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ALBERT CAMUS [An

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pela miséria viscosas que o enchiam, o caminho percorrido por esse
homem. A janela que dava para o pátio estava fechada. A outra,
apenas entreaberta. O lampião, pendurado e cercado por um baralho
em miniatura, lançava sua luz redonda e tranqüila sobre a mesa, os
pés de Mersault e de Cardona e uma cadeira um pouco adiante da
parede que ficava de frente para eles. Cardona, no entanto, pegara a
foto nas mãos, olhava para ela, e, beijando-a, dizia, com sua voz de
doente: “Pobre mamãe.” Mas era a si mesmo que lamentava. Ela
estava enterrada no horrendo cemitério que Mersault conhecia bem,
no outro extremo da cidade. Ele quis sair. Disse, articulando bem,
para se fazer entender:
— Não pode ficar assim.
— Não tenho mais trabalho — disse o outro, com esforço, e,
estendendo a fotografia, com uma voz entrecortada: — Eu a amava —
e Mersault traduzia: “Ela me amava”. — Está morta — e ele
compreendeu: “Estou só”. — Fiz o tonelzinho para ela no dia de seu
santo. — Sobre a lareira, havia um pequeno tonel de madeira
envernizada, guarnecido de aros de cobre e de uma torneira
brilhante.
Mersault retirou a mão do ombro de Cardona, que se
abandonava por inteiro, sobre os travesseiros imundos. De debaixo
da cama, chegou um suspiro profundo e um cheiro repugnante. O cão
saiu lentamente, encolhendo-se. E pousou sobre os joelhos de
Mersault a cabeça de longas orelhas e olhos dourados. Mersault
olhava para o pequeno tonel. No quarto sórdido onde o homem
respirava com dificuldade, com o calor do cão sob os dedos, fechava
os olhos sobre o desespero que, pela primeira vez em muito tempo, o
inundara como um mar. Diante da infelicidade e da solidão, seu
coração dizia-lhe hoje: “Não”. E, na grande angústia que o enchia,
Mersault sentiu bem que sua revolta era a única coisa válida; o resto
era miséria e condescendência. A rua, que ontem se animara sob as
janelas, continuava cheia de ruídos. Dos jardins sob o terraço subiu
um cheiro de ervas. Mersault ofereceu um cigarro a Cardona e ambos
fumaram sem falar. Os últimos bondes passaram e, com eles, as
lembranças ainda vivas dos homens e das luzes. Cardona adormeceu
e logo roncava com o nariz cheio de lágrimas. O cão, enrolado aos
pés de Mersault, mexia-se às vezes e gemia em seus sonhos. A cada
movimento, seu cheiro chegava até Mersault. Encostado à parede,
tentava comprimir no coração a revolta da vida. O lampião queimava,
e acabou por se apagar, com um cheiro horrível de querosene.
Mersault cochilara e despertou com os olhos fixos na garrafa de
vinho. Com um grande esforço, levantou-se, foi até a janela do fundo
e ficou imóvel. Do coração da noite, chegavam chamados e silêncios.
Nos limites do mundo que cochilava aqui, um navio chamou
demoradamente os homens para a partida e os recomeços.
No dia seguinte, Mersault matava Zagreus, voltava para casa e
dormia a tarde toda. Acordava com febre. E, à noite, sempre deitado,

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mandou chamar o médico do bairro, que o considerou gripado. Um
empregado do seu escritório veio saber notícias, trazendo o pedido de
licença. Alguns dias depois, tudo se arranjara: um artigo, um
inquérito. Tudo justificara o gesto de Zagreus. Marthe veio ver
Mersault e disse, suspirando:
— Há dias em que gostaria de estar no lugar dele. Mas, às
vezes, é preciso mais coragem para viver do que para se matar.
Uma semana depois, Mersault embarcava para Marselha. Para
todo mundo, ele ia repousar na França. De Lyon, Marthe recebeu uma
carta de rompimento, com a qual apenas seu amor-próprio sofreu. Ao
mesmo tempo, ele anunciava que lhe haviam oferecido uma situação
excepcional na Europa Central. Marthe escreveu-lhe sobre o seu
sofrimento para uma caixa postal. Essa carta jamais chegou às mãos
de Mersault, que, no dia seguinte ao de sua chegada a Lyon, teve um
violento acesso de febre e pegou um trem para Praga. No entanto,
Marthe lhe anunciava que, após vários dias no necrotério, Zagreus
havia sido enterrado, e que foram necessárias várias almofadas para
acomodar seu tronco no caixão.

