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junho / 2021
carlito azevedo
Adi Keissar • Adina Dabija • Agi Mishol • Al-Saddiq Al-Raddi • Alexandra Maia •
Alvaro Uliani • Ana Amália Alves • Ana Freitas Reis • Ana Ristovic • André Miranda
• Angela Marinescu • Anne Carson • Audre Lorde • Augusto Britto • Beth Ann Fennelly
• Bruna Corazza • Cacau Costa • Caroline Prince • Charles Simic • Christina Autran •
Clarisse Lyra • Cleo Vaz • Dani Umpi • Daniela Storto • Denis Rafael Ramos •
Denise Duhamel • Duda Las Casas • Eric Pestre • Eugenio Montale • Fáthima Rodrigues •
Friederike Mayröcker • Golgona Anghel • Gustavo Galo • Halina Grynberg
• Heberto Padilla • Inês de Araujo • Ingibjörg Haraldsdóttir • Irene Gruss • Jack Gilbert •
João Cardoso Vilhena • Jonathan Fontenelle • Juana Adcock • Leão Zagury •
Lidija-Dimkovska • Lila Andreoni • Luana Chnaiderman • Luiza Mussnich • Márcia Huber
• Marcílio Godoi • Maria Clara Escobar • Maria Clara Parente • Maria Ignez Barbosa •
Mariana Porto • Marília Valengo • Martim Moreau Maita • Moema Vilela
• Montserrat Álvarez • Oksana Vasyakina • Patricia Cavalli • Patricia Peterle • Robin Myers
• Sayaka Osaki • Saburo Kuroda • Shinjiro Kurahara • Silvia Saes • Sofia Mariutti •
Solja Kapru • Sujata Bhatt • Tânia Ralston • Tarsilla de Brito • Thais Henriques • Thiago E
• Tite de Lamare • Úrsula Antunes • Vasko Popa • Venus Brasileira Couy • Vitor Barros •
Wislawa Szymborska • Wu Ang • Yehuda Amichai
Sumário
Aula 2 [7 a 11 de junho]24
Oficina107
Índice272
Adi Keissar
Flor da chicória
Pérsimo/Caqui
Agi Mishol
(Nascimento: 20 de outubro de 1947, Israel)
Gansos
Meu professor de matemática
gostava de me mandar ao quadro-negro.
Dizia que minha cabeça só servia para carregar o chapéu,
que um pássaro com um cérebro como o meu
certamente voaria ao contrário,
e me mandava cuidar de gansos.
7
8
O marco da porta
Já não tenho esse impulso
de sair correndo como os alunos
ao ouvir o sinal
mas tampouco me converto em estátua de sal
quando olho para trás
para cruzar duas vezes
o mesmo rio.
Eu estou descalça
dentro de meus sapatos
nua
em minhas roupas –
retrato emoldurado
na moldura da porta.
9
Segunda-feira
O que houve?
Houve o doce perfume do jasmim,
um pintado sol laranja
descoberto subitamente
ao cortar ao meio o caqui
sob a primeira torrente de luz.
O azul matinal
das flores da chicória,
o prado inteiro,
um ramo de caracóis
na ponta do talo de uma cebola-albarrã
ah também houve a palavra “alvéola”.
Que mais houve?
O réquiem das cigarras,
ovelhas cor de rosa no céu declinante,
e os suaves, muitos beijos
na orelha do gato
e isso é tudo, eu acho,
isso é tudo o que houve
hoje.
11
A jovem mártir
12
Saburo Kuroda
(Japão, 1919-1980)
Vento de setembro
“Yuri tem faltado à aula de piano?
à noite, dorme certinho às oito e meia?
antes de dormir, escova os dentes?”
14
Montserrat Álvarez
[Nascimento: 1969, Saragoça, Espanha]
Fracasso eu te canto
Fracasso, eu te canto
a ti, que és de pedra, sol e água
Fracasso que és puro
Ergues tua voz no deserto
e te sentas em mesas sem toalhas
Obrigada por desterrar-me do país do sucesso
onde outros vivem cegos pela luz
com suas vitórias que não são mais que fumaça
com sua beleza que não é mais que disfarce
Obrigada por deixar meu rosto nu
fracasso caluniado, que mesmo caluniado salvas
Obrigada por armar-me com dentes na sombra
fracasso generoso
que me deste minha espada
Obrigada por não deixar-me ser alguém que eu não sou
pela alegria de não poder perder nada
nem poder ter medo
Obrigada por fazer só meu o meu pão
por levantar de adobe minha casa
Fracasso, voz do fundo das coisas
a ti, marca de um deus mais exigente,
fracasso, eu te canto,
fracasso que não mentes
16
Heberto Padilla
(Puerta de Golpe, 20 de janeiro de 1932 – Auburn, 25 de setembro de 2000)
O presente
Comprei esses morangos para você.
Pensei em comprar flores,
mas vi uma garota que mordia
morangos em plena rua,
e o sumo espesso e doce
corria por seus lábios de um jeito
que senti que seu ardor e avidez
eram como os seus
a própria imagem do amor.
18
Canção das amas de leite
Crianças,
vistam-se como nos tempos da rainha Vitória
e vamos ensaiar Shakespeare:
ele nos ensinou muitas coisas.
Você será pajem, você o espião na corte,
e você a orelha que ouve por trás da cortina.
Quanto a nós
ocultaremos adagas em nossas saias.
Vamos ensaiar Shakespeare, crianças,
eles nos ensinou muitas coisas.
Os atores já desceram da carruagem.
Divertirão um príncipe dinamarquês
ou a farsa é apenas um pretexto,
um ardil contra as tiranias? E o que acontece
se ao cair o pano
o veneno não tiver ainda penetrado o ouvido,
ou simplesmente Horácio nunca viu o Rei
(foi tudo mentira)
e sequer Hamlet pode garantir que existiu mesmo essa voz
que usurpava naquele tempo a noite?
Ensaiemos Shakespeare, crianças,
ele nos ensinou muitas coisas.
20
bônus
Adi Keissar
(Jerusalém, 1980)
Ars poética
Fui a um evento poético
havia ali um cara
que leu suas palavras
com tom sério
para que eu soubesse que suas palavras eram importantes.
21
[bônus bis, porque as toalhas
não gostam de voar sozinhas]
Wislawa Szymborska
É preciso ajudá-las,
deslocá-las, empurrá-las,
tirá-las do lugar e transferi-las.
Interessante,
que movimento será que vão escolher
depois de vacilarem na beirinha:
um passeio pelo teto?
um voo em torno do abajur?
um salto para o parapeito da janela e de lá até à árvore?
22
bônus 2
Jack Gilbert
(18 de fevereiro de 1925, Pensilvânia, eua
– 13 de novembro de 2012, Califórnia, eua)
falhar e voar
Todos se esquecem que Ícaro também voou.
É o mesmo quando o amor chega ao fim,
ou o casamento falha e as pessoas dizem
que sabiam ser um erro, que todos
disseram que nunca resultaria. Que ela tinha
idade para saber como as coisas são. Mas qualquer coisa
que valha a pena fazer, vale a pena fazer desastrosamente.
Como estar ali naquele oceano estival
no outro lado da ilha enquanto
o amor se extinguia nela, as estrelas
cintilando tão extravagantemente nessas noites que
qualquer um poderia perceber que não perdurariam.
Estava adormecida na minha cama todas as manhãs
como uma visitação, a brandura nela
como antílopes erguidos no nevoeiro da alvorada.
Via-a regressar todas as tardes
pelo quente campo pedregoso depois de nadar,
a luz marítima atrás de si e o céu imenso
do outro lado. Ouvia-a
enquanto almoçávamos. Como podem dizer
que o casamento falhou? Como as pessoas que
regressaram da Provença (quando era Provença)
e disseram que era bonita, mas a comida de lá gordurosa.
Acredito que Ícaro não falhava enquanto caía,
chegava apenas ao fim do seu triunfo.
23
2
Flora Francola
Robin Myers
Juana Adcock
Patricia Cavalli
Sayaka Osaki
Suihanki
Vasko Popa
Robin Myers
(EUA, Nova York, 1987)
O retorno
Esta é a rua onde
você nasceu. Esta é a chave que você perdeu na neve,
e este é o casaco que vestiu para ir buscá-la.
Este é o céu visto da janelinha do avião na manhã em que deixou
o país. Este é o lugar aonde você pensou que jamais iria.
Este é o sanduíche que você comeu na escadaria de uma igreja,
as migalhas que deu aos pombos. Este é o fundo da almofada
que ainda guarda fios de seus cabelos. Este é o verão.
Este é o continente que você cruzou,
a carta que por engano foi lavar com a roupa,
a faca com que se cortou ao picar a cebola.
Esta é a maravilha de poder reconhecer um amigo pela tosse
no quarto ao lado. Isto, embora você esteja dormindo, é um rato
sob as tábuas de madeira do piso, e esta é a luz que as recobre,
e estas são as sombras que salpicam a coluna vertebral
de alguém que está de costas.
Isto é quase o que você queria dizer.
Este é alguém que toca uma peça de Brahms no andar debaixo,
o copo de água que treme sobre o piano, a água derramada.
Isto é raiva, uma aula de direção, um ano de sua vida;
esta é a parada do ônibus, o lençol, a onda de calor;
estes são os fogos de artifício que você olhava
ao longe, florescendo mudos como flores numa colina escura.
Esta é a forma como você olha as pessoas no trem
para depois sentir saudades delas. Esta é a fé, como um nó na corda
pela qual você sobe, e estes são seus dedos ardidos e ralados
ao redor dela. Isto não é uma desculpa. Isto é o mar, dentro
de uma concha. Isto é o mar.
Isto é, ao que parece, o ponto a que chegamos.
Esta é você, se decidir voltar.
Esta é você, se nunca mais.
30
Shinjiro Kurahara
(Japão, 4 de setembro de 1899 – 16 de março de 1965)
Uma raposa
(uma raposa)
Quando cai a neve
sobre a espádua da raposa silvestre
ela se converte numa pálida sombra azul.
De noite sob essa tempestade de neve
a sombra baixa veloz
e sem desvios da montanha,
dando volta aos cercos de uma aldeia congelada,
movendo-se ao redor dos sonhos laranja das gentes.
(um raposo)
No crepúsculo do inverno na montanha silenciosa
um raposo solitário, semelhante a um fino naco de cortiça,
sobe
por uma árvore nua, trifurcada.
32
(uma raposa cor de crepúsculo)
Quando a raposa que desce da montanha
cruza uma ponte de argila numa aldeia
o ar todo ao redor se põe cor de raposa.
No crepúsculo da luminescência
a raposa adquire uma cor crepúsculo.
Os juncos sussurram.
O vento sopra desde a aldeia.
A raposa se converte numa fina tira de sombra,
visível ou invisível,
correndo ruma à aldeia.
Deste modo
a raposa mais uma vez captura uma galinha branca.
(a raposa)
A raposa sabe
que não há ninguém
apenas ela na ensolarada
terra seca
por isso
é uma parte e um todo
desse campo
sabe
que chega a ser vento
como capim seco
e até num raio de luz se pode
converter
como se fosse e não fosse
na terra seca cor de raposa
uma existência de sombra
Sabe
correr como o vento
mais rápido que a luz
Por isso
pensa que
é invisível
para todos
33
algo incorpórea
enquanto pensa
se desloca
e apenas
o pensamento corre
Inadvertidamente
em pleno dia
a luz
se deixa ver
sobre a terra seca
(uma pegada)
Há muito tempo
uma raposa correu ao longo da margem argilosa de um rio.
Depois de um intervalo de dez mil anos
a pegada
tornada fóssil
permanece.
Olha e verás o que estava pensando a raposa enquanto
corria.
34
Juana Adcock
(Monterrey, México, 1982)
Por exemplo:
kamilo, derivado da minha palavra para caminhar e tua palavra para camelo,
significava “o caminho eleito através do deserto”
pardo, eram os “pontos de luz que se queimam na retina depois de olhar o sol”,
também “entardecer”, ou “gato ruivo”
thalassa, de tua palavra para denominar o mar e minha palavra para abater
(talar) árvores, era uma palavra usada para significar “dói na boca do estômago”,
ou “entendo”, ou “o amamos porque é inacessível, como a ponta do arco-íris, ou
a cor azul da distância”
Os artigos remediavam.
shlixá, a palavra “desculpa-me”, era utilizada para significar “tem por obséquio
um cigarro?”, o “por obséquio” era um importante marcador de cortesia, como
quando o governo te telefona para anunciar que tua casa será demolida dentro
de 10 minutos em vez de te pegar de surpresa.
36
Também havia coisas que nunca deveriam ser mencionadas:
a palavra “amargura”
Um dia tive que partir. Me ligaram do trabalho, para o serviço militar ou por causa
da morte de meu avô.
Você teve que ficar. Terminar seu livro, ou seus estudos, ou fazer chá de cúrcuma
para sua mãe.
Do outro lado do oceano, deixei que o sol me perfurasse os olhos com suas
agulhas, dando instruções a cada músculo de meu rosto para que não se
contraísse.
Pensei num fio de seda que uniria meu canal lacrimal ao seu. O fio, eu o
imaginei pardo, e cantei canções junto ao leito de morte de meu avô. “A isto
vim para”, me disse. Para era uma nova preposição que significava tanto “desde”
como “até”, em termos de origem e destino. Tinha a vantagem adicional de que,
para você, a palavra significava tanto “junto a” como “mais além de”, como a
maneira como as pessoas ficam juntas nas boas e nas más.
