim. Talvez considere pertinente explicar a seu investigador. Temo que
agora mesmo não recordo seu nome. —ficou em pé.
—Certamente que o farei. —O conde de Durbury parecia uma fúria—
Estou pagando aos investigadores da Bow Street uma fortuna para que
vigiem a casa de sua amante, Tresham? Isto é revoltante.
—Devo confessar que a ideia de que vigiem a janela quando se está
mantendo uma… —acrescentou Jocelyn enquanto recolhia o chapéu e as
luvas do console situado junto à porta— enfim, uma conversa com uma
dama resulta um tanto molesta. Espero que não volte a repetir-se esta
noite.
—Não, certamente —assegurou o conde— Exigirei uma explicação a
Mick Boden, acredite.
—Ah, sim —replicou Jocelyn ao mesmo tempo em que saía da
estadia— esse era o nome. Um homem baixinho e magro com fixador no
cabelo. Que tenha um bom dia, Durbury.

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Baixou as escadas e saiu do hotel muito satisfeito pela visita matinal,
apesar da dor de cabeça que parecia ter se instalado prolongadamente
atrás de seus olhos. A manhã estava a ponto de terminar. Ele só esperava
que Jane fosse fiel a seus costumes e não colocasse o nariz pela porta da
casa antes que obrigassem o cão de guarda a retirar-se. De todas as
formas, não acreditava provável. Jane só saía ao jardim traseiro. E por
fim compreendia o motivo.

Jane se convenceu de que tinha chegado ao fim durante uma manhã


de dura tarefa no jardim, enquanto arrancava as ervas daninhas de um
canto que ainda não tinha limpado. Jocelyn mesmo o havia descrito: o
amor, a perda gradual de interesse e a ruptura de todos os laços.
O amor tinha acabado vítima da indiscrição que Jocelyn tinha
cometido, ou o que ao que parecia ele interpretava como uma
indiscrição. A perda de interesse suspeitava ela, não seria gradual, a não
ser abrupta. Talvez lhe esperassem algumas visitas mais como a da noite
anterior. No entanto, o dia menos pensado se apresentaria o senhor
Quincy a fim de fazer os acertos pertinentes para dar por terminada a
relação. Embora tão pouco haveria muito que discutir. O contrato
deixava quase tudo muito claro.
E depois nunca mais voltaria a ver Jocelyn.
Arrancou sem piedade uma moita de urtigas, que picavam
dolorosamente apesar das luvas.
Dava o mesmo, concluiu. De todas as formas tinha pensado entregar-
se aos investigadores da Bow Street. Logo poderia fazê-lo sem o menor
impedimento. Logo perderia as rédeas de seu destino, embora lutaria só
por manter seus princípios e esclarecer as acusações ridículas que
pesavam contra ela. Ridículas exceto pelo fato de que Sidney estava
morto.
Arrancou outro punhado de urtigas.

279
Tinha conseguido convencer-se de forma tão efetiva que a
surpreendeu ver Jocelyn chegar à primeira hora da tarde. Escutou que
batiam na porta principal enquanto estava trocando de vestido no
quarto. Esperou presa da tensão, ouvir seus passos na escada. Mas foi o
Senhor Jacobs quem chamou com acanhamento à porta de seu quarto.
—Sua graça solicita que o honre com sua presença na sala de estar,
senhora —informou o mordomo.
A Jane caiu à alma aos pés enquanto soltava a escova de cabelo. Fazia
mais de uma semana que não pisavam na sala de estar.
Ao entrar, encontrou-o diante da lareira, onde não ardia o fogo, com
um braço apoiado no suporte.
—Boa tarde, Jocelyn —o saudou.
Apresentava sua habitual atitude cínica, arrogante e sombria. Olhou-
a com expressão inescrutável. Tal parecia que seu humor não tinha
melhorado da noite anterior. De repente, compreendeu o motivo de sua
visita. Não ia enviar o senhor Quincy. O diria em pessoa.
Esse era o fim. Depois de uma semana e meia.
Viu-o inclinar a cabeça, a modo de saudação, mas não disse nada.
—Foi um engano —afirmou ela em voz baixa— Quando me
perguntou se podia ver a sala ao lado, deveria ter me mantido firme e te
lhe dito que não. Jocelyn, o que busca é uma amante. Uma relação física,
sem complicações, com uma mulher. Assusta-te a amizade, assusta-te
criar um vínculo emocional. Sua faceta artística te assusta. Assusta-te
enfrentar suas lembranças e admitir que permitiu que arruinassem sua
vida. Assusta-te abandonar sua própria imagem de homem viril. Não
deveria ter te animado a respirar seu eu interior. Não deveria me ter
feito sua amiga. Deveria ter mantido nossa relação no âmbito acordado.
Deveria ter te entretido na cama e te animar a viver o resto de sua vida
fora dos limites desta casa.

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—Ah, sim? —replicou ele com a voz fria— Alguma outra pérola de
sabedoria que queira compartilhar comigo, Jane?
—Não te obrigarei a manter os termos do contrato —seguiu ela—
Seria imoral de minha parte insistir em que me mantenha durante
quatro anos e meio quando nossa relação mal durou uma semana e meia.
É livre. Desde este momento. Amanhã irei. Hoje, se insistir.
Seria melhor que se fosse esse mesmo dia. Partir sem ter tempo para
refletir a respeito. Ir ao hotel Pulteney. Ou procurar os investigadores da
Bow Street no caso de não encontrar o conde.
—Tem razão —repôs ele depois de olhá-la sumido em um longo e
incômodo silêncio— Nosso contrato é nulo. Tem uma falha fatal.
Jane levantou o queixo e nesse momento se deu conta de que até
então desejava com todas suas forças que ele discutisse sua decisão, que
tentasse persuadi-la de que ficasse, que voltasse a ser Jocelyn.
—Acredito que os contratos são nulos se uma das partes utiliza um
pseudônimo — explicou— Não sou um perito em leis. Quincy poderia
assegurá-lo. Mas acredito que tenho razão, Sara.
A princípio não percebeu por tolo que parecesse. Só sentiu uma
terrível frieza no coração. Mas só durou um instante. O nome que tinha
usado pareceu ficar suspenso no ar entre eles, como se o som não tivesse
desaparecido quando o fez sua voz.
Jane se deixou cair em uma poltrona próxima.
—Não me chamo assim —sussurrou.
—Me desculpe —replicou Jocelyn ao mesmo tempo em que
executava uma zombadora reverência— Esqueci que é muito formal
para estas coisas. Deveria ter dito Lady Sara. Melhor assim?
Ela negou com a cabeça.

281
—Não me entendeu. Esse não é meu nome. Meu nome é Jane. —levou
as mãos ao rosto e descobriu que tremiam. Baixou-as ao colo— Como
descobriu?
—Tive uma visita —respondeu— Um investigador da Bow Street.
Conforme me explicou, durante a busca de Lady Sara Illingsworth deu
com o estabelecimento de uma tal madame Laurent, embora tal como o
pronunciou não ficou muito claro o nome. E dá a casualidade de que é
sua antiga patroa, Jane, e também a antiga patroa de Lady Sara. O
investigador chegou a perspicaz conclusão de que são a mesma pessoa.
—Eu ia lhe contar — lhe assegurou, consciente enquanto falava do
pouco convincente que pareciam suas palavras.
—Sério? —Jocelyn agarrou o monóculo e o levou ao olho para
examiná-la com gélido desdém— Sério… Lady Sara? Me perdoe se não
acredito. É a melhor mentirosa que conheci na vida. Assusta-me a
amizade e o vínculo emocional, não? Não deveria ter te convertido em
minha amiga, verdade? Para minha mortificação, fui um tolo. Durante
um tempo, sim. Mas já não. —Soltou o monóculo, que ficou pendurando
de sua fita.
Jane sentiu a tentação de suplicar que acreditasse, de tentar explicar
que depois da intensidade emocional provocada pela confissão que ele
fez duas noites antes, tinha decidido esperar para lhe contar sua própria
história. Mas não acreditaria. Se a situação fosse inversa, ela tão pouco o
faria.
—Sabe onde estou? —perguntou— Me refiro ao investigador da Bow
Street.
—Ontem à noite me seguiu até aqui —respondeu Jocelyn— e esperou
na rua enquanto me agradava no quarto. Não te assuste! Obtive que a
vigilância chegue a seu fim, ao menos no que a este domicílio se refere,
embora não acredito tê-lo enganado. Acredito que é mais inteligente que
o homem que o contratou.

282
—O conde de Durbury segue no hotel Pulteney? —perguntou Jane—
Sabe se segue ali?
—Seguia hospedado nele esta manhã quando fui visitá-lo—
respondeu ele.
De repente, sentiu a pele fria e começou a suar. Ouvia um forte
assobio. O ar que respirava era gélido. Mas não pensava desmaiar. Não
desmaiaria!
—Tranquila, não te traí,Lady Sara — assegurou Jocelyn com os olhos
entrecerrados.
—Obrigado —replicou— Prefiro me entregar a que me capturem. Se
me conceder uns minutos, subirei em busca de minha bolsa de viagem e
irei para que te assegure de que abandono a casa. A menos que o tenha
dito a alguém, não é necessário que se saiba. Suponho que tanto o senhor
Quincy como os criados são discretos. Deve ser uma condição inerente a
seu emprego, não é? Não é necessário que o escândalo te salpique mais
da conta. —ficou em pé.
—Sente-se— ordenou ele.
Disse em voz baixa, mas com tal frieza que Jane o obedeceu sem
pensar.
—É culpada de algumas das acusações que te acusam? —quis saber
Jocelyn.
—Assassinato ou roubo? —Baixou a vista às mãos, que tinha no colo.
A tensão era tal que percebeu com serenidade que tinha os dedos
brancos— O golpeei. Levei dinheiro. Portanto, sou culpada.
—E as joias?
—Um bracelete —respondeu— Está em cima, em minha bolsa.
Não ofereceria explicações, nem desculpas. Já não lhe devia nada. No
dia anterior teria sido distinto. Teria sido seu amigo, seu amante. Nesse
momento já não era nada.
283
—Golpeou-o —repetiu ele— Com um machado? Com uma arma?
—Com um livro —respondeu.
—Com um livro?
—O acertei com um canto na têmpora —aduziu— Estava sangrando
e enjoado. Se tivesse se sentado, não lhe teria acontecido nada. Mas
seguiu me perseguindo e quando me afastei, perdeu o equilíbrio e
golpeou a cabeça contra a lareira. Não estava morto. Ordenei que o
levassem ao quarto e o atendi até que chegou o médico. Quando parti,
estava vivo, embora inconsciente.
Já estava, tinha cedido ao impulso de explicar-lhe. Ainda tinha a vista
cravada nas mãos.
—Seguiu te perseguindo —repetiu Jocelyn em voz baixa— Por que te
perseguia? Porque te surpreendeu roubando?
—Ah, que bobagem! —exclamou com desdém— Porque ia violentar-
me.
—Em Candleford Abbey? —perguntou Jocelyn com voz
desanimada— Na casa de seu pai? Ia violentar à pupila de seu pai?
—Não estavam — explicou— Me refiro aos condes. Partiram durante
uns dias.
—E a deixaram sozinha com Jardine?
—E com uma prima muito anciã como acompanhante. —pôs-se a
rir— À prima Emily gosta do porto. E também gosta de Sidney. Bom,
gostava, no passado. —Sentiu um desagradável nó no estômago—
Sidney a embebedou e a mandou cedo à cama. Aquela noite só estava
alguns amigos dele e seus próprios criados.
—E seus amigos não a defenderam? —quis saber ele— Não se
dignaram dizer a verdade durante a investigação da morte de Jardine?
—Todos estavam bêbados —respondeu— E o animavam.
284
—Não a assustavam as consequências de ter te violado uma vez que
retornasse seu pai? —perguntou Jocelyn.
—Suponho que pensava que eu estaria muito envergonhada para
falar —respondeu ela— Pensava que aceitaria docilmente me casar com
ele. E essa teria sido a solução do próprio conde mesmo que tivesse lhe
contado o acontecido. Isso era o que ambos queriam e tinham repetido
isso até tal ponto que quase estava disposta a enfrenta-los com um
machado.
—Uma noiva reticente —comentou Jocelyn— Sim, Jardine o
encontraria excitante. Sobre tudo se sua beleza se iguala a de uma deusa.
Não conheço muito Durbury, mas não me simpatizou esta manhã. Por
que roubou, fugiu de casa e se manteve oculta sob um pseudônimo? Sua
reação te faz parecer culpada. Parece-me muito pouco característico de
Jane Ingleby. Mas claro, em realidade, ela não existe, verdade?
—Levei quinze libras —particularizou ela— Durante o ano e meio
transcorrido da morte de meu pai, o conde não me concedeu nenhuma
atribuição. Disse-me que em Candleford Abbey não havia nada no que
pudesse gastar o dinheiro. Acredito que me deve muito mais de quinze
libras. O bracelete foi o presente de bodas que meu pai deu a minha mãe.
Ela me deu ele em seu leito de morte, mas disse a meu pai que a
guardasse no cofre com o resto das joias da família. O conde se negou a
me dá-lo ou a reconhecer que era meu. Mas eu sabia a combinação do
cofre.
—Um engano absurdo por sua parte o não tê-lo tido em conta —
assinalou Jocelyn.
—E não fugi de casa —o corrigiu Jane— Estava farta de todos eles.
Vim a Londres para ficar na casa de Lady Webb, a melhor amiga de
minha mãe e minha madrinha. Lorde Webb ia ser meu tutor legal junto
com o primo de meu pai, o novo conde, mas morreu e suponho que meu
pai não se lembrou de nomear outra pessoa. Lady Webb não estava em
casa e não esperavam sua volta breve. E isso foi o que provocou o pânico.
Dei-me conta de que Sidney poderia estar gravemente ferido, que
285
inclusive poderia ter morrido. Dei-me conta de como podia interpretar-
se que tivesse levado o dinheiro e o bracelete. Dei-me conta de que
possivelmente nenhuma testemunha fosse dizer a verdade. Dei-me
conta de que podia estar metida em uma boa confusão.
—Maior desde que decidiu se converter em uma fugitiva —disse
Jocelyn.
—Sim.
—Não havia ninguém em Candleford Abbey ou na vizinhança que
pudesse te ajudar? —perguntou ele.
—O novo conde é primo de meu pai —recordou ela— Sidney é… Era
seu herdeiro. Não havia ninguém o suficientemente poderoso para me
respaldar e meu melhor amigo estava em Somersetshire, visitando sua
irmã, e sua estadia seria prolongada.
—Seu melhor amigo? —perguntou Jocelyn, enfatizando a última
palavra.
—Charles —aduziu ela— Sir Charles Fortescue.
—Seu amigo? —repetiu ele— E pretendente?
Ela elevou a vista para olhá-lo pela primeira vez desde há vários
minutos. A surpresa começava a desaparecer. Jocelyn não tinha direito
a interrogá-la. Ela não tinha a obrigação de responder. Era só sua antiga
amante. E não tinha a menor intenção de aceitar dinheiro pela semana e
meia que tinha ocupado o posto, nem tão pouco pensava levar a roupa
que lhe tinha comprado.
—E pretendente —afirmou ela com firmeza— Pensávamos nos
casar, mas dentro de bastante tempo. Não posso me casar sem o
consentimento do conde até cumprir os vinte e cinco anos. Teríamos nos
casado no dia de meu vigésimo quinto aniversário.
—E já não o farão? —disse Jocelyn enquanto voltava a levar o
monóculo ao olho, mas Jane não estava disposta a deixar-se acovardar.
286
Assim que seu olhar não fraquejou em nenhum momento— Não quererá
casar-se com uma assassina, Senhorita Sara? —burlou-se ele— Que
pouco considerado por sua parte. Não quererá casar-se com uma mulher
que caiu em desgraça? Que pouco cavalheiresco.
—Sou eu quem não quer casar-se com ele —disse ela com firmeza.
—Parece-me muito bem —replicou Jocelyn com brutalidade— As
leis de nosso país proíbem a bigamia… Lady Sara.
Jane desejou que deixasse de chamá-la dessa forma.
—Bigamia? —perguntou.
Teria se casado Charles com alguma dama que acabou de
conhecer?Pensou bobamente, sem perguntar-se sequer como teria se
informado o Duque de Tresham dessa notícia em caso de que fosse certa.
—Sir Charles Fortescue não poderá casar-se com minha esposa
porque a lei o impedirá —precisou Jocelyn— Espero e desejo que não
sofra um reverso sentimental importante, embora não o vi chegar a
Londres a toda pressa para remover céus e terra a fim de te encontrar e
te abraçar contra seu peito. Espero que você tão pouco sofra um reverso
sentimental, embora sinceramente, não posso dizer que me importe
muito.
Jane ficou em pé.
—Sua esposa? —repetiu com os olhos totalmente abertos pela
surpresa— Sua esposa? Que disparate! Acha-se na obrigação de me
propor matrimônio porque descobriu de repente que sou Lady Sara
Illingsworth, de Candleford Abbey, e não Jane Ingleby, criada em algum
orfanato?
—Eu não poderia expressá-lo melhor —repôs ele.
—Não sei que planos tem para o resto da tarde —soltou Jane com
sarcasmo sem deixar de olhar sua expressão fria e cínica, consciente da
total indiferença que Jocelyn sentia por ela como pessoa— mas eu tenho
287
que fazer algo de suma importância. Tenho que fazer uma visita ao hotel
Pulteney. Se me desculpar… —Se voltou com determinação para a porta.
—Sente-se —disse Jocelyn em voz baixa, como antes.
Jane deu meia volta para enfrentá-lo.
—Não sou sua criada, sua graça —lhe recordou, empregando o título
de cortesia— Não sou…
—Sente-se! —exclamou, embora falasse inclusive mais baixo que
antes.
Jane o olhou em silêncio durante um instante antes de cruzar a
estadia e deter-se a escassa distância dele.
—Repito que não sou sua criada. Se tiver que me dizer algo mais,
diga-o e deixa toda esta formalidade tão ridícula. Meus ouvidos
funcionam perfeitamente quando estou de pé.
—Minha paciência tem um limite —advertiu ele, estreitando os olhos
de forma ameaçadora.
—Pois a minha está mais que esgotada —repôs Jane, que retornou à
porta.
—Lady Sara —a chamou ele com voz tão gélida que a deteve sem
mais— Vamos deixar uma coisa muito clara. Dentro de pouco, em alguns
dias no máximo, será a duquesa de Tresham. Seus desejos pessoais não
contam absolutamente. Importam-me bem pouco. Vai ser minha esposa.
E passará o resto de sua vida se arrependendo do dia que nasceu.
Se não estivesse tão furiosa, Jane teria começado a rir. Tal como
estavam às coisas, tomou seu tempo para sentar-se na poltrona mais
próxima e, depois de arrumar a saia, olhou-o aos olhos cuidando muito
de fazê-lo com expressão distante.
—Que ridículo te põe quando decide adotar a pose de aristocrata
arrogante e pretensioso —soltou enquanto unia as mãos no colo e
apertava os lábios. Preparou-se para a iminente batalha.
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Capítulo 21

289
Surpreendeu-se pela intensidade do ódio que sentia por ela. Jocelyn
nunca tinha odiado a ninguém, exceto talvez a seu pai. Nem sequer a sua
mãe. Não se podia odiar quando não se sentia nada por ninguém. Quisera
pudesse sentir só indiferença por Lady Sara Illingsworth.
Quase o obtinha quando pensava nela por esse nome. Mas seus olhos
viam Jane Ingleby.
—Não estará obrigada a ver seu ridículo marido muito
frequentemente, como te aliviará saber —disse— Viverá em Acton Park,
e já sabe o carinho que tenho por minha casa rural. Me verá uma vez ao
ano mais ou menos, quando for necessário para que fique grávida. Se for
muito aplicada, terá dois filhos varões nos dois primeiros anos de
matrimônio e eu poderei considerar que a sucessão está mais que
assegurada. Se for incrivelmente inteligente, é obvio, já estará grávida.
—levou o monóculo ao olho e olhou seu ventre com ele.
Os lábios de Jane já tinham executado seu conhecido truque de
desaparecimento. Alegrava-se de que tivesse conseguido recuperar a
compostura. Durante um momento a tinha visto muito branca,
estremecida e deprimida. Quasesentiu lástima. Nesse instante, Jane o
fulminava com seus olhos azuis.
—Se esquece de uma coisa —repôs ela— As mulheres não são umas
completas escravas em nossa sociedade, embora estejam perigosamente
perto de sê-lo. Tenho que dizer «Sim, quero» ou o que seja que dizem as
noivas para dar seu consentimento ao matrimônio. Pode me arrastar ao
altar (aceito que é muito mais forte que eu), mas sofrerá uma vergonha
espantosa quando me negar a dar meu consentimento.
Jocelyn era consciente de que a relutância de Jane deveria satisfazê-
lo. No entanto, Jane o tinha enganado, tinha-o humilhado e o tinha feito
ficar como um tolo. De modo que não pensava lhe permitir impor sua
vontade nesse assunto em concreto.
—Além disso —acrescentou ela— ainda não sou maior de idade. E
segundo o testamento de meu pai não posso me casar com menos de
290
vinte e cinco anos sem o consentimento de meu tutor legal. Se o fizer,
perderei minha herança.
—Herança? —Arqueou as sobrancelhas.
—Tudo o que meu pai possuía exceto Candleford Abbey que estava
vinculada ao título, que obviamente não posso herdar —explicou ela—
Suas outras propriedades, sua fortuna… Tudo, de fato, será meu quando
fizer vinte e cinco anos, ou de meu marido se me casar com o
consentimento de meu tutor antes dessa idade.
O que explicava muitas coisas é obvio. Durbury possuía o título,
Candleford Abbey e o controle de todo o resto nesse momento. Se podia
convencer Lady Sara para que se casasse com alguém de sua família,
teria controle permanente… Ou se conseguia lhe fazer a vida tão
impossível para que fugisse com outro homem antes de cumprir os vinte
e cinco.
—Suponho que se não cumprir com o testamento, Durbury herdará
tudo.
—Sim.
—Que herde tudo —replicou com secura— Sou muito rico. Não
necessito que minha esposa contribua com sua fortuna.
—Suponho que se me condenarem por assassinato, me deserdarão.
Talvez inclusive mo… Morra. Mas enfrentarei ao que o destino tenha me
preparado. E não me casarei com ninguém, seja qual seja o resultado.
Nem com Charles. Nem contigo. A menos até que cumpra os vinte e cinco
anos. Depois verei se me caso ou não, é minha decisão. Serei livre. Estarei
morta, encarcerada ou deportada, ou serei livre. Essas são as
alternativas. Não serei a escrava de nenhum homem sob a condição de
esposa. Muito menos a tua.
Jocelyn a olhou em silêncio. Ela não afastou a vista, é obvio. Era uma
das poucas pessoas que aguentavam seu escrutínio. Tinha o queixo

291
elevado. Um brilho resistente nos olhos, e os lábios apertados em uma
linha obstinada.
—Deveria ter me dado conta antes —disse, mais para si mesmo do
que para ela— Desse gélido vazio que tem na alma. É sexualmente
apaixonada, mas o sexo é um ato carnal. Não chega ao coração. Tem a
estranha habilidade de te abrir às confidências dos outros. Projeta uma
imagem de compaixão e empatia. Limita-te a receber e receber, não
é?Como uma criatura de sangue-frio que se esquenta com o sangue de
suas vítimas. De fato, é difícil dar-se conta de que não dá nada em troca.
Jane Ingleby, bastarda de algum cavalheiro sem nome, educada em
algum orfanato de excelente qualidade. Isso é o único que me deu:
mentiras. E seu corpo de sereia. Estou cansado de discutir contigo.
Tenho que fazer umas visitas, mas voltarei. E ficará aqui até que o faça.
—Te fiz mal —reconheceu ela ao mesmo tempo em que ficava em
pé— Te alegrará saber que já se vingou. Se meu coração não era gélido
antes, agora é.Me entreguei a você uma e outra vez do mais profundo de
minha alma porque sua necessidade era enorme. Não tive a
oportunidade de pedir nada para mim, de pedir o consolo de sua
compreensão, de sua compaixão e de sua amizade. Não houve tempo, só
uma semana que terminou abruptamente ontem. Vê. Eu também estou
cansada. Quero estar sozinha. Sente-se traído? —perguntou— Pois eu
também.
Nessa ocasião quando Jane se virou para partir, não a deteve. Viu-a
afastar-se. E seguiu onde estava um bom momento.
Doía-lhe o coração.
Esse coração cuja existência tinha ignorado.
Não podia confiar nela. Não confiaria nela. Não voltaria a fazê-lo.
Tinha-a traído? Tinha-lhe dado Jane compaixão, amizade e amor
depois de tudo? Tinha tido a intenção de lhe despir sua alma da mesma
maneira que ele tinha despido a sua?

