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ALBERT CAMUS [An

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— São 14 coroas.
— Para guardar as malas por um dia? — espantou-se Mersault.
Compreendeu, então, pelas longas explicações que lhe eram
dadas, que o velho tomara um táxi. Mas não ousou dizer que ele
próprio teria feito o mesmo, nesse caso, e pagou por cansaço. Com a
porta novamente fechada, Mersault sentiu lágrimas inexplicáveis
subirem-lhe à garganta. Muito próximo, um relógio bateu quatro
horas. Havia dormido duas horas. Dava-se conta de que estava
separado da rua apenas pela casa em frente, e sentia o rumor surdo
e misterioso da vida que nela decorria. Era melhor sair. Mersault
lavou as mãos demoradamente. Para lixar as unhas, sentou-se
novamente na beira da cama, manobrando regularmente a lixa. Duas
ou três buzinas ecoaram no pátio, com tanta brutalidade que Mersault
foi até a janela. Viu, então, que , lá embaixo, uma arcada conduzia à
rua. Era como se todas as vozes da rua, toda a vida desconhecida do
outro lado das casas, os ruídos dos homens que têm um endereço,
uma família, rixas com um tio, preferências à mesa, uma doença
crônica, o formigamento dos seres, cada um com a sua
personalidade, como grandes pulsações para sempre separadas do
coração monstruoso da multidão, se infiltrassem naquela arcada e
subissem ao longo do pátio para arrebentarem como bolhas no
quarto de Mersault. Tão poroso e atento a cada sinal do mundo,
Mersauh sentiu a fenda profunda que o abria para a vida. Acendeu
outro cigarro e vestiu-se febrilmente. Ao abotoar o paletó, a fumaça
veio arder-lhe nas pálpebras. Voltou à pia, enxugou os olhos e quis
pentear-se. Mas o pente havia desaparecido. O sono embaraçara-lhe
os cabelos, e tentou inutilmente ajeitá-los. Desceu assim mesmo, com
os cabelos caindo sobre o rosto, e eriçados atrás. Sentia-se ainda
mais diminuído. Ao chegar à rua, deu a volta ao hotel para
desembocar diante da pequena arcada que observara. Ela dava para
a praça da antiga prefeitura, e, na noite um pouco carregada que
descia sobre Praga, as torres góticas da prefeitura e da velha igreja
de Tyn recortavam-se em negro. Uma multidão circulava pelas ruelas
em arcos. Mersault, diante de cada mulher que passava, perscrutava
o olhar que lhe teria permitido considerar-se ainda capaz de jogar o
delicado e terno jogo da vida. Mas as pessoas que estão bem de
saúde têm uma arte natural para evitar os olhares febris. Mal
barbeado, despenteado, com uma expressão de animal inquieto nos
olhos, a calça amarrotada, como o colarinho da camisa, perdera a
maravilhosa confiança que dá um terno bem cortado ou o volante de
um carro. A luz tomava-se acobreada e o dia demorava-se, ainda, no
ouro das cúpulas barrocas que se viam ao fundo da praça. Mersault,
que se dirigiu a uma delas, entrou na igreja, e, tomado pelo velho
cheiro, sentou-se num banco. A abóbada estava totalmente escura,
mas o ouro dos capitéis despejava uma água dourada e misteriosa,
que escorria pela canelura das colunas, por sobre o rosto inchado dos
anjos e o escárnio dos santos. Sim, uma suavidade, havia ali uma

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suavidade, mas tão amarga, que Mersault voltou ao patamar, e, de pé
nos degraus, respirou o ar mais fresco da noite em que agora ia
mergulhar. Um instante depois, viu brilhar a primeira estrela, pura e
desnudada, entre as torres de Tyn.
Lançou-se à procura de um restaurante barato. Meteu-se pelas
ruas mais escuras e menos povoadas. Sem que tivesse chovido de
dia, o chão estava úmido, e Mersault precisava evitar as poças negras
por entre os raros paralelepípedos. Depois, uma chuva fina começou
a cair. Sem dúvida, as ruas animadas não estavam longe, já que se
ouvia daqui os vendedores de jornais, que anunciavam aos gritos o
Narodni Politika. Ele, porém, nesse ínterim, rodava pelas ruas. De
repente, deteve-se. Um cheiro estranho chegava-lhe do fundo da
noite. Picante, azedo, despertava nele toda a força de sua angústia,
sentia-o na língua, no fundo do nariz e nos olhos. A princípio longe, e
depois, na esquina da rua e entre o céu agora obscurecido e os
paralelepípedos gordurosos e pegajosos, lá estava ele, como o
agourento sortilégio das noites de Praga. Avançou em direção ao
cheiro, que, a cada momento, se tomava mais real, invadindo-o por
inteiro, provocando-lhe lágrimas nos olhos e deixando-o sem defesa.
Na esquina de uma rua, entendeu: uma velhinha vendia pepinos
embebidos em vinagre. Fora este o cheiro que se apoderara de
Mersault. Um transeunte parou e comprou um pepino, que a velha
enrolou num papel. Deu alguns passos, e, diante de Mersault, abriu o
pacote, mordeu com vontade o pepino, cuja polpa dilacerada e
brilhante exalava um cheiro ainda mais poderoso. Com algum mal-
estar, Mersault encostou-se numa coluna e respirou durante um longo
momento tudo que o mundo lhe oferecia de estranho e de solitário
naquele minuto. Em seguida, foi embora e entrou sem pensar num
restaurante, de onde saía uma melodia de acordeão. Desceu alguns
degraus, parou no meio da escadaria, viu-se num porão bastante
sombrio, cheio de brilhos vermelhos. Sem dúvida, tinha um ar
estranho, já que o acordeão tocou mais surdamente, a conversa
parou e os consumidores viraram-se na sua direção. A um canto,
algumas moças comiam, com os lábios muito gordurosos. Os outros
comensais bebiam a cerveja escura e adocicada da Tcheco-
Eslováquia. Muitos fumavam sem nada consumir. Mersault pegou
uma mesa, bem comprida, ocupada por um homem só. Alto e magro,
de cabelo louro, ajeitado em sua cadeira, com as mãos nos bolsos,
apertava os lábios rachados à volta de um pedaço de fósforo já cheio
de saliva, sugando-o com um ruído desagradável, ou fazendo-o
passar de um lado para o outro na boca. Quando Mersault se sentou,
o homem mal se mexeu, comprimindo-se de encontro à parede, e
fazendo o seu fósforo passar para o lado do recém-chegado, com um
franzir de cenho imperceptível. Nesse momento, Mersault viu uma
estrela vermelha na sua lapela.
Mersault comeu pouco e rapidamente. Não estava com fome. O
acordeão tocava agora com mais nitidez, e o homem que o manejava

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