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ElizabEth RaniER MaRtins do VallE (oRg.

Psico-oncologia
Pediátrica

daniel de Paula lima e oliveira lopes


gisele Machado da silva Moreira – Joelma ana espíndula
Juliana Vendrúsculo – luciana liona Melo
luciana Pagano castilho Françoso

Casa do Psicólogo®
PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA
PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Organizadora

ELIZABETH RANIER MARTINS DO VALLE

Casa do Psicólogo®
© 2001, 2010 Casapsi Livraria e Editora Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer finalidade,
sem autorização por escrito dos editores.

1ª edição
2001

2ª edição
2010
Editora
Ingo Bernd Güntert e Anna Elisa de Villemor Amaral
Coordenação Editorial
Dirceu Scali Jr.
Produção Gráfica & Capa
Renata Vieira Nunes
Editoração Eletrônica
Renata Vieira Nunes
Revisão
José Eugênio Gianetti Jr.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Psico-oncologia pediátrica / Elizabeth Ranier Martins do


Valle, (organizadora). -- 2. ed. -- São Paulo : Casa do
Psicólogo ®, 2010.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-62553-60-8

1. Tumores em crianças – Aspectos psicológicos


I. Valle, Elizabeth Ranier Martins do. II. Título.

10-09214 CDD-618.929940019
Índices para catálogo sistemático:
1. Crianças com câncer : Aspectos psicológicos
618.929940019
2. Psico-oncologia pediátrica : Aspectos psicológicos
618.929940019

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à

Casapsi Livraria e Editora Ltda.


Rua Santo Antônio, 1010
Jardim México • CEP 13253-400
Itatiba/SP – Brasil
Tel. Fax: (11) 4524-6997
www.casadopsicologo.com.br
Prefácio

Valdemar Augusto Angerami – Camon

Quando alguém é convidado para prefaciar uma obra, na quase totalidade


das vezes, tal convite é efetivado visando-se objetivos bastante específicos. Entre
eles podemos citar o fato de que se espera que o prestígio e a credibilidade do
prefaciador avalisem a obra, e por conseqüência o autor. Assim, escolhe-se alguém
que, além de tecer elogios à obra também estará com o seu parecer qualificando e
dando seriedade ao próprio autor. No presente caso ocorre totalmente o contrário.
Se existe alguém que pode conferir credibilidade, respeito teórico e cientí-
fico a alguém é a Dra. Elizabeth; a carreira acadêmica da Elizabeth dispensa
qualquer apresentação; o trabalho que ela desenvolve na área de oncologia nos
principais hospitais de Ribeirão Preto dispensa qualquer aval por mais qualificado
que esse possa ser; a doçura e meiguice do seu sorrir fazem dela uma das pessoas
mais especiais que se pode deparar ao longo da vida; os seus escritos colocam-na
no rol dos grandes autores na área da psico-oncologia; e seu trabalho de orienta-
dora de dissertações e teses acadêmicas na USP igualmente colocam-na num
pedestal dificilmente superável em nossa realidade. Minhas palavras são dispen-
sáveis diante de tamanha envergadura teórica e pessoal. Impressão que se tem
é que ao escrever essas linhas apenas engrandeço a mim mesmo pelo privilégio
de poder estar presente nesse trabalho. E ainda que nossas verdades sejam as
mais pequenas entre as menores certamente serão determinantes de muitas
conquistas pelo simples fato de que continuamos acreditar e a fazer crer numa
realidade mais humana na área da saúde.

Serra da Cantareira, numa manhã de inverno


Sumário

Apresentação .................................................................................. 9
Elizabeth Ranier Martins do Valle

Capítulo 1
A organização familiar e o acontecer do tratamento da criança
com câncer ......................................................................................... 13
Daniel de Paula Lima e Oliveira Lopes
Elizabeth Ranier Martins do Valle

Capítulo 2
Assistência psicológica à criança com câncer – os grupos de apoio .......... 75
Luciana Pagano Castilho Françoso
Elizabeth Ranier Martins do Valle

Capítulo 3
Vivências de mães em situação de recidiva de câncer ............................ 129
Joelma Ana Espíndula
Elizabeth Ranier Martins do Valle
Capítulo 4
Vivências de uma criança com câncer hospitalizada em iminência
de morte ........................................................................................... 181
Luciana de Lione Melo
Elizabeth Ranier Martins do Valle

Capítulo 5
A continuidade escolar de crianças com câncer : um desafio à
atuação multiprofissional .................................................................. 215
Gisele Machado da Silva Moreira
Elizabeth Ranier Martins do Valle

Capítulo 6
A criança curada de câncer – modos de existir ..................................... 247
Juliana Vendruscolo
Elizabeth Ranier Martins do Valle
Apresentação

Os capítulos desse livro pretendem revelar algumas facetas do


câncer infantil que se mostram na experiência vivida pela criança
doente e seus familiares.
Tratam de pesquisas realizadas nas enfermarias, isolamento pro-
tetor e ambulatório do Serviço de Hematologia e Oncologia Infantil
do Departamento de Pediatria e Puericultura do Hospital das Clíni-
cas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto — Universidade de
São Paulo.
Esse Serviço é integrado pelo GACC — Grupo de Apoio à Cri-
ança com Câncer, é formado por uma equipe multi e interprofissional,
composta por médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais,
nutricionista, dentista, além de profissionais de outras especialida-
des, quando necessário, e um Grupo de Voluntários.
À equipe multiprofissional compete a organização de um traba-
lho que pretende prestar uma assistência integral à criança com
câncer e à sua família. Ações curativas, preventivas e paliativas,
decisões sobre o tratamento, avaliações das condutas profissionais,
dentre outras atividades, são tomadas em conjunto, visando à exce-
lência do atendimento. Para isso, ocorrem várias reuniões, na enfer-
maria e no ambulatório .
O Grupo de Voluntários, através das atividades que lhe são pró-
prias, dá o suporte financeiro para a implementação do Serviço,
possibilitando, inclusive, a contratação de alguns profissionais para
10 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

melhor cobrir a assistência à criança com câncer. Além disso, é


responsável pela organização da Casa de Apoio à criança e um seu
acompanhante, que moram fora de Ribeirão Preto, e de outros servi-
ços que colaboram para a assistência às famílias da criança doente:
organização de festas e eventos especiais, como o McDia Feliz, doação
de cestas básicas às famílias carentes, visitas ao hospital, trabalhos
manuais com as mães que estão hospedadas na Casa de Apoio, trans-
porte, dentre outros.
Pelo menos uma vez por mês, uma parte dos profissionais e os vo-
luntários se reunem na Casa de Apoio à Criança com Câncer para dis-
cutir necessidades, planejar ações e avaliar o trabalho como um todo.
Como diz Dr. Luis Gonzaga Tone, chefe do Serviço de Oncologia
Pediátrica, “nosso serviço é de primeiro mundo!”. Concordo com
ele. Nos 17 anos que temos trabalhado nessa área, muitas transfor-
mações foram ocorrendo, sempre no sentido de avançar, melhorar.
Ainda, conforme Dr. Tone: “fazemos um trabalho de formiguinha —
devagar e sempre construindo” .
É nesse contexto que temos realizado e orientado pesquisas em
Psico-Oncologia Pediátrica que, de algum modo, revertem para o
próprio Serviço os seus achados. Nossas investigações se apóiam em
uma Psicologia Fenomenológica que permite ao pesquisador chegar
à compreensão da experiência vivida pelas pessoas. Assim, é possível
entender o mundo tal como ele existe para a criança com câncer e
seus familiares em situações especiais como as apresentadas nesse
livro: no acontecer do tratamento tendo em vista a organização fa-
miliar, nos grupos de apoio psicológico às crianças, nas recidivas da
doença, na proposta de reinserção escolar da criança doente e na
cura. As situações vivenciadas não encerram um sentido em si mesmas,
mas adquirem um significado para quem as experiencia, relacionado
à sua própria maneira de existir. De algum modo, essas investigações
permitem-nos apreender o quotidiano do câncer infantil com suas
múltiplas faces e possibilidades. A abordagem fenomenológica con-
fere ao texto leveza, clareza e, ao mesmo tempo, profundidade, sem
perda de compreensão, pois trata do que é próprio do ser do homem —
as suas possibilidades existenciais.
Esperamos que esse livro possa ser útil a todos aqueles que, de
algum modo, convivem com a realidade do câncer infantil: os pesqui-
APRESENTAÇÃO 11

sadores, os profissionais e estudantes da área da Saúde, os familiares,


as crianças doentes que já sabem ler e de mais pessoas interessadas.
Todos esses estudos foram por mim orientados. Antes de sua
realização passaram e foram aprovados pelo Comitê de Ética do Hospi-
tal das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto — USP.
São teses de doutorado e dissertações de mestrado, adaptadas e or-
ganizadas para se adequarem à forma de capítulos de um livro.
É importante mencionarmos, ainda, que os trabalhos aqui apre-
sentados foram subvencionados pela FAPESP — Fundação de Am-
paro à Pesquisa do Estado de São Paulo, a quem, de público, gostarí-
amos de agradecer pelo valioso apoio que nos tem propiciado, ao
longo de muitos anos, o desenvolvimento de uma linha de pesquisa
de investigação bastante fértil.

Elizabeth Ranier Martins do Valle


CAPÍTULO I
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O
ACONTECER DO TRATAMENTO DA
CRIANÇA COM CÂNCER

Daniel de Paula Lima e Oliveira Lopes


Elizabeth Ranier Martins do Valle
1. Introdução

Considerando relevantes os contextos cultural e social nos quais


a família está inserida, SOIFER (1983; p.11) a define como um “or-
ganismo destinado essencialmente ao cuidado da vida, tanto individual
como social, onde se dão ou se aprendem as noções fundamentais para a
consecução de tal fim.”. Esta é uma definição, entre tantas outras que
existem sobre família, oriundas das mais diversas vertentes teóricas.
Em estudo realizado com o objetivo de investigar a repetição de pa-
drões interacionais no grupo familiar, intergeracionalmente,
CERVENY (1994) ressalta o quanto, apesar de uma série de defini-
ções existentes, torna-se complicada uma conceituação mais precisa
de família. No que se refere à família brasileira, esta dificuldade tam-
bém está relacionada ao fato de que “sob a denominação de família,
existe uma pluralidade de composições que incluem: laços sangüíneos,
relações não formalizadas por parentesco, família conjugal e extensa, nú-
cleo doméstico e família não legitimada juridicamente, entre outras”
(CERVENY, 1994; p.20).
É com este cenário de muitas possibilidades e poucas definições
que o profissional que se propõe a atuar com famílias de crianças
com câncer no Brasil se depara. De fato, nas últimas décadas, vimos
ruir muitos dos alicerces que sustentavam a perpetuação da tradicio-
nal “ família nuclear”. Ganharam espaços novas e complexas com-
posições, que desafiam a capacidade dos teóricos em nomeá-las, tal
qual a velocidade que surgem. Assim, seja na dimensão conceitual
16 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

como na de sua manifestação prática, é inviável que concebamos a


família como uma entidade sempre idêntica a si própria. Tal diversi-
dade se reflete na abordagem à questão do atendimento à crianças
com câncer e seus familiares. A compreensão dos dinamismos que
interpenetram o processo do adoecimento e o ciclo de vida familiar
implica na abertura e na disposição do profissional que presta assistência
(em suas diversas ordens) em acompanhar isto que são movimentos,
redefinições e surpresas.
Neste capítulo serão apresentados alguns exemplos acerca de
como, a partir do atendimento psicoterápico de apoio à uma criança
com câncer e sua família, pode-se apreender uma parcela da com-
plexidade que encerra o fenômeno da organização familiar em articulação
com o do acontecer do tratamento de câncer infantil. Antes, contu-
do, são expostos alguns dados da literatura nacional e estrangeira
que situam, teoricamente, facetas do impacto do câncer infantil no
sistema familiar.

2. Câncer Infantil e Ciclo de Vida


Familiar: Considerações Sistêmicas

A compreensão dos desdobramentos de uma doença crônica em


um contexto desenvolvimental implica, de acordo com ROLLAND
(1995), na consideração de como três distintos “fios evolutivos” es-
tão articulados, sendo estes a doença e os ciclos de vida do indivíduo
e da família. A reflexão sistêmica sobre os elementos desta tríade
demanda um instrumental lingüístico que contemple de modo coe-
rente esta articulação.
ROLLAND (idem) apresenta a configuração de um esquema
psicossocial das doenças crônicas, que abarca fundamentalmente duas
dimensões: 1) tipologia psicossocial das doenças crônicas (início,
curso, conseqüências e grau de incapacitação da enfermidade) e 2)
fases temporais da doença. Todos estes aspectos, que variam de acor-
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 17

do com a doença, estabelecem uma “ponte” entre o que é biológico e


o social, favorecendo uma maior contextualização da situação que
atravessa tanto o paciente como sua família.
Serão abordados mais especificamente, neste capítulo, os aspec-
tos relacionados às fases temporais do câncer infantil. Esta dimensão
tem sua importância fundamentada no fato de que contribui para
que sejam desmistificados alguns clichês, dentre eles aqueles que se
ouvem como “enfrentar um câncer”, ou seja, que criam uma perspec-
tiva unidimensional, uma “visão de túnel” (ROLLAND, 1995; p. 378),
desconsiderando as peculiaridades das diferentes etapas da doença.
Estas, por sua vez, requerem modos de ajustamento familiar que são
diversos, “tarefas-chave” específicas. Em outras palavras, não se
trata do enfrentamento pela criança e sua família de um câncer “ge-
nérico”, mas sim dos desafios que habitualmente se impõem em dife-
rentes momentos desta doença. O autor descreve três fases, através
das quais podem ser acessados temas centrais da história natural da
doença crônica: crise, crônica e terminal. Nesta mesma direção,
RIBEIRO (1994) descreve três etapas pelas quais passa especifica-
mente a família de um paciente com câncer, designando-as: aguda,
crônica e de resolução (morte ou sobrevivência).
É de suma importância que as fases temporais da doença sejam con-
sideradas apenas como um “mapa” geral dos temas que habitualmente
emergem, e são descritos pela literatura, na vivência da criança com
câncer e sua família. A prática aponta para o fato de que a realidade
extrapola em muito estes modelos, e os apresenta ainda de forma
complexa e muitas vezes imprevisível. Deste modo, cabe mais pen-
sarmos neste referencial conceitual como uma possibilidade de
explicitação de padrões de comportamento freqüentes, e não como
um “aprisionamento” cronológico da experiência familiar.
A fase de crise engloba desde o período pré-diagnóstico até o
esclarecimento da situação, seguido de algum delineamento de pla-
no de tratamento ou intervenção. É uma etapa difícil, de desestrutu-
ração, que requer diversos aprendizados práticos, tais como os de
lidar com a dor, o ambiente e os procedimentos hospitalares. No caso
do câncer infantil, como nos relatam VALLE & VENDRÚSCULO
(1996; p.736):
18 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

“O diagnóstico do câncer infantil é o início de efeitos desalentadores


sobre toda a família e não somente sobre a criança. Também a família
é vitima do câncer infantil. Uma das razões que justificam esse efeito
na família é a concepção de que os filhos devam necessariamente
sobreviver aos seus pais.”

Desta forma, o câncer infantil introduz a possibilidade de se pen-


sar em uma inversão na ordem natural dos acontecimentos da vida,
suscitando nos familiares o medo de uma morte precoce da criança.
BROWN (1995; p. 401) relata que “a morte de um filho é considerada
pela maioria das pessoas como a maior tragédia da vida”, visão que se
origina no “fato de que a morte de uma criança parece completamente fora
de lugar no ciclo de vida”. Em sua análise, esta autora demonstra que
isto acontece não em decorrência do funcionamento instrumental do
sistema familiar, já que a criança possui, concretamente, poucas
responsabilidades práticas, mas sim do “processo de projeção familiar
através do qual os filhos se tornam o foco emocional importante da família”
(BROWN, 1995; p.401). Assim, a perda de um filho abala algo da
possibilidade de extensão e perpetuação dos pais, em um sentido exis-
tencial e, sempre, muito peculiar. Além disso, o diagnóstico de câncer
também rompe com aquele sentimento de invulnerabilidade que é cada
vez mais imperioso em nossa sociedade capitalista de consumo, na qual
o novo é valorizado e estimulado, e o velho, e a morte, são como ates-
tados de incompetência e incapacidade.
Em um outro trabalho, VALLE (1994; p. 220) refere-se ao diag-
nóstico como “um tempo de catástrofe”, já que o contato com o câncer
se constitui em um verdadeiro choque para a família, que pode ser
seguido por uma série de sentimentos, tais como os de culpa, raiva e
inconformismo, além daqueles de depressão e isolamento. A autora
descreve ainda o quanto o medo da morte vai ser o “pano de fundo”
para as ações dos pais, que encontram neste momento inicial, além
de todas as dificuldades emocionais previstas, outras relacionadas
também à compreensão do câncer e do seu tratamento.
Em meio a tanto sofrimento, uma atitude bastante freqüente
por parte não apenas da criança, mas de seus familiares, é a da nega-
ção desta realidade. Um estudo realizado há mais de quarenta anos
com mães de crianças com patologias oncológicas (Bozeman et al.,
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 19

1955; apud VALLE & VENDRÚSCULO, 1993) revela que muitas


das reações iniciais frente ao diagnóstico consistem no questiona-
mento sobre a validade deste, o que pode gerar a procura por outros
médicos e hospitais, uma incredibilidade, enfim, na busca de se re-
verter a situação que é revelada com o diagnóstico. Neste processo,
vários exames podem ser feitos novamente, com o intuito de que em
algum momento algo possa vir a desmentir o quadro da doença.
LE SHAN (1992) alerta para o fato de que tanto os profissionais da
equipe, como os psicoterapeutas, devem estar atentos ao fato de que
existem dois tipos de negação: 1) tipo “saudável”, se constitui em
uma defesa que é necessária por algum tempo, até para que se consi-
ga enfrentar a situação. Trata-se de uma “crosta necessária” (LE SHAN,
1992; p. 81), que poderá ir dissolvendo-se com o passar do tempo, à
medida em que paciente e família tomam maior consciência de seus
recursos; 2) tipo “prejudicial”, refere-se à negação que “enfraquece o
relacionamento pessoal do paciente, tolhe recursos para se lidar com pro-
blemas, impede a assunção de uma atitude responsável” (LE SHAN, 1992;
p. 81). Este autor, com toda sua experiência no trabalho psicoterápi-
co com pacientes de câncer e seus familiares ressalta o quanto é ne-
cessário cuidado para se lidar com essas defesas, que só deverão ser
questionadas ou “atacadas” quando elas interferem “no acesso da
pessoa à sua própria fonte de forças ou capacidade para lidar com os
problemas que afligem sua vida no momento” (LE SHAN, 1992; p. 82).
Obviamente, isto requer do profissional muita experiência para que
possa dimensionar o contexto de sua intervenção, e para que possa
ser continente às suas possíveis conseqüências.
A “turbulência” que se instala à época do diagnóstico contribui
para uma dificuldade na assimilação das informações sobre a doença
e o tratamento, que terão de ser retomadas diversas vezes. ROMA-
NO (1997) ressalta o quanto os membros da família de uma pessoa
doente podem apresentar diversos sintomas, que vão desde os
somáticos, com as doenças físicas, até a diminuição de atenção e
irritabilidade. Tudo isto contribui para um comprometimento da ca-
pacidade de se lidar com as informações e procedimentos que pare-
cem óbvios para a equipe hospitalar. Neste sentido, não basta dizer
ou explicar uma vez, mas trata-se sim de um exercício reiterado, que
acompanhe a possibilidade de elaboração dos familiares, o que nem
20 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

sempre é fácil para os profissionais de saúde que lidam diretamente


com a família. À medida em que os pais da criança vão podendo
compreender tais informações, torna-se possível uma gradual aceita-
ção do diagnóstico. Isto não significa que os pais fiquem tranqüilos,
mas sim aptos para lidarem de uma maneira adequada e realista com
o fato de terem um filho com câncer, que necessita de tratamento.
Esta capacidade de aceitação está também associada ao modo pelo
qual é dado o diagnóstico à família, e neste sentido será sempre im-
portante que o médico possa estar atento às inquietações que pode-
rão surgir, acolhendo-as dentro do que lhe for possível. Há uma grande
necessidade por parte dos pais em atribuírem uma causalidade para a
doença do filho, e muitas vezes estes, na ausência de informações
(eventualmente mesmo com elas) encontrarão explicações para o
câncer em suas próprias atitudes para com a criança (VALLE, 1988).
Esta criação de significado é uma tarefa-chave desta fase de crise, e
possui uma natureza existencial, a de maximizar “a preservação de um
sentimento de domínio e competência” do mesmo modo que o é a elabo-
ração do luto pela perda da identidade familiar pré-enfermidade
(Moos, 1984; apud ROLLAND, 1995).
Neste universo de dúvidas, permeado pelo medo da morte do
ente querido, instala-se uma série de questionamentos acerca da efi-
cácia dos procedimentos terapêuticos, e a insensibilidade a estas ques-
tões por parte da equipe pode contribuir para que a família desista do
tratamento. Assim, por ser o médico a pessoa que vai estar acompa-
nhando a criança durante o percurso do tratamento, e com a qual
será de fundamental importância que tanto criança como família te-
nham uma relação de confiança, constitui-se na pessoa mais indicada
para comunicar o diagnóstico. É importante que o médico reconhe-
ça o saber da família, e que evite o afastamento gerado pelo “poder do
saber médico” (VALLE, 1994; p.224). De acordo com Koch (1983;
apud VALLE, 1988), é de fundamental importância que seja levado
em conta o grau de vulnerabilidade em que a família se encontra
quando recebe o diagnóstico de câncer de um filho, de forma a que
se recomende considerar a família como uma unidade de intervenção.
Assim, os membros da equipe de saúde deverão planejar rotinei-
ramente suas ações com o intuito de garantir o acompanhamento
das necessidades gerais manifestadas pela família.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 21

É possível que os pais, na tentativa de encontrarem uma origem


para a doença o filho, identifiquem algo que fizeram com a etiologia
desconhecida, e isso pode gerar intensos sentimentos de culpa.
Esclarecimentos posteriores poderão minimizar, aos poucos, tais sen-
timentos. É uma possibilidade, contudo, que estes persistam por
vários meses após a informação do diagnóstico, o que para Friedman
(1967; apud VALLE, 1988) só pode ser entendido a partir do ajusta-
mento psicológico destes pais anterior à doença, que nestes casos
pode estar sugerindo algum grau de psicopatologia. Neste sentido,
MINUCHIN (1990) adverte para o risco de classificarmos processos
transacionais1 de adaptação como patológicos, em função da presença
de uma ansiedade que, em certa medida, pode ser considerada natural.
Quando é retomado o ajustamento psicológico dos pais e da família
anterior ao câncer, e são investigadas as maneiras pelas quais esta
responde aos estresses que se fazem presentes no viver cotidiano, aí
sim é possível a obtenção de parâmetros adicionais para a formu-
lação de uma hipótese de patologia2.
A fase crônica de uma doença como o câncer pode ser longa ou
curta, mas situa-se, de acordo com ROLLAND (1995), entre o pe-
ríodo de tempo relativo ao informe do diagnóstico, com todos estes
processos de ajustamentos iniciais que foram descritos, até a última
fase, que, em consonância com RIBEIRO (1994), pode abranger a
morte ou a sobrevivência. A etapa do tratamento propriamente dito
é vivenciada pela família por períodos de maior otimismo e outros de
desestruturação, nos quais se faz mais presente a ameaça de perda.
Observa-se uma relação entre as remissões prolongadas e estes pe-
ríodos mais tranqüilos, onde a família chega mesmo a pensar em cura
ou erro de diagnóstico, e entre os momentos em que a criança sente

1. Padrões transacionais são definidos como “aquelas operações repetidas que estabelecem padrões
de como, quando e com quem se relacionar em uma família (...) Tais padrões reforçam o sistema
familiar, através da regulação do comportamento de seus membros, e são mantidos por dois sistemas
de repressão: 1) Genéricos (regras universais) e 2) Idiossincráticos (origem na história da família)”
(MINUCHIN, 1990;p.57).
2. Para MINUCHIN (1990), a patologia estará existindo quando, frente às pressões, a família
aumenta a rigidez de seus padrões transacionais, de suas barreiras, resistindo à exploração de
novas alternativas. É claro que não se pode desconsiderar também a intensidade e persistência de
padrões disfuncionais no presente como indício significativo de um modo de funcionamento
habitual.
22 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

dor, e passa por sucessivas internações, como os mais sofridos e difí-


ceis (VALLE, 1988). A manutenção de uma vida “normal”, apesar
da convivência com a doença é uma das mais significativas tarefas-
chave desta etapa. Neste sentido, o grande desafio consiste na
possibilidade de autonomia para os membros da família, perante a
propensão à dependência (ROLLAND, 1995). Para RIBEIRO (1994),
é na fase crônica que vão se consolidando os comportamentos, que
tornam-se mais estáveis, e na qual poderão estar potencializadas ten-
dências tanto de coesão como de ruptura no ambiente familiar. Den-
tro desta perspectiva, esta fase é a mais complicada e trabalhosa para
os profissionais que lidam diretamente com a família. Uma forma de
se proteger, encontrada pela família na situação de hospitalização
consiste em “não tomar conhecimento das condições das crianças que
estão em estado mais grave, enquanto buscam informações sobre o pro-
gresso de outras” (VALLE, 1988; p. 15). Nesta direção, conclui-se
que a morte na enfermaria de uma criança tem efeito “devastador”
(VALLE, 1988; p. 15) sobre os pais de outras crianças com câncer,
que estão no hospital.
A realidade de ter um filho com câncer pode vir a transformar
profundamente o cotidiano da família, em função de que uma série
de ajustamentos deverão ocorrer para que se possa dar conta desta
situação. Isto pode implicar no redimensionamento de diversos há-
bitos, ou seja, na transformação da rotina, e apesar deste processo ser
árduo para qualquer família em um momento inicial, seu desenrolar
estará diretamente associado com o grau de estruturação em que a
família se encontra3. Ao mesmo tempo em que a situação da doença
instaura toda uma carga emocional a ser gradativamente elaborada,
diversos aspectos práticos têm de ser paralelamente acudidos, e este
é um processo que se estende pelo tempo, ainda que se faça imperio-
so na etapa inicial da doença. É comum que em função do tratamen-

3. “ A estrutura familiar é o conjunto invisível de exigências funcionais que organiza as maneiras


pelas quais os membros da família interagem”(MINUCHIN, 1990; p. 57). Este conceito encontra-se
intimamente relacionado ao de padrões transacionais, que nada mais são do que as maneiras pelas
quais se opera, concretamente, a estrutura familiar. Ainda que seja comum a resistência à mudança,
e a manutenção de padrões transacionais preferidos, uma medida de “saúde” familiar constitui o
leque de padrões alternativos de que esta dispõe, o que remete à flexibilidade, essencial para que
seja bem sucedido qualquer processo adaptativo.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 23

to, a dieta alimentar tenha de ser revista, os pais tenham que encon-
trar ajuda para cuidarem dos outros filhos enquanto acompanham o
filho doente ao hospital, tenham de procurar empregos adicionais
para suprirem o aumento no orçamento, extremamente significati-
vo, que um tratamento de câncer pode exigir (custo da doença, medi-
camentos, transportes), isto além de muitas vezes terem de lidar com
a percepção de que estão ocorrendo mudanças no relacionamento
familiar. Há estudos que sugerem problemas de ordem conjugal que
podem resultar em separações entre pais de crianças com câncer,
ainda que se recomende cuidado ao se afirmar a teoria de que o
câncer da criança predisponha à separação conjugal (LANSKY et
al., 1978; apud VALLE, 1988). Novamente aqui deve-se ter em conta
o grau de ajustamento desta família anterior à doença, o que pode
resultar em um outro foco, aquele de que o câncer de um filho possa
ter exacerbado uma situação que já era delicada, mas que permane-
cia precariamente obscurecida no dia-a-dia do casal. Assim, de acordo
com MINUCHIN (1990), os filhos podem constituir mecanismos
de desvio de conflitos dos pais, que os atenuam ou redirecionam na
proporção do exercício das suas funções parentais, crise esta que
pode eclodir no momento em que a família se depara com um fato de
extrema gravidade, potencialmente desestabilizador, que é o câncer
infantil4.
Ainda no que diz respeito à questão dos relacionamentos intra-
familiares, é possível que surjam problemas na relação com o próprio
filho doente, ou com os outros filhos. No primeiro caso, pode ocor-
rer que os pais, por estarem penalizados frente ao sofrimento que o
filho tem que passar nos procedimentos hospitalares, passem a tratá-
lo de forma diferente da que faziam antes da doença. Isto pode acon-
tecer com os objetivos de amenizar os sentimentos de impotência
que são experimentados nestas situações, de evitar possíveis senti-
mentos de culpa e remorso no caso de piora ou morte da criança, ou
mesmo por dó e incapacidade de se dizer “não”. VALLE &
VENDRÚSCULO (1993) apontam que tais condutas fazem com

4. “ Muitas vezes, conflitos não resolvidos dos esposos são carregados para dentro da área da
educação infantil, porque o casal não pode separar as funções parentais das funções
conjugais”(MINUCHIN, 1990; p. 42).
24 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

que a criança doente perceba os sentimentos dos pais, e com isso


passem a fazer uso da condição de doentes para obterem compensa-
ções, tornando-se muitas vezes crianças “manhosas” e “birrentas”,
quadros que muitas vezes serão de difícil reversão, mesmo após o
término do tratamento. SOIFER (1983) enfatiza a importância da
função parental de “pôr limites” no processo de desenvolvimento de
uma criança, dentro da perspectiva de que os limites constituem noção
de realidade. Desta forma, mais do que noção de realidade, trata-se
de um limite com relação à própria fantasia, e isso diz respeito às
funções de ensino dos pais, tão importantes para a criança, fundadas
na “autoridade do conhecimento”, que constitui o “eixo do poder parental”
(SOIFER, 1983; p. 26). Cabe ressaltar que a autora faz uma distin-
ção entre autoridade e autoritarismo, fundamentada no fato de que
enquanto a autoridade implica no fornecimento de noções de reali-
dade, de limites à fantasia, o autoritarismo pressupõe a imposição de
uma fantasia própria dos pais, que também não está de acordo com a
realidade. Assim, uma das maneiras de demonstrar à criança que ela
continua sendo querida consiste na possibilidade de serem colocados
limites quando estes se fizerem necessários. Há que se considerar,
ainda, outros fatores que contribuem para esta dificuldade dos pais
no exercício da autoridade, fatores estes que possuem uma dimensão
social que se articula aos dinamismos individuais. Dentre eles, pode-
mos destacar, em consonância com ROMANELLI (1986), a exis-
tência, na atualidade (com ênfase nas famílias de camadas médias,
cenário no qual padrões alternativos possuem, historicamente, gran-
de penetração) de imensos espaços de indeterminação no que diz
respeito aos limites que circunscrevem a educação infantil e do ado-
lescente. A apropriação enviesada de uma série de conceitos da
psicologia, pedagogia, psicanálise, as ciências sociais, entre outras,
propiciou uma confusão significativa naquilo que se refere às noções
de liberdade e responsabilidade, que remeteu o que antes era um
padrão de educação rígido e autoritário à sua polaridade oposta —
uma educação demasiado permissiva e “inconseqüente” — que difi-
culta para a criança o estabelecimento de limites internos, o que vai
repercutir (viciosamente) no social.
No caso dos irmãos da criança doente, estes comumente terão
sentimentos de rejeição e abandono, em relação aos pais que
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 25

despendem agora boa parte de seu tempo com o filho que tem cân-
cer, além da percepção da desestruturação familiar (PEDROSA &
VALLE, 1997). De acordo com DOLGIN & PHIPPS (1996), os
irmãos da criança com câncer podem ter reações que incluem senti-
mentos de rejeição e alienação. Segundo estes autores, pode ocorrer
ciúmes pelo fato do irmão doente obter as atenções dos outros fami-
liares e vergonha pela aparência do irmão doente. Coexistem senti-
mentos de raiva e de ciúme com os de culpa, além do medo e da
tristeza. Neste sentido, é válido que os pais busquem compartilhar
com os outros filhos a situação pela qual a família está passando, para
que estes possam participar deste processo que também lhes diz res-
peito, de uma forma realista e ao máximo desprovida de todas as
fantasias que esta situação pode gerar. Esta situação remete à colisão
entre anseios e vontades individualizadas e o “interesse coletivo” da
família, abordada por ROMANELLI (1995), colisão esta que reitera
o espaço doméstico como carregado também de tensões. Desta for-
ma, por mais que os irmãos estejam sofrendo, contribuindo e se reorga-
nizando para dar conta da situação de ter um irmão com câncer,
continuam existindo suas necessidades de filhos, que precisam de
atenção e de cuidados. Em função de todos os rearranjos na rotina
que decorrem da situação do câncer infantil, implicando muitas ve-
zes em que os irmãos assumam várias responsabilidades e passem
menos tempo com seus pais, é comum, segundo DOLGIN & PHIPPS
(1996; p. 74), que estes irmãos descrevam em retrospecto sua expe-
riência como “tendo que ter crescido cedo demais”. É de extrema im-
portância, inclusive para a criança que está doente, no sentido de
que não lhe seja reforçado um sentimento de exclusão, que a família,
como um todo, não se torne “surda” e “cega” para as manifestações
dos irmãos sadios.
A última fase temporal das doenças crônicas, considerada por
ROLLAND (1995) como o período terminal, que pode ou não ocor-
rer, abrange desde o momento em que a morte parece realmente ine-
vitável até a morte propriamente dita. Nesta etapa, predominam
questões que envolvem separação, perdas, lutos e tristeza. Cada fa-
mília dispõe de recursos muito peculiares para lidar com estes temas,
que em verdade aparecem de diversos modos ao longo de todas as
fases da doença, mas que ganham outra dimensão quando experien-
26 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

ciados como uma possibilidade iminente. KOVÁCS (1992) enfatiza


a importância de que possa ser abordado com as crianças o tema da
morte, através da utilização de palavras e experiências que possam
ser compreendidas por ela, em função da fase de desenvolvimento
específica em que se encontrem. Segundo a autora, as crianças ter-
minais apresentam, além do medo da morte, os medos da dor, do
tratamento e da separação em relação às pessoas de sua família. É
muito complicado e dolorido para a família falar da morte com a
criança terminal, e normalmente esta conduta de silenciamento é
adotada na tentativa de se “proteger” a criança. O fato, entretanto, é
que as crianças possuem um senso de observação e percepção bas-
tante refinados, e o preço deste silêncio pode ser o surgimento de
sintomas, e de uma angústia profunda relativa ao temor do desampa-
ro e da solidão. Nas palavras de KOVÁCS (1992; p. 49), “ o oculta-
mento da verdade perturba o processo de luto da criança e sua relação
com o adulto”. As formas de comunicação familiar que se estabelecem
neste período são decisivas para que se garanta a qualidade possível
de vida neste término, o que implica para a criança em sentir que
não está sozinha, não foi abandonada, e, acima de tudo, que não se
“desistiu” dela.
Considerando a tipologia psicossocial das doenças crônicas e suas
fases específicas, acrescidas de um modelo sistêmico de família,
ROLLAND (1995) desenvolve uma representação tridimensional
do sistema amplo doença/família, no intuito de descrever, conforme
referido acima, a interface do desenvolvimento destas e do indiví-
duo. Uma primeira questão importante, neste sentido, se trata da
percepção de que algumas das tarefas-chave descritas em diferentes
fases da doença são análogas àquelas do desenvolvimento do indiví-
duo. Como exemplos, o autor traça paralelos entre as fases de crise
com a infância e a adolescência, e a fase crônica com aquele período
da vida em que os pais de uma criança abrem mão temporariamente
de interesses externos para se acomodarem à criação dos filhos. Des-
ta forma, os fundamentos do aprendizado em se lidar com as particu-
laridades das diversas etapas da doença estão dados na resolução de
tarefas desenvolvimentais que se apresentam ao longo da vida do
indivíduo e da família. Determinadas estruturas adaptativas familiares
poderão ser úteis em algumas fases da doença, porém tornarem-se
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 27

disfuncionais se conservadas em outras, e dentro disto pode-se


enfatizar a importância dos períodos de transição. Há famílias que,
no caso da criança com câncer, conseguem se organizar coesivamente
para dar conta da etapa da crise do diagnóstico, mas que, na transição
para a fase crônica, que requer como tarefa-chave o reestabeleci-
mento de uma certa autonomia para os membros, não conseguem
abandonar esta estrutura de crise, nela permanecendo. É o que o
autor denomina por “prisão adaptativa”, que é “sufocante para todos os
membros da família na fase crônica” (ROLLAND, 1995; p. 379). As-
sim, os períodos de transição podem ser considerados como os de
maior vulnerabilidade, pois toda uma estrutura anterior deve ser
reavaliada em função das novas tarefas que se apresentam.
A transição da fase de crise para a crônica é um momento crucial,
no qual “a intensidade da convivência da família com a doença crônica
pode ser abrandada” (ROLLAND, 1995; p. 390). Está aí a chance pri-
vilegiada de a família efetuar correções no seu curso desenvolvimental,
não descartando também outras transições como possibilidades. No
câncer infantil, este momento estaria situado após a primeira elabora-
ção do impacto do diagnóstico pela família, com o delineamento in-
clusive de um plano de tratamento. Uma vez que a criança inicie o
tratamento, reconheça os procedimentos e o ambiente hospitalar, de
modo a que isso constitua também uma rotina, o desafio que se apre-
senta será o do retorno (se possível) à escola, ao convívio social com
seus amigos, entre outros. Isto também ocorre com os familiares mais
próximos, especialmente os pais, que muitas vezes param de trabalhar
na etapa de crise. Instaurada uma rotina de retornos hospitalares, de
eventuais internações, é possível que se realize um planejamento es-
tratégico, podendo incluir revezamentos de acompanhante, que con-
cilie a demanda do tratamento com outras necessidades.
É este o momento da transição ou da estagnação, em que “a
vida continua” ou se “paralisa”. Como nos aponta CAPRA (1982),
os chineses se referem à crise através de dois termos específicos, que
atestam sua profunda conexão com mudança: “wei-ji”. Estes
caracteres significam, respectivamente, “perigo” e “oportunidade”.
Para a família da criança com câncer, a resolução inicial da etapa de
crise poderá ir no sentido do desenvolvimento apesar da doença (opor-
tunidade), ou no da involução (perigo).
28 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Nesta linha de pensamento que engloba crise e mudança, WEIHS