292
Jane.
Lady Sara Illingsworth.
Ai, Jane!Exclamou em silêncio.
Saiu da estadia e da casa. Quando já se achava bastante longe,
recordou que lhe tinha ordenado ficar no domicílio até sua volta. No
entanto, Jane não era das que aceitavam as ordens com submissão.
Deveria tê-la obrigado a prometer-lhe, deveria ter pensado nisso!
Não obstante, seria estranho que abandonasse a casa nessas
circunstâncias. Certamente que o esperava.
Jocelyn não voltou.

No caso de que Lady Webb se surpreendeu quando seu mordomo


ofereceu a bandeja dos cartões e informou, antes que pudesse ler que
anunciava seu visitante, que o Duque de Tresham estava no vestíbulo do
primeiro andar solicitando a honra de que lhe concedesse uns minutos,
não o demonstrou quando o viu aparecer. A dama se levantou de uma
pequena escrivaninha, onde ao que parecia estava escrevendo umas
cartas.
—Tresham? —saudou-o com educação.
—Senhora. —Jocelyn fez uma elegante reverência— Agradeço que
me conceda uns minutos.
Lady Webb era uma viúva elegante de uns quarenta anos a quem só
conhecia de vista. Movia-se em um círculo muito mais refinado dos que
ele estava acostumado a frequentar. Sentia um enorme respeito por ela.
—Sente-se—o convidou Lady Webb, que assinalou uma poltrona
enquanto ela tomava assento em um sofá próximo— e me conte o que o
traz por aqui.

293
—Acredito que conhece Lady Sara Illingsworth —disse ele ao mesmo
tempo em que se sentava.
Viu-a arquear as sobrancelhas e olhá-lo com expressão ardilosa.
—É minha afilhada —explicou ela— Tem notícias dela?
—Esteve trabalhando em Dudley House como minha enfermeira
durante três semanas —respondeu— depois que me dispararam em
uma perna durante um… Isto… Um duelo. Descobriu-nos no Hyde Park
enquanto se celebrava. Ia a caminho de uma oficina de costura para
trabalhar. Estava usando um pseudônimo, é obvio.
Lady Webb nem sequer se moveu.
—Segue em Dudley House? —perguntou.
—Não, senhora. —Jocelyn se apoiou no respaldo da poltrona. Estava
experimentando um desconforto terrível, uma sensação relativamente
desconhecida para ele— Não descobri sua verdadeira identidade até
que um investigador da Bow Street veio ver-me ontem. A conhecia como
senhorita Jane Ingleby.
—Ah, Jane —disse Lady Webb— Assim é como estavam acostumados
a chamá-la seus pais. É seu segundo nome.
Por tolo que parecesse, agradou-lhe escutar isso. Era Jane de verdade,
tal como lhe tinha assegurado.
—Deve entender que era uma criada —continuou— Esteve
trabalhando temporariamente para mim.
Lady Webb meneou a cabeça e suspirou.
—E não sabe aonde foi —disse— Eu tão pouco. Por isso veio? Porque
se indignou ao saber que o enganaram e esteve encobrindo uma
fugitiva? Se soubesse onde está, Tresham, não o diria. Nem tão pouco ao
Conde de Durbury. —Pronunciou o nome com desprezo.

294
—Isso quer dizer que não acredita que seja culpada de nenhuma dos
crimes que a acusam?
Viu-a soprar, embora fosse seu único indício de emoção. Lady Webb
estava sentada com as costas muito retas, sem tocar o respaldo, embora
com uma pose elegante. Dita postura recordou a de Jane: a pose de uma
dama.
—Sara não é uma assassina —declarou a mulher com firmeza— nem
uma ladra. Apostaria minha fortuna e minha reputação. O conde de
Durbury queria casá-la com seu filho, a quem ela despreza acima de
tudo, como a moça sensata que é. Eu tenho uma teoria a respeito de
como Sidney Jardine encontrou seu fim. Se apoiar Durbury e veio com a
esperança de que lhe conte mais do que disse a ele há uns dias, está
desperdiçando seu tempo e o meu. Terei que pedir que se vá.
—Acredita que está morto? —perguntou Jocelyn com os olhos
entrecerrados.
Lady Webb o olhou.
—Jardine? —disse ela— Por que ia dizer seu pai que está morto se
não fosse assim?
—Ele disse isso? —insistiu Jocelyn— Ou só se limitou a não
contradizer o rumor que circula pelos salões e os clubes londrinos?
A dama o olhava fixamente.
—Por que veio? —quis saber ela.
Jocelyn levava todo o dia perguntando-se o que responderia a essa
pergunta. Não tinha chegado a uma conclusão satisfatória.
—Sei onde está —respondeu— Encontrei-lhe outro trabalho quando
partiu de Dudley House.
Lady Webb ficou em pé imediatamente.

295
—Na cidade? —perguntou— Me Leve até ela. A trarei para minha
casa e lhe oferecerei refúgio enquanto meu advogado investiga as
ridículas acusações que pesam contra ela. Se suas suspeitas forem certas
e Sidney Jardine segue vivo… Enfim. Onde está?
Jocelyn também se pôs em pé.
—Está na cidade, senhora —assegurou— A trarei. A teria trazido
comigo agora, mas tinha que me assegurar de que encontraria um
refúgio seguro nesta casa.
De repente, a dama o olhou com expressão suspicaz.
—Tresham —disse como ele temia que fizesse— que outro trabalho
procurou para Sara?
—Deve entender senhora —disse com secura— que me deu um
nome falso. Disse-me que tinha crescido em um orfanato. Era evidente
que tinha recebido uma boa educação, mas pensei que estivesse
desamparada e sem amigos.
Lady Webb fechou os olhos um instante, mas não relaxou sua tensa
postura.
—Traga-a para mim— ordenou— E que venha acompanhada por
uma donzela ou por uma dama de companhia respeitável.
—Sim, senhora —acessou— É obvio, considero-me comprometido
com Lady Sara Illingsworth.
—É obvio. —Os olhos de Lady Webb o atravessavam com certa
frieza— Parece-me uma triste ironia que tenha escapado de um canalha
para cair nas garras de outro. Traga-a para mim.
Jocelyn lhe fez uma reverência e resistiu ao impulso de adotar sua
habitual expressão cínica e arrogante. Ao menos essa mulher tinha
integridade suficiente para não esfregar as mãos de contentamento ao
pensar que sua afilhada tinha fisgado o Duque de Tresham.

296
—Que seu advogado comece a trabalhar, senhora —disse—
Enquanto isso farei o necessário para limpar o nome de minha
prometida e para libertá-la das amarras de um tutor inadequado. Bom
dia.
Deixou-a de pé e muito erguida, com porte orgulhoso e hostil, no meio
do salão. Uma pessoa em cujas mãos Jane estaria a salvo. Uma amiga por
fim.

Jane ficou em seu quarto uma hora inteira depois que Jocelyn partiu,
mas se limitou a sentar-se no tamborete da penteadeira, com os pés
juntos no chão, as mãos apertadas no colo e os olhos fixos no tapete, sem
vê-las sequer.
Depois ficou em pé e tirou a roupa, tudo o que tinha comprado com o
dinheiro de Jocelyn. Tirou do armário seu simples vestido de musselina,
a prática regata e as meias que levava quando chegou a Londres, e se
vestiu de novo. Escovou o cabelo e fez uma trança muito apertada para
poder ocultá-la sob o gorro cinza. Colocou a capa a jogo com este,
colocou os pés em seus antigos sapatos, as luvas negras e esteve
preparada para partir. Pegou a bolsa com seus escassos pertences (e o
muito valioso bracelete) e saiu em silêncio de seu quarto.
Por desgraça, Phillip estava no corredor do primeiro andar. Olhou-a
surpreso. Nunca tinha saído antes, é obvio, e levava um traje muito
simples.
—Vai sair senhora? —perguntou, embora não importava.
—Sim. —Sorriu— Só vou dar um passeio e tomar ar, Phillip.
—Sim, senhora. —apressou-se a lhe abrir a porta e olhou com
expressão hesitante sua bolsa— Se Sua Graça voltar, aonde lhe digo que
foi, senhora?
—Diga que fui dar um passeio. —Manteve o sorriso ao cruzar a
soleira. Imediatamente sentiu o pânico de quem teme cair de um
297
precipício. Deu um passo firme para diante— Suponho que sabe que não
sou uma prisioneira.
—Não, claro que não, senhora —se apressou a dizer Phillip—
Desfrute do passeio, senhora.
Queria dar a volta e despedir-se dele como era devido. Era um jovem
amável sempre disposto a agradar. Mas se limitou a seguir caminhando
enquanto escutava o som da porta ao fechar-se.
Como a de uma prisão.
Deixando-a fora.
Talvez fosse produto de seus destroçados nervos, é obvio, pensou
enquanto percebia, menos de cinco minutos depois, que a estavam
seguindo. Mas não ia voltar-se para olhar. Tão pouco ia apertar o passo…
Nem andar mais devagar. Caminhou pela calçada com passo firme, as
costas retas e o queixo elevado.
—Lady Sara Illingsworth? Boa tarde, milady.
A voz, bastante agradável, sem uma nota mais alta que outra,
procedia de um lugar muito perto, a suas costas. Jane teve a sensação de
que uma serpente lhe subia pelas costas. O pânico afrouxou seus joelhos
e revolveu seu estômago. Deteve-se e virou-se muito devagar.
—Suponho que é um dos investigadores da Bow Street —aventurou
com voz igualmente educada. Embora o homem não parecesse. Nem era
alto, nem forte, de fato, parecia um pobre imitando um dândi.
—Sim, senhora. A seu serviço —disse o investigador sem afastar a
vista dela, e sem lhe mostrar o devido respeito.
Isso queria dizer que Jocelyn se equivocou. Não tinha conseguido que
deixassem de vigiar a casa. Havia descrito o investigador como um
homem ardiloso, mas não percebeu que era muito para acatar a ordem
de afastar-se de sua presa quando sabia que estava perto.

298
—Vou facilitar-lhe o trabalho —disse, surpreendendo-se pela
moderação de sua voz. De fato, era surpreendente como o medo recuava
uma vez que enfrentava suas circunstâncias— Dirijo-me ao hotel
Pulteney pra ver o conde de Durbury. Pode me acompanhar até ali e
reclamar a glória de ter me detido se o deseja. Mas não se aproxime mais,
nem me toque. Se o fizer, gritarei com todas minhas forças. Há muitas
carruagens e pedestres à vista. Inventarei qualquer desculpa para fazer
que minha audiência acredite que está me seguindo e incomodando.
Está de acordo?
—Verá senhora —respondeu o investigador, com uma voz que
parecia agradável e afligida— a coisa é assim: Mick Boden não permite
que os criminosos lhe escapem quando os tem à vista. Não cometo a
tolice de deixá-los soltos só porque são damas e tem um pouco de ouro.
E não faço acordos com os criminosos. Pode me acompanhar em silêncio
depois que amarre suas mãos debaixo da capa, e não vai ficar em
ridículo. Sei que às damas não gostam que as envergonhem em público.
Talvez o homem fosse ardiloso, mas certamente não era inteligente.
Deu um passo firme para ela ao mesmo tempo em que colocava uma mão
em um bolso interior. Jane abriu a boca e soltou um chiado…Seguido de
outro. Inclusive surpreendeu a si mesma. Jamais tinha chiado, nem
sequer quando menina. O investigador pôs cara de surpresa, e de
assombro. Tirou a mão do bolso com uma parte de corda.
—Vamos, não há necessidade de ficar assim —disse o homem com
brutalidade— Não vou a…
No entanto, Jane nunca descobriu o que não ia fazer. Dois cavaleiros
se aproximaram a trote e desmontaram de seus cavalos. Uma carruagem
de aluguel se deteve de repente do outro lado da rua e seu corpulento
chofer desembarcou da boleia enquanto gritava a um varredor que
segurasse os cavalos. Um casal de anciões de meia idade e aspecto
respeitável, que tinha passado junto a Jane há um instante, voltou-se e
se aproximou dela a toda pressa. Um tipo muito gigante, que tinha pinta
de ser um púgil, materializou-se de um nada e tinha agarrado Mick
299
Boden por trás, segurando seus braços aos lados. Foi isso o que fez que
o investigador deixasse a frase na metade.
—Acossou-me —informou Jane aos salvadores que se congregaram
a seu redor— Ia atar-me com isso —disse ao mesmo tempo em que
assinalava a corda com um dedo que tremia de verdade— e me
sequestrar.
Todos falaram de uma vez. O púgil se ofereceu para apertar mais
forte até que ao vilão saísse o estômago pela boca. O chofer sugeriu levá-
lo em sua carruagem até o magistrado mais próximo, onde certamente o
condenariam à forca. Um dos cavaleiros assegurou que seria uma pena
que um ser tão desprezível fosse enforcado antes de recompor a cara. O
ancião cavalheiro não sabia por que um valentão de aspecto tão tétrico
podia perambular pelas ruas de uma cidade civilizada, aterrorizando as
mulheres. Sua esposa apertou um braço de Jane por cima dos ombros,
com gesto maternal, e estalou a língua com preocupação e indignação.
Mick Boden tinha recuperado a compostura embora fosse impossível
soltar-se.
—Sou um investigador da Bow Street —anunciou com voz
autoritária— Ia capturar uma infame ladra e assassina, e lhes sugiro que
não se intrometam, nem entorpeçam o trabalho da justiça.
Jane elevou o queixo.
—Sou Lady Sara Illingsworth —repôs, indignada, com a esperança de
que nenhum dos presentes tivesse ouvido falar dela— Vou a caminho
para visitar meu primo e tutor legal, o Conde de Durbury, que se hospeda
no hotel Pulteney. Se zangará muito comigo quando lhe confessar que
saí sem minha donzela. Mas a pobre moça está doente com um resfriado.
Deveria ter me acompanhado um criado, é obvio, mas não sabia que
havia homens desesperados que acossam as damas inclusive a plena luz
do dia. —tirou um lenço do bolso e o levou a boca.
Mick Boden a censurou com o olhar.

300
—Vamos, não há necessidade de tudo isto —disse.
—Venha querida —disse a anciã ao mesmo tempo em que se
agarrava a seu braço— A acompanharemos para que chegue sã e salva
ao hotel Pulteney, verdade, Vernon? Não está muito longe de nosso
destino.
—Vá milady —lhe disse um dos cavaleiros— Sabem onde encontrá-
la se for necessário que preste declaração. Mas eu me inclino por
economizar trabalho à justiça sem incomodar um magistrado. Parta.
—Um momento —protestou Mick Boden enquanto Jane aceitava o
braço do ancião e punha-se a andar pela calçada, protegida e flanqueada
pelo cavalheiro e sua esposa.
Em outras circunstâncias, a Jane teria feito graça à cena. Mas nesse
momento sentia uma mescla de audácia (por fim estava fazendo algo) e
de medo. Esse homem ia atar suas mãos.
Agradeceu do fundo de seu coração a seus acompanhantes quando
chegaram às portas do hotel Pulteney, e prometeu que jamais voltaria a
cometer a insensatez de passear pelas ruas de Londres sozinha. Tinham
sido tão amáveis com ela que se sentia mal por tê-los enganado. Embora,
é obvio, não era nenhuma ladra e nem assassina. Entrou no hotel.
Após alguns minutos bateu na porta da suíte do conde de Durbury,
depois de ter declinado o oferecimento de anunciar sua visita enquanto
ela esperava no saguão da recepção. Reconheceu o valete de seu primo,
Parkins, que foi quem abriu a porta e a reconheceu.Ficou boquiaberto,
uma expressão muito pouco elegante. Jane deu um passo à frente sem
dizer nada e o homem se separou de um salto.
Encontrou na espaçosa e refinada sala de estar da suíte. O conde
estava sentado na escrivaninha, de costas à porta. Muito a seu pesar, o
coração pulsava frenético no peito e na garganta, e troava seus ouvidos.
—Quem era Parkins? —perguntou ele sem voltar-se.
—Olá, primo Harold —o saudou ela.
301
Jocelyn não queria perder tempo em levar Jane à casa de Lady Webb.
De fato, não podia ficar nem um minuto mais que o necessário onde
estava. Pediria à senhora Jacobs que a acompanhasse em sua carruagem.
No entanto, para conseguir sua carruagem tinha que atravessar o
Hyde Park. E foi enquanto atravessava o parque quando topou com uma
cena muito interessante. Um numeroso grupo de cavaleiros se
encontrava um pouco afastado do caminho que ele transitava, e vários
deles falavam e gesticulavam agitados.
Estava preparando-se uma briga, pensou. Em circunstâncias normais
não teria duvidado em aproximar-se e descobrir do que se tratava, mas
esse dia tinha assuntos muito mais importantes a atender, e teria
passado direto se não tivesse reconhecido um dos cavalheiros que mais
gesticulavam: seu irmão.
Ferdinand em uma briga? Estaria se metendo em uma confusão que
seu temperamento Dudley não lhe permitiria sair até que já fosse muito
tarde? Enfim, o único que podia fazer, decidiu Jocelyn com um suspiro
resignado, era aproximar-se e lhe oferecer apoio moral.
Sua chegada foi percebida primeiro pelos que não estavam
participando da buliçosa briga, mas depois também o perceberam seus
participantes. A multidão se voltou ao uníssono para vê-lo chegar,
apoderando-se dela um curioso silêncio.
O motivo de tudo ficou patente para Jocelyn quase imediatamente.
Por fim estavam ali, os cinco juntos: os irmãos Forbes. Apavorados, sem
dúvida, de deixar-se ver em qualquer parte de Londres separados, esse
dia estavam projetando uma frente unida ante o mundo.
—Tresham! —exclamou Ferdinand. Olhou aos Forbes com expressão
triunfal— Agora veremos quem é o bastardo covarde!
—Valha-me Deus! —Jocelyn arqueou as sobrancelhas— Quem esteve
usando uma linguagem tão escandalosa e vulgar, Ferdinand? Não sabe o
302
aliviado que me sinto de não estar presente para escutá-lo. E quem, se
me permite perguntar, era o destinatário de tão crítica descrição?
Embora fosse um chato no púlpito, o reverendo Josiah Forbes, que
assim se chamava, não era um canalha assustadiço e dado a esconder-
se. Açulou o cavalo sem titubear até que seu joelho quase tocou o de
Jocelyn, tirou com muita pompa a luva direita e disse:
—Pois é você, Tresham. Um bastardo covarde e também um
corruptor da virtude conjugal. Vai ter que enfrentar a mim, se quer
rebater estas acusações.
Inclinou-se para diante e acertou a bochecha de Jocelyn com a luva.
—Encantado—repôs Jocelyn com enfastiada arrogância— Seu
padrinho pode reunir-se com Sir Conan Brougham quando o estimar
conveniente.
O lugar do reverendo Forbes foi ocupado a seguir pelo Capitão
Samuel Forbes, esplêndido com seu uniforme escarlate regular, e entre
o murmúrio excitado dos espectadores Jocelyn se deu conta de que os
outros irmãos Forbes faziam fila atrás dele, tremendo de forma evidente.
Bocejou com delicadeza atrás de uma mão.
—Terá que enfrentar a mim pela honra de minha irmã, Tresham —
disse o capitão Forbes, antes de acertar a mesma bochecha ducal com
sua luva.
—Se o destino me permitir isso —lhe recordou Jocelyn com
suavidade— Mas deve entender que se seu irmão esparramar meus
miolos no campo de honra antes de poder ir a nossa entrevista, serei
obrigado a declinar seu convite… Ou ao menos Brougham o fará em meu
nome a título póstumo.
O Capitão Forbes afastou seu cavalo e ao que parecia passou a vez a
Sir Anthony Forbes. No entanto, Jocelyn levantou uma mão para detê-lo
e olhou um a um os restantes irmãos com estudado desdém.

303
—Devem me perdoar —disse suavemente— Sinto-me na obrigação
de rejeitar a oportunidade de me encontrar com algum de vocês em um
campo de honra. Não há honra em tentar castigar um homem sem
desafiá-lo primeiro cara a cara. E tenho como norma pessoal me bater a
duelo só com cavalheiros. Não tem nada de cavalheiresco ter tentado
ferir um homem matando seu irmão.
—E o ardil não está livre de riscos —acrescentou Ferdinand,
furioso— quando dito irmão pode contá-lo para vingar essa covardia em
pessoa.
O crescente círculo de espectadores prorrompeu em aplausos.
—Meus punhos serão seu castigo aqui e agora —continuou Jocelyn
ao mesmo tempo em que assinalava os três irmãos restantes com a
vara— embora sugira que o transfiramos a um lugar mais afastado. Nos
enfrentaremos todos de uma vez. Poderão defender-se porque eu sim
sou um cavalheiro e não penso me aproveitar de vocês os impedindo de
lutar como os canalhas e covardes que são. Mas não haverá regras, nem
tão pouco padrinhos. Isto não é um campo de honra.
—Nossa Tresham! —exclamou Ferdinand com alegre entusiasmo—
Bem dito. Mas seremos dois contra três. A final, também é minha briga e
não penso permitir que me prive da satisfação de dividir o castigo. —
Desmontou enquanto falava e conduziu seu cavalo para o arvoredo que
Jocelyn tinha apontado. Ao outro lado havia um prado, mas não atalhos,
de modo que os cavaleiros e pedestres que frequentavam o parque
durante o dia raramente o pisavam.
Os três irmãos Forbes, tal como Jocelyn tinha suspeitado, não podiam
evitar o enfrentamento sem ficar em ridículo. Os outros cavalheiros os
seguiram de perto, encantados pela inesperada oportunidade de ver
uma briga no Hyde Park, nada menos.
Jocelyn tirou a jaqueta e o colete enquanto seu irmão fazia o mesmo
junto a ele. Depois entraram no anel de gramado que se formou graças à
multidão de conhecidos que queriam presenciar a briga.
304
Era uma luta muito desigual, descobriu Jocelyn com certa decepção e
desprezo aos dois minutos de começar. Wesley Forbes gostava de
utilizar sua bota e saltava à vista que esperava desarmar seus oponentes
com um chute bem dado a cada um. Por desgraça para ele, Ferdinand,
que tinha muito bons reflexos, apanhou seu pé no ar com ambas as mãos
como se fosse uma bola e o fez perder o equilíbrio enquanto utilizava
suas pernas, grandemente mais longas, para lhe acertar no queixo.
A partir desse momento, e ao clamor dos vivas entusiasmados da
maioria dos espectadores, reduziu-se a dois contra dois.
Sir Anthony Forbes, que tinha conseguido acertar um murro no
estômago de Jocelyn por pura casualidade, tentou devolver golpe por
golpe durante um tempo, mas logo começou a queixar-se de que era
injusto que lutasse com ele quando tinha sido Wes quem manipulou o
tílburi.
A multidão começou a aclamar.
—Nesse caso talvez seja justiça poética —replicou Jocelyn enquanto
assaltava as defesas de Sir Anthony e esperava mais do que era
necessário antes de dar o golpe de graça— que vá castigar o irmão
errado.
Ao final lhe acertou um gancho de esquerda seguido de um de direita
que o golpeou no queixo, e fez com que seu oponente caísse ao chão
como um pau golpeado por uma bola de críquete.
Enquanto isso Ferdinand estava usando o estômago de Joseph Forbes
como saco de boxe. No entanto, ao escutar os vivas que se produziram
quando Sir Anthony caiu ao chão, terminou o encontro com um murro à
cara do homem. Os joelhos de Joseph cederam até que rodou pelo chão
ao mesmo tempo em que agarrava o nariz sangrando. Não tentou
levantar-se.
Jocelyn se aproximou dos outros dois irmãos, que o tinham
observado em silêncio. Saudou-os com uma inclinação de cabeça
bastante respeitosa.
305
—Esperarei notícias de Sir Conan Brougham —disse.
Ferdinand, sem uma marca aparente no corpo, estava colocando a
jaqueta e pôs-se a rir com jovialidade.
—Quisera tivessem sido os cinco de uma vez —comentou— mas não
se deve ser ganancioso. Bem feito, Tresham. Grande inspiração. Nada de
duelos para estes três, a não ser um simples castigo. E uma audiência o
bastante grande para que se fale do assunto durante semanas.
Recordamos a todos as consequências de irritar um Dudley. Vem ao
White’s?
Mas Jocelyn acabava de perceber todo o tempo que tinha perdido
com esse encontro.
—Talvez depois —respondeu— Agora tenho que me ocupar de algo
de vital importância. —Olhou com expressão pensativa seu irmão ao
mesmo tempo em que despachava com um gesto da mão os cavalheiros
que teriam se aproximado para felicitá-los e montou em seu cavalo—
Mas sim há algo que pode fazer por mim, Ferdinand.
—O que seja. —Seu irmão parecia surpreso e encantado de uma vez.
Jocelyn não estava acostumado a lhe pedir favores.
—Pode fazer que corra a voz, com sutileza —acrescentou— é obvio,
que foi descoberto que a senhorita Jane Ingleby, minha antiga
enfermeira e o principal entretenimento musical de meu jantar, é em
realidade Lady Sara Illingsworth. Que a encontrei por acaso e que a levei
a casa de Lady Webb. Que está prestes a demonstrar que todos os
rumores que circulam sobre ela são exagerados e sem fundamento,
como está acostumado a acontecer nestes casos.
—Oh! —Ferdinand parecia muito intrigado— Como descobriu
Tresham? Como a encontrou? Como…?
Não obstante, Jocelyn levantou a mão para silenciá-lo.
—Fará? —quis saber— Há algum evento importante esta noite? —
Era lamentável quão absorto estava em suas coisas.
306
—Um baile —respondeu Ferdinand— O de Lady Wardle. Certamente
que estará muito concorrido.
—Pois deixa-o cair aí —sugeriu Jocelyn— Só tem que mencioná-lo
uma só vez. Duas para te assegurar. Mas nenhuma mais.
—O que…? —começou Ferdinand, mas Jocelyn levantou a mão de
novo.
—Depois —o interrompeu— Tenho que levá-la a casa de Lady Webb.
A coisa vai estar difícil, Ferdie. Mas conseguiremos.
Era muito agradável, pensou enquanto se afastava a cavalo, ter
descoberto que seu irmão também podia ser um amigo, tal como foram
quando meninos.
De modo que tinha que enfrentar a dois duelos mais… Depois de ter-
se encarregado desse chato assunto com Jane. Se mostraria tão contrária
que a acompanhasse a casa de Lady Webb como se mostrou antes por
todo o resto com tal de manter-se fiel a seus princípios? Perguntou-se.
Que mulher mais exasperante!

