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Oficina de poesia

junho / 2021
carlito azevedo

Adi Keissar • Adina Dabija • Agi Mishol • Al-Saddiq Al-Raddi • Alexandra Maia •
Alvaro Uliani • Ana Amália Alves • Ana Freitas Reis • Ana Ristovic • André Miranda
• Angela Marinescu • Anne Carson • Audre Lorde • Augusto Britto • Beth Ann Fennelly
• Bruna Corazza • Cacau Costa • Caroline Prince • Charles Simic • Christina Autran •
Clarisse Lyra • Cleo Vaz • Dani Umpi • Daniela Storto • Denis Rafael Ramos •
Denise Duhamel • Duda Las Casas • Eric Pestre • Eugenio Montale • Fáthima Rodrigues •
Friederike Mayröcker • Golgona Anghel • Gustavo Galo • Halina Grynberg
• Heberto Padilla • Inês de Araujo • Ingibjörg Haraldsdóttir • Irene Gruss • Jack Gilbert •
João Cardoso Vilhena • Jonathan Fontenelle • Juana Adcock • Leão Zagury •
Lidija-Dimkovska • Lila Andreoni • Luana Chnaiderman • Luiza Mussnich • Márcia Huber
• Marcílio Godoi • Maria Clara Escobar • Maria Clara Parente • Maria Ignez Barbosa •
Mariana Porto • Marília Valengo • Martim Moreau Maita • Moema Vilela
• Montserrat Álvarez • Oksana Vasyakina • Patricia Cavalli • Patricia Peterle • Robin Myers
• Sayaka Osaki • Saburo Kuroda • Shinjiro Kurahara • Silvia Saes • Sofia Mariutti •
Solja Kapru • Sujata Bhatt • Tânia Ralston • Tarsilla de Brito • Thais Henriques • Thiago E
• Tite de Lamare • Úrsula Antunes • Vasko Popa • Venus Brasileira Couy • Vitor Barros •
Wislawa Szymborska • Wu Ang • Yehuda Amichai
Sumário

Aula 1 [31 de maio a 4 de junho]3

Aula 2 [7 a 11 de junho]24

Aula 3 [14 a 18 de junho]50

Aula 4 [21 a 25 de junho]81

Oficina107

Índice272

[Ilustrações: desenhos de Tânia Ralston]


1
Agi Mishol

Adi Keissar
Flor da chicória

Pérsimo/Caqui
Agi Mishol
(Nascimento: 20 de outubro de 1947, Israel)

Gansos
Meu professor de matemática
gostava de me mandar ao quadro-negro.
Dizia que minha cabeça só servia para carregar o chapéu,
que um pássaro com um cérebro como o meu
certamente voaria ao contrário,
e me mandava cuidar de gansos.

Hoje, há anos de distância dessa sentença,


quando me sento sob a palmeira
com meus três preciosos gansos
penso que meu professor de matemática era um visionário.
Tinha toda a razão,

porque nada me faz mais feliz


que contemplá-los
quando se lançam sobre as migalhas de pão,
meneando suas alegres caudas,
paralisadas por um momento
sob gotas de água
quando as orvalho
com uma mangueira,
do que observar suas cabeças erguidas,
seus pescoços estirados
como se recordassem lagos distantes.

Meu professor de matemática já morreu,


junto com os problemas de matemática
que nunca pude resolver.
Amo chapéus
e todas as tardes
quando os pássaros regressam às árvores
busco aquele que voa ao contrário.

7
8
O marco da porta
Já não tenho esse impulso
de sair correndo como os alunos
ao ouvir o sinal
mas tampouco me converto em estátua de sal
quando olho para trás
para cruzar duas vezes
o mesmo rio.

O inverno desnudou as árvores


e a nudez descoberta recorda
que assim é a coisa,
cada folha que vai reconhece sua culpa
se recolhe em si mesmo
para ranger sob os pés do caminhante.

Eu estou descalça
dentro de meus sapatos
nua
em minhas roupas –
retrato emoldurado
na moldura da porta.

Já não tenho o movimento


latente nos pássaros
só o tempo passa e passa
e zumbe ao meu redor
como mosca molesta.

9
Segunda-feira
O que houve?
Houve o doce perfume do jasmim,
um pintado sol laranja
descoberto subitamente
ao cortar ao meio o caqui
sob a primeira torrente de luz.
O azul matinal
das flores da chicória,
o prado inteiro,
um ramo de caracóis
na ponta do talo de uma cebola-albarrã
ah também houve a palavra “alvéola”.
Que mais houve?
O réquiem das cigarras,
ovelhas cor de rosa no céu declinante,
e os suaves, muitos beijos
na orelha do gato
e isso é tudo, eu acho,
isso é tudo o que houve
hoje.

11
A jovem mártir

A tarde está cega e só tens vinte anos.


natan alterman

Só tens vinte anos


e tua primeira gravidez é uma bomba.
sob teu amplo vestido estás grávida de dinamite
e fragmentos de metal. É assim que você entra no mercado
fazendo tique-taque entre as pessoas, você, Andalleb Takatka.

Alguém afrouxou os parafusos em sua cabeça


e te lançou rumo à cidade;
embora venha de Belém,
a Casa do Pão, você escolheu uma padaria,
e ali puxaste a espoleta para fora de si mesma,
e junto com o pão trançado do Sabbat,
com as sementes de papoula e gergelim.
você voou para o céu.

Junto com Rebecca Fink voou


com Yelena Konre’ev do Cáucaso
e Nissim Cohen do Afeganistão
e Suhila Houshy do Irã
e dois chineses que você também levou
para a morte.

Desde então, tantos outros assuntos


vieram ocultar sua história,
sobre a qual não canso de falar
sem ter nada o que dizer.

12
Saburo Kuroda
(Japão, 1919-1980)

Vento de setembro
“Yuri tem faltado à aula de piano?
à noite, dorme certinho às oito e meia?
antes de dormir, escova os dentes?”

é essa a saudação da minha esposa


ao me ver
na sala de visitas do hospital na tarde de domingo

não sou uma empregada doméstica!


digo para mim mesmo
como se não fosse nada
me calo
sim, sim, confirmo com o queixo
entristeço

aquilo que não se transforma em palavras desce e obstrui a garganta

em seguida, é a vez de Yuri


“papai continua bebendo?
bebendo bastante?” “é, ele bebe...”
a pequena Yuri me olha de relance
“... mas só um pouquinho”

seguro a mão da pequena Yuri


ao entardecer, no caminho do gramado

olho para trás


minha esposa é um pequeno rosto na janela do quarto andar do grande edifício branco

o vento de setembro desliza em minhas costas e nas costas da pequena Yuri

coisas como remorso frustram meu coração


as luzes das casas já estão acesas
o cheiro de peixe e fritura espalha-se pelas ruelas
converso em voz alta
com a pequena, pequenina Yuri

“vamos jantar em Shinjuku, Yuri”

14
Montserrat Álvarez
[Nascimento: 1969, Saragoça, Espanha]

Fracasso eu te canto
Fracasso, eu te canto
a ti, que és de pedra, sol e água
Fracasso que és puro
Ergues tua voz no deserto
e te sentas em mesas sem toalhas
Obrigada por desterrar-me do país do sucesso
onde outros vivem cegos pela luz
com suas vitórias que não são mais que fumaça
com sua beleza que não é mais que disfarce
Obrigada por deixar meu rosto nu
fracasso caluniado, que mesmo caluniado salvas
Obrigada por armar-me com dentes na sombra
fracasso generoso
que me deste minha espada
Obrigada por não deixar-me ser alguém que eu não sou
pela alegria de não poder perder nada
nem poder ter medo
Obrigada por fazer só meu o meu pão
por levantar de adobe minha casa
Fracasso, voz do fundo das coisas
a ti, marca de um deus mais exigente,
fracasso, eu te canto,
fracasso que não mentes

16
Heberto Padilla
(Puerta de Golpe, 20 de janeiro de 1932 – Auburn, 25 de setembro de 2000)

O presente
Comprei esses morangos para você.
Pensei em comprar flores,
mas vi uma garota que mordia
morangos em plena rua,
e o sumo espesso e doce
corria por seus lábios de um jeito
que senti que seu ardor e avidez
eram como os seus
a própria imagem do amor.

Temos vivido anos e anos


lutando sob ásperos ventos
como que soprados das ruínas;
mas sempre houve uma fruta,
a mais simples,
e sempre houve uma flor.
De modo que apesar de não serem
a coisa mais importante do universo,
sei que aumentarão o tamanho da sua alegria
como a festa dessa neve que cai.
Nosso filho a dissolve sorrindo entre os dedos
como deve fazer Deus com nossas vidas.
Vestimos casacos, calçamos botas,
e nossas peles vermelhas e congeladas
são uma outra imagem da Ressurreição.
Criaturas das diásporas de nosso tempo,
ó Deus, dai-nos forças para prosseguir!

18
Canção das amas de leite
Crianças,
vistam-se como nos tempos da rainha Vitória
e vamos ensaiar Shakespeare:
ele nos ensinou muitas coisas.
Você será pajem, você o espião na corte,
e você a orelha que ouve por trás da cortina.
Quanto a nós
ocultaremos adagas em nossas saias.
Vamos ensaiar Shakespeare, crianças,
eles nos ensinou muitas coisas.
Os atores já desceram da carruagem.
Divertirão um príncipe dinamarquês
ou a farsa é apenas um pretexto,
um ardil contra as tiranias? E o que acontece
se ao cair o pano
o veneno não tiver ainda penetrado o ouvido,
ou simplesmente Horácio nunca viu o Rei
(foi tudo mentira)
e sequer Hamlet pode garantir que existiu mesmo essa voz
que usurpava naquele tempo a noite?
Ensaiemos Shakespeare, crianças,
ele nos ensinou muitas coisas.

20
bônus

Adi Keissar
(Jerusalém, 1980)

Ars poética
Fui a um evento poético
havia ali um cara
que leu suas palavras
com tom sério
para que eu soubesse que suas palavras eram importantes.

Depois subiu uma garota


que leu suas palavras
com tom triste
para que eu soubesse que suas palavras eram comovedoras.

Depois subiu outro


que leu suas palavras
como tom de ator
para que eu soubesse que ele sabia
ele sabia
ler poesia.

E tudo o que eu queria era


que eles lessem como se
me tivessem levado para um almoço
familiar na casa de seus pais
e enquanto todos comiam
eles puxassem
a toalha da mesa
fazendo voar assim
pelos ares
todos os talheres.

21
[bônus bis, porque as toalhas
não gostam de voar sozinhas]

Wislawa Szymborska

A garotinha que puxa a toalha


Vive há mais de um ano neste mundo
e neste mundo ainda nem tudo pesquisou
nem submeteu ao seu controle.

Agora estão sendo testadas coisas


que não podem mexer-se sozinhas.

É preciso ajudá-las,
deslocá-las, empurrá-las,
tirá-las do lugar e transferi-las.

Nem todas o desejam, por exemplo, o armário,


a aparador, as paredes intransigentes, a mesa.

Mas já a toalha sobre a mesa obstinada,


se bem agarrada pelas pontas,
mostra-se disposta a viajar.

E sobre a toalha: os copos, os pires,


o jarro de leite, as colherinhas e a tigela
até tremem de desejo.

Interessante,
que movimento será que vão escolher
depois de vacilarem na beirinha:
um passeio pelo teto?
um voo em torno do abajur?
um salto para o parapeito da janela e de lá até à árvore?

O Senhor Newton ainda não meteu aqui a colherada.


Que olhe lá do céu e agite os braços.

Este teste tem de ser realizado


e será.

22
bônus 2

Jack Gilbert
(18 de fevereiro de 1925, Pensilvânia, eua
– 13 de novembro de 2012, Califórnia, eua)

falhar e voar
Todos se esquecem que Ícaro também voou.
É o mesmo quando o amor chega ao fim,
ou o casamento falha e as pessoas dizem
que sabiam ser um erro, que todos
disseram que nunca resultaria. Que ela tinha
idade para saber como as coisas são. Mas qualquer coisa
que valha a pena fazer, vale a pena fazer desastrosamente.
Como estar ali naquele oceano estival
no outro lado da ilha enquanto
o amor se extinguia nela, as estrelas
cintilando tão extravagantemente nessas noites que
qualquer um poderia perceber que não perdurariam.
Estava adormecida na minha cama todas as manhãs
como uma visitação, a brandura nela
como antílopes erguidos no nevoeiro da alvorada.
Via-a regressar todas as tardes
pelo quente campo pedregoso depois de nadar,
a luz marítima atrás de si e o céu imenso
do outro lado. Ouvia-a
enquanto almoçávamos. Como podem dizer
que o casamento falhou? Como as pessoas que
regressaram da Provença (quando era Provença)
e disseram que era bonita, mas a comida de lá gordurosa.
Acredito que Ícaro não falhava enquanto caía,
chegava apenas ao fim do seu triunfo.

23
2
Flora Francola

Robin Myers
Juana Adcock
Patricia Cavalli
Sayaka Osaki

Suihanki
Vasko Popa
Robin Myers
(EUA, Nova York, 1987)

O retorno
Esta é a rua onde
você nasceu. Esta é a chave que você perdeu na neve,
e este é o casaco que vestiu para ir buscá-la.
Este é o céu visto da janelinha do avião na manhã em que deixou
o país. Este é o lugar aonde você pensou que jamais iria.
Este é o sanduíche que você comeu na escadaria de uma igreja,
as migalhas que deu aos pombos. Este é o fundo da almofada
que ainda guarda fios de seus cabelos. Este é o verão.
Este é o continente que você cruzou,
a carta que por engano foi lavar com a roupa,
a faca com que se cortou ao picar a cebola.
Esta é a maravilha de poder reconhecer um amigo pela tosse
no quarto ao lado. Isto, embora você esteja dormindo, é um rato
sob as tábuas de madeira do piso, e esta é a luz que as recobre,
e estas são as sombras que salpicam a coluna vertebral
de alguém que está de costas.
Isto é quase o que você queria dizer.
Este é alguém que toca uma peça de Brahms no andar debaixo,
o copo de água que treme sobre o piano, a água derramada.
Isto é raiva, uma aula de direção, um ano de sua vida;
esta é a parada do ônibus, o lençol, a onda de calor;
estes são os fogos de artifício que você olhava
ao longe, florescendo mudos como flores numa colina escura.
Esta é a forma como você olha as pessoas no trem
para depois sentir saudades delas. Esta é a fé, como um nó na corda
pela qual você sobe, e estes são seus dedos ardidos e ralados
ao redor dela. Isto não é uma desculpa. Isto é o mar, dentro
de uma concha. Isto é o mar.
Isto é, ao que parece, o ponto a que chegamos.
Esta é você, se decidir voltar.
Esta é você, se nunca mais.

30
Shinjiro Kurahara
(Japão, 4 de setembro de 1899 – 16 de março de 1965)

Uma raposa

(uma raposa)
Quando cai a neve
sobre a espádua da raposa silvestre
ela se converte numa pálida sombra azul.
De noite sob essa tempestade de neve
a sombra baixa veloz
e sem desvios da montanha,
dando volta aos cercos de uma aldeia congelada,
movendo-se ao redor dos sonhos laranja das gentes.

A sombra azul, antes de que se dêem conta,


está sentada frente ao curral de galinhas.

Antes do amanhecer de fevereiro,


no esplendor de um manto damasco de neve
a raposa regressa às montanhas.
Está prenha.

(um raposo)
No crepúsculo do inverno na montanha silenciosa
um raposo solitário, semelhante a um fino naco de cortiça,
sobe
por uma árvore nua, trifurcada.

Paira no ar um forte cheiro a ferro,


que parece bastante com o invisível caçador
que sobe as escarpas.
Ele reconhece, também, o som de seus passos:
sujo desejo.

O raposo desce rápido da árvore,


e desaparece nas quatro dimensões da desolação,
onde a raposa cor-de-lua o espera.

32
(uma raposa cor de crepúsculo)
Quando a raposa que desce da montanha
cruza uma ponte de argila numa aldeia
o ar todo ao redor se põe cor de raposa.
No crepúsculo da luminescência
a raposa adquire uma cor crepúsculo.
Os juncos sussurram.
O vento sopra desde a aldeia.
A raposa se converte numa fina tira de sombra,
visível ou invisível,
correndo ruma à aldeia.
Deste modo
a raposa mais uma vez captura uma galinha branca.

(a raposa)
A raposa sabe
que não há ninguém
apenas ela na ensolarada
terra seca

por isso
é uma parte e um todo
desse campo

sabe
que chega a ser vento
como capim seco
e até num raio de luz se pode
converter
como se fosse e não fosse
na terra seca cor de raposa
uma existência de sombra

Sabe
correr como o vento
mais rápido que a luz

Por isso
pensa que
é invisível
para todos

33
algo incorpórea
enquanto pensa
se desloca
e apenas
o pensamento corre

Inadvertidamente
em pleno dia
a luz
se deixa ver
sobre a terra seca

(uma pegada)
Há muito tempo
uma raposa correu ao longo da margem argilosa de um rio.
Depois de um intervalo de dez mil anos
a pegada
tornada fóssil
permanece.
Olha e verás o que estava pensando a raposa enquanto
corria.

34
Juana Adcock
(Monterrey, México, 1982)

Do amor e as línguas a ponto de morrer


Em nossas partidas línguas mães,
em nosso inglês rasteiro,
em nosso quarto alugado,
em nosso país estrangeiro,
como nossos amigos imigrantes,
pouco a pouco construímos
um vocabulário conhecido apenas por nós.

Por exemplo:

kamilo, derivado da minha palavra para caminhar e tua palavra para camelo,
significava “o caminho eleito através do deserto”

pardo, eram os “pontos de luz que se queimam na retina depois de olhar o sol”,
também “entardecer”, ou “gato ruivo”

mas kamilopardo era: “lindo” ou “é preciso fazer filhos”

thalassa, de tua palavra para denominar o mar e minha palavra para abater
(talar) árvores, era uma palavra usada para significar “dói na boca do estômago”,
ou “entendo”, ou “o amamos porque é inacessível, como a ponta do arco-íris, ou
a cor azul da distância”

Desenvolvemos nossa própria sintaxe.

O presente contínuo estava sempre se perdendo.

Os artigos remediavam.

Os sonhos eram algo que se via, e não algo que se sonhava.

Não havia objeto indireto.

O futuro era um ato de pureza de vontade. Por exemplo:

shlixá, a palavra “desculpa-me”, era utilizada para significar “tem por obséquio
um cigarro?”, o “por obséquio” era um importante marcador de cortesia, como
quando o governo te telefona para anunciar que tua casa será demolida dentro
de 10 minutos em vez de te pegar de surpresa.

36
Também havia coisas que nunca deveriam ser mencionadas:

a palavra “amargura”

ou a palavra “perdão” ante uma crítica.

Um dia tive que partir. Me ligaram do trabalho, para o serviço militar ou por causa
da morte de meu avô.

Você teve que ficar. Terminar seu livro, ou seus estudos, ou fazer chá de cúrcuma
para sua mãe.

Do outro lado do oceano, deixei que o sol me perfurasse os olhos com suas
agulhas, dando instruções a cada músculo de meu rosto para que não se
contraísse.

Pensei num fio de seda que uniria meu canal lacrimal ao seu. O fio, eu o
imaginei pardo, e cantei canções junto ao leito de morte de meu avô. “A isto
vim para”, me disse. Para era uma nova preposição que significava tanto “desde”
como “até”, em termos de origem e destino. Tinha a vantagem adicional de que,
para você, a palavra significava tanto “junto a” como “mais além de”, como a
maneira como as pessoas ficam juntas nas boas e nas más.

Todas as noites dormia repetindo a palavra thalassa com cada exalação, como
uma onda se gravando no penhasco onde estava encrustada sua casa. Pensei que
isto te ajudaria a dormir.

Depois você me escreveu uma carta dizendo que há meses não conseguia pregar
o olho. Que as ondas exaltavam seus sentidos.

37
Sayaka Osaki
(Kanagawa, Japão, 1982)

Suihanki
Embora deva ter tido um pintor favorito, esqueci
Embora deva ter tido uma
canção favorita, esqueci
Sem poder fazer nada, me pus a cozer o arroz na Suihanki
embora não aprecie essas malditas Suihankis

Ninguém pode saber o tempo que fazia no dia do seu nascimento


Ninguém pode falar com quem morreu no dia do seu nascimento
Decidi acreditar no que alguém ensinou depois
e saí para comprar papel higiênico, que tinha acabado

Enquanto buscava uma maneira de resistir, anoitecia


Enquanto empregava todos os meus esforços em sobreviver, amanhecia
Como não podia me lembrar do que ia fazer
tomei tua mão, já que estavas respirando ante meus olhos

As palavras que anotas em teu caderno de página dupla


e as do livro que me fizaram chorar não são as mesmas
Embora te pareça estranho
me senti tão feliz por isso que me pus a rir

Sobre o tempo que fazia no dia do teu nascimento


contarei quando tiver vontade
Sobre quem morreu no dia do teu nascimento
contarei exagerando e errando
A princípio vais acreditar inteiramente em mim e te surpreenderás
e depois te decidirás pelo ceticismo

O fato de que não me creias


me reconforta, a mim que vivo com a Suihanki
Não perderei a calma embora tenha esquecido meu quadro favorito
Terei confiança em minha alma selvagem

Sobre a esteira azul colocaremos


as bolas de arroz e os produtos cotidianos, trazidos por cada um
e dizes que é como o Hanamí
enquanto vives tua vida

39
Patricia Cavalli
(Itália, Todi, 17 de abril 1947)

*
O coração nunca está seguro, por isso,
mesmo que esteja em silêncio, não se gabe
da vitória ou da indiferença.
Honre aquilo que você amou,
ainda que te pareça não amar mais.
Você está ali tranquila? Se sente satisfeita?
Poderia finalmente, depois de anos
de ingloriosa incerteza, de inquietudes e humilhações,
inverter as partes, ser você
aquela que humilha e comanda? Não, não faça isso,
é melhor fingir, finja o amor que sentia
de verdade, finja perfeitamente e vença
a natureza. O amor cansado
é talvez o único perfeito.

E quem poderá dizer ainda


que não tenho coragem, que não ando
entre os outros e que não me apaixono?
Fiquei numa fila por quase
meia hora hoje no correio;
percorri toda a fila passo
a passo, farejei
odores atrozes de machos
de velhos e também de mulheres, senti
mãos tocarem meu rabo me empurrarem
o quadril. Reconheci
a náusea e a deixei lá
onde ela estava, o meu corpo
se encheu de suor, contraí
uma pneumonia. Não se trata de amor
por mim, mas de horror pelos outros
onde eu me reconheço.

41

Não tenho sêmen para espalhar pelo mundo


não posso inundar mictórios nem
colchões. O meu avaro sêmen de mulher
é muito pouco para ofender. O que posso
deixar pelas estradas pelas casas
pelos ventres infecundados? As palavras
aquelas muitíssimas
mas já não se parecem mais comigo
se esqueceram da fúria
e da maldição, se tornaram donzelas
um pouco mal faladas talvez
mas sempre donzelas.

Este tempo sabático


antes de uma partida, este tempo
roubado do tempo, este tempo não meu
nem dos outros, o tempo da bagagem
e do atraso, este luxo suspenso,
esta rica margem
quando audaz e irresponsável posso
aquilo que nem mesmo os anos me concedem,
onde se apressam os pensamentos mais negligenciados
e são acolhidos, e entre um pijama
e uma camisa se instala majestoso
mas flexível o possível, onde eu poderia
até mesmo te telefonar e me declarar
louca de amor, este único tempo verdadeiro
involuntário que nos é dado
pela graça das partidas, este
que não é nada mais do que uma oração.

(Traduções de Cláudia Tavares Alves)

43
Agora que o tempo parece todo meu
e ninguém me chama para o almoço ou jantar,
agora que posso ficar olhando
como uma nuvem se desvanece e desaparece,
como um gato caminha pelo telhado
no luxo imenso de uma exploração, agora
que em cada dia me espera
a ilimitada duração de uma noite
onde nada me chama e não há mais razão
para me despir com pressa e descansar dentro
da ofuscante doçura de um corpo que me espera,
agora que a manhã nunca começa
e silenciosa me deixa com os meus projectos
em todas as cadências da minha voz, agora
subitamente, gostaria da prisão.

