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A ATUALIDADE DO SAUSSURISMO, de A. Greimas (tradução)

Article · May 2008

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Luciana Salazar Salgado


Universidade Federal de São Carlos
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A ATUALIDADE DO SAUSSURISMO

Algirdas-Julien GREIMAS

por ocasião do 40º. aniversário da publicação


do Curso de lingüística geral.

(Texto publicado em Le français moderne, 1956, n. 24, p. 191-2031)

tradução: Luciana S. Salgado (USP/FAPESP)


revisão técnica: Sueli Ramos (USP/CNPq)

Não se pode dizer que o nome de Ferdinand de Saussure não seja conhecido entre os
lingüistas franceses. Mas também é verdade que a teoria saussuriana continua
praticamente desconhecida da "filologia francesa", fielmente ligada, ao menos nas suas
principais contribuições, ao espírito da gramática histórica do século XIX. Refletindo a
convicção – em certa medida unânime – de seus mestres, um jovem lingüista de 1935
tinha ainda a tendência de considerar com desdém os trabalhos das escolas de Genebra e
de Praga, cujo esoterismo, dizia-se, escondia mal as especulações puramente teóricas,
contrárias aos fatos lingüísticos "positivos" e ao bom senso mais elementar.

E, no entanto, quando esse mesmo lingüista foi levado a ler, vinte anos mais tarde, a
confissão de um sociólogo lamentando que seus mestres do período entre guerras
tivessem estado "sem dúvida mais ocupados em meditar a respeito do Ensaio sobre os
dados imediatos da consciência [de Henri Bergson] do que sobre o Curso de lingüística
geral de Ferdinand de Saussure" 2, ou a afirmação de um filósofo sobre o fato de que
"Saussure bem poderia ter esboçado uma nova filosofia da História" 3, ele se viu, então,
obrigado a rever sua atitude frente ao saussurismo, graças, ao menos em parte, a essa
"redescoberta" de Saussure por outras ciências humanas que não a lingüística, viu-se na
situação no mínimo paradoxal da herança saussuriana em território francês.

O interesse que as diferentes ciências humanas mostram hoje pela lingüística deixa
bastante evidente o desprezo inquietante da lingüística francesa pela reflexão
metodológica. A compartimentação estanque dos programas universitários e a separação
arbitrária das disciplinas isolam o lingüista, desde seu primeiro diploma até o fim de sua
carreira, numa solidão asfixiante. As desconfianças do historiador sobre o saussurismo
do qual ele reteve, a princípio, apenas a condenação peremptória, em nome da sincronia,
do objeto de seus estudos, conduzem-no mais a restringir-se a seus próprios métodos,
que ele por vezes percebe frágeis, do que a renegar, de uma só vez, todo o ensinamento
de seus mestres e os resultados alcançados pelos esforços de diversas gerações de
pesquisadores.

Logo se compreende, então, que as linhas que se seguem, longe de pretenderem esboçar
uma nova apologia, gostariam, antes, de mostrar a eficácia do pensamento de F. de
Saussure, que, ultrapassando os quadros da lingüística, tem sido retomado e utilizado
pela epistemologia geral das ciências humanas. Em vez de sublinhar antagonismos no
interior da lingüística, a descrição desses temas saussurianos mais gerais deveria, ao
contrário, pôr em evidência o valor heurístico da lingüística tomada globalmente. Vista
de fora, a oposição das duas linguísticas, a estática e a histórica, parece um caso
específico do mal-estar geral de que padecem as ciências humanas e que elas têm sido
chamadas a superar. E não há razão para a lingüística não representar, ainda uma vez,
esse lugar privilegiado de superação.

A originalidade da contribuição de F. de Saussure reside na transformação de uma visão


do mundo que lhe era própria4 – e que consiste em tomar o mundo como uma vasta rede
de relações, como uma arquitetura de formas carregadas de sentido, portadoras de sua
própria significação – em uma teoria do conhecimento e uma metodologia lingüística.
Afinal, longe de se satisfazer com uma fenomenologia descritiva ou, como propõe
Louis Hjelmslev, com uma "descrição pura, mais próxima da teoria do que das ciências
exatas" 5 – e que conhecemos bem através das "descrições fenomenológicas", cada vez
mais numerosas –, Saussure soube pôr à prova o valor epistemológico de seu postulado,
ao aplicá-lo a uma ciência humana em particular: a lingüística. Partindo do conceito
lingüístico de significante, indissoluvelmente ligado ao significado (sendo este
conhecido apenas por meio daquele), e da noção de língua, esse ente de dupla face,
concebida como "uma forma e não (como) uma substância" 6, é que se efetua a
passagem da lingüística às outras ciências humanas, a extrapolação metodológica do
saussurismo, e assim é que se afirma o postulado saussuriano de um mundo estruturado,
apreensível em suas significações.

