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PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE AS POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA

PERMANÊNCIA DE ESTUDANTES INDÍGENAS NA UNIVERSIDADE


FEDERAL DE GOIÁS1

Larissa Engelmann (UFG)2


Tânia Rezende (UFG)3

RESUMO
Com as políticas de ações afirmativas, o sistema de cotas para ingresso na universidade
tem oportunizado a grupos historicamente excluídos do ensino superior adentrar ao
espaço universitário. Entretanto, a estrutura acadêmica ainda é a mesma de há um século,
o que torna a permanência para os estudantes “cotistas” mais difícil que para os demais,
sobretudo para aqueles que têm o português como segunda ou terceira língua,
considerando que língua é conhecimento, não apenas instrumento de comunicação. Nesse
sentido, realizei um estudo para entender como é a permanência linguístico-epistêmica e
pedagógica de estudantes indígenas na Universidade Federal de Goiás, a partir da criação
do Programa UFGInclui, principal meio de acesso de estudantes indígenas e quilombolas
na UFG. O objetivo do estudo realizado foi problematizar as condições linguísticas e
epistêmicas de estudantes indígenas de diferentes cursos de graduação na UFG. O ponto
de partida da problematização foi um cuidadoso exame do Programa UFGInclui. A
discussão foi sustentada em conceitos da Sociolinguística, iniciando com o ensaio A
pesquisa sociolinguística, de Fernando Tarallo (1985), seguindo com o ensaio Falando
em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, de Gloria
Anzaldúa (1980), e com os textos, ainda em elaboração, do OBIAH Grupo de Estudos
Interculturais da Linguagem. Busquei dialogar com os estudantes indígenas da UFG,
através de rodas de conversa, entrevistas em áudio, minidocumentário em vídeo e durante
os nove encontros de Português Intercultural, coordenados por mim e realizados com
estudantes indígenas da UFG de diferentes povos e línguas. Transbordou a este trabalho
a busca constante, política e consciente, pela promoção da permanência e sobrevivência
acadêmica desses estudantes indígenas, ativamente participantes dessa ação.

PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística. Políticas linguísticas. Ações Afirmativas.


UFGInclui. Permanência estudantil.

1
Monografia de conclusão do curso de Letras: Linguística na Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Goiás
2
Estudante do curso de Letras: Linguística na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, autora
da monografia.
3
Professora do Departamento de Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Goiás, Doutora em Linguística, atua em Sociolinguística e Letramento, orientadora da
monografia.
INTRODUÇÃO

No primeiro semestre de 2019, foram ministradas, na Faculdade de Letras da


Universidade Federal de Goiás, pela professora Tânia Rezende, duas disciplinas
consideradas origem deste trabalho, são elas: Diversidade Linguística e Direitos humanos
e Estudos sobre Letramento. Nas turmas, nas quais cursei essas disciplinas, houve um
encontro, que considero intercultural e translinguístico, entre mim, autora deste trabalho,
uma mulher, negra-parda, trans-travesti, favelada, estudante cotista; e dois estudantes
indígenas, um Iny e outro A’uwẽ., também cotistas como eu.
Nesse encontro, proporcionado pelo espaço universitário e, principalmente, pelas
políticas públicas de ações afirmativas para ingresso e inclusão no ensino superior
público, conquistadas nas últimas décadas pelos movimentos sociais, me surgiu uma
inquietação a respeito da presença daqueles estudantes indígenas nessas disciplinas no
curso de Letras, na UFG, sobre suas origens, condições de vida, de existência e de
estudos. Em resumo, suas experiências naquele espaço. Foi a primeira vez que na minha
vida tive contato com indígenas. Nascida e criada numa cidade paulista, São Vicente, e
tendo estudado somente em escolas públicas do bairro, nunca antes conhecera
pessoalmente outros indígenas, nem no espaço escolar e tão pouco em outros espaços
sociais.
Assim, havia em meu imaginário, que é constituído socialmente, apenas ideias
estereotipadas sobre as identidades indígenas, a começar por um pressuposto – pontual
para esta pesquisa – o de que todos os indígenas falariam a língua portuguesa, a língua do
colonizador. Eu não dispunha de nenhum conhecimento a respeito da realidade dos povos
originários no Brasil, em nenhum aspecto – nem de suas lutas, suas terras, organizações
sociais, identidades, línguas, histórias, narrativas etc. Tão pouco tinha conhecimento de
que na Faculdade de Letras da Universidades Federal de Goiás existe, desde o ano de
2006, o curso de licenciatura em Educação Intercultural, que é um curso de formação de
professores indígenas, sendo que em 2014, foi inaugurado o prédio, onde está o Núcleo
Takinahakỹ de Formação Superior Indígena (NTFSI). Por isso, pressupunha que os
indígenas brasileiros, assim como todos os brasileiros, fossem “naturalmente” falantes de
português e que esta seria sua língua materna. A estrutura universitária e sua forma de
organização, grafo-centrada no alfabeto e na língua portuguesa, contribuíram para esse
pensamento que se punha, a priori: “se estão aqui, estudam aqui e são brasileiros, sua
língua é o português”.
As disciplinas seguiram seus cursos com discussões fecundas, referentes às
temáticas abrangidas por seus conteúdos programáticos, quando começaram a se
organizar grupos para a produção dos trabalhos acadêmicos, nos quais se desenvolveriam
pesquisas, a partir dos novos conceitos teóricos compartilhados e intermediados pela
figura docente e problematizados/refletidos por toda a turma de discente. Então, surgiu a
possibilidade de que se formasse um grupo para a produção dos trabalhos acadêmicos
entre mim e os dois estudantes indígenas. A princípio, houve uma preocupação de minha
parte, um receio se os estudantes me aceitariam como companheira de trabalho, já que
sou uma mulher transgênero e os dois indígenas são homens cis. Ao percebê-los, então,
em suas identidades indígenas, me ocorria a dúvida a respeito de como eu seria vista,
percebida por eles em suas culturas. Teriam preconceitos? Já teriam anteriormente àquele
momento algum contato com uma pessoa transgênero? Suas culturas lhes permitiriam
essa interação?
Todas as minhas dúvidas/receios que se punham, a priori, caíram por terra, logo
quando nos sentamos juntos na sala de aula pela primeira vez, como quando nos juntamos
em grupo – cadeiras juntas e diálogos em grupo. Nos apresentamos e logo fui percebendo
as variações linguísticas em suas poucas e tímidas falas. Depois, surgiram outras dúvidas:
Eles falam pouco, porque são tímidos, ou têm alguma coisa diferente na língua deles?
Foi quando questionei a professora, em particular: a língua materna deles não é o
português?
Esse pressuposto equivocado logo fora esclarecido pela resposta da professora:
Não! Suas línguas maternas não é o português. Suas línguas maternas são suas línguas,
de acordo com seus povos: Iny Rybè, a língua Iny ou língua dos Iny, também conhecidos
e denominados pelos não-indígenas como Karajá, e A’uwẽ UpTabi, a língua do povo
A’uwẽ, denominado pelos não-indígenas de Xavante.
Foi a partir dessas indagações que iniciei este trabalho e optei pelo campo da
Sociolinguística para fundamentar as interpretações e discussões que se seguiram, a partir
das rodas de conversas, minidocumentário e entrevistas orientadas, através das perguntas-
chave ou perguntas-problema. Esta pesquisa, portanto, nasceu desse encontro-
acontecimento intercultural, translinguístico e inter-identitário.
A pesquisa sociolinguística, de Fernando Tarallo, de 1985, foi um ponto de
partida para a interpretação e discussão desse encontro-acontecimento, pois foi a partir da
narrativa que busquei problematizar e dialogar sobre as condições (socio)linguísticas e
epistêmicas desses sujeites diversos, pois “Tudo aquilo que não se pode ser prontamente
processado, analisado e sistematizado pela mente humana provoca desconforto. Na
verdade, a reação humana frente ao caos, seja ele de que natureza for, é de ansiedade”
(TARALLO, 1985. p. 5).
A resolução CONSUNI N° 29/2008, que criou o Programa UFGInclui, sobretudo
no tocante à permanência, também se mostra relevante para esta discussão, pois foi a
partir dela e de seus atos institucionais e instituídos que foi possível esse contato/encontro,
origem desta pesquisa.
O ensaio de Gloria Anzaldúa, Falando em línguas: uma carta para as mulheres
escritoras do terceiro mundo, de 1980, traduzida para o português em 2000, traz para esta
discussão toda a intensidade produzida pela consciência política e empoderamento
identitário de uma mulher escritora, feminista, de origem chicana-mexicana, em seu
texto/carta, tratando de questões culturais e raciais vividas, sentidas e escritas por ela e
compartidas conosco em cada uma de suas palavras.
Depois de ler a Carta, de Anzaldúa, sua voz é recorrente em mim: “Quem sou eu,
uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever? Como foi que
me atrevi a tornar-me escritora enquanto me agachava nas plantações de tomate,
curvando-me sob o sol escaldante, entorpecida numa letargia animal pelo calor, mãos
inchadas e calejadas, inadequadas para segurar a pena?” (ANZALDÚA, 1980, 230).
Da mesma forma que a Carta de Anzaldúa, o poema de Manoel Rui traz com toda
sua poética uma perspectiva sobre o texto e a língua/linguagem que é de uma consciência
política pontual para este trabalho. “Falar em línguas” e sobre as diversas questões que as
constituem, em nosso mundo-tempo, é também falar de colonialidade, que é “ a
manutenção dessa estrutura de poder e de valores, e a decolonialidade é seu
enfrentamento. Trata-se, portanto, antes de tudo, de posturas e atitudes políticas”
(OBIAH, inédito, p. 5, destaques meus).
Com esta pesquisa, me propus a (1) contribui com a visibilização da presença e
da existência dos estudantes indígenas nos diversos cursos de graduação da Universidade
Federal de Goiás, em especial, aqueles que não têm o português como sua língua materna,
ou seja, que adquiriram suas línguas originárias, em seus territórios, de acordo com seus
povos e línguas, em seus processos de aquisição de linguagem; (2) Sondar suas condições
linguísticas e epistêmicas dentro de suas vivências na universidade; (3) Como ou em que
aspectos o português, como língua dominante na universidade, afeta, contribuindo ou
prejudicando, os seus processos de aprendizagem.
A partir dessas opções temática e teórica, o próximo passo deste trabalho foi o de
pensar uma metodologia que mais julgasse coerente a se aplicar dentro desta proposta de
pesquisa. Ocorria-me, de início, que o que me parecia relevante dentro deste trabalho era
tratar sobre questões identitárias (as quais envolvem tantos sujeitos e subjetividades em
seus aspectos mais humanos referentes às relações que afetam diretamente suas vidas,
anseios, sonhos, frustrações etc.) tinha, então, a consciência de que não seria tarefa
simples, mas complexa. Minhas problematizações a respeito desse tema, transbordou ao
interesse sobre formas e descrições a respeito das condições linguísticas destes
estudantes. O que me interessou foram os desdobramentos sociais, acadêmicos,
epistêmicos, identitários e subjetivos que essas variações/diversidades, a princípio,
percebidas nas formas, poderiam produzir.
Pensando sobre essas questões e sobre a importância de trazer as falas indígenas
nesta pesquisa, pois o fazer dialógico, a interação respeitosa, atenta e principalmente
acolhedora me pareceram o caminho mais adequado e coerentes com as perspectivas
teóricas que orientam este trabalho. Ao perceber, a partir das primeiras evidências, o fato
de que esses estudantes estariam, de certa forma, prejudicados, subjetiva e objetivamente,
em seus estudos pela realidade estrutural da universidade, eu, em conversa com Ijawala
nos corredores da Letras, nos intervalos de aula, propus-lhe uma ação efetiva de
intervenção, por meio de ações político-educacionais em torno do que chamamos de
Português Intercultural, que são parte das tentativas de reparação. Ali, já havíamos
entendido que éramos nós por nós.