307
Capítulo 22

O conde de Durbury se virou, com os olhos totalmente arregalados


pela surpresa.
—Então—disse ao mesmo tempo em que ficava em pé— assim por
fim saiu de sua toca, não é, Sara? Foi por culpa do investigador da Bow
Street? Onde está?
—Não estou muito segura —respondeu enquanto entrava na estadia
para deixar as luvas e o chapéu em um console— O grupo de homens
que impediu que me sequestrasse não tinha decidido ainda o que fazer
com ele quando continuei para aqui. Vim vê-lo voluntariamente. Para te
dar o pêsames. E para te perguntar o que acha que está fazendo ao
colocar um investigador da Bow Street às portas de minha casa como se
fosse uma vulgar criminosa.
—Ah—disse o conde— Quer dizer que estava certo, não? Deveria tê-
lo sabido. É uma prostituta, a prostituta de Tresham.
Jane não fez conta.

308
—Contratou um investigador da Bow Street —repôs— que teria
criado um escândalo ao me trazer a força e com as mãos atadas, e que
me chamou de ladra. Por favor, me diga o que roubei que seja teu e não
meu. E também me chamou de assassina. Em que sentido tenho
responsabilidade criminal pela morte de Sidney quando caiu e golpeou
a cabeça em seu afã por me violentar a fim de me obrigar a me casar com
ele? Estava vivo quando parti de Candleford Abbey. Ordenei que o
levassem a seu quarto. Eu mesma cuidei dele até que chegou o médico
que mandei chamar. Sinto muito se apesar de tudo morreu. Não
desejaria a morte nem sequer a uma criatura tão desprezível como
Sidney. Mas ninguém pode me considerar responsável. Se quiser tentar
que me condenem por seu assassinato, não posso impedir isso. Mas te
advirto que só conseguirá fazer ridículo aos olhos do público.
—Sempre teve uma língua descarada e viperina, Sara —disse seu
primo, que uniu as mãos à costas e a fulminou com o olhar— Já veremos
o que tem mais peso para um jurado, se a palavra do Conde de Durbury
ou a de uma prostituta vulgar.
—Aborrece-me, primo Harold —replicou ao mesmo tempo em que
se sentava na poltrona mais próxima, com a esperança de que o tremor
de suas pernas não fossa evidente— Eu gostaria de tomar uma xícara de
chá. Chama você ao serviço ou o faço eu?
No entanto, não teve a oportunidade de decidi-lo. Alguém bateu na
porta e o valete que permanecia em silêncio, voltou-se para abri-la. O
investigador da Bow Street entrou na estadia, com a respiração bastante
entrecortada e um aspecto desalinhado. Tinha o nariz mais vermelho
que um tomate e definitivamente torcido. Em uma mão sustentava um
lenço em que Jane pôde ver manchas de sangue. Uma linha vermelha caía
por um dos orifícios do nariz. Fulminou Jane com o olhar, acusando-a.
—Tinha-a apanhado, milord —disse— Mas para minha absoluta
vergonha devo confessar que é mais ladina e perigosa do que tinha
imaginado. A atarei agora mesmo se assim o desejar e a levarei ante um
magistrado antes que possa fazer outro truque.
309
Jane quase sentiu lástima dele. Tinha ficado em ridículo. Supôs que
não era frequente que sua dignidade se visse tão afetada.
—A levarei de volta a Cornualha —replicou o conde— Ali enfrentará
a seu destino. Partiremos esta noite, assim que eu tenha jantado.
—Pois nesse caso, eu não confiaria em que vá ficar sentada a seu lado
na carruagem, senhor —lhe advertiu o investigador— nem que entre
nas estalagens com o passar do caminho sem montar uma cena para
obrigá-lo a enfrentar um punhado de imbecis ignorantes que não veriam
a verdade embora a tivessem diante do nariz. Tão pouco confiaria em
que não lhe golpeasse a cabeça como fez com seu filho assim que
dormisse.
—Feri muitíssimo seus sentimentos —disse Jane com voz
agradável— Mas recorde que lhe adverti de que gritaria.
O investigador a olhou com desprezo.
—Se eu fosse você lhe ataria as mãos e pés, senhor —continuou ele—
E também a amordaçaria. E contrataria um escolta para que viajasse
com você. Conheço uma mulher que estaria disposta a fazê-lo. A dama
aqui presente não poderia jogar Bertha Meeker, acredite.
—Que tolice! —exclamou Jane.
No entanto, o conde começava a parecer inquieto.
—Sempre foi muito obstinada —disse— Nunca foi obediente face à
compreensão que lhe demonstramos depois da morte de seu pai. Verá,
era filha única e a mal criaram espantosamente. Quero que volte para
Candleford Abbey, onde poderei me encarregar dela como é devido. Sim,
faça Boden. Contrate essa mulher. Mas tem que estar aqui em duas horas
ou anoitecerá antes que nos ponhamos em marcha.
Jane havia sentido um enorme alívio. Tudo tinha sido muitíssimo
mais fácil do que tinha esperado. De fato, custava-lhe imaginar que
estivesse tão acovardada durante tanto tempo. Jamais deveria ter cedido
à tentação de esconder-se, de deixar-se levar pelo pânico do que
310
aconteceria se nenhuma das testemunhas estivesse disposta a dizer a
verdade do acontecido em Candleford Abbey àquela noite.
Mas nesse momento o terror voltou a assaltá-la. Iriam amarrá-la e
enviá-la de volta a Cornualha como uma prisioneira, com uma mulher
como guardiã. E depois iram julgá-la por assassinato. De repente, o ar
que respirava pareceu gélido.
—Enquanto isso —disse Mick Boden, olhando Jane com expressão
desagradável— ataremos à dama a essa poltrona para que você possa
jantar em paz. Seu valete me auxiliará.
A raiva foi em ajuda de Jane. Ficou em pé de um salto.
—Fique onde está —ordenou ao investigador com tanta altivez que
por um instante o homem se deteve em seco— Grande disparate! É sua
ideia de vingança? Acaba de perder o pouco respeito que mereciam você
e sua inteligência. O acompanharei a Candleford Abbey por própria
vontade, primo Harold. Não vai me ter atada como uma criminosa
vulgar.
No entanto, o investigador acabava de tirar a corda do bolso uma vez
mais e o valete, depois dedar um olhar inquieto ao conde, que assentiu
com a cabeça, deu uns passos para ela.
—Ate-a —disse o conde antes de voltar-se para olhar os papéis que
tinha na escrivaninha.
—Muito bem. —Jane apertou os dentes— Se quiser briga, terá.
No entanto, nessa ocasião não podia gritar. Seria muito simples para
o conde convencer a qualquer possível salvador que era uma assassina
que estava resistindo à captura. E é obvio perderia a briga: enfrentava a
dois homens e, além disso, seu primo poderia colaborar com sua força
em caso de ser necessário. Em questão de minutos voltaria para a
poltrona com pés e mãos atados, e possivelmente também amordaçada.
Enfim, não pensava render-se sem deixar alguns arranhões e contusões

311
a seus atacantes. Todo o medo que sentia desapareceu, substituído por
um estranho frenesi.
Atacaram-na ao uníssono, de ambos os lados da poltrona, e a
agarraram. Jane lançou primeiro golpes com os punhos e depois com os
pés. Se contorceu e se retorceu, deu cotoveladas e inclusive mordeu uma
mão que se aproximou incautamente a sua boca. E sem sequer pensar
utilizou a mesma linguagem com a que se familiarizou essas últimas
semanas.
—Tirem as malditas mãos de cima de mim e vão para o inferno! —
exclamou justo antes que uma voz serena conseguisse impor-se ao
alvoroço da luta.
—Valha-me Deus! —disse a voz— Interrompo algum jogo?
A essa altura Parkins a tinha pendurado por um braço enquanto que
o investigador retorcia o outro de forma dolorosa à costas. Jane, que
ofegava em busca de ar e que não via bem porque o cabelo caía por seu
rosto, fulminou com o olhar seu salvador, que estava apoiado na
ombreira da porta aberta, com o monóculo pego ao olho, deformando-o.
—Vá embora —disse ela— Estou farta dos homens, não quero saber
nada de você na vida. Não te necessito. Posso me arrumar muito bem
sozinha.
—Já o vejo. —Jocelyn baixou o monóculo— Mas que linguagem mais
atroz, Jane. Onde ouviu essas barbaridades? Posso perguntar Durbury,
por que há um homem (nenhum deles um cavalheiro, temo) pendurado
a cada um dos braços de Lady Sara Illingsworth? Parece-me um jogo
muito estranho e muito injusto.
Jane viu a senhora Jacobs ao outro lado da porta, com cara de estar
fervendo de fúria. Quão mesmo sentia ela. Por que dois homens adultos
que se mostraram bastante violentos para submetê-la há um minuto
ficaram quietos e submissos, como se estivessem esperando as ordens
desse enfastiado cavalheiro?

312
—Bom dia, Tresham —o saudou o conde com brutalidade— A prima
Sara e eu iremos a Candleford Abbey antes que anoiteça. Sua presença
aqui é desnecessária.
—Vim por minha própria vontade —atravessou Jane— Já não é
responsável por mim de nenhuma maneira.
Não fez conta, é obvio. Em troca, dirigiu-se ao investigador da Bow
Street.
—Solte à dama —ordenou em voz baixa— Já tem o nariz bastante
franzido. Foi coisa sua Jane? Meus cumprimentos. Detestaria ter que lhe
pôr os olhos a jogo, meu amigo.
—Um momento… —começou Mick Boden.
No entanto, o monóculo retornou ao olho do duque e suas
sobrancelhas se arquearam. Por mais aliviada que se sentisse quando
lhe soltaram o braço, Jane também se sentia indignada ao ver que um
homem podia fazer e desfazer a seu desejo através do poder de suas
sobrancelhas e de seu monóculo.
—Despache o investigador —ordenou o duque ao conde de
Durbury— E seu criado. Se este incidente chegar a chamar a atenção de
outros hóspedes do hotel ou de algum empregado, pode ser que tenha
que explicar por que um homem supostamente assassinado está são e
salvo em Candleford Abbey.
O olhar de Jane voou imediatamente ao rosto de seu primo. Parecia
furioso e estava muito avermelhado. Mas de momento não disse nada.
Não protestou. Não contradisse o que acabava de dizer.
—Exatamente —disse Jocelyn.
—Pois também seria muito molesto que todos se inteirassem de que
esteve dando refúgio a uma criminosa vulgar em qualidade de sua quer…
—Se fosse você não terminaria essa frase —aconselhou Jocelyn— Vai
despachar o investigador, Durbury? Ou o faço eu?
313
Mick Boden tomou ar.
—Devo lhe dizer que… —começou.
—Deve fazê-lo? —perguntou Jocelyn com sutil indiferença— O caso,
meu senhor, é que eu não tenho vontade de escutar o que quer me dizer.
Será melhor que se vá antes que eu pense em ajustar contas por essa
queda de braço que acabo de presenciar.
Em um primeiro momento deu a impressão que o investigador ia
aceitar o desafio, mas depois devolveu a corda a seu bolso e saiu da
estadia a largas pernadas, fazendo alarde de sua dignidade ferida. O
valete do conde o seguiu de boa vontade e fechou a porta sem fazer ruído
ao sair.
Jane se voltou para seu primo jogando faíscas pelos olhos.
—Sidney está vivo! —exclamou— São e salvo! Mas mesmo assim
esteve me perseguindo todo este tempo como se fosse uma assassina!
Desde que entrei nesta estadia deixou que eu acreditasse que estava
morto! Como pode ser tão cruel? Agora sei por que queria retornar a
Candleford Abbey em vez de me levar a um magistrado londrino. Segue
acreditando que pode me convencer a me casar com Sidney. Ou tem
moinhos de vento na cabeça… Ou acha que eu os tenho.
—Ainda terá que resolver o violento ataque que deixou meu filho se
debatendo entre a vida e a morte durante semanas —replicou o conde—
Ainda terá que resolver o desaparecimento de certa quantidade de
dinheiro e de certo bracelete muito valioso.
—Ah! —exclamou Jocelyn ao mesmo tempo em que deixava o chapéu
e a bengala em uma cadeira situada junto à porta— É gratificante
comprovar que minha hipótese era correta. Isso quer dizer que Jardine
segue sendo um membro ativo deste vale de lágrimas? Parabéns,
Durbury.
Jane dirigiu sua indignação para ele.

314
—Era uma hipótese! —exclamou— Um Blefe! E por que segue aqui?
Lhe disse que não te necessito. Nunca voltarei a te necessitar. Vá.
—Vim para te acompanhar à casa de Lady Webb —disse.
Jane pôs os olhos como pratos.
—A casa de tia Harriet? Está aqui? Voltou para a cidade?
Jocelyn assentiu com a cabeça antes de voltar-se para o conde.
—Será um lugar muito mais conveniente que Candleford Abbey para
visitar minha prometida —assinalou.
Jane tomou ar para falar. Como se atrevia!? No entanto, Sidney estava
vivo e abanando o rabo. Tia Harriet estava de volta em Londres. Ia a sua
casa. Terminou tudo, acabou-se esse pesadelo em que tinha vivido o que
parecia ser uma eternidade. Voltou a fechar a boca.
—Sim, meu amor —disse Jocelyn em voz baixa, olhando-a.
—Sua prometida? —O conde estava recuperando a compostura—
Um momento, Tresham, Lady Sara tem vinte anos. Até que tenha vinte e
cinco não pode casar-se, nem comprometer-se com ninguém que não
receba minha aprovação. Você não a tem. Além disso, este assunto do
compromisso é o maior disparate que escutei na vida. Um homem de sua
índole não se casa com sua prostituta.
Jane observou com os olhos totalmente abertos como Jocelyn dava
uns passos para diante com muita parcimônia. Ao fim de um instante, as
ponteiras dos sapatos de seu primo arranhavam o chão em busca de algo
no que apoiar o peso enquanto sua gravata, que Jocelyn agarrava com
uma mão, convertia-se em um laço conveniente. O rosto de seu primo se
avermelhou ainda mais.
—Às vezes acredito que minha audição está ruim —disse Jocelyn em
voz baixa— Suponho que deveria fazer um médico verificar antes que
castigue um homem só pelo que acredito que disse. Mas se por acaso me

315
resulta impossível me conter apesar de minhas boas intenções, sugiro-
lhe, Durbury, que em um futuro fale muito claro e muito devagar.
Os saltos do conde voltaram a tocar o chão e sua gravata recuperou
sua função anterior, embora estivesse um pouco mais enrugada e
torcida.
Jane não teria sido um ser humano se tivesse podido conter o golpe
de pura satisfação feminina que sentiu nesse momento.
—Deve me conceder permissão para me casar com Lady Sara
Illingsworth? —perguntou Jocelyn— Pois nesse caso a terei, por escrito,
antes que ponha rumo a Cornualha… Entendo que o fará não mais tarde
que amanhã pela manhã, não é? —levou o monóculo ao olho.
—Não vou deixar que me avassale para fazê-lo! —assegurou o
conde— Sara é minha responsabilidade. Em memória de seu defunto pai
devo encontrar um marido mais adequado que você, Tresham, que possa
lhe proporcionar uma felicidade duradoura. Que não esqueça que atacou
meu filho e que esteve a ponto de matá-lo. Que não esqueça que me
roubou dinheiro e joias. Deve responder a esses fatos na Cornualha,
embora só seja ante mim. Sou seu tutor legal.
—Talvez essas acusações devessem apresentar-se em Londres,
Durbury —sugeriu Jocelyn— Sem dúvida alguma Lady Sara será uma
prisioneira péssima no longo trajeto até a Cornualha. O ajudarei a levá-
la ante um magistrado agora mesmo. E depois a alta sociedade, que está
desesperada por alguma novidade a esta altura da temporada, poderá
desfrutar do entretenimento de ver uma dama de bom berço julgada por
golpear e derrubar com a ajuda de um livro um homem que a dobra em
tamanho. E por tirar quinze libras de seu tutor legal, quem levava mais
de um ano sem lhe entregar a atribuição que lhe correspondia. E por
tirar do cofre um bracelete que era de sua propriedade enquanto
deixava para trás o que sem dúvida são joias muito mais valiosas que
serão suas quando se casar ou quando cumprir os vinte e cinco anos.
Asseguro-lhe que a alta sociedade achará muito divertido.

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O conde de Durbury soprou com força.
—Não estará tentando me chantagear por acaso, Tresham? —
perguntou.
Jocelyn arqueou as sobrancelhas.
—Asseguro-lhe, Durbury, que se tentasse te chantagear, o ameaçaria
com a certeza de que minha prometida vai denunciá-lo pela negligência
de não tê-la protegido em sua própria casa e a seu filho por tentativa de
violação. Estou seguro de que poderei convencer ao menos uma das
testemunhas para que diga a verdade. E acrescentaria, para deixar bem
clara minha postura, que se por desgraça o caminho de Sidney Jardine
cruza alguma vez com o meu, acabará, aos cinco minutos de produzir-se
esse encontro, com os dentes na garganta. Talvez queira transmitir a ele
este último comentário.
Jane sentiu outro golpe de satisfação muito a seu pesar. A Jocelyn não
deveria ter resultado tão fácil. Não era justo. Por que ninguém era capaz
de enfrentar ao Duque de Tresham? A valentia do primo Harold
desapareceu ao compreender que seu plano de apanhá-la, leva-la de
volta a Cornualha e chantageá-la para que se casasse com Sidney não ia
funcionar. Ao compreender que se negasse o consentimento para que se
casasse, sofreria consequências muito piores que a perda dos bens de
seu pai e da maior parte de sua fortuna.
Jane contemplou sentada, perdida em um silêncio indignado e sendo
ignorada como se sua própria existência fosse irrelevante, como ao
Duque de Tresham era concedido por escrito a permissão para casar-se
com Lady Sara Illingsworth, depois que chamassem à senhora Jacobs e
o valete para que atuassem como testemunhas.
Depois disso, a Jane não ficou outra coisa a fazer que alisar as rugas
da capa e colocar o gorro e as luvas com deliberada lentidão enquanto a
senhora Jacobs pegava sua bolsa. Após um momento, saíram da suíte e
desceram as escadas até a carruagem que esperava, com o brasão ducal
e um montão de aduladores à espera para cumprir todas as ordens do
317
duque, de reverenciá-lo e de prestar-lhe homenagem. Jane subiu à
carruagem e se sentou com a senhora Jacobs a seu lado. Se fosse possível
um ser humano explodir de raiva, pensou, ela o faria, sem dúvida. E
Jocelyn teria bem merecido que o elegante e confortável interior de sua
carruagem de quatro portas ficasse manchado de sangue, miolos e
vísceras.
Ele entrou e se sentou em frente.
Jane se endireitou no assento e elevou o queixo. Fixou o olhar ao
outro lado do guichê da carruagem.
—Vou aceitar que me acompanhe a casa de Lady Webb, mas vamos
deixar algo muito claro, sua graça —acrescentou decidida a manter
distância— e a senhora Jacobs pode me servir de testemunha. Não me
casaria com você nem se fosse o último homem sobre a face da terra e
me acossasse todos os dias durante um milhão de anos. Não o farei.
—Minha querida Lady Sara. —Sua voz soava arrogante, enfastiada e
tão distante como a sua— Lhe peço que considere meu orgulho. Um
milhão de anos? Asseguro-lhe que deixaria de pedir depois do primeiro
milênio.
Jane apertou os lábios e resistiu ao impulso de soltar um comentário
mordaz e incisivo como merecia. Não ia lhe dar a satisfação de iniciar
uma discussão.
Tinha ido em seu resgate, é obvio que o tinha feito. Era justo o que
faria o Duque de Tresham. Ela tinha partido da casa sem sua permissão.
Tinha sido sua amante. E ele estava decidido a fazer o correto e casar-se
com ela. Era sua posse.
Mas não pensava que tinha sido sua amiga.
Tão pouco pensava que ela o considerava seu amigo e que teria
contado a verdade a respeito de sua identidade.
Não confiava nela. Não a amava. É obvio que não a amava.