A pouca repercussão que a teoria saussuriana teve na França deve ser imputada, em
grande parte, à inexistência de uma psicologia da linguagem que, ultrapassando a
antinomia pensamento/linguagem, viesse apoiá-la e secundá-la, ou, antes, deve-se à
perseverança de uma psicologia tradicional que pretendia, a todo custo, interpretar os
fenômenos lingüísticos no quadro de relações recíprocas entre as duas "substâncias": o
pensamento e a linguagem. A ausência de uma tal psicologia explica não só o fracasso
parcial da escola de Genebra, cujas aplicações da teoria de Saussure são continuamente
conduzidas à interpretação psicologista, mas também explica o formalismo, talvez um
tanto estreito, da escola de Praga. Essa mesma incompatibilidade de pressuposições
psicológicas define, de saída, o fracasso de todas as tentativas de renovação, uma vez
que ela se satisfaz com uma justaposição eclética do saussurismo e da lingüística de
inspiração psicologista ou behaviorista 7. Dessa perspectiva é que a lingüística
saussuriana reconhecerá com entusiasmo os esforços de M. Merleau-Ponty na
elaboração de uma psicologia da linguagem na qual a dicotomia pensamento/linguagem
é abandonada, dando lugar a uma concepção da linguagem em que o sentido é imanente
à forma lingüística e que, guardados o tom peculiar do autor e a convergência de vários
pensamentos, parece, em muitos aspectos, um prolongamento natural do pensamento
saussuriano8.

Mais importante ainda será a extensão da teoria saussuriana à sociologia, cujo mérito é
tributável a Claude Lévi-Strauss. Lembremo-nos do estudo convincente de W.
Doroszewski9, que pretendeu explicar a teoria saussuriana como uma aplicação
particular da lingüística de postulados da escola francesa de sociologia. Se, de certo
modo, o conceito saussuriano de língua parece bem assentado na "consciência coletiva"
de Durkheim, mais além, ele a ultrapassa: em vez de exigir o recurso às categorias
fundamentais do espírito, em vez de reivindicar, numa análise ulterior, as distinções
tradicionais e arbitrárias de lógico e pré-lógico, consciente e inconsciente, o conceito de
Saussure permite recobrir, com a noção de significante global, todo o espaço social e,
então, estudá-lo como um sistema homogêneo e fechado. É na interpretação desse
progresso dialético da sociologia francesa que se supera numa de suas disciplinas para
se reconstruir partindo de suas descobertas que reside, malgrado as reticências de certos
sociólogos franceses 10, a ambição perfeitamente justificada de C. Lévi-Strauss de ser o
herdeiro espiritual do pensamento de Mauss e de Durkheim. E quando, recorrendo a
Freud e a Saussure, ele nos conta, em seu Tristes Trópicos, a descoberta, "para além do
racional", de "uma categoria mais importante e mais válida, a do significante, que é a
expressão mais elevada da maneira de ser do racional" 11, a confissão dessa tomada de
consciência sobre as novas possibilidades de exploração sociológica nos esclarece sobre
a significação profunda da obra que ele está construindo.