1 TRANSLINGUAJANDO EM ENCONTROS INTERCULTURAIS,


INTERIDENTITÁRIOS

A partir de nossas conversas, um homem cis, hetero, indígena Iny, e eu, mulher,
trans, negra-parda, nasceram o que, a princípio, nomeamos, eu e Ijawala, de Oficinas
Interculturais de Linguagens, que foram os encontros de Português Intercultural. Esses
encontros foram organizados e programados, à medida em que íamos nos encontrando,
na Faculdade de Letras. Em resumo, ao todo, ocorreram nove encontros, a maioria aos
sábados, em alguma sala de aula e no pátio da Faculdade de Letras da UFG, a partir da
autorização que buscamos via requerimento escrito por mim, Larissa Eugelmann (negra-
parda) bacharelanda em Linguística, responsável e mediadora pela/da oficina e por
estudantes indígenas, pertencentes a diversos povos e língua originárias, dos cursos de
Letras: Português, Licenciatura em Geografia, Bacharelado em Economia, Bacharelado
em Enfermagem, Bacharelado em Biologia, Licenciatura em Pedagogia, Bacharelado em
Direito, Bacharelado em Engenharia de Alimentos, Bacharelado em História,
Bacharelado em Agronomia, Bacharelado em Arquitetura.
O pedido/requerimento foi lido, avaliado e deferido pela Direção e pelo Conselho
Diretor da Faculdade de Letras. Começamos, então, a escrever este projeto de atividades
e, sob a orientação da professora Tânia Rezende, coloquei-me na posição de ouvir, na
escuta atenta e empática. Sem nenhuma pretensão salvífica, perguntei a Ijawala o que ele
considerava relevante para si, naquele momento e que pudesse o ser também para os
demais estudantes indígenas, com os quais entraríamos em contato para falar dessas
ações/encontros bem como lhes ouvir, referente às suas demandas e expectativas sobre
essas atividades extracurriculares que propúnhamos realizar. As demandas começaram a
aparecer e, no geral, todas eram atravessadas por questões linguísticas, as
dificuldades/limitações com o português.
No dia 19 de outubro de 2019, um sábado pela manhã, às 9 horas, realizamos o
primeiro encontro de Português Intercultural, construindo em diálogo um cronograma de
atividades a serem realizadas nos próximos encontros que viriam a acontecer, no pátio
externo da Faculdade de Letras (UFG). Foram ouvidas as demandas dos estudantes
indígenas presentes e eram muitas. As condições a que estavam expostos os indígenas,
que não têm o português como língua materna, dentro de uma estrutura universitária
moldada pela colonialidade, eram dignas de atenção, pesquisas e intervenção política.
Para isso, já a priori, percebemos que essa relação de aproximação e início de um
trabalho/projeto a que almejávamos deveria ser também atravessada de acolhimento e
afetividade, para além de qualquer trabalho formal de instrumentalização de quaisquer
conhecimentos que neles fossem construído/produzido/compartilhados. Ademais disso
nos pautamos, também, na Resolução Consuni 29/2008, de criação do UFGInclui, em
especial, a seção que trata das ações a serem tomadas “posteriores ao ingresso” desses
estudantes-identidades alvo do Programa, a saber:

[...]É consenso o fato de que qualquer ação que favoreça o acesso de


minorias na universidade, deve ser acompanhada de mecanismos
consistentes de apoio à permanência, sejam aqueles relativos à aspectos
econômico-financeiros, sejam os referentes ao desempenho acadêmico
mais especificamente. Não basta incluir, é preciso criar as condições de
fato para que esses estudantes vivenciem a vida universitária em sua
plenitude, assegurando a sua permanência até a conclusão do curso.
[...]Ação 2 – Viabilizar mecanismos de acompanhamento do
desempenho dos estudantes
que ingressarem por meio do Programa de Inclusão da UFG.
(RESOLUÇÃO CONSUNI 29/2008 - Ações posteriores ao ingresso, p.
20)

Nesse primeiro encontro, nós nos reunimos no gabinete da professora Tânia


Rezende para uma conversa de aproximação e escutas de demandas para juntos
construirmos um cronograma de atividades parra os encontros, segundo o tempo oportuno
que ainda tínhamos naquele semestre para trabalhar. As demandas apresentadas eram
diversas: das condições acadêmicas, como as dificuldades com o português, no que se
refere ao (não) entendimento/compreensão das aulas, nas exposições orais, dos textos
exigidos para leitura (os textos teóricos em português), dificuldades de socialização com
a turma (colegas de classe) para trabalhos em duplas ou grupo, dificuldades em fazer
perguntas durante a aula, sobre alguma palavra ou ideia não entendida. Essas são só
algumas das coisas que apareceram já numa primeira conversa/encontro e delas, de tais
demandas, decorriam muitas reprovações, desistências de cursos e uma dificuldade muito
grande, senão a impossibilidade de se reconhecer uma parte efetiva da universidade, pois
através dessas diversas práticas sociolinguísticas esses estudantes percebiam também que
suas identidades eram negadas/invisibilizadas, dentro dessa estrutura universitária.

Todas as dicotomias que estruturam o sistema-mundo, apesar de serem


horizontais, são hierarquizadas, e têm uma parte que se impõe como
todo, isto é, como superior a outra, e, assim, invisibiliza a outra parte,
que é sua contra-parte inferior: Europa/América, branco/negro,
homem/mulher, conhecimento científico/conhecimento tradicional,
classe empregadora/classe trabalhadora etc. (OBIAH, p. 13, inédito)

No dia 26 de outubro de 2019, realizamos nossa segunda oficina. Já com mais


cores, aprendizados, diálogos, aproximação e sorrisos, tivemos nessa data a apresentação
sobre as bonecas Ritxokò da cultura Iny Karajá, por estudantes indígenas do curso de
Letras-Português e do curso de História. Estudantes Karajá e Javaé trouxeram para a
oficina a beleza da arte em cerâmica da cultura Iny, como também a importância cultural,
pedagógica etc. das Ritxokò para seu povo.
A leitura e discussão da resolução CONSUNI 29/2008, para além da leitura de um
documento, meramente, ou de um gênero textual, mas como uma prática sociolinguística
e política de Letramento, também jurídico, teve papel importante no reconhecimento de
sujeites e de seus lugares de direito, de conhecimento e de entendimento do Programa
UFGInclui, não como um Programa de inclusão, endurecido na dicotomia
exclusão/inclusão, mas como a atuação política da UFG na reparação à injustiça histórica
com relação aos povos subalternizados pela colonialidade.
O Programa prevê providências como acompanhamento acadêmico dos
estudantes, já que na própria Resolução, os redatores já reconheciam as dificuldades em
permanecer nessa estrutura eurocêntrica, andro-brancadêmica, de ensino – por não terem
nela reconhecidas e respeitadas as especificidades linguísticas, culturais e epistêmicas dos
diversos povos brasileiros. O acompanhamento acadêmico objetiva à permanência e o
pleno desenvolvimento acadêmico dos estudantes contemplados pelo Programa
UFGInclui.
Ao criar o Programa, a Resolução CONSUNI 29/2008 apresenta em parágrafo
único, a orientação sobre as ações a serem tomadas/realizadas no e pelo Programa, que
estão anexadas a ela. Em anexo, o programa, após apresentar sua fundamentação, indica
já as ações a serem realizadas nele, sendo essas basicamente divididas por temporalidade:
antes do ingresso, no ingresso e posteriores ao ingresso dos estudantes. Para fins desta
discussão, destaca-se que texto desse anexo, que se refere às ações a serem realizadas
posteriormente ao ingresso desses estudantes, em resumo destaca o que é chamado no
texto de acompanhamento acadêmico como citamos acima. Os estudantes presentes na
oficina de leitura e discussão da Resolução comentada acima afirmaram não ter
conhecimento da existência dessa Resolução, tão pouco de que esse programa previa o
acompanhamento acadêmico deles.
Nosso terceiro Encontro Intercultural ocorreu no dia 9 de novembro, quando
tivemos a apresentação cultural sobre o povo Boe (Bororo) por dois estudantes Boe que
nos trouxeram também um canto Boe e a lenda "A façanha do macaco", que traz ensinos
ao povo Boe. Nesse encontro, também, foi apresentado um pouco sobre as diferenças das
falas femininas e masculinas na língua (Boe) bororo.
Dia 28 de novembro de 2019, tivemos nossa oficina com as apresentações
do/sobre o povo AKwẽ-Xerente e o povo Iny Karajá. Os estudantes apresentaram um
pouco sobre a língua, história, geografia, cultura e arte do povo Xerente. A apresentação
do/sobre o povo Iny Karajá foi feita por dois estudantes Iny que falaram sobre o seu povo,
foi retomada a arte das Ritxokò (bonecas karajá em cerâmica) e de sua importância na
transmissão da cultura Iny para as crianças através da arte e da brincadeira.
No dia 30 de novembro, nosso encontro teve as apresentações do/sobre os povos
Kanela, da dispersão do Maranhão para o Mato Grosso. Nesse encontro, também, tivemos
uma apresentação sobre o 7° Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas 2019, que
aconteceu na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre –
RS. O processo de dispersão do povo Kanela no Maranhão foi narrado pelo estudante
Kanela conforme as narrativas de seus avós que, dispersos, e tendo chegado ao Mato
Grosso, casaram-se com não-indígenas o que originou uma aldeia Kanela com indígenas
e mestiços. Na apresentação, o estudante nos mostrou um pouco da cultura, organização,
território, festas e de sua atual busca e luta pela retomada de alguns aspectos,
conhecimentos de sua cultura que quase se perderam no processo de dispersão e de sua
língua que vem sendo retomada, principalmente a partir da escola Kanela de sua aldeia.
Na apresentação sobre o povo A’ uwẽ (Xavante), o estudante nos chamou atenção
para a educação de seu povo e suas especificidades, chamando atenção para suas
diferenças. O processo pelo qual os meninos xavantes passam para se tornarem homens
(xavantes) e assim poder assumir responsabilidades e direitos como xavante nos foi
apresentado em um documentário, apresentado no encontro por ele, chamado “Waté’wa:
os jovens xavante que batem na água”, dirigido por Caimi Waiassé Xavante e Leandro
Parinai’a que recebeu o prêmio de melhor curta-metragem nacional no Festival de
Cinema de Alter do Chão, segundo o site “Água boa news”.
Uma estudante Tupinambá da Licenciatura em Geografia junto com o estudante
Kanela da Agronomia fizeram uma apresentação sobre suas participações no ENEI 2019
e chamaram a atenção para a importância desse evento, que reúne estudantes
universitários indígenas de todas as regiões do Brasil. Através de várias atividades e
reflexões, estes estudantes compartilham de suas vivências na universidade, no estudo a
na luta política que lhes é comum, por mais educação de qualidade e diferenciada que
reconheça e respeite as especificidades linguísticas, identitárias, culturais que cada um
traz consigo.
No dia 14 de dezembro, tivemos em nosso encontro Práticas de leitura de texto
acadêmico, com a professora Karla Castanheira, da Faculdade de Letras, apresentações
culturais do/sobre os povos Krikati, Guajajara e Terena, com dança e canto Guajajara (um
pequeno ensaio), almoço típico feito por participantes dos Encontros Interculturais e uma
roda de conversa, onde retomamos a discussão sobre os Encontros Interculturais: origem,
objetivos, perspectivas teóricas etc.
A oficina de 14 de dezembro, aconteceu das 8 às 16 horas. Pela manhã, a
professora Karla conduziu a atividade de leitura de texto acadêmico, trazendo para leitura
três textos/resumos escritos por autores indígenas e fez algumas pontuações quanto à
leitura de textos acadêmicos, ouvindo os estudantes indígenas sobre suas demandas de
leitura e interpretação dos textos que passam a fazer parte de seus cotidianos na
universidade.
A apresentação sobre os Krikati foi feita por um estudante Krikati do curso de
Ciências Biológicas, que nos trouxe um pouco sobre a língua, arte e cultura dos Krikati.
Nosso almoço foi uma delícia de peixe assado. O momento de confraternização e de
compartilhamento foi muito importante para reafirmarmos nossas perspectivas,
fundamentos e objetivos referentes aos Encontros Interculturais. Todos esses encontros
fizeram parte de um leque de ações que foram se desenvolvendo à medida em que esses
estudantes indígenas se mobilizaram. Esses são responsáveis por toda riqueza e
diversidade cultural, linguística e identitária vivida e compartilhada em cada um de nossos
encontros, às quais transbordaram e transbordam a essa escrita/produção monográfica.
Essas foram/são ações concretas que não caberiam na estrutura formal deste texto, em
palavras escritas, mas que se fizeram e se fazem textos.

2 NARRATIVAS DAS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS EM ENCONTROS


INTERCULTURAIS INTERIDENTITÁRIOS

Ao resenhar o trabalho de Labov, entre os primeiros trabalhos de


Sociolinguística, Tarallo, em seu livro A pesquisa sociolinguística (1985), chama atenção
dos pesquisadores da linguagem, que se interessam e se propõem a observação e análise
de fenômenos sociolinguísticos, para o fato que "O pesquisador da área de
sociolinguística precisa, portanto, participar diretamente da interação" (1985, p. 20).
Mesmo ante ao “paradoxo do observador” que, apesar de ser responsável pela busca e
coleta dos dados linguísticos que comporá sua análise, também, segundo pressupostos da
objetividade, precisa que sua presença não interfira na situação comunicativa, pois "sua
participação direta na interação com os membros da comunidade é, no entanto, uma
necessidade imposta pela própria orientação teórica.” (1985, p. 20).
Tarallo destaca a narrativa de experiência pessoal como uma potente estratégia
na coleta de dados de forma que o entrevistado se sinta confortável para usar a língua sem
que haja alguma tensão advinda da sensação de policiamento ao como usá-la, ante a uma
situação de entrevista. Assim, segundo o autor "(...) ao relatá-las, o informante está tão
envolvido emocionalmente com o que relata que presta o mínimo de atenção ao como. E
é esta, precisamente, a situação de comunicação almejada pelo pesquisador-socio-
linguista" (TARALLO, 1985, p 22).
A narrativa de experiência pessoal aparece como uma importante ferramenta
para esta pesquisa sendo ela essa "mina de ouro" que Tarallo afirma que o pesquisador
deve procurar.