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Por sorte, o trajeto até casa de Lady Webb foi muito curto. Mas só se
lembrou de sua madrinha quando a carruagem se deteve. Certamente
que estava a par de que estava a caminho. Teria conhecimento também
de todo o resto? A receberia com os braços abertos?
No entanto, obteve as respostas a essas perguntas quando um criado
abriu a porta da carruagem e desdobrou os degraus. A porta da casa se
abriu e Lady Webb saiu não só à entrada, mas sim desceu os degraus.
—Tia Harriet!
Jane mal percebeu que Jocelyn apeava e a ajudava a descer. Em um
abrir e fechar de olhos se encontrou envolta na segurança dos braços da
melhor amiga de sua mãe.
—Sara! —exclamou ela— Minha menina. Acreditava que não
apareceria nunca. Juro que desgastei o tapete do salão. Ai, minha
menina!
—Tia Harriet.
De repente, Jane começou a chorar sem dissimular os soluços
enquanto sua madrinha insistia com ela a subir os degraus e entravam
em um vestíbulo bem iluminado. Levaram-na escada acima até o salão,
a sentaram em uma elegante poltrona junto ao alegre fogo que crepitava
na lareira e entregaram um lenço debruado de rendas com o que secar
os olhos. Nesse momento percebeu de que Lady Webb e ela estavam
sozinhas.
Jocelyn tinha partido.
Talvez para sempre.
Não podia tê-lo rejeitado de forma mais enérgica.
E tinha ficado muito a gosto.
Possivelmente esse fosse o momento mais desolador de toda sua
vida.

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Seria uma manhã muito ocupada. Jocelyn foi passear a cavalo pelo
parque, onde se encontrou com o Barão Pottier e com Sir Conan
Brougham. Este último já tinha falado com os padrinhos dos dois irmãos
Forbes e tinha acordado que os duelos teriam lugar em dias sucessivos,
em questão de uma semana e no Hyde Park. Graças a ele o Hyde Park
voltaria a ficar na moda para a celebração de duelos se não mudassem
logo a família da que procediam seus oponentes, pensou Jocelyn com
ironia.
Não era uma ideia agradável. Outros dois homens teriam a
oportunidade de deixá-lo sem vida. Porque não lhe parecia que o
reverendo Josiah Forbes, ao menos, fosse dos que se deixavam intimidar
por seu famoso olhar de olhos negros.
O Visconde de Kimble se reuniu com eles e Ferdinand mais tarde, de
modo que Jocelyn desterrou os duelos de sua cabeça.
—Ontem à noite se correu a voz como a pólvora —comentou
Ferdinand com um sorriso— A senhorita Jane Ingleby resultou ser Lady
Sara Illingsworth! É a sensação do momento, Tresham. Os que estiveram
em sua festa e a escutaram cantar alardearam no baile de Lady Wardle,
digo isso a sério. O velho Ardente estava tentando convencer a todos que
lhe prestasse atenção de que o adivinhou desde o começo. Era muito
educada, disse, para não ser outra que Lady Sara.
—Onde a encontrou, Tresham? —perguntou o Barão Pottier— E
como descobriu a verdade? Quando recordo que estava presente todas
as vezes que fomos te ver em Dudley House… E jamais suspeitamos
sequer.
—É verdade que ficou demonstrada sua inocência e recuperou seu
bom nome, Tresham? —perguntou sir Conan.
—Tudo foi um mal entendido. —Jocelyn agitou uma mão com gesto
indolente antes de levá-la ao chapéu para saudar duas damas, que
cavalgavam na outra direção— Ontem à noite falei com Durbury, justo
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antes que partisse a Cornualha. Jardine não está morto. De fato,
recuperou-se perfeitamente de seu pequeno acidente. Durbury veio a
Londres e contratou um investigador da Bow Street para encontrar Lady
Sara e dizer-lhe que não tinha nada com que preocupar-se. Os rumores
correram como acontece com todos os rumores, mas ele não teve nada
a ver com isso.
—Mas e o roubo, Tresham? —perguntou o Barão Pottier.
—Não houve tal roubo —respondeu Jocelyn— Que suscetíveis somos
todos aos rumores. Isso faz que me pergunte se não deveríamos buscar
algo melhor que fazer.
Seus amigos puseram-se a rir como se tivesse tido uma ideia
estupenda.
—Mas os rumores têm o desagradável costume de perdurar —
continuou Jocelyn— a menos que algo os substitua. Por minha parte, irei
visitar Lady Sara na casa de Lady Webb e inclusive cultivarei sua
amizade.
O Barão Pottier soltou uma gargalhada.
—Há, Tresham! —exclamou— Isso certamente que o soluciona.
Porque criará outro rumor. As pessoas dirão que está procurando que o
apanhem.
—Assim é —conveio Jocelyn com voz agradável— Certamente não
seria desejável que a dama acabasse com a reputação manchada, não é?
—Eu também irei visitá-la, Tresham —disse Ferdinand— Quero dar
uma boa olhada em Lady Sara agora que sei que é Lady Sara. Nossa, isto
é genial!
—Será um prazer visitá-la, Tresh —comentou o visconde.
—Ouso dizer que minha mãe e minha irmã estarão encantadas de
conhecê-la —acrescentou Sir Conan— As levarei de visita, Tresham.
Minha mãe conhece Lady Webb.
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Seus amigos o entendiam, descobriu Jocelyn com alívio. Kimble e
Brougham contavam com a vantagem de conhecer toda a verdade, é
obvio, mas inclusive os outros dois pareciam dar-se conta que sentia
certa vergonha ao ter dado trabalho à dama como enfermeira durante
três semanas. Todos estavam dispostos a esforçar-se para que a alta
sociedade aceitasse Jane, para fazê-la respeitável, para acabar com
qualquer vestígio de dúvida sobre os crimes que a tinham acusado.
A nova sensação substituiria por completo ao antigo rumor, é obvio,
assim que se soubesse que o Duque de Tresham estava cortejando a
mulher que tinha sido sua enfermeira.
Tudo se solucionaria. Nenhuma das escassas pessoas que sabiam que
Lady Sara Illingsworth tinha sido sua amante jamais diria uma só
palavra sobre o tema. Ela estaria a salvo e sua reputação, intacta.
A partir desse momento a conversa foi uma longa reconstrução da
briga do dia anterior.
Mais tarde enquanto tomava o café da manhã, depois de decidir ficar
em casa para ler o jornal antes de dirigir-se ao White’s, chegou Angeline.
Sua irmã entrou na sala de jantar sem ser anunciada.
—Tresham, no que estavam pensando, Ferdie e você, os dois, para
enfrentar três dos irmãos Forbes ontem no parque? Quase desmaiei ao
me inteirar. Mas que maravilha que tiveram que levar os três nos braços
até a carruagem mais próxima, dois deles sem sentido e o terceiro com
o nariz torcido. Que pena que não fossem os cinco. Isso teria significado
uma gloriosa vitória para os Dudley, e estou convencida que poderiam
tê-lo conseguido. Suponho que é certo que se viu obrigado a pactuar um
duelo com os outros dois. Heyward diz que essa informação não é
apropriada para uma dama, mas não o negou, assim seguro que é
verdade. Não vou poder pegar olho até que tudo passe. Certamente que
o matam, e o que farei eu então? E se o mata você, terá que fugir a Paris,
e Heyward, meu odioso marido, segue dizendo que não me levará a
França embora estivesse disposta a me esquecer dos prazeres de

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Brighton. Além disso, Tresham, o que é isso de que essa tal Ingleby
resultou ser Lady Sara Illingsworth?
—Sente-se, Angeline —convidou Jocelyn ao mesmo tempo em que
assinalava com preguiça a cadeira que tinha em frente— e tome uma
xícara de café. —Levantou um dedo para o mordomo, que estava junto
ao aparador— E tire esse espantoso, mais espantoso que de costume,
por certo, chapéu verde gritão, rogo isso. Temo que vá me provocar
indigestão.
—É verdade? —perguntou ela— Me Diga que sim. É justo o tipo de
histórias que nós os Dudley adoramos, não é? Encobrir uma assassina
empregando-a como enfermeira e apresentá-la a um seleto grupo da alta
sociedade como um rouxinol. É impagável. —pôs-se a rir a gargalhadas
enquanto Hawkins se inclinava para lhe encher a xícara de café.
Angeline não fez gesto de tirar o chapéu. Jocelyn o olhou com
desagrado.
—Lady Sara Illingsworth se encontra agora na casa de Lady Webb —
explicou a sua irmã— Agradeceria se fosse visitá-la, Angeline. Só Deus
sabe por que, mas é a única Dudley respeitável… Certamente porque se
casou com o estirado do Heyward e ele a tem mais ou menos atada,
embora não muito apertado.
Sua irmã voltou a rir com naturalidade.
—Heyward é um estirado? —perguntou— Sim, sim que o é, verdade?
Ao menos em público.
Jocelyn adotou uma expressão mais afligida ainda ao ver que o rubor
de sua irmã desafinava de forma espantosa com as plumas rosa de seu
chapéu.
—Certamente que irei à casa de Lady Webb —disse Angeline—
Heyward me acompanhará esta tarde. Morro de vontade de vê-la,
Tresham. Acha que terá um machado nas mãos? Isso seria incrivelmente

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emocionante. Heyward se veria obrigado a arriscar sua vida para me
defender.
—Golpeou Jardine na cabeça com um livro —repôs com ironia—
quando ele estava… Isto… Sendo desrespeitoso. Isso é tudo, Angeline. O
cavalheiro está são e salvo, e tal parece que a propriedade roubada não
foi roubada absolutamente. Uma história muito maçante, de fato. Mas
não devemos permitir que Lady Sara fique às portas da alta sociedade.
Vai necessitar de pessoas de boa reputação que a ajudem a entrar.
—Como certamente Lady Webb se encarregará de fazer —replicou
ela— Por que deveria me interessar este assunto, Tresham? —No
entanto, deteve-se depois de um discurso estranhamente breve e o
olhou em silêncio com a xícara a meio caminho dos lábios antes de soltá-
la no pires e começar a rir de novo— Ah, Tresham, está interessado! Que
maravilha! Ai,morro de vontade de contar a Heyward. Mas esse meu
marido tão irritante foi à Câmara dos Lordes e ouso dizer que não voltará
até que seja hora de fazer as rondas de visitas. Tresham está apaixonado
por ela!
Jocelyn utilizou o monóculo apesar de que aumentaria o espantoso
chapéu.
—Me alegro de ter provocado tanta diversão —disse— mas «estar
apaixonado por alguém» e o título de Tresham são termos excludentes,
como bem deveria saber. No entanto, vou me casar com Lady Sara. Te
agradará saber que é a primeira em inteirar-se, Angeline, com exceção
da dama, é obvio. E me rejeitou, por certo.
Angeline o olhou boquiaberta e por um incrível momento Jocelyn
acreditou tê-la deixado sem fala.
—Lady Sara te rejeitou. —Por fim encontrou a voz— A você? O Duque
de Tresham? Bem por ela! Confesso que quase não me fixei na jovem
quando era sua enfermeira. Tinha um aspecto espantoso vestida de
cinza. Quem veste cinza quando há muitíssimas cores para escolher?
Fiquei impressionada quando cantou em sua festa. E sabia dançar valsa.
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Isso deveria ter sido uma pista, mas confesso que não parei para pensá-
lo. Mas agora te rejeitou. Vou gostar dela. Deve ser uma mulher de
caráter. Justo o que te faz falta. Sim, vai me encantar tê-la como irmã.
—Rejeitou-me, Angeline —lhe recordou com ironia.
Sua irmã o olhou sem compreender.
—É um Dudley, Tresham —lhe recordou— Os Dudley não aceitam
um não como resposta. Eu não o fiz. Heyward se mostrou contra a casar-
se comigo durante um mês depois de que nos apresentassem, asseguro
isso. Pensou que eu era frívola, que era uma cabeça oca e que falava
muito. O fato de que Ferdie e você fossem meus irmãos tão pouco me
ajudou a cair melhor. Mas se casou comigo. De fato, teve uma decepção
a primeira vez que me pediu e o rejeitei. Deu-me medo de que fosse para
casa e se matasse. Como não ia cair rendido ante meus encantos quando
eu estava decidida que o fizesse?
—Isso eu mesmo me pergunto —repôs ele.
Jocelyn se viu submetido à quase outra meia hora do incessante bate-
papo de sua irmã antes que partisse. No entanto, teve a sensação de que
a manhã tinha estado bem aproveitada. A respeitabilidade de Jane
estava assegurada. E após sussurrar no ouvido certo, tinha conseguido
o apoio de poderosas forças com as que atacar a fortaleza de sua teimosa
determinação de não casar-se com ele.
De passada se perguntou por que queria assediar suas defesas. A
final, não pensava admitir que a necessitasse pessoalmente. Só era sua
obstinação, é obvio. Jane Ingleby sempre havia dito a última palavra no
que a ele se referia.
Pois bem, Lady Sara Illingsworth não o faria. Era muito simples.
De repente, encontrou-se pensando no que usaria quando fosse vê-la
essa tarde. Como se fosse um colegial apaixonado.

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326
Capítulo 23

—Sara, tem uma expressão estranha —comentou Lady Webb— É


normal, é obvio depois de tudo o que suportou. Logo devolveremos a cor
a suas bochechas. Quisera pudéssemos sair esta tarde para dar um
passeio, a pé ou de carruagem. Faz um dia precioso. No entanto, esta é
uma das tardes que fico em casa para receber visitas. Assim, querida, por
muito molesto que nos resulte, devemos nos preparar para recebê-las.
Jane levava um vestido de cintura alta, muito na moda, de musselina
estampada. Estava em um dos baús que continham seus pertences que
haviam sido entregues durante a manhã por Phillip e o chofer do Duque
de Tresham. Tinha-a penteado a donzela que sua madrinha lhe tinha
atribuído. Não obstante, embora externamente pudesse parecer
preparada para enfrentar uma tarde de conversa, abordou o tema que a
preocupava.
—Tia Harriet —disse— talvez seja melhor que me mantenha
separada de seus convidados.
Lady Webb, que tinha estado olhando pela janela, aproximou-se dela
para sentar-se na poltrona situada frente a que Jane ocupava.
—Isso é justo o que deve evitar —aconselhou— Sara, embora
nenhuma das duas o comentou, sou consciente de como você esteve
ganhando a vida durante estas últimas semanas. Por muito espantoso
que seja, o fato deter-se visto obrigada a recorrer a algo assim, já acabou.
Ninguém tem por que sabê-lo. Pode estar segura de que Tresham
obrigará a guardar silêncio qualquer um que possa suspeitar a verdade.
E, além disso, está disposto a casar-se contigo. É um cavalheiro e sabe
que te comprometeu. Não só está preparado para fazer o honrado, a não
ser insistir até consegui-lo.
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—É muito bom nisso—comentou Jane com amargura— Mas sabe
perfeitamente que comigo não funcionará.
—A reputação do Duque de Tresham talvez seja a pior de toda a
cidade —reconheceu Lady Webb com um suspiro— Embora possa ser
que exagere. Não é conhecido por nenhum vício em particular, mas todo
mundo está a par de seu lado selvagem e de sua tendência a envolver-se
em qualquer briga que se produza. É igual a seu pai e seu avô.
—Não! —exclamou Jane com mais paixão da que pretendia— Não é!
Lady Webb arqueou as sobrancelhas. No entanto, antes que pudesse
falar, bateram na porta do salão e o mordomo a abriu para anunciar as
primeiras visitas: Sir Conan Brougham com Lady Brougham, sua mãe, e
a senhorita Chloe Brougham, sua irmã. Poucos minutos depois foram
seguidos por Lorde e Lady Heyward, esta última deixando muito claro
que o motivo de sua visita era falar com Jane e exortá-la por ter ocultado
sua verdadeira identidade enquanto se encontrava em Dudley House.
—Nunca me surpreendi tanto na vida como quando Tresham me
contou isso—afirmou— E estou muito agradecida de que a tenha
encontrado e a trazido até aqui, Lady Sara. Grande tolice acusá-la de ser
uma assassina! Cada vez que penso, explodo em gargalhadas, tal como
Heyward pode testemunhar. Suponho que o senhor Jardine foi muito
mal educado com você. Quando me apresentaram a ele, tive a impressão
de que era um canalha repulsivo. Acredito que você se conteve ao
golpeá-lo só com um livro, e por sua parte, é ridículo que o desse tanta
importância e que corresse para contar a seu pai. Se estivesse em seu
lugar, Lady Sara, eu o teria acertado com um machado.
—Meu amor —atravessou Lorde Heyward ao mesmo tempo em que
afastava sua esposa— Lady Webb leva um momento te convidando para
que tome assento nesta poltrona.
O número de visitantes foi muito numeroso. Alguns eram amigos de
Lady Webb. Muitos eram pessoas que Jane tinha conhecido em Dudley
House durante sua estadia. O Visconde de Kimble, Lorde Ferdinand
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Dudley e o Barão Pottier, por exemplo. Jane não demorou a
compreender quem os tinha enviado e por que tinham aparecido. Pôs-
se em marcha uma campanha para limpar seu nome. Longe de agradá-
la, o descobrimento a enfureceu. De verdade acreditava que era incapaz
de dirigir sua própria vida sem que ele a ajudasse? Quisera que se
apresentasse em pessoa para poder lhe dizer quatro coisas, pensou.
E apareceu.
Chegou sozinho, vestido de forma imaculada com uma jaqueta azul,
calças beges tão justas que pareciam uma segunda pele e botas de
montar tão reluzentes que bem podiam ser espelhos. E, é obvio, estava
muito bonito, embora Jane ignorasse quando tinha começado a achá-lo
bonito. E tão viril que roubava seu fôlego. E rodeado por sua detestável
arrogância ducal.
Odiava-o com todas suas forças, embora as boas maneiras a
impediam de fulminá-lo com o olhar ou exigir que fosse embora. Esse
não era seu salão, afinal. Era uma convidada como era ele.
Depois de trocar as saudações de rigor e uma reverência com Lady
Webb, a saudou de forma gélida, como se fosse só uma bolinha de pó que
flutuasse diante de seus olhos, pensou indignada. Observou com uma
sobrancelha arqueada o grupo de pessoas que a rodeava: Lady Heyward,
Lorde Ferdinand e o Visconde do Kimble, entre outros, todos eles amigos
ou familiares dele. E depois começou a conversar com a senhora Minter
e com o senhor Brockledean, uma conversa que se prolongou durante
um quarto de hora.
Jane tinha decidido que não falaria com ele quando escutou que o
mordomo o anunciava. Como se atrevia a negar a ela a oportunidade de
lhe dar as costas? Embora, claro, também desejava ter a oportunidade
de lhe dizer que não era necessário que se incomodasse em enviar
pessoas para que a visitasse, nem tão pouco que tentasse devolver a
respeitabilidade a sua vida. Como se atrevia a não aproximar-se para que
ela pudesse expressar suas recriminações e lhe dizer que se ocupasse de
seus próprios assuntos?
329
—Ferdie, seu novo tílburi é esplêndido —estava dizendo Lady
Heyward— Muito mais bonito que o anterior. Sei que se verá obrigado a
aceitar a aposta se alguém te desafiar a demonstrar sua superioridade.
Não deve aceitar. Meus nervos não suportariam outra corrida como a
anterior. Embora jamais me cansarei de escutar a descrição da última
curva do percurso, quando acelerou apesar das advertências de
Tresham e de Heyward, que lhe pediram que conduzisse com
precaução.Quisera o tivesse presenciado. Não é cansativo, às vezes, Lady
Sara, ser uma mulher?
Jane viu pela extremidade do olho que se pôs em pé. O Duque de
Tresham é obvio. Estava a ponto de partir. Mas se voltou para o grupo
onde ela estava. Ia aproximar-se para falar com ela. Voltou à cabeça e
deu de presente a seu irmão um sorriso deslumbrante.
—Lorde Ferdinand, tenho entendido que sua habilidade com as
rédeas é famosa —disse.
Posto que fosse um jovem falador e simpático, que ela gostava muito,
por certo, Lorde Ferdinand mordeu a isca imediatamente.
—Oh! —exclamou— Gostaria de dar um passeio em meu tílburi
amanhã pela tarde, Lady Sara?
—Eu adoraria, obrigado —respondeu com cordialidade enquanto
elevava a vista para os escuros olhos do Duque de Tresham, que tinha se
detido a escassa distância do grupo.
No entanto, havia se sentido decepcionada se tinha esperado
encontrar irritação em seu rosto. Porque teve a ousadia de olhá-la com
ironia.
—Senhorita, venho me despedir de você —disse ao mesmo tempo em
que inclinava ligeiramente a cabeça.
—Ah, sim, sua graça? —replicou ela ainda sorridente— Tinha me
esquecido que estava aqui. —Era o comentário mais mal educado que
tinha pronunciado na vida. E se sentiu muito satisfeita de si mesma.
330
—Ah —repôs ele sem deixar de olhá-la e falando de forma que só ela
e o grupo que a rodeava pudessem escutá-lo— suponho que esse é o
motivo de minha fama de evitar o tédio de fazer visitas de cortesia. No
entanto, em seu caso fiz uma exceção, já que raramente tenho a
oportunidade de tomar o chá com uma antiga empregada.
Jane estava convencida que se voltou e partiu com a satisfação de ter
dito a última palavra. Esquecidas as boas maneiras, observou-o se
afastar soltando faíscas pelos olhos enquanto os membros de seu grupo
os olhavam atônitos ou fingiam sofrer de uma repentina surdez ou
sentiam a necessidade de pigarrear. Lady Heyward lhe deu uns
golpezinhos no braço.
—Bem feito —disse— Você o pôs em seu lugar maravilhosamente.
Surpreendeu-o tanto que Tresham se rebaixou com esse comentário tão
rancoroso. Oh, como gosto de você!
A conversa seguiu até que os convidados começaram a partir após
alguns minutos.
—Nunca tive tanto êxito com meus chás em casa —confessou Lady
Webb com uma gargalhada uma vez que todos partiram— E acredito
que devemos agradecer ao Duque de Tresham, Sara.
—Enfim —replicou Jane com mais aspereza da que pretendia— pois
estou muito agradecida. Se alguma vez aparecer e perguntar por mim,
não estou em casa, tia Harriet.
Lady Webb se sentou e a olhou fixamente.
—Sara, tão mal te tratou? —quis saber.
—Não —respondeu ela com voz firme— Não me obrigou a nada, tia
Harriet. Fez-me uma proposta e eu aceitei. Eu insisti em assinar um
contrato por escrito e ele se atou às condições do acordo. Não me tratou
mal.
Mas me obrigou a amá-lo. E o que é pior, obrigou-me a apreciá-lo
como pessoa. E depois descobriu a verdade e se voltou tão frio como o
331
gelo e nem sequer acreditou-me capaz de poder despir minha alma
como ele despiu a sua. Mas destruiu todas as minhas emoções e me
deixou vazia, desconcertada e tão infeliz como pode estar uma pessoa,
pensou.
Não pronunciou seus pensamentos em voz alta, não importava.
—Mas se apaixonou por ele —sentenciou Lady Webb em voz baixa.
Jane elevou bruscamente o olhar, mas não pôde conter as
desprezíveis lágrimas que alagaram seus olhos.
—Odeio-o —a corrigiu com convicção.
—Já o vejo —repôs Lady Webb com um pequeno sorriso— Por quê?
Pode me diz isso?
—Porque é um monstro arrogante que carece de sentimentos —
respondeu ela.
Lady Webb suspirou.
—Valha-me Deus! —exclamou— Sim, está apaixonada por ele. Não
sei se devo me alegrar ou me compadecer de você. Mas deixemos o tema.
Levo todo o dia pensando o que fazer para te ajudar a deixar o passado
para trás. Sara, vou levá-la a próxima recepção da rainha e no dia
seguinte celebraremos um baile para te apresentar formalmente à
sociedade. A ideia me entusiasma como se fosse uma menina pequena.
Será a sensação da temporada, estou quase certa. É muito formosa,
querida. Assim vamos começar a planejar tudo.
Seria a apresentação à sociedade com a que Jane tinha sonhado
alguns anos antes. Mas nesse momento não podia deixar de pensar que
Jocelyn tinha aparecido essa tarde com uma atitude fria e arrogante, e
que lhe tinha dado as costas até que viu a oportunidade de insultá-la.
Quantos dias tinham passado desde que terminou seu retrato e depois
despiu sua alma enquanto ela o escutava sentada em seu colo?
Parecia que tinha passado toda uma vida.
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Parecia que isso tinha acontecido a outras pessoas.
Odiava-o.
A profunda dor que albergava no coração jamais se aliviaria.
E nesse momento recordou algo que lhe provocou um ataque de
pânico. Seu retrato. Seu precioso retrato. Tinha-o deixado em casa!
Em casa?
Em casa!