Todas as noites dormia repetindo a palavra thalassa com cada exalação, como
uma onda se gravando no penhasco onde estava encrustada sua casa. Pensei que
isto te ajudaria a dormir.
Depois você me escreveu uma carta dizendo que há meses não conseguia pregar
o olho. Que as ondas exaltavam seus sentidos.
37
Sayaka Osaki
(Kanagawa, Japão, 1982)
Suihanki
Embora deva ter tido um pintor favorito, esqueci
Embora deva ter tido uma
canção favorita, esqueci
Sem poder fazer nada, me pus a cozer o arroz na Suihanki
embora não aprecie essas malditas Suihankis
39
Patricia Cavalli
(Itália, Todi, 17 de abril 1947)
*
O coração nunca está seguro, por isso,
mesmo que esteja em silêncio, não se gabe
da vitória ou da indiferença.
Honre aquilo que você amou,
ainda que te pareça não amar mais.
Você está ali tranquila? Se sente satisfeita?
Poderia finalmente, depois de anos
de ingloriosa incerteza, de inquietudes e humilhações,
inverter as partes, ser você
aquela que humilha e comanda? Não, não faça isso,
é melhor fingir, finja o amor que sentia
de verdade, finja perfeitamente e vença
a natureza. O amor cansado
é talvez o único perfeito.
41
–
43
Agora que o tempo parece todo meu
e ninguém me chama para o almoço ou jantar,
agora que posso ficar olhando
como uma nuvem se desvanece e desaparece,
como um gato caminha pelo telhado
no luxo imenso de uma exploração, agora
que em cada dia me espera
a ilimitada duração de uma noite
onde nada me chama e não há mais razão
para me despir com pressa e descansar dentro
da ofuscante doçura de um corpo que me espera,
agora que a manhã nunca começa
e silenciosa me deixa com os meus projectos
em todas as cadências da minha voz, agora
subitamente, gostaria da prisão.
Quantas tentações
no trajeto
que vai do quarto à cozinha,
da cozinha ao banheiro.
Uma mancha na parede,
um papel que é preciso recolher
do chão, um copo d'água,
olhar pela janela,
dizer olá para a vizinha,
acariciar o gato.
Desse modo sempre esqueço
da ideia principal, me perco
no caminho, me descomponho
dia após dia e é inútil
tentar regressar sobre meus passos.
45
Flora Francola
(Maracaibo, Venezuela, 1988)
47
Vasko Popa
(Grébenatz, atual Sérvia, Voivodina, 29 de junho de 1922 —
Belgrado, 5 de janeiro de 1991)
A porta
Por que abrir a porta?
Por que abrir essa porta que não leva a parte alguma? Abres
suas folhas e à tua frente se desvela a escuridão, a oca escuridão. Se
ao menos conduzisse a um outro quarto, a um jardim ou uma varanda
com vista aprazível.
48
3
Adina Dabija
Ana Ristovic
Audre Lorde
Angela Marinescu
Beth Ann Fennelly
Oksana Vasyakina
Denise Duhamel
Sujata Bhatt
Ganesha
Wu Ang
Oksana Vasyakina
(Rússia, 18 de dezembro de 1989)
58
e ela própria se oculta distintas coisas
sobre minha mãe, sobre mim, sobre meu pai
o qual
odiava sibéria
penso que a memória é aquele lugar
onde o ódio e a ira se convertem em sentimentalismo e dor
e a lembrança contém em si todas aquelas coisas que nunca nunca aconteceram
[com a gente
havia árvores
havia um arco de asfalto cinza
sobre os famintos montões de neve esbranquiçados
ele gritou
este é nosso país
59
estas nossas infinitamente brutais terras siberianas
isto é tudo o que podem ver nossos olhos
tudo isso nos pertence
e o odeio por completo
60
quando vivíamos na sibéria não tínhamos amor
todos tínhamos apenas um corpo incomparavelmente grande
angustiado e murmurante
sempre faminto e malicioso
agora não vivemos na sibéria
seguimos não tendo amor
porque o amor
é uma coisa pequena invisível quase como sibéria ou a memória
algo assim ou
mais sádico
nada parecido com as pessoas
e não pertence às pessoas
61
nós saíamos de casa e caminhávamos até a montanha para recolher campânulas
[de inverno e ver a central hidrelétrica
e nessa hora falávamos de comida
de como mamãe vai preparar caviar de abóbora
de como a avó comprará um saco de açúcar e fará samagon
e além de tudo
tem biscoitos kiripieshki sabor toucinho
tem kartoshka tem maionese tem pepinos
e se a ti te agradam as frutas no meio da salada
então tem a metade de uma maçã verde
só não esvazies de uma vez o pacote de kiripieshki
quando ponhas a mesa só então esvazies o pacote de kiripieshki
e tem necessariamente o pão negro
62
quando vivíamos na sibéria
não tínhamos tempo
o tempo não existia em absoluto
todos se orientavam pelo relógio da parede
pelo relógio na torre da parada Yarosama
pelo relógio de pulso
e todos eram pontuais
chegavam a tempo no trabalho
ninguém nunca se atrasava
porque no vazio
nós éramos rápidos e exatos
éramos ligeiros e rápidos
carecíamos de sentido
como bolhas de ar
no vento cinza
63
quando vivíamos na sibéria
nós vivíamos em um corpo de privação
meu pai não tinha mãos
minha mãe não tinha ventre
e todas as perdas ocorriam
e pousavam no incômodo corpo
e pousavam no descolorido corpo
assim vivíamos ali
em um espaço de aflição prematura
64
fossem pequenos arranhões
e não algo maior
tão somente a pequena ternura e violência nossa
os que vivemos na sibéria
e nunca a deixamos.
65
Denise Duhamel
(eua, 13 de junho de 1961)
67
e seu blazer com os remendos de camurça nos cotovelos,
sem lançar um único olhar em minha direção.
Sei que você tem curiosidade para sabem quem é este poeta,
então vou logo dizendo que as pistas que deixei
são falsas, que disfarcei sua identidade,
que você nunca vai adivinhar quem é...
jamais atinará com a resposta certa
e mesmo se acertasse, eu diria que errou.
Não quero causar embaraço a um estranho
que, no fim das contas, poderia ser uma boa pessoa
que apenas estava tendo um mal dia quando o conheci,
alguém que talvez esteja um pouco cansado da fama –
que meu marido e eu consideramos muito grande,
embora na realidade não sei que tanta fama pode ter um poeta americano
se, digamos, o compararmos com uma estrela do rock
ou um diretor de cinema com talento equivalente. Não muita,
e o poeta famoso sabe disso, sabe que
não é famoso de verdade quando lembra de suas dívidas. Sabe que muitos
destes jovens poetas que se agarram às suas mangas
apenas fingem ter lido todos os seus livros.
Mas sorri de qualquer modo, tenta ser útil.
Quer dizer, este poeta tem algumas qualidade que o redimem, certo?
Por exemplo, escreve lá seus iambos.
De outro modo, o que fazia eu em seus braços?
68
Adina Dabija
(Romênia, 15 de outubro de 1974)
Anos e corvos
Ela tinha dezessete anos femininos
ele tinha dezessete anos masculinos
e passavam horas debaixo de um salgueiro.
A seus pés,
a morte pedia perdão por existir
e a luz da lua lhes banhava os joelhos.
A felicidade
deslizava por seus dedos
e pelas comissuras dos seus lábios.
70
Angela Marinescu
(Romênia, 8 de julho de 1941)
Atração
Um crítico literário escreveu
fazem uns trinta anos já
que eu tinha força interior
e que algum dia
a domaria
e aí convenceria
não convenci ninguém
não tenho força interior
a não ser quando discuto
sobre bobagens como o fato
por exemplo
de todos os poetas acreditarem na amizade
como acreditam em deus
só que eu não acredito
e por isso vivo brigando e não tenho amigos
talvez algumas amigas
mas as amigas não contam
com elas é diferente
um mundo frio fora de um mundo ainda mais frio
meus amigos homens me dão medo
e ao mesmo tempo me atraem
como um copo de vodka
com sangue infectado
71
Ana Ristovic
(Sérvia, 1972)
Olha dentro
Todo o mundo pode se reduzir
ao conteúdo de uma bolsa de mulher:
alguma maquiagem
algum dinheiro trocado
para o trajeto entre duas distâncias
um dólar, dobrado
junto do RG,
lenços
para o muco ocasional
as contas e as chaves
para a fechadura que mandou trocar
e para as que ainda vai mandar
as listas de compras
as listas do que não encontrou
os cartões de um restaurante caro
para provar que estamos satisfeitas,
comprimidos tranquilizantes,
curativos para arranhões leves,
um compartimento para todos os ingressos
dos filmes vistos ano passado,
72
Beth Ann Fennelly
(eua, 22 de maio de 1971)
73
Sujata Bhatt
(Índia, Amedabade – 6 de maio de 1956)
E se encontramos
uma cabeça de cavalo para reviver
o corpo do elefante
quem é o verdadeiro elefante?
E o que deveríamos fazer
com o corpo do cavalo?
A criança se recusa
a aceitar o descuido de Shiva
e busca uma solução sem morte.
74
Oh, esse elefante
cuja cabeça sobreviveu
por Ganesha.
75
Wu Ang
(China, Fujian – 1974)
Peitos
Frente ao espelho, pré-menstruais,
ligeiramente inchados;
deixam de ser um par de tecidos macios e se tornam dois pensadores
mantendo um diálogo, exibindo posturas,
saudando-se um ao outro como Presidente e Secretário-Geral,
e discutindo, inclusive, o conflito palestino-israelense
a fim de encontrar uma solução compatível.
76
Charles Simic
(Belgrado, Sérvia – 1938)
Dezembro
Neva
e os vagabundos
permanecem
carregando seus cartazes
num o anúncio
do fim do mundo
noutro
os preços da barbearia local
77
bônus: da sibéria ao saara
Audre Lorde
(Nova Iorque, 18 de fevereiro de 1934 – 17 de novembro de 1992)
Saara
Alto
acima desse deserto
eu estou
sendo
absorvida.
Platôs de areia
dendritos de areia
continentes e ilhas e waddys
de areia
areia língua
areia ruga
areia montanha
litorais de areia
espinhas e pústulas e mácula de areia
meleca na sua cara inteira por espirrar areia
lagos secos de areia
poças enterradas de areia
crateras lunares de areia
crateras lunares de areia
Leve o seu “já aturei demais das pessoas”
pra lá areia.
78
areia cama de gato pique-pega
areia exércitos de árvores
selva de areia
luto de areia
areia tesouro subterrâneo
areia reflexo da lua na água
areia macho
areia apavorante
79
4
Al-Saddiq Al-Raddi
Golgona Anghel
Lidija-Dimkovska
Yehuda Amichai
(3 de maio de 1924, Wurtzburgo, Alemanha – 22 de set. de 2000, Israel)
O pátio do colégio
As árvores do pátio do colégio cresceram ou morreram,
e os meninos querem crescer, sair e amar a qualquer preço.
Se vi um barbeiro à tarde
sentar-se na cadeira do barbeiro e barbear-se em frente ao espelho,
vi como as pessoas vivem.
84
Eugenio Montale
(Gênova, 12 de outubro de 1896 – Milão, 12 de setembro de 1981)
Os elefantes
Os dois elefantes enterraram com cuidado
o seu elefantinho.
Cobriram de folhas a sua tumba e depois
se distanciaram muito tristes.
Ao meu lado alguém enxugou uma pestana.
Era realmente uma lágrima furtiva
tal como a piedade requer quando desarmada:
em proporção inversa à densa
imponência do acontecimento. Os outros riam
porque um bufão qualquer já havia aparecido
na tela.
86
Solja Kapru
(Finlândia, 1960)
Pessoas assim
Não constituem legião pessoas assim
com as quais se poderia ter
um contato direto
onde um único olhar
faz tremer um cabo de aço
E você se senta aí
numa cadeira pintada de amarelo
numa casa de campo solitária à beira de um bosque
Talvez existam umas sete ou oito pessoas
próprias para ti
e elas nesse exato instante estão subindo e descendo escadas
cruzando um corredor cheio de ecos
carregando uma xícara de café vazia
e não lhes passaria pela cabeça a ideia
de pedir um pouco de farinha
a ninguém além de ti
88
Montserrat Álvarez
(Saragoça, 1969)
Pesadelo n. 2 Prece
Oh Senhor
minhas asas são muito pequenas meu corpo é enorme
meus seios são como cúpulas de altíssimas catedrais brancas
nuvens titânicas
meus braços e minhas pernas são tão longos
que se perdem no horizonte
meu coração,
cheio de lava vermelha,
é amplo como o fogo do centro da terra
Minhas asas são as de um passarinho
Senhor não posso chegar até onde estás
Necessito asas maiores, Senhor, asas mais poderosas
para poder alçar-me e não seguir inerte
Necessito as asas dos monstros anteriores ao homem
para poder alçar-me até Tua altura em toda minha potência asas de pterodáctilo
Reclamo o poder digno de meu espírito imenso asas de anjo de arcanjo de demônio
E não este estar aqui, à mercê de tudo, vulnerável qual jovem fruta cega
Gato sem unhas, livre com taquicardia, farsa, bordel, ameaça irrisória
Oh Senhor, necessito asas maiores, asas
muito mais poderosas.