& REISS (1996) afirmam que, ainda que o câncer possa juntar algu-
mas famílias, ou afastar outras, nenhuma escapará de alguma transfor-
mação. Através de uma revisão bibliográfica dos estudos na área de
câncer e família, os autores enfatizam as evidências de que o câncer
afeta a saúde mental, e possivelmente a física, de todos os membros da
família, e não só do paciente acometido. Ambientes familiares expe-
rienciados como coesivos, nos quais são permitidas as expressões de
sentimentos, sem excesso de conflitos, aparecem como aqueles que
propiciam melhores condições de enfrentamento para todos, o que
pode repercutir inclusive no curso biológico da doença. O trabalho de
WEIHS & REISS (1996) tem como hipótese central a noção de que o
câncer é uma doença que traz a ameaça de perdas e separações, a qual
poderá ser contida de modo mais eficaz em ambientes familiares nos
quais existam relacionamentos seguros. Retomando o contraponto
“perigo” versus “oportunidade”, o câncer pode mobilizar nos relacio-
namentos familiares transformações tanto destrutivas como construti-
vas, estas últimas implicando essencialmente em novas formas de co-
municação familiar. As conclusões fundamentais do estudo mencio-
nado vão na direção de que o câncer requer da família uma revisão em
seus modos habituais de comunicação e funcionamento, sendo a
mutualidade entre os membros um fator decisivo acerca do quanto a
doença vai ou não ameaçar o curso de vida familiar. Estão em jogo a
possibilidade de “continência” familiar, de flexibilidade e criatividade
na assunção de novos papéis. Finalmente, as famílias que possuam
modelos vinculares predominantemente fundamentados na inseguran-
ça, na pseudo-mutualidade, são, na concepção dos autores, aquelas
que estão mais suscetíveis a serem desviadas do seu curso de vida nor-
mal em função da experiência do câncer.
DOLGIN & PHIPPS (1996), em trabalho que busca demons-
trar o quanto a compreensão da criança com câncer e de sua família
torna-se mais abrangente se levarmos em conta as influências recí-
procas dentro da unidade familiar, realizaram uma importante revi-
são bibliográfica acerca dos estudos já realizados na área de família e,
especificamente, do câncer infantil. Esta revisão revela uma série de
descobertas contraditórias sobre o modo pelo qual o câncer infantil
pode influenciar o ajustamento psicossocial da família, principalmente
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 29

entre estudos mais antigos, realizados em épocas nas quais o câncer


infantil era praticamente fatal, e os posteriores, que foram produzi-
dos após a melhoria das taxas de cura e sobrevivência. Os primeiros,
segundo os autores, tendiam a enfatizar a patologia, ou seja, os níveis
de distúrbios afetivos e de respostas desadaptadas existentes frente
ao estresse da doença. Este foco acentuado no déficit é a essência da
crítica metodológica que se faz atualmente em relação aos primeiros
estudos, fundamentados em modelos de psicopatologia, com freqüen-
tes comparações entre crianças doentes e seus familiares com crian-
ças saudáveis. Novos focos foram surgindo, centrados nos “processos
de enfrentamento e adaptação” e na “identificação de fatores que predis-
põem respostas saudáveis” (DOLGIN & PHIPPS, 1996; p. 77), e, com
eles, resultados que apontam para possibilidades saudáveis de adap-
tação ao câncer infantil, por parte da criança e de sua família. Esta
contradição é também verificada quando é tomada especificamente
a literatura existente sobre adaptação do casal, com alguns resulta-
dos apontando para correlações entre estresse emocional e psico-
patolgia e outros para uma adaptação geralmente bem sucedida. O
mesmo ocorre com os achados relativos aos irmãos da criança doen-
te, que vão desde a adaptação vista como disfuncional até, no extre-
mo oposto, como podendo resultar em benefícios para o desenvolvi-
mento psicológico. Atualmente, o que é descrito pelos autores, é que
muitos estudos ainda continuam sendo realizados com ênfase nos
níveis de disfunção, nas polaridades “respostas adaptadas x
desadaptadas” presentes nas famílias de crianças com câncer, mas
talvez a maioria já aponte para a compreensão de respostas gerais de
adaptação, integradas e consideradas dentro de um contexto mais
amplo. É importante que observemos esta evolução dos focos não de
uma perspectiva maniqueísta, já que todos estes nos falam de “par-
celas” da realidade de um fenômeno, mas sim histórica, o que con-
duz ao relativo, que neste caso se traduz na idéia de que “ distúrbios
psicológicos em famílias de crianças com câncer podem ou não ser um
resultado característico, diferentes níveis de estresse psicológico podem ser
esperados” (DOLGIN & PHIPPS, 1996; p. 78). Assim, não se trata
de negarmos a evidente possibilidade de ocorrência da disfunção,
tão pouco de acharmos que, quando diante de famílias com câncer,
só ocorrerá a disfunção.
30 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Mais do que nunca, e isto deve ficar bem explicitado, a generali-


zação dos resultados nas pesquisas desta área deve ser vista com muita
reserva e cuidado, já que diferentes “settings” realmente poderão pro-
piciar resultados diversos. Como relatam DOLGIN & PHIPPS (1996),
fazendo referência a um estudo não concluído na época da publicação
do texto, a disponibilidade de suporte psicossocial em diferentes cen-
tros pode conduzir a resultados discrepantes pesquisas realizadas apa-
rentemente sob “as mesmas condições”. Desta forma, estamos lidando
não apenas com uma questão de ordem metodológica, mas sim com a
da integração dos conhecimentos produzidos nesta área, que ainda
tem sido restrita e limitada. As conclusões deste estudo (DOLGIN &
PHIPPS, 1996), em essência, apontam para o fato de que, seja no que
diz respeito à criança com câncer (incluindo sua adesão ao tratamento
e seus modos de lidar com os procedimentos hospitalares), ou aos seus
irmãos, haverá uma relação entre os seus possíveis ajustamentos e os
de seus pais. Em outras palavras, o funcionamento emocional e os re-
cursos dos pais desempenham importante papel nos modos pelos quais
as crianças doentes e seus irmãos lidam com o câncer, nas diferentes
fases da doença, e este é um processo bidirecional, de influências recí-
procas, que vai além da idéia de um impacto linear, para abranger uma
compreensão sistêmica desta realidade que pode, sim, ser de dor mas
também de muito crescimento.

3. Relato e Análise de um Caso

3.1. Objetivo e Participantes do Estudo


A pesquisa cujos resultados serão parcialmente apresentados a seguir
teve como objetivo descrever possíveis modos de existir e se organizar da
família de uma criança com câncer que será aqui chamada de João5, em

5. Todos os nomes aqui citados são fictícios.


A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 31

algumas de suas múltiplas articulações com o fenômeno do acontecer do


tratamento. É relevante enfatizar que estas relações são aqui entendidas
como complexas, multifacetadas e situacionais, sendo, assim, apenas par-
cialmente acessíveis e sempre relativas.
Foram realizados vinte atendimentos psicoterápicos de apoio a
João e a sua família, no período de 06/10/1998 à 15/03/1999. João,
que iniciou o tratamento com 10 anos, veio encaminhado de uma
pequena cidade do interior de São Paulo para realizar, em Ribeirão
Preto, o tratamento de uma Leucemia Linfóide Aguda (LLA). Cabe
ressaltar que os informantes desta pesquisa (pessoas cujos relatos são
utilizados como dados para análise) constituíram-se na criança, a
mãe (avó) e excepcionalmente o pai (avô), uma vez que durante
todo o período de acompanhamento foram estas as pessoas que se
fizeram presentes no hospital. Segue-se uma breve contextualização
do sistema familiar de João:
João é uma criança que foi criada, a partir dos três anos de idade,
como sendo filho de sua avó (D. Vânia), e irmã de sua mãe (Eliana).
De acordo com sua avó, isto ocorreu porque Eliana era ainda muito
nova quando ele nasceu, e o pai desapareceu, não tendo assumido o
filho. Assim, por muitos anos, João achou ser filho daquele que,
biologicamente, é o seu avô, e ser sua mãe aquela que é sua avó. Da
mesma forma, tem como irmãos os que são, biologicamente, seus
tios. A situação do tratamento colocou em risco, inclusive por suas
demandas burocráticas, a manutenção deste segredo familiar, que foi
então revelado. O avô de João (Jair) é hoje aposentado, e a avó
trabalha em uma igreja evangélica, que está construída no mesmo
terreno da casa da família. Moram com o casal: João, dois de seus
tios (irmãos), uma tia (irmã) e atualmente Eliana (“mãe-irmã”),
com seu marido (Pedro). Trata-se de uma família grande, que cresce
mais nos fins-de-semana, quando são realizados almoços coletivos.
Apesar de passar por algumas dificuldades financeiras, principalmente
nesta etapa de tratamento, e também em decorrência do tempo em
que alguns membros familiares estavam desempregados, a família
possui uma renda que lhes permite uma situação mais ou menos
estável. Possuem carro, alguns rendimentos fixos (aposentadoria,
pensão do filho que faleceu), casa própria, e recebem também, quando
32 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

necessária, ajuda externa. D. Vânia e Sr. Jair perderam, há


aproximadamente 12 anos, um filho, que morreu de acidente, com
18 anos. Isto ocorreu no mesmo hospital em que João realiza,
atualmente, seu tratamento de câncer. O casal encontra-se na
atualidade com idade em torno dos sessenta anos, seus filhos com
mais de trinta, o que indica que João cresceu tendo por irmãos pessoas
bem mais velhas do que ele.

As informações acima relacionadas emergiram no contexto dos


atendimentos, e são tomadas mais no sentido de fornecerem um pa-
norama abrangente da situação familiar à época do tratamento. Nos-
sa preocupação neste trabalho não é investigar a situação concreta
de todo o sistema familiar de João durante o processo de tratamento,
o que seria praticamente inviável, já que demandaria um acompa-
nhamento que incluísse visitas à residência da criança e entrevistas
com outros familiares, que não vêm ao hospital. Os “modos de existir
familiar” que podemos aqui acessar são os descritos pelos informan-
tes, tais quais estes os vivenciam e os relatam. Não se trata da “ver-
dade” de toda a família, de uma “checagem” externa dos fatos, mas
de partilhar um pouco do universo familiar destas pessoas (essencial-
mente aqui a avó e a criança) tal qual elas o percebem e descrevem,
em algumas de suas tantas articulações com o acontecer do trata-
mento de câncer de João. A escolha por esta família, em especial,
fundamenta-se no fato de termos aqui uma organização familiar
bastante peculiar, na qual há um histórico de confusão de papéis
desempenhados, situação esta que foi confrontada pela necessidade
de realização de um tratamento de câncer.
Os atendimentos psicológicos com a família de João foram rea-
lizados no Departamento de Pediatria e Puericultura do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade
de São Paulo. Nos retornos semanais para exames, manutenção do
tratamento ou quimioterapia breve (um dia), os atendimentos foram
realizados em ambulatório. Quando a criança esteve internada para
quimioterapia prolongada, ou por algum outro motivo (intercor-
rências), os atendimentos foram realizados na enfermaria aberta ou
no isolamento protetor.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 33

3.2. Procedimento e Aspectos Éticos


A abordagem inicial à família ocorreu no sentido de se colocar o
atendimento psicológico à disposição dos familiares de João, como
uma forma de que estes pudessem, juntamente com a criança, estar
compartilhando suas vivências nesta etapa de suas vidas, tendo sem-
pre como foco central a situação da doença e de seu tratamento.
Nestes contatos iniciais foi colocada também a questão de que o
material trabalhado nos atendimentos poderia ser utilizado para pes-
quisa, com o que a família poderia ou não consentir, sem prejuízo da
continuidade do atendimento.
De acordo com as orientações metodológicas, foi garantido o
anonimato e o sigilo frente aos conteúdos que apareceram durante
os atendimentos. A autorização para que os conteúdos dos atendi-
mentos fossem utilizados para pesquisa efetuou-se pela assinatura de
um Termo de Consentimento Informado, por parte da família.
Foi estabelecido um contrato terapêutico com a família, já que
antes de mais nada esta seria também cliente do pesquisador. O fim
da coleta de dados se deu junto com o encerramento dos atendimen-
tos. O término do atendimento com a família foi determinado a par-
tir de uma avaliação das condições de adaptação desta à situação da
doença e do tratamento. O tempo de duração da coleta de dados
teve a flexibilidade necessária para que se respeitassem os critérios
psicoterapêuticos descritos na literatura e discutidos em supervisão
clínica, os quais foram determinantes do término dos atendimentos.
Da mesma forma, o atendimento não foi prolongado desnecessaria-
mente para durar ao menos o tempo previsto para a coleta de dados.
Assim, meu compromisso esteve fundamentado na ética da relação
psicoterapeuta-cliente, acima de tudo. Isto implicou que, uma vez
estabelecido o contato, mesmo com a recusa da família em participar
da pesquisa, ficaria mantida a proposta de acompanhamento psico-
terápico de apoio.
A psicoterapia breve de apoio possui, como um de seus objeti-
vos (FIORINI, 1995), a atenuação ou supressão da ansiedade (ou
outros sintomas clínicos), que é muito grande principalmente no
período imediatamente pós-diagnóstico, tanto para a criança como
para sua família. Assim, estes atendimentos partem de questões ge-
34 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

rais, trazidas pelo cliente, e dentro disso aparecem as questões


norteadoras deste trabalho.
Todos os atendimentos foram posteriormente transcritos pelo
pesquisador.

4. Análise dos Discursos da Família

Serão apresentadas, neste capítulo, seis das dezenove proposi-


ções que resultaram da análise de dados realizada a partir dos aten-
dimentos psicoterápicos a João e sua família. Estas categorias
fenomenológicas serão ilustradas por algumas falas dos integrantes
do sistema familiar, tal qual emergiram nos atendimentos, e pude-
ram ser captadas pela intencionalidade da consciência do pesqui-
sador. O desenvolvimento de cada uma destas proposições se deu
tendo em vista a interrogação inicial deste estudo, ou seja, o
questionamento acerca de possíveis e complexas articulações entre
os modos de existir dos familiares e o acontecer do tratamento da
criança com câncer.
Optou-se por manter no modo de descrever e analisar os dados
a mesma linguagem utilizada por João e D. Vânia em seu tratamento
mútuo. Isto significa que, mesmo após ter ciência de sua real filiação
biológica, João continuou a chamar sua avó de mãe. Do mesmo modo,
D. Vânia sempre se refere a João como seu filho. Quando se refere à
Eliana, sua mãe biológica, João o faz empregando o seu nome pró-
prio, ou apelido. O avô continuou a ser tratado por pai, e aqui tam-
bém o será (Sr. Jair). A opção pela manutenção desta linguagem, que
é a existente na família, reflete uma inclinação pessoal de respeitar
os vínculos familiares tal qual estes parecem estar afetivamente
estruturados. Sinto que não faria sentido nomear as categorias ou
realizar as descrições adotando uma linguagem “legalmente” ade-
quada, porém distoante daquilo que ouvi por todo o tempo em que
acompanhei esta família.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 35

4.1. Atribuição de Significados à Doença


Em diversos momentos do processo de atendimento psicoterá-
pico à família de João, as falas da mãe transmitiram a necessidade de
significar, através de modos diversos, a facticidade da doença. Estas
possibilidades de entendimento e contextualização do câncer foram
muito marcadas, inicialmente, pela questão religiosa:
Eu tenho muita fé no Senhor Jesus, que o João vai passar por isso, ele
foi escolhido, para depois poder dar o testemunho para todo mundo
que passou por isso e foi curado. (D. Vânia)

Mas eu acho mesmo, viu João (dirigindo-se para a criança), se você


está passando por isso você tem que dar o testemunho, dizer nas
igrejas que você passou por essa doença e Deus te curou.(D. Vânia)

Estas falas revelam o quanto, nestes momentos, o câncer apare-


ce vinculado à uma “providência divina”, através da qual João seria a
pessoa escolhida para dar no futuro o testemunho de que foi curado
por Deus, de que superou a doença. Tem-se aqui um sentido “missio-
nário” do adoecer, expresso pela mãe da criança. Esta compreensão
se faz presente em outro momento dos atendimentos, só que agora
direcionada à figura da própria mãe:
Você sabe que eu penso mesmo Daniel, que Deus às vezes faz as
coisas de um jeito que a gente é que não entende, que nem isso que
aconteceu com o João, eu nunca teria vindo para Ribeirão, e agora
eu estou aqui, e eu converso com algumas pessoas, é impressionante
como tem gente que nunca viu um versículo da Bíblia, é tão estranho...
(D. Vânia)

Permanece aqui o sentido “missionário” do adoecer, mas apro-


priado neste momento pela mãe, que significa o que “não entende”
como uma possibilidade de estar em um lugar novo, que é o hospital, a
cidade de Ribeirão Preto, transmitindo os ensinamentos da Bíblia às
pessoas que os ignoram. Não só o filho atravessa as mudanças advindas
do tratamento com um propósito, ela também o faz. Neste ebulir de
significados permeados pela temática religiosa, há momentos em que a
36 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

doença deixa de ser entendida como uma possibilidade de realização


de algo, e assume as características de um “castigo divino”:
A igreja nossa, lá, eu disse que eu ía aumentar, sabe, quando desse,
para ficar maior, e veio gente dizendo que aconteceu isso para o João
de castigo, porque eu tinha falado... (D. Vânia)

Atribuir à doença da criança o significado de punição e castigo é


algo que mobiliza a mãe e gera sofrimento, o que pode ser apreendi-
do na seguinte fala, que é uma seqüência imediata da última apre-
sentada:
Isso me deixou muito, sabe Daniel, isso me deixou muito chateada
mesmo, eu comecei a ficar com medo de ter culpa, aqueles primeiros
dias, que nós ficamos aqui no hospital, esse foi um ponto que me
deixou muito chateada... (D. Vânia)

A mãe explicita com muita clareza, no relato anterior, quão


penosa foi a vivência do sentimento de responsabilidade pela condi-
ção atual da criança. Ao longo dos atendimentos, os parâmetros de
significação pessoal do câncer do filho passaram a ser deslocados pela
mãe, dos aspectos religiosos para aqueles que abrangem dinamismos
peculiares de seu sistema familiar:
Sabe uma coisa que eu tenho pensado, Daniel, que eu acho até bom
eu falar com você, eu estava pensando em perguntar para o médico
também... É que eu ando pensando, assim, se por causa do João ter
ficado segurando tudo o que ele segurou, que ele sabia que a Eliana
era a mãe dele, e não falou para ninguém, se por causa disso não
pode ter dado essa doença que ele tem... (D. Vânia)

O câncer aparece, então, nesta fala da mãe, como o resultado da


manutenção solitária, pela criança, de um segredo que por longa data
lhe foi ocultado pela família, acerca de sua filiação. Ao dar-se conta
de que por um bom tempo o segredo que se pensava esconder da
criança já era de seu conhecimento, a mãe estabelece esta relação
entre a contenção destas informações e o surgimento da doença. O
vislumbrar desta possibilidade amedronta a mãe:
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 37

Eu estava mesmo, com medo, de que isso pudesse ter causado a doença
dele... (D. Vânia)

Experiências afetivas vivenciadas no âmbito familiar aparecem


relacionadas, de acordo com as falas da mãe, não apenas à etiologia
da doença, mas também ao seu potencial agravamento, o que poderá
conduzir, inclusive, à morte:
... e eu não quero que o João veja essas brigas (entre Eliana e seu
marido)... Tem um caso, de uma criança que eu sei, que estava assim
com problema, aí por causa de ver assim, coisa ruim, de briga, ela
piorou muito rápido, foi desfalecendo, morreu... (D. Vânia)

A última fala nos remete à idéia de que a condição clínica da


criança pode ser modificada em decorrência deste presenciar ou não
dos conflitos, das brigas familiares. Fundamentada nesta crença, a
mãe opera concretamente sobre o sistema familiar, organizando as
possibilidades de relacionamento de modos que serão posteriormen-
te ilustrados neste trabalho. Por ora, cabe ressaltar que vieram à tona,
ao longo dos atendimentos, diversas hipóteses trazidas pela mãe acerca
da origem do câncer, e dos fatores que estão relacionados ao seu
desenrolar. Conforme ilustrado, tais hipóteses apresentaram varia-
ções, mas giraram em torno de: 1) Questões Religiosas e 2) Dinamis-
mos Individuais e Familiares.

4.2. Um recordar das perdas passadas como eco que


se atualiza nas vivências do presente
Uma série de temas com um colorido afetivo bastante intenso
passou a emergir na medida em que o vínculo terapêutico com a família
pôde ir se consolidando, e sendo aprofundado. Dentre eles, destaco
neste tópico o que diz respeito às falas que evocam a lembrança da
mãe acerca de um filho seu que morreu, há alguns anos atrás. Vere-
mos, então, como o discurso desta mãe, e em um momento específico
também o da criança, explicitam o atualizar de um passado na vivência
de um presente permeado por desafios e enfrentamentos.
Em um primeiro momento, a mãe comunica, a partir do ensejo
de uma outra questão, que ocorreu esta perda:
38 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Antes, assim, de me tornar evangélica, eu ía no cemitério no dia de finados,


porque eu tenho um filho que eu perdi, que tinha dezoito anos... (D. Vânia)

Apesar de comunicar ao psicólogo, no sexto atendimento, que


havia perdido um filho, a mãe de João não entrou em detalhes sobre o
modo pelo qual isto se passou, tendo se dirigido para outros desdobra-
mentos deste fato. Algum tempo depois, contudo, a mãe pôde recor-
dar e descrever seu estado na ocasião da fatalidade que resultou na
morte de seu filho. Foram relatos que, em sua expressão contida, pare-
ceram revelar como que “às avessas” uma intensa dose de emoção:
É, foi aqui (no mesmo hospital em que João faz o tratamento de
câncer a mãe perdeu seu outro filho), eu lembro até hoje da gente
chegando, ali pela frente, aí ele já foi direto para uma sala, de maca,
a gente foi atrás, só que aí nós não pudemos entrar, nós tivemos que
ficar esperando... Aí a gente perguntava, foi complicado, não sabiam
dizer direito, eu falava: “— Eu só quero saber como está o meu
filho...”, até que veio uma médica, perguntou se eu era a mãe, eu
disse que sim, aí ela veio já me abraçando, eu perguntei para ela
como ele estava, ela disse: “— Ó mãe, nós tentamos fazer de tudo
mas não deu, ele faleceu. (D. Vânia)

Após rememorar o dia da morte de seu filho, desde sua chegada


ao hospital até a comunicação do óbito pela médica que o atendeu, a
mãe descreve qual foi sua reação emocional:
Você sabe Daniel, que na hora eu nem chorei, eu acho que Deus me
deu muita força, eu só pedi para Deus abençoar, para ele estar em
paz... Mas eu nem chorei... Aí, quando nós fomos embora, porque
nos fomos antes, aí ele ía depois, que tinha que preparar, aí no caminho
mesmo é que eu fui chorar, eu fui chorando daqui até lá... (D. Vânia)

Seguiram-se mais dois atendimentos, e a mãe pôde então falar


do que foi este impacto psicológico, e suas conseqüências, para além
dos instantes imediatos do falecimento do filho:
Quando o meu filho morreu, sabe, eu tive que ser internada. Deus
me livre, eu parecia uma louca, tive até que ficar amarrada, assim,
na cama... (D. Vânia)
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 39

A mãe ficou internada por algum tempo, e relata a proposta de


trabalho no hospital que recebeu, a qual parece ter contribuído mui-
to para o enfrentamento daquele difícil momento:
Depois de um tempo que eu estava internada, que eu já estava bem
melhor, tinha uma mulher lá que veio falar comigo, ela veio perguntar
se eu queria trabalhar. Eu falei para ela: “— Eu trabalhar? Eu não
sei fazer nada...”. E ela disse: “ Ué, a senhora não sabe fazer nada,
aprende... Eu vou mostrar para a senhora como a senhora não é a
única que já passou por isso, que perdeu um filho...”. Então eu comecei.
(D. Vânia)

A experiência de trabalhar no hospital contribuiu para que, fre-


qüentemente, a mãe entrasse em contato com os temas morte e
adoecimento, o que por diversas vezes a mobilizou. Algumas falas
ilustram este processo, que se constituiu através das transições do
exercício de uma função para outra:
Então eu comecei, ela no começo me dava um serviço, porque lá no
hospital tinha uma capela, aí eu tinha que arrumar a capela, trocar
sempre as flores que tinha no vaso, depois, assim, serviço de limpeza.
Ela acabou me pondo na limpeza da maternidade, que era a menos
impressionante, porque era feio o que a gente via, viu Daniel, cada
coisa que a gente via, a maternidade era o mais limpinho. (D. Vânia)

Seu próprio dizer nos explicita de uma maneira mais precisa suas
vivências e sentimentos relacionados ao contato com o tema “mor-
te” e “mortos”:
Depois eu trabalhei com os defuntos, eu não gosto até hoje daqueles
sacos de defunto, porque as primeiras vezes que eu vi eu ficava muito
impressionada... Uma vez uma colega minha, muito danada, aprontou
uma para mim, você sabe que eu desmaiei, eu levei um tempo para
voltar... (D. Vânia)

É interessante observar como, mesmo enfatizando que até hoje


o contato com o “saco de defunto” a desagrada, na seqüência trans-
crita abaixo a mãe revela que de alguma forma este medo foi se “na-
turalizando”. O temor anterior, que pôde levar ao desmaio, passou a
40 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

ser posteriormente elemento incorporado com certa regularidade em


suas ações rotineiras, dentro do hospital:
Tinha muita gente que chegava de acidente, ensangüentado, aos
poucos eu fui me acostumando mais, ás vezes eu levava o carrinho
com o corpo, porque o velório lá a gente tinha que sair, passar pelo
quintal do hospital, por um corredor, depois chegava no velório
municipal, que era na outra rua... (D. Vânia)

O fato de ter atravessado todo este período de internação e tra-


balho no ambiente hospitalar, há mais de dez anos atrás, é encarado
pela mãe como algo que influi nas suas possibilidades atuais de lidar
com a necessidade de estadia e retornos ao hospital, no qual João faz
seu tratamento. Ao conversarmos sobre a adaptação ao contexto atual,
a mãe diz:
Além disso, Daniel (eu havia tecido alguns comentários acerca de
minha percepção do modo pelo qual mãe e filho tem encarado os
períodos de internação), eu acho que o que ajudou também é que eu
trabalhei em um hospital... (D. Vânia)

Tem-se, então, um rememorar do passado que é atualizado nas


possibilidades do presente. Há toda uma percepção do ambiente hos-
pitalar bastante delineada pelas lembranças deste passado da morte
de um filho, o que impressiona a mãe e lhe dá medo, conforme pode-
mos perceber nos relatos seguintes:
Às vezes, sabe, Daniel, eu fico um pouco impressionada aqui neste
hospital, porque eu lembro, eu acho que foi, não, eu tenho certeza
que foi aqui que eu perdi o meu filho, de acidente... (D. Vânia)

Então, acho que por causa de tudo isso, sabe Daniel, que às vezes eu
acho esse hospital meio, assim, assustador... (D. Vânia)

Durante os atendimentos, a mãe descreve etapas do processo de


elaboração desta perda, dentre as quais já citamos a questão do tra-
balho no hospital em que foi internada. Novos relatos apontam para
outras perspectivas:
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 41

No começo eu vivia, que eu ainda não era evangélica, eu vivia indo


lá na sepultura dele, eu levava flor, sempre tinha flor lá, o meu marido
pensou até em mudar de cidade, para a gente não ficar tão perto...
(D. Vânia)

A mãe explicita, acima, uma possibilidade que foi cogitada no


intuito de se lidar com a dor da perda, ou seja, o distanciamento.
Este é tomado, neste momento, em seu sentido concreto, que é um
afastar-se do túmulo onde foi enterrado o corpo do filho. A mãe
apresenta, logo a seguir, o relato dos sonhos que, segundo ela, torna-
ram desnecessária a assunção da iniciativa antes vislumbrada:
... Então eu tive dois sonhos, que foram muito importantes. Um eu
sonhei que eu encontrei com o meu filho, que ele estava bem, e ele me
disse que era para eu ficar tranqüila... O outro, foi tão real, eu acho
que eu nem estava dormindo, eu senti que eu fui me elevando assim,
e eu cheguei num lugar mas tão lindo, era o céu, assim, um lugar
muito bonito, o meu filho estava lá, eu falei para ele: “— Nossa
filho, que lugar bom que você está, nem dá vontade de ir embora”! Aí
quando eu falei isso eu me dei conta de que eu não estava dormindo.
Depois disso, então, eu deixei de ir tanto no túmulo, eu sei que não é
lá que eu vou encontrar ele... (D. Vânia)

Neste processo de ir-e-vir das lembranças e afetos, cabe ressal-


tar, enfim, aspectos que transcendem a confusão entre os mesmos
cenários de duas histórias diferentes, do filho em tratamento e do
filho falecido, mas que dizem respeito também à sobreposição dos
personagens destas histórias. Isto fica mais claro ao entrarmos em
contato com as falas seguintes:
O João parece muito com ele (o filho que morreu), lembra muito,
sabe? (D. Vânia)

Após ressaltar a semelhança entre João e o filho que perdeu, a


mãe é indagada pela criança acerca dos termos desta identidade:
O que eu pareço mais, mãe? (João)

E a mãe responde:
42 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Ah, tudo... Os seus olhos, o rosto, assim... tudo. (D.Vânia)

Torna-se claro que há um processo de identificação grande, por


parte da mãe, entre o filho que morreu de acidente e João, que faz
atualmente um tratamento de câncer. Esta “aproximação” não é algo
recente, mas pertence sim ao histórico familiar, desde etapas anteri-
ores ao nascimento de João:
Você sabe, Daniel, que antes do João nascer eu fui numa cartomante,
naquela época eu não sabia que isso é coisa do diabo, eu fui, e ela me
falou que ia vir um filho para mim, igualzinho ao que eu perdi... Eu
não acreditei muito não, eu falei: “— Imagina”, e ela disse que era
para quando nascesse eu levar ele lá, para ela ver. Não deu outra, aí
veio e nasceu o João, aí eu fui lá, cheguei com um carrinho e ela já
sabia o que era, e ela falou: “Eu não disse?...(D. Vânia)

Temos, assim, um conjunto de relatos que evidenciam diferentes


modos pelos quais um fato do passado desta família, que é a morte de
um jovem, filho de D. Vânia, ecoa e se faz presente no momento
atual. Esta atualização se dá na percepção dos elementos que circun-
dam o tratamento de câncer, especialmente do ambiente hospitalar,
e diz respeito também à relação mãe-criança, a qual, de acordo com
as descrições anteriores, aparece permeada pela imagem do filho que
morreu.