Durante a temporada social que se celebrava na primavera, a alta


sociedade cavalgava e passeava, a pé ou de carruagem, pelo Hyde Park a
primeira hora da tarde. Todo mundo ia ver e ser visto, fofocar e dar que
falar, usar e observar as últimas tendências da moda, e trocar paqueras.
Jane levava um vestido e um casaco azuis, e um simples chapéu de
palha liso amarrado sob o queixo com uma larga fita azul. Também
levava uma sombrinha de cor bege que tinha emprestado Lady Webb.
Encontrava-se sentada no tílburi de Lorde Ferdinand Dudley, que dirigia
as rédeas enquanto conversava com ela e realizava as apresentações de
todas aquelas pessoas que se aproximavam com a intenção de conhecer
a famosa Lady Sara Illingsworth, cuja história voltava a ser a fofoca de
todos os salões e clubes de Londres.
Jane sorriu e conversou. O sol estava brilhando, depois de tudo,
desfrutava da companhia de um bonito cavalheiro que se desfazia em
cuidados. Um cavalheiro que se parecia muitíssimo a seu irmão, embora
não pensava lhe guardar rancor por isso.
Era precisamente a lembrança de seu irmão que a impedia de que
estivesse se divertindo.Apesar de tudo o que tinha acontecido durante
as últimas quarenta e oito horas (deixar para trás o medo, voltar a ser
ela mesma, recuperar sua posição no mundo) quase desejava que o
tempo retrocedesse uma semana. Há essa semana que tinham estado
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juntos. Ele, pintando. Ela, bordando. Cômodos em sua mútua companhia.
Estabelecendo uma amizade. Apaixonando-se.
Uma ilusão.
Porque a realidade era a que tinha frente aos olhos.
E a realidade chegou a cavalo, junto ao Visconde de Kimble. A
realidade era o duque de Tresham, é obvio. A essa altura resultava difícil
pensar nele como Jocelyn. O duque tinha sua expressão sombria,
taciturna e inalcançável. Seu rosto habitual, em poucas palavras. Levou
o chicote à aba do chapéu e inclinou a cabeça enquanto lhe desejava boa
tarde. O visconde, por sua parte, sorriu e pegou sua mão que levou aos
lábios. Depois procedeu a começar uma breve conversa. Os
inexpressivos e escuros olhos do duque se mantiveram em todo
momento fixos nela.
Jane sorriu, conversou e fez girar a sombrinha enquanto aceitava
passear de novo pelo parque no dia seguinte com Lorde Kimble. Depois
partiram e Jane, mantendo o alegre sorriso, viu-se obrigada a tragar o nó
que tinha se formado na garganta e a lutar contra a dor que sentia no
nariz e no peito.
Mas não tinha tempo para refletir. A seu lado estava Lorde Ferdinand
ao que devia escutar e outras pessoas com quem falar. Uns minutos
depois que Jocelyn se afastou, Lady Heyward, que passeava em um
cabriolé descoberto, apresentou-lhe à condessa viúva de Heyward e
começou a tagarelar.
—Estou desejando que chegue seu baile de apresentação à sociedade
na casa de Lady Webb —afirmou— Chegou-nos o convite esta mesma
manhã. Suponho que Heyward me acompanhará, um detalhe raro nele,
já que os bailes o aborrecem. Lady Sara, você pode acreditar que alguém
encontre aborrecido dançar? Ferdie, nem te ocorra pôr os olhos em
branco dessa forma tão feia. Não me referia a você. Além disso, todo
mundo sabe que prefere as brigas a dança. Jamais imaginará as
palpitações que sofri quando me inteirei no outro dia que Tresham e
334
você tinham enfrentado três dos irmãos Forbes. Embora como disse
Tresham, a vitória teria sido muito mais doce se tivessem se
encarregado dos cinco. Não sei por que os outros dois se limitaram a
olhar enquanto amassavam seus irmãos.
—Angie —lhe advertiu Ferdinand— deixa-o.
No entanto, Jane se voltou e o olhou surpreendida.
—Tiveram uma briga há poucos dias? —perguntou— Um duelo com
pistolas? E mataram três oponentes?
—Enfrentamos a murros, senhora —particularizou Lorde Ferdinand,
bastante envergonhado— Deixamos inconscientes dois deles, um por
um. O terceiro não pôde se levantar do chão porque tinha o nariz torcido.
Teria sido injusto acertá-lo enquanto se retorcia. Angie, não tem por que
falar destas coisas quando há outras damas presentes.
Lady Heyward pôs os olhos em branco.
—Ferdie —replicou— suponho que também é de má educação
passar as noites acordado, com os nervos destroçados, porque Tresham
vai bater em duelo com os outros dois Forbes. Com pistolas, acredito.
Acabará morto, certamente. Embora acredite que é grandioso por sua
parte bater contra eles em duas manhãs consecutivas. Algo sem
precedentes. Só podemos esperar que viva para enfrentar o segundo.
Jane teve a impressão de que todo o sangue se acumulava nos pés,
provocando um formigamento que deixou o resto do corpo gelado,
suarento e sem forças.
—Isso Angie, é um assunto de cavalheiros —a repreendeu seu
irmão— Se não tem outra coisa melhor da que falar, sugiro que retorne
a casa com o pássaro que tem encarapitado na aba de seu chapéu e que
lhe dê alpiste antes que morra. E de passagem pode regar todas as
flores.Bom dia, senhora. —levou a mão à aba do chapéu para despedir-
se da condessa viúva e açulou os cavalos para que ficassem em marcha.

335
Jane ainda temia a possibilidade de sofrer um desmaio. Sobre tudo
pelo molesto assobio que tinha nos ouvidos. As espetadas e o
formigamento se deslocaram até as mãos.
—Sua graça vai bater em duelo de novo? —perguntou— Duas vezes
mais?
—Lady Sara, não tem por que preocupar-se com esse assunto —
aconselhou Lorde Ferdinand com voz alegre— Eu adoraria que me
permitisse bater com um deles, já que foi a mim a quem tentaram matar.
Mas se nega, e quando Tresham se propõe algo, ou se opõe a algo como
neste caso, é impossível discutir com ele.
—Ai, que homem mais tolo! —exclamou Jane, furiosa. A ira a salvou
do desmaio, já que fez que o sangue voltasse para circular por seu
corpo— E tudo por uma questão de honra.
—Exatamente, senhorita —reconheceu Lorde Ferdinand antes de
trocar de tema com sutileza, mas com determinação.
Não um, a não ser dois duelos, pensou Jane. Em duas manhãs
consecutivas. Era mais que possível que o matassem. As probabilidades
de morrer seriam o dobro do normal.
Mas o teria merecido, concluiu furiosa.
Como ela poderia seguir adiante?
Como poderia seguir adiante em um mundo onde Jocelyn não
estivesse?

Jocelyn sentia falta de Jane mais do que tinha acreditado possível.


Sim, a primeira tarde foi visitá-la na casa de Lady Webb e, como não, ela
o açulou para que se mostrasse imperdoavelmente grosseiro diante de
um numeroso grupo de testemunhas só por sua impertinência e pelo
deslumbrante sorriso que tinha oferecido a Ferdinand enquanto
aceitava seu convite para passear pelo parque. Um sorriso que o tinha
336
enfurecido até tal ponto que esteve muito tentado de acertar um murro
em seu irmão na cara. Depois, cavalgou pelo parque sabendo que ela
estaria passeando, primeiro com seu irmão e depois com Kimble, e teve
que trocar as saudações de rigor com a jovem. Nada mais. Porque a
expressão obstinada e o aperto severo de seus lábios lhe indicou que se
tivesse tentado acrescentar algo mais, teriam acabado discutindo de
novo. Coisa que lhe teria encantado fazer caso se encontrassem a sós.
Estava decidido a conquistá-la, é obvio. Talvez, reconheceu, porque
ela estava decidida a rejeitá-lo. No entanto, sabia que seria inútil aplicar
a estratégia habitual de tentar lhe impor sua vontade. Devia conceder a
ela o tempo necessário para que sua mente assimilasse o giro positivo
que tinha sofrido sua sorte.
Devia conceder a ela o tempo necessário para que sentisse falta dele.
Porque certamente sentia falta dele. Embora quando descobriu sua
verdadeira identidade acreditou que a simpatia que Jane lhe
demonstrava era somente superficial, já não estava tão seguro.
Recordou a agradável harmonia que tinham estabelecido no gabinete.
Além disso, era impossível interpretar mal a paixão que sentia por ele.
Arrependia-se muitíssimo das duas últimas visitas que lhe tinha feito.
Uma de noite e a outra de dia. Não tinha sabido dirigir bem a situação.
Ao princípio, tinha decidido que concederia a ela o tempo que
necessitasse. Porque ele também o necessitava. Devia enfrentar a dois
duelos, ambos com pistolas. No entanto, tinha descoberto que não
pensava neles com o mesmo aprumo com o que enfrentou aos quatro
anteriores. Desta vez era muito consciente de que podia morrer.
Talvez nas ocasiões anteriores esse fato fosse pouco relevante.
Talvez nesse momento tivesse algo pelo que viver.
Jane.
Mas como podia cortejá-la quando existia a possibilidade de que
morresse? Como podia fazê-lo quando era evidente que seguia zangada
com ele, quando ainda se sentia tão doído por sua traição?
337
E assim, durante os dias prévios ao primeiro duelo, que enfrentaria
ao reverendo Josiah Forbes, Jocelyn evitou de forma deliberada
qualquer encontro com Jane.Foi a casa em uma ocasião e se encontrou
vagando pelo gabinete. Examinou o bordado inacabado, ainda montado
no bastidor, e a imaginou ali sentada, com as costas retas enquanto
bordava com elegância. Segurou o exemplar de Mansfield Park que
descansava na mesa situada junto à poltrona onde ele estava
acostumado a sentar-se. Não tinha acabado de lê-lo. Interpretou uma
melodia no piano com a mão direita, sem sentar-se sequer. E depois
olhou o retrato de Jane.
Jane, rodeada pelo brilho da vida e do amor que surgiam de seu
interior e iluminavam o tecido. Como podia ter duvidado dela? Como
podia tê-la tratado com essa gélida fúria em vez de abraçá-la e convidá-
la a compartilhar todos seus segredos, todos seus temores? Nunca lhe
tinha dado as costas. Tinha sido ao contrário.
Convocou seu advogado, que se apresentou em Dudley House, e
trocou seu testamento.
A imagem do que deveria ter feito e não tinha feito o torturou de
forma incessante. Não a tinha abraçado.
Talvez nunca tivesse a oportunidade de voltar a fazê-lo.
Se pudesse abraçá-la uma vez mais, pensou com um sentimentalismo
incomum nele, morreria feliz.
Em seus momentos de lucidez se repreendia por pensar todas essas
absurdas tolices.
Mas então descobriu por Angeline que estava convidada a uma festa
concorrida, mas privada, na casa de Lady Sangster. Jane é obvio. Não
podia ir a bailes públicos porque ainda não tinha sido apresentada na
corte, nem tão pouco se celebrou sua apresentação à sociedade. Mas sim
tinha aceitado o convite ao sarau de Lady Sangster.
A que ele também estava convidado.
338
E que se celebraria a véspera do primeiro duelo.

Capítulo 24

Lady Webb tinha assegurado a sua afilhada que ir ao sarau de Lady


Sangster não era nada excepcional. Que, de fato, devia aparecer em
público todo o possível antes de celebrar sua apresentação à sociedade,
para que ninguém acreditasse que tinha algo a ocultar.
No entanto, o sarau se celebraria a véspera do primeiro duelo de
Jocelyn. Jane não tinha falado disso a sua madrinha. Não tinha falado do
tema com ninguém desde que interrogou Lorde Ferdinand. Mal tinha
dormido, nem comido. Não podia pensar em outra coisa. Tinha
considerado a ideia de ir a Dudley House para lhe suplicar que pusesse
fim a essa tolice, mas sabia que seria em vão. Era um homem, com o
senso de honra de um homem.
De modo que foi ao sarau, em parte por sua madrinha e em parte por
si mesma. Talvez se distraísse um pouco, embora passasse o resto da
noite e a manhã posterior acordada, até obter notícias.No entanto, se
sobrevivia ao encontro, teria que repeti-lo no dia seguinte. Arrumou-se
com esmero, escolheu um elegante vestido de cetim dourado escuro e
ordenou a sua donzela que recolhesse o cabelo com estilo. Inclusive
339
considerou a ideia de aplicar um pouco de ruge nas bochechas quando
sua madrinha comentou que estava bonita, mas pálida.
O sarau de Lady Sangster ia ser uma reunião seleta de índole privada.
No entanto, aos olhos de Jane era um acontecimento muito concorrido.
As portas duplas que separava o salão e a sala de música estavam
totalmente abertas, igual à da sala adjacente. As três estadias estavam
transbordando de convidados.
Os Condes de Heyward e Lorde Ferdinand conversavam
animadamente com outras pessoas. Como podia fazê-lo quando sabia
que seu irmão enfrentaria à morte pela manhã e o repetiria ao dia
seguinte? O Visconde de Kimble também tinha ido, e sorria de forma
encantadora a jovem com que estava falando. Como podia fazê-lo
quando um de seus melhores amigos podia morrer pela manhã? Ao vê-
la, desculpou-se com a jovem e se aproximou dela para saudá-la com
uma reverência.
—Lady Sara, evito os eventos insípidos como se fossem a peste —
disse, ao mesmo tempo em que lhe dava de presente seu sorriso mais
perigoso e atrativo— mas me disseram que você viria a este sarau.
—Está me dizendo que sobre mim recai o peso de aliviar o tédio desta
insípida noite? —perguntou ela, dando uns golpezinhos em seu braço
com o leque.
Lady Webb se afastou para saudar uns amigos.
—Todo o peso. —O Visconde ofereceu o braço— Vamos beber algo
em algum canto vazio onde possamos desfrutar de um tête-à-tête antes
que alguém descubra que estou monopolizando sua companhia.
Era um homem simpático e divertido. Durante uns minutos, Jane se
encontrou mantendo uma inocente paquera e rindo de boa vontade.
Tudo isso sem deixar de perguntar-se como era possível que o visconde
pudesse pensar em outra coisa que não fosse o perigo que corria seu
amigo e como ela era capaz de rir.

340
No ar flutuava o murmúrio das numerosas conversas que tinham
lugar a seu redor. Também lhes chegava o som da música, procedente da
estadia contigua. Havia voltado com força a seu próprio mundo, pensou
enquanto observava o que acontecia. Era certo que sua aparição tinha
despertado um considerável interesse, nada que se pudesse catalogar de
grosseiro, é obvio, mas sim inconfundível a final de contas. No entanto,
ninguém a tinha olhado de esguelha, nem tinha parecido escandalizar-
se pela temeridade de aparecer em um evento exclusivo da alta
sociedade.
Teve a impressão de ter obtido uma pequena vitória.
—Estou desolado —disse Lorde Kimble— Minha melhor piada e nem
sequer a fiz sorrir.
—Oh! —exclamou ela, contrita— Sinto muito. O que é que disse?
O sorriso do visconde foi mais afável que o normal.
—Vejamos se a música consegue distraí-la de forma mais efetiva —
sugeriu ao mesmo tempo em que oferecia novamente o braço— Tudo
sairá bem, de verdade.
De modo que sim estava preocupado. E estava a par de que ela sabia.
E também de que estava intranquila.
Lorde Ferdinand se encontrava na estadia intermediária, entre o
grupo que rodeava o piano. Sorriu para ela,tomou sua mão e a levou aos
lábios.
—Kimble, devo protestar —disse— Leva muito tempo com a dama.
Agora é minha vez. —Colocou a mão em seu braço e a levou mais perto
do piano.
Parecia-se muito a seu irmão, pensou ela. Exceto que era um pouco
mais esbelto e tinha as pernas mais longas. Além disso, o que em Jocelyn
era sombrio, em Lorde Ferdinand era tudo luz. Parecia um jovem afável,
feliz e simples, supôs. Ou possivelmente não. Talvez essa impressão se
devesse a que tinha disposto da oportunidade de descobrir as secretas
341
profundidades do caráter de Jocelyn durante o período no que tinha sido
sua amante… E sua amiga.
—Há mais gente do que esperava —comentou ela.
—Sim. —Lorde Ferdinand a olhou com um sorriso nos lábios— Eu
tenho quase a mesma experiência que você no concernente a estas
reuniões tão seletas, Lady Sara. Estou acostumado às evitar.
—Por que não o fez nesta ocasião? —perguntou Jane.
—Porque Angie me disse que você estaria. —Sorriu-lhe de novo.
Uma resposta muito similar ao comentário que Lorde Kimble fez
pouco antes. Tão apaixonados estavam ambos os cavalheiros? Ou acaso
ambos sabiam que papel tinha jogado na vida de Jocelyn?
—Gostaria de cantar? —perguntou Lorde Ferdinand— Se posso
convencer alguém para que a acompanhe ao piano, faria? Por mim, se
não pelos outros. Sua voz é a mais formosa que escutei na vida.
Jane cantou. A moça de aspecto delicado acompanhada ao piano pela
senhorita Meigham. A multidão congregada em torno do piano a escutou
com mais atenção que às anteriores intérpretes. E das outras estadias
chegaram mais convidados para ouvir sua voz.
Entre eles o Duque de Tresham.
Viu-o no vão da porta do salão enquanto agradecia o aplauso
posterior a sua interpretação com um sorriso. Seu aspecto era elegante
e imaculado, não o que cabia esperar em um homem que ia enfrentar à
morte em questão de horas.
Seus olhares se cruzaram durante um momento interminável
enquanto um estranho silêncio se estendia pela sala de música. Depois,
Jane afastou o olhar, voltou a sorrir e as conversas retomaram como se
não tivessem se interrompido.

342
— Minha nossa! —murmurou Lorde Ferdinand, que seguia junto a
Jane e que insistiu que ela se afastasse do piano a fim de que outra jovem
ocupasse seu lugar— Que diabos está fazendo essa mulher aqui?
Lady Oliver se encontrava junto a Jocelyn, percebeu Jane ao olhar de
novo em sua direção. Estava lhe dizendo algo enquanto esboçava um
sorriso. Jocelyn respondeu e colocou uma mão em seu braço.
Lorde Ferdinand se repôs da surpresa.
—Os refrescos estão na estadia situada ao outro lado do vestíbulo —
disse— Gostaria de ir? Me permitirá lhe servir um prato? Tem fome?
—Estou esfomeada —respondeu ela com um sorriso deslumbrante
ao mesmo tempo em que tomava seu braço.
Cinco minutos depois estava sentada diante a uma pequena mesa
com um prato repleto de comida e quatro convidados mais com os que
conversar além de Lorde Ferdinand. Já mais avançada à noite, foi
incapaz de recordar o que lhe haviam dito ou o que ela tinha replicado.
Nem tão pouco recordava o que tinha comido.
Ele tinha ido. Como se um duelo não fosse nada do outro mundo.
Como se não apreciasse sua vida. E tinha permitido que essa mulher o
tocasse e falasse com ele sem rejeitá-la abertamente. Uma atitude que o
fazia parecer não só culpado, mas também sem o bom gosto de manter
a distância de sua suposta amante, uma mulher casada. Tanto dava de si
a honra de um homem?
Ao final, abandonou a sala de refrescos de braços com Lorde
Ferdinand, com quem atravessou o vestíbulo e as duas estadias
adjacentes. Seria muito cedo para ir em busca de sua madrinha e sugerir
que partissem da casa?Perguntou-se. Como ia suportar uma hora mais
nesse lugar sem desmaiar ou sem sofrer um ataque de histeria?
Justo quando estavam a ponto de entrar no salão, alguém invadiu o
vão da porta. Jocelyn. Agarrou seu pulso direito e olhou seu irmão,
embora não dissesse nenhuma só palavra. Lorde Ferdinand tão pouco
343
disse nada, limitou-se a afastar o braço de Jane e a entrar no salão sem
ela. Jane tão pouco falou. Foi um momento estranho.
Jocelyn a levou de novo ao vestíbulo e depois girou à esquerda,
afastando-a das estadias iluminadas onde se celebrava a noite até chegar
a uma porta perdida nas sombras. Nesse momento a deteve, voltou-a
para que apoiasse as costas na porta e se colocou frente a ela, sem soltar
seu pulso. Seu rosto estava coberto pela escuridão. Mas podia ver seus
olhos, que a olharam com tal intensidade, produto da mescla da paixão,
a tristeza, o desejo e o desespero, que só acertou lhe devolver o olhar,
muda e desconsolada.
Nenhum dos dois pronunciou uma palavra. No entanto, o silêncio
estava carregado delas.
«Posso morrer amanhã ou a manhã posterior.»
«Faça-me tua. Pode morrer.»
«Isto pode ser a despedida.»
«A eternidade. Como vou enfrentar à eternidade sem você?»
«Meu amor.»
«Meu amor.»
E depois ele a estreitou com força entre seus braços e a sustentou
assim, como se quisesse aceitá-la dentro de seu corpo. Jane o abraçou
com o mesmo ímpeto, como se ansiasse fundir-se com ele, converter-se
em um só ser eternamente. Assim podia senti-lo, cheirá-lo e escutar os
batimentos de seu coração.
Talvez pela última vez.
Jocelyn procurou seus lábios na escuridão e a beijou com paixão,
alheios à proximidade de todas essas pessoas que seguiam nas estadias
próximas. Jane se deixou envolver por seu calor, seu sabor, sua virilidade
e sua essência. O importante era que estava com Jocelyn, que ele era o ar

344
que respirava, o coração que pulsava em seu interior, a alma que dava
sentido à sua vida. E que estava com ela, são e salvo entre seus braços.
Nunca o deixaria partir. Jamais.
No entanto, ele levantou a cabeça e a olhou um bom momento em
silêncio antes de soltá-la e afastar-se. Jane escutou como se perdiam seus
passos em direção ao salão. E ficou sozinha.
Mais só do que jamais havia se sentido. Com o olhar perdido no
escuro vestíbulo e sem mover-se da porta.
Nenhum dos dois tinha falado.
—Ah, aqui está —disse uma voz amável ao cabo de um minuto—
Permita-me acompanhá-la até Lady Webb, senhorita. Peço-lhe que a leve
a casa?
Durante alguns instantes foi incapaz de responder. Mas depois
tragou saliva e se afastou da porta com gesto decidido.
—Não, obrigado, Lorde Ferdinand —respondeu— Ainda segue aqui
Lady Oliver? Me levaria até ela, por favor?
Lorde Ferdinand titubeou.
—Não acredito que tenha que preocupar-se com ela —disse—
Tresham não…
—Sei —o interrompeu— Sei muito bem. Mas desejo falar com ela. Já
é hora de que alguém o faça.
Ele titubeou, mas acabou oferecendo o braço para levá-la de volta ao
salão.