A famosa distinção saussuriana entre língua e fala [langue e parole] – postulando que à
fala, que se faz notar indefinidamente na duração, corresponde um sistema lingüístico
anterior que torna a comunicação possível, formulado em termos mais gerais por
Hjelmslev, que propõe como ponto de partida que todo processo pressupõe um
sistema12 — está investida de um valor epistemológico consistente. Mais que o
lingüista, que, enredado pela infinidade de fatos de fala e modos de expressão, chega
apenas a constituir, em vez de uma sintaxe, uma estilística de valores sintáticos, o
sociólogo se vê desarmado diante da diversidade de perspectivas de abordagem, diante
da infinidade de relações sociais, reduzido a visões parciais, a estudos de
microssociologia. A aplicação do postulado saussuriano 13 lhe permite, ao contrário,
opor de modo válido o processo da comunicação das mulheres às estruturas de
parentesco; a troca de bens e serviços à estrutura econômica. Mais amplamente: as
relações sociais, objeto da psicologia social, à estrutura social, objeto da sociologia, ou,
para usar a terminologia marxista que M. Merleau-Ponty prefere — manobrando, assim,
uma abertura possível da sociologia à história —, as forças produtivas às formas da
produção14. Essa homogeneidade do significante lingüístico certamente favoreceu, de
início, as pesquisas dos lingüistas de Praga e de Copenhague, cujos esforços teóricos,
notáveis pelos resultados alcançados no domínio da formalização, explicam o
renascimento atual do saussurismo e sua expansão metodológica.

A importância da tarefa assumida paralelamente por C. Lévi-Strauss e M. Merleau-


Ponty não escapa a ninguém, pois se trata, nem mais nem menos, de reafirmar, partindo
do postulado saussuriano, aplicando-o tanto à "ordem pensada" quanto à "ordem
vivida", a autonomia e a realidade da dimensão social, do objeto social. Através das
diferenças de terminologia – Lévi-Strauss preferindo, talvez, o inconsciente coletivo 15,
Merleau-Ponty o espaço social16 autônomo – e apesar das divergências de
pressuposições metafísicas, aparece a realidade social, inteligível, como o pedaço de
cera de Descartes, na transparência de sua rede relacional e total 17, pois ela contém, em
níveis estruturais diferentes, o sistema capitalista descrito por Karl Marx e o sistema
lingüístico de F. de Saussure.

Aos três níveis diferentes formulados por C. Lévi-Strauss18: a comunicação entre


mulheres, a comunicação dos bens e serviços, a comunicação das mensagens,
correspondem três tipos de estrutura: estruturas de parentesco, estruturas econômicas,
estruturas linguísticas. A língua, assim situada no contexto social global, pode ser
compreendida de dois modos: seja como um sistema – bastante complexo, é verdade,
mas relativamente fechado – de relações fonológicas e morfossintáticas que apóiam a
comunicação19; seja, enfim, num sentido mais amplo do termo, como uma espécie de
condensamento da totalidade de mensagens humanas trocadas, o significante lingüístico
recobrindo, então, um vasto significado cuja expressão corresponderá, mais ou menos,
ao conceito de cultura. Parece evidente que nenhuma distinção de naturezas permite a
delimitação de dois campos lingüísticos, isto é, que a categoria gênero, por exemplo, se
situe no mesmo nível da "categoria" espectro de cores, que a primeira seja vista como
tão "semantizada" quanto a segunda.

Portanto, nada se oporia, a princípio, à extensão dos métodos estruturalistas à descrição


de vastos campos de simbolismos culturais e sociais, recobertos pelo significante
lingüístico e apreensíveis por meio dele. O ceticismo, senão desconfiança, dos
fonologistas e sintaticistas quanto a tal empreita, reivindicada pela lexicologia, justifica-
se, é verdade, pelo desejo de preservar a autonomia de suas disciplinas. Os historiadores
e os etnólogos, ao contrário, não cessam de recorrer à lingüística e a seus métodos 20,
todavia, sem que estes possam, no atual estado das pesquisas, lhes propor outra coisa
além de uma dispersão de fatos e uma semântica pouco satisfatória. É possível entrever
os serviços consideráveis que uma metodologia segura renderia a esse domínio. Os
historiadores hoje, como Marc Bloch ou Charles Morazé, que reclamam uma
reaproximação entre a história e a lingüística 21, estão plenamente conscientes disso. Eles
opõem a uma psicologia social das atitudes e dos comportamentos (cuja aplicação nas
pesquisas históricas se revela de grande dificuldade)22 os métodos que favoreceriam a
descrição das estruturas: a construção de "modelos" de mentalidade, de sensibilidade ou
de moralidade coletivas, uma lexicologia social e histórica – concebida como
metodologia e não como disciplina independente, e que, apesar dos esforços de J.
Trier23 e mais recentemente de G. Matoré 24, ainda não largou os cueiros – que muito
bem poderia cumprir o papel de conselheira e guia, creditado atualmente às disciplinas
situadas nos confins de diversas ciências.