90
Ingibjörg Haraldsdóttir
(Reikjavik, Islândia, 21 de outubro de 1942)
Mulher
Quanto tudo está dito
quando todos os problemas do mundo foram
avaliados, medidos e resolvidos,
quando os olhos se olharam
e as mãos se apertaram
com toda a solenidade
sempre chega uma mulher
para limpar a mesa
varrer o chão e abrir as janelas
para afugentar a fumaça dos charutos.
Não falha.
92
Al-Saddiq Al-Raddi
(Sudão, 1969)
Sem respirar
O coração bate
como se ela já estivesse
em tua porta.
Ou como se
todos os pássaros
do céu do meio-dia
a esperassem alvoroçados
em tua janela.
………
Tempo de paciência.
Bosque revolto.
94
Golgona Anghel
(Romênia, 1979)
96
Lidija Dimkovska
(Skopje, Macedonia, 1971)
Requerentes de asilo
O maior centro de requerentes de asilo está debaixo da terra.
São os suicidas, os que imigraram para o outro mundo,
por serem discriminados, reprimidos e torturados neste.
O centro de requerentes de asilo subterrâneo oferece liberdade de movimentação
da periferia ao centro e vice-versa,
três refeições ao dia, e permissão diária para uma caminhada.
Os requerentes de asilo usam pulseiras com uma etiqueta tamanho standard.
Mas veja, os mortos naturais já estão planejando uma greve de fome
contra o excesso de suicidas ao seu redor.
Eles não querem esses imigrantes perto de seus lares perfeitos,
não querem essas cordas por toda parte, essa montanha de frascos esvaziados,
esses ossos partidos nas quedas, esses ventres inchados por afogamento.
No lugar de espantalhos, eles distribuem grandes cruzes em seus verdes gramados
para espantar aqueles que morreram contra a vontade de Deus. Os requerentes de asilo
estão confusos e enfurecidos, com um pé arrastando o tempo todo.
Alguns esqueceram de deixar uma mensagem, outros de beijar a filha,
alguns deixaram uma roupa na lavanderia, outros não fizeram seu testamento,
alguns não cancelaram suas viagens, outros nem tinham encontro marcado com a
[morte.
E agora estão amontoados aqui. Com seus intérpretes no corredor
e pastas nas mãos, estão esperando ser recebidos pelo oficial de asilo.
Nacionalidade, sexo, religião. Muitos têm pais
mas não pátria. Alguns são alérgicos a terra arada,
e sem poder beijar seu chão, partiram para baixo da terra.
Alguns fugiram a vida inteira deles mesmos,
sem ninguém que lhes pagasse os comprimidos contra envelhecer.
Alguns desperdiçaram tanto suas desgraças como sua fortuna.
Outros não fizeram amor com o amor de sua vida todos esses anos.
Alguns morreram não por punhal mas por fórceps.
Entre eles há quem só tenha começado a viver depois de morto.
O centro para requerentes de asilo está lotado, e suas cercas de arame farpado
marcam a separação do mundo dos mortos naturais.
Eu cheguei ontem. Ganhei dois vistos.
Durante o dia permanecerei no centro dos requerentes de asilo
e à noite estarei no lar dos mortos comuns.
Não sei de qual dos dois não voltarei.
98
Diferença
Jesusólogos, Allaólogos,
Constantinopla não tem contemporâneos.
Tudo aqui é profissional,
papel higiênico, máquina de lavar,
elevador, microfone, massa corporal.
Por trás da perfeição, a mente é uma caixa forte aberta à força
que nada esconde agora, exceto o luto.
Vivo junto de um templo que já brotou com caixas de ar condicionado
como adultos com sarampo tardio.
Alguém me pergunta todo o dia pelo interfone
se há um acordeonista no prédio.
O guardião das bandeiras poderia sabê-lo,
uma bandeira negra roída por animais domésticos
ondula de varandas suicidas,
a outra, a bandeira nacional, já perdeu a cor de tanto lavar,
e ondula de varandas assassinas.
Entre o nascimento e a morte, a vida não tem garantia,
a única estação funcionando é a que está dentro de nós mesmos.
Às vezes ardo de desejo de ser uma ferida de guerra
para jazer no hospital sobre uma toalha de praia com uma mulher nua impressa,
recém chegada da Suécia via Cruz Vermelha.
Mas é em vão, porque um dia como hoje tem necessidade de todo meu corpo,
e a noite apenas de meu peito. Não importa com que mão me benza,
os quatro lados do mundo
fazem falta ao coração.
Eu o protegerei imprimindo em minha camiseta
o rosto de Che Guevara ou mensagens religiosas:
Taoísmo: a merda acontence.
Budismo: É ilusão a merda que acontece.
Islã: Se der merda, foi vontade de Allah.
Testemunhas de Jeová: Toc toc: a merda se repetirá.
Cristianismo: Ama tua merda como a ti mesmo.
Só sei tocar uma música no acordeom,
e mesmo ela é recauchutada da história.
Enviei o exame de meu coelho doente a Viena,
e o do santo doente a Roma.
Como Ingeborg Bachman, cada peça de reposição
chega em casa no carro de outra pessoa.
100
A existência jaz num carro fúnebre
à cuja passagem os viventes do outro lado do cristal
tiram os chapéus
saudando como quando nasceu quem agora vai: Adeus-adeus.
Quando o amado regressou de Constantinopla carregando os marmelos amarelos,
Fátima sorriu-lhe amargamente do outro mundo.
A diferença entre o homem e Deus, meu bem, é uma só:
o homem primeiro encontra, depois perde.
Deus primeiro perde, depois encontra.
Meu túmulo
Todos os dias vejo meu túmulo no pátio,
incluída no preço da casa,
com uma tábua que tapa o buraco,
com uma lápide de caliça branca,
com uma fotografia num marco de ouro,
e o ano de nascimento separado por um travessão
do espaço vazio da morte.
O túmulo está ali sob a pereira em frente à casa
olhando fixamente mesmo quando lhe dou as costas.
Na primavera, os gatos afrouxam a tábua,
e os pardais cagam sobre ele para a boa sorte,
no verão ocasionalmente uma pêra podre
arranca um estilhaço da pedra tumular,
no outono a chuva afina sua coluna vertebral, morde seu rosto,
no inverno a neve investe mais profundamente no chão.
É o ponto focal de cada raio,
de cada abalo sísmico é o epicentro.
Se desfaz, se desintegra, de decompõe,
se torna cada vez menor, mais enrugado, é obrigado a ajoelhar-se.
Meu túmulo está desaparecendo ante meus olhos,
está desabando em seu próprio oco, tornando do pó ao pó.
Contemplo-o esta manhã, o que resta dele são apenas
pequenos fragmentos de pedra-cal dispersados pelo vento,
fragmentos suficientemente grandes para construir ninhos,
e a foto em seu marco de ouro
gira que gira ao redor do roteiro entre nasceu-morreu. Minha cova está
desaparecendo cada vez mais rápido,
tal como minha vida.
101
Dani Umpi
(Tacuarembó, Uruguay, 1974)
panoptismo:
estranhei que ele não quisesse ir ao cinema
então me disse que nesse shopping não pisava
nunca mais em sua vida
porque tinha roubado um suéter de lã
da zara, verde com listras negras, tão confortável
e estava seguro de que o tinham filmado
e saiu correndo pelas escadas rolantes
atravessou o supermercado, chegou lá fora, sob o sol
e continuou correndo, correndo até sua casa
quando vi o suéter perguntei porque
não o usava para ir dançar
então me disse que não usava por medo de ser reconhecido
não o usa nunca e o mantém guardado
então eu disse que ele deveria devolvê-lo
porque é bom ser uma boa pessoa
não se perseguir, ficar tranquilo, livre, novo
então eu tinha que entrar na zara com
uma bolsa de nylon com o suéter dentro
e eu tinha que deixá-lo em uma prateleira
mas podiam me descobrir pelas câmeras
e no verão o suéter de lã dá muito na cara
além do mais eu queria saber porque ele não fazia isso
porque eu deveria ir no seu lugar
porque é um egoísta
vive esperando que outros façam o que deve fazer
e ele me disse peraí essa ideia de devolver foi sua
que ele não tinha nada a ver com isso
e que isso não ia resolver nada
que eu queria fazer isso só para bancar o bom sujeito
como se eu me vitimizasse Eu me vitimizando?
eu que estava disposto a devolver o suéter
que ELE tinha roubado? deve estar fora de si
“você que está” ele disse
102
gourmet:
come fora todo dia e cozinha tão bem
e no entanto é magro e sua pele nada oleosa
fala o tempo todo de comida, o tempo todo
que o creme de leite já o salvou de mais de um apuro
o creme de leite e o estragão
sempre o salvam, sim, “me salvam” diz
o creme de leite e o estragão
que neste verão estiveram super out
e os molhos, me diz, já não se servem mais bons molhos, diz
neste verão serviam tudo com azeite de oliva e rúcula
mas as pessoas continuavam pedindo pasta de abóbora
como no verão passado embora a onda neste verão
tenha sido raviolis de batata doce e gengibre
e como sobremesa massa folhada quente de manga e ameixa
com sorvete de creme e coulis de frutas vermelhas
embora nos restaurantes caros de punta del este
os cardápios não sejam bons porque vai muita ralé
cheiram pó e vão comer então qualquer coisa serve
e alguns incluem até batatas fritas um horror
eu disse que só sabia fazer molho caruso
e ele ria e dizia que adorava minha simplicidade
eu não e disse que para mim cozinhar é muito complexo
ele ria e me olhava tipo com vontade de me comer
ele disse que sou assim porque
minha mãe é professora e frequentei colégio católico
assim como “bom, você é uma pessoa boa”
eu não sabia se devia ficar feliz
acho que ele dizia essas coisas só para me seduzir
me dizia que minha letra era a de uma pessoa boa
que parecia um desenho, que parecia um raminho de salsa
a mim... não sei, havia algo nele que não me agradava
algo na boca, eu acho
103
Cinema, comida e futebol
você queria ver o novo do david lynch
a mim me deixam nervoso porque não os entendo
não sei nem no que prestar atenção, quem é o protagonista
essas coisas
mas mesmo assim gosto delas e tudo bem
entro mais ou menos na onda
também não sou tão tapado e inculto
só preferia ir dançar ou ir beber alguma coisa
ou ficar ali mesmo onde estávamos, no parque
de repente podíamos ficar na minha casa
eu tinha sushi do dia anterior, um pouco amargo
mas o molho soyo atenua
caem no estômago e rebatem devagar
era uma brincadeira
você não me dizia o que pensava, nada para você
tinha graça
e você soltou aquilo de que sushi era coisa de snobs
como se eu estivesse oferecendo um quilo de caviar com ouro
quando o que eu queria era justamente economizar
e comer sobras de ontem
sushi velho que andreía tinha trazido de uma festa em W
que disparate! você ficou vermelho, meu amor
sentia culpa por comer sushi
que essa coisa entrasse por sua boca, ser um
“deles”
sua boca era um para-choque, não se abria como porta
teus olhos não prestavam atenção em mim
um time de futebol treinava ali ao lado
trotavam sobre a grama úmida
pareciam ter problemas psicomotores
mas eram atraentemente saudáveis
todos suados; eu via como você os olhava
tocavam a bola com chutes secos
os goleiros não a agarravam e seguiam noutra parte
por uma estranha regra do técnico de adidas
as bolas sempre iam parar perto da gente
bombas se aproximando em câmera lenta
eles não vinham buscar
104
paravam de rolar e estacionavam cansadas
entre nós
eles gritavam “ei, garoto, chuta pra cá”
enquanto eu só dizia que gostava muito de você
mas não suportava mais continuar daquele jeito.
105
Agi Mishol
(20 de outubro de 1947 – Cehu Silvaniei, Romênia)
Sete céus
Alguém que está de passagem pela vida
atira de súbito uma frase
que fere como uma estocada de chifres no eterno
como quando naquela série se disse
que o amor não é arquitetura
mas meteorologia.
Para mim é outono,
o emplastro que pus sobre a perna
cai o tempo todo
e o pássaro novamente me espía
da janela.
Os sete céus se abrem
numa pétala de chicória
e a vida é curta, mesmo quando é longa.
106
oficina
Alexandra Maia
Tentar e falhar
como dizer?
ter a cabeça presa a um pescoço
equilibrado em labaredas
torna impossível enxergar
os bichos todos que andam em volta
na casa cheia
não há um só espaço para o silêncio
108
perdi meu corpo
não o encontro mais
nem no poema
talvez tenha descido ralo abaixo
ou afundado nesse rio que brota fora do lugar
no meio da sala arrancando as tábuas
de madeira todas de demolição
no sofá se estende
um outro tipo silêncio avesso ao ouvir
um silêncio morno sem fagulha
109
pense numa pessoa confusa
que quer dizer o que tem que dizer
sem dizer
e ainda assim dizer
com todas as letras
quando o que tem que dizer
é tanto dizer
que não dizer é o mesmo que enfim
nada mais ter que dizer
Alexandra Maia é autora de Coração na boca[7Letras, 1999] e Um objeto cortante [Numa, 2019].
http://www.numaeditora.com/2020/04/08/um-objeto-cortante-alexandra-maia/
110
Álvaro Uliani
Revolução
hoje é seu aniversário
mais uma volta em torno do sol
e ainda não tivemos aquela conversa
Junho de 2021
111
Ana Amália Alves
Ruminações
Interessa-me o caos do início das coisas
(Ana Freitas Reis)
112
Parfois c’est qu’en langue
étrangère moi
entre tous ces mots
d’ailleurs légère moi
je peux je
regarde avec ces yeux là
et parfois envisage
mon accent encore
à moi plus fort
puissant et seul
une tonalité entre timbres et éclats :
ma voix qui chante
sans dire un mot.