Ao narrar suas experiências pessoais mais envolventes, ao colocá-las


no gênero narrativa, o informante desvencilha-se praticamente de
qualquer preocupação com a forma. A desatenção à forma, no entanto,
vem sempre embutida numa linha de relato, a que chamaremos
"estrutura narrativa”. (TARALLO, 1985, p. 23)

Assim, a partir da promoção e do estímulo a narrativas de experiências pessoais


intra e interculturais, como metodologia sociolinguística, que desenvolvi minha pesquisa.
No dia 23 de maio de 2019, foi realizada uma roda de conversa em que foram ouvidos
estudantes indígenas da UFG, com relação às suas situações e demandas linguísticas e
epistemológicas em seus cursos. Participaram dessa roda de conversa os estudantes
Ijawala Ricardo Karajá e Amós Tsidadze Tsipré, A’uwẽ Uptabi, ambos do curso de
Letras: Português, Amarildo Karajá, do curso de Geografia, e Larissa Eugelmann, do
curso de Letras: Linguística, única estudante não indígena participante da roda, autora
deste trabalho.
Essa roda de conversa foi coordenada por mim, que me identifico como uma
travesti, parda. Sou paulista e estudante de Linguística (bacharelado), tendo ingressado
no curso em 2015, primeiro semestre, pelo SISU, via sistema de cotas para pessoas negras
(pretas e pardas), de família de baixa renda e que tenham estudado em escola pública,
língua materna português. A coordenação se deu em caráter de orientação apenas quanto
ao tema a ser debatido, de acordo com os objetivos deste trabalho.
As narrativas que se seguiram foram ricas em situar e iniciar uma identificação
de cada sujeito participante da roda e também da pesquisa. O diálogo, a priori, se iniciou
muito formalmente, porque as próprias perguntas provocativas tinham esse primeiro
objetivo, que cada sujeito estudante indígena pudesse por si mesmo se apresentar. Ao
inserir-se na conversa a palavra/tema "língua portuguesa", que serviu como introdutório
sobre o assunto mais amplo "linguagem", aos poucos, começando pela retomada de suas
primeiras experiências educativas formais em suas aldeias, os estudantes foram ficando
menos tensos e, com isso, o diálogo começou de fato a surgir, um pouco ainda
timidamente, quando suas falas começaram a tomar mais forma de narrativa, ao invés de
respostas às perguntas temático-provocativas da conversa.
Após cada um se identificar e comentar mais ou menos com que idade passou a
ter contato com a língua portuguesa, foi introduzida na conversa a tematização "estar na
universidade", e é a partir daí que os estudantes indígenas foram se sentido mais à vontade
para falar de si, apesar da barreira linguística lhes desfavorecer, já que a conversa se
desenvolveu, o tempo todo, exclusivamente na língua portuguesa, com eles apresentando
dificuldades consideráveis para mover-se no português.
Pude, então, constatar, por mim mesma, o fato já me informado de que o
português não era a língua materna deles, portanto, não era uma língua familiar nem
língua de afeto. Seria, então, a língua portuguesa, a segunda língua para os estudantes
indígenas? Uma segunda língua, que não a que se recebe de figuras afetivas na/da vida
do falante, não costuma ser uma língua tão produtiva para se falar em dificuldades, em
particularidades, principalmente num ambiente mais social como uma roda conversa.
Dois pontos se colocaram, então, como potenciais impedimentos para a fluidez do
diálogo: primeiro, o fato de os participantes se moverem linguisticamente todos em
português, ou seja, a língua de contato, a língua formal, legitimada, oficial, institucional;
e segundo, pela organização do diálogo que ocorreu com certas formalidades, como dia,
horário e lugar (espaço), pré-definidos, bem como o assunto a ser apreciado em diálogo.
Todavia, pareceu muito produtivo, já que nessa situação reproduziu-se, de certa forma,
as situações às quais se propôs a roda de conversas.

3 COMPARTILHAMENTO DE SABERES: OPÇÃO PELA POSTURA


DIALÓGICA

Os estudantes indígenas foram ouvidos em rodas de conversas e em entrevistas


em áudios, conforme o roteiro a seguir, para o estabelecimento de um diálogo/conversa.
As perguntas 1 e 2 têm cunho mais informativos no sentido de identificar os participantes.
A pergunta 3 se coloca como a questão problematizadora e é central para este
estudo/pesquisa, pois é a partir dela que, ao reconhecer e respeitar o lugar de fala dos
estudantes indígenas, quando eles decidem ocupar esse lugar, assumir seu protagonismo
e seus lugares de fala, do falar de si mesmo, que as dúvidas e pressupostos que se
constituem de forma estrutural podem ser sanadas ou, pelo menos minimizadas, a
exemplo da pressuposição que existia antes por parte da autora desta pesquisa.
1. Nome, etnia, língua, curso, ano de ingresso no curso?
2. Com quantos anos começou a ter contato com a língua portuguesa?
3. Como tem sido estar na Universidade e como tem se dado a relação
com a língua portuguesa (aulas expositivas, textos, atividades de leitura e de
produções textuais) em seu curso?
São trazidas, então, algumas falas que aos poucos foram tomando forma de
narrativas, como se tinha expectativa, e que ajudaram/contribuíram para a identificação
dessas condições e vivências indígenas na Universidade. A seguir, tem-se as
textualizações escritas das falas desses estudantes indígenas, participantes ativos dessa
roda de conversa, realizada no dia 23 de maio de 2019, de acordo com o roteiro proposto.
Para dar ênfase às falas indígenas, optei por trazê-las em sua completude ao texto
monográfico, sem nenhum tipo de recorte. Através de suas falas e narrativas, por meio da
linguagem, esses se colocam e se afirmam dentro deste trabalho. A narrativa para os
povos indígenas é um lócus originário de enunciação, um modo de estar no mundo e de
se pronunciar para o mundo, é um ato político em qualquer circunstância.

Para instaurar esse diálogo, precisamos ouvir e escutar essas pessoas,


em seus espaços e do seu lugar de fala, respeitando seu lugar de
existência, sem querer ensinar ou ditar a pauta. Conseguiremos fazer
isso? Por enquanto, só uma saída: escutar as pessoas na humildade do
silêncio e avaliar com qual narrativa vamos dialogar com elas sem
desrespeitá-las em sua subjetividade. (OBIAH, inédito, 25)

3.1 O DIÁLOGO NO ENCONTRO-ACONTECIMENTO INTERCULTURAL

Roda de conversa realizada no dia 23 de maio de 2019, na Faculdade de Letras da


Universidade Federal de Goiás.
Participantes:
Amós Tsidadze Tsipré
Ricardo Ijawala Karajá
Amarildo Tehele Karajá
Larissa Engelmann (mediadora)

[Textualização completa do áudio do evento-encontro “Roda de conversas:


Escutas/Diálogos Interculturais na universidade”]
Larissa Engelmann, 29 anos, travesti, parda, do estado de São Paulo, cotista SISU (racial,
baixa renda, escola pública), língua materna - português - curso: Letras/Linguística, ano
de ingresso 2015/1.

[Larissa]

"Então, eu sou a Larissa da UFG, brasileira, parda, nascida em São Paulo (estado), tenho
como língua materna a língua portuguesa, curso Letras/Linguística. Meu ano de ingresso
na UFG é 2015 primeiro semestre. E, como tenho a língua portuguesa como língua
materna, desde a minha infância, eu já tenho contato com língua portuguesa né, porque é
minha língua materna, minha língua... adquirida já a priori. Aí eu vou passar então a fala
pros estudantes indígenas que vão se apresentar dizendo agora qual é o seu nome, a sua
etnia, a sua língua, o curso que eles fazem, qual ano ingressou na UFG e com quantos
anos começaram a ter contato com a língua portuguesa.
Então, cê pode começar Amós? Então, só se apresentar e você fala 'seu nome...?'
[Amós] "Meu nome Amós Tsidadze Tsipré, nome completo em português e minha língua,
é... sou do estado do Mato Grosso, indígena da etnia Xavante, o ano que ingressei na UFG
foi em 2016, primeiro. * começou a ter contato e falar português aos 10 anos de idade
(*informação obtida, retomada em 13/12/19)
[Larissa] "E... a sua língua... como é chamada a sua língua?
[Amós] "Minha língua materna, se chama... Xavante, mas tem outro que a gente chama
Macro-jê, tem a divisão das línguas indígenas no Brasil né?
[Larissa] " Assim... e seu curso é?"
[Amós] "Letras-Português, licenciatura"
[Larissa] "Ricardo cê pode falar agora?"
[Ricardo] "É o... meu nome é Ricardo Ijawala Karajá, a minha etnia é Karajá, minha
língua é... é Iny, eu entrei no meu curso no ano de 2017. É Letras-Português."
[Larissa] "E com quantos anos você começou a ter contato com a língua portuguesa?"
[Ricardo] " Eu acho... é... quando eu tinha 16 anos, no primeiro... é... só falava de minha
língua materna mesmo.
[Larissa] "Cê só falava a sua língua materna, sem ter contato com o português, até os 16
anos?"
[Ricardo] "Sim."
[Larissa "É... e o Amarildo pode falar por favor? seu nome...?"
[Amarildo] "Eu sou Amarildo Tehele Karajá. E... sou etnia Karajá, fica no Tocantins, eu
moro na aldeia Fontoura e meu curso é Geografia licenciatura. E... eu entrei nesse ano o...
no faculdade, e 2019 né, e agora... estamo na aqui na faculdade."
[Larissa] "A sua língua é o Iny?"
[Amarildo] "Hum... Karajá, Macro-jê. E... eu comecei com a... contato com língua
portuguesa, desde adulto e... eu acho que 20 ano."
[Larissa] "Só com 20 anos você começou a falar e ouvir português?"
[Amarildo] "Isso."
[Larissa] "Ah tá. Brigada!"

Algumas pontuações se fazem necessárias, a partir desse início de diálogo. A


identificação ou o identificar-se aparece como pressuposto básico para se pensar essas
relações as quais investigamos, porque são relações também identitárias. Dizer quem se
é, como se nomeiam, quais são suas línguas, é trazer ao lócus enunciativo suas
identidades, antes, desconhecidas por mim. O diálogo se inicia de forma tímida até pela
formalidade que é sentida, tendo esse evento um local, horário e temática predefinidos,
uma roda de conversa realizada no ambiente universitário.
De forma simples e objetiva têm-se as primeiras dúvidas/questionamentos
respondidas, pelos próprios sujeites envolvidos na questão. Primeiramente, esses
estudantes indígenas não têm o português como língua materna. A língua portuguesa não
é a língua deles. Suas línguas são Iny-Rybè, para Ijawala e Tehele, e a língua do Amós
Tsidadze Tsipré é a língua A’uwẽ, ambas são línguas indígenas, originárias, e são do
tronco linguístico, Macro-Jê, e famílias diferentes, respectivamente, família Karajá e
família Jê.
A língua portuguesa aparece em suas vidas em segundo plano, num contexto
outro, que não o da aquisição de linguagem, não é a língua de seus pais, suas famílias,
seus povos/comunidades, mas a língua do outro, o branco, o não-indígena. Tiveram
contato com o português em momentos/idades diversas, cada um deles. Isso mostra que
provavelmente, não existe uma sistematização sobre os processos e momentos para se
ensinar a língua portuguesa para uma criança entre seus povos ou pelo menos não como
os nossos, mais conhecidos entre nós, que se inicia quando na aquisição de linguagem
por meio da interação social e logo na escolarização que se inicia ainda na infância quando
são empregados os processos formais de ensino tais como se conhecem.
Os povos indígenas têm suas formas próprias de lidar com a língua portuguesa.
Esta, a priori, não parece ser uma prática relacionada à afetividade, o contexto histórico
de relação entre indígenas e a língua portuguesa aponta mais para efeitos de resistência.
Não se lida com uma língua somente em seus aspectos estruturais. Língua é função e é
identidade, é poder e luta. Lidar com a língua do outro é se relacionar com o outro e com
um/num mundo-língua (do) outro. A língua é social e é nela que seus falantes/sujeitos
interagem, existem, movem-se, aprendem a (re)conhecer o mundo e a si mesmo, nas
relações dialógica previstas nela mesma.