Mesmo postulando a unidade funcional do significante lingüístico, não se pode evitar de


notar a grande diversidade que o caracteriza. Alguns conjuntos que o constituem
parecem fortemente estruturados, mais homogêneos que outros, não só porque eles se
apóiam, no nível da ordem vivida, sobre os agrupamentos sociais de contornos bem
delimitados ou sobre funções sociais claramente caracterizadas, mas sobretudo porque
uma significação global e autônoma parece emanar de seus conjuntos estruturados.
Pensamos notadamente nos sistemas mitológicos, nos religiosos, ou nessa forma
moderna de fabulação que é a literatura. Nesses casos, considerados esses conjuntos e
deixando à significação autônoma que seja o que é, quer dizer, que seja um sistema de
signos, parece que a língua se vê ao mesmo tempo utilizada como instrumento e
servindo à construção das "ordens de pensamento" mediadas, as metalinguagens. Da
mesma maneira como a língua, para construir seus próprios sistemas de signos, utiliza
estruturas fonológicas que, por direito senão de fato, lhe são anteriores, assim também,
poderíamos dizer, as metalinguagens se servem dos signos lingüísticos para desenvolver
suas próprias formas autônomas. Desse modo, segundo a sugestão fecunda de
Hjelmslev25, ao partir de um conjunto significante claramente estruturado – literatura,
língua popular, mitologia –, estamos autorizados a construir um sistema semiológico
cujas estruturas, deslocadas pela análise, comportariam significação global autônoma. A
aplicação desse postulado à descrição da metalinguagem literária, cujo mérito é de
Roland Barthes26, permitirá mostrar melhor seu alcance.

É inútil – muitos outros já o fizeram antes de nós – insistir no fato de que a história da
literatura, elaborada no século XIX, destruiu o objeto literário, reduzindo-o, com a ajuda
de causalidades psicológicas e sociológicas variadas, seja à "história das idéias", seja à
psicologia da imaginação criadora. De tal sorte que um professor de literatura de boa fé
vê seu papel limitado, hoje, ao de professor de "leitura" e concebe sua tarefa como uma
explicação da literatura por meio de tudo que ela não é. O esforço dos lingüistas,
convidados a dar, por razões de ordem institucional e não científica, sua própria versão
do fenômeno literário, é coroado pela constituição de vastos repertórios (tais como os
dois últimos volumes de Histoire de la langue française, de Charles Bruneau), de
figuras e de procedimentos estilísticos. As pesquisas desse tipo, ainda que consagradas
quase exclusivamente ao estudo "da língua e do estilo" de autores individuais,
deslocam, pela sua própria justaposição, a noção empírica de "estilo de época" e
sobretudo postulam implicitamente, graças à uniformidade de métodos empregados, a
existência de um plano único e homogêneo sobre o qual se constroem as obras e se
desdobram os acontecimentos literários. Esse catálogo de formas literárias que, se fosse
exaustivo, constituiria o significante de uma metalinguagem literária, seguiria, porém,
inutilizável enquanto não se afirmasse a existência paralela e imanente ao significante
de um significado global que dê conta da escolha das formas utilizadas e de sua
destinação social, que compreenda, ao mesmo tempo, a estética e a moral de uma
linguagem literária dada. A originalidade do aporte de R. Barthes reside justamente, em
parte, na afirmação da autonomia da linguagem literária, cujos signos são irredutíveis
aos signos lingüísticos simples e, em parte, na evidenciação da significação global das
formas literárias de uma época. Independentemente de qualquer conteúdo que se
proponha comunicar por meio do texto, a escritura – nome que R. Barthes escolheu
para designar o conjunto de signos literários – tem por função "impor um além-
linguagem que é, ao mesmo tempo, a História e o partido que nela se toma"27. Esse
conceito de escritura, que já começa a ser utilizado na crítica literária 28, parece
prometer uma renovação de métodos literários e talvez até mesmo uma nova concepção
da história, como "história da Escritura".