Segunda Parte
A MORTE CONSCIENTE

CAPÍTULO I

— Gostaria de ver um quarto — disse o homem (1), em alemão.


O porteiro, diante de um painel carregado de chaves, estava
separado do vestíbulo por uma, grande mesa. Examinou o homem
que acabava de entrar, com uma capa cinzenta atirada sobre os
ombros, e que falava desviando o olhar:
— Certamente, senhor. Por uma noite?
— Não, não sei.
— Temos quartos a 18, 25 e 30 coroas.
Mersault olhava a pequena Rua de Praga, que se via através da
porta envidraçada do hotel. Com as mãos nos bolsos, estava sem
chapéu, e com o cabelo embaraçado. A alguns passos dali, ouvia-se o
ranger dos bondes que desciam a Avenida Wenceslas.
— Que quarto deseja, senhor?
— Qualquer um — disse Mersault, com o olhar sempre fixo na
porta envidraçada, O porteiro pegou uma chave no painel e estendeu-
a a Mersault.
— Quarto número 12 — disse.
Mersault pareceu acordar.
— Quanto é esse quarto?
— Trinta coroas.
— É caro demais. Gostaria de um quarto de 18 coroas.

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O homem, sem dizer uma palavra, pegou outra chave e
mostrou a Mersault a estrela de cobre que dela pendia:
— Número 34.
Sentado no quarto, Mersault tirou o paletó, afrouxou um pouco
a gravata, sem desfazer o nó, e arregaçou automaticamente as
mangas da camisa. Caminhou em direção ao espelho que ficava
acima da pia, ao encontro de um rosto de traços abatidos, um pouco
corado nos lugares que não eram escurecidos por uma barba de
vários dias. Impressionaram-no os cabelos despenteados pela corrida
do trem, que, caindo em desordem sobre a testa, até duas rugas
profundas entre as sobrancelhas, lhe davam ao olhar uma espécie de
expressão séria e terna. Só então, pensou em olhar à volta para o
quarto miserável que era o seu único bem, e além do qual nada mais
via. Sob um repugnante papel pintado de grandes flores amarelas
sobre fundo cinzento, toda uma geografia de imundície desenhava
pegajosos universos de miséria. Atrás do enorme radiador, havia
cantos gordurosos. O interruptor estava quebrado e deixava entrever
os contatos de cobre. Por cima da cama, de um fio lustroso de sujeira,
onde secavam velhos detritos de moscas, pendia uma lâmpada sem
cúpula, que se colava aos dedos. Mersault inspecionou os lençóis, que
estavam limpos. Pegou seus artigos de toalete na mala, e, um por
um, arrumou-os sobre a pia. Depois, apressou-se em lavar as mãos,
mas, mal a abriu, fechou a torneira, e foi abrir a janela sem cortinas.
Dava para um quintal com um tanque e para umas paredes
esburacadas por pequenas janelas. Numa delas, havia roupa de cama
secando. Mersault deitou-se e adormeceu logo. Despertou suando,
descomposto, e sentindo o quarto girar rapidamente. Depois,
acendeu um cigarro, e, sentado, com a cabeça oca, olhou para os
vincos de sua calça amarrotada. Na boca, misturavam-se o amargor
do sono e do cigarro. Olhou novamente para o quarto, coçando-se por
baixo da camisa. Uma terrível suavidade vinha-lhe à boca, diante de
tanto abandono e solidão. Por sentir-se tão longe de tudo e até
mesmo de sua febre, por experimentar tão claramente o que há de
absurdo e de miserável no âmago das vidas mais ordenadas, nesse
quarto, erguia-se diante dele a imagem vergonhosa e secreta de uma
espécie de liberdade que nasce da dúvida e da fraude. À sua volta,
marulhavam, como lama, todo o tempo, as horas monótonas e
flácidas.
Bateram à porta com violência, e, num sobressalto, Mersault
lembrou-se que fora despertado por batidas semelhantes. Abriu a
porta e viu-se diante de um velhinho de cabelo ruivo, esmagado sob
as duas malas de Mersault, que, sobre ele, pareciam enormes.
Sufocava de raiva, e os dentes espaçados deixavam passar uma baba
cheia de ofensas e recriminações. Mersault lembrou-se, então, da
alça partida que tornava a mala maior tão incômoda de carregar. Quis
desculpar-se, mas não soube como explicar ao velho que não sabia
que era tão idoso. O velhinho o interrompeu:

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