4.3. Um modo de existir familiar fundamentado no


segredo sendo desafiado pela situação de tratamento
A noção de organização familiar com a qual trabalhei nesta pes-
quisa abrange os modos pelos quais a família interage e efetua suas
comunicações. No caso de João, parece-me que a palavra segredo
sintetiza um padrão constante de comunicação (pela não-comu-
nicação) existente no interior do seu sistema familiar. Há toda uma
fundamentação histórica para a perpetuação dos segredos na família.
O que é mais evidente, contudo, é que, se por um lado este padrão
de ocultação dos fatos constitui-se em uma forma de equilíbrio fami-
liar, respondendo inclusive a necessidades individuais, por outro gera
muito desgaste e sofrimento.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 43

Ressalto, antes dos fatos, uma fala da mãe que explicita o quan-
to João traz uma sensibilidade em relação a situações nas quais pode
ser excluído de participar do que está acontecendo:
Você sabe que o João, toda vez que alguém chama, assim, para
conversar sozinho, que ele não está perto, ele fica preocupado, com
medo de estar acontecendo alguma coisa grave, que não pode contar
para ele... (D. Vânia)

Esta preocupação de João ressaltada pela mãe faz pensar no


quanto, em diversas ocasiões, sua mente deve ter sido povoada
pelas mais diversas fantasias. Estas ocasiões possivelmente cons-
tituíram-se em situações de exclusão, nas quais João não pôde
participar de conversas nas quais, de algum modo, intuiu que se
falava dele. De fato, a mãe revela, na próxima fala, um padrão
familiar no qual “proteger” a criança significa poupá-la do conta-
to com informações dolorosas:
Outro dia eles vieram me falar que morreu uma criança lá em M. ,
que tinha leucemia (...) Então aí eles (familiares) me falaram, mas
disseram que não era para eu falar nada, para não impressionar o
João, mas isso não me atingiu não, porque eu tenho muita fé, como
eu te disse, é leucemia, mas não é tudo igual. (D. Vânia)

Passo agora ao relato da situação que eclodiu tendo como


catalisadora a situação de hospitalização da criança para o tratamen-
to. Trata-se da questão de sua real filiação biológica que, como já foi
ressaltado, pertence à pessoa que por muito tempo João pensou ser
sua irmã, a Eliana. Vejamos como se desdobrou esta história:
Lá em casa todo mundo gosta muito dele. A Eliana é, que nem assim,
uma mãe para ele... (D. Vânia)

Primeiro atendimento, e após João me contar que está com sau-


dades de sua irmã, vem esta fala da mãe. Mas o “que nem mãe”, posto
como analogia para expressar a intensidade do afeto existente entre
a criança e Eliana, é o que de fato constitui a “verdade”, ao menos
biológica, da situação. Parecer o que se é, mas não se assume ser, está
aí um bom princípio de confusão.
44 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Um mês e meio após este primeiro encontro, vários atendimentos


depois, vem a revelação explícita do segredo. Isto não deixou de ser
um alívio, uma vez que por todo este tempo eu já sabia, por ter sido
informado em reuniões de equipe sobre a situação. Tive de acolher o
ritmo desta mãe6, que para tantos quase desconhecidos já havia re-
velado seu segredo nos corredores, mas que hesitou em trazê-lo para
o atendimento. Provavelmente intuía o que viria a acontecer, e que
ficará claro no conjunto das falas que virão:
É que na verdade a mãe do João mesmo é a minha filha, eu sou a avó
dele. (D. Vânia)

Aqui a comunicação do segredo, em presença da criança, que o


soube (pela segunda vez) alguns dias antes. Depois a história:
Sabe o que é, Daniel, quando ele nasceu a Eliana era muito nova, ela
tinha só dezesseis anos, e aí o namorado dela acabou sumindo, não
quis saber, então nós é que acabamos criando ele. Só que era só por
um ano, mas aí a gente foi acomodando, foi passando... (D. Vânia)

Eles (João e Eliana) sempre, sempre foram grudados... Até os dois,


três anos ela chamava ele de filho, que ele era pequenininho, depois
dos três é que nós começamos a tratar, assim, como filho nosso,
mesmo... (D. Vânia)

É difícil situar, concretamente, apesar dos relatos, como sucedeu-


se exatamente o processo de assunção da filiação de João pelos avós, e
em que exato momento. A história é confusa, até contradi-tória, mas
o fato é que, como visto no segundo tópico desta análise, João parece
ter vindo, para essa avó, com uma missão bastante especial: ocupar o
lugar de um filho que morreu. Parece-me que, ainda que Eliana tenha
tratado o garoto como filho até os três anos, referindo-se a ele de tal
modo, este papel já existia também em relação à sua avó. Em síntese:
ele já era “filho de ambas” e, ao crescer um pouco mais, passou a ser

6. Vivenciei muito o receio de cometer “deslizes”, de acabar mostrando que já sabia o que sabia. O
recurso que encontrei foi lidar com a situação tal qual ela se apresentava, respeitando a facticidade
que se mostrava tal qual podia ser transmitida pela mãe, como a “verdade” possível para aqueles
primeiros atendimentos. Esqueci (sem me esquecer) que a mãe era a avó, e aguardei.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 45

tratado, por motivo de “condições práticas”, como filho dos avós. O


curioso é que muitos avós assumem financeiramente os filhos de seus
filhos adolescentes, sem que isso implique na transferência dos pa-
péis familiares. Assim, isto parece ter respondido claramente à uma
necessidade psicológica dos avós, e, provavelmente (não tive conta-
tos com Eliana) também da mãe, em alguma instância.
A organização familiar e acontecer do tratamento, temas desta
pesquisa, aparecem nesta situação mais do que nunca explicitados
em suas articulações, que são, também, bidirecionais:
E agora como tinha que fazer um negócio aqui no hospital, de registro,
ia aparecer, né, e a gente ficou cansado também de esconder; essa
coisa de mentira é ruim, né, e nós contamos para ele. (D. Vânia)

A situação burocrática da hospitalização, que envolve preen-


chimento de termos e prontuários, assinaturas e identificações preci-
pitou a decisão de se quebrar a manutenção de um segredo antigo.
Desta forma, e aqui está o aspecto bidirecional ressaltado acima, tam-
bém o acontecer do tratamento transforma aquilo que é o existir
familiar, desafiando-o e, muitas vezes, redefinindo-o. À mentira, prá-
tica corrente na família, é atribuído o valor moral de “ruim”, o que
suscita também todo o emaranhado de culpas que atravessa tantos
ocultamentos. Daí o alívio, que é revelado no “cansados de esconder”,
e também na seguinte passagem:
É muito ruim ficar guardando as coisas, muito tempo a gente sofreu,
foi que nem eu te disse, foi levando, levando... Parece, depois que eu
falei com ele, que eu estou até mais leve até, como se eu tivesse tirado
um peso mesmo... (D. Vânia)

São os dois lados da moeda: os ganhos e as necessidades que


foram atendidas com a troca dos papéis; a culpa e o cansaço advindos
de tanto esforço. Neste contexto, ressalta-se toda a expectativa des-
ta mãe em relação à resposta de João quando ciente do segredo:
Eu tinha muito medo, assim, dele ter alguma reação, algum problema,
quando ele ficasse sabendo, mas graças a Deus ele está tranqüilo,
também, nem dá para ser diferente, ele sabe que a gente sempre cuidou
dele, que ele sempre foi nosso filho mesmo. (D. Vânia)
46 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Há o medo da reação de João, e, ao mesmo tempo, uma afirma-


ção tão convicta de que tudo está bem, que me parece a criança não
ter muitas alternativas para colocar seus sentimentos. A fala “nem dá
para ser diferente” fecha, de algum modo, as possibilidades de que
João expresse aquilo que pode não ser tranqüilidade e adaptação.
Isso vai ao encontro de minha percepção, ao longo dos atendimen-
tos, do quanto emoções podem ter sido sufocadas e não expressas
pela criança em nome de um “cuidar” da própria mãe. João, boa par-
te do tempo, é aquela criança que não dá trabalho para a equipe, não
se rebela, aceita sempre os procedimentos, ou seja, de uma certa ma-
neira, é o “paciente ideal”. Contudo, do ponto de vista psicológico,
nem sempre os critérios de uma adaptação saudável correspondem
àqueles pressupostos pela maioria da equipe de saúde. Assim, chorar,
reclamar de vez em quando, atualizar sentimentos de indignação pela
dureza da situação que tem de se enfrentar tão cedo, tudo isso pode
fazer parte de um processo adaptativo integrado. Neste congelar de
afetos, novas revelações vão surgindo, em um tom de voz casual, que
distoa do conteúdo do que é dito, revelando uma “quase-ironia” que
surge, a meu ver, como a resposta da criança ao emaranhado no qual
aparece envolta:
D: E aí João, como foi para você ficar sabendo de todas essas coisas
novas?
Eu já sabia... (João)
Já sabia, filho? Como você sabia, você ouviu alguma coisa?(D. Vânia)
Eu ouvi. Todo mundo falava... (João)
Quem falava, filho? (D. Vânia)
Foi lá em casa mesmo... (João)
Foi a M.? (D. Vânia)
Foi. Um dia a gente estava lá fora, ela falou que a minha mãe era e
Eliana. (João)
Ô filho, você não tinha me contado. Olha Daniel, ela fez isso de
maldade, porque ela estava morando em casa com uma prima nossa,
e aí depois eles iam se juntar lá com os sem-terra, e aí chegou um dia
que eu falei, que era para ela ir embora... E o que você sentiu, filho?
(D.Vânia)
Normal. (João)
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 47

A ironia, que coincide com o sofrimento da situação, é que por


um bom tempo D. Vânia pensou guardar um segredo que já era do
conhecimento de João. Este, por sua vez, não revelou para a mãe que
sabia do segredo, e isto passou a ser o seu segredo. João acabou por
escolher o espaço do atendimento psicológico para fazer essa revela-
ção, e a mãe, de detentora do “indizível”, passa a estar surpresa, pas-
ma. Novas revelações, no nono atendimento, ainda estariam por vir:
(Vou dizendo a João e sua mãe, já no final do atendimento, que
ficaríamos sem um atendimento na semana seguinte, porque eu iria
viajar para fazer um curso. João fica curioso para saber para onde e
como vou. Digo que vou de avião, e ele pergunta se não tenho medo.)
D: Um pouquinho João, depende do tempo...Tem dias que está
chovendo, aí chacoalha um pouquinho mais... (risos). Você já andou
de avião?
Não, só de helicóptero... (João)
É mesmo filho, você nunca tinha me contado! (muito surpresa). Onde
é que foi, foi com a Eliana? (D. Vânia)
Foi. Foi quando nós fomos passear em A., com o namorado dela.
(João)
Olha que danado, não me contou... E você gostou, filho? (D. Vânia)
Gostei... (João)

E como se não bastasse, em um atendimento posterior:


(...) É que eu ando pensando, assim, se por causa do João ter ficado
segurando tudo o que ele segurou, que ele sabia que a Eliana era a
mãe dele, e não falou para ninguém, se por causa disso não pode ter
dado essa doença que ele tem... (D. Vânia, fala já citada no tópico 1)
Mas a E. (apelido pelo qual chama Eliana) sabia... (João)
Sabia, filho?! Disso eu não sabia não... Foi você que contou?.. (D.
Vânia)
Eu contei. (João)

Uma “avalanche” de fatos novos, este é o termo que encontro


para nomear o que foram estes atendimentos, do nono ao décimo
terceiro. Todo um quadro se modifica. A criança, que já sabia meses
antes dos fatos, compartilha-os com sua mãe biológica, e ambos con-
48 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

tinuam a agir com a avó como se nada tivesse acontecido. É difícil


imaginar qual era a qualidade possível da comunicação no sistema
familiar, assim como sua flexibilidade, em um cenário no qual os se-
gredos estão sobrepostos, e quem acha que esconde também de tudo
não sabe. No espaço do atendimento psicológico a criança extravasa
todos estes “contidos”, além dos que eu imaginava existir. Não é a
toa, hoje entendo, que foi tão difícil para a mãe trazer esta questão
para o atendimento. De algum modo, configurava-se este como um
espaço no qual tudo isso viria à tona. Se foi árduo, foi também um
alívio, o que percebi pelo relaxamento no tom de voz e nos olhares
de mãe e filho. A realidade me apontou para além do que aprendi
nos livros como aquilo que deve ser um “atendimento psicoterápico de
apoio”. Apoiar uma família é também, por vezes, adentrar este ema-
ranhado, menos com o foco restrito nos conteúdos específicos que
emerjam, e muito mais para que se trabalhe, a partir destes, padrões
de comunicação que podem estar sendo lesivos ao enfrentamento
positivo da situação por parte da família.
É importante ressaltar que, apesar de todo este contexto de con-
fusão de papéis no sistema familiar, a mãe pôde, em alguns momen-
tos, se colocar no lugar da criança e estimar seu sofrimento:
Porque a gente sabe, né Daniel, que deu todo carinho, que ele foi
tratado como um filho mesmo, mas a gente sabe o que ele pode pensar
também, tem o pai dele que ele não conheceu... Dá dó, porque veio
tudo junto, a doença, ele ficou sabendo disso tudo, não teve tempo,
né, foi tudo junto... (D. Vânia — atendimento em que João não
participou)

Estes são momentos nos quais a criança pode ser vista como
criança, e ter suas dores reconhecidas, entre elas a de não conhecer
o pai biológico. É neste mesmo atendimento que a mãe relata como
ficou, depois de toda a situação explicitada, o modo de referência ao
outro na família:
Eu ele chama de mãe, o pai dele também, ele chama de pai. A Eliana,
lá em casa ela sempre teve o apelido de E., então quando ele fala ele
fala por esse nome, ele fala: “— Mãe, estou com saudades da E...
(D. Vânia)
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 49

E assim permaneceu, pelo menos até o término de nossos aten-


dimentos, o modo pelo qual João se refere aos seus familiares mais
próximos.
Há uma última situação que sintetiza com muita fidelidade o
dilema revelação-ocultação existente no sistema familiar de João.
Esta diz respeito à morte de um amigo muito querido por João, que
fazia o tratamento de câncer no mesmo hospital. Os dois se conhe-
ceram na casa de apoio do GACC, e ainda que se encontrassem
esporadicamente, João se lembrava dele. João internou para
quimioterapia em uma segunda-feira, e seu amigo falecera no do-
mingo, horas antes. O atendimento que se segue ocorreu três dias
após sua internação. João pergunta sobre o estado de saúde do seu
amigo, e D. Vânia, aproximando-se, diz com águas nos olhos:
Eu não sei o que eu faço, Daniel... (D. Vânia)

Percebo que João não foi comunicado acerca da morte de seu


amigo. Acha que ainda está vivo, e até comenta que está preocupado
porque ele não estava conseguindo mexer as pernas. Foi um momento
dos mais difíceis em todos os atendimentos, e propus que buscás-
semos conversar abertamente sobre o que estava acontecendo. Após
o consentimento gesticulado da mãe, que chorava, digo:
D: O que nós temos para te contar, João, é uma coisa muito triste, e
eu estou muito triste de estar te contando isso, mas eu acho que vai
ser melhor nós falarmos aqui juntos, do que você ficar sabendo de um
jeito qualquer, no corredor... O J., João, ele faleceu.

João começa a chorar imediatamente, choro que procuro enco-


rajar e acolher. Depois de algum tempo surgem as perguntas, a crian-
ça quer saber quando foi que o amigo morreu. A mãe diz, também
chorando:
Eu pensei em te contar, filho, mas eu não consegui... (D. Vânia)

A mãe fala, assim, da dor de contar para filho, que tem câncer,
da morte de um amigo, que tinha câncer também. O segredo aqui
não diz respeito somente à indagação da mãe acerca de como João
reagiria a tal notícia, mas abrange ainda, tal qual nas passagens ante-
50 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

riores, sua própria capacidade de lidar com essa realidade. A mãe


não esconde somente porque não “quer contar”, mas porque não “con-
segue contar”. A morte deixa de estar longe, pode acontecer com o
outro que está ao lado. Isso amedronta e paralisa a mãe, uma vez que
remete à possibilidade da morte de João. Não dizer a João parece ser,
nesta situação específica, um não dizer a si-mesma, uma tentativa de
negar o pânico e a dor suscitados pelo contato próximo com o tema
morte. É como se estivéssemos diante de uma regra muito peculiar
desta família: “Aquilo que não é dito não existe, ainda que continue ge-
rando dor e sofrimento”. Considero relevante, ainda, como fator que
potencializa este padrão de ocultamentos no sistema familiar, o modo
de existir da mãe caracterizado pela tendência à assunção de culpa e
responsabilidade pelas mais diversas situações. Entre elas, está tam-
bém a do amigo de João que morreu:
Você sabe, Daniel, que eu tinha ficado de ir fazer uma visita para a
mãe dele, que ele já estava ruinzinho, né, eu tinha prometido ir lá em
S... Porque teve um dia que ele estava no mesmo quarto que a gente,
e ele estava bem ruim, não estava nem falando direito, aí a mãe dele
teve que sair, pediu para eu dar uma olhadinha nele para ela, aí eu
perguntei se podia fazer uma oração, ela disse que podia, aí ela saiu,
eu pus a mão em cima dele, assim, e quando ela voltou ela dissse:
“— Nossa, o que você fez para ele melhorar assim...”, ela ficou
admirada de ver... Aí eu fico pensando, se eu tivesse ido lá, eu sei que
ele estava mal, mas para Deus nada é impossível, né, eu fico pensando
se eu tivesse ido lá, rezado um pouco para ele... (D. Vânia)

Eis a culpa, na extremidade outra da onipotência. Tornar públi-


ca a morte do amigo veio a ser, no atendimento, tornar pública a
culpa por não ter feito algo que pudesse salvar aquela criança. Mora
aqui a dor pelo contato com o fato de que nos escapa, em última
instância, o controle sobre a vida e a morte. Paradoxalmente, D. Vânia
entra em contato com este sofrimento às avessas, reafirmando sua
crença de que poderia ter mudado esta história com suas ações. No
espaço da angústia maior, uma nova tentativa de controle, porque
responsabilizar-se pela vida e a morte, ainda que a faça sofrer, devol-
ve-lhe a ilusão de que possa a morte evitar. Luto comprometido. E
no envoltório da culpa, mais uma vez o impasse na comunicação:
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 51

Agora eu estou até sem graça, eu não sei se ligo para ela (a mãe da
criança que morreu). (D. Vânia)

E João, já tão conhecedor do alto preço da contenção e do silên-


cio em sua história, expressa:
Eu queria falar com ela... (João)

A dinâmica deste atendimento foi, a meu ver, profundamente


reveladora. O excesso e a quantidade de palavras de D. Vânia, relati-
vas às suas responsabilidades e culpas, emergiu no auge da emoção e
choro de João. Se não estivesse profundamente atento à criança, e a
estimulasse a expressar seus sentimentos naquele momento, confir-
mar-se-ia o que começou a acontecer com a criança: endurecimento
da expressão e do choro. O que pude vislumbrar, então, diz respeito ao
quanto o existir familiar culpado, que é sofrido, pode estar a serviço da
proteção de uma dor maior: a da angústia perante a morte. O foco na
culpa vem como recurso de afastamento do reconhecimento de nossa
mais inevitável condição existencial: somos mortais.
Só que a novidade, que creio pôde ser também vivida neste
momento intenso que partilhei com João e sua mãe, é que deste cho-
ro, e deste contato, nascem também nossas mais ricas possibilidades:
Lá na casa (de Apoio do GACC), a gente ouvia música junto... Ele
gostava do Claudinho e Buchecha...(sorrindo) (João)

Após chorar a morte do amigo, João vai relembrando das coisas boas
que viveram juntos. Apenas aponto o que ele já sabe: seu amigo está
guardado dentro dele, com seu sorriso e suas preferências musicais... Dói a
dor da saudade, mas fica o sorriso por aquilo que se partilhou, durante um
tempo comum da existência, juntos. E assim um atendimento que come-
çou com tensão, choro e dor pôde terminar num sincero sorriso.

4.4. O pai da criança e suas relações dentro do


sistema familiar: A fala própria e os olhares do outro
Estarei descrevendo, nesta etapa, aquilo que emergiu nos atendi-
mentos como o modo de inter-relação peculiar de João, seu pai e sua
52 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

mãe. Isto implica no reconhecimento do papel assumido pelo pai na


família, e, mais do que isso, na indagação acerca de como esta organi-
zação da tríade articula-se ao acontecer do tratamento para a criança.
Inicialmente, é interessante destacar o quanto o lugar do pai
parece estar associado ao alimento, ou ainda, ao preparo deste:
O meu marido está aposentado agora, e é ele que cozinha. O João
adora a comida dele. (D. Vânia)

Esta foi uma das primeiras referências feitas pela mãe ao seu
marido nos atendimentos. É curioso notar que, entre tantas possibi-
lidades, este foi o aspecto ressaltado. Tal característica é reiterada
pelo pai no atendimento seguinte, nosso primeiro encontro:
Eu gosto de cozinhar sim, desde solteiro eu tenho muito gosto de ficar
no fogão. (Sr. Jair)

E a partir deste referencial gastronômico, o pai descreve as pre-


ferências do filho:
Ih, ele gosta de tudo, com ele não tem meio termo não. (Sr. Jair)

Será realizada, adiante, uma descrição acerca de como a ali-


mentação, e seus rituais, desempenham um papel fundamental na
organização deste sistema familiar. Por ora, ressalto o quanto uma
“ponte” viável de acesso ao pai pelo filho, e vice-versa, se faz atra-
vés deste “preparar e ingerir” o alimento.
A situação do casal é evidenciada no discurso da mãe como nem
sempre tranqüila. Divergências e movimentos de distanciamento
ocorrem, e são explicitados pela mãe:
O meu marido, eu não sei se você percebeu, ele é meio rígido, assim,
sabe, ele fica meio nervoso às vezes, é diferente de mim; eu é mais
difícil as coisas me afetarem, e com ele é diferente. (D. Vânia)

Neste contraponto de temperamentos, a mãe revela que há uma


diferença no modo de cada um lidar com os afetos e sua exteriorização,
o que gera tensão. D. Vânia continua a discorrer sobre esta diferen-
ça, e apresenta de modo bastante significativo uma “escala de impor-
tância” na qual o marido aparece inserido:
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 53

Então isto está difícil também, tem horas que desanima, e eu sou,
como eu te falei, evangélica, e para mim é Deus em primeiro lugar,
depois meus filhos e ele vem em terceiro... (D. Vânia)

Assim, a relação marido-mulher existe no sistema como secun-


dária à relação mãe-filhos, em uma inversão na hierarquia da família
que aponta para uma exclusão do lugar do pai. Na seqüência de seu
desabafo, D. Vânia ressalta o que para ela justifica a continuidade de
seu casamento:
É, mas está difícil, eu acho que para falar a verdade isso só está assim
ainda por causa dos meus filhos, isso só existe ainda por causa deles.
(D. Vânia)

Papel complicado este, o de carregar a responsabilidade pela


continuidade de uma relação que parece não trazer felicidade ao ca-
sal. Este é mais um dos espaços ocupados por João e seus irmãos na
trama familiar. E falo aqui não somente do “espaço-metáfora”, mas
também do concreto, que corporifica toda uma dinâmica familiar
intuída nos primeiros atendimentos:
Você acredita Daniel, que o João tem dormido só comigo? (D. Vânia)
D: Ah é, João? Como é que é isso?
João sorri, e não diz nada.
Ele dorme na cama comigo, ele diz que a minha cama é melhor... (D.
Vânia)
D: E o seu marido...
Ele dorme na cama do João... Mas ele não está gostando muito não.
(D. Vânia)
A cama da mãe é mais macia... (João)

Descrever o óbvio imediato é o suficiente para que seja apreen-


dido aqui o fenômeno que se desvela: o filho está no lugar do pai,
dormindo próximo à mãe que não dorme com seu marido. O pai está
no lugar do filho, e sente-se incomodado nesta condição. Desta for-
ma, vislumbro uma nova confusão de papéis, que reitera uma ligação
de grande proximidade entre filho e mãe, da qual o pai está cada vez
mais afastado. Isto foi ocorrendo no cotidano após o diagnóstico da
doença, uma vez que o pai veio algumas vezes ao hospital no início
54 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

do tratamento, e deixou de fazê-lo posteriormente. Uma análise sé-


ria, entretanto, não me permite o maniqueísmo ingênuo de afirmar
quem parece estar “certo” ou “errado” nesta história. Parece-me que
há uma complementaridade de papéis, que resulta em um ajusta-
mento do sistema, ainda que pela desordem. No mesmo espaço dos
ganhos secundários à situação do tratamento, está o sofrimento.
Nuanças desta relação, marcada por uma preponderância da fi-
gura da mãe, podem ser identificadas em passagens que poderiam
facilmente passar desapercebidas, tais quais a que se segue:
Tem que ligar para o pai, mãe, porque ele vai vir amanhã... (João)
Não vem não filho. Ele sempre espera a gente ligar. (D. Vânia)

Esta parece ser mais uma norma do sistema familiar: o pai espera
o chamado para tomar a iniciativa. E, assim, certos papéis vão se
cristalizando, o do pai passivo e inapto, o da mãe que assume o con-
trole, e é eficiente neste controle:
Ele está bem, Daniel... Ele até falou de vir no retorno desta vez com
o João, mas o João não quis muito não, eu também achei melhor
não... (D. Vânia)
D: Você não gostaria, João, que o seu pai viesse ficar com você?
É que ele vai deixando fazer o que quiser, não pergunta nada... (João)
Sabe o que é Daniel, é que eu sou bem chata mesmo, eu pergunto, eu
quero saber tudo, assim, dos medicamentos que ele está tomando, do
que estão fazendo com ele, e o Jair é mais tranqüilo, ele vai deixando,
não pergunta muito não...(D. Vânia)

O pai, como relatado, ofereceu-se para vir ao hospital. A nega-


tiva de mãe e criança reforçam e reiteram, no sistema, o padrão cris-
talizado do “pai que não vai dar conta”, o qual, por sua vez, tende a
estar mais longe. Isto não significa, contudo, que a criança seja indi-
ferente à sua presença, pelo contrário, o que é explicitado inclusive
pela mãe:
Ele sente muito a falta do pai. Outro dia ele ouviu a voz de um
homem chegando, já gritou: “Pai, pai...”, e não era, era o pai de outra
criança, que tá internada também. (D. Vânia)
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 55

Agora, o pai está no lugar de pai, e tem sua importância reconhe-


cida, o que harmoniza a ordem do sistema familiar. O pai cuja presença
é capaz de precipitar uma mudança no humor e na disposição:
Agora hoje ele está vindo para cá, já, já, deve estar chegando... Eu
acho que é por isso também que a cara dele melhorou de ontem para
hoje... (risos) (D. Vânia)

A preponderância de certos padrões não apaga, assim, a possibi-


lidade de que a criança experimente a falta do pai, e se alegre quando
ao seu lado. Assim, o que descrevo aqui não deve ser entendido como
uma “camisa-de-força” que aprisiona toda uma dinâmica que tem
seus diversos momentos. Em poucas palavras, esta organização fami-
liar configurada por uma convivência intensa entre mãe e filho, da
qual o pai está geralmente mais distante, ou em alguns momentos
mesmo excluído, articula-se ao acontecer do tratamento de João de
modo recíproco. Por um lado, a situação de tratamento potencializa
e delineia uma tendência de afastamento e conflitos no casamento
que provavelmente preexistia ao adoecimento de João (devido à sua
condição João passa a dormir na cama da mãe, o que incomoda o
pai); por outro, esta resposta ao conflito acentua e define um enca-
minhamento prático na rotina do tratamento, ou seja, é a mãe quem
vai estar quase o tempo todo acompanhando a criança durante a
hospitalização.

4.5. A alimentação como ritual organizador dos


contatos e afetos no sistema familiar
Famílias são seres curiosos, e donos de marcas muito próprias. A de
João demonstrou ao longo de nossos atendimentos uma característica
muito peculiar: tudo, ou quase tudo, orbita em torno da alimentação.
São refeições, e temperos, e preparos... além de muita quantidade! O
mais importante: todos estes rituais foram se mostrando como modos
através dos quais esta família organiza e canaliza seus afetos, presta ho-
menagens e acolhe, deposita suas ansiedades. É, o existir familiar tam-
bém se processa ao redor de uma mesa posta, e neste caso são múltiplas
as articulações deste fenômeno com o acontecer do tratamento de João.
56 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Em primeiro lugar, retomo uma questão já abordada neste traba-


lho, a de que a alimentação parece ser um mediador muito relevante
na relação de João com seu pai. Isto aparece inicialmente no segun-
do atendimento, quando pergunto a João a primeira coisa que ele
fará quando chegar em casa, após a atual internação:
Comer. (João)

D. Vânia conta, então, que é o marido quem cozinha, que João


adora sua comida, e quando indago sua preferência em relação às
comidas preparadas pelo pai, a criança não hesita:
Rabada, buchada... Outro dia eu comi oito pedaços de rabada! (João)

E o próprio pai, quando vem no terceiro atendimento, fala do


interesse de João pela sua comida:
Ih, ele come mesmo. No final de semana, a gente jantando, eu ia
colocando arroz e falava: Tá bom, João? E ele falava: Mais... Eu ia
colocando feijão e ele: Mais... E frango? Mais... Aí ele ficou
empanzinado depois... (Sr. Jair)

Além de apreciar a comida pronta do pai, João adora usufruir de


sua presença durante o preparo. Este parece ser mesmo um momento
de convivência, em que ambos estão juntos, habitando o mesmo espa-
ço, que é percebido por mim como o de cuidado. E João fala, então,
das coisas que mais gosta de fazer quando está em casa. Entre elas:
Eu fico vendo o meu pai cozinhando também... Hoje nós acordamos cedinho,
ele fez uma porção de lanche para trazer, porque a gente ia ficar. (João)

O olhar tem de estar atento ao que é sutil, e escapa às conclu-


sões apressadas. O pai de João, efetivamente, foi deixando de vir ao
hospital com o passar do tempo. Falo de presença física, concreta. E
sem entrar no mérito de qual forma de presença é a mais “válida” ou
“importante”, apenas percebo o quanto o ritual de acordar cedo, pre-
parar em conjunto os lanches que alimentarão mãe e filho na vinda a
Ribeirão é um modo deste pai estar com o João, num “prolongamen-
to” simbolizado e, por que não dizer, internalizado a partir da alimen-
tação, trazida e ingerida pela criança.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 57

Focando agora um outro aspecto, posso ressaltar o quanto a ali-


mentação, na família de João, parece estar habitualmente associada
a excessos. Não é só o comer, é o comer demais. No que diz respeito
ao tratamento de câncer, o aumento indiscriminado de peso pode ser
um complicador, e isso começou a acontecer com João:
Que nem o pãozinho francês, no café da manhã, ele come uns três; a
nutricionista falou para pelo menos reduzir para dois. O certo, está
escrito aqui, é ele comer no máximo 1800 kcal por dia, e pelas contas
que ela fez está passando, ele está comendo mais... (D. Vânia)

Pergunto a João sobre a idéia de fazer o regime necessário, e a


resposta é quase inevitável...
Ruim, né? (sorrindo) (João)

Em alguns momentos, a justificativa da mãe para o comer em


demasia da criança é externa:
O que acontece também, Daniel, é que a gente está ganhando uma
caixa de fruta da prefeitura. Tem laranja, tem banana, nanica e maçã,
tem maçã... (D. Vânia)
D: É uma salada de frutas...
Mas é mesmo. Inclusive ele gosta de salada de fruta, mas a
nutricionista disse que é para tentar tirar o leite condensado, que o
João gosta de salada com leite condensado, que engorda muito... Tem
um homem da padaria que dá, sabe, esses pãezinhos de leite, ele dá
cinqüenta por dia lá para casa; outro dia que ía ter feriado aí ele
deixou cem. Então tem tudo isso que eu estou te falando... (D. Vânia)

Na seqüência, entretanto, a mãe vem de fora para dentro, e explicita


um hábito familiar que contribui para este “comer-sem-fim” de João:
Agora o problema mesmo é de fim-de-semana, que aí junta todo
mundo, e cada um quer fazer uma coisa... Lá em casa tem uma
varanda, que tem uma mesa comprida, e aí um traz uma carne, um
outro faz um frango, Daniel, você não imagina, eles comem o dia
inteiro, e aí o João acaba entrando junto... Vai muita gente lá também,
de fim-de-semana, por causa da igreja... (D. Vânia)
58 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Assim, em uma cidade menor, onde as pessoas se conhecem, e


sabem da situação de João, a ajuda que tem sido dada muitas vezes
está relacionada à alimentação, e vem em forma de dezenas de pães,
quilos de frutas, entre outras... Em casa, são constantes as refeições
coletivas, que nos finais de semana duram até um dia inteiro. Mas há
um dado que acirra ainda mais a compreensão deste fenômeno. Uma
vez que João adoeceu, este ritual passou a ter uma dupla função bas-
tante específica: agradar e receber a criança quando volta do hospi-
tal. Isto pode ser observado nas falas seguintes:
O problema lá em casa também, Daniel, é que ninguém conhece a
palavra cortar, então fica difícil. Chega no Domingo faz sempre
aquele mundo de coisa, vai no açougue, gasta muito, todo Domingo
é assim. Cada um pergunta uma coisa que o João quer comer, e
faz... (D. Vânia)

Não, chega e come (referindo-se ao comportamento de João quando


chega em casa vindo do hospital, onde ocorre de perder o apetite
durante as internações). Vai direto para a mesa, e o pessoal já pergunta
o que ele quer, prepara para ele... (D. Vânia)

A nutrição é algo que está, habitualmente, associada a cuida-


dos básicos. Parece-me que, nesta família, este recurso continua a
ser o mais acessível, viável e concreto para a demonstração de afe-
to, e a manutenção de um sentimento de que a criança está sendo
cuidada. Há, inclusive, a extrapolação de limites, um déficit no
controle econômico relacionado à compra de alimentação (“nin-
guém conhece a palavra cortar”). Todo um modo de configurar e
organizar os afetos se estrutura, e é referido, com relação ao prepa-
ro e ingestão de alimentos:
Eu não sei se eu estou cansada é porque eu tenho dormido pouco,
porque tem o meu filho que sai para trabalhar muito cedo, de
madrugada ainda, e ele chega todo dia do colégio já mais de onze
horas, e ainda vai fazer um lanche, aí eu espero ele. E aí eu acordo lá
pelas três e pouco para preparar a comida para ele levar, então eu
durmo, assim, da meia-noite às três, mais ou menos... (D. Vânia)
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 59

Na seqüência, D. Vânia fala de como os filhos reagem a este


comportamento:
Eles ainda falam lá em casa para eu deixar pronta a comida, que eu
protejo demais, mas sabe o que é, Daniel, ele é um moço tão bom, e
a gente vê hoje em dia como é que está essa mocidade, com tanto
problema, né? Eu só sei que ontem eram oito horas, eu já estava aqui,
ensonada... (D. Vânia)

É curioso notar a percepção dos filhos sobre a mãe trazida por


D. Vânia: protetora demais. Este é um dos sentidos que podem ser
captados do ritual descrito. A mãe espera o filho chegar, tarde, para
acompanhá-lo no lanche, e acorda pouco depois para preparar, na
hora, sua comida. Isso tem um custo, o do pouco sono, mas ao mes-
mo tempo parece ser, para a mãe, uma forma de retribuir o fato de ter
um filho “bom”, livre dos atuais “problemas da mocidade”. Em ter-
mos de dinâmica familiar, é possível que se apreenda o quanto esta
mãe, com seus “cuidados-sacrifícios”, acaba ficando muito próxima
aos filhos, uma distância mínima que, conforme relatado por João, às
vezes incomoda, mas se torna difícil de questionar, já que existe em
nome do cuidar.
Até o início da segunda metade dos atendimentos realizados
com João e D. Vânia, a mãe diz que a criança não manifesta o desejo
de ir morar com Eliana. Para que se tenha uma idéia do papel desem-
penhado pela função “alimentação”, explicito a seguir uma fala na
qual ela aparece como argumento que justifica morar com um e não
com outro:
Ele fala que não quer (morar com Eliana), que quer ficar com a
gente. Ele diz que lá não tem todas as coisas que tem lá em casa, que
o pessoal faz para ele comer... (risos (D. Vânia)

Quando me recordo da convicção com a qual, pouco tempo


depois, João afirmou querer morar próximo à Eliana, questiono se
este é mais um argumento dele ou da própria mãe. Em verdade, creio
que seja de ambos, e aí então mais uma função simbólica da alimen-
tação: segurar a criança, através do substituto concreto — comida-
naquilo que provavelmente foi sentido como falta na relação ambígua
60 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

e interrompida com Eliana: afeto. De fato, a organização e internali-


zação dos papéis familiares parece mesmo ser permeada, nesta família,
pela figura que abarca ou não a função do “alimentar”. Quando não
se alimentou ou se alimenta, não se justifica um vínculo de natureza
mais estreita:
D: Vocês (a criança e o marido de Eliana) não estão se falando,
João? O que aconteceu?
É que eu fui na casa da minha tia, ele disse que não era mais para ir
lá. Quem que é ele (indignado), nunca me deu um prato de arroz
com feijão, ele não é meu pai... (João)

Assim, na família de João, existe toda uma “cultura” em torno


do ritual da alimentação e do preparo do alimento. São muito pe-
culiares os modos de desvelamento dos afetos, de estruturação dos
vínculos contidos neste universo “gastronômico” familiar. No que
diz respeito às articulações com o tratamento, estas extrapolam in-
clusive as funções simbólicas apreendidas do alimento, e passam a
ser concretas, no sentido de que a obesidade causada pelo excesso
alimentar pode comprometer seu caminhar ideal. No “menu” das
possibilidades de intervenção, cabe questionar, junto ao cardápio, a
fonte de tamanho apetite. Sim, porque há alimentos que estufam,
mas não saciam.