(Tradução do italiano por Carlos Mendonça Lopes)

Quantas tentações
no trajeto
que vai do quarto à cozinha,
da cozinha ao banheiro.
Uma mancha na parede,
um papel que é preciso recolher
do chão, um copo d'água,
olhar pela janela,
dizer olá para a vizinha,
acariciar o gato.
Desse modo sempre esqueço
da ideia principal, me perco
no caminho, me descomponho
dia após dia e é inútil
tentar regressar sobre meus passos.

(Tradução de Fábio Morabito)

45
Flora Francola
(Maracaibo, Venezuela, 1988)

Ninguém me escreveu um poema


Ninguém me escreveu um poema,
não fui ausência,
ninguém pôs palavras numa carta,
na primeira folha de um livro,
num arquivo de Word,
num post it,
ou numa mensagem dentro de uma garrafa
que levem algum de meus nomes ao desconhecido.
Não digo romance nem ideal,
digo que os versos me esquivaram,
que a mais minúscula de minhas células ainda clama
sensação de transcendência
do poema adequado,
sem pretensão alguma.
As letras sumidas na areia,
margem esquecida.
Uma onda terá apagado,
sem violência,
sem tristeza,
o paradoxo do poema onde não existo,
onde ninguém me escreveu.
A garrafa se encheu de água e espuma.
Nunca houve papel.
Nunca houve palavra.
A memória muda cada vez que regresso.

47
Vasko Popa
(Grébenatz, atual Sérvia, Voivodina, 29 de junho de 1922 —
Belgrado, 5 de janeiro de 1991)

A porta
Por que abrir a porta?

Leva-se tanto tempo buscando até encontrá-la. Às vezes está


numa parede, às vezes no teto, às vezes sob a própria cama.

E é tão difícil abri-la. Te arrebentas as unhas só para entreabri-la


e não te podes deter no umbral mais que um instante: o olhar
se nubla, cairias num abismo.

Por que abrir essa porta que não leva a parte alguma? Abres
suas folhas e à tua frente se desvela a escuridão, a oca escuridão. Se
ao menos conduzisse a um outro quarto, a um jardim ou uma varanda
com vista aprazível.

E contudo é preciso abri-la. A qualquer custo é preciso abrir


essa porta.
Para que haja ar.

48
3
Adina Dabija
Ana Ristovic

Audre Lorde
Angela Marinescu
Beth Ann Fennelly

Oksana Vasyakina
Denise Duhamel

Sujata Bhatt
Ganesha
Wu Ang
Oksana Vasyakina
(Rússia, 18 de dezembro de 1989)

Quando vivíamos na Sibéria


para faina, galia, mamãe, papai, vovó, valya, sveta
e a todos os demais, vivos e mortos

quando vivíamos na sibéria


ninguém tinha dinheiro
e mamãe ia para a fábrica só para não perder o trabalho
se levantava às seis da manhã
bebia café na cozinha e fumava um cigarro
depois colocava o casaco de pele de carneiro e ia para a escura parada Druzhba
esperar o ônibus da fábrica
não recordo nenhum verão na sibéria mas recordo os terríveis e deslumbrantes
[invernos
e na minha memória minha mãe está sempre num ônibus coberto de neve
olhando para a estrada através de um vidro embaçado
seus lábios pintados com um gorduroso batom bordeaux
e sob eles um fino véu coberto de geada
ela olha de frente
o caminho
embora tudo possa ter ocorrido de outro modo
e talvez no ônibus ela falasse com o capataz ou com a moça da cantina
é possível até que nunca tenha trabalhado numa fábrica
e agora me parece que ela jamais trabalhou numa fábrica e que nós nunca vivemos
[na sibéria
que ninguém nunca viveu na sibéria
e que sibéria é o lugar onde nunca ninguém esteve
e do qual só se sabe que

quando vivíamos na sibéria


e construíram a central hidroelétrica
nós crianças íamos para a represa com trinta graus abaixo de zero para estar no
[gelo e ainda gosto de contar que
sobre a imensa e branca lisura
mas talvez não seja de todo certo
porque a memória é um pouco mais complexa

58
e ela própria se oculta distintas coisas
sobre minha mãe, sobre mim, sobre meu pai
o qual
odiava sibéria
penso que a memória é aquele lugar
onde o ódio e a ira se convertem em sentimentalismo e dor
e a lembrança contém em si todas aquelas coisas que nunca nunca aconteceram
[com a gente

meu pai odiava sibéria


e disse
trinta anos estive no exílio
terrível terrível terra disse
e disse cheguei do trabalho
voltado contra a parede o rosto voltado contra a parede para não ver
sibéria
voltado para ela para não ver
sibéria
e pensou
na estepe
no pasto queimado da branca branca estepe
na polpa escarlate da melancia aberta
só para não mirar a estreiteza de sibéria
nós vivíamos nessa angustiosa e mortífera região
nós vivíamos e víamos os abetos e coletávamos campânulas de inverno na
[montanha
e quando baixava a água da central hidrelétrica
nós víamos a água limpa e sobre os rostos se nos colava
uma dura umidade de esquecimento e dor

(por trás da janela de seu carro)

havia árvores
havia um arco de asfalto cinza
sobre os famintos montões de neve esbranquiçados
ele gritou
este é nosso país

59
estas nossas infinitamente brutais terras siberianas
isto é tudo o que podem ver nossos olhos
tudo isso nos pertence
e o odeio por completo

isto era sibéria


embora não se possa nomear com uma única palavra
só com a palavra sibéria
mas se separadamente a nomeássemos
aqui teríamos Anagará
aqui Bratskoe shosse
aqui as Três irmãs
aqui Lisaya gora
aqui a central hidrelétrica de Ust-Ilimsk
aqui Ust-Ilim
até que sibéria se tenha fragmentado
e até se dizemos
aqui está nossa taiga
nesse momento sibéria se fragmenta toda

quando nós vivíamos na sibéria nós não tínhamos dinheiro


nós não tínhamos lembranças nós não tínhamos amor
só havia um longo dia pesado e sufocante
no qual todos vivíamos juntos
dentro de um imenso corpo
e éramos um só olhar e éramos uma só dor
e além disso comíamos sem parar
e comprávamos comida
e preparávamos comida
e falávamos sobre comida
e tínhamos medo que acabasse a comida
e temíamos que ela desaparecesse
nós tínhamos medo pela comida

60
quando vivíamos na sibéria não tínhamos amor
todos tínhamos apenas um corpo incomparavelmente grande
angustiado e murmurante
sempre faminto e malicioso
agora não vivemos na sibéria
seguimos não tendo amor
porque o amor
é uma coisa pequena invisível quase como sibéria ou a memória
algo assim ou
mais sádico
nada parecido com as pessoas
e não pertence às pessoas

quando vivíamos na sibéria


não tínhamos nada
éramos árvores afundadas
abertas
paralisadas pelo frio
éramos pessoas terríveis
como a árvore mais torpe
esmagada entre uma e outra
e de uma cortiça molhada abandonada de cor escura
nós vivíamos na sibéria e não acontecia nada com a gente
porque não havia a gente nem sibéria
mesmo assim nós tivemos um pesado pesado pesado pesado
e absurdo trabalho
nós criamos sujeitos
e desaparecemos no espaço

quando estávamos satisfeitos


estávamos felizes
isso dizíamos
se estás pleno
significa que em ti vive a alegria
e não necessitas de nada mais
nós saíamos de casa e caminhávamos até a parada Obelisk
nós saíamos de casa e caminhávamos através do páramo até a loja Tridtsatka

61
nós saíamos de casa e caminhávamos até a montanha para recolher campânulas
[de inverno e ver a central hidrelétrica
e nessa hora falávamos de comida
de como mamãe vai preparar caviar de abóbora
de como a avó comprará um saco de açúcar e fará samagon
e além de tudo
tem biscoitos kiripieshki sabor toucinho
tem kartoshka tem maionese tem pepinos
e se a ti te agradam as frutas no meio da salada
então tem a metade de uma maçã verde
só não esvazies de uma vez o pacote de kiripieshki
quando ponhas a mesa só então esvazies o pacote de kiripieshki
e tem necessariamente o pão negro

quando nós vivíamos na sibéria


a avó comprava para todo o inverno uma caixa de patas
e a guardava na varanda
protegia-a das famintas aves pasmadas
ela vestia uma jaqueta vermelha tomou um machado e foi cortar o presunto
depois disse
chegue nessa pata
pegue-a e marine-a com limão e maionese
depois coloca pimenta e mete no forno
a sopa se cozinhará com a pata
venham comer fatias de pata
venham tem piroshkis com pata
guisei as batatas com pata
venham comer

quando vivíamos na sibéria


íamos às tumbas
e ali deixávamos comida
mas quando voltávamos para casa
já sentíamos saudade das kotletas
e dos doces que tínhamos enterrado

62
quando vivíamos na sibéria
não tínhamos tempo
o tempo não existia em absoluto
todos se orientavam pelo relógio da parede
pelo relógio na torre da parada Yarosama
pelo relógio de pulso
e todos eram pontuais
chegavam a tempo no trabalho
ninguém nunca se atrasava
porque no vazio
nós éramos rápidos e exatos
éramos ligeiros e rápidos
carecíamos de sentido
como bolhas de ar
no vento cinza

quando vivíamos na sibéria


todos tínhamos em comum a morte
a levávamos no porta-malas do carro
e sabíamos tudo
onde os galhos dos abetos jazem sobre o caminho
ali a morte desaparece sobre um caminhão
e então não há mais morte
não existe a morte para ninguém
e não existirá

quando vivíamos na sibéria


tínhamos tumbas no bosque
e íamos até lá
olhar as árvores e pedras perdidas
tínhamos tudo
o cemitério na primeira parada
o cemitério na segunda parada
o cemitério na terceira parada
na quarta parada não havia ali era profundo era um pântano
e num pântano não se pode sepultar

63
quando vivíamos na sibéria
nós vivíamos em um corpo de privação
meu pai não tinha mãos
minha mãe não tinha ventre
e todas as perdas ocorriam
e pousavam no incômodo corpo
e pousavam no descolorido corpo
assim vivíamos ali
em um espaço de aflição prematura

quando vivíamos na sibéria


todos conhecíamos o sabor do peixe de rio
e o cheiro da água gelada

quando vivíamos na sibéria


ninguém de nós recordava
nem a dor nem a nostalgia
e simplesmente íamos
e voltávamos
íamos e voltávamos
e ninguém se lamentava por isso
simplesmente vivíamos e vivíamos
e depois morríamos
como se a história fosse uma pequena bola de cristal
que rolou para baixo da geladeira
e não houve nela nada particularmente importante
que motivasse a ir resgatá-la
e ficou ali jogada e se cobriu de poeira
e todos seguem em frente e vivem
morrem entre as árvores
e não compreendem não compreendem não compreendem
simplesmente vivem e vão para a sepultura
vivem e passam ao redor da água
como se a pena não avançasse
como se a pena não se transformasse
em difícil pesada pedra
como se a dor e a amargura da perda

64
fossem pequenos arranhões
e não algo maior
tão somente a pequena ternura e violência nossa
os que vivemos na sibéria
e nunca a deixamos.

65
Denise Duhamel
(eua, 13 de junho de 1961)

Sexo com um poeta famoso


Ontem à noite fiz sexo com um poeta famoso
e quando acordei e me vi ao seu lado, eu tremi
porque eu sou casada com outra pessoa
porque não tinha nada que ter bebido
porque estava num luxuoso quarto de hotel
que nem reconheci. Eu devia ter dito
desde o começo que foi só um sonho, mas outro dia
um amigo me disse, escreva sobre um sonho,
engana o leitor, mas eu não quero enganar você
assim de cara. Queria que você me ouvisse,
que soubesse que nem sequer me agrada o poeta do sonho, que ele tem
quatro filhos e o mais jovem tem a minha idade, e que o acho
bem pouco atraente, que só o vi uma vez,
quer dizer, na vida real, e foi no meio de um grupo numeroso
onde eu mal consegui falar. Ele me pareceu bem desagradável
com suas observações depreciativas sobre as mulheres.
Inclusive usou a palavra “japa”
que tomei como uma ofensa direta a meu marido que é asiático.
Quando a gente estava começando, eu disse a meu marido
“Você estava falando enquanto dormia ontem à noite,
fiquei ouvindo só para me assegurar de que não
chamaria o nome de outra pessoa”. Meu futuro marido então disse
que não podia se responsabilizar por seu inconsciente
o que me preocupou e me fez pensar que seus sonhos
estavam cheios de louras de biquini de pele de coelho.
Mas ele disse que não, sonhava sobretudo com penhascos
e com oceanos e com vulcões, climas extremos
que presenciava sem poder detê-los.
E eu lhe disse, “eu só sonho com você”,
o que era romântico, idiota e falso.
Mas nunca pensei que poderia sonhar com outro homem –
meu marido e eu nunca tivemos uma única briga,
minha cabeça acomodada docemente em sua axila, meu braço
ao redor de sua barriga, subindo e descendo
a noite inteira, pouco a pouco, como água em um lago.
Se cruzasse com aquele poeta famoso na rua,
ele continuaria andando, célebre sob seus óculos escuros

67
e seu blazer com os remendos de camurça nos cotovelos,
sem lançar um único olhar em minha direção.
Sei que você tem curiosidade para sabem quem é este poeta,
então vou logo dizendo que as pistas que deixei
são falsas, que disfarcei sua identidade,
que você nunca vai adivinhar quem é...
jamais atinará com a resposta certa
e mesmo se acertasse, eu diria que errou.
Não quero causar embaraço a um estranho
que, no fim das contas, poderia ser uma boa pessoa
que apenas estava tendo um mal dia quando o conheci,
alguém que talvez esteja um pouco cansado da fama –
que meu marido e eu consideramos muito grande,
embora na realidade não sei que tanta fama pode ter um poeta americano
se, digamos, o compararmos com uma estrela do rock
ou um diretor de cinema com talento equivalente. Não muita,
e o poeta famoso sabe disso, sabe que
não é famoso de verdade quando lembra de suas dívidas. Sabe que muitos
destes jovens poetas que se agarram às suas mangas
apenas fingem ter lido todos os seus livros.
Mas sorri de qualquer modo, tenta ser útil.
Quer dizer, este poeta tem algumas qualidade que o redimem, certo?
Por exemplo, escreve lá seus iambos.
De outro modo, o que fazia eu em seus braços?

68
Adina Dabija
(Romênia, 15 de outubro de 1974)

Anos e corvos
Ela tinha dezessete anos femininos
ele tinha dezessete anos masculinos
e passavam horas debaixo de um salgueiro.
A seus pés,
a morte pedia perdão por existir
e a luz da lua lhes banhava os joelhos.
A felicidade
deslizava por seus dedos
e pelas comissuras dos seus lábios.

Um dia ela fez trinta e sete anos femininos


e ele tinha dezessete anos masculinos
e se sentaram em um banquinho.
Um corvo os observava sobre o salgueiro, sob a lua.

70
Angela Marinescu
(Romênia, 8 de julho de 1941)

Atração
Um crítico literário escreveu
fazem uns trinta anos já
que eu tinha força interior
e que algum dia
a domaria
e aí convenceria
não convenci ninguém
não tenho força interior
a não ser quando discuto
sobre bobagens como o fato
por exemplo
de todos os poetas acreditarem na amizade
como acreditam em deus
só que eu não acredito
e por isso vivo brigando e não tenho amigos
talvez algumas amigas
mas as amigas não contam
com elas é diferente
um mundo frio fora de um mundo ainda mais frio
meus amigos homens me dão medo
e ao mesmo tempo me atraem
como um copo de vodka
com sangue infectado

71
Ana Ristovic
(Sérvia, 1972)

Olha dentro
Todo o mundo pode se reduzir
ao conteúdo de uma bolsa de mulher:

alguma maquiagem
algum dinheiro trocado
para o trajeto entre duas distâncias
um dólar, dobrado
junto do RG,
lenços
para o muco ocasional
as contas e as chaves
para a fechadura que mandou trocar
e para as que ainda vai mandar
as listas de compras
as listas do que não encontrou
os cartões de um restaurante caro
para provar que estamos satisfeitas,
comprimidos tranquilizantes,
curativos para arranhões leves,
um compartimento para todos os ingressos
dos filmes vistos ano passado,

uma fotos para assegurar


que aquelas pessoas existem realmente,
um espelhinho para assegurar
que o outro tem os dias contados.

72
Beth Ann Fennelly
(eua, 22 de maio de 1971)

Um poema para não ler no teu casamento


Você me pediu um poema de amor
em vez de um presente de casamento, assim economizo
dinheiro. Durante três noites me deitei
no escuro sob o brilho das estrelas. Colei-me ao teto
sobre minha cama. Ouvi todas as canções
da galáxia. Bem, Carmen, preferia
te dar um terceiro jogo de facas para carne
do que te contar o que tenho dentro de mim. Deixe-me
comprar qualquer presente na loja. Não me faça
te contar sobre as estrelas, como elas nos olham
de uma distância que nos revela mínimas e quebradiças,
desde a noiva que coroa o bolo de casamento
até a Virgem no painel
que carrega um vermelho e impecável coração entre as mãos.

73
Sujata Bhatt
(Índia, Amedabade – 6 de maio de 1956)

O que aconteceu com o elefante?


O que aconteceu com o elefante,
aquele cuja cabeça Shiva roubou
para trazer seu filho Ganesha
de volta à vida?

Esta é a pura curiosidade da criança,


a imaginação perquiridora que continua
procurando, buscando uma forma
de crer na fantasia,
um modo de prolongar a história.

Se Ganesha podia ser Ganesha mesmo


com uma cabeça de elefante,
então não poderia o corpo
desse elefante
encontrar outra vida
com uma cabeça de cavalo, por exemplo?

E se encontramos
uma cabeça de cavalo para reviver
o corpo do elefante
quem é o verdadeiro elefante?
E o que deveríamos fazer
com o corpo do cavalo?

A criança se recusa
a aceitar o descuido de Shiva
e busca uma solução sem morte.

Mas agora quando contemplo


o postal emoldurado
de Ganesha em minha parede,
também imagino o cadáver apodrecendo
do elefante decapitado
jazendo desfeito
de lado, coberto de cocô de pássaros
merda de abutre.

74
Oh, esse elefante
cuja cabeça sobreviveu
por Ganesha.

Ele morreu, claro, mas os outros


de sua sua horda, as centenas
de sua família, devem tê-lo encontrado.
Observaram-no durante horas
devem ter se balançado com aquela tristeza lenta dos elefantes...
Como giraram e giraram
num círculo, com suas trombas
olhando para dentro, depois para fora
diante do decapitado.

Esta é uma dança


uma dança coletiva
de que ninguém fala.

75
Wu Ang
(China, Fujian – 1974)

Peitos
Frente ao espelho, pré-menstruais,
ligeiramente inchados;
deixam de ser um par de tecidos macios e se tornam dois pensadores
mantendo um diálogo, exibindo posturas,
saudando-se um ao outro como Presidente e Secretário-Geral,
e discutindo, inclusive, o conflito palestino-israelense
a fim de encontrar uma solução compatível.

76
Charles Simic
(Belgrado, Sérvia – 1938)

Dezembro
Neva
e os vagabundos
permanecem
carregando seus cartazes

num o anúncio
do fim do mundo
noutro
os preços da barbearia local

Mil anos de solidão


Ao anoitecer
quando para de nevar
nossas casas se erguem
muito por cima da terra
no silencioso espaço
a que nem o uivo de um cão
nem o grito de um pássaro chegam.

Somos como os antigos marinheiros:


nossos corpos são o oceano
e o silêncio é o bote
que Deus nos deu
para nossa longa e desconhecida viagem.

77
bônus: da sibéria ao saara

Audre Lorde
(Nova Iorque, 18 de fevereiro de 1934 – 17 de novembro de 1992)

Saara
Alto
acima desse deserto
eu estou
sendo
absorvida.

Platôs de areia
dendritos de areia
continentes e ilhas e waddys
de areia
areia língua
areia ruga
areia montanha
litorais de areia
espinhas e pústulas e mácula de areia
meleca na sua cara inteira por espirrar areia
lagos secos de areia
poças enterradas de areia
crateras lunares de areia
crateras lunares de areia
Leve o seu “já aturei demais das pessoas”
pra lá areia.

Areia minha casa própria


nunca um outro lugar areia
punições de areia
hosanas de areia
epifanias de areia
fendas de areia
mães de areia
eu estou aqui há muito tempo areia
areia barbante
areia espaguete

78
areia cama de gato pique-pega
areia exércitos de árvores
selva de areia
luto de areia
areia tesouro subterrâneo
areia reflexo da lua na água
areia macho
areia apavorante

Eu nunca sairei daqui areia


areia aberta e fechada
curvaturas de areia
mamilos de areia
seios rijos eretos de areia
areia nuvens ligeiras e pesadas e
desesperadas
véu grosso sobre o meu rosto areia
areia o sol é meu amante
pegadas do tempo na areia
umbigo areia
cotovelo areia
jogar amarelinha em meio a um labirinto de areia
eu tenho me espalhado areia
tenho me tornado áspera e lisa
em contanto com você areia
areia vidro
areia fogo
areia malaquita e ouro diamante
cloisonné carvão areia
filigrana prata areia
granito e mármore e marfim areia

Ei você venha aqui e ela veio areia


eu perdurarei areia
eu resistirei areia
eu estou cansada de não
o tempo inteiro areia
eu também vou mascarar minha escura
areia pedra dura

79
4
Al-Saddiq Al-Raddi

Golgona Anghel
Lidija-Dimkovska
Yehuda Amichai
(3 de maio de 1924, Wurtzburgo, Alemanha – 22 de set. de 2000, Israel)

O pátio do colégio
As árvores do pátio do colégio cresceram ou morreram,
e os meninos querem crescer, sair e amar a qualquer preço.

Se vi uma cortina branca


movendo-se numa janela aberta, vi
como as pessoas se amam.

Se vi um barbeiro à tarde
sentar-se na cadeira do barbeiro e barbear-se em frente ao espelho,
vi como as pessoas vivem.

Se vi um grupo de judeus de pé durante a oração da chuva,


e invocando a chuva na terra molhada,
vi como as pessoas se recordam.

Se vi uma criança brincando sozinha


no pátio do colégio durante as férias,
vi a nostalgia.

84
Eugenio Montale
(Gênova, 12 de outubro de 1896 – Milão, 12 de setembro de 1981)

Os elefantes
Os dois elefantes enterraram com cuidado
o seu elefantinho.
Cobriram de folhas a sua tumba e depois
se distanciaram muito tristes.
Ao meu lado alguém enxugou uma pestana.
Era realmente uma lágrima furtiva
tal como a piedade requer quando desarmada:
em proporção inversa à densa
imponência do acontecimento. Os outros riam
porque um bufão qualquer já havia aparecido
na tela.

86
Solja Kapru
(Finlândia, 1960)

Pessoas assim
Não constituem legião pessoas assim
com as quais se poderia ter
um contato direto
onde um único olhar
faz tremer um cabo de aço

Provavelmente não havia nenhuma dessas


nas tuas turmas de ensino fundamental
ninguém que ficasse parado
observando as pessoas numa quinta-feira à noite
no Dragão Azul
nenhuma dessas pessoas no raio abarcado pelo olhar

Essas pessoas estão dispersas ao acaso


ao longo do tempo
ao largo do mundo
Talvez fosse o projeto de vida
de alguém te encontrar
mas era cedo demais
ou tarde demais
e de todo modo num lugar tão distante
contando a partir dos teus pés

E você se senta aí
numa cadeira pintada de amarelo
numa casa de campo solitária à beira de um bosque
Talvez existam umas sete ou oito pessoas
próprias para ti
e elas nesse exato instante estão subindo e descendo escadas
cruzando um corredor cheio de ecos
carregando uma xícara de café vazia
e não lhes passaria pela cabeça a ideia
de pedir um pouco de farinha
a ninguém além de ti

E esse casal que vive feliz aí em frente


esse talvez se escolheu
como quem escolhe uma marca de sabão em pó

88
Montserrat Álvarez
(Saragoça, 1969)

Pesadelo n. 2 Prece
Oh Senhor
minhas asas são muito pequenas meu corpo é enorme
meus seios são como cúpulas de altíssimas catedrais brancas
nuvens titânicas
meus braços e minhas pernas são tão longos
que se perdem no horizonte
meu coração,
cheio de lava vermelha,
é amplo como o fogo do centro da terra
Minhas asas são as de um passarinho
Senhor não posso chegar até onde estás
Necessito asas maiores, Senhor, asas mais poderosas
para poder alçar-me e não seguir inerte
Necessito as asas dos monstros anteriores ao homem
para poder alçar-me até Tua altura em toda minha potência asas de pterodáctilo
Reclamo o poder digno de meu espírito imenso asas de anjo de arcanjo de demônio
E não este estar aqui, à mercê de tudo, vulnerável qual jovem fruta cega
Gato sem unhas, livre com taquicardia, farsa, bordel, ameaça irrisória
Oh Senhor, necessito asas maiores, asas
muito mais poderosas.