113
Ana Freitas Reis
Na viagem, atravesso
o rio; creio no tempo.
Desejo é linguagem.
Comovem-me as falhas
das cabeças,
a escala dos tamanhos.
A roupa justa
exibe o sopro
do monstro.
Gota a gota,
reencontro
a infância.
É preciso abandonar
o corpo; a lição
das folhas em queda.
Dádiva é existir
no milagre
emprestado ao chicote.
114
Um pouco antes do fim II
Olhos negros Nosferatu;
delírio
em espírito de terror.
Contrapeso
iminente da queda
— um embalo.
Perante a tragédia,
a comunidade faz-se.
Convoco a comunhão.
115
Um pouco antes III
Perguntas-me sobre o espanto
de que somos reféns
no abismo e na descoberta.
Despimos as roupas
do corpo, sai um espírito.
O veludo rasga-se por extenso.
As grandes asas.
– erros do quotidiano;
a renúncia ao assíduo.
O ovo obedece
à galinha, ao serviço
de segunda à sexta.
Regressas na manhã
ao submarino, maçã na boca.
O amor ao longe.
Habita-me o incómodo.
Convivo com o estranho
familiar que fomos.
Toda a noite
é clandestina, balada patética.
Li poética, como a lápide na sepultura.
A desobediência
de um coração cantante
pesa agora na flauta do silêncio.
116
Um pouco antes IV
Recito às escuras
o caminho, canto
palavras baixas.
A oração
eco
dentro do tempo, é oco.
Nascente nómada,
cumpro o tropeço
– lava peregrina.
A vida estreita-se
neste copo de vinho.
Configura uma mudança atómica.
O vento antifascista
derrubará todas as estátuas.
As cabeças fora do vácuo.
117
André Miranda
dobrou as esquinas
e viu a cidade
em origami
Ao meio-dia
solidão inteira
nem a sombra é companheira
118
Augusto Britto
Woroworo
Bakawaka
Queremos chegar
E gritamos no caminho
Queremos ganhar
o sorriso
o sorriso
o sorriso
É preciso alimentar, Duda
Nós tamo cheio de fome
119
La valse des étoiles
Je crois que la notion est amoureuse de la vigne
La culpabilité exonère l’aurore
Le millepatte souffre la peine
La samba te fait
Mais c’est une corvée
Et je t’entends sourire
C’est aléatoire
De vomir nos tripes
Et ça nous rendra heureux
Icare !,
Toi qui des mondes ignorés
A su gravir la splendeur
Non sans plaisir
Et sera récompensé par l’ultime dévouement
120
O samba te faz
Mas é um labor
E eu te escuto sorrir
É aleatório
Vomitar nossas tripas
E isso nos tornará felizes
Ícaro!,
Tu, que mundos ignoraste,
Soubeste ultrapassar o esplendor
Não sem prazer
E serás recompensado pela última devoção
121
Bruna Corazza
da cortina de ouro
que eu não daria conta de ver
é Oxum
abaixo a cabeça
me aninho no seu colo
e ela fala direto no meu coração
é d’Oxum
122
Descanso n. 3
as mulheres com rosto de diamante
tecem com o fio escarlate
a própria trama
as mãos ensaguentadas
cavam ainda mais
e descontroladamente
até tocar o covil
e voltar de lá
deslocando-se com delicadeza
num golpe violento
de quem viu muito
e ainda sente a dor da mordida
124
Ainda sem rosto
Do outro lado da pista
no meio da marginal
o menino dança
Do retrovisor
o menino dança no meio da marginal
cambaleando o corpo
de um lado para o outro
de braços abertos e olhos fechados
para o mundo que
nem ele
nem eu
nem ninguém quer ver
126
Cacau Costa
Primeiro, você descobre. Se encanta com a forma. A vista engole o porte de festa.
É sagrada a cor e remete a primeira comunhão. Deus te deu a condição de salivar.
Segundo, você toca. O design perfeito de um ovo. Toca e aperta como se nunca
tivesse tido mãos. Gaba-se de ser pioneiro. A masturbação na via da glória. Terceiro,
você abre. A sensação é de ser um colonizador. Você impõe hinos e bandeiras.
Quarto, você goza para além da superfície. É viscoso e afunda. Não é mensurável.
Acontece. Quinto, você percebe o plástico. O invólucro transparente. Você acha
que ela é de plástico frágil. Então você se irrita, porque você pode. Você esquece o
tempo que o plástico demora para decomposição. Você grita, agride, violenta e ri.
Sua risada é mais frágil que o plástico. Você a cobre de laivo, você goteja. O pincel
é duro. Você sente raiva e nunca nota que a raiva é um espelho. A tinta magenta
respinga na imagem do teu nariz. Por último, você nauseado, a encontra de verdade.
Escondida dentro do plástico. Com as antenas nuas. O estado é de espanto.
127
Sem capacetes
eu e meu irmão mais novo
pedalamos de bicicleta
na praça dos cavalos
no breu sem capacetes
128
Tesourinha
Passei anos tentando mudar minha mãe
depois desisti e acreditei por muito
na minha felicidade culminando no dia
que meus pais revelassem todos os dentes
com a curvatura apontada para cima
fiquei triste por anos.
129
Plano
pelados somos
uma parte
do plano
na minha pele
um prelúdio
fotografada
por teus dedos
lúcidos
a formiga espantada
espia
em ângulo
holandês
130
Caroline Prince
E etc.
Há marcas dos teus passos
em algum caminho
não longe de onde
a ponta dos meus dedos
desenha flores e etc.
131
Christina Autran
ao contrário de nós
que aqui estamos de passagem
com nossa comum arrogância humana
esta pedra magnífica e alta
que ali se ancorou
sabe-se lá quanto tempo atrás
uma vez despida
dos invasivos excessos
hoje reina sob o fulgor da lua
a natureza triunfante
repondo a harmonia dos espaços
que jamais serão obsoletos
como nós
132
em que viver sozinho não é deixar de viver junto
ou
coisas que vêm de um lado cinza da mente
veja o suficiente e anote
ela se diz
vamos observar bem
133
meu coração é quente, peludo, e tem dente
Christina Autran é autora dos livros de poemas Na ponta do lápis [Nova Nórdica, 1984],
Sem risco de animais na pista [Bem-te-vi, 2016] e Pelos poros [7Letras, 2021], entre outros.
https://7letras.com.br/livro/pelos-poros/
134
Cleo Vaz
135
Vera Ballroom
Perdi um voo
fiz hora na lojinha de cds do Tom Jobim
e só ouvia Belchior.
No próximo avião, fiquei cantando As Paralelas
até Recife.
136
Domingos
E depois como é que eu posso comprar
Estando a perigos
Novas sandálias pra você sambar?
Jorge Ben
137
contra a sequidão do costumeiro
e as gentes laboriosas.
138
Terra Firme
Um homem e seus trinta anos
Um homem e seus trinta amos
Um homem e seus trinta corpos
Como os nós de um tronco
E os anéis de trinta mortos.
Affonso Romano de Sant’Anna
139
Daniela Storto
i – visão
o vemos desde há muito
ii – repetição
caminha
140
iii – variação
– não o vimos por dias seguidos
tememos por sua saúde
consideramos nos desencontrarmos para sempre
iv – imaginação
em seu casaco marrom
galga asfalto grama concreto poça
diariamente o vemos -
ainda assim, é uma surpresa
um prêmio um tropeço
na encruzilhada inusitada
esbarramos
mais uma vez
em seu corpo-poste: (pausa)
v – dimensão
ao chegar
despe a casca
senta na cadeira giratória
retira os óculos e limpa
com vagar, as lentes retangulares e leves
141
e é ali que
um dia serve
e toma
os rumos inesperados
do devaneio
142
Marion on the rocks
pedra lançada ao mar
ela singra
sua vida parada
não é mais
ela migra
das teclas duras onde marca cifras que não são suas
ao quarto só linhas:
uma sob a qual se deita
– como quem boia no oceano
– por que nos parece plano?
outra que a desorienta
raios
entre o céu e a terra
143
A cantora entra na cozinha do navio; bebe do copo d’água;
derruba e cai
era necessário
que a boa cantora tivesse
uma história
mas ela quase que não
fosse hábil
mas ela nem
sempre foi
julgada
ela não
sutil
inteiramente
afinal boneca
pois mecânica
nos trejeitos
espelhos à maneira
dos quadros
se balbuciam
reconhecíveis
começo ou fim, época
de observados
pesadelos
muitas vezes
consistem
144
A lã
(ao teu casaco)
é toda feita de
e toda feita de cordeiro carneiro ovelha cadela?
como é feita
não é toda
a lã é uma
comunidade
arrancada de seu local de origem
lã prisioneira refugiada
em teu casaco continente
atmosfera dentro-estufa
que barbáries habitam teu passado
que sedimentos cabem no seu bolso mágico
[vista do espaço
a rosa dos ventos é
tal e qual
roleta, roseta].
145
Denis Rafael Ramos
146
Duda Las Casas
147
Rompe corações
Estamos todas cansadas
de preparar as flechas
E ainda
ter que insistir
para que não façam a barba
148
In box
“todo poeta é uma criança nostálgica”
O Hierofante
Parece que
vais me dizer
algo importante
chego a lembrar
qualquer mensagem
mesmo uma
bomba
é uma notícia
boba
Ainda sim
insisto
por
uma resposta
como
sinto que
me aguardam
os limites
brinquedos
e
o que mais
deixei
por arrumar
na sala da casa dos meus pais
Eu tenho um fósforo gigante
para acender
no mercado livre
a bola do vidente que fazia aranhas
na praia da armação
sem dinheiro para a passagem
Dos navios latinos
Eu vejo
as banhistas
pintadas com lápis de olho
viram gatinhos
embebedados
com
lágrimas de mulher
por cima
colírio Moura Brasil
No prato
flores que na água quente
viram peixes
em alto
mar
te avisto
É terça-feira
você me ganhou
com um pedido de desculpas pelo atraso
uma posição radical
No primeiro encontro
Eu não preciso pagar nada
150
Eric Pestre
Montagem
À noite acordado
Começo a te montar
151
Mudança de estação
Não gosto dessa música. Mudo de estação.
Estendo a toalha à margem do rio. Passo os dias
na temperatura de roquefort e beaujolais,
com o paletó descansando sobre os ombros,
até a baldeação Châtelet – Praça XI.
152
Fáthima Rodrigues
Embrulho da agonia
Desconforto oprime peito coração unhas dentes
Me socorre, alma do mundo!
Espíritos ancestrais, limpem essa dor!
Quer encontrar os campos em que as grutas adormeceram.
Fecha os olhos
Mundo dorme num estrado de nuvens brancas.
Recantos de ternura são os mesmos recantos onde mora a dor,
Essa menina chorosa
que deu uma topada
e espera que alguém lhe conte uma história bonita
que a faça adormecer no colo das nuvens brancas.
(e a carne lhe lembra que o envoltório carrega quem sente o mundo)
04/06/2021
153
Dia-em-dia
Bate bumbo bate bumbo
Bate no mesmo andamento
Vai adormecendo sensações
Vai mecanizando pensamentos
Vai robotizando ações
Vai ...
Imensidão é a folhinha do pé de acerola
Altiva
Cumpridora de sua missão de verdejar a tarde
e
Servir de refúgio para as asas do passarinho
Que vem ali buscar o seu maná.
17/06/2021
154
Gustavo Galo
155
dia 10
não sei quais dos meus professores de álgebra estão vivos
mas sei que a poeta agi mishol está viva
mesmo conhecendo poucos dos seus poemas
semana passada na oficina de poesia
li um texto seu sobre o professor de matemática
o poema termina com os versos
“amo chapéus e todas as tardes
quando os pássaros regressam as árvores
busco aquele que voa ao contrário”
em casa somos péssimos com as contas
e elas não param de chegar
contas não fazem greve
as de luz e água por exemplo
chegaram a pouco
na volta do mercado lançamos álcool 70 sobre elas
e também no meio da nota do pão de açúcar
com o resultado recente da ida ao setor de bebidas
o QR code da comgás borrou um pouco
mas na nota do mercado aconteceu uma explosão de tinta azul
conheço pouco a agi mishol
mas já a trouxe para este texto
diante da mancha azul que aumenta
penso no seu poema
e em jorge mautner cantando
“eu sempre quero mais e mais um beeeeeeijo”
no ap. 803
em frente ao cemitério do araçá
às 15h47
nuvem nenhuma
a mancha azul expande
e somos dois
par é ímpar
voando
em outra direção
156
dia 15
na última semana escrevi
em casa somos péssimos com as contas
mas como posso ter escrito isso
se realmente vivi, sem pensar muito, 13349 dias?
ninguém pode saber o tempo que fazia no dia do seu nascimento
do meu sei somente que na sala do parto
perto da porta
havia um alto falante
tocava barão vermelho
wislawa tem um poema chamado “numero Pi”
“o desfile de algarismos que compõem o número Pi
não para na margem da página
consegue estender-se pela mesa, pelo ar”.
os números também são irracionais
revela a wikipedia quando busco número Pi
números irracionais existem porquê
apesar dos mais recentes pesos (e pesadelos )
a Terra é redondíssima
e nem um pouco chata
é mais ou menos isto
13349 dias completei na terça passada
hoje, quando leio para vocês, são 13351
pelo espaço a mancha azul cada vez maior
e a gente agora contando
o impossível
157
158
dia 23
a Terra é azul declarou um astronauta
o azul da Terra é o mar
o azul engolindo os números
roberto bolaño não decide
se é poema ou nota
seu texto chamado “dinheiro”
em que conta como gastou suas 2200 pesetas
depois do trabalho de 16 horas
no trabalho noturno em um camping de barcelona
o poeta liquidou tudo
cervejas e café com leite
no dia seguinte nada nos bolsos
vendeu uma antologia de poesia mexicana
gastou novamente o total
agora com fitas k7
– queria gravar dizzie gilespie e charlie mingus –
e uma bisteca de porco acompanhada de ovos fritos
o poeta rodrigo lobo, foi ele, não eu, que chamou a atenção
para a hesitação entre poema ou nota
como designação das palavras no papel
bolaño diz (sem nada nos bolsos pela terceira vez)
este poema ou nota
é como um pulmão ou boca transitória
anuncia a felicidade
porquê há muito não tinha tanto
gostaria de torrar tudo em uma noite assim
com o escritor chileno ouvindo gillespie
dois sul-americanos em mais uma madrugada fria do norte
e depois rodar a fita com a caneta bic
e ouvir de novo diferente
é sempre diferente
a Terra é azul
o mar
a nota do pão de açúcar
a bic também
e dinheiro algum vale
um azul como este
aqui
159
dia 24
CONTA
CONTO
PONTO
P O N T A
P O E T A
POEMA
160
Halina Grynberg
Cicio
Porta entreaberta
réstia de luz
sol engalanado
madrugando a sexta feira
veste branco para o santo
Oxalá sempre assim.