4.6. Ressignificando o passado, vislumbrando o


futuro
A experiência de atravessar um tratamento de câncer é marcante
e intensa, repleta de muitas fases e possíveis aprendizados. Tem-se a
dor do presente, os medos, a necessidade da elaboração dos lutos do
passado, daquilo que se deixou de ter a partir do diagnóstico da doença.
Neste momento, desejo ressaltar com algumas poucas falas, situa-
ções que revelaram a capacidade de mãe e criança olharem de um
jeito diferente para o que já foi e vislumbrarem, no horizonte, um
futuro, para onde o ser se estende, se projeta.
No quinto atendimento, em um momento em que estou sozinho
com João, peço a ele que faça um desenho de Natal, para fazer parte
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 61

da exposição que estava sendo organizada no hospital, naquele fim


de ano. A criança me conta que a assistente social já havia lhe feito
este pedido, e o desenho já estava pronto:
D: E o que você fez?
“ Uma árvore de Natal, com enfeite, e uma estrela cadente.” (João)
D: Pôxa, que legal... A estrela cadente, quando a gente vê,
normalmente a gente faz um pedido, você sabia?
Sabia. (João)
D: E o que você pediu para esta estrela que você fez, ou pediria se
você visse uma estrela cadente no céu?
Prá curar. (João)

João apresenta aqui seu desejo íntimo, aquele que fez à estrela,
vendo-se curado no futuro, tendo superado o câncer. O futuro, além
de espaço no tempo onde se almeja a cura, é lugar também de preo-
cupações concretas. Depende de agora a condição da criança neste
amanhã, o que é explicitado quando ela completa uma fala do tópico
anterior, na qual cogita que a professora lhe mande em casa o cader-
no com as lições escolares:
... porque depois eu vou estar na quarta-série, e eu vou ter perdido
matéria. (João)

Dois temas relevantes no conjunto dos atendimentos foram a im-


plantação do catéter e o retorno de João à escola, que foi muito adiado por
conta de receios e fantasias da mãe. Ambos os temores puderam ser
ressignificados, e experienciados no tempo de agora como desprovidos de
boa parte dos medos de que vinham revestidos no início do tratamento:
D: Como está sendo para você agora, João, colocar o catéter?
(vésperas da cirurgia definitiva de implantação, meses após a primeira
tentativa)
Ah, eu fico um pouco nervoso, mas não é que nem antes. (João)
Agora está bom, não tem que ficar levando picada, (João — primeiro
atendimento após a cirurgia do catéter)

E quando a criança retorna à escola, a mãe se emociona, e


descobre que está surpresa consigo mesma, acerca de como as
62 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

coisas podem acontecer de um jeito menos complicado do que


estava previsto em suas fantasias:
Ah, está ótimo (João estar de volta à escola), melhor do que eu
imaginava... A professora dele é ótima, ela é muito boa, eu conversei
com ela, ela faz parte do conselho, sabe, ela foi muito legal... Quando
o João chegou na classe, ela falou que era um dia muito especial, que
eles estavam recebendo uma pessoa muito especial. Ela disse que vai
ajudar a tomar conta dele, não deixar correr, essas coisas... Os próprios
coleguinhas dele estão ajudando, eles falaram que vão levar uns
brinquedinhos, que eles vão poder brincar sentados, sem ter que
correr... (D. Vânia)

João, com seu bom humor, não perde a chance de brincar com a
situação:
Eu fui fazer um teste, Daniel, eu corri na frente de uma menina, só
para ver se ela falava alguma coisa, e ela falou: “— Não corre, João!
(risos). (João)

É muito prazeroso acompanhar a despotencialização do trágico


para a família. Óbvio, persistem as angústias, o medo primeiro da
morte, as dificuldades. Ainda assim, o tempo e a ambientação neste
novo universo permitem com que o assustador começo ganhe novos
contornos, possa ser visto, enfrentado. De fato, muitos desafios fo-
ram sendo superados aos poucos.
Apresento agora a transcrição de uma fala de João de nosso últi-
mo atendimento. Estávamos neste momento a sós, e íamos realizar
todo um ritual de despedida, no qual fizemos juntos uma dobradura
de papel, que foi pintada, e na qual foi escrita uma mensagem, de um
para o outro. João me fala, ainda no elevador, rumo ao sétimo andar:
Você conheceu o L., Daniel, lá de M.? (João)
D: Eu já ouvi falar dele, João, mas não me lembro exatamente quem
é... Por quê?
Ele curou, já faz uns quatro anos... Que bom, né?...(sorrindo) (João)

João chorou a morte de seu colega de quarto, o J., e sorriu


com a cura de seu conterrâneo. Chorar a morte, mas não deixar
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 63

de sorrir para a vida, este talvez seja um dos tantos recursos de


João, mostrado a mim no último atendimento. Penso que entendi
a mensagem...

5. Reflexões sobre a organização


familiar e o acontecer do tratamento
da criança com câncer

Procurei apresentar, de modo pormenorizado, algumas das pro-


posições que pude vislumbrar a partir da análise dos discursos de
João e sua família. A ilustração com diversas falas, a retomada cir-
cular de alguns temas, foram opções adotadas no intuito de que eu
pudesse estar sempre preservando “um elo de ligação com a vivência”
(FORGHIERI, 1993; p. 60-61), neste meu processo de compreender
e significar a vivência da família de João — incluindo a própria
criança — em algumas de suas múltiplas articulações com o aconte-
cer do tratamento de câncer. Acima de tudo, esta etapa da análise
caracterizou-se como uma busca, exigente dada sua complexidade,
da enunciação de possíveis sentidos desta vivência.
Neste momento, o exercício que se apresenta é o da reflexão.
Assim, explicitarei aspectos que, dentre tantos, saltaram-me aos olhos
como marcantes e essenciais, naquilo que se referem à interrogação
inicial deste trabalho, ao fenômeno que me propus investigar.
Inicialmente, ressalto a temática da Atribuição de Significados
à Doença pela mãe. Ainda que as falas referentes a esta proposi-
ção tenham sido presentes em muitos momentos, emergem com
maior freqüência no início dos atendimentos. Estes correspon-
dem, ao retomarmos os aspectos teóricos deste trabalho, à fase
temporal de crise, que se segue ao diagnóstico do câncer infantil.
ROLLAND (1995) ressalta como esta fase implica na necessida-
de de atribuição de sentidos à enfermidade, além de envolver
64 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

um profundo e desgastante impacto emocional, que deve ser ela-


borado pela família. Isto foi algo essencial ao longo do processo:
D. Vânia buscou formas de elaborar e significar, também intelectual-
mente, a facticidade da doença de seu filho. Como visto, os significa-
dos atribuídos foram diversos. É interessante, entretanto, a
percepção de que à medida em que as questões familiares foram se
desvelando, perderam espaço as interpretações acerca da etiologia do
câncer associadas à religião. Na mesma proporção, estes sentidos se
deslocaram para a família, para toda uma dinâmica que, no entendi-
mento de D. Vânia, poderia ter causado a doença, ou agravar seu
desenvolvimento.
Do ponto de vista fenomenológico, algumas considerações po-
dem ser feitas a respeito do que foi dito até aqui. FORGHIERI (1993)
ressalta que duas modalidades básicas de existir se alternam conti-
nuamente em nossa existência: preocupação e sintonia. A maneira
preocupada de existir consiste em um “sentimento global de preocupa-
ção, que varia desde uma vaga sensação de intranqüilidade, por termos
que cuidar de algo, até uma profunda sensação de angústia, que chega a
nos dominar por completo” (FORGHIERI, 1993; p. 36). A autora es-
clarece que na maior parte do tempo, em nossa vida cotidiana, tal
modo se faz presente de forma “branda e imprecisa” (idem), intensifi-
cando-se em situações específicas, que envolvem riscos, perigos ou
grandes adversidades. O diagnóstico de um câncer infantil consti-
tui-se em um destes momentos. O existir preocupado se caracteriza
de modo mais original e profundo pela angústia, que, por sua vez,
não possui um objeto definido que possa ser superado: “ A angústia é
a negação de todo objeto, ou, em outras palavras, seu único objeto é a
própria ameaça cuja fonte é o “nada” (FORGHIERI, 1993; p. 37). Ins-
pirada em Heidegger, a autora afirma, então, que a angústia reside na
própria condição humana, que revela a certeza de nossa morte. Em
conexão com esta análise, o câncer infantil é algo que potencializa
este contato, que se dá intuitiva e gradativamente ao longo da vida,
com a questão da finitude humana. Este caminho é abreviado, e a
angústia emerge com intensidade, uma vez que no tratamento se
luta contra algo que efetivamente pode conduzir à morte. Uma das
possibilidades de se lidar com a angústia consiste em objetivá-la, trans-
formando-a em medos. Os objetos do medo podem ser identificados,
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 65

e vencidos. Isto não anula a angústia, que sempre reaparece, uma


vez que a finitude é uma condição inalienável do ser humano, mas a
ameniza, proporciona momentos de tranqüilidade. Neste sentido, ao
objetivar os significados da doença a família tenta minimizar esta an-
gústia. A culpa, tão presente no discurso de D. Vânia, talvez acarrete
um custo psíquico ainda menor do que estar imersa no “não-saber”.
Do mesmo modo, conhecer os procedimentos, a doença, e mesmo os
efeitos colaterais possíveis de ocorrerem, tudo isto dá contorno à
angústia. Esta passa a ser o “medo do catéter”, o “medo da quimiote-
rapia”, entre outros. Com estes temores, criança e família vão apren-
dendo a lidar, porque há uma lógica que pode ser apreendida pela
maneira racional de existir e pela própria concretude da situação.
FORGHIERI (1993) situa este modo pela necessidade do ser huma-
no de refletir e analisar sua vivência cotidiana. São as nossas próprias
teorias sobre o nosso existir no mundo, aquelas que fornecem segu-
rança, referência. Creio que esta reflexão favorece a compreensão da
relevância e intensidade com que a questão das informações e signi-
ficados emergiu nos discursos analisados.
Além do modo preocupado, o estar envolvido de modo agradável
com algo, ou alguém , naquele espaço vivencial onde se experimenta
harmonia e comunhão, sintetiza a essência da maneira sintonizada
de existir. Pudemos experimentá-la em alguns momentos do atendi-
mento, dentre os quais ressalto o último encontro com João, quando
nos presenteamos com uma dobradura de papel feita por nós mes-
mos, na qual estava impressa uma mensagem de gratidão e carinho.
São momentos por vezes mais, por vezes menos intensos, mas que
trazem “ar”, renovam a disposição para a luta, como uma trégua, na
qual são reabastecidas as energias. São momentos de profunda quali-
dade de contato.
Sobre a dinâmica familiar, dentre tantas questões que se mostra-
ram, algumas foram muito marcantes. É curioso notar como o pai de
João, mesmo estando ausente em quase todos os atendimentos, fez-
se presente através das falas da criança e D. Vânia, na proposição:
“O Pai da Criança e suas Relações dentro do Sistema Familiar: A Fala
Própria e os Olhares do Outro”. Foi uma “ausência presente”. Apreen-
do, através deste conjunto de falas, uma vivência paradoxal: por um
lado, o pai no lugar de referência do alimento, sendo aquele que
66 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

cozinha em casa, prepara de madrugada os lanches que João traz ao


hospital, mas também passivo, tido como incapaz de acompanhar a
criança de modo eficaz nos retornos e internações; por outro, como
figura de apoio, sustentação, sempre aguardada e citada por João.
Enfim, o que se mostrou como essencial: a situação do tratamento
potencializou uma tendência de inversão na hierarquia do sistema familiar,
ocupando muitas vezes a criança o lugar que caberia ao pai, numa confu-
são no delineamento de papéis, também relacionada aos problemas de
ordem conjugal entre D. Vânia e o Sr. Jair. Em outras palavras, João
aparece interposto entre o pai e a mãe, como “pára-raios” de um conflito
conjugal onde a mãe, freqüentemente, desqualifica a autoridade do pai,
que por sua vez se afasta, reiterando sua condição de “ausente”. Bert
Hellinger, um dos criadores da psicoterapia sistêmica, cuja formação
foi profundamente marcada pela fenomenologia de Heidegger, abor-
da com muita sensibilidade esta questão. Segundo o autor, quando
os pais recorrem aos filhos no intuito de obter conforto e apoio emo-
cional, ocorre um processo denominado parentificação, no qual os
filhos assumem a posição de pais de seus próprios pais (HELLINGER
et al., 1998). Nas palavras do autor (idem, p. 110):
“Todos sofrem se a família adota um esquema em que os filhos se
sentem responsáveis pelos pais e os pais esperam dos filhos um
comportamento de parceiros adultos. Os filhos passam a gozar de
uma importância exagerada e inadequada na família e estão destinados
a fracassar porque nenhum filho é capaz de preencher o vazio e a
necessidade emocional do pai ou da mãe”

Nisto consiste, em meu entendimento, o drama maior de João.


Ficou muito evidente o quanto também para D. Vânia é importante
manter uma distância muito estreita com a criança, inclusive na hora
de dormir. O pai absteve-se da intervenção de marcar seu lugar no
sistema familiar, uma vez que com João fora deste espaço substituto
ele teria de olhar para sua relação com a esposa. E João, muito sinto-
nizado nesta dinâmica, passa a proteger realmente os pais. Pouco
chora, pouco expressa sua indignação. Tolhe a expressão de seu sen-
timento, como começou a fazê-lo ao perceber o desconforto de sua
mãe na situação em que ficou sabendo do falecimento de seu amigo
(de João), que morreu de câncer.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 67

Mas ao drama de João se acrescenta o drama dos pais: a perda de


um filho, que morreu pouco antes de João nascer. E é disto que aos pais
João protege: a realização de um luto, profundamente dolorido, que pa-
rece nunca ter sido realmente elaborado pela família. A criança nasce
com a missão, anunciada pela cartomante, de ocupar o lugar do filho
que morreu, abrandar esta dor. E o mais incrível é que parece ter
consciência disto: mesmo já sabendo do segredo, de sua real filiação
biológica, a criança permanece agindo como se de nada soubesse; poupa a
mãe da quebra desta ilusão. Assim, o segredo protege. Esta é uma das
finalidades do segredo abordada por CERVENY (1994). A manu-
tenção de um segredo, dentro de uma perspectiva sistêmica, pode
estar a serviço, de acordo com a autora, da coesão e da proteção de
um subsistema específico na família. Basta recuperar o relato de
D. Vânia sobre sua prolongada internação após a morte do filho para
que possa ser dimensionada quão disruptiva foi essa perda. Reativá-la,
pela quebra do segredo, poderia ser muito perigoso, e creio que por
isso João preservou tão bem seu papel.
No meu entendimento, a temática da ruptura de um segredo
familiar associada com o advento do tratamento de câncer de João
representa o ponto auge desta investigação, já que disto derivam as
reflexões acerca dos desdobramentos apontados pela maioria das pro-
posições. Assim, seguindo a sugestão de CERVENY (idem, p. 58),
passo a “observar processualmente o segredo familiar”, perguntando o
que se guarda, a serviço de que, e como. As duas respostas iniciais
estão no parágrafo anterior. A terceira guarda todo um simbolismo: a
falência das possibilidades na família, sintetizada pelo adoecimento de João,
de se manter esta situação de ocultamento e confusão de papéis. Assim, o
“como” guardar este segredo passou a ser, na situação de tratamento,
algo cômico senão trágico. Este passou a ser o segredo mais conheci-
do pela equipe, propagado pela mãe nos corredores para outras mães,
de um modo muito pouco precavido. De um modo geral, as pessoas
que a mãe supunha não saberem do segredo éramos eu e João.
D. Vânia sabia que o espaço do atendimento seria também o de
contato com esta dor, se o tema ali se anunciasse. Por isso esperei,
respeitei seu tempo interno até o momento da revelação do segredo.
Não era pouco o sofrimento que se ocultava nesta contenção.
68 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

O câncer acaba por, sistemicamente, atuar como a possibilida-


de de João reivindicar um espaço de cuidado próprio. É a partir do
tratamento, e seus desencadeamentos, que o passado de lutos e
tristezas da família é revirado. É também a partir do tratamento
que João ensaia afirmar sua existência própria, tão vinculada neste
anos à figura do “irmão” morto. O “basta” a esta situação, a urgên-
cia de existir como ser singular e único, João pôde comunicar a
partir de seu adoecimento. O que desejo, em alusão à obra de
LeSHAN (1992), é que já que foi e tem sido tão sofrido, para João
o câncer possa ser também um “ponto de mutação”. Isto implica,
na visão deste autor, naquela possibilidade de, a partir da situação
da doença, a pessoa poder crescer e redimensionar uma série de
coisas e prioridades em sua vida.
Um tema que se mostrou importante aparece na proposição: “A
Alimentação como Ritual Organizador dos Contatos e Afetos no Sistema
Familiar”. Considero-o de grande relevância por ilustrar um padrão
básico de expressão da afetividade na família. Curiosamente, nesta
análise que aponta para quantos “vazios” são vivenciados pela família,
no sentido da elaboração de perdas e ausências, observa-se que uma
regra familiar é a de não deixar o outro nunca com fome. CERVENY
(1994; p. 55) define as regras familiares como “um conjunto de acor-
dos explícitos e implícitos que é compartilhado e conhecido por um grupo
familiar, que faz parte da história da família e se mantém pelo uso”. Na
família de João, como ressaltei, não se trata somente da presença de
muito alimento; trata-se de todo o ritual de preparo, que por vezes
envolve sacrifícios financeiros e físicos, como no caso de D. Vânia,
que dorme depois da meia-noite para preparar o lanche do filho que
chega tarde, e acorda às três para preparar o almoço do que vai tra-
balhar logo cedo no dia seguinte. Na impossibilidade de um cuidar
que se expresse de outras e variadas formas, a alimentação aparece
como mecanismo de compensação, a comunhão possível da família,
sempre na cozinha ou em volta da mesa. Isto repercute no tratamento,
à medida em que o aumento de peso de João acarreta conseqüências
não desejadas. Ao mesmo tempo, a criança, que come excessiva-
mente, sofre demais com a idéia de restringir sua dieta.
É o cuidar, ora se expressando de modo autêntico, ora não. O
relacionar-se com o outro de modo envolvente e significativo foi deno-
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 69

minado por HEIDEGGER (1967, apud VALLE, 1988) de “solici-tude”.


Considerando-se duas possibilidades extremas de solicitude, temos
aquela do cuidar que se processa por um “saltar sobre o outro e dominá-
lo, fazer tudo por ele, manipulá-lo, e saltar diante do outro, possibilitando ao
outro assumir seus próprios caminhos, crescer, amadurecer, encontrar-se
consigo mesmo” (idem, p. 30-31). Retomando a fenome-nologia de
Heidegger, a autora explicita que este último modo de solicitude cor-
responde ao autêntico “cuidar”, para com a existência do outro. O
início do tratamento de João foi marcado por um “cuidar” de controle,
manipulação e restrições. Há exemplos, no trabalho, de falas da crian-
ça que revelam seu “sufoco”. Por conta da angústia e do temor, este
cuidar do começo foi também restritivo. A criança teve de interrom-
per seus estudos, sentiu-se muitas vezes invadida, desprovida da opor-
tunidade de tomar decisões. Neste sentido, ressalto a tendência à ocor-
rência de uma ação centrípeta sobre o sistema familiar na etapa de
crise (ROLLAND, 1995). A família tende a estar mais coesa, apare-
cem diluídas as questões pessoais. Da mesma forma, a transição para a
fase crônica apresenta como tarefa a autonomia, uma “re-apropria-
ção” dos objetivos de cada um e das individualidades, adequada às
demandas do tratamento do familiar enfermo.
Ressalto, enfim, os atos de João de afirmação de um desejo no
futuro. É o “curar” que ele pede como desejo à estrela, é o sorriso que
se estampa em seu rosto ao contar-me da cura de seu conterrâneo
que tinha câncer:
“Existir implica, para o ser humano, em prosseguir em direção ao
futuro, cuja abertura de possibilidades não se limita a uma projeção
do passado; tal prosseguimento requer, também, correr o risco de se
soltar na fluidez e imprevisibilidade do futuro; e este soltar-se só pode
ser encontrado na vivência imediata, pré-reflexiva”
(FORGHIERI, 1993; p. 44)

Que neste projetar-se ao futuro, com todas as suas possibilidades,


João possa manter a mesma coragem que apreendi, essencialmente,
em nosso contato. Por ser imprevisível, este tempo do futuro tam-
bém é risco. É um soltar-se incerto, oceano profundo e vasto, que
tem como bússola maior o desejo. E que a estrela possa escutá-lo, e
70 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

lhe dar o almejado presente. Um presente do qual ele participa, em


seu dia-a-dia, em sua batalha contra o câncer.

6. Palavras finais

Creio que não seja mais possível, quando pensamos em uma as-
sistência íntegra e efetiva à família de crianças com câncer, dis-
sociarmos os diferentes contextos que a família habita, espacial e
internamente. Na dimensão espacial, refiro-me à sua cidade de ori-
gem, sua casa, escola (da criança), os lugares que freqüenta, o transporte
que a traz ao hospital, e a leva de volta. Há também o hospital: seus
corredores, enfermarias e leitos; seus cheiros, suas imagens de tanta
gente junta, cada um com um sofrimento que muitas vezes quem vê
não sabe qual é; seus profissionais da saúde do corpo e da mente, de
tantos procedimentos e afetos, da burocracia dos papéis, da limpeza
e das refeições, entre tantos. E há o espaço interno, das relações,
daqueles modos de ser da família que já pré-existiam ao adoecimento,
que em parte se transformam, em parte permanecem, com a expe-
riência da hospitalização. E o olhar, que vai do susto, do medo, à
esperança; que busca entender, que consola e chora.
Quando reflito acerca de como esta investigação poderá contri-
buir para o incremento da qualidade de atendimentos a crianças com
câncer e seus familiares, recordo-me daquele primeiro livro que li
nesta área, há alguns anos atrás, chamado “Introdução à Psiconcologia”
(CARVALHO, 1994). Ali, comecei a aprender que...
“A Psiconcologia começa a surgir como área sistematizada de
conhecimento a partir do momento em que a comunidade científica
passa a reconhecer que tanto o aparecimento quanto a manutenção e
a remissão da câncer são intermediados por uma série de fatores cuja
natureza extrapola condições apenas de natureza biomédica.”
(GIMENES, 1994; p. 42)
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 71

Isto sintetizava a noção de que o surgimento da Psiconcologia este-


ve associado a uma transição de modelos na conceituação de saúde e
doença, do biomédico para o chamado biopsicossocial. Assim, a doença
deixa de ser um “mal do corpo” tão-somente, e tanto ela como a saúde
passam a ser consideradas como resultantes da “inter-relação entre fatores
biológicos, psicológicos e sociais presentes na vida das pessoas (GIMENEZ,
1994; p. 41). Olhar para a família como um sistema mais amplo, que
interage e participa deste acontecer do tratamento da criança com cân-
cer, reitera, a meu ver, esta necessidade de situarmos, em um contexto
maior, a compreensão dos fenômenos que abrangem a questão saúde/
doença. É somente a partir da internalização desta compreensão que a
assistência poderá ser íntegra, uma vez que não basta a presença física de
familiares como acompanhantes para se dizer que estes estão sendo real-
mente considerados no processo. Pode-se passar muitas vezes diante de
uma mãe ou de um pai que está na enfermaria com seus filhos durante
um mesmo dia, e aquela sua angústia, ou aquelas suas “reclamações”,
permanecerem fundidas no “pano-de-fundo” óbvio da rotina do hospi-
tal. Talvez o que alguns de meus achados me mostrem agora é que a
retirada da família desta condição de “pano-de-fundo” pode contribuir
muito para a qualidade deste acontecer do tratamento para a criança.
Ajudar a família é também ajudar a criança, e este processo é recíproco.
Espero que este trabalho contribua também para orientar a reflexão para
a instrumentalização desta assistência, muito menos como um modelo,
e mais como um convite a que se experiencie, na prática, a aventura de
se propor o estar com uma família nestas condições, ajudando, muitas
vezes sofrendo e, fundamentalmente, crescendo juntos.

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CAPÍTULO II
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS
COM CÂNCER — OS GRUPOS DE APOIO
Luciana Pagano Castilho Françoso
Elizabeth Ranier Martins do Valle
1.Possibilidades de atuação em
Psico-oncologia Pediátrica

A Psico-oncologia Pediátrica tem tido grande desenvolvimento


enquanto área de saber e de atuação tanto no Brasil como no exterior.
Atualmente, é preconizado pela SIOP(Sociedade Internacional de
Oncologia Pediátrica) que os serviços de Oncologia Pediátrica
devam incluir um atendimento psicológico especializado aos seus pa-
cientes, e o profissional da área da Saúde Mental tem sido aceito
como parte integrante das equipes multiprofissionais responsáveis
pelo atendimento global da criança com câncer. São diversas as pos-
sibilidades de intervenção psicológica na área do câncer infantil, e
estas estruturam-se de acordo com as especificidades de cada serviço
de Oncologia Pediátrica em questão.
Descreverei algumas delas, baseada em minha experiência enquan-
to psicóloga do GACC — Grupo de Apoio à Criança com Câncer,
junto às crianças com câncer atendidas no Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Realizando pesquisas, assistindo pacientes, familiares e profissionais,
acompanhando a evolução do serviço, foi possível organizar algumas
idéias, definir alguns objetivos e delinear uma possibilidade de atuação
psicológica que tem se mostrado capaz de atender as demandas de uma
realidade específica. Assim, a descrição que se segue, tem como objetivo
situar os grupos de apoio psicológico, foco de atenção deste capítulo.
A fundamentação teórica-metodológica que orienta e na qual
assenta-se esta proposta de atuação em Psico-Oncologia, a Psicolo-
78 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

gia Fenomenológica, caracteriza-se por uma atitude básica: para in-


tervir é preciso conhecer; para atuar é preciso compreender. Assim,
toda intervenção psicológica deve partir de uma caracterização da
situação na qual pretende se desenvolver (VALLE, 1997).
Na prática, isto significa que diante da criança a ser atendida e
acompanhada neste momento particular de sua vida, algumas ques-
tões devem se fazer presentes e permear a atuação como um todo:
• Quem é a criança?
Nesta questão estão incluidas tanto as informações a respeito
da sua idade, do seu nível de desenvolvimento cognitivo-emocional
e de sua história de vida, como as características de seu núcleo fami-
liar e do contexto sócio-cultural mais amplo no qual se insere. É
necessário conhecer a criança que adoeceu, não perdendo de vista
que trata-se de uma vida que, antes do adoecimento, estava estru-
turada e desenvolvendo-se de uma maneira única e peculiar. Conhecer
aspectos desta vida é de fundamental importância para a compreensão
das formas da criança e de sua família lidarem com as questões da
doença e do tratamento.
• Quais as características de sua doença e de seu tratamento?
Câncer infantil é um termo que designa vários tipos de doenças
que apresentam suas especificidades. É importante conhecer as
características do câncer que foi diagnosticado, além de conhecer
seu estágio de evolução e as caracteristicas do tratamento ao qual a
criança será, está sendo ou foi submetida. Informações sobre o esta-
do clínico da criança e sobre as perspectivas da equipe médica res-
ponsável podem complementar as informações gerais sobre a doença
e o tratamento, e uma visão particular da situação da criança em
questão auxiliará no desenvolvimento de uma atuação que contem-
ple suas necessidades específicas.
• Quais as características de seu processo de adoecimento?
É importante conhecer também a história do adoecimento da
criança. Como surgiu a doença? Quais foram os sinais? Quais atitu-
des dos familiares? Qual o caminho percorrido até a definição do
diagnóstico? Como a criança viveu este processo? Estas e outras ques-
tões tem a finalidade de possibilitar o conhecimento do processo de
adoecimento particular da criança, buscando delinear o sentido que
a mesma está atribuindo às experiências que vive.
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 79

• Quais os significados atribuidos por ela às experiências vividas


em decorrência de sua doença e de seu tratamento?
Esta questão envolve o conhecimento das experiências prévias
da criança com situações de doença e especificamente com situações
de pessoas, próximas ou não, acometidas de algum tipo de câncer. A
criança, quando adoece, certamente é remetida à estas experiências
prévias, e tenderá a associá-las de alguma forma com seu momento
de vida atual. As experiências vividas no presente, por sua vez, en-
gendram novos significados que podem apontar para novos sentidos
ou apenas confirmar os anteriores. As maneiras pelas quais a família
e as pessoas com quem a criança convive em seu cotidiano enfren-
tam a doença e o tratamento também precisa ser levada em conta, já
que influenciam suas idéias e seus sentimentos.
• Quais suas necessidades?
Conhecendo a realidade particular da criança, é preciso atentar
para as necessidades específicas que apresenta em cada momento
que vive. Mesmo conhecendo aspectos importantes do universo do
câncer infantil, conhecimento construido através de estudos na área,
é preciso considerar os caminhos que a própria criança aponta no
que se refere às suas necessidades. Portanto, é fundamentalmente
através da relação terapêutica estabelecida e do contato estreito com
a criança que o profissional pode conhecer suas necessidades.
• Como atender suas necessidades?
A possibilidade de atendimento das necessidades da criança
encontra-se nas várias modalidades de intervenção psicológica que
descreverei a seguir. É importante esclarecer que nem sempre tais
necessidade podem ser atendidas integralmente, e que nem sempre a
possibilidade de atendimento destas está inserida no campo de atua-
ção da Psico-Oncologia. Porém, mesmo dadas estas limitações, é pa-
pel do profissional detectar, localizar e manejar adequadamente as
necessidades da criança em questão através de sua visão compreen-
siva e difundir tal visão de forma apropriada para que os adultos que
cercam a criança possam dela compartilhar.
Assim, é possível afirmar que a atitude básica da proposta de
atuação em questão — conhecer compreensivamente para poder in-
tervir, traz consigo a valorização das particularidades das situações
nas quais desenvolve-se a atuação do profissional. Cada criança vive
80 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

as situações relacionadas à sua doença e ao seu tratamento de modo


único e peculiar, e as questões acima mencionadas tem a finalidade
de adentrar esta vivência no sentido de conhecê-la, compreendê-la
e nela atuar terapeuticamente.
No entanto, é preciso considerar que há aspectos comuns nas
experiências das crianças em situações de adoecimento. As mudan-
ças no funcionamento do próprio corpo, o contato com os procedi-
mentos médicos tais como consultas, exames e medidas terapêuticas
diversas, que podem culminar com a internação hospitalar, enfim,
ocorrem mudanças em sua rotina, mudanças na situação vital como
um todo. Estas, por sua vez, causam desorganização e angústia diante
de um universo que é desconhecido, e a criança mescla as infor-
mações recebidas com as fantasias criadas para dar-lhes um sentido
que possibilite alguma forma de enfrentamento.
De qualquer maneira, a doença deflagra uma situação de crise.
Crise é entendida aqui conforme conceituação elaborada por SIMON
(1989): é gerada quando a pessoa se vê frente a uma situação nova e
vitalmente transformadora, seja por perda (ou expectativa de) ou
por aquisição (ou expectativa de) — pela redução ou aumento signi-
ficativo do espaço no seu universo pessoal. Este é o conjunto formado
pela pessoa (psicossomático), mais a totalidade de objetos externos —
outras pessoas, bens materiais ou espirituais e situações sócio-culturais.
Em ambos os casos há angústia diante do novo e do desconhecido. Os
sentimentos recorrentes nos casos das crises por perda são a depres-
são e a culpa; nos casos das crises por aquisição são a insegurança, a
inferioridade e a inadequação (SIMON, 1989).
A criança se vê frente à necessidade de adaptar-se à sua nova
realidade, e seus mecanismos defensivos são mobilizados neste
sentido. Regressões, intensificação das necessidades afetivas, ma-
nifestações como medos, raivas, culpas, agressividade e outras são
fenômenos que neste processo podem aparecer e representam não
só reações à situação de crise como também uma tentativa de
adaptação à nova situação vital engendrada pelo adoecimento e
suas consequências.
Portanto, diante da situação de crise, faz-se presente a neces-
sidade da criança reorganizar-se a nível psicológico para enfrentar a
realidade que a ela se impõe. Este processo de reorganização que
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 81

possibilita o enfrentamento é na realidade seu processo de adaptação


às condições de vida ocasionadas pela doença e pelo tratamento.
As intervenções psicológicas visam favorecer à criança nesta
situação de adoecimento condições de elaboração da compreensão
de suas experiências, facilitando seu processo de adaptação. Há diver-
sos tipos de intervenção psicológica possíveis, as indiretas, desenvol-
vidas junto às pessoas que cercam a criança doente, e as diretas,
desenvolvidas junto à própria criança.