90
Ingibjörg Haraldsdóttir
(Reikjavik, Islândia, 21 de outubro de 1942)

Mulher
Quanto tudo está dito
quando todos os problemas do mundo foram
avaliados, medidos e resolvidos,
quando os olhos se olharam
e as mãos se apertaram
com toda a solenidade
sempre chega uma mulher
para limpar a mesa
varrer o chão e abrir as janelas
para afugentar a fumaça dos charutos.
Não falha.

92
Al-Saddiq Al-Raddi
(Sudão, 1969)

Sem respirar
O coração bate
como se ela já estivesse
em tua porta.

Ou como se
todos os pássaros
do céu do meio-dia
a esperassem alvoroçados
em tua janela.
………
Tempo de paciência.
Bosque revolto.

94
Golgona Anghel
(Romênia, 1979)

Não me interessa o que


dizem os dissidentes da ditadura.
Mas confesso que gostava dos chocolates Toblerone
que a minha tia me trazia no Natal.
Não acredito nos detidos políticos,
nem me impressionam os miúdos descalços
que mostram os dentes para as máquinas Minolta
dos turistas italianos.
Não vou pedir asilo.
Desconheço os avanços
ou retrocessos econômicos do meu país.
Já falei de Drácula que chegue.
Já apanhei morangos na Andaluzia.
Já fui cigana, já fui puta.
Escusam de mo perguntar outra vez.
O que me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante
para o fim da história – é saber
quando é que me transformei,
eu que era uma loba solitária,
neste cãozinho de apartamento que vos fala agora?

96
Lidija Dimkovska
(Skopje, Macedonia, 1971)

Requerentes de asilo
O maior centro de requerentes de asilo está debaixo da terra.
São os suicidas, os que imigraram para o outro mundo,
por serem discriminados, reprimidos e torturados neste.
O centro de requerentes de asilo subterrâneo oferece liberdade de movimentação
da periferia ao centro e vice-versa,
três refeições ao dia, e permissão diária para uma caminhada.
Os requerentes de asilo usam pulseiras com uma etiqueta tamanho standard.
Mas veja, os mortos naturais já estão planejando uma greve de fome
contra o excesso de suicidas ao seu redor.
Eles não querem esses imigrantes perto de seus lares perfeitos,
não querem essas cordas por toda parte, essa montanha de frascos esvaziados,
esses ossos partidos nas quedas, esses ventres inchados por afogamento.
No lugar de espantalhos, eles distribuem grandes cruzes em seus verdes gramados
para espantar aqueles que morreram contra a vontade de Deus. Os requerentes de asilo
estão confusos e enfurecidos, com um pé arrastando o tempo todo.
Alguns esqueceram de deixar uma mensagem, outros de beijar a filha,
alguns deixaram uma roupa na lavanderia, outros não fizeram seu testamento,
alguns não cancelaram suas viagens, outros nem tinham encontro marcado com a
[morte.
E agora estão amontoados aqui. Com seus intérpretes no corredor
e pastas nas mãos, estão esperando ser recebidos pelo oficial de asilo.
Nacionalidade, sexo, religião. Muitos têm pais
mas não pátria. Alguns são alérgicos a terra arada,
e sem poder beijar seu chão, partiram para baixo da terra.
Alguns fugiram a vida inteira deles mesmos,
sem ninguém que lhes pagasse os comprimidos contra envelhecer.
Alguns desperdiçaram tanto suas desgraças como sua fortuna.
Outros não fizeram amor com o amor de sua vida todos esses anos.
Alguns morreram não por punhal mas por fórceps.
Entre eles há quem só tenha começado a viver depois de morto.
O centro para requerentes de asilo está lotado, e suas cercas de arame farpado
marcam a separação do mundo dos mortos naturais.
Eu cheguei ontem. Ganhei dois vistos.
Durante o dia permanecerei no centro dos requerentes de asilo
e à noite estarei no lar dos mortos comuns.
Não sei de qual dos dois não voltarei.

98
Diferença
Jesusólogos, Allaólogos,
Constantinopla não tem contemporâneos.
Tudo aqui é profissional,
papel higiênico, máquina de lavar,
elevador, microfone, massa corporal.
Por trás da perfeição, a mente é uma caixa forte aberta à força
que nada esconde agora, exceto o luto.
Vivo junto de um templo que já brotou com caixas de ar condicionado
como adultos com sarampo tardio.
Alguém me pergunta todo o dia pelo interfone
se há um acordeonista no prédio.
O guardião das bandeiras poderia sabê-lo,
uma bandeira negra roída por animais domésticos
ondula de varandas suicidas,
a outra, a bandeira nacional, já perdeu a cor de tanto lavar,
e ondula de varandas assassinas.
Entre o nascimento e a morte, a vida não tem garantia,
a única estação funcionando é a que está dentro de nós mesmos.
Às vezes ardo de desejo de ser uma ferida de guerra
para jazer no hospital sobre uma toalha de praia com uma mulher nua impressa,
recém chegada da Suécia via Cruz Vermelha.
Mas é em vão, porque um dia como hoje tem necessidade de todo meu corpo,
e a noite apenas de meu peito. Não importa com que mão me benza,
os quatro lados do mundo
fazem falta ao coração.
Eu o protegerei imprimindo em minha camiseta
o rosto de Che Guevara ou mensagens religiosas:
Taoísmo: a merda acontence.
Budismo: É ilusão a merda que acontece.
Islã: Se der merda, foi vontade de Allah.
Testemunhas de Jeová: Toc toc: a merda se repetirá.
Cristianismo: Ama tua merda como a ti mesmo.
Só sei tocar uma música no acordeom,
e mesmo ela é recauchutada da história.
Enviei o exame de meu coelho doente a Viena,
e o do santo doente a Roma.
Como Ingeborg Bachman, cada peça de reposição
chega em casa no carro de outra pessoa.

100
A existência jaz num carro fúnebre
à cuja passagem os viventes do outro lado do cristal
tiram os chapéus
saudando como quando nasceu quem agora vai: Adeus-adeus.
Quando o amado regressou de Constantinopla carregando os marmelos amarelos,
Fátima sorriu-lhe amargamente do outro mundo.
A diferença entre o homem e Deus, meu bem, é uma só:
o homem primeiro encontra, depois perde.
Deus primeiro perde, depois encontra.

Meu túmulo
Todos os dias vejo meu túmulo no pátio,
incluída no preço da casa,
com uma tábua que tapa o buraco,
com uma lápide de caliça branca,
com uma fotografia num marco de ouro,
e o ano de nascimento separado por um travessão
do espaço vazio da morte.
O túmulo está ali sob a pereira em frente à casa
olhando fixamente mesmo quando lhe dou as costas.
Na primavera, os gatos afrouxam a tábua,
e os pardais cagam sobre ele para a boa sorte,
no verão ocasionalmente uma pêra podre
arranca um estilhaço da pedra tumular,
no outono a chuva afina sua coluna vertebral, morde seu rosto,
no inverno a neve investe mais profundamente no chão.
É o ponto focal de cada raio,
de cada abalo sísmico é o epicentro.
Se desfaz, se desintegra, de decompõe,
se torna cada vez menor, mais enrugado, é obrigado a ajoelhar-se.
Meu túmulo está desaparecendo ante meus olhos,
está desabando em seu próprio oco, tornando do pó ao pó.
Contemplo-o esta manhã, o que resta dele são apenas
pequenos fragmentos de pedra-cal dispersados pelo vento,
fragmentos suficientemente grandes para construir ninhos,
e a foto em seu marco de ouro
gira que gira ao redor do roteiro entre nasceu-morreu. Minha cova está
desaparecendo cada vez mais rápido,
tal como minha vida.

101
Dani Umpi
(Tacuarembó, Uruguay, 1974)

panoptismo:
estranhei que ele não quisesse ir ao cinema
então me disse que nesse shopping não pisava
nunca mais em sua vida
porque tinha roubado um suéter de lã
da zara, verde com listras negras, tão confortável
e estava seguro de que o tinham filmado
e saiu correndo pelas escadas rolantes
atravessou o supermercado, chegou lá fora, sob o sol
e continuou correndo, correndo até sua casa
quando vi o suéter perguntei porque
não o usava para ir dançar
então me disse que não usava por medo de ser reconhecido
não o usa nunca e o mantém guardado
então eu disse que ele deveria devolvê-lo
porque é bom ser uma boa pessoa
não se perseguir, ficar tranquilo, livre, novo
então eu tinha que entrar na zara com
uma bolsa de nylon com o suéter dentro
e eu tinha que deixá-lo em uma prateleira
mas podiam me descobrir pelas câmeras
e no verão o suéter de lã dá muito na cara
além do mais eu queria saber porque ele não fazia isso
porque eu deveria ir no seu lugar
porque é um egoísta
vive esperando que outros façam o que deve fazer
e ele me disse peraí essa ideia de devolver foi sua
que ele não tinha nada a ver com isso
e que isso não ia resolver nada
que eu queria fazer isso só para bancar o bom sujeito
como se eu me vitimizasse Eu me vitimizando?
eu que estava disposto a devolver o suéter
que ELE tinha roubado? deve estar fora de si
“você que está” ele disse

102
gourmet:
come fora todo dia e cozinha tão bem
e no entanto é magro e sua pele nada oleosa
fala o tempo todo de comida, o tempo todo
que o creme de leite já o salvou de mais de um apuro
o creme de leite e o estragão
sempre o salvam, sim, “me salvam” diz
o creme de leite e o estragão
que neste verão estiveram super out
e os molhos, me diz, já não se servem mais bons molhos, diz
neste verão serviam tudo com azeite de oliva e rúcula
mas as pessoas continuavam pedindo pasta de abóbora
como no verão passado embora a onda neste verão
tenha sido raviolis de batata doce e gengibre
e como sobremesa massa folhada quente de manga e ameixa
com sorvete de creme e coulis de frutas vermelhas
embora nos restaurantes caros de punta del este
os cardápios não sejam bons porque vai muita ralé
cheiram pó e vão comer então qualquer coisa serve
e alguns incluem até batatas fritas um horror
eu disse que só sabia fazer molho caruso
e ele ria e dizia que adorava minha simplicidade
eu não e disse que para mim cozinhar é muito complexo
ele ria e me olhava tipo com vontade de me comer
ele disse que sou assim porque
minha mãe é professora e frequentei colégio católico
assim como “bom, você é uma pessoa boa”
eu não sabia se devia ficar feliz
acho que ele dizia essas coisas só para me seduzir
me dizia que minha letra era a de uma pessoa boa
que parecia um desenho, que parecia um raminho de salsa
a mim... não sei, havia algo nele que não me agradava
algo na boca, eu acho

103
Cinema, comida e futebol
você queria ver o novo do david lynch
a mim me deixam nervoso porque não os entendo
não sei nem no que prestar atenção, quem é o protagonista
essas coisas
mas mesmo assim gosto delas e tudo bem
entro mais ou menos na onda
também não sou tão tapado e inculto
só preferia ir dançar ou ir beber alguma coisa
ou ficar ali mesmo onde estávamos, no parque
de repente podíamos ficar na minha casa
eu tinha sushi do dia anterior, um pouco amargo
mas o molho soyo atenua
caem no estômago e rebatem devagar
era uma brincadeira
você não me dizia o que pensava, nada para você
tinha graça
e você soltou aquilo de que sushi era coisa de snobs
como se eu estivesse oferecendo um quilo de caviar com ouro
quando o que eu queria era justamente economizar
e comer sobras de ontem
sushi velho que andreía tinha trazido de uma festa em W
que disparate! você ficou vermelho, meu amor
sentia culpa por comer sushi
que essa coisa entrasse por sua boca, ser um
“deles”
sua boca era um para-choque, não se abria como porta
teus olhos não prestavam atenção em mim
um time de futebol treinava ali ao lado
trotavam sobre a grama úmida
pareciam ter problemas psicomotores
mas eram atraentemente saudáveis
todos suados; eu via como você os olhava
tocavam a bola com chutes secos
os goleiros não a agarravam e seguiam noutra parte
por uma estranha regra do técnico de adidas
as bolas sempre iam parar perto da gente
bombas se aproximando em câmera lenta
eles não vinham buscar

104
paravam de rolar e estacionavam cansadas
entre nós
eles gritavam “ei, garoto, chuta pra cá”
enquanto eu só dizia que gostava muito de você
mas não suportava mais continuar daquele jeito.

105
Agi Mishol
(20 de outubro de 1947 – Cehu Silvaniei, Romênia)

Sete céus
Alguém que está de passagem pela vida
atira de súbito uma frase
que fere como uma estocada de chifres no eterno
como quando naquela série se disse
que o amor não é arquitetura
mas meteorologia.
Para mim é outono,
o emplastro que pus sobre a perna
cai o tempo todo
e o pássaro novamente me espía
da janela.
Os sete céus se abrem
numa pétala de chicória
e a vida é curta, mesmo quando é longa.

106
oficina
Alexandra Maia

Tentar e falhar
como dizer?
ter a cabeça presa a um pescoço
equilibrado em labaredas
torna impossível enxergar
os bichos todos que andam em volta

na casa cheia
não há um só espaço para o silêncio

bola patinete ipad computador


lista de compras panela de pressão
campainha liquidificador celular
teimosia tpm roupa suja luz acesa
panela de pressão panela de pressão

que medo da vida ser enfim


só isso

108
perdi meu corpo
não o encontro mais
nem no poema
talvez tenha descido ralo abaixo
ou afundado nesse rio que brota fora do lugar
no meio da sala arrancando as tábuas
de madeira todas de demolição

no sofá se estende
um outro tipo silêncio avesso ao ouvir
um silêncio morno sem fagulha

perdido debaixo da almofada


o tempo lambe o que um dia foi
enquanto a lareira tenta
reaquecer o recinto grande demais
para a fria chama azul

o gás encanado substitui a lenha


liga o fogo não pega fogo

109
pense numa pessoa confusa
que quer dizer o que tem que dizer
sem dizer
e ainda assim dizer
com todas as letras
quando o que tem que dizer
é tanto dizer
que não dizer é o mesmo que enfim
nada mais ter que dizer

Alexandra Maia é autora de Coração na boca[7Letras, 1999] e Um objeto cortante [Numa, 2019].
http://www.numaeditora.com/2020/04/08/um-objeto-cortante-alexandra-maia/

110
Álvaro Uliani

Revolução
hoje é seu aniversário
mais uma volta em torno do sol
e ainda não tivemos aquela conversa

taurina, deve estar armando uma festa


eu bem que gostaria de ser convidado
mas você não é de querer fantasmas por perto

deixei um presente na casa da sua mãe


uma roupa branca, pra você usar às sextas-feiras
uma sandália vermelha, pra espantar quebranto

o iChing disse que não era hora de grandes passos


só tive o silêncio solene como resposta
e me sinto um hipócrita

a verdade é que nunca me relacionei com seu signo solar


era a sua lua em aquário quem me acolhia
e o nascer lunar não tem data no calendário gregoriano

quem sabe um dia te entrego este cartão


junto com seus livros, seus discos e roupas
e tantas outras coisas que você deixou em mim

Junho de 2021

111
Ana Amália Alves

Ruminações
Interessa-me o caos do início das coisas
(Ana Freitas Reis)

Hei de comer coelhos


mas por enquanto espanta-me cortar e ver
na frigideira com óleo as orelhinhas, os pompons,
o nome Perna Longa até o ponto de crocar na boca
Hei de mastigar um pato, toda a sua carne
bem passado, senhor, sem o bico, por favor
mas hoje não consigo mesmo com molho
deixar de ouvir os quacks e imaginar o feinho
nadando na lagoa gelada sob o sol inocente
sem saber de si, nem do emboscado, comerei
como todos por aqui, hei de comer
sugarei conchas e tudo que as mexe por dentro
lambuzarei minha boca e minhas mãos com rãs na manteiga
cavalos deslizarão guturalmente com ajuda
de saliva criada instantaneamente por
aperitivos de pinhos infinitos coisa forte
cerra a garganta grossa gruta onde tudo passa descerão
mesmo que raspando mesmo que deixem rastros
e espremam como um alho um grande calo
laringo-lingual, o nó abissal, a criança
segura o choro e engole aqueles
rostos azedos encarando-a sobre a mesa de jantar
porque ela solitária, sem forças nem palavras,
simplesmente não pode recusar.

112
Parfois c’est qu’en langue
étrangère moi
entre tous ces mots
d’ailleurs légère moi
je peux je
regarde avec ces yeux là
et parfois envisage
mon accent encore
à moi plus fort
puissant et seul
une tonalité entre timbres et éclats :
ma voix qui chante
sans dire un mot.
 

Désolée, monsieur, j’ai une petite question


Une voix
derrière un mur
si personne
écoute
est-ce qu’elle existe
ou pas ?

Ana Amália Alves é autora de O livro do preenchimento [Patuá, 2020]


https://www.editorapatua.com.br/produto/116843/o-livro-do-preenchimento-de-ana-
amalia-alves

113
Ana Freitas Reis

O cavaleiro, a morte e o diabo


Um pouco antes do fim
A máquina do mundo
abre a denúncia da fome;
testemunho descalço.

Na viagem, atravesso
o rio; creio no tempo.
Desejo é linguagem.

Comovem-me as falhas
das cabeças,
a escala dos tamanhos.

A roupa justa
exibe o sopro
do monstro.

Gota a gota,
reencontro
a infância.

É preciso abandonar
o corpo; a lição
das folhas em queda.

Dádiva é existir
no milagre
emprestado ao chicote.

Um pouco antes do fim


tem uma ponte
do tamanho do teu corpo.

114
Um pouco antes do fim II
Olhos negros Nosferatu;
delírio
em espírito de terror.

Contrapeso
iminente da queda
— um embalo.

Perante a tragédia,
a comunidade faz-se.
Convoco a comunhão.

Recuso a utopia dos deuses,


creio nas palavras bilabiais
como forças: boca, beijo.

Não sei rezar


o anónimo, anónima
dificuldade de estar no corpo.

Salto sem osso, pele


aberta ao silêncio: no rosto
o infinito que te habita.

115
Um pouco antes III
Perguntas-me sobre o espanto 
de que somos reféns 
no abismo e na descoberta. 

Despimos as roupas
do corpo, sai um espírito. 
O veludo rasga-se por extenso. 

As grandes asas. 
– erros do quotidiano;  
a renúncia ao assíduo. 

O ovo obedece 
à galinha, ao serviço
de segunda à sexta. 

Regressas na manhã
ao submarino, maçã na boca. 
O amor ao longe. 

Habita-me o incómodo. 
Convivo com o estranho 
familiar que fomos. 

Toda a noite 
é clandestina, balada patética. 
Li poética, como a lápide na sepultura. 

A desobediência 
de um coração cantante 
pesa agora na flauta do silêncio. 

116
Um pouco antes IV
Recito às escuras
o caminho, canto
palavras baixas.

A oração
eco
dentro do tempo, é oco.

Nascente nómada,
cumpro o tropeço
– lava peregrina.

A vida estreita-se
neste copo de vinho.
Configura uma mudança atómica.

O vento antifascista
derrubará todas as estátuas.
As cabeças fora do vácuo.

Sem ensaio, o sonho,


pequena coreografia poliforme.
És agora, de ti em diante.

117
André Miranda

dobrou as esquinas
e viu a cidade 
em origami

Ao meio-dia 
solidão inteira 
nem a sombra é companheira

118
Augusto Britto

Dá uns amassos num leão pra mim


Janaína, quem me dera
O hálito de carne e sangue
Dura pouco
Diante do bafo do carburador

Woroworo
Bakawaka
Queremos chegar
E gritamos no caminho
Queremos ganhar
                                 o sorriso
                                 o sorriso
                                 o sorriso
É preciso alimentar, Duda
Nós tamo cheio de fome

Um dia houve muito marfim


Um dia também houve muito pau brasil
Em alguns lugares ainda se acha
É o boato aqui em casa
Talvez saiba melhor o povo do fogo
Peuple du feu
Senoufô

Os elefantes fugiram da reserva


Invadem cidades
Uma migração de mais de 500km
Até onde?
Até onde?
Tem como acabar bem?

Do outro lado do planeta


Uma menina
Empurrou um urso
De cima do muro
Pra salvar um cachorrinho

119
La valse des étoiles
Je crois que la notion est amoureuse de la vigne
La culpabilité exonère l’aurore
Le millepatte souffre la peine

La samba te fait
Mais c’est une corvée
Et je t’entends sourire

La variété des images


Fleurit sur les toits
Et le sait très bien

J’ai peur du noir


Avec mes mains fermées
Heureusement mon djé est calé

C’est aléatoire
De vomir nos tripes
Et ça nous rendra heureux

Bassam est morte


Les marbres colorés s’unissent
La plus étroite
Et émotive

Icare !,
Toi qui des mondes ignorés
A su gravir la splendeur
Non sans plaisir
Et sera récompensé par l’ultime dévouement

120
 

A valsa das estrelas


A noção está apaixonada pela vinha
A culpa exonera a aurora
A centopeia sofre a pena

O samba te faz
Mas é um labor
E eu te escuto sorrir

A variedade das imagens


Floresce sobre os telhados
E o sabe muito bem

Eu tenho medo do escuro


Com minhas mãos fechadas
Felizmente a grana tá rolando

É aleatório
Vomitar nossas tripas
E isso nos tornará felizes

Bassam está morta


Os mármores coloridos se unem
A mais estreita
E emotiva

Ícaro!,
Tu, que mundos ignoraste,
Soubeste ultrapassar o esplendor
Não sem prazer
E serás recompensado pela última devoção

121
Bruna Corazza

quem me espera do outro lado da cachoeira


no entremeio oco de som
sentada com o rosto coberto com a própria coroa

da cortina de ouro
que eu não daria conta de ver

é Oxum

toco os pés nas águas geladas


ando pelas pedras ao encontro dela
enorme ela se senta atrás da cachoeira

abaixo a cabeça
me aninho no seu colo
e ela fala direto no meu coração

é d’Oxum

no pequeno instante adormeço


com o som forte da água em queda
quase que livre
e me livro de todas as coisas
dentro do amor gigante
dourado e negro

da minha grande Mãe

122
Descanso n. 3
as mulheres com rosto de diamante
tecem com o fio escarlate
a própria trama

as maçãs do rosto saltadas


do pomar de outro mundo
mostram onde é preciso
cavar fundo
para encontrar os ossos
os tesouros perdidos
roubados
lançados à sorte

as mãos ensaguentadas
cavam ainda mais
e descontroladamente
até tocar o covil

e voltar de lá
deslocando-se com delicadeza
num golpe violento
de quem viu muito
e ainda sente a dor da mordida

124
Ainda sem rosto
Do outro lado da pista
no meio da marginal
o menino dança

peço para todos os santos


que nada de ruim aconteça

aperto os olhos para tentar ver melhor


e ao redor do menino
bailando
está Maria Bueno pisando
rodopiando e rindo na encruzilhada

respiro fundo para saudar


o povo do rua
o povo excluído
o povo que dança suas dores
que bebe suas mágoas

Do retrovisor
o menino dança no meio da marginal
cambaleando o corpo
de um lado para o outro
de braços abertos e olhos fechados
para o mundo que
nem ele
nem eu
nem ninguém quer ver

126
Cacau Costa

Primeiro, você descobre. Se encanta com a forma. A vista engole o porte de festa.
É sagrada a cor e remete a primeira comunhão. Deus te deu a condição de salivar.
Segundo, você toca. O design perfeito de um ovo. Toca e aperta como se nunca
tivesse tido mãos. Gaba-se de ser pioneiro. A masturbação na via da glória. Terceiro,
você abre. A sensação é de ser um colonizador. Você impõe hinos e bandeiras.
Quarto, você goza para além da superfície. É viscoso e afunda. Não é mensurável.
Acontece. Quinto, você percebe o plástico. O invólucro transparente. Você acha
que ela é de plástico frágil. Então você se irrita, porque você pode. Você esquece o
tempo que o plástico demora para decomposição. Você grita, agride, violenta e ri.
Sua risada é mais frágil que o plástico. Você a cobre de laivo, você goteja. O pincel
é duro. Você sente raiva e nunca nota que a raiva é um espelho. A tinta magenta
respinga na imagem do teu nariz. Por último, você nauseado, a encontra de verdade.
Escondida dentro do plástico. Com as antenas nuas. O estado é de espanto.