Há penumbra no quarto,
lua úmida
orvalhada
terra molhada.
Cicio
À meia-luz
la grande Mort devassa a alcova
arremete contra os amantes
destina –
de um lado o sol
doutro a lua.
Desperto
161
Cinco Marias
Eram cinco as marias
da Penha, Gloria, Céu, Rosário, Luz
inventei as amigas
sobre a calçada da vila
em frente à casa
do outro lado do mundo
as pedrinhas aguardavam,
eram cinco as marias
ao sol do meio dia
zona norte Rio 40 graus.
No rádio do vizinho
a voz de Jorge Goulart
ventava da boca larga escancarada
as palavras da língua que eu não conhecia
engolia todas dentro.
Não pedia marias
choravva por Laura e seu sorriso de criança
eu repetia criança criança criança
até deixar de ser palavra
e sem sorriso.
162
Cristophe ficara em Paris,
Já não sentia saudade de mim.
“Et j’ai crié, crié “Aline!”
pour qu’elle revienne
Et j’ai pleuré, pleuré
Oh j’avais trop peine”
163
Partitura
Rabisco
página em branco
pauta desalinhada
de sons
alarido ao vento
poesia em busca do lamento.
Notas versadas ao tempo
pontuadas / alongadas
compassos de frases dispersas
pautando intensidades.
Berro: f forte ff fortíssimo fff fortissíssimo
Sussurro: p piano pp pianíssimo ppp pianississimo
entre tons/semitons
urge um queixume cor de anil.
Silêncio. Ainda assim
cada nota dispõe pausa própria
clamando pela duração da ausência
reclamando o tempo destinado,
desatinado o que me coube.
Linhas e entrelinhas
Garatujas sem clave
partitura viva
sol não há quando a clave é dó.
Repito da capo
sustento o tom menor.
inspiração afinada arpejada
entre robattos a nota calcada acata silêncios.
A partitura arqueja.
a escala inspira
pulsa / empuxa / desperta / inquieta
trêmulos ornamentos
glissando glissando
vincando vinculando,
harmônicos vibrando
eu e você num choro anelado
nesta nota azul
da partitura inacabada
à procura do intérprete.
164
Inês de Araujo
Como se você visse alguém que reconhecesse passando pelo mesmo hall de
entrada, enquanto você saindo, a pessoa entrando, como se fosse estranhamente
conhecida, a pessoa estranha e comum, até que rachando o vidro você
percebesse ser apenas a sombra do seu reflexo.
Kintsugi
À primeira vista
não dá pra reparar
flui
fratura
Cheia de furor
com leveza
de raio,
jogo do amor,
translúcida
trama
Pontadas
Moídas em clarão
Seu gesto o rio
íntimo
à lâmina d’água
corre
em película esmalte,
fosfórica cosmética
de vômito dourado
pelo invisível
fora
Ao redor
ruído
que passou
ao negativo
à notação sonora
ao rachar
165
Nem a ambulância com sua sirene se degradando como uma mancha vermelha
sobressalta no chão a noite
mais do que quando os prédios ficam brancos num fundo branco com chuva
ressoando de perto como de longe
Ser simples fundo
creme de chuva
palpável impalpável
manchas como todas as coisas divisoras a seu tempo
Ser véu de sombras,
quartos, cantos, cubículos, mesas, telas,
mil gotículas de nós e ninhos,
esquecidos objetos de meditação
a tatear por dentro e por afora
uma travessia inacabada em todas
desfeita em pontos d’água
feito diminuto metal transparente sorrindo na voz do moço que compra tudo
velho, ar-condicionado velho, freezer velho, panela velha, radiante e velho
166
João Cardoso Vilhena
ou o aumento do sol
inflamação de fogo
mais perto agora
da língua de chamas
que no fim cobrirá
dum dilúvio animal
a face e o avesso
dos planetas
No vazio imaginado
da planície do cosmos
que ardida mirra
sopra um vento intenso
um tic toc tic toc de pedra
com cheiro a vida
167
dos cereais o vento sempre
o mesmo desde as seis assobia
embatendo no betão e nas vidraças
168
À espera do abandono
Vinha aqui contar uma história aqui
onde havia qualquer coisa alguém
disse vai até lá depois diz isso ou
seria faz aquilo mas o que há para
fazer aqui neste lado do tempo neste
outro canto da casa da cidade havia
uma coisa era uma coisa qualquer
esquecida talvez fosse gente num
terminal de autocarro ou na estação
ou no apeadeiro desolado entre
duas coisas iluminado por lâmpada
quase quebrada uma espécie de
resto de nada mas luz ainda e um
corpo algures ou um besouro entre
ervas daninhas e estevas ainda não
em flor era fevereiro recém-chegado
iluminado sem ninguém que o
buscasse esquecido talvez com a
memória de ver um a um partirem
as outras crianças pelo portão da
escola um vento soprava fantasmas
viria alguém havia alguém a vir viria
veio passo a passo até um dia não
mais ninguém nada regressaram a
casa ele trouxe o portão vazio da
escola e uma outra ideia do tempo
cheia de ventos fantasmas e uma
terceira coisa da qual agora não
se lembrava talvez ainda a tempo
alguém chegasse com um sussurro
para uma orelha
169
Um prosaico poema sem tema
Acorda-se na cabeça
por fora os cabelos
desregrados
as ideias subindo do aquário
para respirar insónias
170
Nós e pontos para um poema
A minha avó ensinou-me a fazer crochet malha e a coser botões as meninas
da minha escola ensinaram-me a jogar ao elástico e os meninos faziam troça e
chamavam-me maricas não sei bem quando o insulto quebra o fio do tempo eu
agarrava-me ao sistema e não ainda às calças dos outros homens mas tudo eram
caixas atrás de caixas e não aquele conjunto de sabres da guerra das estrelas que
em tudo acertavam. Por acaso não me tornei num assassino ou num fora da lei a
precisão do crochet fizera de mim um menino certinho demasiado certinho
Hoje dizem-me que não
que é uma simples questão de ascendente
o adorno não concorda e eu concordo com o adorno
por isso ou talvez não
agarro-me à tua perna
como a uma deusa do Olimpo
171
Jonathan Fontenelle
Se bem que: pra que tanta preocupação com o real? Já não o buscamos o
bastante? E se ele, na verdade, for apenas isso? Se ele for como um lugar em que
só podemos falar aos sussurros, dissimulando nossas verdadeiras intenções,
esquivando-nos sempre e algumas vezes até fugindo por buracos debaixo da
terra? E ele se for como um tempo em que tenhamos sempre que estar fazendo
escolhas difíceis, sempre sofrendo por despedidas cruéis? Sabe, às vezes só
preciso de uma ilusãozinha barata pra suportar a terça-feira ou de uma alegria
provisória pra vencer a quinta.
172
Olha a tela do computador
Três linhas apenas
De vinte páginas, no mínimo
A vontade é de se dissolver na cadeira
Correr, correr, correr
Olhar o celular
Olhar a lua
Beber um rio de água
Ganhar na loteria
Devorar quilos e quilos de cimento preparado com pedras e areia
Rolar por uma escada abaixo
Forjar o roubo do computador
Largá-lo em algum lugar
Provocar um curto-circuito na fiação da casa
Perder a memória
Viver da caridade alheia
Mas só olha a tela do computador
Três linhas apenas
De vinte páginas, no mínimo
Respira fundo
Roga aos céus
Pra ter disposição e criatividade
E afunda os dedos no teclado
173
Leão Zagury
Ideologia
Meus ancestrais percorreram campos
procurando soluções.
Eu, ideias e ideais, os acompanhava.
Julguei ter achado o caminho.
Me prometia igualdade.
06/05/2018
174
Cozinha 1
às vezes, muito poucas,
vou à cozinha e me deparo com o forno de micro-ondas,
com a máquina de fazer café e a geladeira.
áridos
quente
dissemelhantes
do branco e do agridoce
sonho desalmado e triste
que me afoga no presente inacabado
e dá gosto amargo às frutas que comi.
26/09/2019
175
Estranho
Será estranho
ter mãos
sem as tuas para segurar.
Ter olhos
sem os teus a me olhar.
Ter orelhas
e não te escutar.
Sentir sabor
e não dividir contigo.
Respirar
e não gozar teu cheiro.
Será estranho
viver.
05/08/2019
176
Varanda
Todos os dias acordo e caminho
trôpego: sou velho.
Esses poucos e doloridos passos, não mais que dez,
me levam tão longe, do meu quarto à varanda.
Lá instalei na parede
um óleo da casa onde nasci, o relógio do meu pai
e os ganchos que sustentavam minha rede.
As paredes são brancas, como meu pai gostava.
Me sento na cadeira de vime, onde minha mãe fazia tricô
E sonho...
Com tempos que voltam sim
Rio, 19/03/2019
177
Lila Andreoni
Antes
eu ainda era um homem
quando a vi subindo as escadas
do sobrado antigo
aproximando as mãos do corrimão
sem apoiar em nada
subia
para tirar leite de mil porcos, diziam
para depois alimentar as crianças, diziam
para um pouco depois se insinuar aos amantes, diziam
para ainda depois ordenar a matança dos homens, diziam
178
Orfanato
em qual ponto da madrugada,
aparecem várias mulheres dizendo ser minha mãe?
179
Nossos beijos não eram de língua
trocávamos os dentes em vez de saliva
esses nacos de lua de marfim
essas lascas de palavras duras
180
acessórios
íamos sair para tomar sol
já saindo fechando
peguei até a caixinha dos óculos escuros
trancamos a porta
e batem aquelas dúvidas de hall de elevador
que são como cólicas ondas intestinais
socialmente rejeitadas
uma saída,
uma resposta
que me dê o alívio
de não pedir desculpas
por chamar de casa
a palavra vazio.
181
Luana Chnaiderman
182
Muitos elefantes formam uma manada.
Há trezentos elefantes asiáticos no mundo.
Quinze, um dia, saíram em caminhada.
Não se sabe para onde vão.
Por que saíram em travessia.
A população chinesa acompanha, ao vivo,
o caminhar dos elefantes.
Já foram quinhentos quilômetros.
Eles atravessaram uma cidade e todos
fecharam as portas.
12 de junho, 2020
183
Inventário.
1.
Pra quem eu vou mostrar
a cor nova do meu cabelo
que ficou meio roxo, mas ficou top
– a aluna disse.
Como viver
sem ouvir meu bem?
***
184
2.
Traçar, com bússola compasso e três medidas de arroz
Onde, exatamente
quando
uma palavra mal dita
uma coisa que eu fiz
Foi?
O que aconteceu
que já não somos mais
quem, junto, lava a louça e briga
pela maneira de empilhar os pratos
no escorredor?
***
3.
E os detalhes:
(o teu café, uma maneira de passar a mão)
quantos são?
quantas histórias
quantas, quantas palavras
andar até furar o chão o tecido rasgar a meia e aparecer meu dedo.
E todo o fumo
que sobrou
quantos dias
até, por exemplo, acordar, passar o café
e não pensar mais nisso?
185
(os cinco travesseiros e a cachorrinha dormindo entre a gente
e a gente ficava parado e não se mexia porque não queria
que ela fosse embora)
Quantos e agora
que faço eu da vida
(E eu sempre acordava mais cedo
e gostava de te ver acordando
e depois
você sorria para mim e ia fumar na varanda).
Playlist:
https://open.spotify.com/
playlist/26Jl7h2qwuWKQaCLC7mu4z?si=6e7018ba6a384133
186
Luiza Mussnich
enchente
para Mara
187
os músculos regidos pelo sistema límbico não relaxam nunca
a glândula lacrimal contraída à força
188
exercício de desapego I
comprar um sofá
por uma pechincha
num leilão
mesmo sem ter
onde colocá-lo
ao chegar em casa contemplar a sala
pensando no que levaria
se fosse embora de repente amanhã
Luiza Mussnich é autora de Um dia o amor vai encontrar você [Id Cultural, 2016],
Microscópio [megamíni, 2017], Para quando faltarem palavras [megamíni, 2018] e
Lágrimas não caem no espaço [7Letras, 2018]
https://7letras.com.br/Autor/luiza-mussnich/.