3.2 NARRATIVA DE EXPERIÊNCIA PESSOAL INTERCULTURAL

Amós Tsidadze Tsipré, 34 anos, do estado do Mato Grosso, indígena da etnia Xavante,
de língua xavante (A’uwẽ) do tronco Macro-Jê, família Jê, ingresso na UFG no primeiro
semestre de 2016, Curso Letras: Português.
[Estar na universidade, relacionar-se com a língua portuguesa em seu curso, ouvir, ler em
LP]:

"Bom, primeiro momento, quando eu cheguei aqui na universidade, é... em que... na


minha época também terminei ensino médio em 2006. Depois disso eu fiquei parado
muito tempo... apagado minha cabeça. Resolvi ingressar na universidade pública porque
eu queria muito a UFG. E quando eu cheguei que eu já me reconhecia que eu to apagado
né, no estudo. Aí quando eu cheguei aqui, é muito difícil na cabeça tudo vazia. Eu vou
ter que (me)... adaptar a relação, a Universidade, interação na sala, o professor fala só
em português, os textos em português, e para interpretar é grande dificuldade que eu
tinha, naquele momento, ai”
“O que me incomoda mais é literatura nesse... com... meu curso.”
“O que dificulta para nós indígena, morador da aldeia... não foi criado na cidade...
crescido na cidade... ainda é mais difícil e... o que choca, cultura, identidade, línguas né?
“Assim... é grande dificuldade né... da linguística, de português. Raciocinar... de
aprender, interpretar. Isso é grande dificuldade mas a gente tem que superar... é...
melhorar”
“A educação própria do Xavante é bem diferente...” (áudio 09:54.43-voz 004)

Nessa breve narrativa, que vai tomando forma no diálogo, Amós chama atenção
sobre sua relação com o estudo formal, isto é, não-indígena. Após ter ficado dez anos fora
do espaço formal/escolar de ensino, “Depois disso eu fiquei parado muito tempo...”, sua
expressão “apagado minha cabeça”, parece dizer algo sobre um atleta que se
percebe/considera fora de forma, cabe a metáfora. Atleta distante da prática cotidiana,
sistémica, do exercício que pode produzir efetivos resultados. Em relação ao seu acesso,
em 2016, na universidade, todo esse tempo fora do ambiente de treino formal de
educação, também deve ser considerado, para se pensar sua situação linguístico-
epistêmica: “E quando eu cheguei que eu já me reconhecia que eu to apagado né, no
estudo”.

Para além da ausência de sua língua, que é citada “(...) o professor fala só em
português, os textos em português (...)”, pontua seu incômodo com a Literatura “O que
me incomoda mais é literatura nesse... com... meu curso”, talvez porque esta seja
produto direto do grafo-centrismo alfanumérico, que baseia a arte do homem branco e
nela o estudante não se reconheça, não lhe faça sentido. Pontua, também, “O que dificulta
para nós indígena, morador da aldeia... não foi criado na cidade... crescido na cidade...
ainda é mais difícil e... o que choca, cultura, identidade, línguas né?”.
Essa fala traz toda a consciência político-identitária de um estudante indígena que
sabe onde está e em que tipos de relações está enredado ao entrar na universidade. O
choque não é só não ter sido treinado/ensinado a dominar o português em sua forma
padrão, mas é, também, estar nessa estrutura que valoriza/impõe tanto essas formas que
não são também só linguísticas, mas culturais e identitárias e estas não dialogam, pelo
menos de forma honesta, com estes estudantes indígenas, pois suas funções são produzir
inexistências, invisibilidades, desistências. A universidade perde muito ao ignorar esta
diversidade cultural-linguístico-identitária, presente, mesmo apesar de tantos pesares.
Amós também nos chama a atenção para sua consciência sobre educação “A
educação própria do Xavante é bem diferente...”. Há diversas formas de educar, educar
é também um ato social, político e cultural, bem como é identitário, pois forma, constitui
identidades. Sobre a educação do seu povo, que é sua, também, como parte constitutiva
da sua formação identitária e é graças a essa educação recebida que Amós pode se
(re)conhecer e se (a)firmar como um A’uwẽ, que é, portanto, parte integrante de suas
bases epistêmicas.
É sabido, bem como, já citamos acima, que a fala, a narrativa, a oralidade é um
lócus originário de enunciação. Essas bases orais, dentro de uma perspectiva grafo-
centrista, são pouco reconhecidas ou não reconhecidas. Se a universidade as ignora,
descumpre ou foge à luta, a respeito de um conceito bastante citado em sua constituição,
como instituição democrática, que é o conceito de diversidade, pluralidade.
Esses estudantes indígenas, dentro da universidade, não podem/devem ser
convidados a esquecer tudo o que trazem de seus espaços, lugares socioculturais e
identitários, ou seja, toda a bagagem que trazem consigo das experiências vivenciadas
junto a seus povos. Seus conhecimentos, suas vivências, lutas etc., podem/devem ser
valorizados, pois enriquecem a academia e pluralizam os pensamentos e reflexões
produzidas, até então, com suas ausências. Incluir perpassa por trazer em presença, não
só os corpos físicos dito excluídos, reconheço que as marcas que fundamentaram suas
exclusões estão no corpo (físico) também, mas este é político e é esse corpo político que
deve ser cada vez mais incluído até que se faça entre esses corpos e os demais que
constituem a universidade, historicamente (brancos, masculinos, cis, héteros, judaico-
cristãos) um corpo maior que aponte não mais para uma (Uni)versidade, pois há universos
e universos, mas sim para que alcance, enfim, a (Pluri)versidade.
Se há vida no planeta Terra e por consequência existimos, é porque os universos
coexistem com (certa) harmonia, sua dança/movimento é harmônica. Pelo menos, não
tenho notícia nem ouço falar, desde minha infância, sob cuidados de minha mãe, de meus
primeiros anos escolares até o presente momento, na universidade, de que haja guerra,
lutas, disputas entre universos. No sistema solar, tão pouco, ouço falar de ataques entre
os planetas, ou da destruição de algum deles pelo sol, em algum momento de desgosto ou
recalque deste. Todos coexistem e a existência de um não implica a inexistência do outro.
As práticas de destruição, invisibilização, o ignorar ou mesmo o atentar-se contra
a existência do outro, são práticas criadas pelos mesmos que criaram a alteridade
(colonial). Transformações nas nossas relações desde as mais elementares da humanidade
até as universitárias/acadêmicas se fazem necessárias e urgentes. A(s) diferença(s) não
pode(m)/deve(m) seguir sendo marcadores imediatos de exclusão e resistência, ou nos
colocamos em situação de contradição ética, na explícita desarmonia entre o dizer e o
fazer, entre discurso e prática.

A ideologia, segundo a qual a escrita alfanumérica e a aquisição da


língua hegemônica escrita, de acordo com seu padrão culto, formam um
capital cultural reservado a uma selecionada parcela da sociedade, e
somente é possível por meio da escolarização, em “escolas de
excelência”, está naturalizada. Portanto, cabe a uma educação
linguística ética, humana e democrática desnaturalizar e desestabilizar
tanto essa ideologia quanto seus critérios de naturalização. Os critérios
de seleção para o acesso à escola e aos conhecimentos hegemônicos são
históricos e são os mesmos que estruturaram, de forma binária e
hierarquizada, a sociedade colonial: raça/cor/etnia, gênero/sexualidade
e classe/índice de massificação. Mesmo com a democratização do
acesso à escola, a permanência na escola não é facilitada e o acesso ao
espaço escolar não significa acesso aos conhecimentos hegemônicos,
porque as práticas de ensino são modos de produção de inexistências.
(OBIAH, inédito, p. 12)

Ricardo Ijawala, à época com 21 anos, indígena do povo Iny, língua Iny Rybè, do estado
do Tocantins, curso Letras: Português, ano de ingresso 2017, primeiro semestre, contato
com a língua portuguesa (falada) a partir dos dezesseis anos.

[Sobre estar na universidade e se relacionar com a língua portuguesa no curso]:


(primeira fala)
“É como... é... sempre falo né, é... sempre difícil, quando a gente muda pra... outra
cultura né? E... é sempre, eu me percebo... assim... como ele falou... é complicado estudar
aqui na UFG, assim... acho que a gente não é preparado, pra estudar aqui. A gente...
como eu tava falando pra eles, a gente conversa... a gente começa do zero mesmo,
entendeu, mas... apesar dificuldade a gente tenta aprender né, a gente... é... tenta assim...
lidar... de tudo... apesar de tudo que a gente passa dificuldade. Acho que... é língua
portuguesa é o que... é o que a gente atrapalha mesmo, na parte de estudo né? Que a
gente... lê... faz leitura que a gente... a gente não consegue entender muito bem o que está
no texto, né. Mas a gente tenta pra entender, e... mas assim é... a gente não aprende uma
vez, a gente aprende... assim... tentando. A gente esforça pra aprender, pra entender bem
o que.. o que a gente tá estudando. Aí... é isso” (áudio 09:54.43-voz 004)

Essa fala de Ijawala, antes de chegar a este texto, me chamou a atenção e a


considero desafiadora, tanto pra mim, estudante de Linguística, quanto para a Linguística,
a Sociolinguística, para a universidade, bem como para todos os campos de estudos das
chamadas Humanidades: “sempre difícil”. A dificuldade, em seus processos de
aprendizagem, dentro da universidade, está expressa, declarada, pelo sujeito enunciador.
Ijawala faz pontuações na continuação de sua fala e estas se relacionam com a
dificuldade declarada “quando a gente muda pra...”, “outra cultura né?” [destaques
meus] e aqui se percebe, também, a consciência da alteridade aliada ao
pensamento/percepção que o sujeito tem de seu deslocamento, que não é só geográfico,
mas cultural, Ijawala se percebe deslocado, “outra cultura”. Acredito que não haja
problema nessa outra cultura, ou em estar vivenciando, relacionando-se com essa cultura,
ou essas culturas diversas que integram a universidade, mas que se perceba e se sinta na
pele, na mente e no espírito o quanto a cultura hegemônica, que insistentemente domina
esse espaço universitário, tem bases excludentes. “E... é sempre, eu me percebo... assim...
como ele falou... é complicado estudar aqui na UFG” [destaques meus].
Diante dessa fala, me sinto instada a considerar os diversos complicadores que se
apresentam no caminho da graduação de um estudante indígena, sempre pontuando,
aqueles que têm suas línguas originárias e não o português como língua materna. Não que
outros estudantes, os que têm o português como língua materna, a exemplo de mim
mesma, não tenham nenhuma complexidades, complicação ou dificuldades. Mas o que
pontuo aqui é que esses estudantes se encontram, vivenciam o espaço universitário, suas
práticas, e aquilo que a circunda, por exemplo, a cidade/espaço urbano, no caso da UFG
– de forma diferenciada – em condições diferentes.
Refiro-me aqui à barreira linguística “Acho que... é língua portuguesa é o que...
é o que a gente atrapalha mesmo, na parte de estudo né? Que a gente... lê... faz leitura
que a gente... a gente não consegue entender muito bem o que está no texto, né.”
[destaques meus], enfrentada, cotidianamente, por cada um desses estudantes guerreiros,
que corajosa e bravamente, enfrentam ao aceitar o desafio de vir à universidade estudar
os conhecimentos dos brancos, não-indígenas, mas... apesar dificuldade a gente tenta
aprender né, a gente... é... tenta assim... lidar... de tudo... apesar de tudo que a gente
passa dificuldade [destaques meus]. A permanência, assim, desses estudantes indígenas
e todo o peso físico, mental, psicólogo, psíquico, social etc. parece que acaba por ficar
em seus próprios ombros. Um ju(l)go colonial. É assim que

O trabalho da Sociolinguística Ativista, ancorado na Sociologia das


ausências, é tornar possível o impossível, trazer a ausência para a
presença e potencializar a re-existência da inexistência, pela
apropriação da linguagem. Assim, o letramento de
resistência/insistência se apoia no potencial que as pessoas têm e que só
precisa ser visibilizado e estimulado; e, a partir da resistência, o
letramento de re-existência se constrói trazendo à visibilidade e à
presença os saberes e os potenciais que foram invisibilizados pelo
Estado brasileiro, desde sua remota Fundação. (OBIAH, inédito, p. 15)