Intervenções psicológicas indiretas


O objetivo geral deste tipo de intervenção é possibilitar a ampliação
da compreensão das vivências da criança por parte dos adultos que com
ela convivem, auxiliando o desenvolvimento de atitudes terapêuticas
que facilitem seu processo de adaptação. Os adultos são os familiares da
criança e os profissionais de saúde responsáveis pela sua assistência.

• A família
1- Acompanhamento psicológico de apoio
Os objetivos específicos deste tipo de intervenção são: a promo-
ção de alívio de ansiedade e de outros sintomas clínicos que podem
emergir relacionados às situações da doença e do tratamento da
criança e a promoção de um espaço terapêutico no qual a família
possa ser auxiliada a compreender suas próprias vivências e reorga-
nizar-se adequadamente para enfrentar as demandas de nova reali-
dade. As técnicas descritas por FIORINI (1991) como Psicoterapia
de Apoio e Psicoterapia de Esclarecimento são de grande utilidade
para o delineamento do acompanhamento psicológico de apoio.

2- Orientação
Os objetivos específicos deste tipo de intervenção são: promo-
ver uma comunicação aberta entre os familiares e a criança, assim
como entre os familiares e os profissionais da equipe; favorecer o
desenvolvimento de uma visão compreensiva a respeito das situa-
ções vividas no cotidiano da assistência e conseqüentemente pro-
mover o desenvolvimento de atitudes terapêuticas em relação às
necessidades da criança doente.
82 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

3- Grupo de apoio aos pais


Os objetivos específicos deste tipo de intervenção são: facilitar a
livre expressão e o compartilhamento de preocupações, dúvidas e
sentimentos possibilitando à família a elaboração das experiências
por ela vivida e proporcionar um espaço de troca e esclarecimento
de informações junto à equipe de saúde.

• A equipe de saúde
1- Orientação
Os objetivos específicos deste tipo de intervenção são: promo-
ver uma comunicação aberta entre o profissional e o paciente e seus
familiares; favorecer o desenvolvimento de uma visão compreensiva
a respeito das situações vividas no cotidiano da assistência e conse-
qüentemente promover o desenvolvimento de atitudes terapêuticas
em relação às necessidades da criança doente e auxiliar na constru-
ção de uma assistência humanizada.

2- Discussão de casos clínicos


Os objetivos específicos deste tipo de intervenção são: compartilhar
uma visão compreensiva das problemáticas emergentes nos contextos
assistenciais e esclarecer e desmistificar o papel do psicólogo.

Intervenções psicológicas diretas


• A criança
O objetivo geral é favorecer condições necessárias para que a
criança possa desenvolver seu processo de adaptação à nova situa-
ção vital ligada à sua doença e ao seu tratamento. Tal processo de
adaptação relaciona-se intimamente com a compreensão da criança
a respeito do que está acontecendo consigo, o que possibilita-lhe
reorganizar-se internamente e avaliar suas possibilidades e limita-
ções, permitindo-lhe enfrentar as situações utilizando todos os re-
cursos de que dispõe.

1- Acompanhamento psicológico de apoio


Os objetivos específicos deste tipo de intervenção são: a promo-
ção de alívio de ansiedade e de outros sintomas clínicos que podem
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 83

emergir relacionados às situações da doença e do tratamento e a


promoção de um espaço terapêutico no qual a criança possa ser auxi-
liada a compreender suas próprias vivências. Assim como no acom-
panhamento psicológico à família da criança doente, as técnicas
descritas por FIORINI (1991) são de grande utilidade para o delinea-
mento do acompanhamento psicológico de apoio à própria criança.

2- Grupo de apoio psicológico


Os objetivos específicos deste tipo de intervenção são: facilitar a
livre expressão e o compartilhamento de preocupações, dúvidas e
sentimentos possibilitando à criança a elaboração das experiências
por ela vividas e proporcionar um espaço de troca e esclarecimento
de informações.
Descritos os tipos de intervenções psicológicas e seus objetivos,
delineando assim uma possibilidade de atuação em Psico-oncologia
Pediátrica, é importante ainda esclarecer quando e como estas po-
dem se dar no contexto assistencial.
Sem dúvida é preciso considerar as diferentes etapas pelas quais
a criança com câncer passa no decorrer da evolução de sua doença,
etapas estas que constituem momentos diversos de suas vivências.
Assim, há o momento pré-diagnóstico, no qual a vivência nu-
clear é a do enfrentamento de indefinições, dúvidas, e ansiedades.
Nem sempre a criança vive este momento inserida no serviço de
Oncologia Pediátrica, mas em alguns casos o faz. Nestes, o acompa-
nhamento psicológico é iniciado antes mesmo da confirmação do
diagnóstico, e todos os tipos de intervenções descritas podem ser
apropriadas, com exceção das grupais. Nos grupos, seja de pais seja
de crianças, o câncer é uma certeza, e as demandas são por isso,
significativamente diferentes.
A partir do momento de definição do diagnóstico, portanto, o
acompanhamento psicológico sistematizado conforme o descrito deve
ser iniciado imediatamente. A forma deste acompanhamento é
delineada pelas necessidades emergentes de cada caso em questão, e
o profissional deve avaliar constantemente quais tipos de interven-
ções são pertinentes no seu contato cotidiano com as peculiaridades
das situações da criança, de seus familiares e dos profissionais que
estão em contato direto com eles. Os tipos de intervenção assim como
84 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

as características formais dos atendimentos realizados, isto é, desde a


frequência, a duração e o local das sessões terapêuticas ou das reuniões
de orientação, até os recursos ou materiais utilizados, geralmente
são definidos de acordo com as específicas necessidades do caso
acompanhado.
Durante o tratamento, há diversas possibilidades de atendimentos
psicológicos, determinados também pelas demandas da rotina
assistencial. Há o acompanhamento de rotina, que conforme já foi
mencionado é parte integrante do tratamento de todas as crianças
assistidas no serviço. Há também os atendimentos de emergência,
necessários em momentos nos quais novas demandas surgem repen-
tinamente, desorganizando situações emocionais e assistenciais. Há
ainda a preparação psicológica para procedimentos médicos, que
podem ser um simples exame ou uma cirurgia de grande extenção, e
programas de acompanhamento psicológico em situações específicas,
como o atendimento domiciliar.
Os momentos de alta hospitalar, nos quais a criança deixa o Ser-
viço por períodos que variam de acordo com seu estado clínico e
com as demandas de seu tratamento, também constituem momento
de particular importância. As significações dada pela equipe profis-
sional, pela família e pela própria criança doente à este momento
nem sempre estão em sintonia, e acompanhá-lo atentamente é ne-
cessário na medida em que pode garantir a continuidade do processo
adaptativo como um todo.
Esta observação é válida inclusive para o momento de alta do
tratamento como um todo, momento no qual considera-se que a
criança está livre da doença e retornará ao Serviço apenas para
avaliações gerais de tempos em tempos. A cura pode significar
motivo de celebração e tranqüilidade e ao mesmo tempo motivo de
medos e angústias que podem deflagar nova crise na vida da crian-
ça e de sua família.
Ainda há as questões relacionadas à morte. Sendo uma possibi-
lidade de desfecho para a criança doente, é presença constante na
rotina assistencial, mobilizando reações emocionais intensas em to-
dos os envolvidos: na criança doente cujo estado aponta para a mor-
te eminente, nos seus familiares que se vêem diante de uma perda
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 85

inevitável, nos profissionais que esforçam-se para preservar a quali-


dade vida de ambos, nas crianças em tratamento que assistem a toda
esta situação. São situações diversas que demandam intervenções
psicológicas diversas, de acordo com as especificidades que emergem
e se mostram, apontando caminhos de atuação.
Através desta descrição de uma possibilidade de atuação em
Psico-Oncologia Pediátrica, busquei situar um tipo de intervenção
psicológica específica, o grupo de apoio psicológico à criança com cân-
cer. Passarei agora a me deter neste tema, através da apresentação de
uma revisão de literatura realizada sobre o assunto e algumas refle-
xões por ela suscitadas.

2. Os grupos de apoio psicológico

2.1. Estudos sobre grupos na área do câncer infantil —


uma revisão da literatura
Através da realização de uma revisão da literatura, foi possível
obter uma visão geral das tendências das três ultimas décadas no que
se refere ao estudo dos temas relacionados à grupos na área do cân-
cer infantil.
Na literatura estrangeira, parte considerável dos estudos psicos-
sociais na área da Psico-Oncologia Pediátrica produzidos a partir da
década de 1980 refere-se a grupos, especificamente à grupos de apoio.
Os termos grupo de apoio e grupo de auto-ajuda são utilizados
para designar as organizações formadas por profissionais, familiares
de pacientes e ex-pacientes e membros da comunidade que reúnem-se
fundando uma sociedade civil sem fins lucrativos e de caráter filan-
trópico, cujo objetivo é o atendimento das necessidades globais da
criança com câncer.
Há trabalhos relatando o desenvolvimento de grupos de apoio
(BRU, 1987) e descrevendo estratégias para organizá-los e mantê-los
86 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

(HEINEY,1991). Há ainda os trabalhos que descrevem grupos de


apoio específicos: CALL (1990) discute os programas de 32 grupos
americanos; NATHANSON e MONACO (1987) descrevem o
trabalho de grupos de pais associados à uma Fundação Nacional ame-
ricana, a Candlelihters Childhood Cancer Foundation.
A consideração de tais grupos com objetivos específicos tam-
bém é observada. CHESNEY e seus colaboradores (1989) investigam
a percepção de pais participantes de grupos de apoio a respeito da
validade de tais grupos. O mesmo autor, em outro estudo, investiga o
papel do grupo de apoio enquanto facilitador do ativismo de pais de
crianças com câncer, isto é, o envolvimento ativo na melhora do
sistema de saúde responsável pela assistência ao filho doente
(CHENEY & CHESLER, 1993).
Na mesma linha, GIDRON e seus colaboradores (1991) investi-
gam grupos de apoio como auxiliares do enfrentamento de situações
de stress como o vivido por pais de crianças com câncer, comparando
participantes e não participantes de culturas diferentes — EUA e
Israel. Concluem que tais grupos favorecem o senso de ativismo
público e social independentemente das diferenças locais determi-
nadas pela cultura na qual estão inseridos.
Há um único autor que discute a necessidade de definição de
um novo paradigma científico no sentido de estabelecer formas apro-
priadas de pesquisar e atuar no campo dos grupos de apoio e de auto-
ajuda. O autor define claramente as características comuns à estes
grupos na área do câncer infantil: intensa participação de seus mem-
bros, liderança não profissional, orientação local e comunitária e res-
peito ao conhecimento baseado na experiência. Propõe um modelo
de pesquisa participante (PAR — Participatory Action Research),
através do qual o pesquisador envolve-se ativamente no grupo e ao
mesmo tempo o investiga no tocante à sua formação, seu desenvol-
vimento e benefícios que efetivamente podem trazer a seus partici-
pantes (CHESLER, 1990; 1991).
A tendência em formar este tipo de organização através da fun-
dação de grupos de apoio à criança com câncer é um fenômeno mun-
dial, que acompanha as mudanças ocorridas na realidade do câncer
infantil a partir da década de 1970. A necessidade de buscar formas
de conviver com a doença e suas conseqüências e o estabelecimento
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 87

de uma comunicação mais aberta entre a equipe e o paciente propi-


ciaram maior participação da criança e da família nos processos do
tratamento. Acompanhando esta tendência mundial, no Brasil há
dezenas de grupos similares organizados paralelamente aos serviços
de Oncologia Pediátrica. Funcionam ativamente através de trabalho
voluntário, com o objetivo geral de dar apoio à criança com câncer e
sua família no decorrer do tratamento. Apoio significa atendimento
das necessidades da criança no sentido de promover condições físi-
cas, emocionais e sociais para o enfrentamento da doença e do trata-
mento. Sustenta uma gama infinitamente ampla de atividades que
definem-se contextualmente de acordo com as características dos
serviços e dos pacientes em questão. Os grupos mantém serviços
profissionais especializados complementando o serviço de origem,
mantém casas de apoio cuja função é a hospedagem temporária de
pacientes em tratamento ambulatorial, promove eventos para anga-
riar fundos que garantam seu próprio funcionamento, auxiliam os
pacientes financeiramente ou através da doação de cestas básicas e
medicamentos e promovem campanhas educativas na comunidade.
Os grupos brasileiros encontram-se relativamente organizados e pro-
movem há oito anos um encontro anual com caráter científico para
trocar experiências no tocante às questões de organização, manu-
tenção e funcionamento.
No entanto, há poucas referências de estudos brasileiros que
focalizem este o assunto. LIMA (1990) estuda as transformações
ocorridas nos processos de trabalho num serviço de Oncologia
Pediá-trica, a partir da formação de uma equipe multiprofissional
a partir da fundação de um grupo deste tipo, o GACC — Grupo
de apoio à criança com câncer. VALLE (1997) descreve as carac-
terísticas do mesmo grupo em seu livro que aborda as questões
psicossociais na área do câncer infantil na perspectiva da Psico-
logia Fenomenológica.
A revisão de literatura mostra que o termo grupo de apoio refe-
re-se também a uma modalidade da psicoterapia de grupo, isto é, a
um tipo de intervenção possível na área da Psico-Oncologia
Pediátrica.
A situação de ter um câncer é fonte de stress para a criança pois
traz mudanças em todos os níveis de sua vida. O primeiro ano de
88 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

tratamento, o que inclui o momento de diagnóstico, tende a ser o


período de maior stress (SAWYER et al., 1995). O processo de adap-
tação à nova situação vital que a doença impõe, demanda esforços
em intensidade e extensão variáveis. Assim, este stress pode ser
temporário ou pode perdurar para além dos limites da doença e do
tratamento. Os fatores que desencadeiam stress ligam-se aos tipos
de tratamentos realizados e à percepção da criança da experiência de
ter o câncer. Os recursos que influenciam seu enfrentamento são a
auto-percepção, as estratégias de cuidado desenvolvidas, a percepção
do apoio social e o envolvimento da família (HOCKENBERRY-
EATON et al., 1994).
O acompanhamento psicossocial especializado à criança com
câncer passa a ser preconizado e considerado como parte importante
do seu tratamento, em sintonia com as já mencionadas mudanças
ocorridas na abordagem às questões do câncer infantil nas ultimas
décadas. As intervenções psicossociais visam aliviar o sofrimento
trazido pela doença e suas consequências, minimizar os prejuízos cau-
sados no desenvolvimento global da criança doente e garantir quali-
dade de vida no decorrer e após o término do tratamento. Assim os
grupos mostram-se enquanto recurso terapêutico possível de ser uti-
lizado, e o é amplamente.
Há estudos que apenas mencionam a psicoterapia de grupo como
uma das intervenções possíveis junto à criança com câncer visando
sua qualidade de vida (IVAN & GLAZER, 1994). Há outros que
descrevem técnicas que podem ser utilizadas em tais grupos.
SOURKES (1991) descreve uma técnica — a arte terapia — que
pode ser usada para facilitar a expressão emocional da criança.
KRIETEMEYER e HEINEY (1992) descrevem uma técnica — o con-
to — que pode ser usada em grupos de apoio à crianças com câncer
com o objetivo de ajudá-las na resolução de conflitos relacionados à
doença. Discutem forma do grupo, estratégias utilizadas pelo coor-
denador e orientam como utilizar a técnica.
Há também estudos que referem-se a grupos formados por cri-
anças com diagnósticos similares e com objetivos mais específicos.
DIE TRILL e seus colaboradores (1996) referem-se a um tipo de
grupo estruturado e com duração limitada cujo foco é desenvolvi-
mento de habilidades sociais em meninos com tumores ósseos, de-
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 89

senvolvido paralelamente a grupo de pais focalizando integração


social de seus filhos. O programa é considerado eficaz pois alcança
os objetivos a que se propõe — o desenvolvimento de habilidades
específicas, confirmado pelos relatos dos meninos e de seus pais.
COOPER e BLITZ (1985) descrevem um programa de grupo
ludoterapêutico desenvolvido junto à crianças hospitalizadas com
objetivo de educar o paciente sobre sua doença e tratamento pro-
movendo sua adesão ao tratamento e ajudá-lo a enfrentar o diag-
nóstico, o tratamento e a hospitalização.
Em sintonia com a preocupação crescente com a reintegra-
ção social da criança curada, formam-se grupos com o objetivo de
auxiliar sua volta à escola, principal espaço de socialização. Estu-
dos referem-se a este tipo de grupo: KATZ e seus colaboradores
(1988) descrevem um programa de intervenção grupal junto à
crianças visando facilitar a reintegração escolar e social como
modelo capaz de melhorar a adaptação e o ajustamento da crian-
ça a partir de avaliações psicológicas realizadas antes e depois de
sua execução. GOODELL (1984) relata um programa educativo
que utiliza a intervenção grupal como técnica, dirigido aos com-
panheiros de escola da criança com câncer, desenvolvido com o
objetivo de facilitar sua reintegração social. Em outro estudo, a
intervenção grupal é mencionada como uma das possibilidades
de trabalho com a criança, sua família, seus colegas e seus profes-
sores no momento de sua reintegração escolar, utilizando técni-
cas tais como biblioterapia, role playing, simulação e arte terapia
(KARAYANNI & SPITZER,1984).
A psicoterapia de grupo, na modalidade de grupo de apoio,
é mencionada como intervenção possível também junto a pais
de crianças com câncer (FRIEDRICH & COPELAND, 1982;
VOJE, 1985).
A intervenção grupal é descrita como adequada e eficiente na
minimização da sentimentos de isolamento, ventilação de sentimentos,
obtenção de informações e na troca de experiências, problemas e
soluções junto à pais imigrantes, fator que exacerba a crise causada
pela doença (SCHAEFER & POZZAGLIA, 1994).
Grupos formados por pais de crianças com diagnósticos simila-
res também são relatados: WEBB (1990) discute a importância de
90 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

grupos de auto-ajuda para pais de crianças com retinoblastoma —


compartilhando experiências os pais percebem que seus sentimen-
tos de culpa, frustração, rejeição e raiva são normais. KUNKEL
(1994) descreve um grupo psico-educacional e de auto-ajuda for-
mado por pais de meninas com hemangioma.
O grupo de apoio é também considerado importante interven-
ção psicossocial junto a irmãos de crianças com câncer, com objetivo
de aliviar stress e possibilitar busca de formas de enfrentamento.
HEINEY e seus colaboradores (1990) referem-se aos efeitos da par-
ticipação: diminuição do senso de isolamento, ventilação de senti-
mentos e possibilidade de aprendizagem mútua.
Estudos que relatam a intervenção grupal em irmãos de crianças
com câncer enquanto medida preventiva de problemas comporta-
mentais, também referem-se a resultados similares: aumento do
conhecimento sobre o câncer e sobre o tratamento do irmão doente
e facilitação da expressão de sentimentos relacionados às mudanças
ocorridas na família decorrentes da doença (ADAMS et al., 1986;
BENDOR, 1990; KINDARE, 1995).
Há ainda referências a grupos de apoio com pessoas em situa-
ções de luto, voltados para pais e irmãos de crianças com câncer que
morreram, com o objetivo de tratar do impacto da morte e dos senti-
mentos de culpa suscitados no processo de elaboração da perda
(BROWN, 1989; HARRIS & CURNICK, 1995). O estudo de
HEINEY e seus colaboradores (1993) investiga os efeitos da partici-
pação em grupos deste tipo e relata que o acompanhamento clínico
do processo grupal mostrou diminuição da intensidade da culpa e
estabelecimento de novas maneiras de enfrentar a perda. Concluem
que o grupo é espaço util para a ventilação de sentimentos de raiva e
tristeza e de busca de enfrentamento do futuro.
No Brasil, a literatura relativa ao tema é escassa. VALLE (1997)
descreve o grupo de apoio como modalidade de intervenção psicoló-
gica junto a criança com câncer e à seus familiares e em outra opor-
tunidade utiliza tais grupos como fonte de investigação da maneira
como os pais vivenciam ter um filho com câncer (VALLE, 1997) e
das formas pelas quais a criança elabora as experiências vividas em
decorrência da doença e do tratamento (FRANÇOSO & VALLE,
1994, 1999 e 2000; VALLE & FRANÇOSO, 2000). Ainda outra
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 91

contribuição na utilização da intervenção grupal enquanto fonte de


investigação das vivências de adolescentes com câncer é relatada no
trabalho de BESSA (2000).
Portanto, maior sobrevida e possibilidades crescentes de cura co-
locaram em foco as questões relacionadas ao desenvolvimento físico,
psíquico e social da criança doente e a necessidade de criar estratégias
para minimizar os prejuízos causados pelas situações decorrentes do
câncer, e o grupo de apoio tem mostrado-se como um tipo de inter-
venção psicoterapêutica possível e amplamente utilizada. É interes-
sante notar que os estudos mencionam os benefícios do acompanha-
mento psicossocial sob a forma grupal tanto para a própria criança
doente quanto para as pessoas que com ela convivem — seus pais e
irmãos no âmbito familiar, seus colegas e professores no âmbito escolar.
A revisão de literatura realizada permite algumas considerações
importantes:

• A formação de grupos parece ser uma tendência crescente na


área do câncer infantil, e a produção científica na área acompanha
esta tendência. A ultima década concentra a maior parte dos estu-
dos sobre o tema.

• Os termos grupo de apoio e grupo de auto-ajuda referem-se


sem distinção a dois tipos de grupos diferentes:
– Referem-se a uma organização não governamental, criada com
o objetivo de propiciar apoio à criança com câncer e sua família de
forma ampla, abrangendo tanto suas necessidades pessoais imediatas
como seus direitos e deveres enquanto cidadãos vivendo uma situa-
ção de adoecimento específica (CHESLER et al., 1984; YOAK et
al., 1985; BRU, 1987; NATHANSON & MONACO, 1987;
CHESNEY et al., 1989; CALL, 1990; HEINEY, 1991; GIDRON et
al., 1991; CHESLER, 1990 e 1991; LIMA, 1991; CHESNEY &
CHESLER, 1993; CHESLER & CHESNEY 1995; VALLE, 1997).
– Referem-se à uma modalidade de intervenção psicológica uti-
lizada com objetivos terapêuticos junto a:
– crianças e adolescentes com câncer (GOODELL, 1984;
KARAYANNI & SPITZER, 1984; COOPER & BLITZ, 1985; KATZ
92 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

et al., 1988; SOURKES, 1991; KRIETEMEYER & HEINEY, 1992;


FRANÇOSO & VALLE, 1994, 1999 e 2000; IVAN & GLAZER, 1994;
DIE TRILL et al., 1996; VALLE, 1997; VALLE & FRANÇOSO,
2000; BESSA, 2000).
– pais de crianças com câncer (FRIEDRICH&COPELAND,
1982; VOJE, 1985; WEBB, 1990; KUNKEL, 1994; SCHAEFER &
POZZAGLIA, 1994; MACNER-LICHT et al., 1998).
– irmãos de crianças com câncer (ADAMS et al, 1986;
BENDOR, 1990; HEINEY et al, 1990; KINDARE, 1995).

• A maioria dos estudos mencionados refere-se aos objetivos


específicos dos grupos de apoio, sendo que poucos investigam seus
resultados no tocante a estes objetivos. São mencionados como ob-
jetivos específicos:
– Aprendizado e desenvolvimento de habilidades específicas
(GOODELL, 1984; KARAYANNI & SPITZER, 1984; KATZ et al.,
1988; CHESLER & CHESNEY, 1995; DIE TRILL et al., 1996).
– Facilitação do apoio mútuo a partir da troca de experiências
(WEBB, 1990; KUNKEL, 1994; CHESLER & CHESNEY, 1995;
VALLE, 1997).
– Constituição de espaço para discussão de idéias e ventilação
de sentimentos (ADAMS et al., 1986; HEINEY et al. 1989 e 1990;
BENDOR, 1990; FRANÇOSO & VALLE, 1994; SHAFER &
POZZAGLIA, 1994; KINDARE, 1995, VALLE, 1997).

• Tais objetivos específicos são mencionados tanto nos estu-


dos que se referem a grupos de apoio como organização não go-
vernamental como nos estudos relativos a grupos de apoio como
modalidade de intervenção psicológica. Apenas dois trabalhos
mencionam um objetivo exclusivo dos grupos de apoio enquanto
organização não governamental, o favorecimento do senso de
ativismo público e social (GIDRON et al., 1991; CHESNEY &
CHESLER, 1993).
Concluindo, de modo geral os grupos são considerados recurso
de apoio fundamental à criança com câncer e sua família no enfren-
tamento das situações relacionadas à doença e ao tratamento, tanto
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 93

na forma de uma organização não governamental como na forma de


modalidade terapêutica.

2.2. Vivências de crianças com câncer no grupo de


apoio psicológico
Dentre os vários trabalhos aos quais tive acesso, os grupos são
descritos enquanto possibilidade de intervenção psicológica com di-
versos fins, e os estudos focalizam suas formas de funcionamento,
seus fatores terapêuticos e suas abrangências de modo geral.
Este tipo de intervenção psicológica além de propiciar bene-
fícios terapêuticos aos seus participantes, pode ser fonte de inves-
tigação de suas idéias e sentimentos, isto é, de suas vivências.
Minha experiência enquanto coordenadora de grupos de apoio
tem mostrado-me que o grupo não é somente fonte de investigação,
acesso para a compreensão das vivências de seus participantes,
mas é sim o contexto situacional que possibilita a emergência de
tais vivências.
Realizando um estudo cujo tema eram as vivências de crianças
em grupos de apoio psicológico na área da Oncologia Pediátrica, pude
compreender aspectos fundamentais a respeito das vivências de
crianças com câncer em tratamento, em seguimento clínico pós tra-
tamento e de seus irmãos, crianças também envolvidas nas questões
relacionadas à convivência com a doença e suas consequências. Esta
experiência será relatada a seguir.

2.2.1. Algumas informações sobre o grupo de apoio psicológico:


Durante a realização deste estudo, o grupo reuniu-se sema-
nalmente durante 1 hora, em local e horário fixos, numa sala do
ambulatório do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto-USP. As crianças participantes, em média 5 em cada
sessão, tinham diferentes diagnósticos de câncer e encontravam-se
em diferentes fases de seus tratamentos. Suas idades variavam de
3 a 15 anos.
Tratava-se de um grupo aberto, já que cada sessão contava com
a participação de crianças que estavam em retorno ambulatorial no
94 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

dia da realização do grupo. Estas eram convidadas a participar da


sessão, e quando aceitavam, era explicado à elas e a seus acompa-
nhantes o objetivo da realização do grupo.
A seguir eram levadas a sala na qual encontrava-se disponível
para uso material gráfico (papel, lápis de cor, giz de cera, tinta, etc.)
e lúdico (bonecos, carros, massa para modelar, potes de tamanhos
diversos, jogos, etc.).
Na sala, eu apresentava-me, informando o horário e o objeti-
vo do grupo, que era propiciar e facilitar a livre expressão de suas
preocupações, dúvidas e sentimentos, além de proporcionar um
momento no qual pudessem compartilhar suas experiências. Os
participantes eram então convidados a apresentarem-se e no mo-
mento seguinte eu propunha que agissem livremente.
As intervenções realizadas no decorrer da sessão diferiam entre
sí de acordo com seus objetivos:

• Explorativas
Objetivos:
– Investigar o que a criança conhece a respeito de sua doença e
de seu tratamento
– Incentivar a criança a explanar sobre o que faz e o que pensa
no momento em que o faz

• Informativas
Objetivos:
– Informar e/ou orientar a criança a respeito de questões
relacionadas à doença e ao tratamento, assim como ao setting
grupal

• Integrativas
Objetivos:
– Elucidar e integrar de forma compreensível a todos a experi-
ência vivida no momento relacionando-a, quando é o caso, com ques-
tões relativas à doença e ao tratamento.
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 95

3. As vivências das crianças com


câncer no grupo de apoio psicológico*

As vivências das crianças participantes do grupo de apoio psico-


lógico podem ser consideradas a partir dos temas que emergiram de
suas falas, produções e brincadeiras no decorrer das sessões. Apre-
sentarei as categorias temáticas que pude apreender analisando as
sessões durante a realização de meu estudo, acompanhados de exem-
plos ilustrativos: a identidade — o mundo próprio; a doença e o tra-
tamento; a vida — o mundo das relações; a morte.

OS TEMAS
3.1 – A identidade: O mundo próprio
3.1.1. As apresentações
As sessões do grupo iniciavam-se a partir de minha sugestão de
que nos apresentássemos. Por tratar-se de um grupo aberto, a cada
semana este configurou-se de modo particular — seus participantes
eram as crianças que estavam em retorno ambulatorial naquele dia.
Portanto, nem sempre todas conheciam o grupo, a mim ou a seus
companheiros de tratamento em retorno naquele dia.
Assim, eu dizia meu nome e o motivo da minha presença ali, e
pedia que fizessem o mesmo, acrescentando suas idades. Em todas as
sessões as crianças disseram seus nomes e suas idades sem
questionamentos.
Às vezes, a informação aparecia com alguma particularidade,
como mediada pelo adulto, detentor do saber:

*A construção dos resultados de meu estudo baseou-se na metodologia de pesquisa qualitativa em


Psicologia Fenomenológica conforme proposta por GIORGI (1985), MARTINS E BICUDO (1989),
FORGHIERI (1991) E VALLE (1997). Foram analisadas 30 sessões grupo de apoio psicológico
realizadas no decorrer de 1999, nas quais participaram ao todo 63 crianças, sendo 54 crianças com
câncer (39 em tratamento e 15 em seguimento clínico pós-tratamento), 8 irmãos destas crianças e
1 amigo. Apresento neste capítulo uma dimensão parcial dos resultados configurados no estudo.
96 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Tenho 5 anos, a minha mãe que falou que eu tenho 5. (T., 5 anos)

Ou querendo enfatizar um ganho de idade:


Tenho depois do 5. (E., 6 anos)

Quanto ao motivo de suas presenças, as definições foram variadas,


e remetiam ao quanto estavam informadas a respeito de sua doença
e de seu tratamento.
As crianças compreendiam o motivo de sua presença de acordo
com seu nível de desenvolvimento cognitivo-emocional e de acordo
com as informações recebidas:
Vim tirar sangue. (G., 4 anos)
Estou aqui para fazer quimioterapia, porque tenho leucemia. (T.,
4 anos)
Já terminei o tratamento, era quimioterapia. Vim no retorno.
(D., 8 anos)

Um dos motivos da presença mencionados foi a participação no


grupo; o brincar é tomado como parte do tratamento:
Nós veio aqui prá brincar. (F., 10 anos)
Eu vim brincar com as coisas.(R., 10 anos)

Mas em geral, as crianças informavam o nome de sua doença —


é leucemia ou é tumor em um local específico. Algumas crianças
especificavam o diagnóstico:
É leucemia, tipo M. (L., 9 anos)
Leucemia, câncer do sangue.(L., 9 anos)

As crianças mostraram-se predominantemente bem informadas


sobre o diagnóstico (o nome de sua doença) e bem situadas em rela-
ção à etapa atual do tratamento (o motivo da presença naquele dia).
Porém, algumas vezes a desinformação se mostrou; em outras o es-
quecimento se fez presente; em outras a confusão:
Não sei não. Só sei que faz três anos que venho aqui.(F., 11 anos)
Não sei... não lembro...(T., 4 anos)
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 97

Tenho Leucovin. (T., 4 anos)


(Leucovin é o nome do remédio)

Neste momento inicial, eu pretendia não só que conhecêssemos


uns aos outros, mas também investigar o quanto estavam infor-
mados. Assim, quando havia necessidade, minhas intervenções
visavam não apenas sugerir uma apresentação dando início à ses-
são, mas também informar, orientar as crianças que apresentavam
esta demanda.
Ainda, os irmãos de crianças que participaram, mostraram-se
todos cientes de seu papel naquele momento:
Vim aqui para ajudar minha mãe a ajudar meu irmãozinho. (M.,
irmã de M.O., 9 anos)
Meu irmão faz tratamento aqui. (N., irmã de T.,11 anos)

Nas sessões analisadas, a maioria das crianças participantes mos-


trou estar situada adequadamente em relação a doença e ao trata-
mento, ou seja, tinha conhecimento de seu diagnóstico e informa-
ções sobre seu tratamento.
As restantes, que se mostraram desinformadas e/ou confusas
foram encaminhadas para a equipe multiprofissional para que fossem
atendidas apropriadamente no tocante a estas dificuldades.

3.1.2. O próprio corpo


Foi um tema de interesse em algumas sessões do grupo, o pró-
prio corpo em alguns de seus aspectos:
A orelha dele (do companheiro) é fria. Minha cabeça é quente.(A.,
10 anos)
(A cabeça é quente) porque a gente fica irritado... porque tem cabelo
e o cabelo esquenta. (J., 7 anos)

As crianças observavam-se e percebiam suas diferenças físicas,


refletindo sobre elas:
O C. deve ser anão... Dez anos desse tamanho?... coitado.(R.,
9 anos)
98 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

A mesma (idade) que eu! E é baixinho assim! Ô loco meu, pensei


que ele tinha uns nove!(L., 11 anos)
Eu sou tamanho médio. (J., 12 anos)

Compartilhavam suas percepções sobre as seqüelas físicas da


doença e do tratamento:
Minhas pernas estão meio tortas. (P., 8 anos)
A perna não obedece, ela não tem muita força, dói bem na frente.
(A., 10 anos)

Surgiu a associação entre o crescimento e o tratamento com


suas conseqüências:
Quando crescer meu cabelo eu vou na escola ... quando eu crescer e
meu cabelo crescer.(A., 3 anos)
Sente dor porque tá crescendo e a quimio não deixa crescer. (A.,
10 anos)

3.2 – A doença e o tratamento


3.2.1. O diagnóstico
Vivências relacionadas à doença e ao tratamento emergiram nas
sessões grupais de diversas maneiras, remetendo a diferentes aspectos
dos mesmos. A sugestão da identificação inicial incluindo a infor-
mação sobre o diagnóstico e o momento atual do tratamento apon-
tava para a abertura de um espaço para que esta temática surgisse, e
esta emergiu revestida de sentidos particulares, compartilhados de
acordo com as possibilidades do momento.
Assim, o diagnóstico foi não só informado enquanto o nome da
doença, mas as reações a ele seguidas foram lembradas:
Ah... eu queria dormir o dia inteiro, não queria levantar, fazer nada...
aí minha mãe me trouxe e me internaram... Era depressão... Tristeza,
não querer falar com ninguém, se alguém fala alguma coisa já não
agüento, dá dor de cabeça...(A., 9 anos).

Ainda foram lembradas situações relacionadas à comunicação


do diagnóstico:
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 99

Eu sabia do caroço no pescoço, minha mãe achava que era íngua.....


aí o médico falou que era câncer. (M., 8 anos).