189
Márcia Huber
190
no dia dos teus anos
com passos de lírios
subo contigo a montanha
deixando para trás nossas pegadas brancas
sentados lá no alto
puxamos juntos a corda aveludada da palavra
digo pedra à pedra
rocha à rocha
pó ao pó
é tempo de cerejas
estouramos cerejas na boca
as mais doces e as mais escuras
uma gota vermelha molha a minha mão
e lambes a gota e lambes a pele
e nos lambemos
191
os gansos brancos gritarão desesperados da margem
não passam de poetas
não passam de montanhas
192
Manhãs de maio
para Margaret e Max
194
com os pés calosos suspensos no ar
cabeça feito pomar de folhas
crescendo em todos os quintais
crias do premente
engordavam minutos inadiáveis
sorrindo para transeuntes sem rosto
as calçadas abençoavam seus pés quando passavam
os cafés que tomaram seguem queimando em suas bocas
nunca saíram de dentro deles
continuam
a umedecer o lábio
a incendiar a língua
a provocar cigarros que soltam fumaças estrangeiras
já levam anos
a tomar os mesmos cafés
a fumar os mesmos cigarros
porque no fundo no fundo
a verdade é que
nunca se separaram desses dias
195
Marcílio Godoi
Trespasse
Virá como uma peça que escapa
ao encaixe de seu talhe perfeito.
E tu saberás logo o frio instante
pelo tempo visível, aniquilado
no que pra dentro de nós se excedeu.
197
Pinho Sol Lavanda embalagem econômica
Ofereço-te esse pano molhado no chão
imerso no balde o vai e vem desse rodo
passado várias vezes essa torcida.
199
O camelo
Insiro com cuidado um camelo num verso
Desajeitado ele desce para o segundo
Terceiro subsolo em elipse.
Autocomplacente, afeiçoo-me
Ao modo rebarbativo de meu camelo
Seu mau jeito
Seu mau cheiro,
Sua inação.
201
Mas vejo que é só um camelo mesmo
Duas corcovas, joelhos improváveis
E a instável prótese bucal, ruim de prosódia
Está constrangedoramente modernista
ainda.
202
Storyfalling
Coço a barba o cigarro entre os dedos
Você prende seu cabelo no elástico
Todas as coisas são tristes e belas
Quando refletidas nos olhos de um cavalo.
204
Maria Clara Escobar
me dizem números
ações
sanções
me dizem: faltam 700 dias
mas o que já foi, não se há de recuperar
a pátria
me deixem em paz
pois não quero
jamais escrever poemas tão lindos
como os de Mahmud Darwish
205
amo ele
loucamente, o idolatro
o amo, o amo, o amo
me dizem
você deve se afastar desse tipo,
de amor
Não
Não.
Não.
Não.
Sentada, ainda
Na janela de passageiros
Penso
Nesse
Esse é o fato
206
Maria Clara Parente
olhando para o sári roxo que veio do campo de refugiados de Dhaka, pensei
nos refúgios possíveis enquanto a tarde me cortava em pedaços. era preciso
cavar e não ir para frente. mas sempre fomos tão acostumados a ter que ir para
frente que cavar parecia uma tarefa improvável. eu desviava das escadas que
tinha costurado nas gavetas e sentia muita fome. comia, afirmando as nossas
incapacidades diante das plantas. respiramos porque vocês excretam. essa era
a única verdade. as raízes antes de estarem aqui estavam cavando, cavando
junto com esse ritmo incansável dos que vivem imersos. como podia ser que
nos confundimos tanto que pensamos que esse descolamento era alguma coisa
próxima da sanidade? as dificuldades viraram as palavras que subiram nas
escadas construídas no breu na contramão da matéria. a casca da ameixa se
recostava na minha pele de dentro e eu continuava exausta. era tão cansativo, ter
que falar, ter que pensar, ter que escrever e tudo mais que a incapacidade de fazer
as coisas que importam nos levaram.
207
travessia
o mais importante é sair daqui
lembrar que uma fuga
não é como se estirar e esperar o sol parar de queimar a sua cara
estamos mais perto da insolação
é preciso trocar a pele
para poder pegar sol de novo
a fuga precisa de um plano
o quartinho em Schöneberg
a passagem
e alguns trocados
quando parecer difícil
pense no seu bisavô
que guardou moedas nos sapatos
para subornar os soldados nazistas no meio da estrada
pense em tudo que aconteceu só porque ele teve um plano
para a fuga
e faça comigo
esse caminho de volta
208
cafofo do mundo
uma escavação profunda
diagnostica uma disfunção no seu corpo
uma massa compacta de ferro e níquel crescendo mais rápido de um lado que do outro
dizem que esse crescimento disforme não vai nos prejudicar
você já arranjou um jeito de regular a gravidade da situação
mas é preciso dizer que
você nos deixou mal-acostumados
sempre solucionando e regulando tantas barbaridades
como você fica nessa história
como está passando
pode nos escrever?
me diz
se você estivesse planejando a morte dos seus filhos você falaria para alguém?
o que você acha das nossas tentativas estúpidas de te salvar?
você nos perdoaria se soubéssemos falar a sua língua?
honrar pai e mãe
foi isso que me disseram na escola católica
mas então de onde vem tanto rastro de esgoto tóxico jogado dentro
não seria justo pedir para você ensinar mais alguma coisa depois de tanto
mas você sabe que o trauma não vem sempre por maus tratos
o trauma também pode vir pelo excesso de zelo
por passar a mão na cabeça repetidas vezes
de forma alguma seria te culpar por nossa doença
mas entender o que podemos fazer
nesse ponto que chegamos
a incompreensão talvez seja
quem sabe
por conta da diferença de idade
você nasceu há mais de quatro bilhões de anos
e nós nem chegamos direito a cem
a sua velhice entranha em nossas infinitas dores
enquanto os seus esquecimentos fazem a cartografia experimental desse afogamento
e olha que ainda nem começamos com os cuidados paliativos
Maria Clara Parente é autora de Nas frestas das fendas [7Letras, 2020]
https://7letras.com.br/livro/nas-frestas-das-fendas/
209
Maria Ignez Barbosa
210
madeira torneada que o pai tanto gostava e dentro de uma vitrine a coleção
de mãosinhas antigas de pegar papel pedindo que o Brasso lhes devolva
o brilho. Tem o carrinho de feira antigo de palhinha que nunca levou ao
mercado e que abriga a bengala do bisavô parnasiano e uma vassoura de
palha nordestina. Ao lado da impressora HP um Jesus de porcelana vieux
paris, presente também de casamento da tia psicanalista. Tem a almofada de
cachorro (pois não se dá bem com os de carne e osso), parecida com aquela
que tinha no quarto em sua morada parisiense a Duquesa de Windor. Pousa
como um gato encolhido no pequeno sofá capitonê de ticking preto e branco,
tecido que na Inglaterra, no muito antes de ante ontem se usava para forrar
colchões. E ainda o cachepot pintado com a tulipa e suas folhas douradas de
metal, outro presente que segue presente enternecendo enquanto o som da
esteira diária funde o ontem, o hoje e a Netflix em uníssono barulhar.
Maio 2021
211
Encantoando Camões
seria um poema caolho a encantoar palavras
beijá-las, lambe-las docemente, espreitar seu arfar
assistir ao seu manso/intenso achegar-se ao papel
como um cão cansado atrás do verbo
criando aqueles bruscos instantes de espanto
que nos fazem mergulhar
“na grande dor das coisas que passaram”
e retornam...
língua lusa/língua mãe se transmutando
em mais versos/reversos/pernas
que em pena e pernas minhas se transformam
junho 2021
212
Zonzada
a lente me separa do mistério
impedindo aquele agarrar com a mão o sonho fugidio
até que no repente
olhos ainda fechados
zonzada
dou de mim acordo
pés tateando as chinelas turcas
buscando o impulso do pulo
ao levante da cama na manhã
sol pedindo entrança
na janela do banheiro
ainda o vidro dividindo o que é vida
do ouvido do vivido do intuído
e logo no espelho do dia repetente
haveria o roer
do biscoito duro sem trigo
que o chá faz amolecer
o queijo na bolacha de arroz
a geleia adoçada no suco de sua fruta
o mamão com as sementinhas
e todas as vitaminas
ritmando com os dentes
a valsa da véspera
dançada com a vassoura
no meu kindle
folheando o jornal inglês
junho 2021
213
Mariana Porto
Passo
passa
passo
rasta,
massa
graxa
gasta o
passo
passa
passante
com ginga
ambulante
cambiante
com fé no
pisante
passeando
o passe
no passo
passa
o tempo
extenso
terno
tenso
tece
a toada
trama
transe
com o passe
e o passo
no ato
faço
o resgate
com tempo
uno,
me
acho
na frase
fração
de segundo
conecto
214
no eu
os nossos
os vossos
e os seus.
E passo
e passa
a passagem
a viagem
215
Marília Valengo
se eu fizer a fogueira
para queimar teu corpo
já é de boa providência
e quando eu estiver ali
sei que vai me dar vontade
de dar uns pulos e
levantar os braços
para o céu e balançar
os quadris de um lado
para o outro e para frente
e para trás
216
Segundo ato
Será que alguém pula do penhasco
se na hora H
perguntam:
tem certeza?
acho que ninguém aperta o gatilho
se alguém grita:
duvido!
um morto teimoso
é muito parecido
com o resto de nós
mas existe uma diferença
que não vou dizer qual é
não nesse poema
esse poema nasceu
para me fazer pensar:
porque estou tão obcecada em
produzir vida.
217
Tamanho único
não se tem personalidade
em uma família
todos sempre terão um nome em que só depois do irmão da tia da sobrinha da avó
[será usado
para meu pai, sou yaya, que é como ele chama minha mãe
mas daí outro dia ele subiu de nível e se referiu a mim como pedro
218
é sobre muito antes
e antes também é sobre um nada que acaba em tudo
então
realmente
ser só marília não me cabe.
219
Martim Moreau Maita
e é uma loucura
eu sei
mas realmente o que é que estivemos aqui
esse tempo todo tentando fazer?
220
desajeitada e cansada e estranha
como qualquer pessoa que
carrega a própria porta
ou uma escotilha como no seu caso
mas que é uma porta
sem lado de dentro ou fora
no caso da antígona do brecht
segundo a anne carson
221
o anarcomunicipalismo segundo lucia moreau
você está um caco
quando fomos ao rio de ônibus um dia e mal chegamos lá você comeu uma
empadinha de camarão azeda e um café com leite e um quilo de açúcar pôs os
pés no mar deu bom-dia ao fantasma da tia elza em copacabana e não passamos
nem uma hora no rio e você
222
uma risada tão sonora e projetada e aberta
que tive medo que a empadinha
fosse voltar à vida
a Sua risada
ela já foi ao japão e à paraíba
mas hoje
ela está
fora de contexto
em qualquer outro lugar
223
josé, retratista e tratante
foi parar no méxico
e ao escrever o remetente
fez com tal desleixo
que oaxaca poderia ser osaka poderia ser tiblisi
o mais estranho
e que você entendeu como ninguém
224
Moema Vilela
eu já te falei
que te amo hoje eu pergunto
ao meu marido muitas vezes
ao dia todos os dias por mais
ou menos três dos onze anos
em que estamos juntos assim
desse jeito em que eu o amo
como meu noivo e ele diz que
sente que é novo porque deve
ser verdade a cada vez
e eu acho que é verdade
também porque ele o sabe
de maneira que há um tipo
de laço mágico em esquecer
um pouco da devoção que já
pisamos e de quem fomos juntos
ao menos nesse instante de reafirmar
algo ao mesmo tempo enorme
e pontual com as palavras
mais gastas do amor
como é possível um encantamento
reiterado e abundante
eu não sei e menos ainda
como isso pode estar ao lado
de outras admirações em
lembrar e esquecer o que temos
nas costas por exemplo quando
ele faz tudo o que não entendo
e não espero e desde quando
você gosta de suco de pêssego com
espumante onde aprendeu onde
se viu escolher esse tipo de atividade
para colocar o seu dinheiro
o seu templo as suas horas quem
é você por favor me prove
diga o nome de seu primeiro
animal de estimação depois identifique
fotos de semáforos hidrantes
você então talvez seja
meu namorado ou apenas
225
um homem vivendo
sua vida mais de verdade
do que às vezes nos permitimos
ou somos autorizados e isso é lindo
são momentos melhores do que
quando eu já sei tudo que você vai
fazer e vou ilustrar só com episódios
inofensivos por exemplo
você nunca mesmo vai deixar de
lavar os copos por último com
a bucha suja ou esquecer a
chaleira botar fogo na casa
fazer mil vezes a mesma coisa
que não é a melhor coisa a se fazer
como eu não saberia disso de
uma maneira excruciante para nós dois
porque – como falar e ouvir
e amar e ser amado – ser julgado
e avaliado também promove
uma profecia autorrealizável
embora eu fique tentada a me
convencer de que estou apenas
tentando evitar com todas as forças
levar a mesma rasteira
de você de novo e de novo
ou deixar você apertar mais
a corda no pescoço daí
lá vamos nós outra vez ser
sei lá esposos companheiros
ah não já sei o que somos
ele é louco eu digo à minha mãe
à minha amiga somos o louco
um do outro que podem até chegar
em um ponto em que não sabemos
mais de nada exaustos
largados nos tapetes na frente
do computador pensando
o que é uma rasteira?