[Dentro da sala de aula, exposição oral em português e textos escritos em português,


como sente, sentimento]:
(segunda fala)
“Eu senti... assim... eu... me sinto... é... meu sentimento é... acho que.. pera aí, como que
eu posso dizer... Eu me sinto assim... é difícil falar sobre isso, mas assim... eu acho... é
sempre complicado, entendeu, na sala de aula, tem vez que eu entendo o que professora
fala, que dizer... os professores o que explica, o que... fala, tem vez que eu entendo, tem
vez que não. É... e texto também que eles passa muito, a gente acha muito difícil pra
entender as palavras que aparece lá, e... tem vez que a gente não consegue entender
nada, entendeu? Ãn..., também a gente... Eu me... eu senti [sinto(?)] medo, de vergonha,
tímido, é eu tenho medo de falar, sei lá...e interpretar o texto, então assim a gente...é tipo
falar assim interpretando o texto, é... eu tenho medo de falar também. Eu mas, eu... acho
que é isso maios ou menos.” (áudio 09:54.43-voz 004)
A universidade precisa/deve se permitir sentir, sentir-se e sentir com seus
discentes (e todo corpo que a compõe) o que estes sentem, porque eles sentem, nós
sentimos “Eu senti... assim... eu... me sinto... é... meu sentimento é...” mesmo ou, com
sensível atenção àqueles que mais apresentem dificuldade com o falar, expressar-se, no
lugar específico destes estudantes sobre e com os quais dialogo aqui “é difícil falar sobre
isso”.
E pontua sobre suas condições epistêmicas, com base em suas vivências em sala
de aula, mais especificamente no evento aula (expositiva) “eu acho... é sempre
complicado, entendeu, na sala de aula, tem vez que eu entendo o que professora fala,
que dizer... os professores o que explica, o que... fala, tem vez que eu entendo, tem vez
que não.” e sobre as práticas de leitura e interpretação de texto, geralmente, aplicadas e
exigidas de maneiras e sob perspectivas teóricas e metodológicas tradicionais, que não
reconhecem a diversidade e pluralidades de epistemes que compõem o espaço acadêmico
“É... e texto também que eles passa muito, a gente acha muito difícil pra entender as
palavras que aparece lá, e... tem vez que a gente não consegue entender nada,
entendeu?”[destaques meus]. E retoma subjetiva e objetivamente à questão do seu sentir,
seu sentimento fazendo relação com suas condições linguístico-epistemológicas,
vivenciadas por ele, em seu curso de graduação, a exemplo das práticas/atividades que
envolvem leitura, interpretação e exposição oral de/sobre os textos acadêmicos
(seminários, apresentações de trabalhos etc.):

Ãn..., também a gente... Eu me... eu senti [sinto(?)] medo, de vergonha,


tímido, é eu tenho medo de falar, sei lá...e interpretar o texto, então
assim a gente...é tipo falar assim interpretando o texto, é... eu tenho
medo de falar também. Eu mas, eu... acho que é isso maios ou menos.
(Ricardo Ijawala Karajá, 2019) [destaques meus]

(terceira fala)
"Bom... eu... queria acrescentar é que... é... comparando né a convivência na aldeia e da
cidade. Nossa(!) a vida de aldeia é de muito diferente daqui. Por isso que a gente, tem
vezes que a gente se sente assim... não... não muito bem, é... aqui eu me sinto assim, não
tão... não... tão assim... como eu me sinto na aldeia. é diferente, meu sentimento é...
Porque eu quero aprender, assim... a cultura de [língua] português né, língua português
também, por isso que eu escolhi esse curso, é... Letras-português e... puxa como é que eu
queria falar mesmo (risos)"
Nessa terceira fala, Ijawala traz/compartilha com todos os presentes na roda de
conversas, o motivo pelo qual optou pelo curso de Letras: Português: “Porque eu quero
aprender, assim... a cultura de [língua] português né, língua português também, por
isso que eu escolhi esse curso, é... Letras: Português e... puxa como é que eu queria falar
mesmo (risos)". Apesar de lhe tanto pesar os sentimentos por se sentir deslocado,
diferente de como se sente em sua aldeia, com seu povo, como ele mesmo nos diz, fazendo
uso da comparação:

Bom... eu... queria acrescentar é que... é... comparando né a


convivência na aldeia e da cidade. Nossa(!) a vida de aldeia é de
muito diferente daqui. Por isso que a gente, tem vezes que a gente se
sente assim... não... não muito bem, é... aqui eu me sinto assim, não
tão... não... tão assim... como eu me sinto na aldeia. é diferente, meu
sentimento é... (Ricardo I. Karajá, 2019, destaques meus)

Porque os olhos brancos não querem nos conhecer, eles não se


preocupam em aprender nossa língua, a língua que nos reflete, a
nossa cultura, o nosso espírito. As escolas que frequentamos, ou não
frequentamos, não nos ensinaram a escrever, nem nos deram a certeza
de que estávamos corretas em usar nossa linguagem marcada pela
classe e pela etnia. (ANZALDÚA, 1980, p. 229, destaques meus).

[Amarildo fala]"É difícil é... participar de... entrevista né... falar comigo... as palavras
foge."
[Larissa fala] "É. Ainda mais em outra língua né. É porque... você pensa, a gente ainda
tem a língua portuguesa como materna, e nós temos dificuldades de expressar nossos
sentimentos, imagina uma pessoa que não tem a língua [portuguesa] como materna ter
que expressar seus sentimento que já não é fácil na sua língua e ainda ter que falar em
outra língua. É bem..."
[Ricardo Iwajala fala] "E também eu, eu acho assim... eu não gosto falar muito por causa
de que eu não (falo) muito bem. Eu gosto de ficar sozinho só por causa disso (risos)
Muitas das vezes eu gosto de ficar sozinho só por causa disso, entendeu? Porque, é... por
causa de... é isso, por causa de minha dificuldade."

Pontuo aqui que, mais uma vez, o sujeito enunciador marca em sua(s) fala(s)
(enunciados) os desdobramentos subjetivos que afetam objetivamente sua(s) vivências(s)
na academia, a barreira linguística se desdobra em “outras” barreiras, coloco outras entre
aspas, porque como já citamos, língua é cultura, episteme, relação social, sentimento,
identidade etc. É por meio da colonialidade da linguagem que o colonizador, ao tentar
eliminar as línguas originárias dos povos indígenas (colonizados) criou o poder e
domínio, quando na subjugação desses povos/identidades, ao ponto que, ao criar
quaisquer barreiras na língua, cria efetivamente barreiras em todos os campos de
percepção, relações e existência desses sujeitos, que se desdobram por meio da
linguagem.
Ao colonizar a linguagem, por meio da dominação das línguas e valores que
circulam no ocidente, principalmente sobre essas, colonizou-se sociedades, culturas,
identidades, pensamento, sentimentos, valores, relações de afetividade e sociabilidade
etc.:

E também eu, eu acho assim... eu não gosto falar muito por causa de
que eu não (falo) muito bem. Eu gosto de ficar sozinho só por causa
disso (risos). Muitas das vezes eu gosto de ficar sozinho só por causa
disso, entendeu? Porque, é... por causa de... é isso, por causa de
minha dificuldade. (IJAWALA, 2019) [destaques meus]

As linguagens e as línguas são modos de construção das ausências e


das inexistências, manifestações ideológicas da razão metonímica, em
todos os seus aspectos. Do mesmo modo, uma educação linguística
ética e politicamente comprometida com a transformação social,
com vistas a promover justiça cognitiva, epistêmica e social, pode
contribuir com a construção da co-presença e da re-existência.
(OBIAH, inédito, p. 15) [destaques meus]

[Larissa fala]"Você não tem muitos amigos, que falam português? Não costuma fazer
amizade, como a gente faz, assim... como muita gente?"
[Ijawala] " Ahãn... Eu... só com ele eu acho... (risos) só com meu primo (Amarildo
Tehele) Eu... Eu... vivo muito com ele, assim sempre, a gente tá andando. Mas é isso, eu
acho que... é muita... tem... é... puxa cara... Hãn..." (áudio 03:09.84 - voz 006)

Amarildo, indígena do povo Iny/ Macro-Jê, língua materna Iny Rybè, do estado
do Tocantins, licenciatura Geografia, ingresso no primeiro semestre de 2019. Contato
com a língua portuguesa (falada) aos vinte anos de idade.

[Estar na universidade, relação com LP na universidade, aula e textos escritos em LP]:


(primeira fala)

“Então, ãn... eu terminei meu estudo ensino médio, lá na aldeia né. E... no ano passado,
no ano passado não, acho que teve 2016/15 por aí. E aí a gente tem... a gente tem sempre
dificuldade pra falar né, falar português, e... pra... escrever também, e aí eu tenho um
irmão, ele... ele é de faculdade né... terminou na faculdade e... ele me ensinava sempre,
pra escrever e falar também, e aí eu aprendi um pouco né, pra falar um pouco, e aí com...
E meu sonho pra entrar na dentro do... faculdade né, eu sempre falar... um dia eu vou
entrar na faculdade. E... aí quando na dentro da faculdade, e aí... e... eu achei... eu achei
bacana né, achei bacana, como... e... eu me senti muito feliz quando, quando eu entrei
né, mas e... quando... dentro da sala de aula, a gente sempre carrega de... da... dificuldade,
e... o que... o português ei, não é minha língua né, a minha língua é outra é diferente, e...
e tem vez que... eu tenho, eu tenho dificuldade muito com... as professores e... explicando
as... as aula, e... e... como é que se fala...? e... eu sempre...eu sempre fala que..., e... pera
aí, acho que... eu sempre fala que... é português não é... não é minha língua né, e... mas e...
e... e aí eu to indo né pra, como eu to carregando... a dificuldade, mas e...eu sempre, eu
sempre fala... eu sempre fala pra... um dia eu vou conseguir né, mas assim mesmo eu to
indo na aula, mas com... com a gente entrá na... primeiramente, a gente sempre carrega
di dificuldade, a disciplina da aula e falar também, quem não... quem não sabe falar
português também sempre... dificuldade pra... interpretar, lê texto né? Mas é assim
mesmo... e... que a gente...”
[Larissa fala] "Vai se esforçando né...?"
[Amarildo Tehele] Sim... esforçando. E também a gente não deixa pra... o que que o
professor e... os professores né... dá... dão texto e... se deixar pra lá... fica... fica... (...) com
o contexto né, e a gente como não sabe, a gente tem que ler pra... pra, pra... aprender né,
pra aprender e... e... é assim.” (áudio 03:46.09 - voz 005)
(segunda fala)
"E... então hã... E quando eu entrei na dentro da faculdade, a gente sempre leva... leva...
dificuldade né? E... e quando entrei na sala de aula, eu tenho medo de... de... as
professores tava me perguntando sobre... como tipo... experiência té que minha... eu
tenho experiência e... mas e... meu pensamento era ele não perguntava né...
[Larissa fala] "assim, você tinha vergonha da professora..."
[Amarildo Tehele] "Sim, me perguntava né. Eu tinha vergonha falar... sobre falar sobre...
o meu experiência... como eu vivia na minha comunidade né. Mas e... e quando, de vez
em quando, ela me perguntou sobre... como entrei dentro da faculdade e aí falei sobre...
eu entrei, foi sorte não é muita experiência não. E... e também... a a gente sempre, sempre
carrega, pra falar sobre português e pra... a gente tem dificuldade pra falar português,
a maioria indígena né? que não sabe, e quem sabe... quem sabe... não tem (parece'?')
que não tem dificuldade pra... pra explicar alguma coisa né o que que os professores
ensina, o que que os professores... dá o texto né?E... e também, e... Eu mesmo até agora
tenho dificuldade sobre... falar português e também, e... argumentar o texto né? e
apresentação também.
[Larissa] "Apresentação oral lá na frente..."
[Amarildo Tehele] "Isso!"
[Larissa] "É muito difícil, né?"
[Amarildo Tehele] "É... é difícil mesmo."
[Larissa] "Mas cê fala assim... quando a professora, pergunta, perguntou pra você sobre
sua experiência na aldeia, como que você chegou aqui, ela perguntou isso pra você,
assim... no meio da aula ou em particular? com você sozinho ou na aula?
[Amarildo Tehele] "E... e, na aula né. E... a minha experiência, como... eu já aprendi um
pouco com... com... com a fala português não é da dentro da minha aldeia, eu aprendi...
eu aprendi falar escuta, falar português na dentro da sociedade dos outros né? Porque...
de lá que a gente vai aprender... alguma coisinha né? e de lá eu aprendi... e... falar
português e também escrever né?
[Larissa] "Dentro da... fora da aldeia? na sua aldeia ninguém fala em português?
[Tehele] "Hum... não. falar não, mas escrever a gente escreve né."