Se os postulados de uma nova ciência literária parecem assim estabelecidos, se nada se


opõe, a princípio, à aplicação do estruturalismo nas pesquisas etnológicas e nos
trabalhos dos historiadores das religiões 29, não se pode esquecer de que a linguagem
articulada não esgota todas as mensagens nem todos os signos, pois a língua não é
coextensiva à cultura: as formas plásticas ou as estruturas musicais, por exemplo,
recobrem da mesma maneira e com a mesma vivacidade de significações vastas regiões
do espaço social. Da confrontação dos resultados de ordem metodológica obtidos pela
escola de Focillon e as numerosas intuições contidas na obra de Malraux com as
principais aquisições da lingüística estrutural, da extensão do saussurismo à
musicologia, em que a concepção da música como linguagem 30 parece cabal,
chegaríamos, certamente, ao mesmo tempo que a uma melhor compreensão dos
problemas próprios a cada domínio, também a uma semiologia geral pressentida e
desejada por F. de Saussure31.

Infelizmente – sobrevivência do mito romântico do gênio ou bafio de um anticientismo


mofado – a integração, nas ciências humanas, desses domínios limítrofes que
reivindicam tanto a ciência quando a estética, que na corrente do século XIX se
constituíram ou se constituiriam em "histórias": história literária, história da arte,
história da música, etc., ficou dificultada por causa do estado de espírito que reina em
certos ambientes e que se manifesta num desdém mais ou menos consciente do âmbito
social dos problemas, como os comportamentos médios ou as estruturas coletivas,
dando primazia ao individual, ao anormal, ao criador. Se M. Merleau-Ponty, cuja
contribuição sobre os dois planos (psicológico e sociológico) acabamos de mencionar,
distingue, seguindo F. de Saussure, "a fala falada" [la parole parlée] da "fala falante"
[la parole parlante]32, quer nos parecer que é para logo em seguida se ocupar desta
última. Ora, a linguagem de um filósofo não é mais inocente do que qualquer outra, e
encontraremos facilmente em Merleau-Ponty harmônicos pejorativos, bergsonianos em
tudo que toca ao institucional. O mesmo se dá com o conceito de escritura, que,
aplicado apenas às formas literárias da época clássica, viu-se abandonado aos caprichos
do compromisso consciente33, sendo que o aspecto consciente ou inconsciente do
fenômeno estudado parece de fato secundário em relação à categoria saussuriana de
significante. De outro lado, a definição de escritura se desloca apenas se se opõe ao
conceito antinômico de estilo34, expressão, no plano lingüístico, da temática existencial
do escritor, e que permite a Barthes dar conta da unicidade da obra individual. Podemos
dizer isso de Boris de Schloezer, cuja teoria semiológica da música visa à análise de
uma obra musical particular 35, ou de Ch. Lalo36, cuja estética "estrutural" procura
definir a obra de arte em geral.

Que não entendam mal as nossas intenções aqui: uma definição como essa da obra
individual é útil, e mesmo necessária, e um grande passo será dado no dia em que isso
poderá ser definido lingüisticamente, leia-se semiologicamente, sem apelar para
categorias estéticas ou psicológicas sempre algo inquietantes. Todavia, as empreitadas
desse tipo, teoricamente válidas, parecem sempre um pouco prematuras quando se
pensa nas suas aplicações práticas e sobretudo na verificação de seus resultados: em vez
de estimular o trabalho de descrição das escrituras históricas, elas o supõem já feito. Os
lingüistas, mais habituados à humildade de suas pesquisas, à lentidão com que os
resultados de seu trabalho finalmente são registrados, não terão dificuldade em
compreender essa observação, que denota mais uma atitude de espírito do que uma
objeção de princípio.

Por fim, a enumeração de dicotomias saussurianas – significante e significado, língua e


