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Capa: FORTESPOLIO
Ilustração da capa: CARLOS MARQUES / FORTESPÓLIO
Impresso e Encadernado para Círculo de Leitores
por Printer Portuguesa em Janeiro de 1999
Número da edição: 4912
Depósito legal número 131 016/99
ISBN 972-42- 1942-9
Com a ponta dos dedos, o senhor Benjamín empurrou a porta aramada, mas
não entrou na casa. Exclamou, com secreto desespero:
- As janelas, Nora!
Nora de Jacob, madura e alta, com o cabelo cortado como o de um homem,
jazia diante do ventilador eléctrico na penumbra da sala. Esperava o
senhor Benjamín para almoçar. Ao ouvi-lo, levantou-se com esforço e
abriu as quatro janelas que davam para a rua. Um jorro de calor entrou
na sala de ladrilhos com o desenho de um mesmo pavão anguloso,
indefinidamente repetido, e móveis forrados com tecidos floridos. Em
cada pormenor se observava um luxo pobre.
- Que há de verdade no que dizem as pessoas?perguntou.
- Dizem-se tantas coisas.
- Sobre a viúva de Montiel - precisou Nora de Jacob. - Andam a dizer
que ficou doida.
- Para mim, está doida há muito tempo - disse o senhor Benjamín. E
acrescentou com um certo desencanto: - É isso mesmo: esta manhã tentou
atirar-se da varanda.
A mesa, inteiramente visível da rua, estava preparada com um talher em
cada extremo.
- Castigo de Deus - afirmou Nora de Jacob batendo palmas para que
servissem o almoço. Levou a ventoinha eléctrica para a sala de jantar.
- A casa está cheia de gente desde esta manhãdisse o senhor Benjamín.
- É uma boa oportunidade de a ver por dentro - replicou Nora de Jacob.
Uma menina negra, com a cabeça cheia de nós coloridos, trouxe para a
mesa a sopa a ferver. O cheiro do frango invadiu a sala e a
temperatura tornou-se intolerável. O senhor Benjamín ajustou o
guardanapo no pescoço, dizendo: Saúde." Tentou comer com a colher a
ferver.
- Sopra, não sejas tolo - disse ela, impaciente.Além disso, tens de
tirar o casaco. Os teus escrúpulos de não entrar em casa com as
janelas fechadas vão acabar por me matar de calor.
- Agora é mais indispensável que nunca - retorquiu ele. - Ninguém
poderá dizer que não viu, a partir da rua, todos os meus movimentos
quando me encontro em tua casa.
Ela mostrou o seu esplêndido sorriso ortopédico, com uma gengiva de
lacre para selar documentos.
- Não sejas ridículo! - exclamou. - Por mim, podem dizer o que
quiserem. - Quando conseguiu engolir a sopa, continuou a falar durante
as pausas. - Poderia preocupar-me, isso sim, com o que dissessem da
minha filha Mónica - concluiu, referindo-se à sua filha de quinze anos
que não tinha vindo de férias desde que fora pela primeira vez para o
colégio. - Mas de mim não podem dizer mais do que aquilo que já todos
sabem.
O senhor Benjamín não lhe dirigiu, desta vez, o seu habitual olhar de
desaprovação. Comiam a sopa em silêncio, separados pelos dois metros
do comprimento da mesa, a distância mais curta que alguma vez ele se
teria
permitido, sobretudo em público. Quando ela estava no colégio, vinte
anos antes, ele escrevia-lhe umas cartas longas e convencionais a que
ela respondia com papeli nhos apaixonados. Numas férias, durante um
passeio campestre, Néstor Jacob, completamente embriagado, arrastou-a
pelos cabelos para um extremo do curral e declarou-se-lhe sem
alternativas: Se não casares comigo dou-te um tiro." Casaram-se no fim
das férias. Dez anos depois tinham-se separado.
- De qualquer modo - disse o senhor Benjamín não se pode estimular com
portas fechadas a imaginação das pessoas.