Eu fiquei atrás da porta escutando o médico... eu fiquei bem quieta,


minha mãe ficou sabendo e foi lá ligar pro meu pai. (P., 8 anos)

A lembrança desta situação relatada por P., introduziu na sessão


grupal a discussão das dificuldades relacionadas à comunicação das
informações por parte dos adultos (pais e profissionais) à criança.
Estas percebiam tais dificuldades, e refletiram sobre o assunto:
Minha tia ... tinha câncer ... e morreu sem saber que tinha... Acho
que pensam que a gente vai ficar muito triste... que contando...
pensamos que não vão cuidar mais da gente. (A., 9 anos).

A partir de minha sugestão de uma postura mais ativa diante


destas dificuldades, orientando as crianças a perguntarem sobre o
que querem saber, a experiência de P. novamente trouxe à tona um
aspecto importante destas situações:
Eu perguntava, perguntava, perguntava... e ela não falava... Ia ser
pior se eu não ficava sabendo; eu acordava e não sabia o que estava
acontecendo, o que eu estava fazendo aqui. (P., 8 anos).

Ainda as questões relacionadas à comunicação de informações


surgiram não só nas lembranças do momento de definição do diag-
nóstico, mas também no decorrer do tratamento.
Eu perguntei (o que queria saber) mas ele (o médico) não quis me
falar. (L., 11 anos).

As dificuldades de comunicação às vezes dizem respeito aos sen-


timentos do adulto informante que, visando proteger as crianças,
silencia. Mas às vezes dizem respeito à falta de clareza, para este adulto,
das necessidades de cada criança em particular. Algumas crianças
satisfazem-se com o conhecimento dos procedimentos concretos pla-
nejados para seu tratamento:
(O tratamento) vai ser mais 2 oncovim e pronto. (T., 4 anos)
100 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

E outras, não:
Eu queria conversar com os médicos, mais por curiosidade... Eles
não falam, eles só falam se a quimioterapia vai ser amanhã, ou vai
ser outro dia, não vou vir... não vou falar mais nada. (R., 9 anos).

Não há como conhecer tais necessidades sem que a própria


criança as compartilhe — é ela quem pode guiar o adulto neste pro-
cesso contínuo, iniciando-se no momento do diagnóstico e prosse-
guindo durante o tratamento.
A importância de estar informado para enfrentar as situações
decorrentes do tratamento é percebida pelas próprias crianças, con-
forme mostrou a situação vivida numa sessão grupal:
– Os moleques na minha escola me enchem porque sou doente, mas
eu não sei explicar nada não (A., 10 anos)

– É porque vai ver que ninguém te falou direito o que você precisa
saber. (B., 14 anos)

– Tem que perguntar, moleque! Sua mãe não te explica não? Pergunta
pro médico, então...(F., 14 anos)

– Esse coitado aí, pelo jeito está muito mal informado (B., 14 anos)

3.2.2. A história do tratamento


Resgatar a história do tratamento desde seu início, relatando em
detalhes experiências ocorridas após a definição do diagnóstico, ocupou
grande espaço nas sessões grupais. Alguns trechos deste resgate:
Eu comecei a ficar inchada... doía tudo ... fui ao médico com minha
mãe... (J., 9 anos)

Eu fiquei 2 anos internado... no começo do tratamento fiquei 3 meses


no hospital, fiquei 40 dias no 4º andar pra descobrir a doença e depois
subir para o 7º (M., 14 anos)
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 101

Retomar a história de tratamento é processo claro e explícito,


que envolve às vezes a recidiva da doença:
Vai fazer 6 anos que eu venho... depois de 6 anos voltou de
novo... eu era muito pequeno, a mãe não contava nada, eu não
entendia nada... eu sabia o que era prá fazer, não sabia pra que
exatamente. Começou a dor de dente, me deu um caroço debaixo
do dente... Fui no dentista... aí ele disse que precisava fazer
exame que estava voltando novamente. Aí meu pai e minha
mãe começou a chorar (A., 14 anos)

Processo às vezes representado numa brincadeira ou num desenho:


Desenhei o carro do Brasil ganhando a corrida” (A.,10 anos) desenho 1

A esta criança curada de um tumor de wilms, fiz analogia de seu


desenho com seu momento de vida:
Acho que para A. terminar o tratamento é como ganhar uma corrida,
não é?

Tal analogia foi apropriada por outra criança que resgatou sua
própria história, também envolvendo a recidiva:
Eu já acabei a corrida — corri depois voltei lá... a doença voltou,
minha doença vai e volta... a corrida é maior ainda. (D., 10 anos)

3.2.3. Os procedimentos
Procedimentos específicos experienciados em função do trata-
mento foram relembrados.
Há certos procedimentos que devido à sua similaridade na prá-
tica são sempre trazidos em conjunto pelas crianças: o mielograma
(exame feito a partir da retirada do liquor), a quimioterapia intratecal
(administração de medicamentos no liquor) e o transplante de me-
dula óssea. Participaram das sessões do grupo crianças — candidatas
ao transplante, que o associavam a estes procedimentos conhecidos
por todos. Possíveis confusões foram feitas, mas é interessante notar
que a experiência concreta de cada criança (e na prática os proce-
dimentos são similares) eram a principal fonte de informação a respeito
102 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

dos tratamentos.O mielograma e a quimioterapia intratecal foram


tema de diversas sessões.
Quando eu tirava a medula ficava tudo duro ... assim ó, tudo durinho.
(E., 6 anos)

Dói um pouco (a intratecal), mas fazer o quê? (T., 14 anos)

O transplante de medula óssea foi trazido na sessão, cujos parti-


cipantes incluíam irmãos de um paciente — possíveis doadores e/ou
doadoras no processo:
Vim prá ver o tipo de sangue... a P. (irmã) vai fazer transplante, eu
tenho que doar o sangue. O meu deu negativo, não bateu não” (Irmão
de P., anos)

A paciente explicou para o grupo o procedimento:


Tira o sangue da espinha, da medula do osso e põe no sangue do
outro... lá na fábrica do sangue.(P., anos)

Em outra sessão, também a partir da presença de uma irmã-doa-


dora, o transplante foi assunto:
Não sei, nunca vi, só sei que é pela veia ... pega um pouquinho de
sangue e coloca na medula. (L., 11 anos)

A partir de meus esclarecimentos sobre o procedimento, as


crianças fizeram suas perguntas e manifestaram-se em relação ao
assunto:
É muito (sangue)? Um saquinho? E se fica muito sangue na veia?
(L., 11 anos)

O processo todo foi retomado com minha ajuda e com a parti-


cipação das crianças, que fizeram associação do transplante com o
exame que já fizeram (mielograma):
Na primeira vez eu chorei até ... pelo amor de Deus, o corpo fica todo
duro!. (L., 11 anos)
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 103

E diante do protesto da irmã-doadora, o transplante foi


reconstituído a partir do reconhecimento que cada criança sobre
ele tinha:
Você tá querendo me assustar? (Irmã de M., 18 anos)

É um pouco diferente o que vai acontecer; vocês sabem como é o


Transplante de Medula Óssea? (Psicóloga)

Tem um tempo de repouso (L., 11 anos)

Prá evitar pegar infecção (Irmã de M., 18 anos)

Só podem entrar o enfermeiro, o médico e o paciente (M., 8 anos)

(Serve) prá sarar (L., 11 anos)

3.2.4. As conseqüências
Emergiu também enquanto tema nas sessões, as maneiras de
lidar com as conseqüências da doença e do tratamento.
Faz 3 anos que fiquei deste jeito (Deficiente Visual) ... e eu estudo
braile. Você sabe como é? (M., 14 anos)

Depois que comecei a fazer o tratamento parei de crescer e de me


desenvolver (J., 11 anos)

A aparência física marcada pela alopecia, uma possível conse-


qüência do tratamento, causa confusões de identidade até entre as
próprias crianças:
– Eu tive num quarto, ela estava dormindo ... eu olhei pro lado e
pensei que era menino (L., 11 anos)

– Fiquei quieta ... achei que ele era menina ... só sei que era ele, e
falou — Tá me estranhando? (R., 11 anos)

A máscara, parte da aparência durante o tratamento, também


foi tema de interesse:
104 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

(Tiro) porque fica mais fácil de falar (T., 4 anos)

Eu usava, mas não gostava; os meninos quando eu chegava na escola


me falavam que eu era doutora (J., 11 anos)

As restrições alimentares foram rememoradas pelo grupo em


conjunto:
– O que é porcaria?(Psicóloga)

– Bolacha, salgadinho, coca-cola, refrigerante, chocolate... (risos)


(L. 11 anos; A, 11 anos; M., 8 anos; J., 12 anos)

– E porque não podem comer? (Psicóloga)

– O médico que falou, aí minha mãe não deixa. Tem muita química.
(L., 11 anos)

Na maior parte das vezes em que surgiu o tema internação, esta


era compreendida como necessária para certas quimioterapias. Mas
outros motivos surgiram:
Uma vez foi infecção, a outra foi depressão (A., 10 anos)

As vivências relacionadas às internações foram trazidas como


desagradáveis: “É ruim”, foi a frase mais utilizada para designar a ex-
periência. Explorada, tal frase englobava vários aspectos:
– Por que é ruim?(Psicóloga)

– Tem que ficar dentro do quarto, não pode sair.

– Não pode fazer nada, não pode sair do quarto ... fico com saudade
de casa.

– Só pode brincar com brinquedos do hospital.

Estar internado significa estar longe da vida cotidiana:


Meu cachorro ficava chorando, chorando, pedindo comida... quando
eu fico lá em casa eu cuido dele. (A., 3 anos)
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 105

Perde tudo... perde o desenho (na TV), perde a comida de casa,


perde as calças até! (risos) (L., 11 anos)

E nesta situação, pode surgir o medo do abandono, da solidão:


Já fiquei 3 vezes internada... se ela (a mãe) não ficar, eu não fico
sozinha. É ruim... eu tava vendo lá em cima; tem mãe com coragem
prá deixar a criança de 2 anos sozinha... é pequenininha ainda... É
que não gostam... preferem ficar com o filho que tá bom do que com
o que está doente... (A, 10 anos)

As vivências relacionadas ao tratamento de modo geral traziam


aspectos positivos e negativos:
O tratamento até agora foi meio bom e meio ruim... Bom foram as
festas e ruim a intratecal” (M., 14 anos)

Prá mim foi bom porque eu fiquei sarado. (D., 8 anos)

A vinda ao Hospital surgia revestida pelos esforços que demanda:


É legal vir de perua... Tem que acordar cedo. (J., 7 anos) desenho 2
Ai! Hoje acordei tão cedo... O ônibus quebrou e precisamos vir de
perua; e a perua quebrou na estrada, anda bem que vinham outros
atrás e trouxe a gente. (J., 11 anos)

O final do tratamento — a perspectiva de cura, era vivida tam-


bém em diversos de seus aspectos:
Hoje é o último dia (de tratamento). Me sinto leve. (A., 10 anos)

Hoje é que eu vou acabar o tratamento... esse é o grande problema:


Tira a máscara, tira os remédios. (R., 10 anos)

3.2.5. A equipe
Surgiram também assuntos relacionados à equipe profissional
responsável pelo cuidado da criança. Os assuntos foram temas de
conversas nas quais foram relembradas situações vividas e impres-
sões deixadas:
106 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

No começo do meu tratamento era a Dra. B. quem cuidava de mim.


Eu lembro que ela e o Dr. A. começaram a chorar porque eu comecei
a enxergar deste olho... eu fiquei cego porque o tumor começou a
machucar o nervo do meu olho. O outro médico... falou pro meu pai
que eu nunca mais ia enxergar e ninguém quis falar... e depois quando
eu comecei a enxergar eles choraram, eles chamaram um monte de
médicos no meu quarto. (M., 14 anos)

Elas (as enfermeiras) entram no quarto com as coisas na vasilha —


vocês nunca viram? Entram no quarto com tudo dentro e falam: É
hora do remédio; aí dá injeção, manda tomar o remédio; aí tira a
febre, põe tudo e vai embora — às vezes também fala: vamos limpar
a boca! Aí, daí buá, buá ...pode chorar também se quiser (L., 9 anos)

O tema surgiu também a partir de dúvidas sobre as atividades de


equipe:
Pra que fazem a reunião (com os pais)? (E., 8 anos)

O mesmo assunto foi tema de dramatizações, nas quais as crian-


ças encenavam no grupo situações assistenciais diversas:
– Estou com febre. (F., 8 anos)

– Dá uma injeção nele.(L.,9 anos)

– Não, já passou. (F.)

– Pom! Vou atirar no joelho dela. (L.,9 anos)

– E agora, quem vai fazer o curativo? (Psicóloga)

– Eu não vou, tenho medo. (T., 8 anos)

– Como está o coração dele? (Psicóloga)

– Aleluia! Parece um trem! Mas tem que cortar esse aqui (o joelho)...
(L., 9 anos)

A encenação continuava, com a participação de todas as crian-


ças. A paciente encenada por T., com medo, recusava-se a tudo. O
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 107

médico encenado por L. chegou a bater na paciente para obrigá-la a


tomar o remédio:
– Cuspiu de novo? Então vai pelo ouvido!

As outras crianças davam sugestões e apoio:


– Põe na água que ela toma!

– Ele vai fazer você viver!

A resolução da situação foi tarefa de uma enfermeira, que subi-


tamente entrou em cena através de A., 3 anos, e tranqüilizando os
ânimos, convenceu a paciente a aceitar os cuidados. O médico fina-
lizou a encenação dando alta à paciente.
Assim, os temas relacionados diretamente à doença e ao tratamento
ocuparam papel central em muitas das sessões grupais, e foram diversos
os aspectos trazidos e explorados pelas crianças: o diagnóstico, a comu-
nicação das informações, a história do tratamento, os procedimentos
específicos (a injeção, o mielograma, a quimioterapia intratecal, a cirur-
gia, as internações), as conseqüências e seqüelas (a alopecia, o uso da
máscara, as restrições alimentares e outros), a equipe profissional.

3.3 – A VIDA: O MUNDO DAS RELAÇÕES


3.3.1. Histórias e situações vividas e/ou imaginadas
As crianças traziam às sessões grupais fragmentos de suas histó-
rias de vida e de suas rotinas longe do hospital. Contavam como
nasceram, fatos de suas vidas passadas, suas rotinas de vida, suas
preferências lúdicas. Tais assuntos, histórias e situações vividas,
foram tão diversas quanto as crianças que participaram do grupo.
Fragmentos de suas vidas cotidianas também foram assunto de in-
teresse, e certas particularidades, geralmente ligadas a acidentes, si-
tuações de risco, ameaças e violências suscitaram intensa participa-
ção e envolvimento das crianças. Alguns exemplos:
Levei um tombo um dia ... lá na rua ... quase quebrei os 2 dentes da
frente. (J., 7 anos)
108 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Lá perto da minha casa tem um circo... tem um tigre que queria sair
do caminhão. (A., 10 anos)

Eu tinha ganhado um gato chinês. Aí roubaram...(T., 14 anos)


Eu tinha um cachorrinho, bem peludo, bem fininho. Ele sumiu. Eu
fui viajar, no dia que eu cheguei ele não estava mais... (M., 4 anos)

Nas situações relatadas, realidade e fantasia mesclavam-se ins-


pirando e ilustrando desenhos em execução e aquecendo as conver-
sas grupais:
Aqui é o lobo mal, atrás da árvore, o menininho tá indo prá vovozinha
e o lobo mal sondando ele... (T., 4 anos) desenho 3

É corrida de carro, igual tem lá na TV. Tem gente gritando, estão


atirando — piuuuuu, piuuuuuu.(D., 11 anos) desenho 4

Aqui é uma pista, é corrida de carro, um carrinho que é o UNO, é


por isso que tem uma polícia... É um tanque... Aí o carrinho chega e
bum! (R., 9 anos) desenho 5
Eu estou fazendo um bicho ... Um dinossauro bravo. Ele foi na rua e
o carro passou em cima... Está agora na casa da mulher, ele está
dormindo, vou ficar bom. (J., 4 anos) desenho 6
– É um tanque de guerra. (M., 8 anos) desenho 7

– E quem vai ganhar essa guerra? (Psicóloga)

– Não sabemos! Não perca os próximos capítulos. (L., 11 anos)

3.3.2. A família
Mencionadas com muita freqüência, as relações familiares fo-
ram tema central de reflexão e discussão em algumas das sessões do
grupo.
Surgiram falas relacionadas às mães:
Minha mãe não tem coragem de me deixar sozinha... Dia da minha
cirurgia, a minha tia levou ela prá casa, ela nem coragem de sair teve,
de por os pés prá fora... já queria voltar pro hospital (A., 11 anos)
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 109

Ela (a mãe) fica toda preocupada... quando eu acordo, estou com


calor. Ela diz pra eu colocar blusa. Coloca não sei o que, já tomou o
remédio? (A., 14 anos)

E surgiram assuntos relacionados aos irmãos:


No dia 24, dia do meu aniversário, ela nasceu, só que eu estava no
hospital e perguntei se era menino ou menina ... era menina (A.,
14 anos)

Minha irmã é um trem, é um saco, ontem mesmo briguei com ela...


porque ela pega tudo, ela chega do trabalho e fala: esquenta a janta
pra mim — não vou esquentar não — aí ela falou pro meu pai e ele
falou — vai cuidar da obrigação. Aí eu xinguei ela. (J., 11 anos)

Em uma sessão, as crianças discutiram suas preferências entre


ter/ser irmão mais novo ou mais velho:
É bom porque quando é pequeno não trabalha. (M., 9 anos)

E suas percepções entre a desigualdade entre os gêneros:


O irmão vai brincar e as meninas ficam lá limpando a casa. Isto não
é muito legal, os irmãos também têm que limpar a casa!” (M., irmã
de M. O., 9 anos )

E a desigualdade de atenção:
Eu fico muito triste porque a minha mãe só dá atenção pro meu
irmão, mas prá mim... eu fico o dia inteiro, eu fico sem atenção! (M.,
irmã de M. O., 9 anos)

A doença do irmão apareceu mediando as relações:


Minha mãe fala que ela dá atenção prá mim mas só que quem tá
precisando de mais atenção do que todo mundo lá na minha casa é
meu irmão, porque ele é doente... Eu tenho que compreender, mas de
vez em quando preciso de amor e carinho. (M., irmã de M., 9 anos)

E as conclusões:
Ter irmão é chato, ser irmão não (L., 11 anos)
110 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

3.3.3. A escola
Assuntos relacionados à vida escolar surgiram enquanto tema
nas sessões grupais. É interessante observar que eu fazia perguntas
sobre a vida escolar de cada criança em todas as sessões, mas que
somente em algumas delas houve interesse em transformar o assunto
num tema de reflexão e discussão.
As dificuldades que impedem a volta à escola foram pontuadas:
Minha mãe acha que não(devo ir) — porque às vezes preciso de
ajuda, posso cair, essas coisas (B., 14 anos)

O não voltar à vida escolar foi questionado pelas próprias crianças:


Fica sem futuro.(M., 8 anos)

No entanto, voltar pode ser fonte de dificuldades. As dificulda-


des vividas na continuidade da vida escolar foram relembradas:

Quando fiquei doente, minha professora implicou, pegava no meu pé


...acho que ela tinha medo. (B., 14 anos)
As pessoas ficam com medo que aconteçam com elas e ficam
implicando com a gente, ou então ficam longe. Você tem que explicar,
eu explico, falo o que câncer, que tem cura. (F., 14 anos)

3.3.4. Filosofias
Surgiram falas expressando reflexões sobre a vida:
– Tudo o que é vivo nasce, cresce e morre. (D., 8 anos)
– Não... Tudo o que é vivo nasce, cresce, produz e morre. (M.,
9 anos)

Sobre o tempo:
– Por que quando a gente gosta de uma coisa ela acaba rapidinho?
Por que passa rápido? (J., 11 anos)
– Bom porque fica mais legal. (R., 9 anos)

Sobre os mistérios da vida e da morte, os mistérios divinos:


ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 111

Eu desenhei Deus... A idéia do nada... “ (L., 11 anos) desenho 9


Quando (Deus) quer levar a gente da Terra, leva, quando não quer,
deixa a gente. (R., 11 anos)

Vou perguntar uma coisa prá você — Quem fez Deus? Nem o padre
pode responder. É isso daí o mistério da Santíssima Trindade, ninguém
pode saber. Nem as pessoas da Terra. (L., 11 anos)

3.4 – A MORTE
A morte surgiu, enquanto tema, de diversas maneiras nas ses-
sões grupais. A morte de companheiros de tratamento foi noticiada
nas sessões todas as vezes em que ocorreu no período considerado
neste trabalho. A morte de pessoas conhecidas foi introduzida em
algumas ocasiões:
Meu tio morreu de leucemia.(L., 9 anos)
Minha mãe morreu de parto, aí morreu uma menina com ela... daí
eu fiquei viva... Ah! Eu já vi minha mãe... no santo tudo de branco
... Tava igual! (na foto pela qual é conhecida) Eu perguntei: quem
está aí? Mas com morto a gente não conversa... aí ela pegou e correu,
desapareceu... (R., 11 anos )

À minha observação de que apesar de ter morrido a mãe estava


bem viva dentro dela, L., ouvindo-nos, completou:
Então ela imaginou que ela tava viva! (L., 11 anos)

E a morte de animais também surgiu:


Eu tinha um cachorro que chamava. Rex, ele morreu. Aí veio outro,
chamado Rabisco, morreu. (L., 9 anos)

Igual a galinha que eu matei semana passada... a galinha veio, agarrei


o pescoço dela e cortei. (R., 9 anos)

É um bicho grande... grande... bravo... O homem bate e mata ele.


(G., 4 anos) desenho 10

Eu tava pintando a guerra... aí o tanque matou os dois, mas só que o


tanque também morreu porque o avião acertou uma bomba... O tanque
112 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

destruiu a nave. Só sobrou a cidade.(M., 8 anos) desenho 11

É a corrida de morte... um mata o outro. (D., 10 anos) desenho 12

O tema surgiu também nos relatos não só de situações vividas,


mas imaginadas:
Eu fiquei no laboratório... eu fiquei cuidando de um rato de laboratório
...um dia, ficou com fome, daí fugiu prá procurar coisas, daí deram
um calmante prá ele... eu tava cuidando porque ele tava doente...
Acharam ele de volta... aí fizeram um tratamento muito mais forte
que antes, deram outro remédio prá ele... um dia pro outro ele pode
morrer... Tem uma doença rara... se um tratamento não der certo,
morre (R., 9 anos)

E surgiu diretamente associada à doença, quando perguntei em


uma sessão do grupo a primeira idéia que vinha em suas cabeças
quando pensavam nas suas doenças e em seus tratamentos:
Penso em morte... eu não sei do jeito que é a morte... Por que a gente
tem que vencer a morte.(L., 11 anos) desenho 13

4. Algumas considerações sobre o


grupo de apoio psicológico

A consideração dos temas que emergiram no transcorrer das


sessões sugere que as crianças mostram que a experiência de convi-
ver com seu adoecimento e as medidas terapêuticas integra-se a suas
vidas de modo global. Suas identidades pessoais, assim como suas
concepções a respeito de seu próprio corpo, passam a caracterizar-se
por aspectos ligados a suas doenças e suas maneiras peculiares de
manifestá-las. Seus mundos de relações, envolvendo a família, a es-
cola, a comunidade na qual encontram-se inseridos, passam a ser
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 113

experienciados também com este novo dado: conviver com a situa-


ção de estar com câncer implica em conviver continuamente com
limitações e possibilidades que são próprias das peculiaridades deste
grupo de doenças.
A doença e o tratamento são vivenciados em vários de seus aspectos,
e a multiplicidade destas vivências advém da complexidade que é própria
do câncer infantil. As crianças trazem as dificuldades de comunicação,
tão presentes nos contextos assistenciais e familiares, mostrando suas pos-
sibilidades de compreensão e enfrentamento das variadas situações vivi-
das. Retomam seus conhecimentos sobre os procedimentos e as con-
sequências freqüentes que configuram os tratamentos, revelando suas
capacidades de assimilar o universo assisten-cial em sua complexidade.
A morte, foco de preocupação e reflexão nas sessões grupais,
coloca-se em evidência tão logo define-se o diagnóstico. As crianças
passam a conviver com as questões relacionadas à morte através da
evolução clínica de seus companheiros, e passam a observar, na rea-
lidade que as cerca, a sua ocorrência entre animais e pessoas, conhe-
cidas ou não. A possibilidade da própria morte, enquanto desfecho
de um processo de adoecimento grave e incerto — a despeito dos
avanços nos tratamentos e do crescimento da perspectiva de cura —
é enfrentada continuamente. As vivências mostram este enfren-
tamento: as crianças manifestam idéias, reflexões, fantasias e senti-
mentos relacionados à morte nas sessões grupais.
Assim, a vida, em todas suas dimensões temporais e espaciais é
o foco central das vivências das crianças no grupo: suas histórias
pessoais, a ocorrência da doença, o desenrolar do tratamento, suas
relações no contexto familiar e social mais amplo (escola e comuni-
dade) e a morte enquanto parte integrante da existência humana
são os temas que emergem e dão oportunidade de troca de experiên-
cias e apoio mútuo nas sessões grupais.
Considerando o grupo em sua ocorrência como foco de interesse,
uma outra possível dimensão de análise das sessões, é possível obser-
var que surgiram assuntos relacionados ao próprio grupo enquanto
atividade desenvolvida, espaço terapêutico construído pelas crianças
participantes e por mim.
Todas as sessões foram iniciadas com uma breve explicação mi-
nha a respeito de nossos objetivos e de nossas possibilidades e limita-
114 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

ções — uso do local, horários, materiais disponíveis. Parte conside-


rável das sessões foram constituídas pela exploração dos materiais
disponíveis pelas crianças, que faziam comentários e escolhiam as
atividades que desenvolveriam coletivamente.
Algumas sessões revelaram explicitamente limitações de minhas
propostas e dos materiais disponíveis . A participação de uma crian-
ça com deficiência visual chamou a minha atenção para a necessida-
de de ampliar minha proposta — desenhar e/ ou brincar. Passei a
propor desenhos, brincar, conversar ou fazer o que desejassem.
Em outras ocasiões as crianças reclamaram e pediram que eu
acrescentasse outros itens aos materiais: jogos, gibis, revistas, novas
tintas, etc. Foram pedidos que ajudavam-me a adequar minha pro-
posta aos desejos e à participação efetiva das crianças.
As crianças usaram parte significativa das sessões para trocar
impressões e compartilhar o que faziam no momento — o aqui/agora
era, assim, o tema. As relações no decorrer das sessões caracteriza-
vam-se pela cooperação e pela integração entre os participantes. A
solidariedade e a ajuda mútua foram características presentes em todas
as sessões grupais realizadas.
Em algumas ocasiões, foi necessária a pontuação de limites em
certas situações e comportamentos, visando a manutenção do funcio-
namento do grupo. Foram diversas vezes que precisei organizar as
atividades e integrar as conversas no sentido de manter as crianças
agrupadas. Foram diversas também as ocasiões em que precisei deli-
mitar o uso dos materiais — que, coletivos, deveriam ser utilizados
por todos durante as sessões grupais.
O desejo de levar o material prá casa surgia e minhas interven-
ções continham tal desejo esclarecendo seus motivos — que as cri-
anças compreendiam sem problemas. Devido ao espaço físico, às ve-
zes pequeno e insuficiente para acomodar os participantes do grupo,
foi necessário, por diversas vezes, unificar as atividades em desenvol-
vimento. As reações à pontuação de limites geralmente eram de co-
operação, mas surgiram outras:
Raiva:
– Ô tia, vou te chamar de polícia, vou te encapotar. Você vai ver...
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 115

– Por quê?

– Porque você manda em mim.

A explicação:
– Puxa, você está agitando muito hoje!

– Tô encapetado!

– Por que está encapetando todo mundo? O que será que está
acontecendo?

– Um dia, se você aparecer lá em casa, você vai ver como é que é.

A saída:
– Prá você participar você tem que ficar aqui dentro da sala, joga
este aviãozinho prá lá e feche a porta.

– Então vou brincar sozinho prá lá (e sai)

Surgiram questionamentos sobre o destino das produções feitas


durante as sessões e deixadas comigo (à criança sempre foi dada a
opção de levar suas produções) e protestos em relação ao término
das sessões. É interessante notar que à medida que o grupo foi se
restabelecendo enquanto uma rotina para as crianças que, quando
retornavam no dia de sua ocorrência já vinham manifestando o de-
sejo dele participar, foi também incorporando-se nas falas das crian-
ças o brincar enquanto motivo do retorno ao hospital.
O grupo foi, no transcorrer de sua ocorrência, constituindo-se
enquanto um espaço terapêutico no qual os desejos eram ouvidos,
acolhidos, respeitados, compartilhados, limitados e contidos — e neste
processo, sua importância enquanto espaço que possibilitava o reco-
nhecimento de si e do outro, com suas limitações e possibilidades, foi
crescente.
Conhecer e reconhecer crianças com diversas doenças, diversas
experiências, em diferentes etapas de tratamento foi uma possibili-
116 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

dade trazida pelas sessões grupais. As crianças, muitas vezes resgata-


vam em suas memórias encontros e experiências vividas com seus
companheiros de tratamento — tarefa difícil de ser realizada nos
corredores do ambulatório ou nos quartos isolados da enfermaria.
Parece que já vi esta carinha, a carinha dela em algum lugar.
(M., 8 anos)

Agora eu lembro (dele) porque na hora que nós encontrou ali eu não
lembrava, agora eu lembro. (B., 14 anos)

O grupo revelou-se também como um espaço propício para a


emergência de habilidades particulares da criança — assim, como
um momento no qual a própria criança conhecia algo a seu respeito
e compartilhava com outras crianças tal reconhecimento, abrindo a
possibilidade de aprendizagem através da experiência.
As atividades desenvolvidas durante as sessões, revelaram que
o fazer grupal assumia função psicológica e emocional importante.
No aqui/agora da sessão, o não dito por vezes revelava-se a dimensão
mais significativa do encontro das crianças naquele momento.
Exemplo ilustrativo é a sessão na qual B., 14 anos,vivendo sua
fase terminal após enfrentar um tumor de sistema nervoso central
durante 7 anos, participou. Debilitada, sem poder movimentar as
pernas e braços, entrou deitada numa maca, na qual permaneceu.
Foi rodeada por nós. M., 14 anos, propôs fazer uma dobradura, um
balão. Propus que depois B. escolhesse cores, e C., 7 anos, pintaria
conforme suas escolhas, o balão. E foi feito assim. Fizemos juntos a
proposta — num clima de cooperação e acolhimento; pudemos re-
almente estar com B. num momento tão difícil e delicado, e o fize-
mos através da atividade grupal.
Assim, no grupo, as crianças com câncer desvelam suas idéias e
seus sentimentos em relação às experiências que vivem. Trata-se, pois,
de um espaço privilegiado de compreensão do mundo vivencial de
seus participantes, rica fonte de investigação da dimensão psicológica
do adoecimento e enfrentamento das situações a ele relacionadas.
No grupo, as crianças convivem com o outro, companheiro na
trajetória de enfrentamento do tratamento do câncer, e com si pró-
prio — ventilando o que pensam e o que sentem, tornando-se mais
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 117

conhecedoras da multiplicidade de aspectos que configura momento


de vida tão peculiar, que requer um processo de adaptação constante
no tocante às novas e imprevisíveis contigências da evolução de sua
doença e tratamento.

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122 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Desenho 1

Desenho 2
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 123

Desenho 3

Desenho 4
124 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Desenho 5

Desenho 6
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 125

Desenho 7

Desenho 9
126 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Desenho 10

Desenho 11
ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICA A CRIANÇAS COM CÂNCER-OS GRUPOS DE APOIO 127

Desenho 12

Desenho 13
CAPÍTULO 3
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE
RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS
Joelma Ana Espíndula
Elizabeth Ranier Martins do Valle
1. Informações básicas sobre a recidiva
do câncer na criança

Nos últimos trinta anos o câncer infantil tornou-se uma doença


curável. O aumento dos sobreviventes iniciou-se na década de 60 e
este número vem crescendo nas décadas subseqüentes. No entanto,
nas duas últimas décadas está diminuindo a taxa de mortalidade e
aumentando a incidência da doença. A taxa de sobrevida após cinco
anos aumentou para 65% entre 1983 a 1989. São estimados 90% de
sobrevida para o linfoma de Hodgkin e o tumor de Wilms, e 70%
para leucemia linfoblástica aguda (BEHRMAN et al., 1997 e
LAMBERT, 1999). No Brasil, as taxas de cura são semelhantes às
descritas nos estudos estrangeiros. Foi feita uma estimativa no Brasil
para o ano 2000 prevendo que um em cada 1000 adultos, na sua
terceira década de vida, será um sobrevivente de câncer (LOPES et
al., 1999). Assim como os dados obtidos na população americana, de
que no geral, o número de sobreviventes nos Estados Unidos seria
aproximadamente de 200.000, e confirmam-se os mesmos dados pela
estimativa inglesa (STEVENS et al.,1998).
Estudo mais recente publicado pela SIOP (Sociedade Internacio-
nal de Oncologia Pediátrica) realizado por WILSTRA et al. (2001)
refere que no Brasil é registrado anualmente cerca de 10.000 novos
casos de câncer nas crianças e nos adolescentes. A incidência no
Brasil é de 145,4 casos por milhão por ano em crianças menores de
15 anos de idade. Já nos países desenvolvidos a incidência é de 105
casos por milhão por ano, enquanto que nos países em desenvolvi-
132 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

mento é de 125 casos por milhão por ano em crianças menores de


15 anos de idade (MAGRATA et al., 1997).
Dos casos tratados 50% podem recidivar, durante ou após o tra-
tamento, e isto preocupa o paciente, os pais e a equipe responsável
(BALLARD et al., 1997).
As pesquisas científicas definem a recorrência ou recidiva como
sendo o reaparecimento do câncer no mesmo local, próximo ao local
inicial regional, em outras áreas do corpo ou metastático ( HINDS et
al., 1996).
A recidiva do câncer em crianças freqüentemente tem sido es-
tudada na perspectiva biológica, médica e seus respectivos procedi-
mentos terapêuticos (MICHAEL & COPELAND, 1987;
ANDREOLI et al., 1994; PETRILLI, 1995; BEHRMAN et al., 1997;
HERSH et al., 1997; MARSH et al., 1997; SHAW et al., 1997;
WILSTRA et al., 2001), mas há poucos estudos no Brasil sobre a
experiência de mães que enfrentam o impacto da recidiva em seu
filho já curado ou durante o tratamento e como ele reage (PERINA,
1992; GIMENES, 1998; VALLE, 1997; ARRAIS & ARAÚJO, 1999;
LOPES et al., 1999; MOREIRA & VALLE, 1999). No exterior, en-
contram-se vários estudos a esse respeito, podendo ser menciona-
dos: HINDS et al., 1996; BALLARD et al., 1997; GROOTENHUIS
& LAST, 1997; HERSH et al., 1997; KOOPMEINERS et al., 1997;
YATES et al., 1999).
O quadro sanitário brasileiro é complexo e, em se tratando da
infância, as doenças respiratórias, infecto-contagiosas, aids e
neoplasias surgem como as principais causas internas de morte, não
se considerando entre elas as provocadas por acidentes e traumas
(MONTEIRO et al., 1996).
O câncer infantil, no Brasil, representa a quarta causa de morte
entre crianças de 1 a 14 anos de idade, um índice preocupante. Nos
países desenvolvidos está em segundo lugar, perdendo somente para
os acidentes e os traumatismos (LAMBERT, 1999). O câncer é con-
siderado uma doença de primeiro mundo, embora no Brasil ocorra
grande incidência dessa doença em crianças.
A proporção de mortalidade de câncer infantil na faixa etária de
0 a 9 anos de idade é de 700 meninos para 550 meninas, e de 10 a 19
anos de idade se mantém para o sexo feminino e aumenta para 800
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 133

no sexo masculino (PASCALICCHIO et al., 2000). Neste estudo


observa-se uma alta porcentagem de óbitos pelas neoplasias, segun-
do os índices do IBGE (Pesquisa de Assistência Médico-Sanitária).
No Brasil, o total de óbitos por neoplasias é de 13,4% em ambos os
sexos e em todas as faixas etárias. A região Sul possui a maior taxa
com 16,4%, seguida logo depois pela região Sudeste com 13,6%. A
região Centro-Oeste apresenta 12%, a região Norte, 11,2. A taxa
menor é a da região Nordeste, com 10,6%. Nesta última região, a
maior incidência de morte entre as crianças é devido à desnutrição.