fala – cujas diversas aplicações foram objeto deste estudo estaria incompleta se não
mencionássemos a dicotomia que, parecendo ter uma utilização mais fácil, foi, porém, a
que encontrou a mais viva oposição da parte dos historiadores da língua, pelo simples
fato de que, afirmada muito dogmaticamente, ela os excluiu do número de beneficiários
das outras formulações de F. de Saussure: trata-se da famosa incompatibilidade dos
estudos sincrônicos e diacrônicos. Que uma tomada de posição categórica quanto à
unidade estrutural do objeto da lingüística tenha sido necessária no início, e que sem
essa afirmação nenhuma lingüística de inspiração saussuriana teria sido possível, isso
nos parece evidente. Que depois a lingüística dinamarquesa, nos seus desenvolvimentos
ulteriores, aceite a idéia de pancronia37, isto é, do inventário geral de todas as estruturas
lingüísticas possíveis, isso ainda se explica por certas vantagens metodológicas que tal
conceito fornece aos lingüistas que se ocupam das línguas "sem história" ou que não se
prestam ao estabelecimento de filiações a métodos históricos: um novo comparatismo,
extratemporal e extraespacial, fica assim legitimado. Mas, se a lingüística estrutural se
recusa a admitir que o desenvolvimento histórico de uma dada língua pode ser
apreendido de outro modo que não a comparação de dois estados de língua sucessivos –
quando a definição de estado de língua38 desencadeia as mesmas dificuldades e contém
as contradições inerentes à oposição do sincrônico e do diacrônico –, compreende-se
que os lingüistas históricos prefiram se ater a seus métodos a renunciar à história,
atitude incompreensível sobretudo da parte de uma lingüística que se quer científica.

E, no entanto, se a conciliação das lingüísticas – estrutural e histórica – é possível, isso


se dará efetivamente no domínio das pesquisas que visam à exploração da dimensão
histórica do espaço lingüístico que tal conciliação produzirá. Alguns trabalhos de
aproximação e algumas pesquisas metodológicas já permitem entrever uma direção e as
grandes linhas da nova extrapolação do saussurismo, e de modo algum eles traem o
pensamento saussuriano. Pois se a palavra viva se apóia, em suas manifestações, sobre a
língua já instituída, ela é também a fonte de toda criação nova, de todo progresso
histórico, e é nesse vai-e-vem dialético entre a fala e a língua, nessa praxis 39 lingüística
cujas articulações e o mecanismo ainda devem ser precisados, que reside a realidade das
mudanças lingüísticas e também a origem de novas estruturas de língua. De outro lado,
começa-se a compreender, depois do estudo elucidativo de R. Jakobson 40, como a
estrutura lingüística pode ser apreendida em seu desenvolvimento histórico: basta, para
isso, flexibilizar a concepção demasiado mecanizada de forma lingüística e introduzir,
no lugar do postulado de equilíbrio estrutural, a noção mais flexível de "tendência ao
equilíbrio"41 ou, antes, diríamos "tendência ao desequilíbrio", o progresso histórico
consistente manifestado sempre na criação de novas estruturas disfuncionais.

A interpenetração de métodos estruturais e históricos é, aliás, mais avançada do que se


crê em geral, e os lingüistas "históricos", como Benveniste ou Wartburg, não raro
parecem, em algumas de suas análises, mais fiéis ao espírito, senão à letra, de F. de
Saussure do que um "sincronista" intransigente como, por exemplo, J. Vendryès. Um
exame metodológico mais perspicaz, situando-se nos quadros epistemológicos mais
gerais, requer a colaboração das duas famílias de lingüistas. Bastaria que a lingüística
estrutural aceitasse como ponto de partida a necessidade de compreender o devir
histórico da língua, e que os lingüistas históricos renunciassem à predisposição avessa e
reconhecessem a utilidade do instrumento metodológico forjado pelo estruturalismo.
Daí decorreria uma lingüística enriquecida, estrutural e histórica ao mesmo tempo, o
que justificaria, afinal, um lugar de vanguarda nas ciências humanas.

A. J. GREIMAS
Faculdade de Letras de Alexandria

NOTAS

1Este texto foi retomado em GREIMAS, A.-J., La mode en 1830, (texto estabelecido por T.F.
Broden e F. Ravaux-Kirkpatrick), Paris: PUF, p. 371-382.

2 Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropiques, Paris, Plon, 1955, P. 47. [edição brasileira: Tristes
Trópicos. Trad. Rose Freire D´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.]

3 Maurice Merleau-Ponty, Leçon inaugurale au Collège de France, 1953, p. 45. [edição em


português: Elogio da Filosofia. Texto da lição inaugural no Colégio de França em 1952. Trad.
Antonio Braz Teixeira. Lisboa: Guimarães, 1986.]

