Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/341134459
CITATIONS READS
0 181
1 author:
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
All content following this page was uploaded by Luciana Salazar Salgado on 04 May 2020.
Algirdas-Julien GREIMAS
Não se pode dizer que o nome de Ferdinand de Saussure não seja conhecido entre os
lingüistas franceses. Mas também é verdade que a teoria saussuriana continua
praticamente desconhecida da "filologia francesa", fielmente ligada, ao menos nas suas
principais contribuições, ao espírito da gramática histórica do século XIX. Refletindo a
convicção – em certa medida unânime – de seus mestres, um jovem lingüista de 1935
tinha ainda a tendência de considerar com desdém os trabalhos das escolas de Genebra e
de Praga, cujo esoterismo, dizia-se, escondia mal as especulações puramente teóricas,
contrárias aos fatos lingüísticos "positivos" e ao bom senso mais elementar.
E, no entanto, quando esse mesmo lingüista foi levado a ler, vinte anos mais tarde, a
confissão de um sociólogo lamentando que seus mestres do período entre guerras
tivessem estado "sem dúvida mais ocupados em meditar a respeito do Ensaio sobre os
dados imediatos da consciência [de Henri Bergson] do que sobre o Curso de lingüística
geral de Ferdinand de Saussure" 2, ou a afirmação de um filósofo sobre o fato de que
"Saussure bem poderia ter esboçado uma nova filosofia da História" 3, ele se viu, então,
obrigado a rever sua atitude frente ao saussurismo, graças, ao menos em parte, a essa
"redescoberta" de Saussure por outras ciências humanas que não a lingüística, viu-se na
situação no mínimo paradoxal da herança saussuriana em território francês.
O interesse que as diferentes ciências humanas mostram hoje pela lingüística deixa
bastante evidente o desprezo inquietante da lingüística francesa pela reflexão
metodológica. A compartimentação estanque dos programas universitários e a separação
arbitrária das disciplinas isolam o lingüista, desde seu primeiro diploma até o fim de sua
carreira, numa solidão asfixiante. As desconfianças do historiador sobre o saussurismo
do qual ele reteve, a princípio, apenas a condenação peremptória, em nome da sincronia,
do objeto de seus estudos, conduzem-no mais a restringir-se a seus próprios métodos,
que ele por vezes percebe frágeis, do que a renegar, de uma só vez, todo o ensinamento
de seus mestres e os resultados alcançados pelos esforços de diversas gerações de
pesquisadores.
Logo se compreende, então, que as linhas que se seguem, longe de pretenderem esboçar
uma nova apologia, gostariam, antes, de mostrar a eficácia do pensamento de F. de
Saussure, que, ultrapassando os quadros da lingüística, tem sido retomado e utilizado
pela epistemologia geral das ciências humanas. Em vez de sublinhar antagonismos no
interior da lingüística, a descrição desses temas saussurianos mais gerais deveria, ao
contrário, pôr em evidência o valor heurístico da lingüística tomada globalmente. Vista
de fora, a oposição das duas linguísticas, a estática e a histórica, parece um caso
específico do mal-estar geral de que padecem as ciências humanas e que elas têm sido
chamadas a superar. E não há razão para a lingüística não representar, ainda uma vez,
esse lugar privilegiado de superação.
A pouca repercussão que a teoria saussuriana teve na França deve ser imputada, em
grande parte, à inexistência de uma psicologia da linguagem que, ultrapassando a
antinomia pensamento/linguagem, viesse apoiá-la e secundá-la, ou, antes, deve-se à
perseverança de uma psicologia tradicional que pretendia, a todo custo, interpretar os
fenômenos lingüísticos no quadro de relações recíprocas entre as duas "substâncias": o
pensamento e a linguagem. A ausência de uma tal psicologia explica não só o fracasso
parcial da escola de Genebra, cujas aplicações da teoria de Saussure são continuamente
conduzidas à interpretação psicologista, mas também explica o formalismo, talvez um
tanto estreito, da escola de Praga. Essa mesma incompatibilidade de pressuposições
psicológicas define, de saída, o fracasso de todas as tentativas de renovação, uma vez
que ela se satisfaz com uma justaposição eclética do saussurismo e da lingüística de
inspiração psicologista ou behaviorista 7. Dessa perspectiva é que a lingüística
saussuriana reconhecerá com entusiasmo os esforços de M. Merleau-Ponty na
elaboração de uma psicologia da linguagem na qual a dicotomia pensamento/linguagem
é abandonada, dando lugar a uma concepção da linguagem em que o sentido é imanente
à forma lingüística e que, guardados o tom peculiar do autor e a convergência de vários
pensamentos, parece, em muitos aspectos, um prolongamento natural do pensamento
saussuriano8.