Levantou-se ao terminar o café.
- Vou-me embora - anunciou. - A Mina deve estar desesperada: - Da
porta, ao pôr o chapéu, exclamou: - Esta casa está a arder!
- É o que eu te digo - respondeu ela.
Esperou até que o viu despedir-se com uma espécie de bênção, na última
janela. Depois levou a ventoinha para o quarto, fechou a porta e
despiu-se completamente. Por fim, como todos os dias depois do almoço,
entrou no quarto de banho e sentou-se na retrete, sozinha com o seu
segredo.
Quatro vezes por dia via passar Néstor Jacob diante da casa. Toda a
gente sabia que estava instalado com outra mulher, que tinha tido com
ela quatro filhos e que era considerado um pai exemplar. Várias vezes,
nos últimos anos, havia passado com as crianças diante da casa, mas
nunca com a mulher. Ela tinha-o visto enfraquecer, ficar velho e
pálido, e converter-se num estranho cuja intimidade de outros tempos
lhe parecia inconcebível. Por vezes, durante as sestas solitárias,
tinha tornado a desejá-lo de um modo premente: não como o via passar
diante da casa, mas sim como era na época que precedera o nascimento
de Mónica, quando o seu amor breve e ocasional ainda não se lhe tinha
tornado intolerável.
O juiz Arcadio dormiu até ao meio-dia, por isso não teve notícia do
edital antes de chegar ao tribunal. O escrivão, pelo contrário, estava
alarmado desde as oito, hora a que o alcaide lhe pediu que redigisse o
decreto.
- De qualquer maneira - reflectiu o juiz Arcadio depois de se inteirar
dos pormenores -, está concebido em termos drásticos. Não era
necessário.
- É o mesmo decreto de sempre.
- É verdade - admitiu o juiz. - Mas as coisas mudaram, e é preciso que
os termos mudem igualmente. As pessoas devem estar assustadas.
No entanto, segundo comprovou mais tarde a jogar cartas na sala de
bilhar, o temor não era o sentimento predominante. Havia mesmo, de
preferência, uma sensação de vitória colectiva por se confirmar o que
estava na consciência de todos: as coisas afinal não tinham mudado. O
juiz Arcadio não iludiu o alcaide quando saía da sala de jogos.
- Então os pasquins não tinham importância - disse-lhe. - As pessoas
estão felizes.
O alcaide tomou-o pelo braço.
- Não se está a fazer nada contra as pessoas - retorquiu. - É uma
questão de rotina. - O juiz Arcadio desesperava-se com aquelas
conversas ambulantes. O alcaide caminhava com passo firme, como se
tivesse diligências urgentes, e depois de muito andar reparava que não
ia para parte alguma. - Isto não vai durar toda a vida - prosseguiu. -
Daqui até domingo teremos na gaiola o engraçadinho dos papelinhos. Não
sei porquê, penso que seja uma mulher.
O juiz Arcadio não acreditava. Apesar da negligência com que aceitava
as informações do seu escrivão, tinha chegado a uma conclusão geral:
os pasquins não eram obra de uma única pessoa. Não pareciam obedecer a
um plano concertado. Alguns, nos últimos dias, apresentavam uma nova
modalidade: eram desenhos.
- Pode acontecer que não seja um homem nem uma mulher - concluiu o
juiz Arcadio. - Pode acontecer que sejam diversos homens e diversas
mulheres, actuando cada um por sua conta.
- Não me complique as coisas, juiz - disse o alcaide. - Devia saber
que em todos os sarilhos, embora intervenham muitas pessoas, há sempre
um culpado.
- Isso é o que diz Aristóteles, tenente - replicou o juiz Arcadio. E
acrescentou, convicto: - De todos os modos, a medida parece-me
disparatada. Quem os põe esperará simplesmente que acabe o recolher
obrigatório.
- Não importa - disse o alcaide. - Ao fim e ao cabo é preciso
preservar o princípio da autoridade.