2. Tratamento

O câncer infantil, embora não possa ser prevenido como os cân-


ceres em adultos, é mais sensível aos tratamentos, facilitando a cura.
Os estudos colocam que a grande arma neste combate é o diagnóstico
precoce. O conhecimento das biologias dos tumores tem facilitado a
determinação de certas condutas terapêuticas. Mesmo com o auxílio
da biologia molecular é difícil de ocorrer o diagnóstico precoce, por-
que a doença às vezes não dá sinais e estes só aparecem quando a
criança apresenta um quadro avançado de câncer (PETRILLI, 1995).
Anteriormente era considerado uma doença fatal, aguda. Atual-
mente é considerado uma doença com características de doença crô-
nica, mas a medicina moderna já consegue a cura para diferentes
tipos câncer. Pode-se dizer que a cada cem crianças com diagnóstico
de câncer, tratadas adequadamente por uma equipe em um centro
especializado, a chance de cura é de 70% (EPELMAN, 1995; MA-
NUAL DE CONDUTAS..., 1997; LOPES et al., 1999).
O diagnóstico deve ser informado à família e à criança de ma-
neira adequada pelo médico oncologista pediátrico responsável. Caso
a família decida não falar à criança, cabe ao médico respeitar a decisão
familiar, embora seja fundamental que a criança tenha conhecimen-
to disso, compreendendo a necessidade imediata da hospitalização
para iniciar um tratamento que é feito através de procedimentos
134 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

terapêuticos invasivos, agressivos e dolorosos. Neste momento, a fa-


mília leva um choque e vivencia reações emocionais intensas frente
ao diagnóstico, o que mobiliza tanto a vida da criança como de toda
a família. Os pais vivenciam sentimentos de dúvidas, medo e insegu-
rança quanto à expectativa de vida da criança doente (VALLE, 1997).
Quando a criança não é informada sobre a necessidade do trata-
mento, podem ser despertados nela sentimentos de punição ou fanta-
sias do tipo meus pais não me amam mais. Ao informar o diagnóstico,
devem ser considerados a sua idade e o seu nível cognitivo, afetivo e
social (BESSA, 1998 e VENDRÚSCOLO, 1998).
Para conhecer a criança é preciso investigar como ocorreu o seu
desenvolvimento. Quando se fala no desenvolvimento da criança é
importante saber como foram dados os primeiros cuidados básicos
(higiene, alimentação, excreção e afeto) na relação mãe-filho, pois é
isto que determina a formação da personalidade da criança e seus
relacionamentos posteriores. O modo como viveu a sua vida anterior
à doença, ajudará a criança a enfrentar melhor as situações de crise e
as possíveis perdas (BOWLBY, 1988).
O tratamento é específico para cada paciente e é indicado pelo
médico, de acordo com o tipo de câncer, com o histórico de saúde da
criança, seu estado e a extensão da doença (PETRILLI, 1995). Estu-
dos mostram que pacientes com recidiva têm diminuído a chance de
cura. Sabe-se que a recidiva de câncer pode levar à morte, mas é pas-
sível de cura em muitos casos.
O paciente em tratamento pode estar em remissão completa ou
parcial. Remissão significa a parada do processo cancerígeno, podendo
ser temporária ou permanente. Quando a remissão acontece, regridem
os sintomas e volta a situação física ao normal. Nas remissões extensas
é natural a família se tranqüilizar, embora saiba que a doença pode
voltar. Há remissões que ocorrem parcialmente, pois alguns sinais po-
dem não desaparecer inteiramente. Então, o paciente será submetido
novamente a um novo procedimento terapêutico. Quando isto ocorre
é um momento difícil de suportar para a família que passa a manter
atenta vigilância à criança. Aceitar e compreender a ambivalência deste
tratamento gera um estresse emocional contínuo, principalmente se a
doença recidiva. Aí é preciso submeter a criança a outro tratamento
terapêutico, e quando a cura não ocorre é possível manter o paciente
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 135

através do tratamento paliativo, dando-lhe uma sobrevida significati-


va (MANUAL DE CONDUTAS..., 1997).
É aconselhável, antes de iniciar o tratamento, que uma equipe
realmente capacitada a lidar com os seres humanos fragilizados pelo
câncer e pela hospitalização faça um trabalho preventivo para evitar fan-
tasias e sentimentos frente ao desconhecido, informando ao paciente e à
família os procedimentos invasivos a serem realizados, numa lingua-
gem que possa ser acessível e compreendida por eles, evitando falta
de entendimento e preconceitos. Sabe-se que a terapêutica contra o
câncer não é fácil. Para salvar uma vida realizam-se muitas manobras
invasivas, agressivas e desconfortáveis para o paciente.
O tratamento compõe-se de duas fases: a indução e a manutenção.
A primeira é a fase inicial em que o paciente deve ser hospitalizado
imediatamente para tratar-se, e a segunda, a manutenção, adminis-
trada no ambulatório sem internação, a não ser que ocorra alguma
intercorrência clínica e seja preciso interná-lo. A desospitalização vem
sendo feita no Brasil com objetivos de oferecer um atendimento perso-
nalizado ao doente, além de diminuir os riscos de infecção e aumentar a
disponibilidade de leitos nos hospitais. A equipe procura incentivar
que a criança permaneça menos tempo no hospital e retorne às suas
atividades externas, como a escola, propiciando uma qualidade de vida
compatível ao seu desenvolvimento (BEHRMAN et al., 1997; MA-
NUAL DE CONDUTAS..., 1997; GAZETA, 1999).
LIMA (1995), ao discutir os cuidados com a criança e o adoles-
cente com câncer e sua família, afirma que problemas diversos devidos
ao longo período de internação, reinternações freqüentes, terapêu-
tica agressiva, efeitos colaterais ocorridos pelo tratamento ou
hospitalização podem causar dor e estresse em todos.
Alguns autores descrevem os principais métodos de tratamento
(ANDREOLI et al., 1994; BEHRMAN et al.,1997; MANUAL DE
CONDUTAS..., 1997):
– Cirurgia: considerada eficiente para diversas espécies de cân-
cer, porque permite a extirpação do tumor. Tem caráter paliativo em
doenças metastáticas avançadas.
– Radioterapia: Pode ser uma modalidade curativa. Faz parte de
vários protocolos de tratamento de leucemia, tumor do sistema ner-
voso central, linfoma de hodgkin. Também é utilizada para o trata-
136 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

mento paliativo, visando aliviar a dor e assim é considerado um ins-


trumento terapêutico para melhorar a condição de vida do paciente
com tumores incuráveis. A radioterapia tem o efeito de fazer a célula
perder a capacidade reprodutiva. É feita através da radiação local,
seja por raio X, rádio, cobalto 60 ou outras substâncias radioativas.
Da intolerância tissular à radiação podem ocorrer vômito, diarréia,
fadiga, febre, necroses que lesam partes de cérebro, podendo ocorrer
perdas da locomoção, de memória e dificuldade de aprendizagem.
Tardiamente, pode causar lesão irreversível de órgãos e as limitações
vão depender do órgão afetado e da gravidade da lesão.
– Quimioterapia: ocorre por via oral, intramuscular, endovenosa
ou intratecal, correspondendo à administração de uma ou várias drogas
combinadas. A quimioterapia elimina ou retarda o ciclo de produção
das células, reduzindo a progressão da doença. Na prática, a
quimioterapia já produziu curas em vários processos malignos avan-
çados e remissões significativas em muitos outros. Pode causar os
seguintes efeitos tóxicos imediatos: febre, mal-estar, mucosite, mielos-
supressão, calafrios, anorexia, náuseas, vômitos, fraqueza, anemia,
fadiga, ou mediatos: irregularidade menstrual, redução da fertilidade
no homem, esterilidade, queda de cabelo e alterações neurológicas,
gastrointestinais, cardíacas, renais, dentre outros.
VALLE & FRANÇOSO (1999) descrevem que o tratamento
quimioterápico aparece como um dos temas mais dolorosos e noci-
vos para as crianças enfermas, motivo de grande sofrimento para as
mães, causando nos envolvidos dores, tensões, medos e dúvidas. Um
estudo realizado por estas autoras com 12 crianças nessa situação
observam que o sofrimento inicia-se pela expectativa criada pelo
relacionamento com outras crianças que já vivenciaram o procedi-
mento, pelos comentários vindos dos adultos, junto com a própria
experiência. Para amenizar desconfortos sugerem informar horário e
local da administração e estes serem respeitados. A previsibilidade
de controle dos acontecimentos diminui a ansiedade e a fantasia,
permitindo enfrentar melhor a realidade.
– Transplante da medula óssea: tem o objetivo de substituir as
células anormais por progenitores hematopoiéticos medulares nor-
mais ou “resgatar” o paciente após receber doses mais altas que o
de costume da terapia ablativa medular. Existem dois tipos de trans-
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 137

plante de medula óssea: o autólogo e o alogênico. No transplante de


medula óssea autólogo, o doador é o próprio paciente. Inicialmente,
colhe-se a medula óssea depois dele ter recebido a quimioterapia
intensiva. Este tipo de transplante é benéfico em situações em que
as toxicidades hematológicas limitam a terapia, e o aumento da
dose pode oferecer melhores resultados, como por exemplo, na leu-
cemia, neuroblastoma, doença de Hodgkin, linfoma não-Hodgkin e
tumores cerebrais. Ela é reservada como “terapia de resgate” após
ocorrer a recidiva. Um problema que acontece neste procedimento é o
fato de que pode haver células malignas residuais na medula óssea
coletada e isto favorecer uma nova recidiva, principalmente em pa-
cientes com câncer hematopoiético ou neuroblastoma.
O transplante de medula óssea alogênico é obtido por um doador
que tenha uma maior compatibilidade com o paciente. O risco desse
procedimento é maior do que o transplante da medula óssea autó-
logo porque o paciente rejeita a medula óssea recebida pelo doador.
Nesses transplantes, utilizam a quimioterapia e/ou irradiação não
apenas para erradicar a neoplasia maligna, como também para
combater o sistema imune do receptor para que possa ocorrer o
enxerto.
Após o transplante, todos os pacientes apresentam alto risco de
contrair infecções bacteriana ou fúngica, potencialmente fatais, até
ocorrer recuperação da função imune.
– Imunoterapia: tem a função de estimular as principais defesas
do organismo pelo fortalecimento de anticorpos celulares.
Essas modalidades terapêuticas podem ser utilizadas em conjun-
to ou isoladamente na remissão da doença. Os efeitos deletérios des-
sas drogas podem manifestar-se depois de 05 a 15 anos. Isto faz com
que o pediatra oncologista fique atento às informações recentes, pro-
curando afastar os riscos secundários tardios do desenvolvimento,
da reprodução e do aparecimento de segunda neoplasia.
O tratamento na criança, na maioria das vezes, é longo, dege-
nerativo e o convívio com as pessoas envolvidas está cercado por
muita angústia. Há casos em que o tratamento é realizado com a
cirurgia e alguns ciclos de quimioterapia e o paciente obtém a cura
138 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

rapidamente, recebendo a alta clínica e retornando ao hospital ape-


nas para revisão ambulatorial. Quando ocorre recidiva de câncer
na criança é feita uma nova avaliação médica e novos procedimen-
tos serão tentados imediatamente, como outra cirurgia, transplante
da medula óssea, quimioterapia e/ou radioterapia. Tem-se indicado
para recidiva de câncer ou metástase o transplante de medula
óssea com maior freqüência e mais precocemente para certas
neoplasias, o que está dando bons resultados (MANUAL DE CON-
DUTAS..., 1997).
LOPES et al. (1999) referem-se às recidivas como um mo-
mento de combate pela vida a qualquer preço. Pode-se perder uma
luta, mas não a guerra. Quantas crianças e adolescentes já inicia-
ram outras batalhas com novas “armas” de tratamento? Uma reci-
diva tratada, nova vitória. E se a doença voltar a crescer? Quando
é o momento de parar de lutar pela vida? É um momento difícil
para os médicos não encontrarem novas soluções para a cura da
doença, pois algumas vezes nada mais resta fazer nesse sentido.
Sentem compaixão pelo paciente terminal e desapontamento. Para
amenizar a dor e o sofrimento do paciente nessa situação, os médi-
cos oferecem os cuidados paliativos, mas o que a criança quer é
ficar próximo das pessoas a quem ama, deseja ser acompanhada
pelos pais, pela equipe e pelos amigos até o fim, dando um sentido
à sua existência.
Os estudos mostram que a equipe está mais preparada para dar
apoio durante o diagnóstico da doença, e informações sobre as possi-
bilidades de cura e de tratamento do que durante a progressão do
câncer ou a recidiva. Neste momento, médicos e enfermeiras ten-
dem a afastar-se física e mentalmente desta situação (PERINA, 1994
e LOPES et al., 1999).
Torna-se fundamental fazer intervenções psicológicas de apoio
que possam ajudar o paciente e a família a assimilar e elaborar as
informações recebidas, durante todo o tratamento, para que
possam lidar melhor com o cotidiano hospitalar, principalmente por
ocasião da recidiva, quando é necessário recomeçar uma nova
terapêutica.
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 139

3. Os pais frente à recidiva de câncer


em seus filhos

O câncer infantil é uma doença que pode progredir severamente


levando à cura ou à morte. É passível de tratamento e recuperação,
mas culturalmente ainda carrega o estigma da morte. O medo da
morte está sempre presente para a criança e para a família desde o
diagnóstico da doença. Mesmo durante ou após o tratamento
permanece o pensamento de uma recaída e preocupações de como
“enfrentar o câncer”, “lidar com a incapacidade” ou “encarar uma
doença que ameaça a vida” que podem criar uma visão nebulosa,
impedindo uma atenção dirigida para enfrentar a doença e encon-
trar um conforto para viver as diferentes fases do tratamento.
No momento em que os pais recebem o diagnóstico da recidiva
oncológica, vivenciam um choque, um desespero significativo, porque
se sentem impossibilitados de fazer qualquer coisa naquele momento.
A partir daí, procuram lutar contra essa situação tão ameaçadora e
angustiante que os paralisa momentaneamente, mas que não os impe-
de de buscar outras alternativas. As observações feitas por PERINA
(1992) e HINDS et al. (1996) mostram que os pais têm uma atitude
que flutua entre a rejeição da volta da doença e a aceitação dessa nova
fase de tratamento. A recidiva é considerada uma segunda crise que
pode ser mais devastadora que o diagnóstico inicial, pois já se sabe o
que terá de ser enfrentado. Os pais descrevem a primeira recidiva como
o tempo mais difícil, principalmente quando já tinha ocorrido um apa-
rente sucesso no tratamento. Eles sabem que a chance de cura dimi-
nui drasticamente. Esse momento caracteriza-se por tumulto,
reavaliação, mudança e maior entropia familiar.
Na recidiva, tanto a criança como a família têm consciência de
que o tratamento do câncer não funcionou e de que todos os seus es-
forços e sofrimentos foram em vão. Vêem-se frente à dura realidade
de que a doença continua existindo e que precisa ser enfrentada
novamente. Os pais conversam com os médicos responsáveis para
certificarem-se das opções de tratamento, apresentando a decisão
140 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

urgente de reiniciá-lo. Passam a questionar todo o processo que têm


de enfrentar, buscando compreender o sentido que possa haver em
ter um filho que não consegue “escapar” do câncer: Por que com meu
filho? É uma provação para eu deixar de ser ambicioso(a)? É importante
que se dê espaço para ouvir a história que a mãe ou outro familiar
tem para contar e permitir que os membros da família tomem consciência
da real situação e reflitam sobre ela. Como no diagnóstico, alguns
autores referem, no período do diagnóstico da recidiva, sentimentos
de impotência, ansiedade, depressão, culpa, raiva, tristeza, abando-
no, medo da separação e da perda do filho. Isto impossibilita aos pais
estarem inteiros a seu lado, podendo ter sentimentos de que fracas-
saram na sua função (NACIONAL CANCER INSTITUTE, 1980;
PERINA, 1994; HINDS et al.,1996; HERSH et al., 1997; VALLE,
1997; LOPES et al., 1999). Querendo ou não, a família manifesta
sua pena, sua dor e culpa, decorrentes da angústia desse luto
antecipatório.
Estudos mostram que as famílias muitas vezes oscilam entre um
desejo de intimidade e um impulso de afastar-se emocionalmente da
criança gravemente doente porque não conseguem lidar bem com a
própria dor. Pensar na perspectiva da perda do filho ou vê-lo no
caixão pode gerar dificuldades no equilíbrio familiar, ao invés de
direcionar a energia para tarefas práticas e soluções de problemas.
Em decorrência disso, a criança doente tende a se afastar, calando-se,
para poupar de seu sofrimento a mãe e os outros membros da família
(ROLLAND, 1998).
Os pais sabem que voltar novamente ao mundo hospitalar é o
único caminho para salvar a vida da criança. Nesse momento ocorre
uma angústia avassaladora, envolvendo todos os membros da família
que se confrontam com a possibilidade de que a morte do filho tor-
ne-se iminente (VALLE, 1997).
O retorno à rotina hospitalar altera, novamente, toda a dinâmica
familiar. Para a criança hospitalizada vão ocorrer novamente perdas,
como de privacidade e de identidade, a separação de casa, da escola,
dos amigos, solidão. Principalmente para a pessoa que acompanha a
criança doente, geralmente a mãe, ocorre um afastamento de casa,
dos outros filhos e do marido, com mudança na sua rotina cotidiana
(VALLE, 1997).
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 141

Normalmente é a mãe que assume a exigência das novas tarefas


do tratamento. Novamente, ela tem seu estado de sofrimento e desor-
ganização centralizado na doença, às vezes não tendo energia suficiente
e nem condições psicológicas para tudo isso, o que lhe causa senti-
mentos de impotência e cansaço em sua maratona. Ela se percebe
incapaz de executar todas essas obrigações sozinhas, levando-a a bus-
car ajuda de familiares, amigos e dos profissionais (VALLE, 1997). A
equipe pode ajudar os pais a serem práticos e a organizarem a rotina
diária do tratamento, para que possam cuidar melhor de seu filho.
Os profissionais, quando compreendem as famílias, ajudam os
pacientes a encontrarem significados que contribuem para o enfren-
tamento da situação, mesmo diante da incerteza do tratamento que
deixa tanto o paciente como a família preocupados a todo instante. A
incerteza não está somente nos aspectos clínicos da progressão da
doença. Está também na dificuldade de comunicação dos profissionais
de saúde, principalmente quando o médico utiliza a complexa lingua-
gem técnica ao dar o diagnóstico da recidiva do câncer e quais são as
reais possibilidades de cura. Com isto, pode-se questionar como, por
que razão e sob quais circunstâncias as estratégias da assistência aos
familiares são eficientes. Eles querem simplesmente ser escutados e
compreendidos em suas angústias (YATES & STETZ, 1999).
A meta dos pais é buscar junto dos médicos e dos outros mem-
bros da equipe melhores resultados de tratamento para lutar contra a
recidiva em seu filho, enquanto que no seu pensamento passa a preo-
cupação da possibilidade de morte e de se prepararem para ela.
Quando a criança ou o jovem em recaída desejam continuar o
tratamento, mesmo com sintomas ruins, como a dor, influenciam as
atitudes alternantes dos pais frente à situação, ajudando-os, pois, há
um padrão adaptativo na luta pela cura. Eles procuram fazer de tudo
para salvar seu filho e, simultaneamente, consideram a possibilidade
do tratamento falhar e da sua criança morrer (HINDS et al., 1996).
Geralmente as crianças mostram depressões transitórias, episó-
dios de revolta, mas quase sempre mostram coragem, habilidade para
falar sobre sua doença, seu tratamento, os efeitos colaterais, uma
incrível tolerância à dor e à incerteza da cura (NACIONAL
CANCER INSTITUTE, 1980). As técnicas de enfrentamento psi-
cológico — coping, principalmente durante a recidiva, exigem muita
142 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

força, sendo influenciadas pelas situações emergentes e pelos recur-


sos pessoais (ROLLAND, 1995 e GIMENES, 1998).
Um estudo sobre enfrentamento feito com 33 acompanhantes
descreve o processo interativo dos pais com o filho doente que se
inicia com o diagnóstico da recidiva do câncer até a preparação para
a morte. Este processo é dividido em quatro componentes: choque de
adaptação, monitorização da situação, atitude alternante e decisões dos
pais de lutarem até um certo limite com os esforços curativos e palia-
tivos. Essas fases não são vividas pelos pais de forma linear, passando
sucessivamente de um processo para o outro, movendo-se para uma
direção ou outra, dependendo da reação do momento (HINDS et
al., 1996, p. 149).
O primeiro componente, o choque de adaptação, refere-se ao
momento do diagnóstico da recidiva. Quando o médico fala sobre as
menores possibilidades de cura, os pais passam por um processo
adaptativo que os ajuda a assimilar a realidade, mesmo estando, tan-
to a criança como a mãe, em um momento incerto.
O segundo componente, a monitorização da situação, representa
o esforço dos pais em avaliarem a recidiva da doença e o seu impacto
no filho. No estudo citado, durante as entrevistas ocorreram respos-
tas que definiam os esforços dos pais como compreensivos, seletivos
e cautelosos para definir a gravidade da situação da recaída. Eles
usavam duas categorias de abordagens: percepção seletiva e conduta
expectante para monitorizar o estado de saúde do filho. A percepção
seletiva é considerada uma estratégia de enfrentamento das mães
que permite fazer um balanceamento entre sua necessidade de saber
o que realmente estava acontecendo e a de afastar a idéia esmaga-
dora do seu filho próximo da morte. A todo momento elaboravam a
experiência e davam um significado a ela. Após um período exaus-
tivo e de poucos progressos, as mães questionavam porque os seus
filhos tiveram a recidiva. Como não encontravam respostas concretas,
elas cessavam de se interrogar por acreditar em uma força maior,
espiritual, por detrás dessa situação. Neste estudo foram entrevis-
tados alguns pais, mas estes não utilizaram a estratégia da percepção
seletiva. Mantinham uma conduta expectante, passiva, sem grandes
buscas de informações e questionamentos. Preferiam manter-se dis-
tantes do problema, deixando a mãe assumir e enfrentar a situação
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 143

de frente. Eles continuavam seu trabalho de provedor da família, o


que não quer dizer que não se preocupavam com o filho (HINDS et
al., 1996).
O terceiro componente chamado de atitude alternante foi defi-
nido “como o tempo ou os tempos” em que os pais experienciavam
um padrão cognitivo desconfortável e quase inevitável de alternância
entre as duas possibilidades: a luta pela cura e a possibilidade da
morte, no caso de o tratamento vir a fracassar. Os pais são capazes de
prever as tensões à medida em que se adaptam às incertezas das situa-
ções. Uma das mães assim se expressou, nesse estudo:
Me descobri pensando... sobre onde ele seria enterrado, quais as palavras
que iriam ser lidas? Depois pensei como vamos lutar... Eu nunca digo que
ele vai morrer, eu somente pensei que ambos os fins podem acontecer. O
que eu vou fazer se ele morrer? Eu digo prá ele lutar e ser forte. Penso
muitíssimo nos dois finais. (HINDS,1996, p. 151).

O componente final desse processo de enfrentamento é chamado


de limite das decisões dos pais (eyeing care — limiting decisions), envol-
vendo o seu reconhecimento quanto aos limites dos esforços cura-
tivos, paliativos e da participação deles na identificação desses limites.
Há duas categorias principais nesses componentes: lutar até um ponto
limite e temer de ter que tomar decisão. Eles se preparavam para a
morte, agora inevitável. Uma mãe disse:
Nós decidimos que vamos lutar até um ponto em que ele não souber
o que está se passando em torno dele (HINDS et al., 1996, p. 152).

Este estudo foi realizado com 33 pais e apenas 7 vivenciaram o


último componente, que era o das decisões. Os demais estavam pri-
mariamente engajados em monitorização da situação e atitudes
alternantes ( HINDS et al., 1996). Os autores mostraram no estudo
que os pais utilizaram alternativas de enfrentamento, considerando os
valores e as crenças espirituais favoráveis ao tratamento de seu filho.
Experimentaram uma desconfortável questão existencial de vida e de
morte, por si só difícil de aceitar, além de ainda ter que suportar a dor
da separação da pessoa amada. Os pais que se prepararam antecipa-
damente para a perda do filho encararam a morte de modo a não ficarem
144 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

paralisados diante dela. Os autores não encontraram negação da gra-


vidade da doença; pelo contrário, eles aderiram ao que fosse preciso e,
associado a isso, desenvolveram em si uma esperança com cautela.
Um outro estudo com pais mostra a dificuldade destes em aceitar a
fatalidade, negando-a até praticamente o final (PERINA, 1992).
Alguns estudos com pais cujos filhos se encontravam livres da
doença revelaram que a grande maioria deles esperava, com medo, uma
recidiva. A tensão se mostra presente tanto dentro da crise, quando a
criança está em tratamento, como quando a doença é superada e os pais
temem a recidiva. Não há uma certeza absoluta de que a cura será eter-
na. Permanece para sempre na mente dos pais a possibilidade de uma
recaída, por isto sentem dificuldades em pensar no futuro de seu filho
doente, vislumbrando apenas uma única alternativa: a volta do câncer.
Com isto não conseguem acomodar-se à cura. Alguns enfrentam me-
lhor a possibilidade de uma recidiva e se adaptam melhor ao período da
sobrevivência (PERINA, 1994; VALLE, 1997; VENDRÚSCOLO, 1998;
ARRAIS & ARAÚJO, 1999; LOPES et al., 1999). Esta ambigüidade é
relatada nos discursos de mães de criança que sobreviveu ao câncer.
Exemplo de uma fala:
Eu tenho medo, tenho uns fantasmas, né? De voltar a acontecer isso.
Mas seja o que Deus quiser, o meu medo é isso, de voltar, mas não sei
o que vou fazer, talvez eu esteja mais madura agora, na época eu era
muito jovem também (ARRAIS & ARAÚJO, 1999, p. 20).

Outro relato interessante foi de um pai que vivenciou a recidiva


em sua própria mãe e comparava esta situação com a possibilidade
da volta do câncer em seu filho. Ele disse:
...J. está bom, está com saúde... agora, achar que J. está totalmente
curado, para dizer a verdade, eu não acredito não. ...Ele está bom,
está com saúde. Mas minha mãe fez uma operação, tirou um tumor
também e ela viveu cinco, seis anos e, de uma hora para outra, morreu
...Então, eu não vou dizer que ele esteja totalmente curado! (ARRAIS
& ARAÚJO, 1999, p. 20).

O levantamento realizado por ARRAIS & ARAÚJO (1999) com


crianças curadas de câncer evidenciou um aumento da dependência
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 145

dos pais, diminuição do rendimento escolar, tendência a demonstrar


baixo interesse nos relacionamentos, ampla utilização de mecanis-
mos de defesa e negação, depressão residual, baixa auto-estima e
ansiedade. Elas se preocupavam mais com a saúde e o medo da reci-
diva permanecia presente no seu cotidiano e em suas fantasias. Po-
rém, com maior tempo de sobrevida desses pacientes, aumentaram o
otimismo e a esperança de estarem realmente curados. Informações
fornecidas aos pais proporcionavam a eles e aos pacientes sobreviven-
tes um enfrentamento e uma adaptação vividos com mais segurança,
fé e otimismo. Um relato de uma criança evidencia a dificuldade real
em lidar com o medo da recidiva da doença:
...Quando chamam você para revisão, aí você pensa: será que tudo
aquilo vai acontecer? ...aí, me dá um pouco de medo (ARRAIS,
ARAÚJO, 1999, p. 19).

Portanto, mesmo que a criança sobreviva e permaneça numa


“rotina normal”, tanto nela como na família, passa a idéia da possibi-
lidade de recidiva que permanece por um longo tempo mesmo após a
alta clínica. Conforme já exposto, a literatura mostra que os índices
de cura diminuem quando ocorre a recidiva (SHAVELZON, 1978;
PERINA, 1992; HINDS et al., 1996; LOPES et al., 1999).
Simbolicamente, é como se tivesse uma espada de Dâmocles so-
bre a cabeça deles e pudesse cair a qualquer momento. Na história,
Dâmocles era um súdito da corte do rei Dionísio. Ele tinha poder
absoluto e a sua palavra era a lei. Vivia sonhando em um dia ter tudo
que desejasse. Então, o rei permitiu-lhe vivenciar por uma dia a ex-
periência da angústia do poder. Enquanto usufruía das regalias do
poder, percebeu uma espada em cima do trono, presa por um fio de
crina de cavalo que poderia decepá-lo a qualquer momento. Esta
situação deixava-o angustiado e mostrava sentimentos de apreen-
são, medo, dúvidas e preocupação com o que poderia acontecer
(SHINYASHIKI, 1997). O mesmo acontece com os pais, pois, quando
conseguem a cura aparece a imagem do sucesso do tratamento
acoplada “à espada em cima da cabeça” (o medo da recidiva).
Então é importante que as crianças, mesmo curadas, tenham
acompanhamentos periódicos, aproximadamente dez anos após a alta
146 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

médica, porque, às vezes, a primeira recidiva é precedida por um


enorme intervalo de bem-estar (PERINA, 1992).
VALLE (1994; 1997) enfatiza que o amor e o cuidado são estra-
tégias de enfrentamento que ajudam sempre a consolar. As crianças
que experienciam um câncer, quer em uma primeira manifestação,
quer na recidiva ou qualquer fase do tratamento, solicitam o profis-
sional, mesmo que de modo implícito, e a proximidade afetiva sempre
será benéfica, porque cria uma relação reparadora e compreensiva.
Vários estudos com familiares mostraram que o modo como en-
frentam a situação de ter alguém com doença com características de
crônica, como o câncer, é buscar superar o sofrimento pela esperan-
ça de cura, otimismo e transmiti-las para o paciente enfermo
(BROMBERG, 1994b; DUPAS, 1997; LEWIS, 1990; VALLE, 1997;
LOPES et al., 1999).
Stotland (1969) apud BALLARD et al. (1997) descreve a espe-
rança como a probabilidade percebida de se alcançar um objetivo.
Esse autor menciona diferentes pesquisadores que enfocam a espe-
rança como um sentimento variável nos pacientes com câncer inicial
ou recidivado. A percepção das pessoas a respeito da recidiva do
câncer pode influenciar o seu nível de esperança. Por exemplo, se os
pacientes acreditam que a recidiva indica que eles agora irão morrer,
sua esperança poderia estar diminuída.
Os estudos relatam que é difícil manter a esperança com a
proximidade da morte. Ela oscila porque causa nos familiares muito
desgaste emocional, através das incertezas, do medo de separação,
do abandono e de sentimentos de ter fracassado como pais. É um
momento de grande estresse emocional, em que o doente se mostra
física e emocionalmente fragilizado. Os pais relatam a dificuldade de
falar com o filho sobre o seu estado. Sentem-se impotentes, insegu-
ros, ansiosos, o que impossibilita estarem inteiros a seu lado.
Frankl (1984) apud BALLARD et al. (1997) refere que a súbita
perda da esperança e da coragem resulta freqüentemente na morte.
ERSEK (1992) em seu trabalho com transplantados de medula ós-
sea, enfatizou que a esperança não diminuiu com os resultados do
diagnóstico e do tratamento. E esse contínuo senso de esperança foi
percebido como vital para os pacientes.
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 147

Mulheres com recidiva de câncer demonstram sentir as mesmas


dificuldades, os mesmos sentimentos dolorosos que as crianças
enfermas: têm esperança, desejam a cura da doença através da sub-
missão a um novo tratamento (LEWIS & DEAL, 1995 e BALLARD
et al., 1997).
KOOPMEINERS (1997) diz que a esperança é um agente
terapêutico eficaz e essencial como os anticorpos que protegem a
vida das pessoas. É o que permite aliviar uma parte do estresse emo-
cional e dar força aos familiares para que possam continuar convi-
vendo com o doente e ajudá-lo em seu cotidiano.
SHAVELZON (1978), em seu trabalho com adultos, observou
que a recidiva da doença vem acompanhada do reaparecimento de
sintomas psíquicos que já haviam passado e que são relacionados
com o modo de enfrentar a vida. Em outro estudo com mulheres
com câncer de mama que recidivou, GIMENES (1998) cita que as
reações emocionais dependem do modo de enfrentamento, da etapa
do desenvolvimento e do contexto sócio-familiar em que está inseri-
do o paciente.
Cada família tem suas características próprias de funcionamento,
suas crenças e sua história que servem de referencial para o sentido
de pertinência tão necessário para garantir o equilíbrio emocional do
ser humano (BROMBERG, 1994b e VALLE, 1994; 1997; 1999).
Assim, é fundamental os pais perceberem a sua história, tornando-se
responsáveis por ela, mesmo que venha permeada de inquietação e
angústia. Esses fatores vão determinar o modo de enfrentamento que
cada família tem, com mais ou menos esperança.
É fundamental que os profissionais tenham esperança e que sai-
bam transmiti-la a seus pacientes e familiares nas situações de recidiva.
Ela é um recurso e a principal força espiritual que os ajuda a suportar
essa doença considerada ingrata e injusta, visto que após o paciente
passar por uma série de procedimentos terapêuticos, se a doença
retornar, sabe-se que diminui a possibilidade de cura. Ainda assim os
pais criam expectativas de alcançar com todos as seus esforços me-
lhores resultados. Eles precisam da esperança para sentirem-se mais
seguros e fortalecidos para enfrentar a situação. Então, a troca de
informações entre a equipe multidisciplinar, a família e a criança
servirá de base para melhor compreender e fortalecer as relações in-
148 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

terpessoais no período da recidiva, e conseqüentemente todos se sen-


tirão mais capazes de dar uma assistência integrada à criança e à
família. Com isso é possível evitar que se sintam em desamparo, aban-
donadas, quando tratamentos curativos não funcionam mais e então
são sugeridos os paliativos pela equipe, no intuito, justamente, de
propiciar uma melhor qualidade de vida, quando o paciente não res-
ponde mais ao tratamento e a morte torna-se inevitável.
Diante da possibilidade da morte é importante que se tente man-
ter um diálogo aberto, seguro e sincero com a criança, com a família
e com outras pessoas significativas. Isto facilitaria a aceitação e aco-
modação da situação real (TORRES, 1999).
A compreensão da morte pela criança pode dar-se através de
palavras, desenhos, gestos, experiências, em que ela vai elaborando
o significado de sua própria morte. Quando a criança é ouvida por
um adulto, surge nela um sentimento de profundo respeito que vai
lhe dar autonomia e segurança para suportar a dor e o sofrimento.
Esta vivência faz com que adquira maturidade e crescimento
(KOVÁCS, 1992; FRANÇOSO, 1993; TORRES, 1999).
Bluebond — Langner (1978) apud TORRES (1999) mostra a
compreensão da morte como parte do ciclo da doença. Este autor fez
um estudo com crianças leucêmicas e concluiu que as crianças pas-
sam por cinco etapas de mudança em relação ao autoconceito. Na
primeira ela percebe a gravidade de sua doença pela dor e pelos efeitos
colaterais provocados pelas drogas. Na segunda etapa pensa que vai
melhorar com o tratamento. Na terceira etapa percebe seu corpo
definhando e que não adianta omitir os fatos. Na quarta, a criança
tem conhecimento do que está acontecendo com ela e transita em
direção a uma compreensão dos objetivos e procedimentos do trata-
mento, seja nos ciclos de recaída , seja na remissão da doença. Até
esse período, ainda não tem incorporada a possibilidade de sua morte.
Na última etapa mostra consciência de que essa possibilidade também
faz parte da doença, ocorrendo a internalização do prognóstico fatal.
Aí a criança atinge o conhecimento de que a morte é final e irreversível.
É importante deixar que o paciente siga seu processo. O câncer
tem um final lento, gradativo e assim há tempo de elaboração, o que
não significa abandono ou isolamento. Quando o final demora a acon-
tecer, os pais têm que adquirir forças para resgatar a própria vida e
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 149

reaprender a investir nela, cuidar de si, pensar e aceitar a morte,


senão morrem ao cuidar de seu filho.
O estudo de HINDS et al. (1996) registrou a intenção de pais
de se prepararem antecipadamente para a perda do filho. Eles dis-
seram que esse preparo ajudou-os a ter o controle sobre suas reações
emocionais frente à morte, de modo a não ficarem traumatizados e
paralisados diante dela. Uma mãe relatou:
Quanto mais eu me preparo pode ser que eu não consiga superar
melhor o início, mas penso na longa caminhada, você sabe, e isto
pode ajudar a facilitar as coisas prá mim (HINDS et al., 1996, p.151).

