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I

03 de Fevereiro de 1978 no Cemitério do Bairro de Santo Amaro…

Recife fazia aquele mormaço característico de uma cidade litorânea do


Nordeste Brasileiro antes de uma chuva. Por todos os cantos escutava-se o ruflar
dos leques das senhoras e as reclamações dos homens já alterados pela quarta ou
quinta “lapada” de cachaça:

- Calor do carai!
- Era bom uma praia!
- To suando mais que “tirador de espírito"

Por mais, apressado leitor, que isso possa soar deselegante, a quem faminto
por esta leitura já esteja no primeiro parágrafo pronto para construir juízo de valor.
Beber em cerimônias fúnebres é um belíssimo costume do povo preto desta cidade.
Nos botecos apoiados com antebraço no balcão, passa-se meses e até anos a se
rankear a relevância do defunto pela quantidade de cachaça consumida no enterro.

- Sujeito bom era “boca de cabra”. Contando o velório, cortejo e enterro


bebemos pra mais de 12 garrafas de cachaça. Até seresta teve na condução. Foi
tanta cana que Mane da água dormiu por cima de uma catacumba Deus me perdoe!
E só voltou pra favela dois dias depois. A mulher dele já tinha dado ele como morto.
deu até queixa na delegacia.

- Eu me lembro. Saudoso Boca de Cabra

Nas árvores, o silêncio digno do local. Nenhuma folha sequer balançava


respeitosamente. Somente o calor indireto do sol atravessando as nuvens cinzas
anunciadoras de chuva que teimam a bailar em dias como esse, tocava a pele das
pouquíssimas pessoas que velavam o corpo de Carlos Jacinto.
Dona Aurora, segurava ao lado do Caixão um molho de santinho que tinha
sobrado. Uma foto oval do falecido em preto e branco acompanhada de uma oração
e da logomarca da gráfica. Encomendou, otimista, 100 santinhos. Os dedos das
mãos foram mais que o suficiente para contar os presentes no velório. Por várias
vezes incomodava-se com o fardo de carregar mais de 90 santinhos na mão por
horas a fio. Sua mente não parava de pregar peças.

Pensava silenciosamente:

- E se eu jogar esses santinhos no lixo?


- Eu num disse que num ia dar nem 10 pessoas no teu enterro?
- Será que eu devo chorar?
- Por que não tenho vontade de chorar?
- Meu Deus, segura essa vontade de rir…
-
Um dos presentes, que chamou a atenção de Dona Aurora a priori pelo
cheiro de guardado que exalava do seu paletó amassado cor de terra.

- Gente,como alguém vem num enterro com essa Catinga? Pensava


Dona Aurora.

Segurava um radinho de pilhas no ouvido e de repente salta de entusiasmo


ao finalmente ouvir o obituário do defunto na programação da rádio. Uma voz
conhecida do Rádio Pernambucano falava com um voz eletrônica:

“Hoje à 01 da manhã, deu entrada no hospital da Restauração o corpo do


Professor de Sociologia Carlos Jacinto. Sumido há 16 dias. O corpo do Professor
chegou pelas mãos da Polícia Militar já sem vida. Foi encontrado na Avenida Conde
da Boa Vista, na altura da rua Sete de Setembro. O corpo do Intelectual estava
repleto de marcas de Agressão. Ao que tudo indica mais uma vítima da Perna
Cabeluda”
Se o, respeitoso leitor, não conhecer a Perna Cabeluda. Precisa parar
imediatamente esta leitura e realizar uma pesquisa adequada sobre a fabulosa
figura que apavorou a capital pernambucana na época. Seria tedioso e massante, já
que dois a três parágrafos seriam insuficientes para explicar como esta criatura
apareceu, aterrorizou e desapareceu do nosso cotidiano. Talvez até, seja mais
interessante para o leitor focar no redemoinho de sentimentos e pensamentos que
circundam a viúva.

Um dos presentes, rosto completamente desconhecido a Dona Aurora, tímido


e preocupado, olhando constantemente para os lados. Tinha a preocupação
daquela criança que tenta esconder o erro debaixo do tapete, mas que se denuncia
somente pela forma que encarar o tapete, retira da bolsa uma bandeira
longiguamente conhecida da Dona Aurora. Uma Bandeira Vermelha. No centro, uma
foice e um martelo se cruzavam amarelos. Deitou sobre o caixão a bandeira
estendida e o cortejo seguiu.

Todos os presentes se postaram imediatamente solene e constrangidos com


a bandeira. Houve olhares imediatos de repreensão ao senhor que estendeu a
bandeira. Que imbuído de coragem e apreensão, não conseguia imprimir solenidade
ao cortejo olhando constantemente para trás.
- Maluco
- irresponsável
- Eu vou embora. Ele vai acabar nos matando.

Quando o caixão chegou ao seu local de descanso final, os presentes que já


eram poucos já tinham se ido à metade. Um Coveiro negro, alto, forte que exibia
dezenas de colares e aneis de pratas saltando da sua farda da Prefeitura do Recife
semi-aberta no peito questionou com a cabeça, sem nada falar, a dona Aurora se
poderia começar o sepultamento. Dona Aurora só conseguia pensar como iria se
livrar daqueles santinhos.
Falava consigo em silêncio:
-Tradição idiota essa de fazer santinho! Tenho certeza que foi um dono de
gráfica que inventou.
- 100 Santinhos... Meu Deus! Onde eu estava com a cabeça?.
- Eu num disse que num ia dar nem 10 pessoas no teu enterro?
Sem obter uma resposta, o coveiro catou no meio da prataria que saltava do
seu peito uma guia de contas pretas e vermelhas intercaladas. Uma caveira feita de
osso de bode ornava como uma espécie de pingente o adereço. Beijou a guia e
começou a cobrir de terra o caixão. Abalado, o senhor que pôs a bandeira não
conseguiu recuperá-la a tempo pois com três pás rápidas de terra já estava
completamente coberta. Desconcertado com a tentativa infrutífera de retirar a
bandeira gritou baixo:
- Viva a revolução.
Ninguém respondeu, olhando sempre para os cantos desconfiados.
- Trágico! A revolução foi enterrada junto com o proletário. Coxixou um dos
presentes contendo o riso. Dona Aurora fez um esforço mental para lembrar o
significado daquela palavra tão ouvida nas reuniões esquisitas que o Jacinto fazia
na sua casa na madrugada. Foi em vão.
Uma chuva fina desaba tímida junto com a última pá de terra sobre o caixão.
Dona Auroa lembra rapidamente que sempre quando havia uma discussão entre os
dois, Jacinto falava dramáticamente que: Quando morresse queria que fosse num
dia de chuva para que com a terra molhada não desse nem trabalho para os
coveiros cavassem sua cova. Dona Aurora ria do trava língua: “Coveiros cavassem
cova”
Dona Aurora falou para si em voz alta pela primeira vez enquanto
abandonava discretamente as dezenas de santinhos ao lado da cova.
- Nem a chuva quis vir. Chegou atrasada!

II

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