Os recrutas tinham começado a concentrar-se no quartel. O pequeno
pátio, de muros altos de cimento, manchados de sangue seco e com
impactes de projécteis, lembrava os tempos em que não era suficiente a
capacidade das celas e se expunham os presos à intempérie. Naquela
tarde, os agentes desarmados vagueavam em calções pelos corredores.
- Rovira - gritou o alcaide. - Traz alguma coisa de beber a estes
rapazes.
O polícia começou a vestir-se.
- Rum? - perguntou.
- Não sejas parvo - gritou o alcaide, de passagem para o gabinete
blindado. - Qualquer coisa gelada.
Os recrutas fumavam, sentados no pátio. O juiz Arcadio observou-os da
varanda do segundo andar.
- São voluntários ?
- Imagine! - exclamou o alcaide. - Tive de os tirar de debaixo das
camas, como se fossem para a tropa.
O juiz não encontrou uma única cara desconhecida.
- Pois parecem recrutados pela oposição - disse ele.
As pesadas portas de aço do gabinete exalaram, ao abrirem-se, um ar
gelado.
- Quer dizer que são bons para a luta - sorriu o alcaide, depois de
acender as luzes da fortaleza privada. Num dos extremos havia um catre
de campanha, uma caneca de vidro com um copo em cima de um banco e um
bacio debaixo do catre. Encostadas às paredes nuas, de cimento, havia
espingardas e metralhadoras portáteis. A ventilação só se fazia pelas
altas e estreitas clarabóias de onde se dominava o porto e as duas
ruas principais. No outro extremo havia uma secretária junto de um
cofre-forte.
O alcaide marcou a combinação de números necessária para abrir o
cofre.
- E isso não é nada - anunciou. - Vou distribuir espingardas a todos
eles.
O polícia entrou atrás dos dois homens. O alcaide entregou-lhe algumas
notas, dizendo:
- Traga também dois maços de cigarros para cada um deles. - Quando
ficaram novamente sozinhos, o alcaide perguntou ao juiz Arcadio:
- Que lhe parece a manobra?
- Um risco inútil - respondeu o juiz, pensativo.
- As pessoas vão ficar de boca aberta - disse o alcaide. - Parece-me,
além disso, que estes pobres rapazes não saberão o que fazer com as
espingardas.
- Talvez estejam agora desconcertados - admitiu o juiz -, mas isso
dura pouco. - Fez um esforço para reprimir a sensação de vazio no
estômago. - Tenha cuidado, tenente - reflectiu. - Não vá deitar tudo a
perder. - O alcaide levou-o para fora do gabinete com um gesto
enigmático.
- Não tenha medo, juiz - soprou-lhe ao ouvido.
- Só terão cartuchos de pólvora seca.
Quando desceram ao pátio, as luzes estavam acesas. Os recrutas bebiam
gasosas debaixo das sujas lâmpadas eléctricas contra as quais se
esmagavam os moscardos. Passeando de um extremo ao outro do pátio,
onde permaneciam algumas poças de chuva, o alcaide explicou-lhes, num
tom paternal, em que consistia a missão dessa noite: seriam colocados
aos pares nas principais esquinas, com ordem de disparar contra
qualquer pessoa, homem ou mulher, que desobedecesse às três ordens de
Alto!". Recomendou-lhes coragem e prudência. Depois da meia-noite
levar-lhes-iam de comer. O alcaide esperava, com a ajuda do Senhor,
que tudo se passasse sem contratempos, e que a aldeia soubesse
apreciar aquele esforço das autoridades em favor da paz social.
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- Para onde?
- Para onde havia de ser? - retorquiu a mulher.-
Para alguma puta de merda.
0alcaide fez ao agente um sinal para prosseguir.
Passaram ao lado da mulher,sem a olhar.Depois de re-
volverem o quarto e verificarem que não havia coisa de
homem em sítio algum,regressaram à sala.