É preciso considerar o fato de que mais do que um instrumento de acesso a um


conhecimento formal pautado no grafo-centrismo, como já citamos acima, a língua
portuguesa para Ijawala se torna um instrumento de exclusão social dentro do espaço
universitário, no evento aula, que faz parte do seu processo de formação acadêmica, social
e política, quando diz "Ãn..., também a gente... Eu me... eu senti medo, de vergonha,
tímido, é eu tenho medo de falar(...)" [destaques meus].
O português é um instrumento importante e até decisivo no processo de
aprendizagem e de socialização dos estudantes indígenas na universidade, mas suas
línguas maternas são em si mesmas as suas próprias identidades. E estas como diz
Anzaldúa (1980), citado anteriormente, não querem ser conhecidas por uma estrutura
branca, tampouco suas culturas interessam à branquitude. A fala de Tehele é pontual
quando diz:
[...]E... aí quando na dentro da faculdade, e aí... e... eu achei... eu achei
bacana né, achei bacana, como... e... eu me senti muito feliz quando,
quando eu entrei né, mas e... quando... dentro da sala de aula, a gente
sempre carrega de... da... dificuldade, e... o que... o português ei, não
é minha língua né, a minha língua é outra é diferente [...]

Um primeiro ponto a se considerar é que o acesso/ingresso à universidade é


interpretado pelo estudante como uma felicidade, e isso fala sobre o alcance, alcance a
algo que se pretendia – em certo momento – e por fim é alcançado, atingido, conquistado.
Essa narrativa nos fala da importância das conquistas, através das lutas promovidas pelos
movimentos sociais, nos últimos anos/décadas, pois assim como Tehele, quantos outros
jovens ou mesmo crianças indígenas devem sonhar em entrar na universidade – apesar do
período de caos, de criticidade que entrar/estar numa universidade possa representar?
Poderiam ser contados(as)?
Essa felicidade, porém, pelo menos em parte, pode ser, rapidamente, ou muito
cedo, frustrada “dentro da sala de aula”. É no evento-acontecimento aula que parece
iniciar-se a vida acadêmica em sua práxis, o cotidiano, a realidade, as cobranças, a
responsabilidade. Isso pode ser sentido por muitos, senão por todos aqueles que ingressam
na universidade, numa faculdade, curso/graduação – independente – de suas realidades
sociais, raciais, gêneros etc., mas são muito mais agravadas quando esses fatores estão
envolvidos. Todavia, esses estudantes indígenas, mais pontualmente os que não têm o
português como língua materna, mas sim suas línguas originárias, possuem condições
diferenciadas daqueles que apresentam realidade linguística outra, falantes que receberam
o português como língua materna e isso torna suas experiências na academia mais
complicadas, com outros complicadores.
As condições linguísticas diferenciadas desses estudantes indígenas não podem
ser ignoradas em seus processos de aprendizagem, em suas experiências
acadêmicas/universitárias. A estrutura universitária não pode fazer-se cega ante às
realidades, das quais tratamos aqui, bem como outras diversas que constituem a
universidade. Seria desleal uma avaliação sobre o mesmo assunto, por exemplo, aplicada
a uma estudante que tem o português como sua língua materna, foi alfabetizada em
português em seu período/idade infância, estudou todo o ensino básico e médio em língua
portuguesa – como é o caso da estudante Larissa – aplicar essa mesma avaliação a um
estudante indígena, como língua materna originária, que estudou toda sua vida escolar na
aldeia, junto a seu povo, e que começa a ter contato com o português aos 16 anos de idade,
como é o caso de Tehele, e usar os mesmos métodos, o mesmo crivo, quesitos para dois
estudantes com realidades linguísticas, epistemológicas e culturais tão distintas e, por
vezes, distantes.
Isso só pode resultar em desvantagem. Há desonestidade nisso e ademais dessa
situação à qual essas identidades são expostas, pesa-lhes o carregar da responsabilidade
sobre essa questão que se sabe ser estrutural. Tehele diz “[...] a gente sempre carrega
de... da... dificuldade”, A carga, a responsabilidade sobre as dificuldades em sala de aula,
por terem condições linguísticas diferenciadas são carregadas pelos próprios estudantes
indígenas e, assim, a estrutura acadêmica se mantém em silêncio, como se estivesse livre
de qualquer crítica/questionamento, pelo fato de ser considerada “inclusiva”, através de
seu programa de inclusão. Não está.
A língua, que é um ato social e político, é também uma barreira, porque língua
é poder, e os coloca no limiar das relações sociais, entre a inclusão e a exclusão desse
mundo social, político e acadêmico – a universidade – onde os sujeitos, em sua maioria,
interagem em língua portuguesa nas suas diversas variações. Dentro da comunidade
acadêmica, a língua para os indígenas aparece como tema central, elemento distintivo de
suas identidades indígenas e pode ser uma grande aliada, como também uma grande
inimiga, podendo ter papel importante na decisão de permanência e/ou desistência que
afeta parte significativa destes estudantes indígenas na universidade. De acordo com
Tarallo (1985, p. 14), “a língua pode ser um fator extremamente importante na
identificação de grupos, em sua configuração, como também uma possível maneira de
demarcar diferenças sociais no seio de uma comunidade” (TARALLO, 1985, p. 14).
Nas narrativas que vão tomando forma em/a cada fala, vai ficando marcada a
importância da dialogia para fins desta pesquisa. A narrativa como método de pesquisa
traz à baila a língua falada, a fala desses sujeitos que trazem consigo suas próprias
subjetividades, postas em cena, na assumência desse lugar de quem fala, de quem existe
em e a partir de sua própria fala: “o português ei, não é minha língua né” - “eu aprendi...
eu aprendi falar escuta, falar português na dentro da sociedade dos outros né?” (Amarildo,
2019).
Fica evidente a distinção identitária que se percebe, sente-se, através da língua. A
língua portuguesa, para Tehele, é uma marca da alteridade socio-identitária que ele
percebe na relação com o outro na universidade. Ele que seria o outro em qualquer relação
social, como no diálogo, passa a ser “o outro do outro” pela questão linguística, primeiro
ser indígena e segundo ter língua própria, língua materna originária, que parece não caber
na academia, que é parte dessa sociedade “dos outros”. “[...] Porque desequilibramos e
muitas vezes rompemos as confortáveis imagens estereotipadas que os brancos têm de
nós[...]” (ANZALDÚA, 1980, p. 230).
Assim, "a língua falada [...] é o veículo linguístico de comunicação usado em
situações naturais de interação social, do tipo comunicação face a face." (TARALLO,
1985, p 19), e é nessa situação natural de interação que o sujeito se coloca, mesmo que, a
priori, timidamente, como quando Ijawala diz: “Eu senti... assim... eu... me sinto... é...
meu sentimento é... acho que... pera aí, como que eu posso dizer... Eu me sinto assim... é
difícil falar sobre isso, mas assim... eu acho... é sempre complicado, entendeu, na sala de
aula, tem vez que eu entendo o que professora fala.”
A princípio, a língua se põe como uma barreira para o sujeito indígena se
expressar, dizer de si mesmo, e é imprescindível que se tenha sensibilidade e paciência
para que aos poucos, através da narrativa, estes encontrem maior conforto em falar sobre
si. Então, como orienta Tarallo (1985, p. 19), a narrativa vai se apresentando mais
produtiva para o trabalho da investigação, "Em suma, a língua falada é o vernáculo; a
enunciação e expressão de fatos, proposições, ideias (o que) sem a preocupação de como
dizê-lo". "A cada situação de fala em que nos inserimos e da qual participamos, notamos
que a língua falada é, a um só tempo, heterogênea e diversificada" (TARALLO, 1985, p.
6).

3.3 MINIDOCUMENTÁRIO (MULTI OU PLURILINGUE)

A segunda parte, que compõe nossa discussão, é um minidocumentário que


produzi em coprodução com os estudantes indígenas Ricardo Ijawala Karajá e Amós
Tsipré, como pré-requisito para aprovação nas disciplinas de “Diversidade Linguística e
Direitos Humanos” e “Estudos sobre Letramento”, ministradas pela professora Tânia
Ferreira Rezende, no primeiro semestre de 2019, conforme apresentado na introdução.
Foram entrevistados, por Ricardo Ijawala, quatro estudantes indígenas
graduandos da UFG, dois destes na língua Iny-Rybè, suas línguas nativas: Amarildo
Tehele Karajá e Diberú Karajá, ambos licenciandos em Geografia; e dois em língua
portuguesa, por serem Xerentes e terem português como sua língua veicular, já que o
entrevistador e entrevistados não têm suas línguas maternas em comum: Marcelino
Smirihu Xerente, bacharelando em Direito, e Genivaldo Waene Xerente, bacharelando
em Farmácia.
Nesse minidocumentário plurilíngue (Iny Rybè, A’uwẽ UpTubi, Akwẽ e
português, considerando-se que o português, nesse contexto, é diverso), com o produto
bilíngue, tem-se na relação de proximidade linguística, que é identitária e cultural, um
ponto que deve ser observado. Poder falar de si mesmo, em sua língua materna
proporciona experiências diferentes da dialogicidade buscada conforme perspectivas
teórico-metodológicas que orientam esse trabalho. Apesar de esse trabalho ser
desenvolvido e escrito em língua portuguesa, houve certo esforço para serem postas em
presença a língua daqueles com quem se propôs o diálogo, a investigação, a interação.
Ricardo Ijawala entrevistou em Iny-Rybè e traduziu para o português (tradução nas
legendas dos vídeos/entrevistas).
O minidocumentário é muito interessante para mim e esta pesquisa, pois nele
ocorrem situações fecundas para pensarmos questões linguísticas, no que se refere à
interação em si. A identificação que o sujeite falante cria desde os processos de aquisição
de linguagem à idade adulta com sua língua materna tem lugar decisivo no campo da
expressão de si mesmo. Falar de si mesmo em sua própria língua certamente coloca esses
estudantes numa situação de conforto que por vezes não se alcança, quando são obrigados
a falar em uma possível segunda língua que a realidade sócio-política lhes impõe. Falar
sobre dificuldades, frustrações, limitações, seja de que ordem for(em), (dentro de uma
estrutura branca colonial) não é tarefa fácil para aqueles outros (diferentes) que a própria
estrutura historicamente criou.
Por isso, entendemos, ao elaborar e projetar o minidocumentário, quão seria
oportuno nesse material que une áudio e vídeo (som e imagem) trazer a língua dos Iny,
Iny Ribè, em presença. São três os falantes de Iny Rybè: Ricardo Ijawala, Diberú Karajá
e Amarildo Tehele Karajá que se expressam no material. Ijawala como entrevistador,
Diberú e Tehele entrevistados. Além de serem Iny e pertencerem/habitarem a mesma
aldeia – Fontoura – Ilha do Bananal-TO, são estudantes de graduação na UFG e
compartilham de laços de consanguinidade, são primos os três. O diálogo que se
estabelece entre eles em sua língua materna, por meio da entrevista, aponta por sua
especificidade linguística para uma interação linguística mais igual, ou, pelo menos,
menos hostil.
Interessante, também o fato de que a língua portuguesa aparece como uma ponte
entre esses indígenas, quando na interação entre o entrevistador, que é falante nativo de
Iny Rybè, e os estudantes Marcelino (Direito-UFG) e Waene (Farmácia-UFG), ambos
Akwẽ (Xerente). Nessa relação, a língua portuguesa aparece como instrumento útil e é
utilizada por eles, tendo possivelmente um efeito outro na dialogicidade que se estabelece,
pois ambos – entrevistador e entrevistados, são indígenas. Existe uma identificação entre
eles, são indígenas. Não é um branco ou outro não-indígena lhes questionando em língua
portuguesa, mas um parente, um indígena.

ENTREVISTA 1 – entrevistado Amarildo Tehele Karajá (por Ricardo Ijawala Karajá, em


Iny-rybè) [vídeo: 0:07]

Ricardo: Como você se chama?


