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CONDIÇÃO: IMIGRANTE

(Lubi Prates)

1.
desde que cheguei
um cão me segue

&

mesmo que haja quilômetros


mesmo que haja obstáculos
entre nós
sinto seu hálito quente
no meu pescoço.
desde que cheguei
um cão me segue

&

não me deixa
frequentar os lugares badalados
não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.
desde que cheguei
um cão me segue

&

esse cão, eu apelidei de


imigração.
CLANDESTINA
(Natasha Felix)

Morrem mais quatro na favela do Jacarezinho


um fazedor de pães
uma professora sem magistrado
uma criança mirando pro alto
um cachorro desavisado
Se perguntarem, foi confronto e pronto.
Metonímia crua de um todo mais que largo.
Contra fatos não há retratos
há maltrato, desamparo, caco
pingo de bala no chão, silêncio na multidão
(sem um pio, eles ouvirão)
Uma flor nasce no cantinho
entre um beco e um suspiro
Drummond bem que avisou:
tenho apenas duas mãos.
RETINA NEGRA
(Cristiane Sobral)

Sou preta fujona


Recuso diariamente o espelho
Que tenta me massacrar por dentro
Que tenta me iludir com mentiras brancas
Que tenta me descolorir com os seus feixes de luz
Sou preta fujona
Preparada para enfrentar o sistema
Empino o black sem problema
Invado a cena
Sou preta fujona
Defendo um escurecimento necessário
Tiro qualquer racista do armário
Enfio o pé na porta e entro
CORAÇÃO DE FRANGO
(Luiza Romão)

e o coração,
quanto pesa?
perguntou ela,
moça magrela
de expostas costelas,
ao homem bigodudo
detrás do balcão.
depende,
de boi ou de frango?
intrigada
não entendeu,
pois era do dela
que tratava.
sabia que pouco valia,
era carne fraca
sangue de anemia
que batia mais por inércia,
do que serventia.
na verdade,
queria fazer uma barganha,
trocar seu coração
por, quem sabe,
um naco de picanha.
o homem não estranhou a proposta
da moça de costelas expostas.
era a terceira vez
que vinham lhe oferecer
aquele estranho produto
já conhecidamente sem uso.
mas por pena ou caridade
lhe ofereceu em troca
duas asas de frango.
o que era muito,
comparado ao seu tamanho.
faminta,
aceitou sem demora.
lambuzou-se com as asas alheias,
visto que ela,
bicho terreno,
não conhecia tais atrevimentos.
até hoje não se sabe:
se foi a gordura espessa
ou a carne fibrosa
(tão desconhecidas a seu corpo de menina)
que lhe causaram alucinação.
fato é que
munida da carcaça das duas asas,
uma em cada mão,
acreditou-se ave,
ave maria,
e do parapeito da janela,
estufou o peito externo.
de um só golpe
sentiu o corpo leve.
o voo foi breve.
o baque, surdo.
a carne mole,
moída na calçada,
parecia que indagava:
e meu corpo,
quanto vale?
SEM-TÍTULO

(Conceição Evaristo)

Uma gota de leite


me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
BRANCO LADRÃO
(Tânia Rezende)

Ladrão, ladrão, ladrão!

Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!

Esse grito pode ser da mãe de preta Suzana


quando ela não voltou do roçado
Pode ser o grito de Joana, ......,
quando lhe roubaram seu escravo, legitimamente adquirido
está exibido no filme Quanto vale ou é por quilo?
Pode ser o grito de outra Joana, a Joanna Mina, de Goiás
quando lhe roubaram o ouro que juntara para comprar a alforria.
Pode ser o grito de Joana D’Arc
Quando lhe roubara a existência, a história, a vida.

Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!

Pode ser o grito de Maria, a da Penha, implorando por compaixão, exigindo justiça.
Ou da Maria da Purificação, Maria Grampinho, a do porão.
De Marielle, a Franco
Quando lhe tiraram a cabeça

Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Branco, ladrão!
Pode ser o grito uníssono das mães da Candelária
Quando lhe tiraram os filhos
Pode ser das mães das comunidades
Quando lhes tiram os filhos todos os dias
Pode ser das mães do Centro de Internação do Jardim Europa
Ou das mães do Ninho do Urubu
Ou das mulheres do Carandiru, as de dentro e as de fora
A favela é a nova senzala
A prisão é o pelourinho
Mas, fome, só tem na África
Violência é no Oriente Médio
E racismo é lá nos Estados Unidos
Aqui, somos apenas hipócritas.
SEM-TÍTULO

(Mel Duarte)

Eles precisam saber, que a mulher negra quer


Casa pra morar
Água pra beber,
Terra pra se alimentar.

Que a mulher negra é


Ancestralidade,
Djembês e atabaques
Que ressoam dos pés.