- Quando é que partiu? - perguntou o alcaide.
- Há duas noites - respondeu a mulher.
0alcaide necessitou de uma longa pausa para pensar.
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braço comprido.
A mulher suspirou.
- Deus o oiça, tenente.
Começava a escurecer. Ainda se viam grupos.mantidos em respeito pelos
agentes da polícia nas esqumas do quartel, mas tinham levado a mãe de
Pepe Amador e a terra parecia tranquila.
O alcaide dirigiu-se directamente à cela do morto. Mandou vir uma lona
e, com a ajuda de um agente, colocou o boné e os óculos no cadáver,
envolvendo-o nela. Depois procurou em diferentes sítios do quartel
pedaços de fibra de piteira e arames, amarrando o corpo em espiral
desde o pescoço até aos tornozelos. Quando acabou estava a suar, mas
tinha um ar restabelecido. Era como se fisicamente tivesse tirado o
peso do cadáver de cima de si.
Só então acendeu a luz da cela.
- Procura a pá, a picareta e uma lanterna - ordenou ao agente. -
Depois chamas o González, cavam um buraco bem fundo na parte de trás
do pátio das traseiras, que é mais seco. - Disse-o como se tivesse
concebido palavra a palavra, à medida que falava. - E lembrem-se de
uma coisa para toda a vida: este rapaz não morreu - disse em
conclusão.
Duas horas mais tarde ainda não tinham acabado de cavar a sepultura.
Da varanda, o alcaide verificou que não havia ninguém na rua, salvo um
dos seus agentes que montava a guarda de esquina a esquina. Acendeu a
luz da escada e deixou-se ficar a descansar no canto mais escuro da
sala, ouvindo apenas os gritos espaçados de um alcaravão distante.
A voz do padre Ángel arrancou-o à sua meditaçâo. Ouviu-a primeiro a
dirigir-se ao agente que se encontrava de guarda, depois a alguém que
o acompanhava e, por
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- Alto aí! - gritou.
O
médico agarrou o pároco pela manga da sotaina. O padre Ángel começou a
tossir.
- Façamos jogo limpo, tenente - disse o médico. A sua voz endureceu
pela primeira vez em muito tem o
- É preciso fazer essa autópsia. Vamos agora esclarePer o misténo das
síncopes que os presos sofrem nesta cadeia.
- Doutor - disse o alcaide. - Se se mover do lugar onde está, abato-o.
- Desviou ligeiramente a mira para o pároco. - E a si também, padre. -
Os três permaneceram imóveis. - Além disso - prosseguiu o alcaide
dirigindo-se ao sacerdote - o senhor devia estar
suinseito, padre: esse rapaz era aquele que punha os pas- Por amor de
Deus... - começou o padre a dizer. Mas a tosse convulsiva impediu-o de
prosseguir. O alc ide esperou que a crise passasse.
- Ouçam uma coisa - disse então. - Vou começar a contar. Quando chegar
a três, disparo com os olhos fechados contra essa porta. Saiba-o desde
a ora e sempre - falou explicitamente p g para
ara o médico. - Acabaram-se as piadinhas. Estamos em guerra, doutor. .
O médico arrastou o padre Ángel pela manga. Ini aou a descida sem
voltar as costas ao alcaide e de súbito, começou a rir com vontade. ,
- É assim que eu gosto, general - disse o médico.
- Agora sim, começamos a entender-nos.
- Um - contou o alcaide.
Não ouviram o número seguinte. Quando se separaram na esquina do
quartel, o padre Angel estava cabisbaixo e teve de virar a cara porque
tinha os olhos húmidos. O doutor Giraldo deu-lhe uma palmadinha no
ombro sem parar de sorrir:
- Não se surpreenda, padre. Tudo isto é a vida.Ao dobrar a esquina da
sua casa, olhou o reló io à luz do poste de iluminação: eram oito
menos u gq
uarto.
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O Autor e a Obra
Fim