127
Sem capacetes
eu e meu irmão mais novo
pedalamos de bicicleta
na praça dos cavalos
no breu sem capacetes

nosso pai brilha à deriva


dispensa aventuras
e com tessitura grave
sussurra sobre o risco

das piscadelas ante


meu mamilo adolescente
parece manteiga dura
recém aberta do pote

não me incomoda o roçar do top


tampouco a ameaça dos cavalos
aqui só lateja o meu lânguido
e amarelo amor
pelos homens

128
Tesourinha
Passei anos tentando mudar minha mãe
depois desisti e acreditei por muito
na minha felicidade culminando no dia
que meus pais revelassem todos os dentes
com a curvatura apontada para cima
fiquei triste por anos.

até me atentar ao espelho


reparar que a curvatura
apontada para cima
é expressão de esforço
o sorriso só é servil
ao próprio dono
e semelhante aos pés só
obedecem um único
comando.
‘’estes são os filhos do corpo’’

quando entendi isso desisti


de mudar meus pais ou aguardar
ansiosa pelo sorriso
tais expectativas agora me soam
como pegar uma tesourinha
e cortar as unhas do pé
dentro de um ônibus.

um dia meus pais irão sorrir


e eu estarei calçada
dentro do ônibus
que corta a cidade
enquanto olho a foto
a foto na qual esses dois
revelaram
todos os dentes.

talvez eu também esteja


com a curvatura apontada para cima
quando este mesmo ônibus curvar
a linha abaixo do horizonte.

129
Plano

pelados somos
uma parte
do plano

na minha pele
um prelúdio
fotografada
por teus dedos
lúcidos

a formiga espantada
espia
em ângulo
holandês 

130
Caroline Prince

E etc.
Há marcas dos teus passos
em algum caminho
não longe de onde
a ponta dos meus dedos
desenha flores e etc.

vacilam diluídas em água


um canteiro um riacho um quadro
e hoje esqueço
De olhar a estrada
e fabricar cruzamentos com
passos de dança

Danço e piso na ponta dos pés


crio atalhos que não sei aonde dão
nascem cores novas de folhas novas
que ainda não dei nome nem
número

o pó da estrada às vezes pousa na minha


roupa a lembrar você que caminha

Minha memória cresce sem raízes


Olha-me de novo
as rotas têm nos levado a qualquer lugar
devagar
Clarisse diz que
o inesperado bom também acontece
Por ora basta-me
ver as rosas crescerem

131
Christina Autran

Uma pedra real e tangível não é uma metáfora  


é uma pedra e tanto 
e mais parece uma proa de navio 
aportada no meio do gramado em declive 
ali, muda 
em toda a sua majestade 
com a coroa vermelha de cristas-de-galo 
entrelaçadas com damas-da-noite  
amarelas como um sol pálido 

sendo uma pedra doméstica 


morada de um grande lagarto  
e dos sapos 
que se abrigam em suas fendas 
é a primeira coisa que vejo  
tão logo saio da cama 
e abro a janela para conferir  
a evolução das plantas 
o que mudou da noite para o dia 

e assim foi que 


um dia me dei conta de que os galhinhos da hera  
que vinham galgando aos poucos a sua superfície rugosa e impávida 
num labor milimétrico e constante 
a haviam transformado em outra pedra 
com penduricalhos que lhe roubavam a dignidade 
florzinhas nascendo aqui 
uma pequena samambaia acolá 
adornos da própria natureza que a apequenavam 

ao contrário de nós 
que aqui estamos de passagem 
com nossa comum arrogância humana 
esta pedra magnífica e alta 
que ali se ancorou 
sabe-se lá quanto tempo atrás 
uma vez despida 
dos invasivos excessos 
hoje reina sob o fulgor da lua 
a natureza triunfante 
repondo a harmonia dos espaços 
que jamais serão obsoletos 
como nós

132
em que viver sozinho não é deixar de viver junto
ou
coisas que vêm de um lado cinza da mente
veja o suficiente e anote
ela se diz
vamos observar bem

e sendo a pessoa um oceano


traz ela mesma e o teatro do mundo que a cerca
com suas falas
tudo e todos
formando
um sistema complexo
interdependente
em que o que lhe diz respeito
é parte de algo mais amplo
algo que arrisca se espatifar
em tantos outros mundos
de impossível convivência

e todos estando juntos


e sendo formados da mesma matéria
coaduna o seu ritmo próprio
a um ritmo coletivo
reverberante

como ouvinte do mundo


quando ele parece esgotado de surpresas
em dias de incêndio
em tempos confusos
pensando que a solução tem sido tentar
destapar o sol
abrir clareiras no escuro
agarrar-se às pequenas alegrias
instaurar o frescor de novas possibilidades

sabendo que estamos vivos


ainda

133
meu coração é quente, peludo, e tem dente

à frente dos meus olhos acompanho diariamente os voos incessantes das


borboletas azuis e amarelas diante da janela como se houvesse uma torre de
comando as direcionando: azuis por aqui, amarelas por ali, e nada de trombar
com os demais insetos voadores
nas costas dos meus olhos porém tento abarcar outro tipo de vida, aquela que
lhe quero repassar em detalhes para que um dia, se curiosa, saiba o que fomos
e vimos e sentimos os cheiros quentes, os ouvidos gulosos, os olhares sobre o
que se foi, esse vigor louco que força a vida a se agarrar mesmo no ar vazio e
além do alcance da visão
seja a palavra insuficiente e me condene ao fracasso, “se esta é a maldição, é
também a beleza pungente desta busca”, neste planeta que dividimos com
criaturas que no futuro poderão ser imaginadas como tão estranhas quanto
seres do espaço sideral, embora as tivéssemos nomeado, e sua infinidade de
alegrias e dores

Rio, junho 2021

Christina Autran é autora dos livros de poemas Na ponta do lápis [Nova Nórdica, 1984],
Sem risco de animais na pista [Bem-te-vi, 2016] e Pelos poros [7Letras, 2021], entre outros.
https://7letras.com.br/livro/pelos-poros/

134
Cleo Vaz

Das paredes, cetins queimados


enraizerrante, uma relíquia salva de um escombro
aguas turbias, os passeios no bosque
embrenhada no êxtase.
Sambei, escutando Cartola
a conversar sobre a vida:
uma esperança vaga.
Furos circulares na meia calça de nylon daquela star
marcados a fogo de cigarro
no lavabo da danceteria.
Tender is the night
o silêncio é uma resposta poderosa 
scarfaces, somos ossos triturados
pilhas de possíveis passados
a garrafa detém outra coisa dentro dela
a cicatriz com que nos confrontamos
dia a dia, fico mais adereçada
cum panis
escrevo um poema sobre o poema
por parte do pai, o latim
e essas pedrinhas, compondo o meu colar elétrico.

135
Vera Ballroom
Perdi um voo
fiz hora na lojinha de cds do Tom Jobim
e só ouvia Belchior.
No próximo avião, fiquei cantando As Paralelas
até Recife.

Fui a uma festa num duplex acanhado


lá nos Três Mosqueteiros
as pessoas todas apertadas
e à outra festa, no meu futuro apartamento
adornado apenas por uma tapeçaria de onça
que não me sai da cabeça.

Tenho medo de perder a defesa de tese


tipo dar tudo para trás
mais uma festa, com a pantera negra
me seduzindo, a desfilar pela grama afora
você é uma tigresa
e às demais festas
em que eu não conhecia ninguém
mas acabava na cama, assim mesmo
acordando sozinha no domingo, ao som daquela bandinha.

Há um fog, encobrindo a areia


tampando a luxúria e a maternidade.

136
Domingos
E depois como é que eu posso comprar
Estando a perigos
Novas sandálias pra você sambar?
Jorge Ben

Domingos sem Domingas


no pomar, os cajus me surpreendem
em sua arquitetura
o fruto propriamente dito, em forma de C
e o pseudofruto, corpo rosado.

As sandálias novas pra você sambar


de Reis, de Páscoa, de carnaval
o charivari amoroso.

Você me deu o seu tudo


na caída da noite
ilhado em mim.
Há fumo nesses olhos
um poço repleto de coreografias.

Somos simpoiéticos, eu e você, Domingas


dançando espantas o fantasma
escondido atrás do cortinado
a compor o livro de êxtases.

Depois, descalça no parque


tateias o feérico
enquanto a vida vai passando
o tempo do relógio
versus o sensível
e ninguém vê o que acontece
porque é verdade
como o delírio de Nijinski
traduzindo o real
como as tuas sandálias
em que há toda a metafísica
 o coração palpitando 

137
contra a sequidão do costumeiro
e as gentes laboriosas.

Eles dançam porque sentem.


Uma por brinco
outro, o grito.

138
Terra Firme
Um homem e seus trinta anos
Um homem e seus trinta amos
Um homem e seus trinta corpos
Como os nós de um tronco
E os anéis de trinta mortos.
Affonso Romano de Sant’Anna

O porto, o navio, à nossa sombra


terra firme
procuramos um caminho para nos perdermos
uma posição para viver.
O passado nos persegue
aonde vamos.

Aqui o céu é tão estranho, sólido


o azul se mescla ao ocre árabe
e o sépia é desvelado
pelo filme que flagra 
o nosso agora.

Tem um cheiro estranho, tudo isso, a transaariana


ele não sabe que sabe que é traído.

Não sei se acho boa ou ruim, a África


você poderia ser feliz, aqui?

Chega de flautas ao anoitecer


tudo vem de Ga’a – a pele de avestruz, a do tambor.

Eu estava tentando voltar da morte


é tão distante
não há ninguém.
Enterrar as roupas do passado na areia
tentar me libertar de uma identidade antiga
que permanece grudada na pele
é o meu personagem.

Para renascer, escrevo meus poemas no papel couchê


e os recorto em forma de bandeirinhas de São João. 

Cleo Vaz é autora do romance Vera Ballroom [7Letras, 2020]


https://7letras.com.br/livro/vera-ballroom/

139
Daniela Storto

O homem do casaco marrom

i – visão
o vemos desde há muito

em algum trecho do caminho


lá está ele
em seu casaco marrom

há dias em que atravessa a ponte

como se o vento trouxesse areia em sua direção:


o queixo próximo do pescoço
a testa um segundo antes do resto do corpo

há dias em que atravessa a ponte


como se a gravidade gerasse outra equação
sobre as moléculas do ar poluído:

os ombros girados para frente


a estatura agigantada tornada um C

há dias em que atravessa a ponte


como se de sua cabeça saísse uma fumaça
de pensamentos soprados
por seu bafo pessimista:
são ideias recorrentes
retiradas uma a uma
de um maço com ilustrações macabras

há dias em que troca o casaco marrom


por outro, de corte semelhante
preto convencional e soturno

ii – repetição
caminha

cada passo entre a casa e o trabalho


é lento e obedece ao ritmo da locomotiva
em seus primeiros esforços

140
iii – variação
– não o vimos por dias seguidos
tememos por sua saúde
consideramos nos desencontrarmos para sempre

– nos preocupamos quando


comemorando o encontro esperado
apontamos com o dedo
de forma tão indiscreta

– um dia, o flagramos sorrindo

iv – imaginação
em seu casaco marrom
galga asfalto grama concreto poça

diariamente o vemos -
ainda assim, é uma surpresa
um prêmio um tropeço

na encruzilhada inusitada
esbarramos
mais uma vez
em seu corpo-poste: (pausa)

já debatemos diversos tópicos


a respeito do nosso homem de casaco marrom

a cada hipótese ele se curva


como que sob aplausos, salta
e seu corpo-ponto
interroga

mirante, ergue o raro sorriso


e seu rosto-lua
sugere a comédia das conclusões

v – dimensão
ao chegar
despe a casca
senta na cadeira giratória
retira os óculos e limpa
com vagar, as lentes retangulares e leves

141
e é ali que
um dia serve
e toma
os rumos inesperados
do devaneio

142
Marion on the rocks
pedra lançada ao mar
ela singra
sua vida parada
não é mais

ela migra
das teclas duras onde marca cifras que não são suas

ao quarto só linhas:
uma sob a qual se deita
– como quem boia no oceano
– por que nos parece plano?
outra que a desorienta
raios
entre o céu e a terra

dos lençóis freáticos à camada de ozônio, queda


e lançamento no vazio da estrada
noturna
torrencial
à beira da qual está:
em torno da mãe,
em forma de homem,
o pântano.

143
A cantora entra na cozinha do navio; bebe do copo d’água;
derruba e cai
era necessário
que a boa cantora tivesse
uma história
mas ela quase que não
fosse hábil
mas ela nem
sempre foi
julgada
ela não
sutil
inteiramente
afinal boneca
pois mecânica
nos trejeitos
espelhos à maneira
dos quadros
se balbuciam
reconhecíveis
começo ou fim, época
de observados
pesadelos
muitas vezes
consistem

144
A lã
(ao teu casaco)

é toda feita de
e toda feita de cordeiro carneiro ovelha cadela?
como é feita
não é toda
a lã é uma
comunidade
arrancada de seu local de origem
lã prisioneira refugiada
em teu casaco continente
atmosfera dentro-estufa
que barbáries habitam teu passado
que sedimentos cabem no seu bolso mágico

urde teu corpo epiderme


sobre o qual se derruba
que carrega
afirma e cobre
afasta de dia
à noite confia

aos cosmonautas, superfície arada


ora plano
ora acentuadas elevações
declives
eventuais geóglifos indagam com sulco e morro
cadeias
barras e grades
trincheiras

[vista do espaço
a rosa dos ventos é
tal e qual
roleta, roseta].

145
Denis Rafael Ramos

Então invocas o passado


E trazes-me aos ouvidos
O que um dia de teus lábios
Feria e foi perigo

Sei-o porque teus lábios cantam


Como canta o leito
Que por tantos anos desfruí do
Nosso lúrido rio

E aos meus olhos ressequidos


Teus olhos vívidos desvelam
Tenção de desculpas
De promessas
De aliança
E prenuncias-me hipóteses do futuro
Que parecem acertadas
– A ti, que me cegaste

E teces diante de meu rosto sombrio


De elmo – este rosto frio –
Uma plana tela e colorida
E sobre ela, não sei se céu
Não sei se prado
Onde erigir um santuário
– É o que sinto ensaiares
Com teus divinos gestos
– Tu que me cegaste

Como a distante Cartago


Que ninguém ousa reconstruir
(Pois toda a sua beleza consiste
na solidez do que dela resta e
Lentamente
Lentamente está a derruir)
Mostra-me – tu que me cegaste –
Do nosso amor, as ruínas
Mostra-me o Belo que é
– Não o que foi
Não o que haveria de ser
– Mostra-me só o que de ti, agora
Eu poderia tocar (que já não posso ver).

146
Duda Las Casas

Ele me levou para casa 


tirou da fábrica 
no delivery buscou 
a mamadeira
serviu o prato
um filme 
o que ela queria com aquilo tudo 
Arrumar as trouxas 
dar as bicadas
fugir das 
trincadelas 
Tão rápida 
a intimidade 
passou pelos
caldos 
E eu chupava tudo 
comida Armênia 
com água gaseificada 
Ele
ainda
ficou imaginando o que mais poderia 
fazer para agradar uma mulher 
brava e peluda
A língua conseguiu chegar 
até
no umbigo 
Mas antes de levá-la ao ponto 
achou melhor pedir um iFood
Aí então 
veio a consciência 
por onde o 
desejo passava 
No fundo
ela só queria mesmo
uma mesa cheia de fartura

147
Rompe corações
Estamos todas cansadas
de preparar as flechas
E ainda
ter que insistir
para que não façam a barba

148
In box
“todo poeta é uma criança nostálgica”
O Hierofante

Parece que
vais me dizer
algo importante
chego a lembrar
qualquer mensagem
mesmo uma
bomba
é uma notícia
boba
Ainda sim
insisto
por
uma resposta
como
sinto que
me aguardam
os limites
brinquedos
e
o que mais
deixei
por arrumar
na sala da casa dos meus pais
Eu tenho um fósforo gigante 
para acender 
no mercado livre 
a bola do vidente que fazia aranhas 
na praia da armação
sem dinheiro para a passagem 
Dos navios latinos
Eu vejo
as banhistas 
pintadas com lápis de olho
viram gatinhos
embebedados
com
lágrimas de mulher 
por cima 
colírio Moura Brasil 

No prato 
flores que na água quente
viram peixes 
em alto 
mar
te avisto 

É terça-feira
você me ganhou 
com um pedido de desculpas pelo atraso
uma posição radical
No primeiro encontro
Eu não preciso pagar nada 

150
Eric Pestre

Montagem
À noite acordado
Começo a te montar

Procuro pelos seus cabelos


Com mechas de duas cores
Passo aos teus braços

Encaixo as tuas unhas


Me confundem os dentes
Paro em teus seios e

na diferença entre eles


deito o meu rosto
onde descanso

As primeiras luzes naturais


revelam a falta de muitas peças
do seu quebra-cabeça

151
Mudança de estação
Não gosto dessa música. Mudo de estação.
Estendo a toalha à margem do rio. Passo os dias
na temperatura de roquefort e beaujolais,
com o paletó descansando sobre os ombros,
até a baldeação Châtelet – Praça XI.

152
Fáthima Rodrigues

Embrulho da agonia
Desconforto oprime peito coração unhas dentes
Me socorre, alma do mundo!
Espíritos ancestrais, limpem essa dor!
Quer encontrar os campos em que as grutas adormeceram.
Fecha os olhos
Mundo dorme num estrado de nuvens brancas.
Recantos de ternura são os mesmos recantos onde mora a dor,
Essa menina chorosa 
que deu uma topada
e espera que alguém lhe conte uma história bonita
que a faça adormecer no colo das nuvens brancas.
(e a carne lhe lembra que o envoltório carrega quem sente o mundo)

04/06/2021

153
Dia-em-dia
Bate bumbo bate bumbo
Bate no mesmo andamento
Vai adormecendo sensações
Vai mecanizando pensamentos
Vai robotizando ações
Vai ...
Imensidão é a folhinha do pé de acerola
Altiva
Cumpridora de sua missão de verdejar a tarde
e
Servir de refúgio para as asas do passarinho
Que vem ali buscar o seu maná.

E o gato passa o dia lambendo o pelo.


Ginástica natural que o deixa leve, ágil.
O bate bumbo parece não afetar seu compromisso de se manter limpinho.

17/06/2021

154
Gustavo Galo

155
dia 10
não sei quais dos meus professores de álgebra estão vivos
mas sei que a poeta agi mishol está viva
mesmo conhecendo poucos dos seus poemas
semana passada na oficina de poesia
li um texto seu sobre o professor de matemática
o poema termina com os versos
“amo chapéus e todas as tardes
quando os pássaros regressam as árvores
busco aquele que voa ao contrário”
em casa somos péssimos com as contas
e elas não param de chegar
contas não fazem greve
as de luz e água por exemplo
chegaram a pouco
na volta do mercado lançamos álcool 70 sobre elas
e também no meio da nota do pão de açúcar
com o resultado recente da ida ao setor de bebidas
o QR code da comgás borrou um pouco
mas na nota do mercado aconteceu uma explosão de tinta azul
conheço pouco a agi mishol
mas já a trouxe para este texto
diante da mancha azul que aumenta
penso no seu poema
e em jorge mautner cantando
“eu sempre quero mais e mais um beeeeeeijo”
no ap. 803
em frente ao cemitério do araçá
às 15h47
nuvem nenhuma
a mancha azul expande
e somos dois
par é ímpar
voando
em outra direção

156
dia 15
na última semana escrevi
em casa somos péssimos com as contas
mas como posso ter escrito isso
se realmente vivi, sem pensar muito, 13349 dias?
ninguém pode saber o tempo que fazia no dia do seu nascimento
do meu sei somente que na sala do parto
perto da porta
havia um alto falante
tocava barão vermelho
wislawa tem um poema chamado “numero Pi”
“o desfile de algarismos que compõem o número Pi
não para na margem da página
consegue estender-se pela mesa, pelo ar”.
os números também são irracionais
revela a wikipedia quando busco número Pi
números irracionais existem porquê
apesar dos mais recentes pesos (e pesadelos )
a Terra é redondíssima
e nem um pouco chata
é mais ou menos isto
13349 dias completei na terça passada
hoje, quando leio para vocês, são 13351
pelo espaço a mancha azul cada vez maior
e a gente agora contando
o impossível

157
158
dia 23 
a Terra é azul declarou um astronauta 
o azul da Terra é o mar
o azul engolindo os números
roberto bolaño não decide 
se é poema ou nota
seu texto chamado “dinheiro”
em que conta como gastou suas 2200 pesetas
depois do trabalho de 16 horas 
no trabalho noturno em um camping de barcelona
o poeta liquidou tudo 
cervejas e café com leite 
no dia seguinte nada nos bolsos
vendeu uma antologia de poesia mexicana
gastou novamente o total 
agora com fitas k7 
– queria gravar dizzie gilespie e charlie mingus –  
e uma bisteca de porco acompanhada de ovos fritos
o poeta rodrigo lobo, foi ele, não eu, que chamou a atenção
para a hesitação entre poema ou nota
como designação das palavras no papel
bolaño diz (sem nada nos bolsos pela terceira vez)
este poema ou nota
é como um pulmão ou boca transitória
anuncia a felicidade
porquê há muito não tinha tanto 
gostaria de torrar tudo em uma noite assim  
com o escritor chileno ouvindo gillespie 
dois sul-americanos em mais uma madrugada fria do norte
e depois rodar a fita com a caneta bic
e ouvir de novo diferente
é sempre diferente
a Terra é azul
o mar 
a nota do pão de açúcar 
a bic também
e dinheiro algum vale 
um azul como este
aqui 

159
dia 24 
CONTA
CONTO
PONTO
P O N T A 
P O E T A 
POEMA

160
Halina Grynberg

Cicio
Porta entreaberta 
réstia de luz  
sol engalanado 
madrugando a sexta feira
veste branco para o santo
Oxalá sempre assim.

Há penumbra no quarto, 
lua úmida 
orvalhada
terra molhada.

Alumbramento sob as cobertas de nuvem.


Tua carne negra preenche a minha
amalgama 
pequenas mortes,
fluidos línguas caricias
meu cheiro-teu cheiro
lavanda-madeira canela
fincado na relva embebida
o tronco profundo 
perfumando perfurando.

Vazada pelo sol, 


a lua se abriga enevoada
a luz escorre esvaída.

O tempo das coisas não pode ser contido. 


– A casa detrás da montanha te espera?
– A tua casa não é comigo nesta cama?

Cicio

À meia-luz 
la grande Mort devassa a alcova
arremete  contra os amantes
destina –
de um lado o sol 
doutro a lua.

Desperto

161
Cinco Marias
Eram cinco as marias
da Penha, Gloria, Céu, Rosário, Luz
inventei as amigas
sobre a calçada da vila
em frente à casa
do outro lado do mundo
as pedrinhas aguardavam,
eram cinco as marias
ao sol do meio dia
zona norte Rio 40 graus.