Lady Oliver parecia ter dificuldades para integrar-se em algum


grupo. Estava sozinha no centro do salão, abanando-se com um sorriso
desdenhoso como se quisesse dizer que considerava indigno unir-se a
qualquer dos grupos repartidos pela estadia.
345
—Estou seguro de que nem sequer recebeu convite —murmurou
Lorde Ferdinand— Lady Sangster não a teria convidado sabendo que
também tinha convidado Tresham. Mas suponho que é muito educada
para mandá-la embora. Está segura de que quer falar com ela?
—Sim, estou —assegurou Jane— Não é necessário que fique ao meu
lado, Lorde Ferdinand. Obrigado. Você é muito amável.
Lorde Ferdinand saudou Lady Oliver com uma rígida reverência. A
dama se voltou e arqueou as sobrancelhas, surpreendida, ao ver Jane.
—Bem, a famosa Lady Sara Illingsworth em pessoa —comentou
enquanto Lorde Ferdinand se afastava— No que posso ajudá-la?
Jane tinha pensado afastá-la até a sala de refrescos, mas pareciam
desfrutar de certa intimidade, isoladas como estavam no centro de salão,
com o murmúrio das conversas e a música que chegava da estadia
contigua.
—Pode dizer a verdade —respondeu ela, que a olhou diretamente
aos olhos.
Lady Oliver abriu seu leque e começou a movê-lo muito devagar para
refrescar o rosto.
—A verdade? —perguntou— E que verdade é essa, se for tão amável?
—Pôs em perigo a vida de seu marido e a do Duque de Tresham por
não dizer a verdade —respondeu Jane— E agora vai pôr em perigo a de
seus irmãos e outra vez a de Sua graça. E tudo por não ter dito a verdade.
Lady Oliver ficou lívida e deteve o movimento do leque. Era evidente
que acabava de ter uma enorme surpresa, que não sabia nada dos duelos
até esse mesmo momento. Mas saltava à vista que era uma mulher forte.
Recuperou a compostura imediatamente e voltou a abanar-se.
—Lady Sara, considero-me afortunada por ter irmãos dispostos a
defender minha honra —replicou com frieza— O que quer? Que os
convença a se retratarem e assim salve seu amante? Lhe conviria mais
346
que morresse em um duelo. Assim se livraria da ignomínia de acabar
jogada como um trapo sujo quando se cansar de você. Isso é o que
Tresham faz sempre com suas queridas.
Jane a olhou com expressão fria e séria.
—Não vai me distrair de meu propósito. Pelo que quero que você
diga, Lady Oliver —acrescentou— O Duque de Tresham jamais foi seu
amante. Mas sempre foi um cavalheiro. Prefere a morte a contradizer
uma dama e causar-lhe uma humilhação pública. A questão é senhora: é
você uma dama? Permitirá que estes cavalheiros sofram e talvez
morram só porque a mentira é mais conveniente para sua vaidade que a
verdade?
Lady Oliver soltou uma gargalhada.
—Isso lhe disse? —perguntou— Que nunca foi meu amante? E você
acreditou? Pobre Lady Sara. Depois de tudo, é uma ingênua. Poderia lhe
contar certas coisas… Mas não importa. Tem algo mais a me dizer? Não?
Nesse caso, desejo-lhe boa noite. Esperam-me alguns amigos.
—Se alguém morrer por culpa de sua mentira —advertiu Jane— a
espera uma vida muito desagradável, uma que não invejo. Uma vida a
qual carregará o peso de sua consciência durante todos os dias e todas
as noites. Nem sequer poderá escapar dela em sonhos. Se por acaso não
se deu conta, acabo de lhe fazer o elogio, de pensar que possui
consciência, que é simplesmente vaidosa, mas não malévola. Não vou
desejar-lhe boa noite. Espero que passe uma noite espantosa. Espero
que a passe atormentada pelas imagens do que pode acontecerem
qualquer um desses dois duelos. E espero que, antes que seja muito
tarde, seja capaz de fazer quão único pode fazer para recuperar o
respeito de seus pares.
Observou como Lady Oliver fechava o leque e caminhava em direção
à sala de música. Depois, ao voltar à cabeça, viu que Lady Angeline e sua
madrinha, no braço de Lorde Ferdinand e de Lorde Kimble
respectivamente, esperavam-na para que se unisse ao grupo.
347
—Vamos, Sara —disse sua madrinha— é hora de voltar para casa.
Estou morta de cansaço depois de ter desfrutado do prazer de tanta
conversa.
—Me permitam a honra de acompanhá-las até sua carruagem,
senhoras —disse Lorde Kimble.
Lady Angeline se aproximou de Jane para abraçá-la. Sem dizer nada,
algo pouco habitual nela.
Lorde Ferdinand sim falou.
—Irei vê-la amanhã pela manhã, Lady Sara —disse.
Para lhe dizer se Jocelyn estava vivo ou morto.

Jocelyn pensava que a noite não ia acabar nunca. Mas acabou, é obvio,
depois de incontáveis horas de sono profundo, de sonhos estranhos e
vívidos, e de longos períodos de insônia. Resultava-lhe estranho que
esse duelo fosse tão distinto dos quatro que o tinham precedido.Exceto
pela emoção, fruto dos nervos que tinha experimentado em certas
ocasiões, não recordava ter tido noites tão perturbadoras em nenhum
dos casos anteriores.
Levantou-se antes do necessário e escreveu uma longa carta, que
seria entregue no caso de que não retornasse. Depois de assiná-la e de
estampar seu selo na cera quente, a levou aos lábios e fechou os olhos
um instante. Tinha-a abraçado uma vez mais. Mas tinha sido incapaz de
pronunciar uma só palavra. Tinha medo de vir a pedaços, se houvesse
tentado. Desconhecia as palavras que dito momento precisava. Carecia
de experiência prévia.
Era uma estranha ironia ter encontrado o amor justo quando tinha
que enfrentar aos acontecimentos da manhã. E da manhã do dia seguinte
se sobrevivia.

348
Que curioso ter achado o amor sem acreditar em sua existência. E
com a convicção de que o matrimônio era uma armadilha, embora fosse
com ela.
Puxou o cordão da campainha para chamar seu valete.

Jane não tinha dormido. Tinha tentado, mas só conseguiu ficar


estendida na cama com os olhos fixos no dossel perdido nas sombras,
enjoada e com o estômago revolto. Ao final tinha sido mais fácil levantar-
se, vestir-se e sentar-se com os joelhos abraçados no batente acolchoado
da janela, onde a momentos ficou com bochecha congelada por apoiá-la
no cristal, depois do qual se amontoou com o xale de caxemira para
esquentar-se.
Deveria ter dito algo. Por que tinha ficado calada quando havia tantas
coisas por dizer? Ela sabia a resposta. Não havia palavras para expressar
as emoções mais profundas do coração.
E se Jocelyn morria?
Estremeceu dentro do xale e apertou os dentes para evitar que
batessem.
Tinha superado quatro duelos sem sofrer feridas mortais.
Certamente podia sobreviver a outros dois. No entanto, as
probabilidades eram contra ele. E Lorde Ferdinand, que não tinha sido
rival para seu decidido interrogatório durante o passeio pelo parque,
tinha revelado não só o lugar e a hora do encontro, mas também o fato
de que o reverendo Josiah Forbes era um tipo impassível e um atirador
excelente, apesar de sua vocação.
Os pensamentos de Jane se viram interrompidos quando alguém
chamou a sua porta. Sobressaltada, olhou nessa direção. Era muito cedo.
A porta se abriu devagar, e sua donzela apareceu à cabeça com
precaução, olhando para a cama.
—Estou aqui —disse Jane.
349
—Ah, milady! —exclamou a moça, tentando distingui-la na
penumbra—Peço desculpas, mas abaixo há uma dama que insiste em
falar com você. Tirou o senhor Ivy da cama, que foi quem me avisou. A
dama não admite uma negativa por resposta.
Jane ficou em pé com o estômago revolto e enjoada.
—Quem é? —perguntou. Sabia quem devia ser, mas não se atrevia a
deixar-se levar pela esperança. Além disso, era muito tarde.Certamente
que era muito tarde.
—Lady Oliver, milady —respondeu à donzela.
Jane nem sequer reparou em seu aspecto. Saiu correndo do quarto e
voou escada abaixo com pressa muito pouco elegante.
Lady Oliver estava no corredor do primeiro andar, passeando
nervosa. Quando Jane apareceu, levantou o olhar e correu para o pé da
escada. À mortiça luz da alvorada, aumentada pelas velas de um
candelabro, Jane viu que a mulher estava muito nervosa.
—Onde estão? —exigiu saber— Onde vão encontrar-se? Sabe? E a
que hora?
—No Hyde Park —respondeu Jane— Às seis.
—Em que ponto do Hyde Park?
Jane só podia supor que o duelo se celebraria no mesmo lugar que o
anterior. Mas como lhe explicar a localização exata? O Hyde Park era
muito grande. Meneou a cabeça.
—Por quê? —perguntou ela a sua vez— Vai até lá?
—Sim —respondeu Lady Oliver— Oh! Rápido, rápido. Diga-me onde.
—Não saberia lhe dizer —respondeu Jane— Mas sim posso levá-la
até lá. Você tem uma carruagem?
—Na porta —respondeu a dama, assinalando com a mão— Leve-me,
então. Rápido. Corra em busca de uma capa e de um chapéu.
350
—Não temos tempo —replicou ela enquanto passava junto a Lady
Oliver, a quem agarrou por um braço— Deve ser mais das cinco. Vamos!
Lady Oliver não necessitou que o repetisse. Ao cabo de um minuto
estavam sentadas na carruagem, a caminho ao Hyde Park.
—Se morrer… —Lady Oliver deixou a frase no ar enquanto levava um
lenço ao nariz.
Não pode morrer, pensou Jane. Não pode. Ficam muitas coisas por
viver. Não pode morrer! Repetiu para si mesma.
—Sempre foi o melhor dos irmãos —seguiu Lady Oliver— muito
mais carinhoso comigo que os outros. Era o único que jogava comigo
quando era pequena, o único que me deixava segui-lo. Não deve morrer.
Por Deus! O cocheiro não pode ir mais rápido?
Já tinham chegado ao parque, mas a carruagem não podia avançar até
a clareira situada depois do arvoredo. O cocheiro, vituperado a voz em
grito por sua senhora, desdobrou os degraus a toda pressa, e Lady Oliver
os baixou (decentemente embelezada com uma capa, chapéu e luvas) a
tropicões, seguida por Jane, que ia com a cabeça descoberta, um vestido
matinal, um xale e chinelos.
—Por aqui! —gritou enquanto punha-se a correr.
Não estava segura, é obvio. Talvez não fosse o lugar correto. E embora
fosse, talvez chegassem muito tarde. Aguçou o ouvido em busca de
algum disparo, presa da tensão, mas só escutou seus ofegos e os soluços
de Lady Oliver.
Era o lugar correto. Logo que chegaram a margem do arvoredo, viram
os espectadores, todos muito silenciosos.
Só podia haver um motivo para este silêncio!
O reverendo Josiah Forbes e o Duque de Tresham, ambos em mangas
de camisa, com calças e botas de montar, estavam de costas, contando

351
os passos correspondentes e com as pistolas dirigidas para o céu.
Estavam a ponto de deter-se. Para apontar.
—Detenham-se! —gritou Jane— Detenham-se!
Obedecendo a sua própria ordem, deteve-se e apertou os punhos, que
levou aos lábios.
Lady Oliver chiou e tropeçou.
Os duelistas se detiveram. Jocelyn localizou Jane imediatamente com
o olhar, mas não se voltou, nem baixou a pistola. Olharam-se a distância.
O reverendo Forbes se voltou e baixou a pistola com um cenho feroz.
—Gertrude! —gritou com voz pétrea— Fora daqui. Este não é lugar
para uma mulher. Já me encarregarei de você mais tarde.
Lorde Oliver, que parecia aturdido e envergonhado, separou-se dos
espectadores e de boa vontade teria agarrado sua esposa pelo braço
para afastá-la dali. No entanto, ela escapou de sua mão.
—Não! —negou-se ela— Tenho algo a dizer.
Jane, que seguia sustentando o olhar de Jocelyn sem fraquejar, era
toda ouvidos. Não demorou muito em compreender que Lady Oliver
tinha decidido interpretar o papel de mártir valente que sacrificava sua
própria reputação para salvar a vida de seu querido irmão. Mas isso não
importava. Ao menos ia fazer o que deveria ter feito muito antes, antes
do duelo entre o Duque de Tresham e seu marido.
Que estranho, pensou Jane analisando tudo friamente. Se Lady Oliver
fizesse o correto desde o começo, ela não teria conhecido Jocelyn. Que
frágil foi o azar que definia esse momento chave para o transcurso da
vida.
—Josiah, não dispare em Tresham —suplicou Lady Oliver— E
Samuel tão pouco deve fazê-lo. Sua Graça não cometeu nenhuma falta.
Entre ele e eu não houve nada. Eu queria que houvesse, mas ele não quis
saber de mim. Quis ser a protagonista de um duelo, pareceu-me um
352
gesto grandioso e romântico. Mas estava equivocada e agora o admito.
Não devem disparar em um homem inocente. Carregariam com esse
peso em suas consciências durante o resto da vida. E eu também.
—Gertrude, segue defendendo seu amante? —perguntou-lhe o
reverendo Forbes com a voz que devia usar no púlpito, supôs Jane.
—Você me conhece bem —replicou Lady Oliver— Se fosse certo, não
me humilharia diante de uma audiência. Simplesmente decidi fazer o
correto. Se não acredita, fale com Lady Sara Illingsworth, que veio
comigo. Ela presenciou o desprezo que sofri por parte de Tresham no
dia que o visitei depois do último duelo. Nunca foi meu amante. Mas seu
cavalheirismo o impediu de me chamar de mentirosa.
Jocelyn, que seguia sem mover-se, não afastava os olhos de Jane. No
entanto, e apesar da distância, ela o viu arquear uma sobrancelha com
ironia.
Nesse momento Jane percebeu que seguia com os punhos nos lábios.
O reverendo Josiah Forbes atravessou a distância que o separava de
seu competidor. Jocelyn se voltou por fim e baixou a pistola.
—Tresham, parece que estava equivocado —disse o reverendo,
ainda com a voz do púlpito— Eu lhe devo uma desculpa e retiro o
desafio. Caso se sinta ofendido pelo ocorrido, continuaremos com o
duelo, é obvio. Afinal, minha família é responsável por um desonroso
complô para prejudicar a sua.
Jane supôs que os outros três irmãos tinha posto os pontos sobre os
is depois do incidente com o tílburi de Lorde Ferdinand.
—Acredito que esse assunto já está vingado, Forbes —replicou
Jocelyn com um suspiro indolente— Quanto a isto, você não fez nada que
eu não tivesse feito para defender minha própria irmã. —passou a
pistola à mão esquerda e estendeu à direita.
Escutou-se um suspiro coletivo procedente dos espectadores
enquanto estreitavam a mão. O capitão Samuel Forbes se adiantou para
353
oferecer suas desculpas e para retirar seu desafio. Jane baixou as mãos
devagar e viu que cravou as unhas nas palmas das mãos.
Lady Oliver desmaiou e se deixou cair elegantemente nos braços de
seu marido.
Acabava de ter lugar uma reconciliação honrada. Jocelyn ficou
sozinho de novo e voltou a olhar em direção ao arvoredo. Logo levantou
a mão esquerda com a palma para cima para impedir que seus amigos
se aproximassem ao mesmo tempo em que gesticulava com a direita,
indicando a Jane que se aproximasse.
A mente de Jane ficou em branco exceto por um profundo alívio e uma
raiva abrasadora cujo fogo avivaram esses dedos que a insistiam a
aproximar-se. Como se fosse um cão! Como se ele fosse incapaz de
aproximar-se dela! Cortou a distância que os separava em fúria até
deter-se frente a frente a ele.
—É um homem horrível! —exclamou em voz baixa e tremente—
Horrível, arrogante e obstinado. Detesto-te! Acaba de enfrentar à morte
esta manhã, e teria morrido sem me dizer uma palavra. Nem sequer
falou ontem à noite. Já não necessito mais provas de que isto é o que te
importo —disse, estalando os dedos frente a seu rosto, muito satisfeita
com o som que se produziu— tenho provas de sobra. Não quero voltar a
te ver na vida. Entende-me? Nunca mais. Não se aproxime de mim.
Ele a olhou com arrogância e sem demonstrar o menor
arrependimento.
—Veio até aqui a esta hora da manhã, e neste estado de roupa, para
me ordenar que não me aproxime de você… Lady Sara? —acrescentou,
com evidente ironia, empregando a fria lógica— Ignorou os ditados do
decoro para me dizer que sou horrível? Enfim, tome meu braço sem mais
demora para que possa te acompanhar até a carruagem de Lady Oliver.
Suponho que ali é onde estão conduzindo à dama. Talvez com o drama
que está tendo lugar se esqueçam de você, de forma que só ficarão vinte
ou trinta cavalheiros como acompanhantes e escoltas. Uma situação que
354
Lady Sara Illingsworth deveria evitar, já que sua reputação segue por um
fio.
Ofereceu-lhe o braço, mas Jane o recusou e se preparou para
caminhar sozinha em direção à carruagem. Jocelyn a seguiu.
—Suponho que tudo isto foi sua ideia, não é? —perguntou— Um
argumento digno de uma maravilhosa obra dramática. Bem em cima da
hora.
—Não tive nada a ver quanto a te salvar em cima da hora —
particularizou com voz gélida— Me limitei a sugerir a Lady Oliver ontem
á noite que talvez fosse a hora de dizer a verdade.
—Nesse caso, devo a você minha vida. —Mas pronunciou as palavras
com um deixe arrogante e sem um pingo de gratidão.
—Pode voltar com seus amigos —espetou ela uma vez que tiveram a
carruagem à vista e foi evidente que a alcançaria antes que a ainda
inconsciente Lady Oliver voltasse para casa.
Jocelyn se deteve, despediu-se dela com uma reverência e partiu sem
mediar palavra. Não obstante, enquanto se afastava Jane recordou algo.
—Jocelyn! —chamou-o.
Ele se deteve e voltou à cabeça para olhá-la com um brilho estranho
nos olhos.
—Me esqueci de levar o bordado —disse bobamente, incapaz de
dizer o que queria lhe dizer em realidade.
—Vou trazê-lo para você—se ofereceu ele— Não. Desculpe. Não quer
voltar a ver-me nunca mais. Ordenarei que o levem. —E deu meia volta.
—Jocelyn!
Ele voltou a olhá-la por cima do ombro.
—Me esqueci de levar o retrato.

355
Jane teve a impressão de que transcorria um bom momento
enquanto se olhavam aos olhos em silêncio antes que ele dissesse:
—Ordenarei que o levem também.
E depois deu meia volta e se afastou dela.
Como se a noite anterior não tivesse acontecido. Mas tinha
acontecido em realidade? Só tinha sido um beijo roubado entre um
homem e sua antiga amante?
Voltou-se e se apressou para a carruagem.

356
Capítulo 25

Seu bastidor, o quadro e o exemplar de Mansfield Park foram


entregues no mesmo dia. Phillip foi o encarregado de levá-los, mas Jane
não o viu. Tudo o que ela sabia era que certamente ele não os tinha
levado em pessoa. Alegrava-se de que não o tivesse feito. Seu
comportamento dessa manhã tinha sido ditatorial, frio e ofensivo.
Chegou à conclusão de que o tenro desejo que sentiu no beijo da noite
anterior foi produto de sua imaginação. O fato de que não tivesse ido em
pessoa para levar suas coisas a salvou de ter que negar-se a recebê-lo.
Não queria voltar a ouvir seu nome na vida.
Uma resolução que à manhã seguinte ficou em interdição como
absurda. Lady Webb seguia em seu quarto e o mordomo levou a Jane o
jornal diário a sala de jantar matinal.
—Há uma carta para você, milady —lhe informou.
Jane a tirou de sua mão e comprovou com ansiedade o nome e a
direção escritos no exterior. No entanto, sua alma caiu aos pés
imediatamente. Não era a letra grande e inclinada do Duque de Tresham.
Tão desiludida estava que nem sequer se deu conta de que reconhecia a
letra.
—Obrigado —disse, e rompeu o selo.
Era de Charles. Uma carta bastante longa. Remetida da Cornualha.
O Conde de Durbury tinha retornado a Candleford Abbey, dizia
Charles, com as notícias de que tinham encontrado Sara e de que se
alojava na casa de Lady Webb. Para sua tranquilidade, Charles lhe
comunicava que se anunciou em Candleford Abbey que Sidney Jardine,
de quem se havia dito durante muito tempo que estava às portas da
morte, por fim tinha recuperado a saúde.

357
Jamais tinha estado tão preocupado, porque me encontrava longe de
casa quando tudo isto aconteceu e, portanto não pôde recorrer a mim.
Teria a seguido a Londres, mas onde procurar? Se seguia os rumores de
que Durbury contratou um investigador da Bow Street e que nem sequer
ele pôde te encontrar. Que possibilidades teria tido eu de fazê-lo?

Não obstante, poderia ter tentado de todas as formas, pensou Jane. Se


a tivesse amado de verdade, teria ido a Londres.

Durbury também anda dizendo outra coisa, embora esteja convencido


de que não é verdade. Acredito que o diz por mim, Sara, para me fazer
danos e me preocupar. Sabe o muito que sempre desprezou o mútuo
carinho que nos temos. Diz que deu seu consentimento para que o Duque
de Tresham te corteje. Estou seguro de que rirá com todas suas vontades
quanto a isto, Sara, mas… Tresham! Nunca conheci esse homem, mas tem
a reputação de ser o libertino mais infame de toda a Inglaterra. Espero de
todo coração que não esteja a incomodando com suas atenções
indesejadas.

Jocelyn, pensou Jane. Ai, Jocelyn!

Vou a Londres assim que tenha solucionado alguns assuntos


importantes de negócios. Irei protegê-la das avessas intenções de qualquer
homem que pense que este desafortunado incidente te faz merecedora de
todo tipo de insultos. Vou trazê-la de volta para casa, Sara. Se Durbury não
der seu consentimento para que nos casemos, nos casaremos sem ele. Não
sou um homem rico e detesto a ideia de que perca sua fortuna, mas sou
capaz de manter uma esposa e uma família para que vivamos bem,
inclusive com certos luxos.

358
Jane fechou os olhos e inclinou a cabeça sobre a carta. Tinha muito
carinho por Charles. Sempre tinha tido. Durante anos tinha tentado
convencer-se de que tinha o suficiente para casar-se com ele. Mas por
fim sabia que nunca seria capaz de amá-lo. Não havia paixão no amor
que ele sentia. Só uma morna amabilidade. Era evidente que não
entendia o que ela tinha sofrido essas últimas semanas. Nem sequer
nesse momento ia correndo a seu lado. Antes tinha que encarregar-se de
alguns assuntos de negócios.
Enquanto dobrava a carta e a deixava junto ao prato se sentia triste,
a um passo do desespero. Não tinha pensado em Charles desde que
chegou a casa da tia Harriet. Tinha sido consciente, é obvio, de que um
enlace entre ambos era impossível, mas nesse preciso momento se viu
obrigada a enfrentar essa realidade, antes que estivesse preparada para
isso.
Sentia-se como se de alguma forma uma linha de vida confortável
tinha sido finalmente cortada. Sentia-se como se estivesse total e
eternamente sozinha.
E entanto, Charles ia a Londres.
Tinha que lhe escrever para dizer que não o fizesse, decidiu ao
mesmo tempo em que ficava em pé apesar de que não tinha tomado o
café da manhã. Seria uma perda de tempo e de dinheiro para ele
percorrer toda essa distância. Além disso, dizer por carta que não ia
casar-se com ele resultaria muito mais fácil que fazê-lo cara a cara.

Jocelyn demorou alguns dias em assimilar que já não estava


ameaçado por uma morte iminente, que os Forbes e ao que parece Lorde
Oliver estavam satisfeitos com que Lady Oliver houvesse dito a verdade
durante sua dramática interrupção do duelo.
Quando por fim o assimilou, uma manhã na biblioteca enquanto lia o
último relatório de Acton Park, descobriu que lhe faltava o fôlego. E

359
quando apoiou os cotovelos na escrivaninha e levantou as mãos,
descobriu com certa fascinação que elas tremiam.
Agradeceu que Michael Quincy não estivesse presente para ver esse
fenômeno.
Um fenômeno muito estranho, dado que nenhum de seus duelos
prévios tinha conseguido que encarasse sua própria mortalidade. Talvez
porque nunca antes enfrentou cara a cara a vida e com o desejo de vivê-
la plenamente. Enquanto lia o rigoroso e prático relatório de seu
administrador, sentiu pela primeira vez uma imensa nostalgia. Queria ir
a Acton Park, queria ver a casa com os olhos de um adulto, perambular
pelos prados e pelas colinas, recordar o menino que tinha sido e
descobrir o homem em quem se converteu.
Queria ir com Jane.
Desejava-a até um ponto doloroso.No entanto, tinha decidido deixá-
la tranquila até depois de sua aparição em sociedade. Dançaria com ela
em seu baile de apresentação e a cortejaria com determinação até que
se rendesse, porque acabaria se rendendo. Ninguém podia desafiar sua
vontade para sempre.
Mas ainda faltava uma semana inteira para o baile. Não podia esperar
tanto. Temia que fosse ela quem o desafiasse, quando ninguém mais o
tinha feito antes. E enquanto esperava, gente como Kimble ou inclusive
seu próprio irmão a acompanhavam por toda a cidade, irradiando
encanto pelos quatro cantos e lhe arrancando esse sorriso deslumbrante
que tão pouco tinha prodigalizado a ele. E depois se irritou consigo
mesmo por ter admitido sentir-se ciumento, nada mais e nada menos. Se
quisesse outro homem, que ficasse. Podia ir ao diabo pelo que a ele se
referia. Se divertia imaginando que brigava com Kimble e Ferdinand de
uma só vez… Com espadas. Uma em cada mão.
E uma adaga entre os dentes, pensou com desdém. E um emplastro
negro sobre um olho.