o que sou eu o que é ela
o que significam todas
as coisas sobre a Terra
daí é meu nada talvez meu ex
como dizem o pai dos meus
226
“uma vez eu tive um” etc. e tal
mas como não há rompimento
há apenas esse momento de estar
muito muito cansados e nem minha
voz ele escuta mais ou minhas palavras
eu vou tentando outros tons
e alturas da minha voz mas
esquecemos nossos corpos
eles se tornaram coisas práticas
e não acontecimentos tome aqui
o contato para ver seus dentes na
segunda-feira arrumei essa cadeira
para você essa massagem que nos salva
tanto o peso das horas e ainda assim
tantas vezes perdemos a noção
do que é de fato urgente
“olá, casal” ouvimos na parada
de ônibus com sorrisos amarelos
quando somos pegos por colegas
bem no meio de uma discussão
sobre quem poderia ter esquecido
um chiclete chupado em cima do sofá
ou se é possível comparar jazz com samba
na intenção de escolher uma só música
melhor do que a outra
isso tudo nos fará rir no futuro
você é então a bússola
que me aponta as fragilidades
onde gosto de ter razão e para
indicar isso às vezes você relincha
dizendo que estou sendo grossa
não há risada comparável à risada
de pessoas que vivem juntas
sobrevivendo a tantos encalhes naufrágios
chicletes chupados grudados no tecido
da noite e ao longo dos anos
nossos nomes e apelidos vão mudando
chamamo-nos pelos nomes de batismo
mas também por outros também porque
outras pessoas nos chamam
elas chamam você e isso me ajuda a lembrar
que você tem outros nomes apesar de
que entre a gente às vezes parece
227
que já nos chamamos de todas as coisas
da casa e da rua e dos seriados
e dos elementos químicos sua barba
ficou prata os meus peitos seguram
dois lápis agora e você esteve
depois e estará antes como essa grande
companhia minha testemunha mor
e as percepções vão se alterando ou
retornando vão se descobrindo
como essa fórmula mesma do “eu te amo”
para simplificar um pouco e de forma
curta minha adoração por você
e por quem você é e que no momento
é representada por uma formulação
que tem durado esses três anos e isso
é algo em que estamos mesmo muito
metidos juntos
juntos em não saber
qual é a duração de cada coisa em nós
sabemos sempre assim no momento
esse relâmpago pleno que acende
a rotação do planeta em torno do seu eixo
e entre dormir e acordar há tempo para
tantas bodas de céu e nuvens
duas pessoas juntas são muita coisa
228
Patricia Peterle
A margarida do fogão
constantemente mede
a temperatura de utensílios
a da casa.
Lá fora também há margaridas
de outra espécie.
A alimentação é algo comum a elas.
É um indício da manhã
o singelo e ruidoso jato da cafeteira
na mesa talheres pratos xícaras
manteiga mel geleia entoados
ao perfume do pão torrado.
A tolha branca em pouco tempo
ganha contornos dourados
resíduos de sons vozes olhares
numa fina camada de migalhas.
Patricia Peterle é autora de No limite da palavra: percursos pela poesia italiana [7Letras, 2015]
https://7letras.com.br/livro/no-limite-da-palavra/
229
Sílvia Saes
Fina estampa
Para aumentar o volume das coisas
uso amarelo ou listras horizontais
(gosto de listrar sacolas e óculos de sol das passantes)
Para aprofundar o branco preencho com pequenas nuvens azuis
Às vezes nada pega cor
e as coisas embaçam definitivas no vapor da tarde
Ao fim do dia vem o cansaço
Sei que amanhã as cores vão voltar para o seu lugar
como o mundo as dispõe e devo recomeçar o trabalho de
removê-las no tumultuoso miolo amorfo onde elas nascem
Quando descanso minha cabeça na calçada
levo todas as cores ao seu íntimo frio
Não sou esponja para as coisas virem assim
imprimindo suas cores goela abaixo no corpo real do dia
— sobretudo no que chega imperioso despejando um século de sol em poucas horas
(e assombra reverberando luz)
mas também no pesado de mormaço fingindo promessa cinza e prata de sons molhados
Aprimorei a técnica de posição da cor:
suspendo a cor da coisa, fitando-a incolor, antes de ver
como ela se aninha ao meu desejo. Vivo nessa quebrada
nessa abertura que cerca o esfrega-esfrega pele-a-pele com o mundo
que não me vê, mas vejo como eu quero
231
1.
as coisas não funcionam
deste lado pontudo sem
‘como se’ é bem mais
bruto o mesmo uno
contínuo atravessado
do passado avesso
nessa etapa do deslizamento
2.
Cravei meus olhos no fundo dos olhos dos retratos dos reitores da parede do salão
nobre e aprendi o que são dez cataratas do Iguaçu de distância.
3.
Você me pergunta se o canto do galo é alegre ou triste
Eu me lembro do canto sanguinolento do galo de Clarice
E a terrível sinceridade do canto age sobre as ondas frescas
4.
Atualizações automáticas
Erros de março (vozes de um sistema de vida):
1. Não são “eles”, são as regras e não há ninguém por trás das regras, só uma
aplicação automática (o sistema é assim).
2. Não há ninguém por trás das regras.
Primeiro susto de abril: perdeu-se na Rótula do Abacaxi (no meio do acontecimento
a fissura o trincado um colado vencido).
5.
Análises buscam materiais subcutâneos e outras fibras. Talvez um deus nas mãos
vazias quando fecham. Quem sabe a dor concentrada das últimas imagens no terçol
do olho esquerdo sob as chuvas de junho. Buscam num corpo acontecido.
232
Um nome quase seu
Esmeralda
engastada em suporte frágil
O teu lugar vai para onde eu for
Podes agora circular os pequenos vulcões
na superfície flambada daquele nosso planeta
233
Sofia Mariutti
bumerangue
a leitura de um poema
dispara da cabeça um projétil que vai
e volta com um novo poema
muitos desses bumerangues
estão planando no ar há anos
como satélites
234
com o carvão preencher
a página de sonho e de víscera
então com a ponta dos dedos
um pano limpo ou uma borracha
inaugurar o contraste
e todas as coisas
cobrir a luz de noite
invadi-la de novo
de razão
235
Seu livro novo chegou
236
Tânia Ralston
Privilégio
Ouvi uma voz debaixo de uma pedra
Eram palavras eram cantos eram preces
Fiz um muro em volta
Sentei em cima a escutar a voz
Só essa me faltava
Ficou muda
A voz reclama
A pedra bamba
Mas é casa, não deixo
A voz suplica
A voz se revolta
06/06/2020
237
Eu
Nasci tão sozinha que meus joelhos nasceram juntos
Foram anos de botinhas ortopédicas
Para que não me arrastassem ao chão
Não se torcessem e aceitassem meus pés
Hoje não se tocam, cada um para um lado
E eu
em outro
no meio
ainda nascida
06/06/2021
238
A prece da baleia que clama
E o problema não estava nos retratos da minha face
Nas minhas vozes roupas estava nos olhos
7/6/2021
239
Sorrio tanto que quero dizer que te amo
Na penumbra do quarto nos deitamos
Aqui sinto a metamorfose do meu ser melancólico
Largo-me ao teu encontro
Ereto e nu
Olho-te como horizonte vertiginoso
Cobiçado por caravelas ancoradas
Mergulho
O calor de Lisboa transforma teu corpo em mar
Eu sinto o Tejo com o oceano quando te aperto
Teu gemido vem em cardumes
Que mapeiam nossas salivas
Mas minha boca anárquica se solta
E envolve seu ser como um tornado
Minha garganta é profunda
Puxo-te para uma nova cachoeira
E desaguamos palavras vulgares sem pudor
Pois viemos de uma terra sem lei que grita seca
E aqui a chuva vem mansa por toques
Meus peitos já são florestas inundadas
Minhas pernas têm sua bandeira fincada
Abraça-me
Nossos olhos missionários são pagãos.
27/09/2018
240
Inoperante
Repara neste galho comprido de folha seca da samambaia
Não está inteiro não está inteira está ao chão
Não está despejado arrastado está conectado a um embrenhado de galhos
(Como tu)
Repara e reflita quando foi a última vez que regaste a samambaia?
Ontem não foi, porque estiveste triste demais lendo o jornal.
11/06/2021
241
Num piscar sou meu irmão, meu pai ou minha mãe? Não.
Há uma mancha no espelho
Da espelhadeira que meus pais me deram
Mancha não manchas muitas vinte
Há manchas redondas escuras degradê até o centro
Que se vê o fundo do avesso
Ao contrário é o ponto que o espelho não lhe vê
De onde estou, é um respiro.
21-06-2021
242
Ter seu caminho cruzado por tucanos
Você precisa aprender a parar no meio
E aceitar o que não sabe mais
Ou nunca soube e estar em paz
Ver os tucanos comerem os filhotes
E achar bonitos os bicos dos peitos
Das chupadas e dos pássaros.
Você precisa.
243
Tarsilla Couto de Brito
Sem título
Numa madrugada de orelhas amarelas do mês de maio
de mil novecentos e sessenta e oito faleceu a poeta
tarsilla couto de brito – com setenta e dois anos
e sem as razões últimas estabelecidas para uso do ponto final
244
Estudo de si
Se minha avó não tivesse sido desprezada pelo Dr. João Rassi
Se não encontrasse vingança num casamento com um Antonio Português sem nome
Se não construísse sua autoridade deixando os três filhos homens dormirem num
alpendre frio porque chegaram atrasados para o jantar
Se não manifestasse sua raiva jogando a sopa quente na cabeça de um pedinte
Se não fosse a melhor salgadeira de Goiânia
Se meu avô se levantasse daquela poltrona daquele quarto escuro onde ninguém
podia entrar – seu avô não gosta de visitas
Se meu avô a acompanhasse naquela viagem ao rio Araguaia em 1986 – seu avô
nunca gostou de viagens –
Se ela não mantivesse uma mucama preta como escrava até os filhos crescerem de
adultos – ela é da família
Se ela não tivesse o filho alcoólatra leitor de Dostoievsky
Se ela não tivesse o segundo filho alcoólatra que viajou a Bahia para se matar
Se as duas filhas não fossem donas da igreja Sara Nossa Terra
Se ela não apertasse minha mão toda vez que precisava mentir na minha frente
Se ela não fosse mãe do meu pai
Eu não encontraria no SE o assombro de mim
246
Thais Henriques
A revolução do Poema
Entre tantas escolhi duas, pouco expressivas contudo comigo relacionadas. O
combinado era naquela semana, mas já se iam três meses e hoje imagino, aconteceu
em algum dia entre uma quinta e sexta-feira.
O endereço era quase vizinho e indicava onde encontraria as duas palavras.
IMÃ e FAÍSCA estavam em um ateliê juntas em bordados e bandeiras separadas que
formaram par. Aliás não eram bandeiras eram flâmulas - na parede ao lado se via o
restante das palavras, muitas, juntas cada uma em sua flâmula - seriam também uma
família? Poderiam ser família sem se relacionar.
– Teria um coletivo para bandeiras?
– Não eram bandeiras eram flâmulas.
Mas se fossem bandeiras seria manifestação? e se fosse manifestação - a atração do
IMÃ seria a pulsão da FAÍSCA – Revolução.
Penso na distância que sempre me separou das palavras – já atuavam estas nas
minhas extremidades, polos opostos próximos – quase vizinhos.
Penso nas palavras da parede – se flâmulas fossem bandeiras e se fosse o IMÃ a
FAÍSCA e FAÍSCA a pulsão da manifestação de palavras – então quando eu saísse e as
levasse comigo, a manifestação dispersaria e tudo voltaria ao normal, sem revolução.
Na porta, sem mais palavras ela me disse que poderia vir quando quisesse e até
quando quisesse, todos eram bem-vindos nas suas diversas formas de expressão.
Funcionava em quatro encontros mensais, e depois quem quisesse que continuasse.
A manifestação ocupava a minha cabeça que procurava notícias nos jornais e talvez
encontrasse outras palavras, era preciso fazer alguma coisa. Cinco dias depois voltei
lá, busquei POEMA.
248
Thiago E
a travessia do fantasma
um fantasma atravessa minha casa
e toca a construção, seus danos físicos
olha o teto sem luz muito infiltrado
são lâmpadas quebradas e goteiras
249
Tite de Lamare
2.
os pulsos desnudos e pedintes
à porta do banco se espremem
barrados por 10 mm de vidro
temperado
a impotência desce pelos braços
a cidade me sobe com todas as
impurezas
o muro de bolor expandido
pelas ruas
faltaria uma única joaninha
um pouso sobre punhos fechados
para anunciar um dia de sorte
3.
Pergunta-se:
o pulso é de todos?
de um só
uma onda?
uma palavra paroxítona?
uma zona externa?
250
uma pulsão interna?
um pulso aberto ao silêncio?
um pulso flutuante em vento?
um pulso profundo em sangue?
Um pulso iceberg?
um pulso tobogã?
251
por aqui os cavalos ainda não galopam
alguém me indica o caminho para evitar
o poema-planta
tocar o espaço do vazio
por onde galopam cavalos
dizer que é o vazio do meio
quem faz andar a carroça
252
como o fogo na brasa que não se extingue
deixando a etiqueta “dispensa de habitação”
253
Úrsula Antunes
Vácuo
À Alejandra Pizarnik
Espelho tanatológico
Ecos do não ser
(ou do existir ausente?)