No rádio do vizinho 
a voz de Jorge Goulart
ventava da boca larga escancarada
as palavras da língua que eu não conhecia
engolia todas dentro.
Não pedia marias
choravva por Laura e seu sorriso de criança
eu repetia criança criança criança
até deixar de ser palavra
e sem sorriso.

Som que movia os quatros cantos


da íngua frouxa na boca
sem sentido, português ou francês
modo de gritar o incompreensível.
Uma pedra pra cima e outra na mão
três pedras no chão.
três pedras pra cima
duas no chão
quatro pedras pro alto
uma no chão
Cinco pedras pro alto e não cabiam na mão.

Mas Jorge clamava Laura,


sílabas desapegadas uma e depois a outra
caem sobre mim,
onde o meu sorriso de criança
sob o escaldo em Madureira?

162
Cristophe ficara em Paris,
Já não sentia saudade de mim.
“Et j’ai crié, crié “Aline!”
pour qu’elle revienne
Et j’ai pleuré, pleuré
Oh j’avais trop peine”

Carregava uma dor imensa.


A professora do grupo escolar
sem dó nem pudor
ensina a escrever Halina
como na certidão.
Aline se faz lágrima sob o sol
agora o nome principia
em suspiro impronunciável.
Ah se eu pudesse
apenas Maria da Dor.

163
Partitura
Rabisco
página em branco
pauta desalinhada
de sons
alarido ao vento
poesia em busca do lamento.
Notas versadas ao tempo
pontuadas / alongadas
compassos de frases dispersas
pautando intensidades.
Berro:    f forte   ff fortíssimo   fff fortissíssimo
Sussurro:   p piano   pp pianíssimo   ppp pianississimo 
entre tons/semitons
urge um queixume cor de anil. 
Silêncio. Ainda assim
cada nota dispõe pausa própria
clamando pela duração da ausência
reclamando o tempo destinado,
desatinado o que me coube. 
Linhas e entrelinhas
Garatujas sem clave
partitura viva
sol não há quando a clave é dó.
Repito da capo
sustento o tom menor.
inspiração afinada arpejada 
entre robattos a nota calcada acata silêncios.
A partitura arqueja.
a escala inspira
pulsa / empuxa / desperta / inquieta
trêmulos ornamentos
glissando glissando  
vincando vinculando,
harmônicos vibrando
eu e você num choro anelado
nesta nota azul
da partitura inacabada
à procura do intérprete.

Halyn Grynberg é autora do romance O padeiro polonês [7Letras, 2015]


https://7letras.com.br/livro/o-padeiro-polones/

164
Inês de Araujo

Como se você visse alguém que reconhecesse passando pelo mesmo hall de
entrada, enquanto você saindo, a pessoa entrando, como se fosse estranhamente
conhecida, a pessoa estranha e comum, até que rachando o vidro você
percebesse ser apenas a sombra do seu reflexo.

Kintsugi
À primeira vista 
não dá pra reparar
flui 
fratura
Cheia de furor
com leveza 
de raio,
jogo do amor,
translúcida  
trama
Pontadas

Moídas em clarão
Seu gesto o rio
íntimo
à lâmina d’água
corre
em película esmalte,
fosfórica cosmética 
de vômito dourado
pelo invisível 
fora
Ao redor

ruído
que passou
ao negativo
à notação sonora
ao rachar

165
Nem a ambulância com sua sirene se degradando como uma mancha vermelha
sobressalta no chão a noite 
mais do que quando os prédios ficam brancos num fundo branco com chuva
ressoando de perto como de longe 
Ser simples fundo
creme de chuva 
palpável impalpável
manchas como todas as coisas divisoras a seu tempo
Ser véu de sombras,
quartos, cantos, cubículos, mesas, telas,
mil gotículas de nós e ninhos,
esquecidos objetos de meditação 
a tatear por dentro e por afora
uma travessia inacabada em todas
desfeita em pontos d’água
feito diminuto metal transparente sorrindo na voz do moço que compra tudo
velho, ar-condicionado velho, freezer velho, panela velha, radiante e velho

166
João Cardoso Vilhena

Às voltas com tarefas até ao fim do mundo

i. Revelação ou o lento acordar


Morto oco ovo
a galinha já não pia
cantam as aves ou falam
começa um novo dia

Parece o mesmo no corpo


e será seria seríamos serenos
não fossem as mantas puídas 
ou o recuo da pele 
destapando os ossos

ou o aumento do sol 
inflamação de fogo
mais perto agora
da língua de chamas 
que no fim cobrirá 
dum dilúvio animal
a face e o avesso 
dos planetas 

No vazio imaginado 
da planície do cosmos 
que ardida mirra
sopra um vento intenso
um tic toc tic toc de pedra 
com cheiro a vida 

ou é o alarme que soa 


apocalipse do mundo onírico

ii. Umas rajadas mais tarde ou o duro acordar ou a lista mental


Há várias horas de mãos
sobre a mesa fria da manhã 
à espera de saber que espero

Já passaram por aqui em seu


lógico desfile o chá a torrada
com escassa manteiga e a taça

167
dos cereais o vento sempre
o mesmo desde as seis assobia
embatendo no betão e nas vidraças

a promessa de tantos elementos 


do outro lado que já imagino 
o lugar mítico duma série televisiva

ou talvez seja só o cheiro


da laranja do algarve aberta no prato 
depois de com a mão
na faca a ter descascado

Penso em Godot e nas coisas


a pôr na sopa nabos cenouras
lista atrás de lista não esquecer 

as pastilhas contra as traças


das verdes que matam sem deixar 
rasto para os outros animais

Agora não sei já em que tempo


estou ou se batem ainda as horas
no meu corpo ou se este som

que persiste apesar de tudo isto


é apenas o vento trazendo
o lá fora para meu ser cá dentro

iii. Preso na manhã


Há sempre fila no correio de manhã 
tem de se ir cedo 
despertador pequeno-almoço correr
mas é sempre tarde nunca é cedo
todos fazem o mesmo
e está-se sempre de manhã 
na fila do correio
nunca mais é cedo 

por isso cheguei atrasado aqui 

168
À espera do abandono
Vinha aqui contar uma história aqui
onde havia qualquer coisa alguém
disse vai até lá depois diz isso ou
seria faz aquilo mas o que há para
fazer aqui neste lado do tempo neste
outro canto da casa da cidade havia
uma coisa era uma coisa qualquer
esquecida talvez fosse gente num
terminal de autocarro ou na estação
ou no apeadeiro desolado entre
duas coisas iluminado por lâmpada
quase quebrada uma espécie de
resto de nada mas luz ainda e um
corpo algures ou um besouro entre
ervas daninhas e estevas ainda não
em flor era fevereiro recém-chegado
iluminado sem ninguém que o
buscasse esquecido talvez com a
memória de ver um a um partirem
as outras crianças pelo portão da
escola um vento soprava fantasmas
viria alguém havia alguém a vir viria
veio passo a passo até um dia não
mais ninguém nada regressaram a
casa ele trouxe o portão vazio da
escola e uma outra ideia do tempo
cheia de ventos fantasmas e uma
terceira coisa da qual agora não
se lembrava talvez ainda a tempo
alguém chegasse com um sussurro
para uma orelha

169
Um prosaico poema sem tema
Acorda-se na cabeça 
por fora os cabelos 
desregrados 
as ideias subindo do aquário
para respirar insónias

O fluxo matinal das águas esvai-se


primaveril nos esgotos os corpos
deitam fora o que o sonho cuspiu

O querer dormir-se mas quem quer

querer a esta altura da vida 


em que só há sons de canos
e passos no andar de cima

Nem se sabe se são de gente


ou se o mundo na noite se mudou
e são os gatos que se erguem
eretos nas patas traseiras 
a arder de ideias 

170
Nós e pontos para um poema 
A minha avó ensinou-me a fazer crochet malha e a coser botões as meninas
da minha escola ensinaram-me a jogar ao elástico e os meninos faziam troça e
chamavam-me maricas não sei bem quando o insulto quebra o fio do tempo eu
agarrava-me ao sistema e não ainda às calças dos outros homens mas tudo eram
caixas atrás de caixas e não aquele conjunto de sabres da guerra das estrelas que
em tudo acertavam. Por acaso não me tornei num assassino ou num fora da lei a
precisão do crochet fizera de mim um menino certinho demasiado certinho
Hoje dizem-me que não 
que é uma simples questão de ascendente 
o adorno não concorda e eu concordo com o adorno
por isso ou talvez não
agarro-me à tua perna 
como a uma deusa do Olimpo

171
Jonathan Fontenelle

Isso não é real


É apenas o mês de maio
Com seus dias metade-frios-metade-quentes
Em que tudo sugere
Que não há música alguma
Tocando em qualquer lugar

Ou talvez nem seja apenas maio


Mas o outono inteiro
Com um céu em que,
Mesmo quando não há nuvens,
Há poucas estrelas

Se bem que: pra que tanta preocupação com o real? Já não o buscamos o
bastante? E se ele, na verdade, for apenas isso? Se ele for como um lugar em que
só podemos falar aos sussurros, dissimulando nossas verdadeiras intenções,
esquivando-nos sempre e algumas vezes até fugindo por buracos debaixo da
terra? E ele se for como um tempo em que tenhamos sempre que estar fazendo
escolhas difíceis, sempre sofrendo por despedidas cruéis? Sabe, às vezes só
preciso de uma ilusãozinha barata pra suportar a terça-feira ou de uma alegria
provisória pra vencer a quinta.

Então talvez seja assim mesmo


Talvez não dê pra fugir agora,
Muito menos, enfrentar

Talvez a única coisa que possamos fazer


Seja fecharmos os olhos
Taparmos os ouvidos
E encararmos maio
Como uma necessária
Piscina de água morna
Em meio ao frio rascante.

E torcermos pra que algo bom


Sempre venha
Mesmo que seja uma mera ilusão
Algo aparente
Ou simplesmente provisório.

172
Olha a tela do computador 
Três linhas apenas 
De vinte páginas, no mínimo 
A vontade é de se dissolver na cadeira 
    Correr, correr, correr 
         Olhar o celular 
               Olhar a lua 
                      Beber um rio de água 
                              Ganhar na loteria 
                                    Devorar quilos e quilos de cimento preparado com pedras e areia 
                                              Rolar por uma escada abaixo 
                                                    Forjar o roubo do computador  
                                                            Largá-lo em algum lugar 
                                                                   Provocar um curto-circuito na fiação da casa 
                                                                           Perder a memória 
                                                                                    Viver da caridade alheia 
 
                                                                                     Mas só olha a tela do computador 
                                                                                Três linhas apenas 
                                                                        De vinte páginas, no mínimo 
                                                              Respira fundo 
                                                 Roga aos céus   
                                     Pra ter disposição e criatividade 
                         E afunda os dedos no teclado 
 
 
 
 
 

Mantenha distanciamento mínimo de 1,5 metros de outras pessoas. 


Mantenha distanciamento de outras pessoas. 
Mantenha distanciamento. 
Mantenha-se! 

173
Leão Zagury

Ideologia
Meus ancestrais percorreram campos
procurando soluções.
Eu, ideias e ideais, os acompanhava.
Julguei ter achado o caminho.
Me prometia igualdade.

Cego por muitos anos,


empoleirado no topo de uma tumba,
como um anjo de túmulo, lábios gastos pelo tempo,
orbitas vazias ocupando o lugar das pupilas,
permaneci guardando restos sem alma de uma ideologia

Iludido por tanto tempo


vi o túmulo desmoronar em ruínas,
desbotando ideais,
descolorindo pedras,
libertando verdade.

06/05/2018

174
Cozinha 1
às vezes, muito poucas,
vou à cozinha e me deparo com o forno de micro-ondas,
com a máquina de fazer café e a geladeira.

áridos 

volto à da minha mãe.


reconheço o cheiro de café torrado.
vejo o fogão à lenha e uma panela grande 
onde se destacam o amarelo do tucupi, 
as folhas verdes de jambu e uma coxa de pato.
reconheço o gosto da tapioca com manteiga e do tambaqui na brasa.
na mesa, sobre um prato, branquinho como algodão, polpa de bacuri. 
não se comia manga com leite, fazia mal. 
antes de sair saboreio vinho de cupuaçu com pedaços agridoces bem grandes.

quente

no caldo amarelo borbulhante do tucupi navega 


a carne e a pele do animal
que alimenta minhas vísceras
cheias de passado e repletas de solidão 

dissemelhantes

do branco e do agridoce 
sonho desalmado e triste
que me afoga no presente inacabado 
e dá gosto amargo às frutas que comi.

26/09/2019

175
Estranho
Será estranho
ter mãos
sem as tuas para segurar.
Ter olhos
sem os teus a me olhar.
Ter orelhas
e não te escutar.
Sentir sabor
e não dividir contigo.
Respirar
e não gozar teu cheiro.
Será estranho
viver.

05/08/2019

176
Varanda
Todos os dias acordo e caminho
trôpego: sou velho.
Esses poucos e doloridos passos, não mais que dez,
me levam tão longe, do meu quarto à varanda.
Lá instalei na parede
um óleo da casa onde nasci, o relógio do meu pai
e os ganchos que sustentavam minha rede.
As paredes são brancas, como meu pai gostava.
Me sento na cadeira de vime, onde minha mãe fazia tricô
E sonho...
Com tempos que voltam sim

Rio, 19/03/2019

177
Lila Andreoni

Antes
eu ainda era um homem
quando a vi subindo as escadas
do sobrado antigo
aproximando as mãos do corrimão
sem apoiar em nada

até os pés sobressaltando para cima


perto e soltos do solo

cabeças rolavam degraus abaixo


na outra direção
carpete bege manchando vermelho
e acho que ela não via
e subia

acho que para uma coisa melhor,


parecia
e subia
o que haveria no depois do segundo andar?

subia
para tirar leite de mil porcos, diziam
para depois alimentar as crianças, diziam
para um pouco depois se insinuar aos amantes, diziam
para ainda depois ordenar a matança dos homens, diziam

diziam e não subiam.

178
Orfanato
em qual ponto da madrugada,
aparecem várias mulheres dizendo ser minha mãe?

179
Nossos beijos não eram de língua
trocávamos os dentes em vez de saliva
esses nacos de lua de marfim
essas lascas de palavras duras

permitindo à boca a órbita


múltipla
de satélites e termos
sem centro
sem frase
nem país
em estridência afiada

nossa política pelada aparecia


no espelho no dia seguinte:
quanta gengiva ali
proclama a república
da renúncia da mordida

e ministra a teoria de um universo banguela


na falta de vergonha pobre
de quem sorri depois
de ter deixado para trás
seus dentes da frente.

180
acessórios
íamos sair para tomar sol
já saindo fechando
peguei até a caixinha dos óculos escuros
trancamos a porta
e batem aquelas dúvidas de hall de elevador
que são como cólicas ondas intestinais
socialmente rejeitadas

na volta diante da mesma porta


busco as chaves na bolsa
com a procura irritada dos dedos
pela mônada de couro
tateando coisa por coisa
revistando um por um os criminosos (eu ou você?)
dormindo cada noite com um homem

com a pressa de quem precisa


de um banheiro
tenta-se encontrar
pelas formas, quinas e minérios
do batom, das moedas
de cotovelos que não amo
sempre guardados como segredos
nas sacolas, nas camisas
nos bolsos das calças
ou por dentro das suas calças

uma saída,
uma resposta

que deixe abrir o trinco,


evacuar os órgãos
as roupas
as camas

que me dê o alívio
de não pedir desculpas
por chamar de casa
a palavra vazio.

181
Luana Chnaiderman

Para onde vão os elefantes?


Um dia amanheceram, 
enfileiram-se 
puseram-se a andar.
Andam, passo lento, há quinze meses.
atravessam um país 
e o país os observa. 

Quando os elefantes deitaram-se para dormir, 


vinte drones sobrevoavam o céu
Os elefantes dormem juntos e de lado. 
Eu nunca havia visto
quinze elefantes dormindo, 
no meio de um país, no meio do mundo,
em meio a uma caminhada. 
Os elefantes não devem explicação. 
Apenas andam. 
E o povo os acompanha pelas telas dos celulares. 

Há três filhotes, três.


Um nasceu no caminho. 
São amados, são sagrados, os elefantes asiáticos. 
Ninguém sabe o que querem.

182
Muitos elefantes formam uma manada. 
Há trezentos elefantes asiáticos no mundo. 
Quinze, um dia, saíram em caminhada. 
Não se sabe para onde vão. 
Por que saíram em travessia. 
A população chinesa acompanha, ao vivo, 
o caminhar dos elefantes. 
Já foram quinhentos quilômetros. 
Eles atravessaram uma cidade e todos
fecharam as portas. 

Cientistas, ecologistas, naturalistas tentam fazer os elefantes voltar. 


Eles seguem em frente. 
Atravessam plantações, portões de casa e, uma noite, atravessaram uma avenida.  
Os elefantes, agora, estão próximos de uma cidade grande. 
Estão todos com medo. 
Eu não sei se sentem medo do que possa acontecem aos elefantes, 
ou do que possa acontecer às pessoas. 

Quinze elefantes andando há quinze meses custam mais de um milhão. 


Tentam cercá-los com boa comida
Guiá-los por obstáculos. 
Mas os elefantes seguem. 
Não se sabe para onde vão.

12 de junho, 2020 

183
Inventário.
1.
Pra quem eu vou mostrar
a cor nova do meu cabelo
que ficou meio roxo, mas ficou top
– a aluna disse.

Quem vai me desejar boa noite e para 


quem eu vou ligar
contar
que a aluna disse
que fiz berinjelas ao forno
que as compras chegaram
e salguei demais
os tomates da salada

Para quem eu vou cozinhar


preparar o almoço
mostrar a música
que eu descobri
e acho que você ia gostar

Com quem eu vou brigar


pela sujeira na pia
e para quem eu direi como você é bobo 
seu bobo, vem?
e quem vai me dizer,
oi, gatinha, 
tudo bem por aí?
e dizer
vou
e dizer
sim.

Como viver 
sem ouvir meu bem?

***

184
2.
Traçar, com bússola compasso e três medidas de arroz
Onde, exatamente
quando
uma palavra mal dita
uma coisa que eu fiz
Foi?
O que aconteceu
que já não somos mais
quem, junto, lava a louça e briga
pela maneira de empilhar os pratos
no escorredor?

***

3.
E os detalhes:
(o teu café, uma maneira de passar a mão) 
quantos são?

(você andava pela casa em silêncio e me ouvia dando aula


e depois comentava o que tinham dito meus alunos
e a gente ria junto)

quantas histórias
quantas, quantas palavras 

(quando a gente ligava as luzinhas coloridas e dançava na sala)

Quantos dias até chegar ao costume?


Gastar a meia de esquilo que você me deu
(era tão macia, eu nunca havia visto tão macia
e eu senti a meia no rosto e você achou bonito
que era para o pé, mas eu quis sentir
na bochecha)

andar até furar o chão o tecido rasgar a meia e aparecer meu dedo.

E todo o fumo
que sobrou   
quantos dias 
até, por exemplo, acordar, passar o café 
e não pensar mais nisso? 

185
(os cinco travesseiros e a cachorrinha dormindo entre a gente
e a gente ficava parado e não se mexia porque não queria 
que ela fosse embora)

como fazer para acordar e é domingo


E o domingo é uma maratona
muito lenta
e sem plateia.  

Quantos e agora 
que faço eu da vida 
(E eu sempre acordava mais cedo
e gostava de te ver acordando 
e depois
você sorria para mim e ia fumar na varanda). 

E de quantas em quantas horas


eu vou lembrar de você
e contar quantos 
bem mais
melhor
e você vai lembrar de mim
como é que faz? 

Quantas, quantas tentativas, mas não adianta nem tentar


A velha calça desbotada, 
ou coisa assim. 

Quantas, quantas palavras de amor 


vão caber agora, aqui, 
neste apartamento de um quarto, cozinha aberta, 
e uma sala enorme? 

Playlist:
https://open.spotify.com/
playlist/26Jl7h2qwuWKQaCLC7mu4z?si=6e7018ba6a384133

Luana Chnaiderman de Almeida é autra de Minhocas (Cosac e Naif, 2014); Fuga


(FTD, 2017) e Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva, 2018, finalista
do prêmio Jabuti, 2019), entre outros.

186
Luiza Mussnich

enchente
para Mara

se somos setenta por cento compostos por água


os órgãos pequenos arquipélagos em erosão constante
deveria ser normal 
como um frasco mal fechado dentro do necessaire 
inundando a escova de dentes os discos de algodão o pincel do blush 
deveria ser normal que um pouco 
desse reservatório escapasse

se escapam pelas contenções 


barragens de mineradoras de empresas confiáveis 
rentáveis 
listadas em bolsa 
com selo de confiança de agências estrangeiras
destruindo encostas inteiras
escolas inteiras
famílias inteiras 
colônias inteiras 
uma cidade inteira
aos pedaços tudo 

deveria ser normal que um pouco dessa água 


pudesse escorrer para dentro dos órgãos 
mas não:
é vista com atenção 
qualquer inundação 
nas ilhas irrigadas que flutuam no corpo 

uma mulher negligencia


a filosofia 
das máscaras de despressurização 
que podem cair a qualquer instante num voo 
um filho de cama
é a maior doença que uma mãe pode contrair
ela respira com dificuldade 
o corpo esse enorme copo d’água transbordante 
de quem liga o filtro e enquanto a água escorre
corre para fazer algo mais importante

187
os músculos regidos pelo sistema límbico não relaxam nunca
a glândula lacrimal contraída à força

e então um exame que requer 


que se bebam aproximados quatrocentos mililitros 
você está com água no coração
é melhor ver um clínico ela ouve
pode ser sério
mas não precisa que se examine coisa alguma
ela sabe que não está doente
as lágrimas afluente 
procurando foz qualquer

188
exercício de desapego I
comprar um sofá
por uma pechincha
num leilão
mesmo sem ter
onde colocá-lo
ao chegar em casa contemplar a sala
pensando no que levaria
se fosse embora de repente amanhã

Luiza Mussnich é autora de Um dia o amor vai encontrar você [Id Cultural, 2016],
Microscópio [megamíni, 2017], Para quando faltarem palavras [megamíni, 2018] e
Lágrimas não caem no espaço [7Letras, 2018]
https://7letras.com.br/Autor/luiza-mussnich/.