Amarildo: Meu nome é Amarildo Tehele.
Ricardo: Você tem quantos anos de idade?
Tehele: Eu tenho 25 anos de idade.
Ricardo: Qual é o nome da sua etnia?
Tehele: O nome da minha etnia é Karajá.
Ricardo: Que língua você fala?
Tehele: A língua que eu falo é a língua Karajá.
Ricardo: Que curso você faz?
Tehele: Eu faço curso de Geografia.
Ricardo: Em qual ano você entrou na universidade?
Tehele: Eu entrei no meu curso esse ano mesmo [2019].
Ricardo: Quando você começou contato com a língua portuguesa? e quantos anos você
tinha?
Tehele: No primeiro ano em que eu entrei na escola, eu estudava somente a língua karaká
(língua escrita do karajá). Porque lá, os professores na sala de aula ensinavam só língua
karajá e por isso, naquela época, as crianças aprendiam apenas escrever em língua karajá.
E por isso não tive contato com língua portuguesa na minha infância. Mas quando
comecei a estudar na quarta série (no ensino fundamental) e foi aí que tive o meu primeiro
contato com a língua portuguesa. Porque os professores davam aulas de duas disciplinas:
português e língua Karajá. Mas no primeiro [contato] que aprendi foi apenas escrever na
língua portuguesa.
Ricardo: Mas quantos anos você tinha?
Tehele: Naquela época eu tinha 14 anos.
Ricardo: Como tem sido a sua experiência ou como tem sido a sua convivência?
Tehele: Quando eu cheguei aqui para estudar na faculdade achei muita coisa diferente
principalmente as diferenças dos ensinos da escola e da comunidade Karajá. Aqui na UFG
as aulas não são fáceis de entender, para mim é um desafio. Acho muito bom conhecer
novos costumes e também conviver com novas pessoas, como parentes de outra etnia, e
brancos também. Eu acho muito bom o que eu aprendo na universidade, para mim é uma
nova experiência.
Ricardo: Como tem sido atualmente a sua relação na faculdade, e também na língua
portuguesa, você acha que está melhor do que antes?
Tehele: Aqui na faculdade atualmente, graças a Deus estou me sentindo melhor do que
antes. Porque no começo foi muito difícil, mas agora estou me adaptando com o tempo.
Mas sempre não vai ser tão fácil, ainda mais por causa da língua. Mas vou enfrentar, se
Deus quiser, espero que daqui para frente eu aprenderei muita coisa. E também estou cada
vez mais aprendendo a língua portuguesa. Estou melhorando a minha fala, entendendo
mais. Fico feliz por isso!
Ricardo: Ok. Obrigado.
Tehele: Por nada.

ENTREVISTA 2 – Entrevistada Diberú Karajá (por Ricardo Ijawala Karajá, em Iny-rybè)


[vídeo 5:00]

Ricardo: Primeiro vou perguntar sobre você: como é seu nome, qual é a sua idade, o nome
da sua etnia, qual é sua língua, que curso você faz e que ano você começou a fazer seu
curso?
Diberú: Meu nome é Diberú Karajá, tenho vinte e cinco anos, minha etnia é Karajá, minha
língua é Iny-rybè (língua Karajá), meu curso é Geografia, eu entrei no ano de 2017.
Ricardo: Com quantos anos começou a ter contato com a língua portuguesa?
Diberú: Quando comecei a ter contato com a língua portuguesa, estava na escola e eu
tinha 13 anos, naquela época eu estudava na quarta série. Aprendi a ler e escrever. Mas
quando me mudei para a cidade, aprendi a falar um pouco de língua portuguesa.
Ricardo: Como tem sido a sua convivência na UFG?
Diberú: quando eu vim para cá, vi muita coisa diferente, mas com o tempo, eu consegui
me adaptar com essas diferenças. Eu sempre pensei em conhecer outro mundo e outro
costume. Agora estou aqui na cidade vivendo de outro costume, tipo na comida ou falando
português. Eu gosto de viver aqui, mas às vezes eu tenho muitas saudades da minha
aldeia.
Ricardo: Quando você começou estudar na UFG e o que você achou?
Diberú: No começo, o que achei mais difícil foi a língua portuguesa, eu tinha medo de
falar. E também quando eu lia os textos, não conseguia entender quase nada.
Ricardo: E atualmente… você melhorou?
Diberú: Atualmente me sinto tranquila, melhor do que antes. Estou entendo mais. Acho
que no começo minha maior dificuldade era por causa da língua mesmo.

ENTREVISTA 3 – Entrevistado Marcelino Smirihu Xerente (por Ricardo Ijawala Karajá


em Português) [vídeo 9:11]

Marcelino: (…) Marcelino Smirihu. É… eu tenho 26 anos. É… minha linguagem é


Ak’we. É… eu to cursando Direito aqui na universidade federal. É… eu ingressei aqui
em 2019, no caso ali, esse ano né. É… eu comecei ter contato assim com… com a
linguagem português, a partir dos seis, sete anos, mais ou menos assim que eu tive noção.
É… porque onde eu estudava é… eu tinha professor indígena, aí… é… de vez em quando,
é… é… ensinava a língua de português pra nós. É… aqui na universidade é… federal…
a experiência no começo não foi das melhores, é… mas agora eu to, é… me adaptando
né, porque no começo as coisas é muito difícil principalmente, é pra você se adaptar às
coisas, à linguagem, é toda diferente, linguagem acadêmica né. É… mas agora
atualmente, atualmente é… eu to me adaptando é… através de colega, é… correndo atrás,
é… pesquisando mais, porque a dificuldade maior que, que eu tenho aqui na universidade
federal, é… é a linguagem, é muito pra nós, porque… que nós vêm da aldeia, é… que não
têm noção assim, é… linguagem acadêmica nós tem muita dificuldade, principalmente
português é muito difícil. Eu, particularmente, pra mim tá sendo muito difícil mas… é…
eu to me superando cada dia mais e a tendência é melhorar mais.
Eu quero é aproveitar essa oportunidade também pra agradecer minha família né pelo
apoio, apoio que eles tão me dando, não financeiramente mas… é… é dando conselho,
dando conselho pra desistir do meu curso, porque é um curso que demanda muito estudo,
é… e sempre eles tão me apoiando, e… porque todo mundo sabe na aldeia que as coisa é
muito difícil aqui na cidade grande. Isso tá sendo muito importante pra mim, e… eu queria
agradecer isso de coração mesmo.
ENTREVISTA 4 – Entrevistado Genivaldo Waene Xerente (por Ricardo Ijawala em
Português) [vídeo 12:00]

Genivaldo: Meu nome Genivaldo Waene Xerente, da etnia Xerente, 23 anos de idade,
língua materna Ak’we, faço curso de Farmácia, ingressei em 2017, segundo semestre.
Comecei a ter contato com a língua portuguesa aos oito anos de idade na escola, na aldeia.
É… a minha experiência na universidade é uma das experiências mais enriquecedoras
que a pessoa pode ter… Conheci(er) novos costumes e… se adaptar com ela. Pessoas
diferentes, pensamentos em estima, profunda lição de… de humildade. É… pra mim, foi
isso e… a relação com a língua portuguesa no começo foi difícil e… atualmente me sinto
tranquilo com ela, porque… melhorei e … é isso.
Todas as falas e narrativas que são trazidas no minidocumentário repontuam e se
unem às primeiras narrativas compartilhadas na Roda de conversas trazida neste
texto/discussão. Como já citei, foi muito oportuno trazer nele a língua Iný Rybè, em
presença, falada/oralizada por três dos participantes do minidocumentário. Muitas
informações novas são trazidas, com destaque às respostas/falas de Tehele Karajá que
traz novidades sobre seus processos de educação escolar em sua aldeia relacionando-os
com os seus primeiros contatos com a LP na forma escrita, a princípio

No primeiro ano em que eu entrei na escola, eu estudava somente a


língua karaká (língua escrita do karajá). Porque lá, os professores na
sala de aula ensinavam só língua karajá e por isso, naquela época, as
crianças aprendiam apenas escrever em língua karajá. E por isso não
tive contato com língua portuguesa na minha infância. Mas quando
comecei a estudar na quarta série (no ensino fundamental) e foi aí que
tive o meu primeiro contato com a língua portuguesa. Porque os
professores davam aulas de duas disciplinas: português e língua Karajá.
Mas no primeiro [contato] que aprendi foi apenas escrever na língua
portuguesa. (Tehele Karajá, 2019)

Pois é fora da aldeia que Tehele passa a ouvir e falar em português, já aos 20 anos de
idade, como registrei anteriormente neste texto:

[Amarildo] "Eu sou Amarildo Tehele Karajá. E... sou etnia Karajá, fica
no Tocantins, eu moro na aldeia Fontoura e meu curso é Geografia
licenciatura. E... eu entrei nesse ano o... no faculdade, e 2019 né, e agora...
estamo na aqui na faculdade."
[Larissa] "A sua língua é o Iny?"
[Amarildo] "Hum... Karajá, Macro-jê. E... eu comecei com a... contato
com língua portuguesa, desde adulto e... eu acho que 20 ano."
[Larissa] "Só com 20 anos você começou a falar e ouvir português?"
[Amarildo] "Isso."
[Larissa] "Ah tá. Brigada!"

As falas da estudante Diberú Karajá nos trazem as mesmas pontuações sobre suas
experiências pessoais e interculturais com a língua portuguesa, os primeiros contatos etc.
“Quando comecei a ter contato com a língua portuguesa, estava na escola e eu tinha 13
anos, naquela época eu estudava na quarta série. Aprendi a ler e escrever. Mas quando
me mudei para a cidade, aprendi a falar um pouco de língua portuguesa” (Diberú,
2019) [destaques meus] e sobre as barreiras linguística enfrentada por ela, de forma mais
tensa, no início de seu curso, e de suas vivências na universidade, sobre as quais
discutimos, desde o início desta discussão, “No começo, o que achei mais difícil foi a
língua portuguesa, eu tinha medo de falar. E também quando eu lia os textos, não
conseguia entender quase nada” (Diberú, 2019) [destaques meus]. Fala também de suas
motivações para entrar na universidade, aceitando o desafio de deslocamento geográfico
e linguístico-cultural:

Quando eu vim para cá, vi muita coisa diferente, mas com o tempo, eu
consegui me adaptar com essas diferenças. Eu sempre pensei em
conhecer outro mundo e outro costume. Agora estou aqui na cidade
vivendo de outro costume, tipo na comida ou falando português. Eu gosto
de viver aqui, mas às vezes eu tenho muitas saudades da minha aldeia.
(Diberú Karajá, 2019)

É uma participação/fala feminina que deve ser ampliada nos possíveis próximos
trabalhos, discussões, textos, para se reparar uma certa disparidade de gênero, sobre a
qual me sinto falha, ocorrida pelas circunstâncias e possibilidades que se apresentaram
no decorrer destes trabalhos e toda a trajetória não só minha, mas nossas, de todes que
enunciamos aqui.

4. DEZ ANOS DO PROGRAMA UFGINCLUI

Conforme já discutido, o Programa UFGInclui, criado pela Resolução CONSUNI


29, de 1 de agosto de 2008
(https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/90/o/Resolucao_CONSUNI_2008_0029.pdf), é
um programa de inclusão de estudantes negros, estudantes oriundos de escola pública,
indígenas e quilombolas para acesso à universidade. A Universidade Federal de Goiás,
ao criar esse Programa se antecipou a uma política nacional de inclusão social, na
educação, que viria a ser criada em 29 de agosto de 2012. Por decreto do Congresso
Nacional, foi sancionada pela então Presidenta da República a Lei 12.711, que ficou mais
conhecida popularmente como a “Lei de cotas”
(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm).
A política de reparação histórica da UFG, por meio do Programa UFGInclui, se
tornou a principal porta de entrada/acesso de estudantes negros, indígenas, quilombolas,
e estudantes oriundos do ensino público, na UFG. Após a criação da Lei 12.711/2012,
com algumas adaptações, o UFGInclui passou a se concentrar mais na inclusão de dois
dos quatro grupos iniciais: os estudantes indígenas e quilombolas, uma vez que, a partir
de 2012, esses outros dois grupos: estudantes negros (pretos e pardos), oriundos do ensino
público e de família de baixa renda, passaram a ser contemplados pela Lei 12.711/2012,
que instituiu a política nacional de inclusão social na educação superior pública. Em 2018,
somaram-se ao grupo alvo do programa UFGInclui, indígenas e quilombolas, os
estudantes surdos, com a reserva de 15 vagas no curso de Letras: Libras, na Faculdade de
Letras da UFG.

[...] Com essas mudanças, desde 2012, o UFGInclui foi direcionado de


forma mais específica ao público indígena e quilombola. Atualmente, o
Programa mantém a criação de vaga adicional para esses grupos,
quando há demanda, e reserva 15 vagas no curso de Letras: Libras para
candidatos surdos. (https://jornal.ufg.br/n/110016-avancos-e-desafios-
marcam-os-dez-anos-do-ufginclui)

Em 2018, a UFG comemorou os 10 anos da criação do UFGInclui, o que foi


registrado em uma reportagem postada em seu site, por Mariza Fernandes, no dia 28 de
setembro de 2018 e atualizada em 2 de outubro de 2018, sob o título “Avanços e desafios
marcam os dez anos do UFGInclui” e subtítulo “Programa completa uma década como
uma referência na inclusão de indígenas, quilombolas e surdos no ensino superior”. O
texto/reportagem se inicia com a fala de uma estudante Iny Karajá do curso de Pedagogia
da Universidade Federal de Goiás: “Para conseguir mudar a realidade da universidade,
que conserva uma estrutura racista, é preciso um esforço coletivo” (Vanessa Hãtxu
Karajá, estudante de Pedagogia/UFG- https://jornal.ufg.br/n/110016-avancos-e-desafios-
marcam-os-dez-anos-do-ufginclui).
A fala da estudante de Pedagogia Vanessa Hãtxu Karajá, durante o seminário Nós
por Nós, realizado em setembro de 2018, na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Goiás, mostra a importância do Programa UFGInclui, em seus 10 anos, em
2018. Essa fala já marca uma tensão estabelecida entre a comemoração da criação do
Programa e os seus 10 anos de execução/existência, quando afirma no modo presente que
a universidade conserva uma estrutura racista. [destaque meu]. Logo, para além dos
desafios que marcaram a comemoração dos 10 anos do programa UFGIncui, ela faz um
apontamento para uma postura da universidade de conservação de uma estrutura racista,
depreende-se, existente, antes mesmo que o Programa fosse criado e que insistia, segundo
a estudante, ainda em 2018, quando já completava dez anos em que a UFG vinha
recebendo estes estudantes sujeites da política de inclusão social na universidade.
No Quadro (1), a seguir, retirado da reportagem, constata-se, em quantitativo, o
aumento do ingresso de estudantes indígenas e quilombolas, de 2009 a 2017, em todas as
regionais da Universidade Federal de Goiás.