Mais importante ainda será a extensão da teoria saussuriana à sociologia, cujo mérito é
tributável a Claude Lévi-Strauss. Lembremo-nos do estudo convincente de W.
Doroszewski9, que pretendeu explicar a teoria saussuriana como uma aplicação
particular da lingüística de postulados da escola francesa de sociologia. Se, de certo
modo, o conceito saussuriano de língua parece bem assentado na "consciência coletiva"
de Durkheim, mais além, ele a ultrapassa: em vez de exigir o recurso às categorias
fundamentais do espírito, em vez de reivindicar, numa análise ulterior, as distinções
tradicionais e arbitrárias de lógico e pré-lógico, consciente e inconsciente, o conceito de
Saussure permite recobrir, com a noção de significante global, todo o espaço social e,
então, estudá-lo como um sistema homogêneo e fechado. É na interpretação desse
progresso dialético da sociologia francesa que se supera numa de suas disciplinas para
se reconstruir partindo de suas descobertas que reside, malgrado as reticências de certos
sociólogos franceses 10, a ambição perfeitamente justificada de C. Lévi-Strauss de ser o
herdeiro espiritual do pensamento de Mauss e de Durkheim. E quando, recorrendo a
Freud e a Saussure, ele nos conta, em seu Tristes Trópicos, a descoberta, "para além do
racional", de "uma categoria mais importante e mais válida, a do significante, que é a
expressão mais elevada da maneira de ser do racional" 11, a confissão dessa tomada de
consciência sobre as novas possibilidades de exploração sociológica nos esclarece sobre
a significação profunda da obra que ele está construindo.
A famosa distinção saussuriana entre língua e fala [langue e parole] – postulando que à
fala, que se faz notar indefinidamente na duração, corresponde um sistema lingüístico
anterior que torna a comunicação possível, formulado em termos mais gerais por
Hjelmslev, que propõe como ponto de partida que todo processo pressupõe um
sistema12 — está investida de um valor epistemológico consistente. Mais que o
lingüista, que, enredado pela infinidade de fatos de fala e modos de expressão, chega
apenas a constituir, em vez de uma sintaxe, uma estilística de valores sintáticos, o
sociólogo se vê desarmado diante da diversidade de perspectivas de abordagem, diante
da infinidade de relações sociais, reduzido a visões parciais, a estudos de
microssociologia. A aplicação do postulado saussuriano 13 lhe permite, ao contrário,
opor de modo válido o processo da comunicação das mulheres às estruturas de
parentesco; a troca de bens e serviços à estrutura econômica. Mais amplamente: as
relações sociais, objeto da psicologia social, à estrutura social, objeto da sociologia, ou,
para usar a terminologia marxista que M. Merleau-Ponty prefere — manobrando, assim,
uma abertura possível da sociologia à história —, as forças produtivas às formas da
produção14. Essa homogeneidade do significante lingüístico certamente favoreceu, de
início, as pesquisas dos lingüistas de Praga e de Copenhague, cujos esforços teóricos,
notáveis pelos resultados alcançados no domínio da formalização, explicam o
renascimento atual do saussurismo e sua expansão metodológica.
É inútil – muitos outros já o fizeram antes de nós – insistir no fato de que a história da
literatura, elaborada no século XIX, destruiu o objeto literário, reduzindo-o, com a ajuda
de causalidades psicológicas e sociológicas variadas, seja à "história das idéias", seja à
psicologia da imaginação criadora. De tal sorte que um professor de literatura de boa fé
vê seu papel limitado, hoje, ao de professor de "leitura" e concebe sua tarefa como uma
explicação da literatura por meio de tudo que ela não é. O esforço dos lingüistas,
convidados a dar, por razões de ordem institucional e não científica, sua própria versão
do fenômeno literário, é coroado pela constituição de vastos repertórios (tais como os
dois últimos volumes de Histoire de la langue française, de Charles Bruneau), de
figuras e de procedimentos estilísticos. As pesquisas desse tipo, ainda que consagradas
quase exclusivamente ao estudo "da língua e do estilo" de autores individuais,
deslocam, pela sua própria justaposição, a noção empírica de "estilo de época" e
sobretudo postulam implicitamente, graças à uniformidade de métodos empregados, a
existência de um plano único e homogêneo sobre o qual se constroem as obras e se
desdobram os acontecimentos literários. Esse catálogo de formas literárias que, se fosse
exaustivo, constituiria o significante de uma metalinguagem literária, seguiria, porém,
inutilizável enquanto não se afirmasse a existência paralela e imanente ao significante
de um significado global que dê conta da escolha das formas utilizadas e de sua
destinação social, que compreenda, ao mesmo tempo, a estética e a moral de uma
linguagem literária dada. A originalidade do aporte de R. Barthes reside justamente, em
parte, na afirmação da autonomia da linguagem literária, cujos signos são irredutíveis
aos signos lingüísticos simples e, em parte, na evidenciação da significação global das
formas literárias de uma época. Independentemente de qualquer conteúdo que se
proponha comunicar por meio do texto, a escritura – nome que R. Barthes escolheu
para designar o conjunto de signos literários – tem por função "impor um além-
linguagem que é, ao mesmo tempo, a História e o partido que nela se toma"27. Esse
conceito de escritura, que já começa a ser utilizado na crítica literária 28, parece
prometer uma renovação de métodos literários e talvez até mesmo uma nova concepção
da história, como "história da Escritura".
