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(Lubi Prates)
1.
desde que cheguei
um cão me segue
&
&
não me deixa
frequentar os lugares badalados
não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.
desde que cheguei
um cão me segue
&
e o coração,
quanto pesa?
perguntou ela,
moça magrela
de expostas costelas,
ao homem bigodudo
detrás do balcão.
depende,
de boi ou de frango?
intrigada
não entendeu,
pois era do dela
que tratava.
sabia que pouco valia,
era carne fraca
sangue de anemia
que batia mais por inércia,
do que serventia.
na verdade,
queria fazer uma barganha,
trocar seu coração
por, quem sabe,
um naco de picanha.
o homem não estranhou a proposta
da moça de costelas expostas.
era a terceira vez
que vinham lhe oferecer
aquele estranho produto
já conhecidamente sem uso.
mas por pena ou caridade
lhe ofereceu em troca
duas asas de frango.
o que era muito,
comparado ao seu tamanho.
faminta,
aceitou sem demora.
lambuzou-se com as asas alheias,
visto que ela,
bicho terreno,
não conhecia tais atrevimentos.
até hoje não se sabe:
se foi a gordura espessa
ou a carne fibrosa
(tão desconhecidas a seu corpo de menina)
que lhe causaram alucinação.
fato é que
munida da carcaça das duas asas,
uma em cada mão,
acreditou-se ave,
ave maria,
e do parapeito da janela,
estufou o peito externo.
de um só golpe
sentiu o corpo leve.
o voo foi breve.
o baque, surdo.
a carne mole,
moída na calçada,
parecia que indagava:
e meu corpo,
quanto vale?
SEM-TÍTULO
(Conceição Evaristo)
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Pode ser o grito de Maria, a da Penha, implorando por compaixão, exigindo justiça.
Ou da Maria da Purificação, Maria Grampinho, a do porão.
De Marielle, a Franco
Quando lhe tiraram a cabeça
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Pode ser o grito uníssono das mães da Candelária
Quando lhe tiraram os filhos
Pode ser das mães das comunidades
Quando lhes tiram os filhos todos os dias
Pode ser das mães do Centro de Internação do Jardim Europa
Ou das mães do Ninho do Urubu
Ou das mulheres do Carandiru, as de dentro e as de fora
A favela é a nova senzala
A prisão é o pelourinho
Mas, fome, só tem na África
Violência é no Oriente Médio
E racismo é lá nos Estados Unidos
Aqui, somos apenas hipócritas.
SEM-TÍTULO
(Mel Duarte)
Na parada da brisa
firo-me em cacos de vidro
querendo arrancar de mim
velhas amarras
NEOLATINA
(Bell Puã)
virava ao avesso
tirava do eixo
versos salgados
os sonhos no asfalto
molhados
meus poemas de amor
engasgados
SENTENÇA
(Salgado Maranhão)
Eu sou a noite
Sem destino
Esbofeteada pelo vento
Nesta selva branca
Noite
Que procura caminho
Como o faminto
Procura o pão
Noite
Que conserva
Orgulhosamente
A despeito de tudo
Um punhado de estrelas
Em cada mão
CAPELINHA
(Edimilson de Almeida Pereira)
avante
não há mais tempo
para tranquilidade
nem para muita doçura
meu bem
nas ruas
igrejas e povo
Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser
Vestir a camisa
de um poeta negro
– espetar seu coração
com uma fina
ponta de faca
– dessas antigas,
marca Curvelo,
em aço sem corte,
feito para a morte
– E acomodar
no exíguo espaço
de uma bainha
sua dor-senzala.
Papai
levava tempo
para redigir uma carta