Entrada de indígenas e quilombolas aumentou

Fonte: https://jornal.ufg.br/n/110016-avancos-e-desafios-marcam-os-dez-anos-do-
ufginclui

Sobre os dados apresentados no quadro, é perceptível que houve um aumento


significativo e muito importante do ingresso de estudantes indígenas e quilombolas aos
diversos cursos de graduação da UFG. Importa, para nossas reflexões, lembrar-nos que o
ingresso na universidade é passo importante dentro do processo de inclusão. Pode-se
considerar o primeiro, mais concreto, no incluir, antecedendo a este as lutas e a conquista
pela política pública esses dados mostram os resultados de políticas públicas que são, por
sua vez, conquistas resultantes das lutas dos movimentos organizados, mas que, sendo só
parte do processo, não deve ser considerado como o todo, a inclusão em si mesma, em
sua plenitude.
Incluir deve transbordar à ação do abrir a porta. Inclusão é criar condições
necessárias para promover o alcance dos objetivos traçados. Ser incluído no ensino
superior público passa pelo ingressar, desenvolver-se plenamente nas atividades da
universidade em seus cursos em seu tripé fundamental que é o ensino, a pesquisa e a
extensão, concluir seus cursos com pleno aproveitamento e ser inseridos no mercado de
trabalho, no campo de trabalho da pesquisa, enfim, ter bom êxito em seus processos de
ensino-aprendizagem e pós formação.
Nessa perspectiva, a Resolução CONSUNI 29/2008 da UFG criou não só a reserva
de vagas para esses estudantes, mas também todo um programa, um plano, pensado e
construído para promover a inclusão dessas identidades, entendendo o desafio que se
colocaria à frente, mesmo após a entrada/acesso desses estudantes na universidade, com
destaque à permanência desses estudantes, seu pleno desenvolvimento acadêmico e
conclusão de seus respectivos cursos.
Retornamos à resolução, de acordo com os seus objetivos.

O desafio da inclusão social é um dos temas centrais da reforma


universitária e uma questão importante que a envolve é a necessidade
de uma clara política de apoio ao estudante com vistas não somente ao
seu acesso ao ensino superior, mas à sua permanência plena nos cursos
de graduação das universidades públicas brasileiras até a conclusão dos
mesmos. (UFG, 2008)

Na reportagem de comemoração dos 10 anos do programa UFGInclui observa-se


que o número de concluintes de curso dos dois grupos destacados em nossa discussão é
muito pequeno em relação ao número de ingressantes, como percebemos nos trechos
abaixo:

Atualmente, existem 391 ingressantes pelo UFGInclui com matrícula


ativa. Desse total, 250 são quilombolas e 141 são indígenas. O grupo
está distribuído entre as Regionais Goiânia (322), Jataí (44), Catalão
(13), Goiás (10) e Aparecida de Goiânia (2). Apesar do crescimento na
entrada de estudantes, o número de beneficiários do Programa que
conseguiram concluir a graduação é baixo. De 2009 até hoje, apenas 17
cotistas do UFGInclui formaram-se. Foram 5 indígenas e 12
quilombolas. (Avanços e desafios marcam os dez anos do UFGInclui -
Jornal UFG)

O trecho trazido mostra a materialidade de alguns desdobramentos/pontos


referentes a essa discussão. Um primeiro ponto já mencionado, de acordo com a própria
reportagem é o aumento significativo do ingresso de estudantes indígenas e quilombolas
na UFG (em seus diversos cursos de graduação). Neste ponto, é preciso já se ter atenção
à discrepância no número de ingressantes entre indígenas e quilombolas, com matrículas
ativas, no período dessa reportagem, 28 de setembro de 2018: entre 391 ingressantes com
matrículas ativas, eram 250 quilombolas e apenas 141 indígenas. Ou seja, o número de
estudantes indígenas era um pouco mais que metade do número de estudantes
quilombolas, tendo a entrada pelo mesmo programa e sendo a esses dois grupos, ofertadas
o mesmo número de vagas dentro do programa.
Esses dados/números chamam a atenção e apontam para uma marcada
desvantagem dos indígenas no acesso ao programa. O número de quilombolas
ingressantes com matrículas ativas em 28 de setembro de 2018 era quase o dobro do
número de ingressantes indígenas no mesmo período, o que se desdobra e se repete,
quando é citado sobre o baixo número de participantes do programa que haviam concluído
seus respectivos cursos até aquela data, sendo, então, apenas 12 estudantes quilombolas
e somente 5 estudantes indígenas, isto é, menos que a metade. Confirma-se, então, que,
desde o ingresso até à conclusão, os estudantes indígenas aparecem em menor número, o
que poderia levar ao questionamento: haveria algum fator que justificasse essa
desvantagem nítida em números dos indígenas?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A colonização do “novo” continente, “descoberto” pelos portugueses e espanhóis,


no século XVI, foi marcada por um processo de violência nos diversos aspectos e níveis
possíveis. Violência contra o corpo, a alma, a língua, o sujeito, a cultura, a existência,
desde o corpo físico, cultural ao espírito. Sobre o sofrimento e a decepção que se
corporifica num processo violento de colonização e de ataque à cultura que é a alma de
um povo, fala-nos poeticamente, em sua expressão literária o autor Manoel Rui, em “Eu
e o outro – o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto”.
Quando chegaste os mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu
lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era
texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas sobre o
crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto
porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido
visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os
mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar
os canhões. A partir daí comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro,
por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse
projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar
que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que
também sistematicamente no texto que fazias escrito inventavas
destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade
nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence.
(MANOEL RUI, O invasor ou em poucas três linhas uma maneira de
pensar o texto. Comunicação apresentada no Encontro Perfil da
Literatura Negra. São Paulo, Brasil, 1985)

O texto do autor angolano, sendo a Angola um país que também sofrera um


processo violento de colonização por parte de Portugal, ajuda-nos a pensar e refletir a
partir do fazer literário, pelo menos parte do sofrimento que foi e ainda é vivido pelos
povos colonizados, vítimas de ações desumanas e desumanizadoras de um projeto de
colonização que não levava em conta a vida, o corpo, a liberdade, a língua, o sujeito, a
cultura – mas que se impunha destruindo toda a manifestação e formas de existência e de
saberes que existiam/constituíam e circulavam entre esses povos, constituindo, assim,
violência geo-onto-epistemológica: “Quando chegaste mais velhos contavam estórias.” –
“É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam
quando chegaste! Mas não!” e violência física corporificada nos genocídios de diversos
povos originários “[...]Preferiste disparar os canhões”.
A língua, que é elemento constitutivo de um povo, contém em si mesma o próprio
povo, porque este existe nela e se transmite, transmitindo sua existência através dela, para
suas novas gerações. Mais do que um conjunto de formas e de organizações gramaticais,
ela guarda em si mesma a memória ancestral desses povos, suas narrativas, que
conservam suas identidades, seus valores, saberes, suas culturas etc. Por isso, como diz
Manoel Rui, a respeito da colonização de Angola, a violência colonial se deu não só
contra os corpos físicos – biológicos que habitavam as terras colonizadas, mas também,
contra a alma, contra suas memórias, contra seus corpos culturais constituídos – em parte
significativa – por meio de suas línguas, textos e narrativas.
Na terra, que posteriormente seria chamada Brasil, habitavam já antes da chegada
dos colonizadores, os povos indígenas – povos originários que viviam de formas
diferentes, com suas próprias organizações, com diferentes línguas e culturas, uma
diversidade cultural – que longe das civilizações ditas modernas e desenvolvidas –
existiam e embelezavam a relação homem e meio ambiente. As comunidades, a caça, as
danças, os costumes, os conhecimentos, os saberes transmitidos pelos mais velhos, a
oralidade e tudo que constituía a ontologia, a forma de ser e de estar no mundo, em relação
com a natureza, consigo e com o semelhante. Mas, a partir da colonização, esses povos
originários sofreram grandes impactos em sua existência como um todo.
Entre genocídios e etnocídios, o geo-ontoepistemicídio sofrido se daria,
principalmente através da imposição da língua portuguesa, acompanhada de políticas
posteriores que proibiriam os colonizados de falarem suas línguas nativas. Entre povos
indígenas e os povos negros que foram sequestrados, escravizados e trazidos do
continente africano, milhares de línguas, destes, iam se enfraquecendo, submetidas às
políticas de morte linguística sofridas durante pelo menos cinco séculos, pois este foi o
meio mais eficaz de matar/eliminar/apagar tudo aquilo que constituía as identidades dos
povos subjugados pela colonização.
Resulta desses elementos históricos o fato de que mesmo estando num curso de
Letras, numa faculdade que tem um curso de Licenciatura Intercultural que forma
professores indígenas para trabalhar na educação de crianças e jovens indígenas de suas
aldeias, a autora, antes dessas disciplinas e desse contato/encontro que possibilitou a
origem dessa pesquisa, nunca antes havia ouvido falar sobre essas identidades presentes
na universidade, em diversos cursos. Antes, não havia sido apresentada a nenhum
estudante indígena, nem tido convívio algum com estes, suas línguas, culturas etc. E é
essa ausência/apagamento, fruto do projeto colonial, que criada principalmente por meio
da língua/elemento linguístico, que gera pressupostos como estes já citados como o de
que esses teriam “naturalmente” o português como língua materna. Esse estranhamento
que se coloca quando na evidenciação da dúvida/pergunta feita à professora, em sala de
aula, é efeito da violência executada pela colonização, do discurso histórico de
apagamento dessas identidades, línguas, culturas etc. O fato de pensar, a priori, pensar
que todos eles falassem português e de estranhar que o português não fosse sua língua
materna é marca de ...
Outro ponto é a evidência de que estes estudantes indígenas, especificamente, os
que têm suas línguas maternas originárias e só passaram a ter contato com a língua
portuguesa mais tarde, pela imposição socio-estrutural, aparecem em desvantagem,
conforme os números comentados pela própria universidade, tanto no acesso aos
programas de inclusão, quanto para permanência em seus cursos e por fim a conclusão
dos mesmos. Mesmo que se tenha criado um programa de inclusão que os contemple, em
relação aos outros grupos contemplados pelo mesmo programa, a mesma política, estes
estudantes indígenas aparecem em desvantagem, prejudicados, uma vez que esta política
de inclusão não vem acompanhada de políticas linguísticas novas, que reconheçam suas
condições linguístico-culturais específicas. Quando a universidade não move, não se
permite, em relação a estes estudantes, transformar-se, não cumpre a suma “Tratar os
diferentes de formas diferentes para promover a equidade.”
A educação colonizadora que se deu através, também, de processos de
evangelização dos indígenas pela igreja católica – a exemplo dos trabalhos dos jesuítas –
também foi uma arma poderosa usada na colonização de identidades. E só depois de
séculos de violências e negação de existências e formas de saberes que em 1996 com a
LDB, no seu artigo 78, que deu maior visibilidade, atenção e respeito a autonomia da
educação indígena que durante séculos foi totalmente ignorada, na colonização.

REFERÊNCIAS

ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do


terceiro mundo. Estudos Feministas, 2000 [1980], pp. 229-236.
OBIAH – Grupos de Estudos Interculturais da Linguagem. Diálogo como travessia
sociolinguística em turbulências discursivas e lutas narrativas. Em: Cadernos do Obiah.
Inédito.

OBIAH – Grupos de Estudos Interculturais da Linguagem. Os compromissos da


Sociolinguística. Em: Cadernos do Obiah. Inédito.

RUI. Manoel. Eu e o outro: o invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o
texto. Comunicação Apresentada no Encontro Perfil da Literatura Negra. São Paulo,
Brasil, em 23 mai. 1985.

UFG – Resolução CONSUNI Nº 29/2008. Disponível em:


https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/90/o/Resolucao_CONSUNI_2008_0029.pdf

TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 1985.

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