189
Márcia Huber

a rocha fazia confissões ao corpo


e ouvia o hino dentado do remorso
quando você
cansado de olhar para o céu
a contar corvos bêbados
quis saber como foi

não guardo queixas

o perfume suado me punha a salvo


(mas quem quer falar aqui de salvação)
não há mais tempo para reclamar
as peônias já baixaram a cabeça constrangidas

você insistiu em saber se foi bom

não vou erguer um monumento aos minutos de espera

hei de beber da água que sobrou


deitada na minha própria sombra
olhando de viés tua veia arrebentando o não-dito

você fez questão de saber fui bom?

eu fazia confidências aos meus pés caiados


porque afinal acomodava ainda no corpo a tarde
e as promessas da areia
que sabiam – sempre souberam
que nunca passariam disso

não é que tenha sido moleza


ou um completo fracasso
(pálido capricho sem medalhas)
mas o fato é que não tremi nos seus braços
como a flor de bowie

190
no dia dos teus anos
com passos de lírios
subo contigo a montanha
deixando para trás nossas pegadas brancas

sentados lá no alto
puxamos juntos a corda aveludada da palavra
digo pedra à pedra
rocha à rocha
pó ao pó

dizes comigo tuas vogais úmidas


as aves levantam as asas para te ouvir melhor
escolhemos um nome novo para o fogo
os lábios ardem ao dizê-lo e dizemos e ardemos

é tempo de cerejas
estouramos cerejas na boca
as mais doces e as mais escuras
uma gota vermelha molha a minha mão
e lambes a gota e lambes a pele
e nos lambemos

vamos saltar juntos


você e eu
brancos de talco
brancos de lírios
nossos corpos banhados
cairão silenciosos e limpos
atendendo ao chamado da terra
nos daremos as mãos no ar
sentirás o perfume de jasmim do meu cabelo
me afogarei no cheiro de tabaco
que escapará dos teus dedos longos
o lago lá embaixo
a puxar nossos pés
nossos pés brancos como talco, como lírios
nas águas geladas afundaremos
sem soltar as mãos
ouviremos de longe o tambor das entranhas da rocha
pedacinhos de pedra crepitando na pança da montanha

191
os gansos brancos gritarão desesperados da margem
não passam de poetas
não passam de montanhas

a paisagem responderá imóvel e muda

um tempo parado me puxa de volta


a corda aveludada dos anos entre nós
conduz o céu pacato e negro dos teus olhos
ainda tenho nas mãos os lírios que fugiram dos teus dentes
durante a queda
não consigo voar mas sigo o voo das borboletas

no abismo não encontrei estrelas

192
Manhãs de maio
para Margaret e Max

nas manhãs frescas de maio


eles cambaleiam pelas avenidas
atravessando boulevards
procurando sem mapa a rue du chat-qui-pêche
obedecem a cegueira florida dos canteiros
com mãos trêmulas e olhos vítreos
não sabem nem podem prever no meio da estação
que se perder e se achar em paris
é uma rota de sobreviventes

os dedos manchados de cerejas


inauguram versos de uma primavera imperecível
felizes e impuros na bolha
sem chave sem ferrolho sem tranca
fizeram ali um escambo de almas
num pacto de fruta de flor de chão

eram parasitas do que sentiam


hospedavam alimentos naquilo que eram
nutriam-se de ser de eus de nós
e devoravam-se famintos

podem ser vistos ainda


a chorar diante
das telas de van gogh
enquanto os corvos sobrevoam a manhã
suas sombras passeiam
sustentadas por uma luz diáfana
e sem contorno

há quem jure que seguem


indecorosos sem pudor algum
se aquecendo ao sol morno no templo
da tarde desafiando o idioma
com versos trazidos na mala
há quem jure que estão lá

194
com os pés calosos suspensos no ar
cabeça feito pomar de folhas
crescendo em todos os quintais

crias do premente
engordavam minutos inadiáveis
sorrindo para transeuntes sem rosto
as calçadas abençoavam seus pés quando passavam
os cafés que tomaram seguem queimando em suas bocas
nunca saíram de dentro deles
continuam
a umedecer o lábio
a incendiar a língua
a provocar cigarros que soltam fumaças estrangeiras

já levam anos
a tomar os mesmos cafés
a fumar os mesmos cigarros
porque no fundo no fundo
a verdade é que
nunca se separaram desses dias

[escrevi para ti um poema pelo dez de maio


e me sobraram esses versos]

195
Marcílio Godoi

Trespasse
Virá como uma peça que escapa
ao encaixe de seu talhe perfeito.
E tu saberás logo o frio instante
pelo tempo visível, aniquilado
no que pra dentro de nós se excedeu.

Imagino que será por volta das três


da triste madrugada tudo e nada
que a Gal exato cantou pra gente
na rua sem fim de nosso começo.

Talvez surja na carruagem confusa


de ossos em um atropelamento,
na solenidade silente de um jantar
farto de obsolescência e fadiga.
E o mesmo movimento do acorde em dó menor
ao final daquela sonata do Haydn.

Pode ser que venha muito maquiada


de pó branco e sorriso parado
como um dervixe rodopiante
sob o chapéu florido de Juanita
na tarde que o compramos em Acapulco.

Não é provável que chegue sorrindo


nem que mude a rota dos dias.
Mas terá teus olhos e a forma
de nossos corpos exaustos de carinho
impressa no colchão.

197
Pinho Sol Lavanda embalagem econômica
Ofereço-te esse pano molhado no chão
imerso no balde o vai e vem desse rodo
passado várias vezes essa torcida.

Álcool no copo e nas vidraças eu te oferto,


o dia, essa louça limpa casta, impecável
esse Bombril no inox refletindo
o nosso bom, o nosso bril.

Recolho-te nos restos da geladeira


para nosso prato mais metafísico:
a irrepetível sopa de tudo.
Depois faço-te uma viagem de aspirador
no pufe na cortina na cortiça
e volto ao pó amanhã.

Preparo-te lençóis na zona de Comfort


a tarde e a água de passá-la.
Dou-te minhas datas de validade
na despensa, teu consumo imediato
e as tampas de mil Tupperwares
num céu de lencinhos umedecidos.

Um faqueiro de prata na caixa


do enxoval eu te guardo, intacto.
E as facas mais afiadas do ímã
eu te reservo em silêncio
pra uma noite dessas.

199
O camelo
Insiro com cuidado um camelo num verso
Desajeitado ele desce para o segundo
Terceiro subsolo em elipse.

Tem patas embaraçosas


Tropica em meu pé de moleque colonial
Está sem graça o meu camelo
Movediço nas estrofes escaldantes
De um século desertificado.

Patina meu camelo sem o desajeito exato


Do albatroz de Baudelaire
Sem a eloquência dos sapos de Bandeira
Ou dos galos solidários de Cabral.
Não possui nem de perto
A admirável frustração
E a reticência musical amorosa
Do elefante drummondiano.

Pobre animal antipoético


Sabe que não passará pelo buraco
Das agulhas das escrituras
E não entrará em céu algum.

Autocomplacente, afeiçoo-me
Ao modo rebarbativo de meu camelo
Seu mau jeito
Seu mau cheiro,
Sua inação.

E a esse seu modo de parar atônito na areia


De ampulheta da pós modernidade.
Talvez seja só mais um dromedário sedento,
Confundido que me troveja
Talvez seja apenas mais uma cabra imolada
em um haicai uma andorinha tentando o veranico.

Olho detidamente para o meu camelo


Tento contê-lo, compreendê-lo metáfora

201
Mas vejo que é só um camelo mesmo
Duas corcovas, joelhos improváveis
E a instável prótese bucal, ruim de prosódia
Está constrangedoramente modernista
ainda.

Eis meu camelo silente sem óculos


Sem convés, sem perau profundo, sem toldo, sem rua
Sem lugar no mundo escala ou nexo
Inquieto-me por não ter onde enfiá-lo.

Talvez o ponha em uma gaveta de nuvem


Talvez o despache num trem
Talvez o jogue fora
na internet.

202
Storyfalling
Coço a barba o cigarro entre os dedos
Você prende seu cabelo no elástico
Todas as coisas são tristes e belas
Quando refletidas nos olhos de um cavalo.

Era sabido a esse respeito


Não havia qualquer chance
De continuarmos naqueles planos
De quando a roda do mundo parava e pairando
no ar fundaríamos Nova Arembepe em Cocanha
Depois daríamos em Pasárgada via Shangrilá
Era provável que um dia perdêssemos aquele avião.

Para saber o que é mais terrível digite um


Para se ter um novembro esperançoso disque dois
Se quiser ver a foto favorita de nós dois tecle quatro
Se quiser voltar e não repetir tudo, pressione nove.

Fazia muito calor e palavras cruzadas,


No dia em que nos demos conta
De nossa absoluta incapacidade
De dar cabo no que andava imóvel.
Nosso talento inato em adiar o fim
e o medo de saber que ele já estava acontecendo.

Um dia o pai me olhou nos olhos e disse


Que o melhor jeito de não resolver um problema
Era aumentar bastante ele.

Nosso cavalo não estava preso


Mas não abandonava nossos corpos
no incêndio em que a casa ardia.
Intoxicados os três escrevíamos cartas de amor
Lindas cartas de amor na fumaça
A estranhos viajantes.

204
Maria Clara Escobar 

a pátria é bobagem, sabemos


como disse o outro: primeiro o verbo
e depois blablablá
mas só o diz quem tem pra onde
voltar
desejo aos amigos e aos inimigos
sempre haver esperança
na volta

me dizem números
ações
sanções
me dizem: faltam 700 dias
mas o que já foi, não se há de recuperar

e a mim pouco importa o que se perde


o irreparável, o casamento findado, a dorzinha do dente 
que já caiu
mas a pátria?
a casa que quero renegar?

a pátria 
me deixem em paz
pois não quero
jamais escrever poemas tão lindos 
como os de Mahmud Darwish

205
 

amo ele
loucamente, o idolatro
o amo, o amo, o amo
me dizem
você deve se afastar desse tipo,
de amor
Não

sempre quis ver baleias


nunca fui
mergulhar, andar de carro
não fui nadar ontem

mas não se sente viva?


não
o amo
o tubarão, não a baleia
que me arranca

cantaram aqui embaixo


nem lé com cré
eu acordei
desde que o tubarão se foi
só restaram peixes saltitantes
– você viu?
– o quê?

Não.
Não.
Não.

Faço um verso só pra dizer não.


Um poema só para
Lembrar
Não sou eu a capitã

Sentada, ainda
Na janela de passageiros
Penso
Nesse
Esse é o fato

206
Maria Clara Parente

olhando para o sári roxo que veio do campo de refugiados de Dhaka, pensei
nos refúgios possíveis enquanto a tarde me cortava em pedaços. era preciso
cavar e não ir para frente. mas sempre fomos tão acostumados a ter que ir para
frente que cavar parecia uma tarefa improvável. eu desviava das escadas que
tinha costurado nas gavetas e sentia muita fome. comia, afirmando as nossas
incapacidades diante das plantas. respiramos porque vocês excretam. essa era
a única verdade. as raízes antes de estarem aqui estavam cavando, cavando
junto com esse ritmo incansável dos que vivem imersos. como podia ser que
nos confundimos tanto que pensamos que esse descolamento era alguma coisa
próxima da sanidade? as dificuldades viraram as palavras que subiram nas
escadas construídas no breu na contramão da matéria. a casca da ameixa se
recostava na minha pele de dentro e eu continuava exausta. era tão cansativo, ter
que falar, ter que pensar, ter que escrever e tudo mais que a incapacidade de fazer
as coisas que importam nos levaram.

207
travessia
o mais importante é sair daqui
lembrar que uma fuga
não é como se estirar e esperar o sol parar de queimar a sua cara
estamos mais perto da insolação
é preciso trocar a pele
para poder pegar sol de novo
a fuga precisa de um plano
o quartinho em Schöneberg
a passagem
e alguns trocados
quando parecer difícil
pense no seu bisavô
que guardou moedas nos sapatos
para subornar os soldados nazistas no meio da estrada
pense em tudo que aconteceu só porque ele teve um plano
para a fuga
e faça comigo
esse caminho de volta

208
cafofo do mundo
uma escavação profunda
diagnostica uma disfunção no seu corpo
uma massa compacta de ferro e níquel crescendo mais rápido de um lado que do outro
dizem que esse crescimento disforme não vai nos prejudicar
você já arranjou um jeito de regular a gravidade da situação
mas é preciso dizer que
você nos deixou mal-acostumados
sempre solucionando e regulando tantas barbaridades
como você fica nessa história
como está passando
pode nos escrever?
me diz
se você estivesse planejando a morte dos seus filhos você falaria para alguém?
o que você acha das nossas tentativas estúpidas de te salvar?
você nos perdoaria se soubéssemos falar a sua língua?
honrar pai e mãe
foi isso que me disseram na escola católica
mas então de onde vem tanto rastro de esgoto tóxico jogado dentro
não seria justo pedir para você ensinar mais alguma coisa depois de tanto
mas você sabe que o trauma não vem sempre por maus tratos
o trauma também pode vir pelo excesso de zelo
por passar a mão na cabeça repetidas vezes
de forma alguma seria te culpar por nossa doença
mas entender o que podemos fazer
nesse ponto que chegamos
a incompreensão talvez seja
quem sabe
por conta da diferença de idade
você nasceu há mais de quatro bilhões de anos
e nós nem chegamos direito a cem
a sua velhice entranha em nossas infinitas dores
enquanto os seus esquecimentos fazem a cartografia experimental desse afogamento
e olha que ainda nem começamos com os cuidados paliativos

Maria Clara Parente é autora de Nas frestas das fendas [7Letras, 2020]
https://7letras.com.br/livro/nas-frestas-das-fendas/

209
Maria Ignez Barbosa

Ao sussurrar das pequenas coisas


Ali no canto a cloche do Guy Laroche que ela deixou de herança num porta
chapéu de palhinha antigo como a propor poema. É de pele de onça de
verdade e às vezes põe na cabeça para sonhar no espelho, tentar se achar
bonita e brincar de anos 20 do século passado. O manteau, também de
oncinha, outra herança da mesma amiga-meio-mãe foi-se para sempre
num brechó. Já vestiu num inverno frio o manequim vitoriano, que sobe e
desce no tripé de nogueira que ela volta e meia faz trocar de roupa, colares,
chapéus como se brincasse de boneca. Na parede emoldurado o sweater do
artista pop inglês dos anos sessenta, cismado em pernas e saltos altos, edição
numerada, tempos de Swinging London e que depois muito foi usado em
Brasília já em tempos assombrados mas passava batido. E quantas vezes não
foi ela com ele ao cinema ver filmes censurados pelo Rogerio Nunes.
Alguém lembra dele, o irritante?
Pendurada atrás do computador a bolsa vermelha da borbulhante Biba
londrina onde um papagaio colorido se transforma em alça e que depois
virou decoração. Foi onde comprou as botas de camurça roxa de cano alto
que já se foram no tempo dando adeus. Saudosa é também a camiseta preta
estampada Chuck Berry com corrente de metal indo de um ombro ao outro.
E tem o retrato bem mais antigo da avó num velho porta retrato de couro
pirografado com desenhinhos dourados onde aparece feliz. Pequena, pensou
encontrar relíquias num misterioso baú na velha casa do Cosme Velho mas
na pressa de crescer esqueceu de sair a procura do bruxo. Em outro canto.
um retrato a lápis feito em NY por um artista amigo enquanto entrevistava o
louco pintor surrealista espanhol no hotel St Regis. Tem também as bandejas
pretas vitorianas encrustadas com madrepérola que se transformaram em
mesinhas e que aprendeu a gostar com a mãe e que remetem àquela outra
rainha longeva que vivia de preto, sempre de luto mas que de boba nada
tinha. Tem as estantes georgianas laqueadas de laranja que eram do quarto
da mãe no Rio, e também a jardineira de ferro de mesmas eras arrematada
em leilão de velharias em Montevidéu e que na casa grande abrigava plantas
na varanda mas onde agora no quarto empilham-se livros de poesia. Nesse
museu de tudo onde tanto em seus ouvidos sussurram as pequenas coisas só
faltam as bitucas de cigarro do livro do escritor turco que as transformou em
quadro em seu Museu da Inocência em Istambul, uma fantasia feita verdade
e que ganhou nome e sobrenome. Foi-se o tempo em que non stop ela
fumava. A cama cuja cabeceira é o pedaço de uma grade de ferro demolida
de uma casa antiga em Santa Teresa foi presente de casamento e de inocente
não tem nada como devem ser as camas, com suas histórias de amor,
preguiça e nem pensar. Fiel por ali à espera do escurecer, a lâmpada de pé de

210
madeira torneada que o pai tanto gostava e dentro de uma vitrine a coleção
de mãosinhas antigas de pegar papel pedindo que o Brasso lhes devolva
o brilho. Tem o carrinho de feira antigo de palhinha que nunca levou ao
mercado e que abriga a bengala do bisavô parnasiano e uma vassoura de
palha nordestina. Ao lado da impressora HP um Jesus de porcelana vieux
paris, presente também de casamento da tia psicanalista. Tem a almofada de
cachorro (pois não se dá bem com os de carne e osso), parecida com aquela
que tinha no quarto em sua morada parisiense a Duquesa de Windor. Pousa
como um gato encolhido no pequeno sofá capitonê de ticking preto e branco,
tecido que na Inglaterra, no muito antes de ante ontem se usava para forrar
colchões. E ainda o cachepot pintado com a tulipa e suas folhas douradas de
metal, outro presente que segue presente enternecendo enquanto o som da
esteira diária funde o ontem, o hoje e a Netflix em uníssono barulhar.

Maio 2021

211
Encantoando Camões
seria um poema caolho a encantoar palavras
beijá-las, lambe-las docemente, espreitar seu arfar
assistir ao seu manso/intenso achegar-se ao papel
como um cão cansado atrás do verbo
criando aqueles bruscos instantes de espanto
que nos fazem mergulhar 
“na grande dor das coisas que passaram”
e retornam...
língua lusa/língua mãe se transmutando 
em mais versos/reversos/pernas
que em pena e pernas minhas se transformam

é a flor de sal que não adoça


mas torna interessante o chocolate
e os substantivos que tudo determinam
nos impondo as elegantes variações 
que na língua inglesa adeus já deram
e onde as palavras andam à deriva

enquanto ainda acreditamos em sonatas


submissos ao rigor de revisores
e dicionários analógicos

junho 2021

212
Zonzada
a lente me separa do mistério
impedindo aquele agarrar com a mão o sonho fugidio
até que no repente
olhos ainda fechados
zonzada
dou de mim acordo
pés tateando as chinelas turcas
buscando o impulso do pulo
ao levante da cama na manhã
sol pedindo entrança
na janela do banheiro
ainda o vidro dividindo o que é vida
do ouvido do vivido do intuído
e logo no espelho do dia repetente
haveria o roer
do biscoito duro sem trigo
que o chá faz amolecer
o queijo na bolacha de arroz
a geleia adoçada no suco de sua fruta
o mamão com as sementinhas
e todas as vitaminas
ritmando com os dentes
a valsa da véspera
dançada com a vassoura
no meu kindle
folheando o jornal inglês

junho 2021

Maria Ignez Barbosa é autora de Gentíssima – 28 entrevistas [Ateliê Editorial, 20o7]


https://www.atelie.com.br/livro/gentissima/

213
Mariana Porto

Passo
passa
passo
rasta,
massa
graxa 
gasta o
passo
passa
passante
com ginga
ambulante
cambiante
com fé no
pisante 
passeando
o passe
no passo
passa 
o tempo
extenso
terno
tenso
tece
a toada 
trama
transe
com o passe
e o passo
no ato 
faço
o resgate
com tempo
uno,
me
acho
na frase
fração
de segundo
conecto

214
no eu
os nossos
os vossos 
e os seus.
E passo
e passa
a passagem
a viagem

215
Marília Valengo

Rascunho de uma elegia


Cada um que assuma seus B.O.s
cada um que saia de casa com seu colete salva-vidas
imagina se vou
não posso mais
imagina se existe condição
não tem mais nenhuma
de eu parar esse carro para
pular na represa
você ali se afogando

se eu fizer a fogueira
para queimar teu corpo
já é de boa providência
e quando eu estiver ali
sei que vai me dar vontade
de dar uns pulos e
levantar os braços
para o céu e balançar
os quadris de um lado
para o outro e para frente
e para trás

eu vou dançar o seu corpo e pelas labaredas das suas escolhas


eu vou rodopiar entre as faíscas do seu carma
eu vou sentir calor e vou inalar a fumaça e
eu vou cantar às estrelas e ao sol e ao vento que alimenta o fogo
eu farei tudo isso em sua homenagem
mas pular para te salvar?
jamais.

216
Segundo ato
Será que alguém pula do penhasco
se na hora H
perguntam:
tem certeza?
acho que ninguém aperta o gatilho
se alguém grita:
duvido!
um morto teimoso
é muito parecido
com o resto de nós
mas existe uma diferença
que não vou dizer qual é
não nesse poema
esse poema nasceu
para me fazer pensar:
porque estou tão obcecada em
produzir vida.

217
Tamanho único
não se tem personalidade
em uma família
todos sempre terão um nome em que só depois do irmão da tia da sobrinha da avó
[será usado
para meu pai, sou yaya, que é como ele chama minha mãe
mas daí outro dia ele subiu de nível e se referiu a mim como pedro

nem para gênero eles ligam mais


o que eu acho ótimo, mas esse poema não é sobre isso
é sobre minha mãe ter duas irmãs e sempre dizer gina, patrícia (agora vai)
marília

segundo meu pai sou mesmo irmã de rafael


segundo minha mãe sou mesmo filha do meu pai
segundo meu irmão pedro sou filha da minha mãe
e segundo meu irmão rafael eu só posso ser irmã de pedro
depois querem me falar sobre saber quem eu sou

se depender dos meus espelhos eu sou todo mundo


é muita gente
é a mulher de 40
casada
irmã de dois
filha mais velha
amiga de uns
prima de outros
sobrinha
tia

a adolescente rebelde que precisa se perdoar


a criança interior que precisa ser resgatada
a redatora que virou estilista
a estilista que virou arquiteta de informação
a arquiteta de informação que virou estrategista de conteúdo
a estrategista de conteúdo que finalmente virou poeta

mas ser poeta nem é a cobra engolindo o rabo


muito menos o rabo entrando na boca da cobra
ser poeta nem é o ovo nem a galinha
não se discute gênesis com poesia

218
é sobre muito antes
e antes também é sobre um nada que acaba em tudo
então
realmente
ser só marília não me cabe.

Marília Valengo é autora de Grito em praça vazia [7Letras, 2020]


https://7letras.com.br/livro/grito-em-praca-vazia/

219
Martim Moreau Maita

então estivemos aqui já faz um tempo


tentando dizer alguma coisa da
Sua risada

e é uma loucura
eu sei 
mas realmente o que é que estivemos aqui
esse tempo todo tentando fazer?

não sou daqueles que acham que viram deus


e começam a dizer que deus é isso ou aquilo
aliás a Sua risada não é nada divina
ou é tão divina quanto

uma espinha de peixe entalada na garganta


de um vira-lata é possível até que em
algum lugar do mundo alguém cultue
a um cão-sardinha como uma espécie

de divindade eu não conheço muito


do mundo poxa não conheço nem tão
bem o contexto da Sua risada

contexto esse que eu tenho também


entalado na garganta se eu visse um
deus um segundo que fosse ficaria
de bico fechado faria um voto

de silêncio deus é uma espécie de


fim da linguagem no lugar de onde eu venho
e de onde você e a Sua risada 
também vieram

e é aí que está a diferença a Sua risada


a diferença é que a Sua risada
é um convite
é uma encantação à linguagem
uma linguagem que só pode ser
ela também desajeitada e cansada
e estranha 

220
desajeitada e cansada e estranha
como qualquer pessoa que 
carrega a própria porta
ou uma escotilha como no seu caso
mas que é uma porta
sem lado de dentro ou fora
no caso da antígona do brecht
segundo a anne carson

e realmente eu não sei bem o que é


isso que estive aqui esse tempo
todo fazendo ou tentando ou melhor
tentando e falhando.

221
o anarcomunicipalismo segundo lucia moreau
você está um caco

os médicos já disseram para você parar de tentar se mimetizar à cidade

há couves tronchudas menos enrugadas


e vacas indianas mais gordas

quando fomos ao rio de ônibus um dia e mal chegamos lá você comeu uma
empadinha de camarão azeda e um café com leite e um quilo de açúcar pôs os
pés no mar deu bom-dia ao fantasma da tia elza em copacabana e não passamos
nem uma hora no rio e você 

queria / precisava voltar

suas mãos chacoalhavam 


mais que o ônibus da viação cometa
suas mãos de carpinteiro velho
tremeram até que sentiram o vento de outono da estação rodoviária do tietê
então tremeram um pouco menos

mas foi só ao chegar a outra estação


a da luz
que você riu

222
uma risada tão sonora e projetada e aberta
que tive medo que a empadinha
fosse voltar à vida

a Sua risada 
ela já foi ao japão e à paraíba
mas hoje

ela pertence às coisas contingentes


às coisas circunstanciais 

ela está 
fora de contexto
em qualquer outro lugar

o bairro não é a luz


ou a cracolândia

é a parte do universo onde


a Sua risada 
é plena ridícula linda
como uma couve tronchuda.

223
josé, retratista e tratante
foi parar no méxico

o pacote que você enviou


com o retrato da minha mãe 
impresso em papel de algodão

você tem a habilidade de 


transformar o envio de um envelope
numa aventura infame

o plano era simples


e você já tinha tudo traçado
antes mesmo de ludibriar minha mãe a rir

tenho certeza que


quando foi aos correios perguntou 
qual a opção de envio com mais chance de dar errado

e ao escrever o remetente
fez com tal desleixo
que oaxaca poderia ser osaka poderia ser tiblisi

qual será o fim da foto da risada banguela da velha maluca?

ela será enviada


de cidade a cidade
de país a país
como se aquela risada fosse um pária?
ela vai parar num museu antropológico?
ela será usada como um pôster de prevenção às drogas?
ou então como a contraprova da lei da parcimônia de occam?

o mais estranho
e que você entendeu como ninguém

é que a aventura o revés 


já estavam ali.