Que a mulher negra,


tem suas convicções,
Suas imperfeições
Como qualquer outra mulher.
O TEMPO É O GÁS, O AR, O ESPAÇO VAZIO
(Stela do Patrocínio)

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo


Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, fazer falatório
Fazer músculo, fazer dente

Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas


Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro
QUANTO MAIS VELA, MAIS ACESA
(Elisa Lucinda)

Um dia quando eu não menstruar mais


vou ter saudade desse bicho sangrador mensal
que inda sou
que mata os homens de mistério
Vou ter saudade desse lindo aparente impropério
desse império de gerações absorvidas
Desse desperdício de vidas
que me escorre agora mês de maio.
Ensaio:
Nesse dia vou querer a vida
com pressa
menos intervalo entre uma frase e outra
menos res-piração entre um fato e outro
menos intervalos entre um impulso e outro
menos lacunas entre a ação e sua causa
e se Deus não entender, rezarei:
Menos pausa, meu Deus
menos pausa.
FACAS FILADEIRAS
(Miriam Alves)

Estou sobre pontas de facas


A orgia dum tempo
apaga
meus espaços

Nas pegadas de minhas lembranças


pontas movediças
trituram
meus ossos

No lastimar das ações


mãos retesadas charqueiam
minha língua de fogo.

Na parada da brisa
firo-me em cacos de vidro
querendo arrancar de mim
velhas amarras
NEOLATINA
(Bell Puã)

molhados os sonhos no asfalto


Recife nunca chove no verão
mas hoje vi gotas arrancarem
cada
pedaço
do
meu
chão

espalharem os poemas de amor


que nunca soube escrever
fingia que os achava estúpidos
sem querer assumir
minha incompetência
pensava em desistir
pedi clemência
às paixões sobreviventes

virava ao avesso
tirava do eixo
versos salgados
os sonhos no asfalto
molhados
meus poemas de amor
engasgados
SENTENÇA
(Salgado Maranhão)

faz muito tempo que eu venho


nos currais deste comício,
dando mingau de farinha
pra mesma dor que me alinha
ao lamaçal do hospício.
e quem me cansa as canelas
é que me rouba a cadeira,
eu sou quem pula a traseira
e ainda paga a passagem,
eu sou um número ímpar
só pra sobrar na contagem.

por outro lado, em meu corpo,


há uma parte que insiste,
feito um caju que apodrece
mas a castanha resiste,
eu tenho os olhos na espreita
e os bolsos cheios de pedras,
eu sou quem não se conforma
com a sentença ou desfeita,
eu sou quem bagunça a norma,
eu sou quem morre e não deita.
AUTORRETRATO
(Carlos de Assumpção)

Eu sou a noite
Sem destino
Esbofeteada pelo vento
Nesta selva branca

Noite
Que procura caminho
Como o faminto
Procura o pão

Noite
Que conserva
Orgulhosamente

A despeito de tudo
Um punhado de estrelas
Em cada mão
CAPELINHA
(Edimilson de Almeida Pereira)

Os negros estão chegando


com seus tambores: silêncio.
Os negros cantam velados.

Os Arturos estão chegando


com seus lenços azuis: silêncio.
Os Arturos cantam velados.

Os negros estão chegando


com seus padroeiros: silêncio.
Os negros têm nomes velados.

Os Arturos estão chegando


com seus santos: silêncio.
Os Arturos têm deuses velados.

Os negros Arturos com seus


tambores sagrados. Silêncio,
estão cantando calados.

Os negros Arturos com seus


terços de contas. Silêncio:
são mil negros guardados.
MARIELLE
(Mazinho Souza)

avante
não há mais tempo
para tranquilidade
nem para muita doçura
meu bem

fomos pegos em flagrante


transportando pele escura
PAUPÉRIA REVISITADA
(Ricardo Aleixo)

Putas, como os deuses,


vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
na companhia das traças
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.
CARNAVAL
(Miró da Muribeca)

Deus largado pelas ruas de Recife


não sabe se dança frevo
ou vai atrás do maracatu

será que Deus também tem dúvidas?

nas ruas
igrejas e povo
Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser

são quatro dias


que Deus não tá nem aí

aí, na quarta-feira de cinza


Deus de ressaca
perdoa quase todo mundo
ORIGEM
(Adão Ventura)

Vestir a camisa
de um poeta negro
– espetar seu coração
com uma fina
ponta de faca
– dessas antigas,
marca Curvelo,
em aço sem corte,
feito para a morte

– E acomodar
no exíguo espaço
de uma bainha
sua dor-senzala.
Papai
levava tempo
para redigir uma carta

Já mamãe Sebastiana de José Teodoro


teve a emoção de assinar seu
nome completo
já quase aos setenta anos
QUEM SOU EU
(Luiz Gama)

Amo o pobre, deixo o rico,


Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe,
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino
Que no pletro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não — das Kalendas,
E, com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratante, bem ou mal
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante,
Que blasona arte divina,
Com sulfatos de quinina,
Trabusanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pingo de rubor,
Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
— Faz a todos injustiça —
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
— Neste dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista —
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados,
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza,
Vive à lei da natureza;
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas num momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me Tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, cabos, furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar-e-guerra,
— Tudo marra, tudo berra —
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos. —
O amante de Syiringa
Tinha pelo e má catinga;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos ludus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse pois a matinada,
Porque tudo é bodarrada!
GRAVATA COLORIDA
(Solano Trindade)

Quando eu tiver bastante pão


para meus filhos
para minha amada
pros meus amigos
e pros meus vizinhos
quando eu tiver
livros para ler
então eu comprarei
uma gravata colorida
larga
bonita
e darei um laço perfeito
e ficarei mostrando
a minha gravata colorida
a todos os que gostam
de gente engravatada…

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