360
—Maldita seja! —exclamou em sua biblioteca vazia, golpeando a
escrivaninha com um punho para fazer insistência em sua postura—
Vou retorcer seu pescoço.
Apresentou-se na casa de Lady Webb essa mesma tarde, mas rejeitou
o convite do mordomo de acompanhá-lo ao salão, onde estavam
atendendo ao resto das visitas. Solicitou falar a sós com Lady Webb, de
modo que o fizeram passar a um salão.
Era consciente de que Lady Webb não o aceitava. Embora não era tão
mal educada para dizer em voz alta, é obvio. E sua postura era muito
compreensível. Durante seus anos de adulto não ganhou a boa opinião
das damas respeitáveis como ela. Justamente o contrário. Embora não
gostasse dele, era evidente que reconhecia a necessidade de propor
matrimônio a sua afilhada.
—Embora se o rejeita —advertiu antes de ordenar a um criado que
fosse em busca de Jane— a apoiarei incondicionalmente. Não vou
permitir que a intimide.
Jocelyn lhe fez uma reverência formal.
Passaram dois minutos mais antes que Jane aparecesse.
—Oh! —exclamou ela ao mesmo tempo em que fechava a porta a suas
costas, sem afastar a mão do trinco— É você.
—Era a última vez que me olhei no espelho —replicou, fazendo uma
elegante reverência— A quem esperava?
—Acreditava que talvez fosse Charles —respondeu ela.
Jocelyn franziu o cenho e a fulminou com o olhar.
—Charles? —Suas boas intenções se foram— O covarde da
Cornualha, quer dizer? O caipira que acredita que vai casar-se contigo?
Está na cidade?
Os lábios de Jane voltaram a desaparecer, como era seu costume.

361
—Sir Charles Fortescue não é um caipira, nem um covarde —disse
ela— Sempre foi meu melhor amigo. E vai vir assim que seja possível.
—Assim que seja possível —repetiu ele— Onde esteve durante este
último mês? Porque não o vi vir correndo a Londres para buscá-la, nem
para te resgatar das garras de seu tio, de seu primo ou o que seja
Durbury para você.
—Aonde ia me encontrar? —replicou ela— Se os investigadores da
Bow Street não puderam me encontrar, que possibilidade teria tido
Charles de fazê-lo, sua graça?
—Eu a teria encontrado. —Olhou-a com os olhos entrecerrados— O
mundo não teria sido o bastante grande para esconder-se, Lady Sara se
eu estivesse a procurando.
—Não me chame assim —pediu ela— Não é meu nome. Sou Jane.
Seu aborrecimento se dissipou e por um momento esqueceu a
irritação que sentia por Sir Charles Fortescue, caipira e covarde.
—Sim —conveio— E eu não sou sua graça, Jane. Sou Jocelyn.
—Sim. —umedeceu os lábios.
—Por que está agarrada ao trinco como se tivesse medo? —
perguntou— Teme que me equilibre sobre você para forçá-la?
Jane meneou a cabeça e entrou na estadia.
—Não tenho medo de você.
—Pois deveria. —Deixou que seu olhar a percorresse de cima abaixo.
Levava um vestido de musselina amarelo claro. Seu cabelo
resplandecia— Senti sua falta. —Mas, depois de tudo, não podia
permitir-se semelhante vulnerabilidade— Na cama, é obvio.
—É obvio —replicou ela com descaramento— Onde mais poderia
ser? Por que veio, Jocelyn? Segue sentindo-se obrigado a me propor
matrimônio porque sou Lady Sara Illingsworth e não Jane Ingleby?
362
Insulta-me. Tanto importa o nome por cima da pessoa? Nem em seus
sonhos mais desenquadrados lhe teria ocorrido se casar com Jane
Ingleby.
—Sempre acreditou saber o que eu pensava Jane —repôs— Agora
também sabe o que sonho?
—Não teria se casado com Jane Ingleby —insistiu— Por que quer se
casar comigo agora? Porque é o que deve fazer um cavalheiro, assim
como deve enfrentar à morte em um duelo do que chamar de mentirosa
uma dama? Não quero um cavalheiro perfeito, Jocelyn. Preferiria o
libertino.
Descobriu que essa era uma das poucas ocasiões nas que sua fúria
não crescia na mesma medida que a dela. Esse fato lhe conferiu uma
vantagem definitiva.
—Sério Jane? —Sua voz era uma carícia— Por quê?
—Porque o libertino tinha certa espontaneidade, certa
vulnerabilidade, certa humanidade, certa… Ai, que palavra é a que
necessito? —perguntou, gesticulando com as mãos.
—Paixão? —sugeriu.
—Sim, isso mesmo. —Esses olhos azuis o olhavam jogando faíscas—
Prefiro que discuta e brigue comigo, que me insulte e que tente me dar
ordens, que leia em voz alta e que me pi… Pinte, que se esqueça de mim
e do resto do mundo enquanto se perde na música. Prefiro a esse
homem, por odioso que possa chegar a ser. Esse homem tinha paixão.
Não vou tolerar que se comporte como um cavalheiro comigo, Jocelyn.
Nego-me.
Conteve o sorriso. E refreou a esperança. Perguntou-se se Jane se
dava conta do sugestivas que tinham sido suas últimas palavras.
Certamente não. Porque seguia jogando fumaça pelas orelhas.
—Nega-se? —Pôs-se a andar para ela— Nesse caso será melhor que
eu demonstre o pouco cavalheiro que sou.
363
—Caso se aproxime um só passo mais, te darei uma bofetada —o
ameaçou.
No entanto, ela não ia retroceder nem um palmo para pôr mais
distância entre eles, naturalmente. Jocelyn deu dois passos à frente até
que seus pés quase se tocaram.
—Por favor, Jane. —Sua voz voltou a ser uma carícia— Me deixe te
beijar?
—Por que ia fazê-lo? —Jane tinha os olhos brilhantes pelas lágrimas,
mas se negava a afastar o olhar. E ele não sabia se eram lágrimas de raiva
ou de emoção— Por que vou deixar que me beije? A última vez me fez
acreditar que se importava embora não disse nada. E à manhã seguinte
fez um gesto com a mão, gélido e arrogante, para que me aproximasse,
como se eu fosse um cão que devia ir a seus pés. Por que vou deixar que
me beije quando não importo nem um pouco para você?
—Um pouco? —perguntou— Eu gosto de você.
—Veja —ordenou ela— Está brincando comigo. Suponho que devo
agradecer-lhe muitas coisas. Sem você agora mesmo estaria na
Cornualha enfrentando Sidney e o Conde de Durbury. Mas eu não sei se
só me ajudou para proteger seu orgulho. Não me apoiou quando
realmente precisava confiar em você. Não…
Jocelyn estendeu um braço e pôs um dedo em seus lábios. Jane
guardou silêncio de repente.
—Deixe-me dizer isso. Nos aproximamos muito essa semana, Jane.
Mais do que me aproximei jamais de outra pessoa. Compartilhamos
interesses e conversas. Compartilhamos consolo e emoções. Fizemo-nos
amigos além de amantes. Mais que amigos. Mais que amantes.
Convenceu-me sem me dar um sermão de que para ser uma pessoa
completa tinha que me perdoar e também perdoar meu pai pelo
acontecido no passado. Demonstrou-me que ser um homem não
consiste em eliminar todas as emoções mais exaltadas e tenras. Ensinou-
me a voltar a sentir, a enfrentar o passado, a recordar que houve alegria
364
além de dor em minha infância. E o fez simplesmente estando ali. Sendo
Jane.
Ela se separou de seu dedo, mas mesmo assim Jocelyn não lhe
permitiu falar. Ainda não. Agarrou seu queixo com a mão.
—Disse-me que teria confiado em mim assim como eu confiei em
você se não tivesse descoberto a verdade quando o fiz. Deveria ter
acreditado Jane. E inclusive quando descobri a verdade, deveria ter me
comportado de uma maneira muito distinta. Deveria ter ido te ver.
Deveria tê-la estreitado entre meus braços, como você me abraçou a
noite anterior, te dizer o que tinha averiguado e te convidar a me contar
isso tudo, a confiar em mim, a se apoiar em mim. Sabia o difícil que era
reviver certas lembranças. Eu mesmo superei essa dificuldade a noite
anterior e deveria ter sido mais sensível. Falhei-me, Jane. E, que me
crucifiquem! Também falhei com você.
—Não —disse ela— É desprezível. Não posso discutir contigo
quando fala assim.
—Não discuta comigo —suplicou— Me perdoa Jane? Por favor?
Jane o olhou aos olhos como se quisesse saber se era sincero. Jamais
a tinha visto tão indefesa. Nem sequer tentava ocultar sua ânsia por
acreditar nele.
—Jane —disse em voz baixa— você me ensinou que o amor
realmente existe.
Duas lágrimas escorregaram pelas bochechas de Jane. Ele as enxugou
com os polegares ao mesmo tempo em que tomava seu rosto entre as
mãos e se inclinava para beijá-la ali onde acabava de acariciá-la.
—Pensei que fossemos… Morrer! —exclamou ela de repente—
Pensei que chegaríamos muito tarde. Pensei que escutaria um disparo e
te encontraria morto. Sentia-o aqui dentro. —tocou o peito— Uma
premonição. Estava desesperada por chegar até você, para dizer todas
as coisas que nunca lhe disse, por… Por… Oh, Deus! Por que nunca
365
encontro um lenço quando necessito? —Estava procurando nos
inexistentes bolsos de seu vestido, sorvendo o nariz de forma muito
vulgar.
Jocelyn entregou-lhe um enorme lenço branco.
—Mas chegou a tempo —disse ele— e disse todas essas coisas. Deixe-
me ver se o recordo com exatidão: sou um homem horrível, arrogante e
obstinado, não? Isso é muito desagradável, Jane. Acredito que também
disse que me detestava, e que não devia me aproximar de você nunca
mais. Me esqueci de algo?
Nesse momento Jane soou o nariz e depois deu a impressão de que
não sabia o que fazer com o lenço. Assim,ele o tomou de sua mão e o
guardou no bolso.
—Eu teria morrido contigo se você tivesse morrido —confessou ela,
e Jocelyn teve a satisfação de ver como começava a zangar-se de novo—
É um homem horrível e odioso. Se voltar a se arriscar a que outro
homem o desafie a um duelo, te matarei eu mesma!
—Fará meu amor? —perguntou.
Viu-a apertar os lábios.
—Está decidido a me conquistar, não é? —replicou ela— É uma
armadilha?
—Se soubesse pelo que estou passando, Jane… —repôs— Tenho
medo de que me rejeite. E sei que se o fizer, não haverá maneira de fazê-
la mudar de ideia. Tem piedade de mim. Nunca estive nesta posição
antes. Sempre fui capaz de sair com a minha facilmente.
Ela se limitou a olhá-lo com a mesma expressão beligerante.
—O que acontece? —perguntou ele, mas Jane meneou a cabeça
ligeiramente— Jane, anseio voltar para casa. Voltar para Acton Park…
Contigo. Começar a criar nossas próprias lembranças e nossas próprias

366
tradições. Pensei conhecer meus sonhos. Mas este é meu sonho. Não
quer compartilhá-lo comigo?
Viu-a apertar os lábios ainda mais.
—Por que não fala nada? —Uniu as mãos às costas e inclinou a cabeça
ligeiramente para ela— Jane?
—Tudo isto é por você, não é? —soltou-lhe ela— Se trata do que você
quer. De seus sonhos. E quanto a mim? Te importo embora seja um
pouco?
—Diga-me isso você —replicou— E você, Jane? O que quer? Quer que
eu vá embora? De verdade? Se isso for o que quer, diga-me isso, mas em
voz baixa e com seriedade, não com paixão, para que saiba que o diz a
sério. Diga-me isso e partirei.
Nem sequer enfrentar à pistola de Forbes alguns dias antes o tinha
provocado tal pânico.
—Estou grávida! —exclamou— Não tenho alternativas.
Jocelyn retrocedeu como se ela acabasse de lhe acertar um murro no
queixo com todas suas forças. Pelo amor de Deus! Desde quando sabia?
O teria dito se não tivesse ido vê-la esse dia?
O teria dito em algum momento? Teria confiado nele, o teria
perdoado alguma vez?
Jane o fulminou com o olhar durante o silêncio que seguiu a suas
palavras. Jocelyn apertou as mãos às costas com tanta força que se fez
mal.
—Bem —sussurrou ao final— Enfim, isso muda tudo, Jane.

367
Capítulo 26

368
Lady Webb abriu a porta do quarto de Jane e entrou. Seu traje, um
vestido de cor azul escura e um turbante coroado por plumas da mesma
cor, contrastavam muitíssimo com o de Jane, que parecia quase etérea
com um vestido muito decotado de renda branca e cetim, adornado com
um festão prateado na barra, no cinto que levava sob o peito e nas
mangas curtas.
—Oh, Sara, querida! —exclamou Lady Webb— É a filha que nunca
tive. Que afortunada me sinto. Quisera que sua pobre mãe estivesse aqui
para poder te ver durante o dia mais importante de sua vida. Está muito
bonita.
Jane tinha estado examinando seu aspecto de forma crítica no
espelho de pé de seu closet. Voltou-se para sua madrinha e replicou:
—O mesmo me disse ontem, quando me vi obrigada a pôr essa roupa
tão espantosa, pesada e antiquada com a que a rainha insiste em nos
disfarçar para ser apresentadas em suas recepções. Hoje me sinto muito
melhor.
—A apresentação na corte é obrigatória —recordou Lady Webb—
Seu baile de apresentação é sua entrada triunfal na sociedade.
—Acha que será triunfal?
Jane pegou seu leque, que descansava sobre a penteadeira. Estava
nervosa e emocionada pelo que ia acontecer essa noite. Levava todo o
dia uma grande confusão, preparando-se para o baile. Quando retornou
da saída matinal que fez acompanhada por sua donzela, observou
maravilhada como o salão de baile se transformava diante de seus olhos.
Estava adornado com faixas, laços e flores brancas e chapeadas, e a única
nota de cor era o verde das folhas. Baixaram-se os enormes lustres para
limpá-los e colocar centenas de velas. A orquestra tinha chegado à
última hora da tarde para deixar seus instrumentos no estrado. No salão
de jantar se dispuseram a melhor porcelana, a melhor cristaleira e o
melhor faqueiro para desfrutar do suculento banquete que se serviria a
meia-noite.
369
—É obvio que será triunfal! —exclamou Lady Webb, que se
aproximou de Jane para abraçá-la, embora com cuidado a fim de não
danificar seus respectivos trajes— Como não vai ser? É Lady Sara
Illingsworth, filha do falecido Conde de Durbury e uma grande herdeira.
É tão preciosa como uma princesa de contos. E já tem uma considerável
corte de admiradores.
Jane sorriu com tristeza.
—Todos eles excelentes aspirantes a marido —assinalou sua
madrinha— O Visconde de Kimble, por exemplo, foi muito atencioso e
acredito que poderia colocá-lo na linha sem problemas. Não tem por que
te sentir obrigada a respirar os cuidados de Tresham, em caso de que
queira seguir te cortejando, claro. Fez-me uma proposta decente. Ou ao
menos acredito que foi. Mas a escolha é sua, Sara.
—Tia Harriet… —protestou ela.
—Não direi mais a respeito —se apressou a dizer Lady Webb— Já
falei muito. Mais da conta, talvez. Vamos, temos que descer ao salão de
baile. Nossos convidados chegarão logo. Cyril e Dorothy já estarão nos
esperando.
Lorde Lansdowne era o irmão de Lady Webb, que o havia convidado,
a ele e a sua esposa, para que a ajudassem em seu papel de anfitriã. Lorde
Lansdowne seria o par de Jane para inaugurar o baile.
O salão parecia magnífico à luz do entardecer. Nesse momento
roubava o fôlego. As velas estavam acesas e sua luz dourada
resplandecia sobre os tons brancos e chapeados, e se multiplicava pelo
efeito dos longos espelhos situados nas paredes.
Jane pensou que parecia um salão adornado para celebrar umas
bodas. Mas essa noite se festejava sua apresentação à sociedade. E tudo
devia sair bem. Nada podia arruinar uma festa para a que sua tia Harriet
se esforçou tanto e para a que tinha empregado tanta energia. E em que
tinha gasto uma grande quantidade de dinheiro. Tudo para assegurar-se

370
que tanto no dia anterior como essa noite fossem perfeitos para sua
afilhada.
—Está nervosa, Sara? —perguntou-lhe Lady Lansdowne.
Jane a olhou com os olhos cheios de lágrimas.
—Só porque quero que tudo saia bem pela tia Harriet —respondeu.
—Devo dizer que está muito bonita, querida —acrescentou Lorde
Lansdowne— Que eu possa dissimular quão desajeitado sou na pista de
dança… —E pôs-se a rir de boa vontade.
Jane se voltou para Lady Webb, que a observava com uma expressão
muito maternal.
—Obrigado por tudo isto, tia Harriet — disse— Minha mãe não o
teria feito melhor.
—Bom querida. O que posso dizer? —Sua tia tinha os olhos
brilhantes.
Por sorte, possivelmente, os primeiros convidados chegaram nesse
momento.
Os quatro se apressaram a formar a linha de recepção justo às portas
do salão de baile.
A seguinte hora passou para Jane em um abrir e fechar de olhos,
enquanto era apresentada (por fim, à avançada idade de vinte anos) a
seus pares, à alta sociedade. Entre todos esses estranhos também havia
pessoas conhecidas. Algumas pessoas que já acreditava conhecer bem.
O muito bonito e simpático Visconde de Kimble, a quem sua tia
considerava um possível pretendente. O amigável Sir Conan Brougham,
e alguns amigos mais de Jocelyn, quão mesmos o tinham visitado
enquanto estava em Dudley House. Também saudou Lorde Ferdinand
Dudley, que lhe fez uma reverência e levou uma mão aos lábios enquanto
dava de presente seu alegre sorriso. E também chegaram os Condes de
Heyward. O Conde a saudou muito cortesmente, fez os comentários
371
típicos de qualquer apresentação e teria partido para o salão se sua
mulher não tivesse tido outra ideia em mente.
—Oh, Sara! —exclamou ao mesmo tempo em que a abraçava com o
conseguinte perigo para seus respectivos trajes— Está preciosa! Como
invejo como fica bem de branco. Eu pareceria um fantasma, daí que
tenha que levar cores mais intensas. Embora Tresham e Ferdie passem
a vida criticando meus gostos, são muito desagradáveis. Tresham virá
esta noite? Esta tarde cruzei com ele no parque e não se dignou me
responder de forma clara. Discutiram? Parece-me esplêndido que
discuta com ele. Até agora ninguém tinha sido capaz de enfrentá-lo
antes. Espero que não o perdoe muito rápido, mas sim o faça sofrer. Mas
amanhã sim estaria bem que…
Lorde Heyward a agarrou pelo cotovelo com firmeza.
—Vamos meu amor —disse— Se seguirmos mais tempo, a fila
descerá pela escada, atravessará o saguão e chegará até a calçada.
—Sara, discutiu com o Duque? —perguntou-lhe Lady Webb quando
o casal partiu— Não disse nada desde que veio te ver na semana
passada. Sabe se tem a intenção de vir esta noite?
Não obstante, era certo que havia uma longa fila de pessoas
esperando para saudá-los, de modo que não tiveram oportunidade de
seguir falando de temas privados.
Tresham sim foi. É obvio que foi. Chegou tarde, mas não muito. Jane
e Lady Webb estavam ainda às portas do salão de baile com Lorde e Lady
Lansdowne, enquanto no interior os convidados conversavam
alegremente e a orquestra começava a afinar os instrumentos. Ia vestido
com um fraque ajustado de cor negra, umas meias cinza de seda, um
colete bordado com fio de prata, uma camisa de linho de cor branca
nívea, a mesma cor das meias e da renda dos punhos, e uns sapatos
negros. Saudou os quatro com outras tantas reverências formais,
corretas e arrogantes.

372
—Lady Sara —murmurou quando chegou frente a Jane. Agarrou a
alça do monóculo, mas não chegou a levá-lo ao olho enquanto a olhava
devagar de cima abaixo— Valha-me Deus! Você parece quase uma
noiva.
Que homem mais odioso! Pensou ela. Porque Jocelyn devia saber
muito bem que o branco era a cor quase obrigatória para qualquer dama
que fosse apresentada a sociedade.
—Sua graça —murmurou ela a sua vez, enfatizando a palavra para
vingar-se pelo fato de que a tivesse chamado «Lady Sara». Acompanhou
a saudação com uma reverência.
Jocelyn não se entreteve, mas sim continuou no salão de baile. Jane o
desterrou de seus pensamentos. Embora lhe custasse muito, devia fazê-
lo. Essa noite era mais para sua tia que para ela.
Cinco minutos depois Lorde Lansdowne a levou até a pista de dança
para inaugurar a festa com uma série de contradanças. Jane desfrutou
ao máximo do momento. Estava dançando em uma fastuosa noite em
Londres pela primeira vez e ela era a protagonista da noite. A
contradança era uma dança enérgica e complicada, que a deixou
ruborizada e risonha. Outros casais se uniram a eles, muitos para deixar
bem claro que ao dia seguinte tia Harriet poderia alardear que o evento
tinha sido a sensação da temporada.
Jocelyn não dançou. Jane não o olhou diretamente nenhuma só vez, mas
foi consciente de sua presença em todo momento. Limitou-se a caminhar
sozinho pelo perímetro da pista de dança, muito arrumado e sério,
observando os bailarinos. Quando a contradança acabou, e depois que
Lorde Lansdowne a acompanhou de volta com Lady Webb, momento no
que se aproximaram vários possíveis pares de dança, entre eles Lorde
Ferdinand, viu que Jocelyn abandonava a estadia.