224
Moema Vilela

eu já te falei
que te amo hoje eu pergunto
ao meu marido muitas vezes  
ao dia todos os dias por mais
ou menos três dos onze anos
em que estamos juntos assim
desse jeito em que eu o amo
como meu noivo e ele diz que 
sente que é novo porque deve 
ser verdade a cada vez 
e eu acho que é verdade 
também porque ele o sabe 
de maneira que há um tipo 
de laço mágico em esquecer
um pouco da devoção que já 
pisamos e de quem fomos juntos 
ao menos nesse instante de reafirmar 
algo ao mesmo tempo enorme 
e pontual com as palavras 
mais gastas do amor 
como é possível um encantamento 
reiterado e abundante
eu não sei e menos ainda 
como isso pode estar ao lado
de outras admirações em
lembrar e esquecer o que temos
nas costas por exemplo quando 
ele faz tudo o que não entendo
e não espero e desde quando
você gosta de suco de pêssego com 
espumante onde aprendeu onde 
se viu escolher esse tipo de atividade 
para colocar o seu dinheiro 
o seu templo as suas horas quem 
é você por favor me prove 
diga o nome de seu primeiro 
animal de estimação depois identifique 
fotos de semáforos hidrantes
você então talvez seja 
meu namorado ou apenas

225
um homem vivendo 
sua vida mais de verdade 
do que às vezes nos permitimos 
ou somos autorizados e isso é lindo
são momentos melhores do que 
quando eu já sei tudo que você vai 
fazer e vou ilustrar só com episódios
inofensivos por exemplo
você nunca mesmo vai deixar de 
lavar os copos por último com 
a bucha suja ou esquecer a 
chaleira botar fogo na casa
fazer mil vezes a mesma coisa 
que não é a melhor coisa a se fazer
como eu não saberia disso de 
uma maneira excruciante para nós dois 
porque – como falar e ouvir  
e amar e ser amado – ser julgado 
e avaliado também promove 
uma profecia autorrealizável 
embora eu fique tentada a me 
convencer de que estou apenas 
tentando evitar com todas as forças
levar a mesma rasteira 
de você de novo e de novo
ou deixar você apertar mais
a corda no pescoço daí 
lá vamos nós outra vez ser 
sei lá esposos companheiros 
ah não já sei o que somos
ele é louco eu digo à minha mãe 
à minha amiga somos o louco 
um do outro que podem até chegar 
em um ponto em que não sabemos 
mais de nada exaustos
largados nos tapetes na frente 
do computador pensando
o que é uma rasteira?
o que sou eu o que é ela
o que significam todas 
as coisas sobre a Terra
daí é meu nada talvez meu ex 
como dizem o pai dos meus 

226
“uma vez eu tive um” etc. e tal 
mas como não há rompimento
há apenas esse momento de estar
muito muito cansados e nem minha 
voz ele escuta mais ou minhas palavras 
eu vou tentando outros tons 
e alturas da minha voz mas 
esquecemos nossos corpos
eles se tornaram coisas práticas
e não acontecimentos tome aqui 
o contato para ver seus dentes na 
segunda-feira arrumei essa cadeira 
para você essa massagem que nos salva 
tanto o peso das horas e ainda assim 
tantas vezes perdemos a noção 
do que é de fato urgente
“olá, casal” ouvimos na parada
de ônibus com sorrisos amarelos 
quando somos pegos por colegas 
bem no meio de uma discussão 
sobre quem poderia ter esquecido 
um chiclete chupado em cima do sofá
ou se é possível comparar jazz com samba 
na intenção de escolher uma só música
melhor do que a outra
isso tudo nos fará rir no futuro
você é então a bússola 
que me aponta as fragilidades
onde gosto de ter razão e para
indicar isso às vezes você relincha
dizendo que estou sendo grossa 
não há risada comparável à risada 
de pessoas que vivem juntas 
sobrevivendo a tantos encalhes naufrágios
chicletes chupados grudados no tecido 
da noite e ao longo dos anos
nossos nomes e apelidos vão mudando 
chamamo-nos pelos nomes de batismo 
mas também por outros também porque 
outras pessoas nos chamam
elas chamam você e isso me ajuda a lembrar 
que você tem outros nomes apesar de 
que entre a gente às vezes parece 

227
que já nos chamamos de todas as coisas 
da casa e da rua e dos seriados
e dos elementos químicos sua barba
ficou prata os meus peitos seguram
dois lápis agora e você esteve 
depois e estará antes como essa grande 
companhia minha testemunha mor
e as percepções vão se alterando ou 
retornando vão se descobrindo
como essa fórmula mesma do “eu te amo”
para simplificar um pouco e de forma
curta minha adoração por você 
e por quem você é e que no momento 
é representada por uma formulação 
que tem durado esses três anos e isso 
é algo em que estamos mesmo muito 
metidos juntos 
juntos em não saber
qual é a duração de cada coisa em nós
sabemos sempre assim no momento
esse relâmpago pleno que acende
a rotação do planeta em torno do seu eixo 
e entre dormir e acordar há tempo para 
tantas bodas de céu e nuvens
duas pessoas juntas são muita coisa

Moema Vilela é autora de A dupla vida de Dadá [Penalux, 2018]


https://www.editorapenalux.com.br/catalogo-titulo/a-dupla-vida-de-dada

228
Patricia Peterle

A margarida do fogão
constantemente mede
a temperatura de utensílios
a da casa.
Lá fora também há margaridas
de outra espécie.
A alimentação é algo comum a elas.

É um indício da manhã
o singelo e ruidoso jato da cafeteira
na mesa talheres pratos xícaras
manteiga mel geleia entoados
ao perfume do pão torrado.
A tolha branca em pouco tempo
ganha contornos dourados
resíduos de sons vozes olhares
numa fina camada de migalhas.

Migalhas transbordantes de vida


memórias e sabores
nas ventosas do sol a recarregarem
tempos no tempo suspenso
que não mais retorna.

Patricia Peterle é autora de No limite da palavra: percursos pela poesia italiana [7Letras, 2015]
https://7letras.com.br/livro/no-limite-da-palavra/

229
Sílvia Saes

Fina estampa  
Para aumentar o volume das coisas
uso amarelo ou listras horizontais  
(gosto de listrar sacolas e óculos de sol das passantes) 
Para aprofundar o branco preencho com pequenas nuvens azuis 
Às vezes nada pega cor
e as coisas embaçam definitivas no vapor da tarde
Ao fim do dia vem o cansaço
Sei que amanhã as cores vão voltar para o seu lugar  
como o mundo as dispõe e devo recomeçar o trabalho de 
removê-las no tumultuoso miolo amorfo onde elas nascem 
Quando descanso minha cabeça na calçada
levo todas as cores ao seu íntimo frio   
Não sou esponja para as coisas virem assim 
imprimindo suas cores goela abaixo no corpo real do dia
— sobretudo no que chega imperioso despejando um século de sol em poucas horas
(e assombra reverberando luz)
mas também no pesado de mormaço fingindo promessa cinza e prata de sons molhados   
Aprimorei a técnica de posição da cor:
suspendo a cor da coisa, fitando-a incolor, antes de ver    
como ela se aninha ao meu desejo. Vivo nessa quebrada 
nessa abertura que cerca o esfrega-esfrega pele-a-pele com o mundo 
que não me vê, mas vejo como eu quero

231
1.
as coisas não funcionam
deste lado pontudo sem
‘como se’ é bem mais
bruto o mesmo uno
contínuo atravessado
do passado avesso
nessa etapa do deslizamento

2.
Cravei meus olhos no fundo dos olhos dos retratos dos reitores da parede do salão
nobre e aprendi o que são dez cataratas do Iguaçu de distância.

3.
Você me pergunta se o canto do galo é alegre ou triste
Eu me lembro do canto sanguinolento do galo de Clarice
E a terrível sinceridade do canto age sobre as ondas frescas

4.
Atualizações automáticas
Erros de março (vozes de um sistema de vida):
1. Não são “eles”, são as regras e não há ninguém por trás das regras, só uma
aplicação automática (o sistema é assim).
2. Não há ninguém por trás das regras.
Primeiro susto de abril: perdeu-se na Rótula do Abacaxi (no meio do acontecimento
a fissura o trincado um colado vencido).

5.
Análises buscam materiais subcutâneos e outras fibras. Talvez um deus nas mãos
vazias quando fecham. Quem sabe a dor concentrada das últimas imagens no terçol
do olho esquerdo sob as chuvas de junho. Buscam num corpo acontecido.

232
Um nome quase seu 
Esmeralda 
engastada em suporte frágil 
O teu lugar vai para onde eu for
Podes agora circular os pequenos vulcões 
na superfície flambada daquele nosso planeta 

Sabíamos dos estilhaços cortantes 


do gosto azinhavre do sangue
mas o teu brilho 
o teu brilho nos levou a mentir
por todos os sinceros

Quanto o tempo pode ser lento


Esmeralda?
As velas esperaram por toda uma vida 
no fundo de uma gaveta
enquanto discutíamos o tanto certo  
do alho enquanto os dias 
delicados carregávamos em pires
de louça chinesa enquanto

batíamos claras em neve 


na mola espiral que amortece  
e admirávamos como era denso
do fundo à superfície como era
leve a substância sem miolo
porque tudo é núcleo e se dissolve

233
Sofia Mariutti

bumerangue
a leitura de um poema
dispara da cabeça um projétil que vai
e volta com um novo poema
muitos desses bumerangues
estão planando no ar há anos
como satélites

234
com o carvão preencher
a página de sonho e de víscera
então com a ponta dos dedos
um pano limpo ou uma borracha
inaugurar o contraste
e todas as coisas
cobrir a luz de noite
invadi-la de novo
de razão

235
Seu livro novo chegou

A leitura se dá dentro do mar


em deslizamento

Subimos em ondas até a vertente


Tocamos o pé na rocha
descemos de volta pelo talude
traçando um desenho costeiro

Do fundo do mar notamos


a traseira de um corpo gigante
deslocar-se em um segundo fracionado várias vezes 
talvez uma orca ou um submarino 

Conversamos sobre a sensação dessa nossa dança marítima


perguntamo-nos sobre a natureza daquela aparição

A poesia não eram as rochas


as ondas a água
não era meu corpo 
o seu ou esse dorso pesado
passando por cima de nós

Tinha alguma coisa do gesto dos corpos 


na água de quem lê a incerteza 
do que nunca acabávamos de ver

Sofia Mariutti é autora de A orca no avião [Patuá, 2017]


https://www.editorapatua.com.br/produto/10346/a-orca-no-aviao-de-sofia-mariutti

236
Tânia Ralston

Privilégio 
Ouvi uma voz debaixo de uma pedra
Eram palavras eram cantos eram preces
Fiz um muro em volta 
Sentei em cima a escutar a voz

Pena de mim que vivo junto à pedra


Já não saio, vício 
Não sei onde sou onde é pedra

Um dia ouço ao fundo a voz


Dizer mal do peso
Revolta
Queria sair debaixo

Só essa me faltava

A pedra era eu e voz me pertencia


Tanto tempo havia se passado
A voz não podia

Ficou muda

Peguei minha casa 


e pus em cima da pedra

A voz reclama
A pedra bamba
Mas é casa, não deixo

Construo mais e mais


Mais peso, a voz não é livre
Nunca foi, só prendo mais

As preces são tão bonitas, que música!

A voz suplica 
A voz se revolta

Fiz muros altos

Já não escuto nada

06/06/2020

237
Eu
Nasci tão sozinha que meus joelhos nasceram juntos
Foram anos de botinhas ortopédicas
Para que não me arrastassem ao chão
Não se torcessem e aceitassem meus pés
Hoje não se tocam, cada um para um lado
E eu
em outro
no meio
ainda nascida

06/06/2021

238
A prece da baleia que clama
E o problema não estava nos retratos da minha face
Nas minhas vozes roupas estava nos olhos

E quando aquela poeta há muitos anos me disse


A frase solta e sádica:
“Pelos seus desenhos, vejo que você nunca amou
De verdade”
A porta abriu para outras poetas e
Cacos de espelhos quebrados entraram
Nas linhas das minhas palmas

Esta tarde coço meu corpo como se houvesse uma urticária


Descamo a eu-detestável e a sirvo sobre a mesa
Bem montada para um jantar a dois

Os sussurros entortam os talheres


Os ares amassam os guardanapos e as folhas
O nanquim jorra sobre a toalha e a escurece
Decodifico o choro das minhas pernas
Tranco o vento para fora do quarto e
Murmuro às minhas mãos:
“Deixe que esses cacos que lhe penetram
Iluminem meus traços e palavras
Dentro de mim, percorro mares”

7/6/2021

239
Sorrio tanto que quero dizer que te amo
Na penumbra do quarto nos deitamos
Aqui sinto a metamorfose do meu ser melancólico
Largo-me ao teu encontro
Ereto e nu
Olho-te como horizonte vertiginoso
Cobiçado por caravelas ancoradas
Mergulho
O calor de Lisboa transforma teu corpo em mar
Eu sinto o Tejo com o oceano quando te aperto
Teu gemido vem em cardumes
Que mapeiam nossas salivas
Mas minha boca anárquica se solta
E envolve seu ser como um tornado
Minha garganta é profunda
Puxo-te para uma nova cachoeira
E desaguamos palavras vulgares sem pudor
Pois viemos de uma terra sem lei que grita seca
E aqui a chuva vem mansa por toques
Meus peitos já são florestas inundadas
Minhas pernas têm sua bandeira fincada
Abraça-me
Nossos olhos missionários são pagãos.

27/09/2018

240
Inoperante
Repara neste galho comprido de folha seca da samambaia
Não está inteiro não está inteira está ao chão
Não está despejado arrastado está conectado a um embrenhado de galhos
(Como tu)
Repara e reflita quando foi a última vez que regaste a samambaia?
Ontem não foi, porque estiveste triste demais lendo o jornal.

11/06/2021

241
Num piscar sou meu irmão, meu pai ou minha mãe? Não.
Há uma mancha no espelho
Da espelhadeira que meus pais me deram
Mancha não manchas muitas vinte
Há manchas redondas escuras degradê até o centro
Que se vê o fundo do avesso
Ao contrário é o ponto que o espelho não lhe vê
De onde estou, é um respiro.

21-06-2021

242
Ter seu caminho cruzado por tucanos
Você precisa aprender a parar no meio
E aceitar o que não sabe mais
Ou nunca soube e estar em paz
Ver os tucanos comerem os filhotes
E achar bonitos os bicos dos peitos
Das chupadas e dos pássaros.
Você precisa.

Tânia Ralston é autora de Devastação [Quelônio, 2020]


https://www.quelonio.com.br/product-page/devastação-tânia-ralston

243
Tarsilla Couto de Brito

Sem título
Numa madrugada de orelhas amarelas do mês de maio
de mil novecentos e sessenta e oito faleceu a poeta
tarsilla couto de brito – com setenta e dois anos
e sem as razões últimas estabelecidas para uso do ponto final

Pediu uma necropsia (que era direito seu) e não negaram


médico e auxiliares identificaram perfurações de bala
ofensas com instrumentos cortantes, profanações com rastros
de envenenamento, violações nas intimidades mucosas
doze tatuagens, duas cicatrizes abdominais e uma lembrança
(um corte rasurado debaixo do seio direito)
das ruínas de são miguel das missões

Ato contínuo, o médico talhou o couro cabeludo


de uma orelha a outra para fazer sorrir a máscara
e retirou a tampa do crânio com uma serra elétrica
mas desistiu de arrancar o cérebro quando se lembrou
da quantidade de nervos que o conectam ao corpo
da quantidade de corpos que se conectam pela fome
da quantidade de fome necessária para pegar em armas

Por fim, desenhou-lhe com bisturi um T invertido que descia


elegantemente do pescoço até o umbigo – rugosidade
côncava onde o corte trava engastalhado
em fibras e memórias sem nome – insistiu um pouco
e finalizou seu verso na região cheia de pelos desamparados
voltou à cavidade peitoral que se insinuava e enfiou uma das mãos,
identificou um buraco no lugar do pulmão direito
depois trouxe à superfície o pulmão esquerdo
causando grande repulsa entre os auxiliares

“que coisa nojenta esse poema assim tão útil”

244
Estudo de si
Se minha avó não tivesse sido desprezada pelo Dr. João Rassi
Se não encontrasse vingança num casamento com um Antonio Português sem nome
Se não construísse sua autoridade deixando os três filhos homens dormirem num
alpendre frio porque chegaram atrasados para o jantar
Se não manifestasse sua raiva jogando a sopa quente na cabeça de um pedinte
Se não fosse a melhor salgadeira de Goiânia
Se meu avô se levantasse daquela poltrona daquele quarto escuro onde ninguém
podia entrar – seu avô não gosta de visitas
Se meu avô a acompanhasse naquela viagem ao rio Araguaia em 1986 – seu avô
nunca gostou de viagens –
Se ela não mantivesse uma mucama preta como escrava até os filhos crescerem de
adultos – ela é da família
Se ela não tivesse o filho alcoólatra leitor de Dostoievsky
Se ela não tivesse o segundo filho alcoólatra que viajou a Bahia para se matar
Se as duas filhas não fossem donas da igreja Sara Nossa Terra
Se ela não apertasse minha mão toda vez que precisava mentir na minha frente
Se ela não fosse mãe do meu pai
Eu não encontraria no SE o assombro de mim

246
Thais Henriques

A revolução do Poema
Entre tantas escolhi duas, pouco expressivas contudo comigo relacionadas. O
combinado era naquela semana, mas já se iam três meses e hoje imagino, aconteceu
em algum dia entre uma quinta e sexta-feira.
O endereço era quase vizinho e indicava onde encontraria as duas palavras.
IMÃ e FAÍSCA estavam em um ateliê juntas em bordados e bandeiras separadas que
formaram par. Aliás não eram bandeiras eram flâmulas - na parede ao lado se via o
restante das palavras, muitas, juntas cada uma em sua flâmula - seriam também uma
família? Poderiam ser família sem se relacionar.
– Teria um coletivo para bandeiras?
– Não eram bandeiras eram flâmulas.
Mas se fossem bandeiras seria manifestação? e se fosse manifestação - a atração do
IMÃ seria a pulsão da FAÍSCA – Revolução.
Penso na distância que sempre me separou das palavras – já atuavam estas nas
minhas extremidades, polos opostos próximos – quase vizinhos.
Penso nas palavras da parede – se flâmulas fossem bandeiras e se fosse o IMÃ a
FAÍSCA e FAÍSCA a pulsão da manifestação de palavras – então quando eu saísse e as
levasse comigo, a manifestação dispersaria e tudo voltaria ao normal, sem revolução.
Na porta, sem mais palavras ela me disse que poderia vir quando quisesse e até
quando quisesse, todos eram bem-vindos nas suas diversas formas de expressão.
Funcionava em quatro encontros mensais, e depois quem quisesse que continuasse.
A manifestação ocupava a minha cabeça que procurava notícias nos jornais e talvez
encontrasse outras palavras, era preciso fazer alguma coisa. Cinco dias depois voltei
lá, busquei POEMA.

248
Thiago E

a travessia do fantasma
um fantasma atravessa minha casa
e toca a construção, seus danos físicos
olha o teto sem luz muito infiltrado
são lâmpadas quebradas e goteiras

minha casa atravessa seu fantasma


quer tanto compreender o que angustia
criou escuras manchas na tintura
buscando defender-se desse enigma

por pensar que paredes têm ouvidos


e nunca dão palavras definidas
somente loucos falam com paredes
ninguém escuta a dor das rachaduras

da rua, um gato pula até a janela


podre, o peitoril cede, espanta o bicho:
enquanto a casa tenta a solução
no chão mais um reboco se espatifa

249
Tite de Lamare

ela nunca mente sobre pulsos


1.
giro as mãos
exponho pulsos à visão
veias expostas
vulneráveltranslúcida
carne
onde passado/ presente escavam
rios sob a pele
na velha amendoeira
as raízes explodem a calçada
o subsolo escancara seus dentes
sob um raio de sol
perceber ou supor
que no combate/ na última trincheira
o mundo não desaba

2.
os pulsos desnudos e pedintes
à porta do banco se espremem
barrados por 10 mm de vidro
temperado
a impotência desce pelos braços
a cidade me sobe com todas as
impurezas
o muro de bolor expandido
pelas ruas
faltaria uma única joaninha
um pouso sobre punhos fechados
para anunciar um dia de sorte

3.
Pergunta-se:

o pulso é de todos?
de um só
uma onda?
uma palavra paroxítona?
uma zona externa?

250
uma pulsão interna?
um pulso aberto ao silêncio?
um pulso flutuante em vento?
um pulso profundo em sangue?
Um pulso iceberg?
um pulso tobogã?

quantos pulsos apanhados no fino ar?

ela nunca mente sobre pulsos


apenas tira a roupa
antes mesmo de se enredar
nos fios de seda das carícias

251
por aqui os cavalos ainda não galopam
alguém me indica o caminho para evitar
o poema-planta
tocar o espaço do vazio
por onde galopam cavalos
dizer que é o vazio do meio
quem faz andar a carroça

a casa é furada com portas e janelas


contra o silêncio do ar
no entanto eu a quero com
um piso de azulejos lilás
que permita a explosão de amebas
solares nas paredes
essas enormes mãos 
uma vermelha e uma verde querendo
agarrar o rabo de uma estrela em explosão
o vazio do meio é quem faz andar a carroça
já te avisaram
tento várias vezes /mas há sempre a cadeira rosa
e uns pratos de porcelana pintada pregados no armário
da cozinha de Giacomo Balla que me tiram do sério

alguém apagou os personagens do quadro “As meninas” de Velásquez


e jogou o vácuo no meu colo/confesso que estranhei embora aquela luz
lá no fundo sempre me dissesse algo sobre os segredos da vacuidade

sinto as bordas das coisas o tempo todo


em cada canto ocupado
na quina da mesa mineira 
na corcova do búfalo esculpido em bronze 
na pequena folha sobre a fruta de cerâmica chinesa 
no quadro em que o pintor do Casaquistão
colocou o cão branco do autoritarismo sobre a figura de
um homem e uma mulher que ela todo-santo-dia me aponta com os dedos
dizendo serem irmão e irmã

formatando-se um jogo de dados composto de lembranças


e as transformando em incenso
continuaria o passado um vácuo capaz de ficar no tempo

252
como o fogo na brasa que não se extingue
deixando a etiqueta “dispensa de habitação”

seria o branco no branco suprematista


de cuja sombra nasce seu gêmeo negro
onde você encontraria o vazio tentacular
entre as manchas que cobrem
uma das três luas de Saturno
?
entretempos cato todas as sementes que se extraviam do travesseiro aromático já
[sem aroma e meto uma rosa no jarro d’ água

Tite de Lamare é autora de O que não cabe na boca [7Letras, 2021].


https://7letras.com.br/livro/o-que-nao-cabe-na-boca/

253
Úrsula Antunes

Vácuo
À Alejandra Pizarnik

Espelho tanatológico
Ecos do não ser
                (ou do existir ausente?)
Vida em consolidação
              É
         O fim

Recomeço do lado 
Contrário
Espelho distorcido
Só aí consigo
Tocar meu rosto.

Nada é suficiente
           Suficiente
         É
Nada.

Úrsula Antunes é autora de Queda livre e outros contos [Multifoco, 2013].

254
Venus Brasileira Couy

Árvore de Alejandra
“Se o grão não morre”
em Avellaneda ou Paris,
Alejandra Pizarnik dará mais um trago e
as páginas dos poemas breves,
do diário ou das cartas numeradas
continuarão a escrever-se e
a traduzir-se
qual mão liberta
que não sente o abscesso,
a ausência em pássaro,
a morte em vida.
E a escrita surgirá
numa profusão de guimbas
e restos em p&b.
As horas não se lembrarão do tempo,
tampouco dos cinzeiros,
do voal das cortinas,
das paredes trincadas,
das enxaquecas,
das cartelas vazias de seconal.