Que não entendam mal as nossas intenções aqui: uma definição como essa da obra
individual é útil, e mesmo necessária, e um grande passo será dado no dia em que isso
poderá ser definido lingüisticamente, leia-se semiologicamente, sem apelar para
categorias estéticas ou psicológicas sempre algo inquietantes. Todavia, as empreitadas
desse tipo, teoricamente válidas, parecem sempre um pouco prematuras quando se
pensa nas suas aplicações práticas e sobretudo na verificação de seus resultados: em vez
de estimular o trabalho de descrição das escrituras históricas, elas o supõem já feito. Os
lingüistas, mais habituados à humildade de suas pesquisas, à lentidão com que os
resultados de seu trabalho finalmente são registrados, não terão dificuldade em
compreender essa observação, que denota mais uma atitude de espírito do que uma
objeção de princípio.
A. J. GREIMAS
Faculdade de Letras de Alexandria
NOTAS
1Este texto foi retomado em GREIMAS, A.-J., La mode en 1830, (texto estabelecido por T.F.
Broden e F. Ravaux-Kirkpatrick), Paris: PUF, p. 371-382.
2 Claude Lévi-Strauss, Tristes Tropiques, Paris, Plon, 1955, P. 47. [edição brasileira: Tristes
Trópicos. Trad. Rose Freire D´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.]
4 Os limites deste artigo impedem qualquer pretensão de situar F. de Saussure nos quadros mais
gerais da epistemologia de seu tempo ou de avaliar a originalidade de seu pensamento em
relação, por exemplo, à fenomenologia de Husserl ou à teoria da Gestalt.
6F. de Saussure, Cours de linguistique générale, p. 157. [edição brasileira: Curso de lingüística
geral. Trad. A. Chelini, J. P. Paes, I. Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1969.]
10Ver sua Introdução à obra de M. Mauss, in Marcel Mauss, Sociologie et anthropologie. Paris:
PUF, 1950 [uma das edições brasileiras: Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Cosacnaify, 2003], e a advertência de Georges Gurvitch, ao precisar que a introdução de
C. Lévi- Strauss é "uma interpretação bastante pessoal" da obra de M. Mauss.
11 p. 47.
12 Op. cit., p. 5.
13C. Lévi-Strauss, "Structure sociale", in Bulletin de psychologie, t. VII, Paris, mai. 1953, p.
539- 370.
17 Cf. a importância conferida por G. Lukács à categoria totalidade: «Die Herrschaft der
Kategorie der Totalitat ist der Trager des revolutionaren Prinzips in der Wissenschaft »
(Geschichte und Klassenbewusstsein, Berlin, 1923, p. 39) [uma das edições brasileiras: História
e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 1989.]
19 É assim, por exemplo, que Knud Togeby concebe a língua em Structure immanente de la
langue française, Copenhague, 1951.
20 Cf. as notáveis análises lexicológicas das noções fundamentais do sistema feudal nos dois
volumes de A sociedade feudal, que Marc Bloch justifica no plano metodológico em sua
Apologie pour l'histoire (Paris, A. Volin, 1949, p. 89) [uma das edições brasileiras: Apologia da
História. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001] fazendo o elogio da "semântica
histórica", da qual os historiadores da época, como Fustel de Coulanges, propuseram
"admiráveis modelos". Cf. também a utilização, por Lucien Febvre, dos dados lexicais com
vistas à descrição da mentalidade do século XVI em Le problème de l'incroyance au XVIe
siècle, ou as páginas encantadoras de Do Kamo - la personne et le mythe dans le monde
mélanesien (Paris, NRF, 1947), de Maurice Leenhardt.