Jocelyn rondava pelo salão de baile. Não havia outra forma melhor
para descrever seus movimentos. Até ele era consciente do que fazia
373
enquanto atravessava o salão de baile, a sala de jogos, a sala de refrescos,
o corredor que conectava as três estadias e de volta ao salão de baile. Era
incapaz de deter-se em um lugar concreto, embora Pottier o tivesse
convidado a unir-se a uma partida de cartas e Lady Webb tinha devotado
lhe apresentar algum par. Ao final teve que lutar com Ferdinand, é obvio.
E com Angeline.
—Não sei para que se incomodou em vir, Tresh —reprovou seu
irmão quando se encontraram no corredor. Ferdinand ia a caminho da
sala de refrescos e Jocelyn estava a ponto de entrar no salão de jogos
pela terceira vez— Quão único fez desde que chegou é passear com
atitude mal-humorada e arrogante. Se veio para aguar a noite de Lady
Sara, te advirto que não vou permitir isso.
Jocelyn olhou seu irmão com satisfação. Depois levou o monóculo ao
olho.
—Segue com o mesmo valete, Ferdinand? —perguntou— Embora
siga tentando te degolar? É mais valente que eu, companheiro.
Ferdinand franziu o cenho enquanto tocava o pequeno corte que
tinha na parte direita do queixo. Jocelyn seguiu caminhando para a sala
de jogos.
Angeline se mostrou um pouco mais loquaz. Mas claro, quando não o
fazia? Ao que parecia, aplaudia Jane por parecer tão radiante e feliz
quando era evidente que tinha discutido com ele. Acrescentou que
esperava que Jane o levasse pela rua da amargura e jamais o perdoasse
pela ofensa que devia tê-la enfurecido; e que nunca mais o consideraria
seu irmão a menos que conquistasse Jane, pedisse-lhe matrimônio e se
negasse terminantemente a aceitar um não como resposta.
—Isso é o que consegui que fizesse Heyward —confessou, e procedeu
a abanar-se enquanto seu irmão a olhava aborrecido.
—Angeline —replicou Jocelyn— me pergunto se é daltônica. É a
explicação mais benévola que me ocorre para justificar essa espantosa
mescla de plumas vermelhas e rosas que leva no cabelo.
374
Ela passou por cima o comentário.
—Se casará com Lady Sara na igreja de Saint George, em Hanover
Square, antes que conclua a temporada —sentenciou— Com a alta
sociedade em pleno. Insisto em que o faça, Tresham. Terei que planejá-
lo eu?
—Que o Senhor nos proteja… —murmurou antes de despedir-se dela
com uma galante reverência e continuar caminhando para o salão de
baile.
Já quase tinha chegado o momento. O cotillón que a orquestra
interpretava estava chegando a seu fim. E a seguinte peça seria uma
valsa. Deteve-se perto da porta, já sem rondar, e observou como
Brougham levava uma ruborizada e sorridente Jane de volta a Lady
Webb. A seu redor se reuniu a inevitável corte de aspirantes. Tal parecia
que Kimble era o ganhador. Porque estava sorrindo enquanto dizia algo
a Jane. Jocelyn se aproximou deles devagar.
—Senhorita —disse quando esteve perto o bastante — se não me
equivoco, esta é minha dança.
—Muito tarde, muito tarde —replicou Kimble com um deixe
impertinente— Eu pedi primeiro, Tresham.
Jocelyn olhou seu amigo com expressão arrogante e as sobrancelhas
arqueadas enquanto seus dedos se fechavam em torno da manga do
monóculo.
—Te felicito, meu amigo —repôs— mas de todas as formas a mão da
dama é minha. Claro que se insistir em discutir esse ponto…
—Sua graça —atravessou Jane, mais envergonhada que furiosa.
Jocelyn levou o monóculo ao olho e a olhou. Os jovenzinhos que a
rodeavam estavam petrificados a essa altura, como se esperassem
murros de um momento a outro e estivessem aterrados de verem-se
implicados.

375
—Tresh, já teve muitos duelos —disse Kimble— Além disso, não
gostaria de enfrentar o canhão de sua pistola, embora saiba com certeza
que dispararia ao ar chegado o momento. —A seguir, fez uma
reverência, teve a ousadia de piscar para Jane e se afastou.
—Sua graça, não posso dançar a valsa —recordou Jane — Este,
Jocelyn é meu baile de apresentação e ainda não conto com a permissão
das damas do comitê organizador do Almack’s para dançar a valsa em
público.
—Bobagens! —exclamou ele— Este é seu baile, Lady Sara —
recordou— e pode dançar se o deseja. Deseja-o?
Lady Webb, que poderia ter protestado, guardou silêncio. A decisão
era de Jane. Teria coragem de aceitar? Jocelyn a olhou aos olhos.
—Sim —respondeu a tempo que colocava a mão em seu braço— É
obvio que sim.
E assim ocuparam seu lugar na pista de dança, feito que chamou
grandemente a atenção de todos os convidados, conforme percebeu
Jocelyn. Jane e ele eram um tema quente, recordou, apesar de todos seus
esforços para sossegar os rumores. E, para cúmulo, acabava de enrolá-la
para dançar uma valsa desafiando todas as convenções sociais.
A opinião dos outros lhe importava um cominho. Mas a Jane sim que
importava, é obvio. Esse era seu baile de apresentação, o baile que Lady
Webb tinha planejado com abnegado entusiasmo. Olhou-a de novo aos
olhos enquanto a tomava entre seus braços. Como comportar-se como
deveria fazê-lo um cavalheiro e atuar como se Jane não fosse nada para
ele? Como dissimular o que sentia por essa mulher? O simples feito de
tocá-la como a estava tocando… No entanto, manteve a distância
adequada entre seus corpos e se concentrou em dissimular o desejo que
o afligia.
—Foi um detalhe muito feio por sua parte dizer o que disse ao chegar
— reprovou ela.

376
—Refere-se a que te chamei «Lady Sara»? —perguntou— Esse é seu
nome. Fiz ornamento de meu melhor comportamento. E, além disso,
você se vingou em um abrir e fechar de olhos, Jane.
—Não me referia a isso —replicou ela— a não ser ao outro.
—Ao comentário de que parece uma noiva? —precisou Jocelyn— É
certo. Renda branca, cetim e bochechas ruborizadas.
—Mais bem tintas! —protestou Jane— Estive dançando.
—Com seus mais fiéis e persistentes admiradores —disse ele.
—Está ciumento?
Jocelyn arqueou as sobrancelhas, sem dignar-se a responder. O que
fez foi aproximá-la mais a seu corpo. De forma escandalosa, de fato. Era
consciente dos murmúrios que se produziam atrás dos leques, os
impertinentes e as mãos enluvadas. Jane não protestou.
A partir desse momento guardaram silêncio. A orquestra
interpretava uma valsa muito alegre e o salão de baile era muito maior
que o salão de Dudley House, onde dançaram sua primeira valsa.
Conduziu-a pelo perímetro da estadia, fazendo-a girar ao ritmo da
música sem deixar de olhá-la aos olhos e enquanto seus corpos se
roçavam.
Não havia necessidade de palavras. Já tinham falado muito desde que
se conheceram. Tanto que às vezes podiam manter uma eloquente
comunicação sem necessidade de emitir som algum. Apesar de suas boas
intenções, fez-lhe amor com o olhar, alheio por completo a qualquer um
que estivesse observando-os. Ela apertou os lábios, mas sustentou seu
olhar em todo momento. Para lhe advertir que não estragasse a noite. E
não pensava fazê-lo, por Lady Webb. Possivelmente a tivesse levado ao
escândalo ao enrolá-la para dançar a valsa, mas não obteve que lhe
devolvesse o olhar apaixonado. Nem tão pouco obteve que discutisse. No
entanto, seu olhar lhe dizia muitas outras coisas. Seus olhos eram mais
expressivos do que ela pensava.
377
—Enfim, Jane —disse ao notar que a valsa chegava a seu fim— Qual
é seu veredicto? É o dia mais feliz de sua vida?
—É obvio —respondeu ela enquanto esboçava um lento sorriso—
Como não o seria? E você, está feliz? —perguntou a sua vez.
—Totalmente —respondeu.
Enquanto a agarrava pelo braço para levá-la de volta a Lady Webb,
viu que a dama estava acompanhada por um desconhecido. Um jovem
vestido de forma imaculada e perfeita, mas que não prestava atenção à
elegância ou às últimas tendências da moda. Como se vivesse quase todo
o tempo no campo. O caipira covarde, se não estava muito equivocado.
Uma suspeita que ficou confirmada quase imediatamente, quando
Jane olhou para sua madrinha depois de escutar o comentário que
alguém lhe fez ao passar. Quando olhou para diante, deu-lhe um apertão
no braço e acelerou o passo.
—Charles! —exclamou oferecendo as duas mãos ao caipira, que
olhava furioso a ele, como se estivesse disposto a despedaçá-lo membro
a membro.
—Sim, Sara —replicou o muito imbecil, olhando ao final à mulher que
supostamente era o amor de sua vida e tomando suas mãos— Vim.
Agora está a salvo.

—Vim —repetiu Charles— E ao que parece bem a tempo, Sara. Esse


tipo me resulta muito ofensivo.
Jane o tinha puxado pelo braço para acompanhá-lo à sala de
refrescos. Sim, Jocelyn tinha se comportado de forma bastante irritante.
Tinha adotado o papel de Duque de Tresham inclusive antes que ela
fizesse as apresentações e lhe tinha demonstrado um arrogante desdém
enquanto levava o monóculo ao olho. E depois de apresentá-los,
comentou com deixe desdenhoso:

378
—Ah, sim? O paladino de Sara, não é? Seu cavalheiro defensor que
cavalgou para resgatá-la quando estava nas garras do dragão?
A Charles resultou muito revoltantes suas palavras, mas não
encontrou melhor réplica que aduzir que naquele momento estava longe
de casa e que ao voltar descobriu que nem sequer o investigador da Bow
Street tinha a encontrado.
—Sim, é obvio —conveio então Jocelyn com um suspiro, depois do
qual se despediu dela e de Lady Webb com uma inclinação de cabeça
antes de partir.
Para sua mais absoluta vergonha, Jane teve que conter uma
gargalhada. Ao ver Charles no salão de baile de sua tia Harriet só tinha
sentido consternação e vergonha. Estava segura de que devia ter
recebido sua carta antes de partir da Cornualha. Mas tinha ido a Londres
de todas as formas.
—Sim, você veio—disse ela— Mas por que, Charles, se te escrevi para
dizer que não o fizesse?
—Como ia manter-me afastado de você? —perguntou ele a sua vez.
—No entanto —replicou ela enquanto aceitava o copo de limonada
que oferecia depois de pegá-lo de uma bandeja— não veio quando mais
te necessitava, Charles. Sim, sei. —Levantou uma mão para indicar que
guardasse silêncio— Não te pareceu lógico vir porque não sabia onde
procurar. Era mais sensato ficar em casa.
—Sim, exato — conveio ele—Vim agora que posso fazer algo. Me
alegro de que Lady Webb tenha organizado este baile em sua honra. O
mais adequado é que Lady Sara Illingsworth seja apresentada a
sociedade rodeada pela aristocracia. Mas é lamentável que inclusive em
um acontecimento como este te veja obrigada a suportar a companhia
de todos esses libertinos e caça fortunas que a convidam para dançar.

379
—Tia Harriet escolheu os convidados —assinalou Jane— E todos
aqueles cavalheiros com os que dancei esta noite contaram com sua
aprovação. Ao fazer esse comentário a está insultando, Charles.
—Bom, mas estava dançando uma valsa com o Duque de Tresham —
insistiu ele— que se tomou muitas liberdades ao te olhar como olhava,
Sara. Além disso, não tinha direito a te convidar para dançar uma valsa.
Talvez por sua culpa lhe pontuem de ser uma mulher rápida. Sei que foi
ele quem te encontrou e te trouxe para a casa de Lady Webb, assim
suponho que sua madrinha não teve escolha a não ser convidá-lo. Mas
não deve incentivá-lo. É impossível que um homem como ele se
aproxime de uma mulher decente sem más intenções, asseguro-lhe isso.
Jane suspirou enquanto bebia um sorvo de limonada.
—Charles —disse— não vou discutir contigo. Sempre fomos amigos
e te agradeço que se preocupe tanto por mim para ter vindo. Mas te
recordo que não deve julgar às pessoas sem as conhecer.
—Basta-me com sua reputação —replicou Charles— Sara, me
desculpe, mas te recordo que desfrutou de uma educação deliciosa e que
você levou uma vida muito protegida longe de lugares como Londres.
Entendo que uma experiência como a desta noite te resulte
emocionante. Mas não deve abandonar suas raízes. Seu lugar está no
campo. Não seria feliz vivendo aqui.
—Certo —conveio com um sorriso sem afastar o olhar do copo—
Tem razão.
—Então, volta para casa comigo —insistiu— Amanhã, depois de
amanhã ou na próxima semana. Basta vir.
—Oh, Charles! —exclamou— Eu adoraria que tivesse lido a carta que
te enviei. Não posso voltar para a Cornualha. Essa etapa de minha vida
acabou. Espero que sigamos sendo amigos, mas tenho que…
—Não é o homem adequado para você, Sara —a interrompeu com
certa urgência— Acredite em mim, ele não é. Só te traria infelicidade.
380
—Que é precisamente o que eu traria a você —assinalou ela com
doçura—Te tenho um grande afeto, Charles.Mas não te amo.
—O amor chega depois do matrimônio —replicou ele— O afeto é um
começo mais que suficiente.
Jane lhe colocou uma mão no braço.
—Não é o momento, nem o lugar apropriado para esta conversa,
Charles —recordou— Tinha prometido esta dança e faltei a minha
promessa. Se não voltarmos ao salão, acontecerá o mesmo com o
seguinte e eu não gostaria nada.
—Nesse caso falaremos amanhã —lhe prometeu ele.
Adoraria que Charles não tivesse ido a Londres, pensou enquanto ele
a acompanhava de volta ao salão de baile. Mas não disse nada mais.
Um pouco mais tarde, uma vez sentada para jantar a uma das longas
mesas dispostas na sala de jantar e acompanhada por amigos e
conhecidos, viu que Charles reclamava a cadeira vazia situada frente à
sua. Jane sorriu e o apresentou aos comensais mais próximos. Enquanto
outros conversavam e riam sobre uma ampla variedade de temas,
Charles se manteve em silêncio.
O Barão Pottier anunciou que tinha a intenção de ir a Brighton para
passar o verão, uma vez que finalizasse a temporada social. Era o lugar
onde veraneava o príncipe regente, e a metade da alta sociedade o
seguia.
—Você irá, Lady Sara? —perguntou Lorde Pottier.
—Não, acredito que não —respondeu— Prefiro passar o verão no
campo.
O Visconde de Kimble, que estava sentado junto a ela, pegou sua mão
e a levou aos lábios.
—Mas Brighton carecerá de todo atrativo sem você —disse com um
brilho alegre nos olhos— Devo raptá-la e levá-la comigo?
381
—Ah, não, nem pensar —respondeu Lady Heyward entre
gargalhadas— Em caso de que haja algum rapto, será por minha parte.
Com a ajuda de Heyward. Claro que ele jamais aceitaria fazer algo tão
atrevido e perigoso, é obvio. Assim teria que fazê-lo com Ferdinand.
Raptaremos Lady Sara e Tresham e os levaremos a Saint George para
celebrar umas bodas magníficas. Não é, Ferdie?
Lorde Ferdinand, que estava sentado junto a Charles ao outro lado da
mesa, sorriu.
—Angie, se fosse tentar sequestrar Trestam,teria que contar com a
ajuda da metade do regimento de corpulentos soldados —aduziu.
O Visconde de Kimble soltou um sentido suspiro.
—Caramba! —exclamou— Não se esqueça de mim, ou romperá meu
coração, senhora.
Jane riu ao escutá-lo, e a conversa teria seguido por outros roteiros,
mas Charles, que talvez não percebesse que tudo era uma brincadeira,
decidiu falar nesse momento.
—Como Lady Sara disse, voltará para o campo para passar o verão.
Ou talvez antes —acrescentou.
—Certamente —conveio Lady Heyward, rindo— Depois das bodas.
Ferdie, sério…
—Lady Sara voltará para a Cornualha. Comigo —particularizou
Charles com suficiente ênfase para chamar a atenção de todos os
comensais da mesa— Faz muito que estamos comprometidos.
—Charles! —repreendeu-o Jane antes de explicar ao resto dos
convidados— Charles e eu fomos amigos e vizinhos toda a vida.
—Tresham teria que dizer um par de coisas sobre seu…
Compromisso —comentou o Barão Pottier— De verdade vai voltar para
a Cornualha, Lady Sara? Apesar de Jardine?

382
—Acredito que serei capaz de defender minha prometida de
qualquer possível impertinência por parte do aludido —afirmou
Charles.
—Charles, por favor…
—Você está muito equivocado, senhor —atravessou alegremente
Lady Heyward— Lady Sara vai casar-se com meu irmão, embora tenham
discutido e esta noite só tenham dançado uma vez…
—Deixa-o, Angie —a interrompeu Lorde Ferdinand— A dama parece
mortificada. Vamos trocar de tema. Falemos do tempo.
Mas Charles não estava disposto a claudicar. Ficou em pé,
empurrando a cadeira com as curvas. E de algum modo o gesto se fez
com a atenção de todo o abarrotado salão, chamando a atenção de todos.
—Lady Sara Illingsworth não será o objeto das galanterias dos
libertinos londrinos durante muito mais tempo —afirmou com a voz
tremente pela indignação— A levarei para casa, ao lugar a que pertence.
Não a Candleford Abbey, a não ser a minha casa.
Jane teria fechado os olhos pela vergonha, mas antes olhou a uma
figura embelezada de negro que contemplava a cena do vão da porta da
sala de jantar. Devia estar a ponto de sair da estadia quando se deteve,
monóculo na mão, para olhar a Charles.
—Senhor Fortescue —disse Lady Lansdowne do extremo da mesa—
devemos supor que você está anunciando seu compromisso com Lady
Sara?
Jane procurou o olhar de Jocelyn, que seguia no vão da porta.
—Charles… —disse.
—Sim, senhora —respondeu ele, elevando a voz para dirigir-se a
todos os convidados ao baile— Tenho a honra de anunciar meu
compromisso com Lady Sara Illingsworth. Confio em que todos os
pressente nos desejem um futuro feliz.
383
O silêncio foi substituído por um repentino murmúrio. No entanto,
Jocelyn deu um passo para a mesa nesse instante e voltou a fazer o
silêncio.
—Não, não, não —disse, adotando de novo a atitude do Duque de
Tresham— Estou seguro de que Lady Sara não deu seu consentimento e
lhe recordo, Fortescue, que não é de boa educação fazer semelhante
anúncio a menos que a suposta noiva esteja de acordo.
—É obvio que está de acordo —replicou Charles, irritado— Estamos
compromet…
—Está de acordo, Jane? —O monóculo ducal se desviou para ela—
Que impertinente é, meu amor.
Jane escutou um ofego feminino fruto da escolha das palavras do
duque. Embora Jocelyn devesse estar realmente se divertindo, ela bem
desejava que a tragasse a terra.
—Não é seu amor —protestou Charles— e lhe agradeceria que…
—Asseguro-lhe que é! —exclamou Jocelyn, que se aproximou um
pouco mais enquanto baixava o monóculo— E me oponho
energicamente a seu compromisso imaginário com ela, meu amigo. Verá,
por muito que lhe agradeça o interesse que demonstrou pelo bem-estar
de Jane, não posso permitir que se case com minha esposa.
Os murmúrios se estenderam de novo, mas foram sufocados
rapidamente por aqueles que vaiaram exigindo silêncio. Ninguém queria
perder uma só palavra do drama que estava acontecendo e que seria
relatado uma e outra vez com grande deleite em numerosos salões
privados e nos clubes de cavalheiros durante dias, ou talvez semanas.
—Como? —Charles estava lívido, conforme percebeu Jane com uma
rápida olhada. Olhou-a do outro lado da mesa— Sara, é verdade?
Ela assentiu de forma quase imperceptível.

384
Charles seguiu olhando-a um pouco mais enquanto os murmúrios se
elevavam de novo, seguidos de mais vaias, e depois se voltou e saiu da
sala de jantar roçando o braço do duque no processo.
—Vem, Jane —a convidou Jocelyn, que lhe estendeu uma mão.
Jane o obedeceu, embora os joelhos tremessem.Ele estava sorrindo,
e jamais tinha visto esse sorriso: sincero, íntimo, radiante.
—Damas e cavalheiros —disse enquanto a puxava pela mão— me
permitam lhes apresentar minha esposa, a Duquesa de Tresham.
Senhora? —disse, dirigindo-se a Lady Webb, a quem fez uma
reverência— Peço desculpas por ter me visto obrigado a realizar este
anúncio. Jane insistiu em que nada devia danificar o dia de ontem, nem
o de hoje, já que você tinha planejado de forma incansável sua
apresentação à rainha e sua apresentação à sociedade. Acontecimentos
que teriam tido que alterar-se para uma mulher casada. De modo que
aceitei atrasar nosso anúncio até amanhã. —colocou a mão de Jane no
braço e a cobriu com a sua, depois do qual observou os convidados,
embora seus olhos se detivessem em seus irmãos quando acrescentou—
Nos casamos esta manhã com uma licença especial. Foram umas bodas
discretas, como ambos desejávamos, com a única assistência de meu
secretário e da donzela da duquesa como testemunhas. —Olhou a Jane
com um sorriso, com esse maravilhoso, tenro e aberto sorriso, e levou
sua mão aos lábios.
Seu anúncio tinha suscitado movimentos e muito ruído entre os
convidados.
—Meu amor —murmurou, aproveitando o momento de
intimidade— estava decidido a levar minha esposa para minha casa, a
minha cama, durante o que testasse de noite depois que seu baile
acabasse. Como verá, não sou um santo.
—Nunca quis um santo —replicou ela— Só quero a você, Jocelyn.
Jocelyn se inclinou para ela com um olhar ardente e sussurrou com
paixão ao ouvido:
385
—Meu amor e minha vida. Minha Jane. E por fim, e para sempre,
minha esposa.
Jane só teve um instante, um instante eterno, para lhe dar de presente
um sorriso radiante e para assimilar com grande surpresa que era certo.
Que estava casada com Jocelyn, com seu amor, com o tesouro de seu
coração, com a outra metade de sua alma. A felicidade que sentia era
imensa. Jocelyn era seu marido!
E já não havia motivos para ocultá-lo.
E nesse momento abraçou tia Harriet, chorando e ralhando com ela
entre gargalhadas. E depois foi a vez de Lady Heyward, que a estreitou
com força sem parar de falar a grande velocidade. Lorde Ferdinand a
beijou na bochecha com um sorriso e a chamou «irmã». O Visconde de
Kimble fingiu levar uma mão a um coração destroçado enquanto a
beijava também na bochecha. Os amigos de Jocelyn o felicitaram
estreitando sua mão e dando palmadas em suas costas. Sua irmã molhou
seu colete com as lágrimas, apesar dos protestos de Jocelyn, e declarou
que seus nervos não podiam assimilar semelhante sobressalto, que
jamais tinha sido tão feliz e que organizaria um enorme baile em honra
dos recém-casados que se celebraria na semana seguinte, depois do qual
acrescentou que desafiava seu irritante marido a tentar detê-la.
Depois desse momento, tudo foi muito confuso. Os convidados foram
ao salão de baile e felicitaram o flamejante e feliz casal com reverências,
genuflexões, apertos de mãos, abraços e beijos conforme avançavam
junto a eles. O baile demorou bastante em retomar-se.
Ao final ficaram sozinhos na sala de jantar com Lady Webb, com
Lorde e Lady Lansdowne, com os Condes de Heyward e com Lorde
Ferdinand. Jocelyn tirou a resplandecente aliança de Jane de um bolso
do colete, levantou sua mão e a colocou no dedo anelar, onde tão
brevemente tinha descansado essa manhã.
—Com este anel, meu amor, te desposo —disse, depois do qual
inclinou a cabeça para beijá-la nos lábios diante da reduzida audiência.
386
Depois olhou a Lady Webb— Senhora acredita que poderia convencer à
orquestra para que interpretasse outra valsa?
—É obvio —respondeu a tia Harriet.
E assim foi como dançaram de novo a valsa, só durante os cinco
primeiros minutos enquanto outros os observavam.
—Insisto em que quase parece uma noiva, Jane —disse Jocelyn
enquanto a música começava. Nessa ocasião era uma melodia lenta e
romântica— De fato, é a viva imagem de uma noiva. A minha.
—E o salão de baile está decorado como se celebrasse umas bodas —
acrescentou ela, devolvendo o olhar— A nossa.
E então Jocelyn fez algo realmente escandaloso. Inclinou a cabeça e
lhe deu um beijo apaixonado. Depois, quando se separou de seus lábios,
sorriu com picardia e a beijou com delicadeza. E voltou a beijá-la com
todo o desejo, a esperança e o amor que ela sabia muito bem que
guardava em seu coração. Porque ela também os guardava no seu.
—Jamais reformará o perigoso Duque de Tresham —sentenciou uma
voz sem identificar que soou incrivelmente alta e clara enquanto Jocelyn
a fazia girar ao compasso da valsa.
—E para que iria querer reformá-lo? —replicou uma voz feminina.

Fim

Trilogia Amante
1 – Mais que uma Amante
2 – No Man’s Mistress
3 – The Secret Mistress

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