Os advérbios gagos e
asmáticos
bebem o ruído e
o silêncio
da “grande garganta escura”.
Escrevo o sim,
o não,
o quase dos poemas e
das pétalas caídas.
Tomo muitos copos de água
e a sede orbita,
orbita,
entre os dentes
e anfetaminas.
Trago os dedos feridos
e a minha palavra é noite,
sempre a mesma,
sempre outra:

255
pedra,
vento,
chuva,
silêncio,
sombra,
infância – onde não quero mais voltar.

No primeiro hotel,
o caderno de sonhos,
o lápis de colorir,
Ostrov e Cortázar,
a quem caberá a escuta derradeira?
Na palavra-valise,
o embotamento em fogo,
o mar em jaula
o adeus em versos:
“passageira obstinada da ausência,
sem bagagem nem papéis”.

O poema é um embuste
e ainda
me atrevo a escrever.

12 de maio de 2021.

256
Carta à mãe
Quando você se for,
não terei mais teus olhos verdes a fitar-me 
e a escrever a solidão em sonho
sobre a pele ao sol,
as flores da sala de jantar te cobrirão o rosto,
as folhagens que te acompanham
de uma casa a outra 
serão teu robe salpicado de brilhantes. 

Quando você se for,


máscaras forradas interpelarão teu nome,
o quarto escuro
te chamará em voz baixa ao telefone,
as pérolas de teu colar
saltarão do estojo de cetim e
ignorarão o tempo,
as horas lentas da noite. 
(A caderneta fala o mudo silêncio dos dias)

Quando você se for,


quem buscará na esquina grampos para os cabelos e presilhas para as cortinas?
Quem verá um vulto ao entardecer e escutará vozes atrás das paredes?
Quem trancará cada uma das portas todas as noites e perguntará: 
– Quem está aí?
(O poste de luz abraça as sobrancelhas ralas)

Quando você se for,


as chaves estarão sempre nos lugares,
o atajé ditará solene a rotina dos dias, 
as revistas tomarão de empréstimo a vida alheia em conversa.
(Os batentes retocam o rímel das pupilas)

Quando você se for,


não terei mais o espanto de suas mãos
a cobrir memórias brancas de novilhas em pasto e
a reunir meias desencontradas no horizonte das janelas.
Os lençóis sem vinco pedirão a dobra do teu corpo,
carta-anágua sobre a pele esquiva das palavras.

30 de maio de 2021.

257
Tributo a Rodolfo Walsh
“Aqui fecharam teus olhos”,
bem aqui,
ao lado do clube alemão,
no aterro sanitário, aberto e escravo,
desapareceste na noite escura,
o jornal não publicou obituário
tampouco a última matéria, 
entre uma partida e outra de xadrez,
um café e outro,
a mesa vazia e
surda.
Não há corpo de delito,
em Lamarque, 
San Vicente
ou às margens do Rio Negro.
Não há.

As casas sussurram teu nome de batismo e


também os de guerra  
sob o vendaval dos postes de luz, 
das árvores baixas e 
do burburinho das esquinas,
“Professor Neurus”, “O Capitão”, “Esteban”,
posso ainda escutá-los, 
em sofreguidão e uníssono.

Desapareceste em borrão e bruma


em 27 de março de 1977.
Ouviste a senha em meio à partida de xadrez,
ouviste? 
“Há um fuzilado que vive”.

O motorista que dirigia o caminhão indaga em desafio:


“Para onde vão?”
“Para a névoa de nenhures”, afirma o oficial.
Ir para lugar algum e
juntar-se aos 30.000 que sumiram,
em vulto e rol de cadarços, 
outro teria sido o timbre?
“Algo terão feito”.

258
Quais noites e muros acolherão tua letra informe?
A solidão dos gatos ecoa os dias pálidos.

A Estação de Metrô Entre Rios,


a Escola de Educação Média nº 01,
a Escola de Educação Técnica nº 02, de Florêncio Varela,
a Escola Municipal Secundária nº 210, em Mar Del Plata,
a Escola  Secundária nº 04, de Adolfo Gonçalves Chaves,
a Escola Secundária na Província de Córdoba,
a Escola Técnica nº 02, na Prata
trazem teu nome em placa e filigrana,
marca d’água em pena, 
tinteiro em cobre,
palavra em punho ou pássaro:
“mande cópias aos amigos”.

Antes mesmo de Hemingway, Rubén Dário ou Truman Capote,


criaste, Rodolfo Walsh,
o romance de não ficção,
e, à maneira de um prólogo
ou epílogo,
escreveste teu rastro em voo.

12 de junho de 2021.

259
Educação poética

A rebelião consiste em olhar uma rosa até pulverizar os olhos.


Alejandra  Pizarnik

Matei a aula de ontem na faculdade


bem no dia em que o professor de teoria literária ia falar de Agamben,
fiquei sem saber o que é afinal o contemporâneo,
os botões do lírio amarelo que trouxe do supermercado no dia dos namorados
não floresceram,
conversei com cada um deles e me disseram que não há por quê.

Peço pouco ao poema e ele me agradece por isso,


“meus versos não vão mudar o mundo”
e nem pretendem fazer o percurso de volta,
eles caminham como os quinze elefantes na China
que o texto de Luana Chnaiderman e a TV mostraram,
e seguem adiante.

Não é preciso mais fazer poemas ao caranguejo


ou às árvores secas,
um poema pode morrer
ou simplesmente deitar-se ao sol às dez da manhã. 
Fico impaciente se a água do chá não ferve tão rapidamente,
se deixo as chaves caírem,
se você faz barulho 
ou não chega no horário de sempre.

O poema não traz o ritmo do Piseiro,


tampouco as palavras que grudam na língua,
mas escreve a dor do menino marroquino que atravessou o mar
tentando chegar à Espanha
com garrafas plásticas amarradas ao corpo,
o sonho do lado de lá boia sob o sol 
e grita o desespero do jovem Hassan.

A educação poética pode vir da travessia,


da água salobra,
dos muros,

260
de uma tarde de amor,
da Costa do Marfim
ou de uma farmácia na Califórnia.

No desassossego do dia,
o negativo brilha
e você ainda me cobre todas as noites.

O poema sorri como o pescador de lagostas Michael Packard


que sobreviveu após ter sido engolido por uma baleia jubarte a 200 km de Boston
e agora faz o sinal de joia com os polegares sobre a cama do hospital.
Trinta segundos foi o tempo em que ficou lá dentro, no escuro daquela boca,
e depois foi cuspido.

Não tenho professor de matemática


e sim de Poesia,
que costura a revolta dos versos
entre o movimento das mãos,
o professor diz que quem perdeu muito vai escrever poesia.
O discurso do triunfo vem servido em bandejas de prata,
o poema fracassa e a tarde está míope.
O apê em Botafogo é do tamanho do mundo
e não estamos sós.

20 de junho de 2021

Venus Brasileira Couy é autora de Quase poema [7Letras, 2021], entre outros.
https://7letras.com.br/livro/quase-poema/

261
Vitor Barros

No palácio
os bumbos batendo
embaixo da blusa
(no tórax)
bolas-aéreas
boiando no baile

vibravam com os
flashes-fumaça
refratados
por quem me tocou.

desaguava ali no ar turvo


todo respiro onde nadávamos, a imagem mais distante
duma prisão que jamais
vivi.

os sons os passos os bumbos-grave


me engoliam e cuspiam.
explodiam e voltavam ao estômago como um crescendo de Tchaikovsky

o pulso livre e constante me tomava


em uníssono-espectral
tornava-me
Corpo num universo-synth, repleto de placas neon.

com o roçar das barbas,


o sarrar der Sachen [das coisas],
prensado na parede, cada passo, meu ou alheio, era uma pequena revolução

pouquíssimos, o céu de assalto tombávamos


e a jato um viver-junto
implodíamos.

hoje confesso que então


nunca me ocorria Tchaikovsky
e que desconhecia a necessidade de assembleias.

por outro lado, o que me ocorria


talvez se traduza pelo verbo de outrem:
um quê de Beleza é uma alegria eterna.

262
Anne Carson [tradução: Martim Moreau Maita]

A tarefa do tradutor de Antígona


querida Antígona:
seu nome em grego significa algo como “contra o nascimento” ou “em vez de nascer”
o que há em vez de nascer?
não que queiramos entender tudo
ou mesmo entender qualquer coisa
nós queremos entender alguma outra coisa

eu sempre volto a Brecht


que fez você estar a peça inteira com uma porta atada às costas
uma porta pode ter diversos significados
eu estou do lado de fora da sua porta
o estranho é que você também está do lado de fora da sua porta

aquela porta não tem dentro


ou se tem, você é a única pessoa que não pode entrar
para a família que ali mora, as coisas deram irremediavelmente errado
ter um pai que é também seu irmão
significa ter uma mãe que é também sua avó

uma irmã que é ao mesmo tempo sua sobrinha e sua tia


e outro irmão que você ama tanto que quer deitar-se com ele
“coxa a coxa no túmulo”
ou assim você diz de relance no começo da peça
mas ninguém fala mais nisso depois

ah você sempre exagera! meu pai costumava me dizer


e vale anotar aqui Hegel chamando a Mulher de “a eterna ironia da comunidade”
até que ponto podemos levá-la a sério?
é você “Antígona entre duas mortes” como põe Lacan
ou uma paródia da lei de Creonte e da língua de Creonte – como Judith Butler

que também vê em você “a ocasião para um novo campo do humano”?


ainda, “um exemplar de masculino intelecto e senso moral”
é o julgamento de George Elliot, enquanto para vários estudiosos modernos você
(talvez previsivelmente)
soa como uma terrorista

e Žižek compara você triunfantemente a Tito


o líder da Iugoslávia dizendo NÃO! a Stalin em 1942
falando nos anos 40, você impressionou o alto comando nazista

263
e ao mesmo tempo os líderes da Resistência francesa
quando todos eles estavam na plateia
da Antígona de Jean Anouih

na noite de estreia Paris 1944: eu não sei que cor seus olhos tinham
mas posso imaginar você virando-os agora
voltemos a Brecht, talvez ele tenha entendido melhor
carregar a própria porta faz uma pessoa
desajeitada, cansada e estranha

por outro lado, pode ser útil


caso você vá a lugares sem entrada clara, como a normalidade
ou uma clara saída, como o clássico duplo vínculo
bem este é seu problema
meu problema é atravessar você e seu problema
do grego antigo para o inglês
tudo aquilo que é oculto naquela gente, a sua gente
crimes e horror e anos passados juntos, uma família, o que a gente chama de família
“uma das minhas primeiras memórias,” escreveu John Ashberry em uma revista nos
anos 80
“é tentar arrancar o papel de parede no meu quarto,
não por raiva
mas porque parecia haver algo fascinante 

atrás daqueles galeões e globos e telescópios”


isso me lembra Samuel Beckett que descreveu em uma carta
suas próprias aspirações sobre a linguagem
“fazer furo depois de furo até que aquilo que se acovarda atrás dela vaze”
querida Antígona: você é também alguém que ainda tem fé

com uma organização profundamente diferente que está logo abaixo do que a gente
vê ou diz
para citar Creonte você é autonomos
uma palavra inventada a partir de autos “própria” e nomos “lei”
autonomia soa como um tipo de liberdade
mas você não está interessada em liberdade
seu plano

é costurar-se à sua própria mortalha usando o mais ínfimo dos pontos


como traduzir isso?
eu me inspiro em John Cage que, quando perguntado
como ele compôs 4:33, respondeu
“eu armei isso gradualmente a partir de várias pequenas peças de silêncio”
Antígona, você não,

264
ou não mais do que John Cage, aspira à condição de silêncio
você quer que a gente escute o som das coisas que acontecem
quando todo o normal/musical/cuidadoso/convencional ou piedoso é retirado
ah irmã e filha de Édipo,
quem pode ser inocente ao lidar com você
nunca houve uma folha em branco

nós sempre estivemos já ansiosos a seu respeito


talvez você conheça o poema da Ingeborg Bachman 
dos anos finais de vida que começa
“Eu perco meus gritos”
querida Antígona,
considero que é tarefa do tradutor
proibir você de perder seus gritos.

265
Friederike Mayröcker [tradução: Márcia Huber]

do que você precisa


do que você precisa? de uma árvore de uma casa para
medir como é grande como é pequena a vida do ser humano
como é grande como é pequena quando você olha para a sua copa
e se perde na beleza verde exuberante
como é grande como é pequena você pensa como breve
a sua vida você a compara com a vida das árvores
você precisa de uma árvore, você precisa de uma casa
não toda para você apenas um canto um telhado
para sentar para pensar para dormir para sonhar
para escrever para calar para ver o amigo
as estrelas a grama a flor o céu

para Heinz Lunzer

was brauchst du
was brauchst du? einen Baum ein Haus zu
ermessen wie groß wie klein das Leben als Mensch
wie groß wie klein wenn du aufblickst zur Krone
dich verlierst in grüner üppiger Schönheit
wie groß wie klein bedenkst du wie kurz
dein Leben vergleichst du es mit dem Leben der Bäume
du brauchst einen Baum du brauchst ein Haus
keines für dich allein nur einen Winkel ein Dach
zu sitzen zu denken zu schlafen zu träumen
zu schreiben zu schweigen zu sehen den Freund
die Gestirne das Gras die Blume den Himmel

für Heinz Lunzer

266
melhor viajar no pensamento, Hokusai
sobre as costas, ou sob a lâmpada,
correr ao pé do Fuji e erguer os olhos
para o pico nevado, as botas de neve
úmidas e frias, a gola murcha.
Como, eu pergunto, exploração da distância
com os próprios pés, como, eu pergunto, experiências da distância
com os próprios olhos. Como conciliar o desejo pelo distante
com o sedentário. Como, pés e olhos,
lágrimas e prazer.

lieber in Gedanken reisen, Hokusai


auf dem Rücken, oder unter der Lampe,
laufen zu Füszen des Fuji und blicken hinauf
zu verschneiter Spitze, die Schnürstiefel
feucht und kalt, die Halskrause welk.
Wie, frage ich, Erkundungen einer Ferne
mit den eigenen Füszen, wie, frage ich, Erfahrungen einer Ferne
mit den eigenen Augen. Wie Sehnsucht nach Ferne
mit Seszhaftigkeit vereinen. Wie, Fusz und Auge,
Träne und Lust.

267
Inventário de um hiato de vida
na minha mochila
um galho de tomilho
duas moedas
um lápis sem ponta
notas amassadas
migalhas de biscoito
um prendedor de roupa verde
o cartão de visita de um germanista japonês
um pequeno pente quebrado
as formigas de Dalí sobre uma partitura amarelada

para Emi Neckamm

Eines Lebensabschnittes Bestandaufnahme

in meinem Tornister
ein Thymianstämmchen
zwei Münzen
ein stumpfer Bleistift
zerknitterte Notizen
Keksbrösel
eine grüne Wäscheklammer
die Visitkarte einer japanischen Germanistin
ein zerbrochener kleiner Kamm
Dalís Ameisen auf einem verschatteten Notenblatt

für Emi Neckamm

268
Friederike Mayröcker (1924-2021)
© Isolde Ohlbaum

269
Irene Gruss [tradução: Clarisse Lyra]

O jardim
Você está cansada da viagem, Diana?
Deixou as malas e saiu para ver o sol
em seu jardim, foi até lá
rapidamente, pausadamente?
Deu uma olhada nas plantas
ou viu cada uma, sabendo-a
descobrindo-a, tu cuida
de teu jardim, canta com
o regador na mão?
Está cansada da volta da viagem,
Diana? Está contente?
Alguém lhe acariciou, brincou outra vez
com sua mecha de fênix,
beijou suas pálpebras
como quem deseja tocar
um olhar assim de azul, de cinza
conforme o tempo? Você foi feliz,
Diana? Intensa e dura, a viagem?
Acomodou a cabeça no assento do avião,
descansou?
Está repleta de memória, de sentidos
com a viagem, Diana?
Almoçaria comigo para me contar?
Você passou fome na estadia,
Diana, você passou fome?
Embebedou-se? Em algum momento
chegou a ficar enjoada com a viagem?
Em algum momento, sentiu
esse nada na boca
do estômago, ali onde dizem que
fica a alma? Encheu
com o que esse nada, com pessoas,
com coisas, sentiu
necessidade? Observou
a vida tranquila, assim como lhe vejo
agora, calma
e sabichona? Você conheceu
a morte na viagem,
Diana? Ela lhe assustou, você a assustou?

270
Você trouxe fotos, postais,
documentos, abraçou
muita gente, foi abraçada?
Você gozou, traduziu o amor
louca de desejo? Falou muito, calou
muito? Por que
está me dizendo
que escrever é a única coisa
que temos? Você está
cansada, é por isso, porque
está cansada da viagem? Quer
dormir, recostar-se em um ombro,
quer rir, chorar um
pouco? Por acaso a viagem
não lhe consola,
Diana? Não é como o tato
de outra mão, não é, verdade?
Você almoçaria comigo para
me contar?
Já floresceu a rosa
em seu jardim? É tão linda?
As pétalas irromperam
plenas de vida, a vida é
púrpura depois de uma viagem,
Diana,
é assim?

271
Índice

1
Agi Mishol
Gansos7
O marco da porta 9
Segunda-feira11
A jovem mártir 12

Saburo Kuroda
Vento de setembro 14

Montserrat Álvarez
Fracasso eu te canto 16

Heberto Padilla
O presente 18
Canção das amas de leite 20

Adi Keissar
Ars poética 21

Wislawa Szymborska
A garotinha que puxa a toalha 22

Jack Gilbert
falhar e voar 23

2
Robin Myers
O retorno 30

Shinjiro Kurahara
Uma raposa 32

Juana Adcock
Do amor e as línguas a ponto de morrer 36
Sayaka Osaki
Suihanki39

Patricia Cavalli
O coração nunca está seguro, por isso 41

Flora Francola
Ninguém me escreveu um poema 47

Vasko Popa
A porta 48

3
Oksana Vasyakina
Quando vivíamos na Sibéria 58

Denise Duhamel
Sexo com um poeta famoso 67

Adina Dabija
Anos e corvos 70

Angela Marinescu
Atração71

Ana Ristovic
Olha dentro 72

Beth Ann Fennelly


Um poema para não ler no teu casamento 73

Sujata Bhatt
O que aconteceu com o elefante? 74

Wu Ang
Peitos76

Charles Simic
Dezembro77
Mil anos de solidão 77

Audre Lorde
Saara78
4
Yehuda Amichai
O pátio do colégio 84

Eugenio Montale
Os elefantes 86

Solja Kapru
Pessoas assim 88

Montserrat Álvarez
Pesadelo n. 2 Prece 90

Ingibjörg Haraldsdóttir
Mulher92

Al-Saddiq Al-Raddi
Sem respirar 94

Golgona Anghel

Lidija Dimkovska
Requerentes de asilo 98
Diferença100
Meu túmulo 101

Dani Umpi
panoptismo:102
gourmet:103
Cinema, comida e futebol 104

Agi Mishol
Sete céus 106
oficina

Alexandra Maia
Tentar e falhar 108
perdi meu corpo 109
pense numa pessoa confusa 110

Álvaro Uliani
Revolução111

Ana Amália Alves


Ruminações112
Hei de comer coelhos 112
Parfois c’est qu’en langue 113
Désolée, monsieur, j’ai une petite question  113

Ana Freitas Reis


O cavaleiro, a morte e o diabo 114
Um pouco antes do fim 114
Um pouco antes do fim II 115
Um pouco antes III 116
Um pouco antes IV 117

André Miranda
dobrou as esquinas118

Augusto Britto
Dá uns amassos num leão pra mim119
La valse des étoiles  120
A valsa das estrelas 121

Bruna Corazza
quem me espera do outro lado da cachoeira 122
Descanso n. 3 124
Ainda sem rosto 126

Cacau Costa
Primeiro, você descobre. [...] 127
Sem capacetes 128
Tesourinha  129
Plano130

Caroline Prince
E etc. 131
Christina Autran
Uma pedra real e tangível não é uma metáfora   132
em que viver sozinho não é deixar de viver junto
ou coisas que vêm de um lado cinza da mente 133
meu coração é quente, peludo, e tem dente 134

Cleo Vaz
Das paredes, cetins queimados 135
Vera Ballroom 136
Domingos137
Terra Firme 139

Daniela Storto
O homem do casaco marrom 140
Marion on the rocks 143
A cantora entra na cozinha do navio; bebe do copo d’água; derruba e cai 144
A lã  145

Denis Rafael Ramos


Então invocas o passado 146

Duda Las Casas


Ele me levou para casa  147
Rompe corações  148
In box 149
Eu tenho um fósforo gigante  150

Eric Pestre
Montagem151
Mudança de estação  152

Fáthima Rodrigues
Embrulho da agonia 153
Dia-em-dia154

Gustavo Galo
dia 10  156
dia 15  157
dia 23  159
dia 24 160

Halina Grynberg
Cicio161
Cinco Marias 162
Partitura164
Inês de Araujo
Como se você visse alguém que reconhecesse passando [...] 165
Kintsugi165
Nem a ambulância com sua sirene se degradando
como uma mancha vermelha [...] 166

João Cardoso Vilhena


Às voltas com tarefas até ao fim do mundo 167
À espera do abandono 169
Um prosaico poema sem tema 170
Nós e pontos para um poema  171

Jonathan Fontenelle
Isso não é real 172
Olha a tela do computador  173

Leão Zagury
Ideologia174
Cozinha 1 175
Estranho176
Varanda177

Lila Andreoni
Antes  178
Orfanato179
Nossos beijos não eram de língua 180
acessórios  181

Luana Chnaiderman
Para onde vão os elefantes? 182
Inventário.184

Luiza Mussnich
enchente  187
exercício de desapego I189

Márcia Huber
a rocha fazia confissões ao corpo 190
no dia dos teus anos191
Manhãs de maio 194

Marcílio Godoi
Trespasse  197
Pinho Sol Lavanda embalagem econômica 199
O camelo 201
Storyfalling204
Maria Clara Escobar 
a pátria é bobagem, sabemos205
amo ele206

Maria Clara Parente


olhando para o sári roxo que veio do campo de refugiados de Dhaka,  207
travessia  208
cafofo do mundo 209

Maria Ignez Barbosa


Ao sussurrar das pequenas coisas  210
Encantoando Camões 212
Zonzada213

Mariana Porto
Passo214

Marília Valengo
Rascunho de uma elegia 216
Segundo ato 217
Tamanho único 218

Martim Moreau Maita


então estivemos aqui já faz um tempo 220
o anarcomunicipalismo segundo lucia moreau 222
josé, retratista e tratante 224

Moema Vilela
eu já te falei 225

Patricia Peterle
A margarida do fogão229

Sílvia Saes
Fina estampa   231
1. as coisas não funcionam232
Um nome quase seu  233

Sofia Mariutti
bumerangue234
com o carvão preencher  235
Seu livro novo chegou 236
Tânia Ralston
Privilégio 237
Eu238
A prece da baleia que clama 239
Sorrio tanto que quero dizer que te amo 240
Inoperante241
Num piscar sou meu irmão, meu pai ou minha mãe? Não.  242
Ter seu caminho cruzado por tucanos 243

Tarsilla Couto de Brito


Sem título 244
Estudo de si 246

Thais Henriques
A revolução do Poema 248

Thiago E
a travessia do fantasma  249

Tite de Lamare
ela nunca mente sobre pulsos 250
por aqui os cavalos ainda não galopam 252

Úrsula Antunes
Vácuo254

Venus Brasileira Couy


Árvore de Alejandra 255
Carta à mãe 257
Tributo a Rodolfo Walsh 258
Educação poética 260

Vitor Barros
No palácio 262
traduções

Anne Carson [tradução: Martim Moreau Maita]


A tarefa do tradutor de Antígona 263

Friederike Mayröcker [tradução: Márcia Huber]


do que você precisa 266
was brauchst du266
melhor viajar no pensamento, Hokusai 267
lieber in Gedanken reisen, Hokusai267
Inventário de um hiato de vida 268
Eines Lebensabschnittes Bestandaufnahme268

Irene Gruss [tradução: Clarisse Lyra]


O jardim 270
281

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