4 Os limites deste artigo impedem qualquer pretensão de situar F. de Saussure nos quadros mais
gerais da epistemologia de seu tempo ou de avaliar a originalidade de seu pensamento em
relação, por exemplo, à fenomenologia de Husserl ou à teoria da Gestalt.

5 Prologomena to a Theory of Language, Indiana University Publications, 1953, p. 4. [edição


brasileira: Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Trad. J. Teixeira Coelho Netto. São Paulo:
Perspectiva, 1975.]

6F. de Saussure, Cours de linguistique générale, p. 157. [edição brasileira: Curso de lingüística
geral. Trad. A. Chelini, J. P. Paes, I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1969.]

7 Pensamos principalmente nas obras, acima de tudo meritórias, de S. Ullmann: Principles of


Semantics [edição em português: Semântica: uma introdução à ciência do significado. Trad. J.
A. Osório Mateus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964] e Précis de sémantique
française.
8Ver Phénoménologie de la perception. Paris: NRF, 1945 [edição brasileira: Fenomenologia da
percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994],
sobretudo o capítulo intitulado "O corpo como expressão e a fala".

9 "Durkheim e F. de Saussure", em Psychologie du langage.


[N.T. : assim consta do original, sem detalhamento bibliográfico].

10Ver sua Introdução à obra de M. Mauss, in Marcel Mauss, Sociologie et anthropologie. Paris:
PUF, 1950 [uma das edições brasileiras: Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Cosacnaify, 2003], e a advertência de Georges Gurvitch, ao precisar que a introdução de
C. Lévi- Strauss é "uma interpretação bastante pessoal" da obra de M. Mauss.

11 p. 47.

12 Op. cit., p. 5.

13C. Lévi-Strauss, "Structure sociale", in Bulletin de psychologie, t. VII, Paris, mai. 1953, p.
539- 370.

14 Leçon inaugurale, op. cit., p. 45.

15 "Introduction à l'oeuvre de M. Mauss", op. cit., p. XXX-XXXII.

16 Op. cit., p. 46.

17 Cf. a importância conferida por G. Lukács à categoria totalidade: «Die Herrschaft der
Kategorie der Totalitat ist der Trager des revolutionaren Prinzips in der Wissenschaft »
(Geschichte und Klassenbewusstsein, Berlin, 1923, p. 39) [uma das edições brasileiras: História
e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 1989.]

18 "Structure sociale", in Bulletin de psychologie, p. 370-371.

19 É assim, por exemplo, que Knud Togeby concebe a língua em Structure immanente de la
langue française, Copenhague, 1951.

20 Cf. as notáveis análises lexicológicas das noções fundamentais do sistema feudal nos dois
volumes de A sociedade feudal, que Marc Bloch justifica no plano metodológico em sua
Apologie pour l'histoire (Paris, A. Volin, 1949, p. 89) [uma das edições brasileiras: Apologia da
História. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001] fazendo o elogio da "semântica
histórica", da qual os historiadores da época, como Fustel de Coulanges, propuseram
"admiráveis modelos". Cf. também a utilização, por Lucien Febvre, dos dados lexicais com
vistas à descrição da mentalidade do século XVI em Le problème de l'incroyance au XVIe
siècle, ou as páginas encantadoras de Do Kamo - la personne et le mythe dans le monde
mélanesien (Paris, NRF, 1947), de Maurice Leenhardt.

21"Aos homens que, boa parte do tempo, não lograrão atingir os objetivos de seus estudos senão
através das palavras, com que absurdo paralogismo lhes é permitido, entre outras lacunas,
ignorar as aquisições fundamentais da lingüística?" (Marc Bloch, Apologie pour l´histoire, p.
28). Charles Morazé, por sua vez, afirma que os comportamentos sociais não podem ser
conhecidos enquanto nos ativermos "ao tradicional estudo da ética, que é o estudo das idéias", e
crê que "as bases essenciais que nos faltam" poderão ser fornecidas por "um estudo mais
próximo das línguas e da história do ponto de vista moral" (Essai sur la civilisation d'Occident,
p. 207). Essas afirmações, por seu otimismo, mostram muito mais as necessidades
metodológicas da ciência histórica do que o conhecimento das dificuldades por que passa a
lingüística.

