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O FF II AA DD AA CC II ÊÊ NN CC I I AA
Preocupados com a
SEMEANDO
crescente especialização
de suas disciplinas,
alguns cientistas vêm
procurando um antídoto
para o retalhamento
do mundo real causado
por essa situação.
Esse antídoto
é a interdisciplinaridade,
isto é, o incentivo
a uma maior comunicação
entre os saberes
compartimentados,
para que a unidade
e as interações do todo
voltem a ser respeitadas
como um princípio
metodológico.
O texto a seguir propõe
que, em vez de costurar
os retalhos já existentes,
modifiquemos nosso
olhar a respeito
da natureza que nos criou
e até hoje nos sustém,
reaprendendo que seus
limites são, também,
a fonte de suas
e de nossas
possibilidades de ser.
ILUSTRAÇÃO ALVIM
INTERDISCIPLINARIDADE
As ‘idéias-vivas’
de Gregory Bateson
Nos artigos principais de sua edição de nº 224 Contar a passagem do tempo não por abstratos
(de março último), Ciência Hoje investigou o que séculos, mas por pares de avôs e netos de carne e
chamou de ‘O fim do mundo’, ou seja, a interação osso, ajuda a recolocar nossas descobertas científi-
entre mudanças climáticas (objeto das ciências fí- cas em uma dimensão mais próxima da nossa fra-
sicas), epidemias (ciências naturais) e genocídios gilidade. Fragilidade do ‘húmus que sabe que sabe’,
(ciências humanas). A partir desses artigos, é che- tradução com licença poética do pomposo Homo
gado o momento de reavaliar a célebre afirmação sapiens sapiens que nomeia a nossa espécie. E aqui
do legislador, político e filósofo inglês Francis tocamos a questão central deste artigo: a poesia e
Bacon (1561-1626), contemporâneo do bisavô do a arte em geral seriam apenas um recurso narrati-
bisavô do bisavô de meu bisavô, e um entusiasta vo de que lançamos mão na tentativa de embelezar
do revolucionário – em sua época – modo de pen- nossos (tantas vezes) áridos textos? Algo que está
sar científico moderno: “Saber é poder”. fora do universo científico, uma espécie de papel
Em seu momento histórico, Bacon estava cor- de embrulho bonito e sofisticado, logo descartado,
reto em exaltar as possibilidades que a ciência ‘pois o que importa é o conteúdo’? Ou as questões
moderna prometia: o avô do avô de seu avô fora de beleza (e feiúra) são intrínsecas ao ‘fazer-ciên-
um perplexo sobrevivente da Peste Negra que, cia’ e ao cientista?
na segunda metade do século 14, matou um de O cartaz de convocação da reunião da SPBC em
cada quatro europeus ocidentais. Mas nenhum de Florianópolis (figura 1) reforça essa percepção: será
nós, contemporâneos, pode mais negar que a ciên- que o fértil, espinhoso, por vezes banalizado, mas
cia, se conseguiu decifrar a mecânica das pestes, imprescindível tema da interdisciplinaridade é al-
ao mesmo tempo as multiplicou silenciosa e in- go mais bem representado quando se dá à poesia
conscientemente. Tanto que, hoje, é exatamente ‘licença’ de se fazer presente? Por que a ciência re-
o poder que nosso saber científico põe à dispo- corre à arte ao enfrentar uma questão que parece
sição da sociedade que ameaça a existência de ter a ver com a própria identidade de cada um de
nossos netos. nós, cientistas modernos?
Gregory Bateson (1904-1980) – biólogo e antro-
pólogo inglês cujas ‘idéias-vivas’ podem nos ajudar
“Quebre o ‘padrão que liga’ na busca de uma epistemologia capaz de apreen-
der essa ecologia que rege os frutos de nossos cru-
os itens do aprendizado zamentos entre disciplinas – teria aprovado a for-
ma estética da convocação da reunião deste ano.
e você necessariamente Em sua Última conferência, ele nos fala sobre a
proposta dessa nova epistemologia – desse novo
destrói toda a qualidade.” modo de ver, ou conhecer, o mundo e do novo
Gregory Bateson mundo capaz de ser visto apenas se assumirmos
um olhar menos compartimentado – e a qualifica
de ‘biológica’, já que, para ele, ‘idéias’ e ‘poesias’
são tão naturais quanto o metabolismo dos seres
que as produzem.
No livro Mente e natureza: a unidade necessá-
ria, Bateson relata que reconheceu no outro lado
do espelho, lá na ‘natureza’, não só sua ganância,
sua determinação, seu assim chamado ‘animal’.