21"Aos homens que, boa parte do tempo, não lograrão atingir os objetivos de seus estudos senão
através das palavras, com que absurdo paralogismo lhes é permitido, entre outras lacunas,
ignorar as aquisições fundamentais da lingüística?" (Marc Bloch, Apologie pour l´histoire, p.
28). Charles Morazé, por sua vez, afirma que os comportamentos sociais não podem ser
conhecidos enquanto nos ativermos "ao tradicional estudo da ética, que é o estudo das idéias", e
crê que "as bases essenciais que nos faltam" poderão ser fornecidas por "um estudo mais
próximo das línguas e da história do ponto de vista moral" (Essai sur la civilisation d'Occident,
p. 207). Essas afirmações, por seu otimismo, mostram muito mais as necessidades
metodológicas da ciência histórica do que o conhecimento das dificuldades por que passa a
lingüística.
22 Cf., a título de exemplo, a confusão metodológica que caracteriza o estudo, aliás muito
interessante, de M. Halkin, "Pour une histoire de l'honneur", in Annales, octobre-décembre
1949, n. 4, p. 433 sq.
23 Jost Trier, Der deutsche Wortschatz im Sinnbezirk des Verstandes, Heidelberg, 1931.
26 Le degré zéro de l'écriture, Paris, Ed. du Seuil, 1953. [edição brasileira: O grau zero da
escritura. São Paulo: Cultrix, 1971.]
27 Ibid., p. 7.
28Cf. Roger Caillois, que, na sua Poétique de Saint-John Perse, Paris, NRF, utiliza largamente
o conceito de escritura num sentido um pouco diferente daquele de R. Barthes.
29Pensemos, por exemplo, no sólido escudo de que se teria revestido a rica descrição da
cosmogonia dos Dogons na pluma de um Marcel Griaule estruturalista (Dieu d'eau, Paris, Ed.
Du Chêne, 1948).
30Assim Boris de Schloezer, em sua Introduction à J.-S. Bach, Paris, NRF, 1947, utiliza com
sucesso os conceitos saussurianos: "Em música, o significado é imanente ao significante, o
conteúdo à forma, a tal ponto que, rigorosamente falando, a música não tem um sentido mas é
um sentido" (p. 24).
35O título da obra de Schloezer já citada [nota 30] é suficientemente esclarecedor das intenções
do autor.
37 Cf. Viggo Bröndal, Essais de linguistique générale, Copenhague, 1943, p. 96, e também a
aplicação característica da mesma noção em sociologia: "O conjunto de costumes de um povo é
sempre marcado por um estilo; eles formam sistemas. Estou persuadido de que esses sistemas
não existem em número ilimitado, e de que as sociedades humanas, como os indivíduos [...]
nunca criam de modo absoluto, mas se limitam à escolha de certas combinações num repertório
ideal que seria possível reconstruir" (C. Lévi-Strauss, Tristes Tropiques, op. cit., p. 183). Resta
saber se a noção de repertório ideal pode ser conciliada com a concepção da história como
processo criador.
38 Cf. R.-L. Wagner, Grammaire et philologie, Cours de Sorbonne, fasc. 1, chap. IV: "La
linguistique statique. Les descriptions d'états de langue".
39 Para o conceito marxista de praxis aproximado da noção saussuriana de espaço social, ver
Merleau-Ponty, Leçon inaugurale, p. 43 sq. C. Lévi-Strauss, por sua vez, depois de ter
sublinhado "a necessidade de introduzir no modelo teórico novos elementos que dão conta das
mudanças diacrônicas da estrutura", insiste no fato de que "a relação entre a terminologia (isto
é, a descrição estática da estrutura de parentesco) e o comportamento é de natureza dialética"
(Structure sociale, op. cit., p. 381).
41Vê-se na introdução do importante Essai pour une histoire structurale du phonétisme français
(Paris, Klincksieck, 1949), de A. G. Haudricourt e A. G. Juilland, o histórico dos esforços dos
funcionalistas de Praga para fazer com que se admitisse o estruturalismo em história. Para a
"tendência ao equilíbrio", ver p. 5 sq. Infelizmente, não houve tempo de tomarmos contato com
a recente obra de André Martinet, Économie des changements phonétiques. Traité de
phonologie diachronique, Berne, 1955, 396 p.