Vida em consolidação
É
O fim
Recomeço do lado
Contrário
Espelho distorcido
Só aí consigo
Tocar meu rosto.
Nada é suficiente
Suficiente
É
Nada.
254
Venus Brasileira Couy
Árvore de Alejandra
“Se o grão não morre”
em Avellaneda ou Paris,
Alejandra Pizarnik dará mais um trago e
as páginas dos poemas breves,
do diário ou das cartas numeradas
continuarão a escrever-se e
a traduzir-se
qual mão liberta
que não sente o abscesso,
a ausência em pássaro,
a morte em vida.
E a escrita surgirá
numa profusão de guimbas
e restos em p&b.
As horas não se lembrarão do tempo,
tampouco dos cinzeiros,
do voal das cortinas,
das paredes trincadas,
das enxaquecas,
das cartelas vazias de seconal.
Os advérbios gagos e
asmáticos
bebem o ruído e
o silêncio
da “grande garganta escura”.
Escrevo o sim,
o não,
o quase dos poemas e
das pétalas caídas.
Tomo muitos copos de água
e a sede orbita,
orbita,
entre os dentes
e anfetaminas.
Trago os dedos feridos
e a minha palavra é noite,
sempre a mesma,
sempre outra:
255
pedra,
vento,
chuva,
silêncio,
sombra,
infância – onde não quero mais voltar.
No primeiro hotel,
o caderno de sonhos,
o lápis de colorir,
Ostrov e Cortázar,
a quem caberá a escuta derradeira?
Na palavra-valise,
o embotamento em fogo,
o mar em jaula
o adeus em versos:
“passageira obstinada da ausência,
sem bagagem nem papéis”.
O poema é um embuste
e ainda
me atrevo a escrever.
12 de maio de 2021.
256
Carta à mãe
Quando você se for,
não terei mais teus olhos verdes a fitar-me
e a escrever a solidão em sonho
sobre a pele ao sol,
as flores da sala de jantar te cobrirão o rosto,
as folhagens que te acompanham
de uma casa a outra
serão teu robe salpicado de brilhantes.
30 de maio de 2021.
257
Tributo a Rodolfo Walsh
“Aqui fecharam teus olhos”,
bem aqui,
ao lado do clube alemão,
no aterro sanitário, aberto e escravo,
desapareceste na noite escura,
o jornal não publicou obituário
tampouco a última matéria,
entre uma partida e outra de xadrez,
um café e outro,
a mesa vazia e
surda.
Não há corpo de delito,
em Lamarque,
San Vicente
ou às margens do Rio Negro.
Não há.
258
Quais noites e muros acolherão tua letra informe?
A solidão dos gatos ecoa os dias pálidos.
12 de junho de 2021.
259
Educação poética
260
de uma tarde de amor,
da Costa do Marfim
ou de uma farmácia na Califórnia.
No desassossego do dia,
o negativo brilha
e você ainda me cobre todas as noites.
20 de junho de 2021
Venus Brasileira Couy é autora de Quase poema [7Letras, 2021], entre outros.
https://7letras.com.br/livro/quase-poema/
261
Vitor Barros
No palácio
os bumbos batendo
embaixo da blusa
(no tórax)
bolas-aéreas
boiando no baile
vibravam com os
flashes-fumaça
refratados
por quem me tocou.
262
Anne Carson [tradução: Martim Moreau Maita]
263
e ao mesmo tempo os líderes da Resistência francesa
quando todos eles estavam na plateia
da Antígona de Jean Anouih
na noite de estreia Paris 1944: eu não sei que cor seus olhos tinham
mas posso imaginar você virando-os agora
voltemos a Brecht, talvez ele tenha entendido melhor
carregar a própria porta faz uma pessoa
desajeitada, cansada e estranha
com uma organização profundamente diferente que está logo abaixo do que a gente
vê ou diz
para citar Creonte você é autonomos
uma palavra inventada a partir de autos “própria” e nomos “lei”
autonomia soa como um tipo de liberdade
mas você não está interessada em liberdade
seu plano
264
ou não mais do que John Cage, aspira à condição de silêncio
você quer que a gente escute o som das coisas que acontecem
quando todo o normal/musical/cuidadoso/convencional ou piedoso é retirado
ah irmã e filha de Édipo,
quem pode ser inocente ao lidar com você
nunca houve uma folha em branco
265
Friederike Mayröcker [tradução: Márcia Huber]
was brauchst du
was brauchst du? einen Baum ein Haus zu
ermessen wie groß wie klein das Leben als Mensch
wie groß wie klein wenn du aufblickst zur Krone
dich verlierst in grüner üppiger Schönheit
wie groß wie klein bedenkst du wie kurz
dein Leben vergleichst du es mit dem Leben der Bäume
du brauchst einen Baum du brauchst ein Haus
keines für dich allein nur einen Winkel ein Dach
zu sitzen zu denken zu schlafen zu träumen
zu schreiben zu schweigen zu sehen den Freund
die Gestirne das Gras die Blume den Himmel
266
melhor viajar no pensamento, Hokusai
sobre as costas, ou sob a lâmpada,
correr ao pé do Fuji e erguer os olhos
para o pico nevado, as botas de neve
úmidas e frias, a gola murcha.
Como, eu pergunto, exploração da distância
com os próprios pés, como, eu pergunto, experiências da distância
com os próprios olhos. Como conciliar o desejo pelo distante
com o sedentário. Como, pés e olhos,
lágrimas e prazer.
267
Inventário de um hiato de vida
na minha mochila
um galho de tomilho
duas moedas
um lápis sem ponta
notas amassadas
migalhas de biscoito
um prendedor de roupa verde
o cartão de visita de um germanista japonês
um pequeno pente quebrado
as formigas de Dalí sobre uma partitura amarelada
in meinem Tornister
ein Thymianstämmchen
zwei Münzen
ein stumpfer Bleistift
zerknitterte Notizen
Keksbrösel
eine grüne Wäscheklammer
die Visitkarte einer japanischen Germanistin
ein zerbrochener kleiner Kamm
Dalís Ameisen auf einem verschatteten Notenblatt
268
Friederike Mayröcker (1924-2021)
© Isolde Ohlbaum
269
Irene Gruss [tradução: Clarisse Lyra]
O jardim
Você está cansada da viagem, Diana?
Deixou as malas e saiu para ver o sol
em seu jardim, foi até lá
rapidamente, pausadamente?
Deu uma olhada nas plantas
ou viu cada uma, sabendo-a
descobrindo-a, tu cuida
de teu jardim, canta com
o regador na mão?
Está cansada da volta da viagem,
Diana? Está contente?
Alguém lhe acariciou, brincou outra vez
com sua mecha de fênix,
beijou suas pálpebras
como quem deseja tocar
um olhar assim de azul, de cinza
conforme o tempo? Você foi feliz,
Diana? Intensa e dura, a viagem?
Acomodou a cabeça no assento do avião,
descansou?
Está repleta de memória, de sentidos
com a viagem, Diana?
Almoçaria comigo para me contar?
Você passou fome na estadia,
Diana, você passou fome?
Embebedou-se? Em algum momento
chegou a ficar enjoada com a viagem?
Em algum momento, sentiu
esse nada na boca
do estômago, ali onde dizem que
fica a alma? Encheu
com o que esse nada, com pessoas,
com coisas, sentiu
necessidade? Observou
a vida tranquila, assim como lhe vejo
agora, calma
e sabichona? Você conheceu
a morte na viagem,
Diana? Ela lhe assustou, você a assustou?
270
Você trouxe fotos, postais,
documentos, abraçou
muita gente, foi abraçada?
Você gozou, traduziu o amor
louca de desejo? Falou muito, calou
muito? Por que
está me dizendo
que escrever é a única coisa
que temos? Você está
cansada, é por isso, porque
está cansada da viagem? Quer
dormir, recostar-se em um ombro,
quer rir, chorar um
pouco? Por acaso a viagem
não lhe consola,
Diana? Não é como o tato
de outra mão, não é, verdade?
Você almoçaria comigo para
me contar?
Já floresceu a rosa
em seu jardim? É tão linda?
As pétalas irromperam
plenas de vida, a vida é
púrpura depois de uma viagem,
Diana,
é assim?
271
Índice
1
Agi Mishol
Gansos7
O marco da porta 9
Segunda-feira11
A jovem mártir 12
Saburo Kuroda
Vento de setembro 14
Montserrat Álvarez
Fracasso eu te canto 16
Heberto Padilla
O presente 18
Canção das amas de leite 20
Adi Keissar
Ars poética 21
Wislawa Szymborska
A garotinha que puxa a toalha 22
Jack Gilbert
falhar e voar 23
2
Robin Myers
O retorno 30
Shinjiro Kurahara
Uma raposa 32
Juana Adcock
Do amor e as línguas a ponto de morrer 36
Sayaka Osaki
Suihanki39
Patricia Cavalli
O coração nunca está seguro, por isso 41
Flora Francola
Ninguém me escreveu um poema 47
Vasko Popa
A porta 48
3
Oksana Vasyakina
Quando vivíamos na Sibéria 58
Denise Duhamel
Sexo com um poeta famoso 67
Adina Dabija
Anos e corvos 70
Angela Marinescu
Atração71
Ana Ristovic
Olha dentro 72
Sujata Bhatt
O que aconteceu com o elefante? 74
Wu Ang
Peitos76
Charles Simic
Dezembro77
Mil anos de solidão 77
Audre Lorde
Saara78
4
Yehuda Amichai
O pátio do colégio 84
Eugenio Montale
Os elefantes 86
Solja Kapru
Pessoas assim 88
Montserrat Álvarez
Pesadelo n. 2 Prece 90
Ingibjörg Haraldsdóttir
Mulher92
Al-Saddiq Al-Raddi
Sem respirar 94
Golgona Anghel
Lidija Dimkovska
Requerentes de asilo 98
Diferença100
Meu túmulo 101
Dani Umpi
panoptismo:102
gourmet:103
Cinema, comida e futebol 104
Agi Mishol
Sete céus 106
oficina
Alexandra Maia
Tentar e falhar 108
perdi meu corpo 109
pense numa pessoa confusa 110
Álvaro Uliani
Revolução111
André Miranda
dobrou as esquinas118
Augusto Britto
Dá uns amassos num leão pra mim119
La valse des étoiles 120
A valsa das estrelas 121
Bruna Corazza
quem me espera do outro lado da cachoeira 122
Descanso n. 3 124
Ainda sem rosto 126
Cacau Costa
Primeiro, você descobre. [...] 127
Sem capacetes 128
Tesourinha 129
Plano130
Caroline Prince
E etc. 131
Christina Autran
Uma pedra real e tangível não é uma metáfora 132
em que viver sozinho não é deixar de viver junto
ou coisas que vêm de um lado cinza da mente 133
meu coração é quente, peludo, e tem dente 134
Cleo Vaz
Das paredes, cetins queimados 135
Vera Ballroom 136
Domingos137
Terra Firme 139
Daniela Storto
O homem do casaco marrom 140
Marion on the rocks 143
A cantora entra na cozinha do navio; bebe do copo d’água; derruba e cai 144
A lã 145
Eric Pestre
Montagem151
Mudança de estação 152
Fáthima Rodrigues
Embrulho da agonia 153
Dia-em-dia154
Gustavo Galo
dia 10 156
dia 15 157
dia 23 159
dia 24 160
Halina Grynberg
Cicio161
Cinco Marias 162
Partitura164
Inês de Araujo
Como se você visse alguém que reconhecesse passando [...] 165
Kintsugi165
Nem a ambulância com sua sirene se degradando
como uma mancha vermelha [...] 166
Jonathan Fontenelle
Isso não é real 172
Olha a tela do computador 173
Leão Zagury
Ideologia174
Cozinha 1 175
Estranho176
Varanda177
Lila Andreoni
Antes 178
Orfanato179
Nossos beijos não eram de língua 180
acessórios 181
Luana Chnaiderman
Para onde vão os elefantes? 182
Inventário.184
Luiza Mussnich
enchente 187
exercício de desapego I189
Márcia Huber
a rocha fazia confissões ao corpo 190
no dia dos teus anos191
Manhãs de maio 194
Marcílio Godoi
Trespasse 197
Pinho Sol Lavanda embalagem econômica 199
O camelo 201
Storyfalling204
Maria Clara Escobar
a pátria é bobagem, sabemos205
amo ele206
Mariana Porto
Passo214
Marília Valengo
Rascunho de uma elegia 216
Segundo ato 217
Tamanho único 218
Moema Vilela
eu já te falei 225
Patricia Peterle
A margarida do fogão229
Sílvia Saes
Fina estampa 231
1. as coisas não funcionam232
Um nome quase seu 233
Sofia Mariutti
bumerangue234
com o carvão preencher 235
Seu livro novo chegou 236
Tânia Ralston
Privilégio 237
Eu238
A prece da baleia que clama 239
Sorrio tanto que quero dizer que te amo 240
Inoperante241
Num piscar sou meu irmão, meu pai ou minha mãe? Não. 242
Ter seu caminho cruzado por tucanos 243
Thais Henriques
A revolução do Poema 248
Thiago E
a travessia do fantasma 249
Tite de Lamare
ela nunca mente sobre pulsos 250
por aqui os cavalos ainda não galopam 252
Úrsula Antunes
Vácuo254
Vitor Barros
No palácio 262
traduções