Na natureza, ele também viu as raízes da simetria
humana, da beleza e feiúra, da vivacidade e sabe-
doria que nos alentam: nosso encanto corporal e
nosso hábito de fazer objetos bonitos são tão ‘ani-
mais’ quanto nossa crueldade. No entanto, como
professor nas universidades de Cambridge (Ingla-
terra), Sidney (Austrália) e Harvard, Stanford, Santa
Cruz, Flórida e Havaí (todas nos Estados Unidos), véssemos explicado ‘essa perfeição da estrutura e
Bateson descobriu que os alunos treinados na da coadaptação que tão justificadamente desperta
epistemologia científica moderna tinham grande nossa admiração’.”
dificuldade de desenvolver as habilidades neces- É esse ‘olhar-e-ver’ o mundo natural separado
sárias a esse novo modo de ‘olhar-e-ver’ o mundo em sua unidade que nos ensinam nas universida-
natural. des modernas: de um lado, o corpo/matéria/má-
Um exemplo é a teoria da evolução. Guiada quina, já decifrado pela ciência e passível de ser
pelo pressuposto do matemático e filósofo francês domesticado; de outro, a beleza da mente/espíri-
René Descartes (1596-1650), que separa o corpo/ to, indecifrável e inalcançável. Para Bateson, é o
máquina e a mente/espírito em reinos distintos, a modo como aprendemos sobre as coisas do mun-
versão hegemônica da teoria elaborada pelo natu- do natural que nos vela, esconde, encobre a per-
ralista inglês Charles Darwin (1809-1882) encara cepção do ‘padrão que liga’ as criaturas vivas:
a questão da beleza do mundo vivo de uma forma quem não se lembra de ter aprendido que o
que reproduz essa separação, enxergando conheci- corpo humano se divide em cabeça, tronco
mento técnico e conhecimento estético como ma- e membros?
pas singulares e distintos de um mesmo território. Mas nós, os cientistas modernos, como
Em seu livro A montanha de moluscos de Leonar- as formigas da milenar história persa
do da Vinci, o biólogo e paleontólogo norte-ameri- (ver ‘As formigas e a pena’), conti-
cano Stephen Jay Gould (1941-2002) sintetiza como nuamos a fantasiar que temos o do-
a questão da beleza do mundo natural é tratada na mínio completo da mecânica da
epistemologia darwinista: “Darwin afirma, no pre- vida, protegidos pela ignorância
fácio de A origem das espécies, que os fatos da de que ela guarda um sentido e
taxonomia, da embriologia, da paleontologia e da uma intenção que seria melhor
biogeografia ‘seriam suficientes para comprovar a não acreditar que podemos de-
operação da evolução’, acrescentando, porém, que sobedecer, procurava alertar
não poderíamos nos dar por contentes até que ti- o anticartesiano Bateson.
AS FORMIGAS E A PENA
Certo dia, uma formiga que caminhava perdida Desse modo as formigas descobriram os dedos.
sobre uma folha de papel viu uma pena que es- Passado algum tempo, outra formiga escalou os
crevia em finos e negros movimentos ritmados. dedos e percebeu que eles compreendiam a mão,
— Que maravilha! – exclamou. — Essa coisa que ela explorou total e minuciosamente, ao estilo
notável possui vida própria! E faz rabiscos tão exten- da sua espécie. Voltou então para junto de suas
sos e com tanta energia nesta bela superfície que companheiras e gritou-lhes:
chega a se igualar aos esforços de todas as formigas — Formigas! Tenho importantes notícias para
do mundo. Os rabiscos que faz! Parecem formigas! vocês. Aqueles pequenos objetos que rodeiam a
Não uma, mas milhões de formigas correndo juntas! pena fazem parte de outro muito maior. E este é
Ela repetiu suas idéias para uma companheira, que realmente dá movimento a todos eles.
que ficou interessada em sua história e elogiou Mas então as formigas descobriram que a mão
seus poderes de observação e reflexão. Mas outra estava ligada a um braço; que o braço estava liga-
formiga disse: do a um corpo; que não existia uma, e sim duas
— Aproveitando-me de seus esforços, devo mãos; e que existiam pés, que não escreviam.
admiti-lo, tenho observado esse estranho objeto e As investigações prosseguiram e, assim, as for-
cheguei à conclusão de que ele não é o dono de seu migas puderam formar uma idéia clara da mecânica
próprio trabalho. Você falhou em observar que a da escrita. Porém, através de seu método de inves-
pena está ligada a outros objetos que a rodeiam e tigação costumeiro, não conseguiram descobrir o
conduzem. Estes devem ser considerados como a sentido e a intenção do que estava escrito, nem
origem de seu movimento e reconhecidos como tal. como aquilo era, em última análise, governado.