22 Cf., a título de exemplo, a confusão metodológica que caracteriza o estudo, aliás muito
interessante, de M. Halkin, "Pour une histoire de l'honneur", in Annales, octobre-décembre
1949, n. 4, p. 433 sq.

23 Jost Trier, Der deutsche Wortschatz im Sinnbezirk des Verstandes, Heidelberg, 1931.

24 La méthode en lexicologie, Paris, Didier, 1953.

25 Prolegomena, op. cit., p. 73 sq.

26 Le degré zéro de l'écriture, Paris, Ed. du Seuil, 1953. [edição brasileira: O grau zero da
escritura. São Paulo: Cultrix, 1971.]

27 Ibid., p. 7.

28Cf. Roger Caillois, que, na sua Poétique de Saint-John Perse, Paris, NRF, utiliza largamente
o conceito de escritura num sentido um pouco diferente daquele de R. Barthes.

29Pensemos, por exemplo, no sólido escudo de que se teria revestido a rica descrição da
cosmogonia dos Dogons na pluma de um Marcel Griaule estruturalista (Dieu d'eau, Paris, Ed.
Du Chêne, 1948).

30Assim Boris de Schloezer, em sua Introduction à J.-S. Bach, Paris, NRF, 1947, utiliza com
sucesso os conceitos saussurianos: "Em música, o significado é imanente ao significante, o
conteúdo à forma, a tal ponto que, rigorosamente falando, a música não tem um sentido mas é
um sentido" (p. 24).

31 Op. cit., p. 32-35.

32 Phénoménologie de la perception, op. cit., p. 229.

33 R. Barthes, op. cit., p. 86-87.

34Tal concepção de estilo se encontra pertinentemente ilustrada em Michelet par lui-même


(Paris, Ed. du Seuil, 1954), de R. Barthes [edição brasileira: Michelet. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991], e em Poésie et profondeur (Ed. du Seuil, 1955), de Jean-Pierre Richard.

35O título da obra de Schloezer já citada [nota 30] é suficientemente esclarecedor das intenções
do autor.

36 Ver "L'analyse esthétique d'une oeuvre d'art", in Journal de psychologie, n. 3, juillet-


septembre 1946, p. 257.

37 Cf. Viggo Bröndal, Essais de linguistique générale, Copenhague, 1943, p. 96, e também a
aplicação característica da mesma noção em sociologia: "O conjunto de costumes de um povo é
sempre marcado por um estilo; eles formam sistemas. Estou persuadido de que esses sistemas
não existem em número ilimitado, e de que as sociedades humanas, como os indivíduos [...]
nunca criam de modo absoluto, mas se limitam à escolha de certas combinações num repertório
ideal que seria possível reconstruir" (C. Lévi-Strauss, Tristes Tropiques, op. cit., p. 183). Resta
saber se a noção de repertório ideal pode ser conciliada com a concepção da história como
processo criador.
38 Cf. R.-L. Wagner, Grammaire et philologie, Cours de Sorbonne, fasc. 1, chap. IV: "La
linguistique statique. Les descriptions d'états de langue".

39 Para o conceito marxista de praxis aproximado da noção saussuriana de espaço social, ver
Merleau-Ponty, Leçon inaugurale, p. 43 sq. C. Lévi-Strauss, por sua vez, depois de ter
sublinhado "a necessidade de introduzir no modelo teórico novos elementos que dão conta das
mudanças diacrônicas da estrutura", insiste no fato de que "a relação entre a terminologia (isto
é, a descrição estática da estrutura de parentesco) e o comportamento é de natureza dialética"
(Structure sociale, op. cit., p. 381).

40Principes de phonologie historique, dados no apêndice de Principes de phonologie, de N. S.


Troubetzkoy, na tradução francesa de J. Cantineau, p. 315-336.

41Vê-se na introdução do importante Essai pour une histoire structurale du phonétisme français
(Paris, Klincksieck, 1949), de A. G. Haudricourt e A. G. Juilland, o histórico dos esforços dos
funcionalistas de Praga para fazer com que se admitisse o estruturalismo em história. Para a
"tendência ao equilíbrio", ver p. 5 sq. Infelizmente, não houve tempo de tomarmos contato com
a recente obra de André Martinet, Économie des changements phonétiques. Traité de
phonologie diachronique, Berne, 1955, 396 p.

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