Worden (1991) apud (HINDS et al., 1996) observou, no


comportamento dos adultos, tristeza antecipatória diante da possibi-
lidade de morte de seu filho. Verificou que alguns pais não enca-
ravam a morte como inevitável porque algumas crianças respondiam
ao tratamento; outros questionavam temerosos seu preparo ativo para
a morte da criança, como se isso pudesse ser interpretado como falta
de fé e que Deus não realiza milagres.
A negação da morte é uma experiência a ser vivida e carecemos
de recursos que facilitem viver esse período (MELO & VALLE, 1995
e MELO, 1999). Quando a morte chega, é hora de a família elaborar
o luto, assim como a equipe de saúde, facilitando a elaboração dessa
questão existencial, apesar do sofrimento de todos os envolvidos
(KOVÁCS, 1992; BROMBERG, 1994a; ROLLAND, 1995, 1998).
A doença se torna mais suportável quando os pais fazem um
trabalho de luto progressivo, após ter cuidado da criança e dado o
melhor de si (RAIMBAULT, 1977 e VALLE, 1997). Estudiosos des-
ta questão ressaltam que para tentar resolver essa situação com mais
perspectiva e disposição, é preciso utilizar recursos externos, tais como
o apoio, o cuidado da equipe e dos familiares que facilitariam uma
maior mobilidade, flexibilidade para tolerar fortes estados emocio-
nais e reorganizá-los. Essa preparação é necessária para a dissolução
dos laços afetivos (BROMBERG, 1994).
Para KUBLER-ROSS (1969), o pouco tempo de vida que pode
restar significa reencontrar um sentido positivo de que há muito o que
fazer, como trazer a paz para dentro de si, o crescimento, a luz, a força
interior, a beleza, o sentimento de amor e a ampliação da consciência.
150 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

KUBLER-ROSS (1998), grande estudiosa sobre o processo da


morte e do morrer do nosso século, na sua prática acompanhava o
paciente desde o diagnóstico da doença grave até o final. Ela buscava
conhecer o paciente no seu modo de ser, acolhia, dava esperança e
garantia a presença constante do médico nos tempos difíceis do trata-
mento. Classificou cinco estágios do morrer: negação e isolamento,
raiva, barganha, depressão e aceitação. A esperança se fez presente em
todas essas fases. Elas não ocorrem sucessivamente, podem oscilar de
uma para outra, dependendo do momento do tratamento e do recurso
que cada indivíduo tem para lidar com a situação.
Falar sobre morte ainda é considerado um tema “interdito”, tabu.
KOVÁCS (1992) diz que a morte no Ocidente é vista como fim,
ruptura, fracasso, vergonha e a mantemos distante da consciência:
ela deve ser combatida e tentar manter a vida eterna. A nossa cultura
não assume a angústia da morte e carecemos na saúde pública de
recursos que facilitem ao paciente e à sua família viver esse período
da doença de forma mais humanizada. No oriente ela é vista como
um momento de transição. É aceitável e mais equilibrada. É vivida
como possibilidade de crescimento e evolução.
Assim, é importante que o profissional perceba e compreenda o
significado da fé que cada paciente e familiar utiliza como recurso de
enfrentamento no tratamento da recidiva. Este envolvimento dos
profissionais possibilita conhecer o paciente como ele é na sua essên-
cia, proporcionando tanto à criança como à família o que conside-
ram como qualidade de vida, sem interferência e domínio do outro.
Um trecho que ressalta claramente a humanidade dos atendimentos
é da francesa Marie de Hennezel:
...Um ser humano nunca fala a sua última palavra, sempre se encontra
em processo de construir-se a si mesmo, aperfeiçoando-se e realizando-se, e
em todo momento é capaz de transformar-se, incluindo as crises e as
provas que a vida oferece... (HENNEZEL, 1996, p. 36).

Um encontro humano do profissional com o paciente e a sua


família facilita viver esse período incerto da recidiva. Para isso é pre-
ciso um olhar cuidadoso, sensível e congruente para as necessidades
desses pacientes que se sentirão mais seguros e acolhidos para en-
frentar a situação. Sendo assim, o paciente e a família nunca esgota-
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 151

rão todas as suas palavras, sempre ficará algo mais para ser dito. Per-
cebe-se que não é fácil para os profissionais da área da Oncologia
pediátrica ter esta postura de aproximação com um paciente em re-
cidiva ou prognóstico fechado.
Hoje, percebe-se a preocupação da equipe lidar com o paci-
ente em sua totalidade, pois ele é um ser bio-psico-social e espiri-
tual. Frente à situação de recidiva, faz se necessário um trabalho
de apoio dentro da equipe em que todos estão engajados emocio-
nalmente. É aconselhável que os cuidadores estejam preparados
para auxiliar o paciente e a família nesse momento, não havendo
um modo específico para atendê-los. O atendimento é deixado
livre para que a criança e a família possam se mostrar autentica-
mente e ir descobrindo do que precisam para aliviar suas dúvidas,
medos e sentimentos.
HINDS et al. (1996) ressaltam na pesquisa a importância de os
pais receberem da equipe informações verdadeiras, suporte e apoio,
o que os ajudou a assimilar a realidade quando houve a recidiva do
câncer em seu filho. Eles sentiam sua energia revigorada, mesmo numa
situação incerta. Percebe-se, assim, que uma boa interação com a
equipe transmite aos pais segurança e certo equilíbrio emocional
(VALLE, 1994, 1997 e GIMENES, 1998). Portanto, quando as ati-
tudes dos profissionais da equipe pediátrica oncológica são apropriadas,
influenciam diretamente os pais a adquirirem uma melhor adapta-
ção psicológica ao tratamento, tornando-os capazes de transferir essa
relação favorável para os seus filhos doentes.
HINDS et al. (1996) levantaram alguns pontos significativos
identificados por médicos e enfermeiros como atitudes benéficas
para o atendimento da família: manter os pais atentos às opções de
tratamento e às respostas da criança ao tratamento vigente, de-
monstrar competência, transferir o conhecimento pessoal e amor
para a criança. Estes procedimentos mostram o amparo, o envolvi-
mento da equipe, independente do tratamento. Os pontos negati-
vos apontados apresentados por estes profissionais (enfermeiros e
médicos) foram estar sempre apressados, não ouvindo as questões
familiares, fazer comentários indevidos ou criticar uma decisão pre-
cipitada de um familiar.
152 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

4. Participantes

Participaram deste estudo 10 mães em situação de recidiva de


câncer em seu filho, no período de julho a setembro de 1999. Para
selecionar os sujeitos, a pesquisadora participou das reuniões sema-
nais com a equipe multidisciplinar. A delimitação desse número de
participantes não se baseou em um critério numérico, mas na dispo-
nibilidade destas mães durante o período da coleta dos depoimentos.
Nestas entrevistas obtidas, foi possível observar falas repetitivas de
experiências e expressões das mães que, de certo modo, ao descreverem
aspectos de seu mundo-vida poderiam permitir um aprofundamento
e uma abrangência da compreensão da realidade vivenciada, isto é, dos
significados atribuídos por elas à situação investigada — a recidiva
do câncer em seus filhos.

5. Unidades de significado

5.1. A análise compreensiva de todas as entrevistas


mostra as seguintes unidades de significado das mães:
As mães rememoram as dificuldades do período do
diagnóstico
Mesmo no período da recidiva, algumas mães relembram a pere-
grinação que fizeram a diferentes médicos para chegar ao diagnósti-
co da doença e os procedimentos pelos quais o seu filho passou. Per-
cebem a gravidade da doença e do tratamento e, com isso, elas se
paralisam, se desestruturam até se adaptarem melhor à situação:
Ele tinha 1 ano e 4 meses. Ele entortou o pescoço, e três vezes o olho
ficou prá cima. Paralisou o intestino, o rim não funcionava, perdeu o
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 153

equilíbrio do corpo. Só em casa, antes de encaminhar para cá, ele


deu uma convulsão que quase morreu. Depois levei no médico em I,
e encaminharam ele para cá com muito custo, diziam que eu estava
vendo coisas. Veio para cá 06/08 e viram que realmente estava com
tumor. O pediatra de I só acreditou quando viu o resultado. Se eu
não estivesse aqui ele tinha morrido (Ana, 38a).

Fui para S C, lá a ortopedia jogava para a neurologia, o neurologista


mandava de novo para o ortopedista. E nesse jogo foram 3 meses. Foi aí
que um médico que nunca tinha visto C. deu o encaminhamento para RP.
Aqui tive muita sorte, foi logo consultado, ficou 4h na sala do consultório,
e ele falou por que eu demorei tanto em trazê- lo (Izabela,30 a)

Eu esperava a notícia (diagnóstico grave), mas só quando ela chega,


quando ela vem, porque você não quer acreditar que ela veio e,
precisava ser operado (Izabela, 30 a)

As mães justificam o câncer como um ataque, uma injustiça,


uma fatalidade, e com revolta.
As mães não compreendem o porquê desta invasão na vida de
uma criança, nem a etiologia dessa doença grave, principalmente
quando não existe nenhum caso familiar. Como não encontram res-
postas concretas, a maioria delas compreende a doença como uma
incógnita, um mistério que aconteceu e não existe culpado:
É uma coisa, não sei explicar. É o destino mesmo, porque isso ninguém
provoca, ninguém te deseja isso. É uma coisa que ninguém sabe
explicar. Aconteceu nos dois (filho e sobrinha) ao mesmo tempo. Fazer
o que, não é? (Janete, 29a)

O meu marido cresceu convivendo com este tipo de doença. Nesta


época, eu e meu marido sempre conversávamos sobre seus parentes
doentes. Eu já era casada quando o seu tio ficou doente. A gente ia lá
visitar, rezar, conversar, levantar o astral dele. Depois apareceu na
minha sobrinha (Janete, 29a).

Não sei porque ele teve isso. Na minha família não existe ninguém,
nenhum caso assim até a terceira geração. Não entendemos porque
no meu filho (Maria, 35a).
154 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Se ele está passando por isto, é porque ele tinha que passar.
Infelizmente é assim, é o carma dele, a trajetória que ele teria que
passar. A nossa trajetória, porque o que ele passa, a gente passa
junto (Renata, 19a).

Uma mãe verbaliza o desejo de que fosse possível combater


essa doença tão agressiva e voraz:

É, ele está bem do lado de fora, mas do lado de dentro tem uma coisa
que fica comendo ele por dentro (Maria,35a).

Já está espalhando nos outros órgãos vizinhos e está apertando o


coração. Gostaria que fosse arrancado todos os órgãos e retirasse isso
dele, e ficasse bom (Maria,35a).

Uma mãe expressa os preconceitos dos outros com relação à


doença:

Às vezes tem muita gente que não entende e me pergunta. Eu não


escondo, porque é a única maneira que tenho para desabafar. É
contando para alguém. Tem muita gente hoje em dia que tem
preconceito. Sei que ele usa a máscara é para se proteger, às vezes
chega alguém pergunta... Se com gripe forte, pega na gente fácil,
imagina na criança com sistema indefeso. É mais fácil ele pegar, não
é verdade? (Fátima, 32a)

Conversando com minha vizinha, ela me perguntou se é uma doença


que pega. Eu disse que não. Quando eu estive aqui (no hospital), o
médico falou que não pega. Até que J. sentia muita vontade de brincar
com o netinho dela, mas ela não deixava J. brincar porque era um
menino doente (Fátima, 32a).

Ele usa a máscara, mas as pessoas vinham perguntar prá mim e


diziam: Com certeza que pega. Eu expliquei prá elas: usa a máscara
para não pegar infecção (Fátima, 32a).

As mães comparam-se às outras mães na mesma situação:


VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 155

Eu e as outras mães, a gente fica por dentro da doença, não é só tirar


o tumor e acabou (Janete, 29a).

Eu tenho uma filha excepcional, doente com câncer e sem definição


da doença. É ainda mais complicado do que as outras mães que têm
o filho apenas com câncer. Um outro exemplo é R. (outra criança
excepcional em tratamento de câncer). A minha filha é excepcional,
não fala e nem anda (Ana, 38a).

Por exemplo, se eu pego uma das mães que vêm fazer o tratamento
aqui do filho... Dizem “que saco de estar aqui”, implicam com tudo,
nada está bom. Elas não têm aquele carinho de pele pelo filho, faz
aquilo porque precisa. (Ana, 38a)

As mães mostram preocupação, desespero e dúvidas quando


falam da recidiva.
As mães sabem que precisam reiniciar imediatamente um novo
tratamento e que todos os seus esforços anteriores foram em vão.
Frente a isso, mostram dúvidas, preocupação e questionam os médi-
cos sobre qual seria o melhor tratamento para o filho.
Começou dia 06/08 no ano passado (1999) e está completando 1
ano de tratamento. Eu vim fazer a quimio e fazendo o tratamento a
doença voltou. Ele fez oncovin, estava bem. Quando eu desci na
cantina para comprar um danone e quando subi ele não se mexia
mais. Não falava comigo. Ele foi para oxigênio, fizeram tomografia.
Ele não me escutava. Daí que os médicos viram que tinha voltado,
mas não queriam falar (Jacira, 30a).

De repente, o médico vira e diz que o tumor voltou e vai ter que ser
operado de novo... Eu achei que fosse um pesadelo que eu iria acordar
e falar é mentira, você não está passando por isto de novo. Eu acho
que é por isto que eu fiquei até pior. Eu tinha aquela ilusão que não
era verdade que não estava acontecendo isto. Era pior. Não foi o
conto de fada que eu gostaria que fosse (Renata, 19a).

Ele ficou 1 ano sem o tratamento. Ele não tinha nada, em Novembro
veio fazer os exames de rotina, aí (voltou). A gente tem aquele
156 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

pensamento: não vai dar nada de novo, toma gadernal, ele não tinha
nada (Renata, 19a).

A recaída do testículo foi a segunda. Na espinha foi a terceira que


recaiu. Foi onde que o médico veio conversar comigo. É recente que
estou sabendo desse transplante de medula, mas ainda não sabe se
vai fazer, se continua com a quimio, ou se faz o transplante, ou se faz
a megaterapia (Amélia, 38a).

Uma mãe conta a especificidade da situação da filha que,


além de ter câncer, tem deficiência:

Hoje percebo que a minha filha tem câncer e a deficiência física,


motora, deixa o quadro ainda mais complicado (Ana, 38a).

Algumas mães comparam a volta da doença com o seu início.


Elas mostram o seu sofrimento e enfrentam com esforço, coragem e
esperança o tratamento, mesmo sabendo que, com a recidiva, dimi-
nui a chance de cura do filho:
Agora que a doença voltou, eu fiquei mais preocupada por causa que
no primeiro tratamento, eu tinha certeza que ele ia ficar bom, não ia
voltar a doença (Izabela, 30a).

Veio uma vez, tirou, não é? Aconteceu a segunda vez, é lógico que eu
não gostei. Só que vamos lutar até onde os médicos podem medicar o
meu filho e fazer certinho as coisas. Assim eu penso, não é uma
doença fácil de se cuidar (Janete, 29a).

Para mim, a recidiva foi muito doloroso. Acho o que eu senti foi
quase pior do que a notícia do tumor, porque quando recebe a notícia,
você não sabe quase nada da doença. Não sabe o que te espera,
ainda não conversou com ninguém, a não ser que já tenha convivido
com alguém que teve câncer, que não é o meu caso (Ana, 38a).

Diante do estreitamento das possibilidades do que pode ser feito


para “salvar” a vida do filho em situação de recidiva de câncer, algu-
mas mães transcendem a gravidade da situação, imaginando outros
tratamentos alternativos que possam curá-lo e enquanto outras gos-
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 157

tariam de ter recursos financeiros para fazer outros tipos de procedi-


mentos que estabilizassem a doença dele:
Eu faço outras coisas além do tratamento dela. O nosso grupo de
oração faz tudo que puder para ajudá-la (Ana, 38a).

Existe um tratamento nos Estados Unidos que congela o tumor e que


tem um jeito de estabilizar e ele não progride (Maria, 35a).

O meu marido trouxe o remédio homeopático que você viu (Maria,


35a).

As mães percebem o modo como o seu filho enfrenta a doença


As mães descrevem características favoráveis de seus filhos, como
compreensivos, inteligentes, curiosos, responsáveis, esforçados, es-
pertos, obedientes e cooperativos com o seu tratamento. Percebem
neles força, otimismo, energia, alegria e comunicação. Vêem neles
solidariedade, amizade, compaixão e bondade com os outros que
vivenciam ou irão vivenciar o tratamento, pois além de darem apoio
e orientações aos outros, têm facilidade para se relacionar e costu-
mam buscar o apoio de Deus em suas orações. Todas essas caracterís-
ticas boas são refletidas no modo de as mães cuidarem e suportarem
melhor a situação dos filhos. Mostram solicitude e cuidados ao filho,
e o significado que tem para elas estar ao lado deles nesse momento
difícil que estão vivendo. Elas têm um olhar especial para eles, com
admiração e respeito por tudo isso que estão passando.
Ele não tem a inteligência de menino de 3 anos, porque eu tenho um
sobrinho... Não porque C. é meu filho, mas ele compreende as coisas
melhor do que ele. Teve um dia em que eu e o pai dele estávamos
conversando no quarto. Ele estava brincando do lado de fora do
quarto. Ele chegou e perguntou: por que vocês estão brigando? Posso
saber por quê? (Renata, 19a).

Ele sabe que está doente. Ele sabe de tudo, não é nem um pouquinho
bobo. Sabe quando está com febre. Ele diz: “mãe, tenho que ir ao
médico?” O porquê eu não sei, mas vem da consciência dele. A gente
conversa, ele ouve tudo (Janete, 29a).
158 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

J. sempre foi forte. Quando ele fazia quimio e ficava na Casa de


Apoio, ele é quem dava força para as outras crianças que estavam
iniciando o tratamento. Ele fazia tudo direitinho (Maria, 35a).

No começo eu ficava preocupada, mas ele é uma criança cheia de


energia positiva. Tem prá ele mesmo e passa prá nós. Não é porque é
meu filho, mas ele é muito especial. (Renata, 19a).

As mães sentem-se nervosas frente ao desespero, nervosismo e


sofrimento do filho com o tratamento e com os seus efeitos colaterais.
Constantemente têm sua presença solicitada pelos filhos. Nas falas,
mostram claramente uma empatia pelos filhos:
Quando ele toma esses remédios (quimio), começa a passar muito
mal em casa. Ele vomita tudo o que come. Ele fica desesperado e me
chama. Se estou longe, ele me grita. Ele não quer ficar sozinho. Ele
está nervoso, daí eu começo a ficar nervosa também. (Amélia, 38a).

A gente reclama que está difícil, mas é muito mais difícil prá nossas
filhas. Para mim, A. é que toma as porcarias, quem toma as picadas.
São as crianças (Ana, 35a).

Agora, se vocês acharem que não vai adiantar, então deixa ele como
está, sem quimioterapia, sem remédio porque eu não quero atrapalhar
o nível de vida que ele está levando (Flávia, 33a).

Ele fica bem com o tratamento. Ele não gosta muito não. Quando
eles estão brincando é legal, mas quando está com dor... Dentro do
hospital ele fica diferente, agora em casa ele pega fogo. Ele corre,
anda de motoca, briga com os irmãos, anda na terra. É bem levadinho
(Janete, 29a).

Além de perceber as características positivas dos filhos, as mães


também percebem que a doença modifica a vida deles. Diante disso,
sentem temor diante das atitudes deles, como conformidade, desâni-
mo, depressão com a volta da doença, não têm mais disposição para
brincar, comer e nem força para lutar como faziam antes da recidiva.
Sentem que estão mais fracos, talvez pelo estado físico debilitado,
frágil e vulnerável.
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 159

Acho que depois de receber a notícia de que o tumor tinha espalhado


ele ficou assim, desanimado e sem força de lutar (Maria, 35a).

Desta vez percebo que está mais difícil, está mais deprimido, não
quer comer... (Maria, 35a).

Ele não aceitou a volta. Ele ficou mais agressivo. Não aceita que tem
de tomar remédio. Se fala, ele não toma (Izabela, 30a).

Uma outra característica desfavorável atribuída por uma mãe ao


seu filho, é ser “fechado”. Ela sinalizou que este modo de ser a inco-
modava porque não conseguia sentir abertura para ajudá-lo.
Ele é muito fechado, é bem diferente de mim. (Maria, 35a).

Diante deste horizonte limitado, as mães não vêem outras pers-


pectivas a não ser o esforço de cuidar amorosamente dos filhos e de
se dedicarem integralmente a eles. Assim, utilizam suas forças para
encorajá-los a se distrair com as coisas que supõem ser ainda do seu
agrado, como ver televisão, observar a natureza, pensar, jogar, voltar
à escola. Elas tentam atender o desejo deles e organizam a sua rotina
hospitalar, conciliando-a com a vida fora de lá. Mas, normalmente
ocorre dificuldade na reinserção escolar. Eles se recusam ir à escola
por causa da discriminação, dos preconceitos e das críticas dos cole-
gas por estarem carecas e usarem máscara.
Tudo que ele quer eu dou. Ele quer alguma coisa, eu faço. (Flávia,
33a).

Essa semana ele vai fazer quimio a semana inteira. Nós vamos vir
todos os dias. Eu vou pedir à enfermeira para marcar de manhã para
ele poder ir à escola pela tarde. Assim, ele estuda de manhã, e não
falta na escola, porque ele não quer perder aula. Se eu conseguir, vai
ser melhor ainda. Ele não vai faltar à escola (Amélia, 38a).

Na escola, no começo, foi difícil prá ele. Ele não queria ir porque
tinha que usar a máscara e os colegas iam começar a caçoar da
cabeça dele. De fato, os meninos começaram a caçoar dele e colocaram
apelido nele (Amélia, 38a).
160 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Essa mãe, após ir à escola conversar com a diretora, relata que a


situação ficou resolvida:
Eu fui na escola e reclamei para diretora. Hoje todos os colegas
acostumaram com ele (Amélia, 38a).

As mães mostram ambigüidade de sentimentos ao cuidar do


seu filho
Ao enfrentar a recidiva dos filhos, as mães revelam a ambigüidade
de sentimentos ao cuidar deles. Elas manifestam luta, força, fé, crença
religiosa, esperança e persistência alternados com cansaço, desâni-
mo, impotência, dor, sofrimento e tristeza. A nova fase exige uma
adaptação e flexibilidade da mãe e da família:
Em um momento mostram-se fortes, persistentes, otimistas, com
fé e esperança; esboçam, então, esforço para lutar junto com o filho:
Converso com J. para que lute e não se deixe vencer pela doença,
porque se você está debilitado, a doença percebe e se fortalece mais
ainda e toma conta (Maria, 35a).

Fico naquela expectativa, se vai ocorrer tudo bem. A gente tem


esperança... O importante é que meu filho sairia dessa (Amélia, 38a).

Aqui eles (os médicos) fazem a parte deles. Mas eu conto mesmo é
com a parte lá de cima. Eu rezo muito meu terço. Há cura, tem
pessoas que foram curadas. Que seja feita a Sua vontade. Se for para
ser meu, vai ser meu, se for para ser Dele, vai ser Dele, não é verdade?
(Janete,29a)

Eu vivo tentando descobrir o que eu posso fazer a mais. Eu não sou


perfeita. Eu só não fico paranóica, mas tudo que eu posso saber,
coisas que eu posso fazer para melhorar, para tentar amenizar a dor,
eu faço (Ana, 38a).

Em outro momento, as mães mostram todo o seu cansaço, preo-


cupação, medo, desânimo, angústia, impotência, tristeza, injustiça,
revolta contra Deus, solidão e dor diante do que está acontecendo
com os seus filhos:
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 161

Eu fiquei muito abalada. Eu estou sofrendo muito, sabe, eu não


demonstro. Quando estou sozinha, não consigo dormir à noite, tenho
insônia (Izabela, 30a).

Eu estava sendo egoísta, eu ficava com minha tristeza e não conseguia


pensar que ele precisava muito mais de mim. Eu não conseguia
enxergar, ficava presa nos meus sentimentos (Renata, 19a).

Você não sabe o que vai fazer com ele. Então fica naquela indecisão.
O que é melhor, o que é pior. Qual seria o mais fácil prá ele sofrer
menos? (Amélia, 38a)

Eu vou sentir, mas o que eu posso fazer. Como eu te falei, isso a gente
espera. Fica na nossa cabeça com medo de voltar (recidiva) (Janete, 29a).

Um pouco eu fiquei revoltada porque, meu Deus, ele estava indo tão
bem. Ele estava respondendo ao tratamento (Jacira, 30a).

As mães manifestam sentimentos contraditórios frente à recidi-


va da doença, ao mesmo tempo em que se mostram otimistas e con-
fiantes, expressam o seu temor e a sua dificuldade:
Não está fácil, mas tendo fé em Deus a gente faz tudo que pode ser
feito para tratá-la (Daniela, 30a).

Olha, quando ele está bem eu até esqueço que ele está doente. Só que
fico prá baixo quando ele fica amuadinho (passando mal). Ele não
quer comer, aí minha cabeça fica cheia de pensamentos (Flávia, 33a).

Você briga, luta... é tudo novidade. Até o dia que você recebe alta, aí
você chora! Eu parecia a maior palhaça o dia que A. teve alta. Eu
acreditava que minha filha estava curada. Apesar dos médicos terem
dado todo o prognóstico da doença e qual seria o procedimento dali
prá frente, eu tinha fé dentro do coração que a minha filha tinha sido
curada. Quando voltou, foi como o mundo tivesse desabado. Você
acha que Deus castigou, te esqueceu porque sarou e depois voltou. Aí
você já sabe que vai passar por tudo aquilo outra vez. Então dói
muito, dói pelo sofrimento que vai ser prá ela (Ana, 38a).

Tenho muito mais consciência agora do que aquele desespero lá atrás


(início da doença) (Ana, 38a).
162 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Uma mãe mostrou o desejo de ver o seu filho livre da doença e


do sofrimento. Isto a mantém atenta, vigilante e preocupada com os
cuidados prestados a ele. Parece querer poupá-lo de tantas aflições e
sofrimentos (mostrando-se indecisa quanto a atitude tomada de tê-lo
trazido ao hospital).
Tentei esconder dele o máximo, para não magoá-lo (Maria, 35a).

Eu me arrependo de não ter ido para casa antes. Lá (a cidade de


origem) não tem internação no hospital, mas em casa ele poderia
brincar com os primos (Maria, 38a).

Não gosto de sair de perto dele, porque quando eu saio, sinto que ele
fica longe de mim (Maria, 38a).

Com isso, a mãe traz a culpa por não ter atendido o desejo
do filho:
Ele não queria voltar da última vez que foi embora (no seu aniversário).
Ele queria morrer em casa, não no hospital (Maria, 38a).

Há famílias que medicam a criança até o fim, outros diminuem a


dosagem do remédio porque querem que o filho se mantenha acordado
para fazer o que gosta. Nesse sentido, a mãe verbaliza:

Eu só dou remédio quando ele não agüenta mais. Eu prefiro ver ele
acordado (Maria, 38a).

Ninguém esperava, ela estava tão bem (Daniela, 30a).

As mães manifestam os seus sentimentos frente às atitudes


dos médicos
Por um lado, as mães parecem demonstrar, com suas falas, um
vínculo de confiança, empatia, com os médicos, o que favorece qua-
lidade da interação com eles:
Daí, o médico falou: calma, não é assim não, é reação pós-cirurgia.
Ele já fez uma cirurgia, então agora tá voltando ao normal. O cérebro
ficou bem irritado (Renata, 19a).
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 163

Eu tenho que conversar com o médico e explicar a condição dele em


casa. Está agressivo e a família (padrasto e filha) não ajuda (Izabela,
30a).

O médico ficou querendo esconder o que estava acontecendo


(recidiva), mas o médico não engana mãe. A mãe sabe desde a hora
que faz o exame. Ela fez tomografia, raio X. Quem já passou por isso
3 anos e meio, sabe (Daniela, 30a).

Por outro lado, as mães referem sentir abandono e manifestam


revolta em relação às atitudes dos médicos a partir da recidiva de
câncer no filho. Com isso, elas mostram desconfiança e raiva deles,
questionam se realmente estão envolvidos, comprometidos com o
tratamento das crianças. Em seus depoimentos falam que os médicos
não se preocupam com as crianças porque eles não têm mais expecta-
tiva de cura. Assim, não cuidam como anteriormente e não lhes resta
mais nada senão sedá-las ou seja, mantê-las com o tratamento
paliativo para amenizar a dor nesse momento:

A única coisa que vou culpar é porque os médicos incompetentes da


minha cidade poderia ter socorrido C. antes (Renata, 19a).

Porque aqui converso com os médicos, e eles falam que não têm mais
jeito, e o que podem fazer é só amenizar a dor (Maria, 35a).

Antes o Dr. A. não era assim. Estava sempre por perto. Ele sabia e
entendia o que se passava com ele. Agora vem um plantonista R3; é
sempre um diferente (...) Tem sempre que explicar tudo de novo,
porque eles perguntam como começou a doença (Maria, 35a).

Frente a esta percepção, as mães demonstram sentimentos


dolorosos em relação a esta falta de atenção. O desamparo e a
solidão parecem ser até mais difíceis para elas suportarem do que
o próprio medo da morte do filho. Elas aliviam esta angústia com
palavras e lágrimas:

Aqui ele poderia ser cuidado, mas não sei se eles não vêem mais nada
que poderia ser feito com meu filho (Maria, 35a).
164 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

As mães falam sobre o relacionamento familiar com a criança


enferma
As mães explicitam o modo como os filhos e o marido se rela-
cionam com a criança doente, na recidiva. Há boa interação e
aceitação entre alguns irmãos, e outros apresentam dificuldade
de relacionamento.
O meu marido não conforma, porque se a gente vier a perder ele (pausa),
vai ser difícil porque a doença dele é muito grave (Jacira, 30a).

Em casa a gente não conversa muito, porque o pai dele sofre, mas
demonstra muito menos. O pai dele é assim, teve um dia que ele veio
com o filho para uma consulta. O pai dele é diferente. Ele prefere
sofrer à distância (Renata, 19a).

A filha começou a não cobrar mais a cura da irmã. Aí ficou mais


fácil e mudou o relacionamento com A. (Ana, 38a).

Há mãe que decide voltar com o filho para o hospital para pou-
par o sofrimento da outra filha:
A irmã se preocupa comigo. A gente se parece. Quando o J. estava
lá em U, ele passou mal. Eu havia ido na padaria e a irmã ficou
com ele. Quando eu voltei, ela estava branca e não sabia o que
fazer (Maria, 35a).

Uma mãe procura explicar à irmã sadia a situação da filha


doente:

Contei para minha filha que sua irmã tinha sarado do tumor. A irmã
disse: se papai do céu tirou o tumor, não devia ter dado outro. Explicar
isso na cabeça dela foi difícil. Aí tive uma conversa séria, uma coisa
até pesada para uma criança, e era o que eu não tinha feito ainda
(Ana, 38a).

As mães revelam medo da morte


As mães mostram claramente o medo da morte. Ao defrontar-se
com essa situação grave, a recidiva do câncer, ficam angustiadas,
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 165

pois o medo da morte perpassa o pensamento delas. Embora algumas


mães verbalizem explicitamente o medo da morte do filho e o luto
antecipado, outras ocultam isso também. Mas, de algum modo, elas
revelam seus medos, alterações do sono, sofrimentos, angústias, soli-
dão, dúvidas, preocupações e sentimentos de impotência:
É uma doença que a gente espera a cura, e ao mesmo tempo a gente
pode perdê-lo. Infelizmente voltou, e sei lá depois que volta (silêncio)
...é daí para pior (Jacira, 30a).

Às vezes sonho que vou morrer, que estou me jogando na cova junto
com ele, acordo assustada e vou lá ver se ele está lá e encontro ele
dormindo (Izabela, 30a).

Às vezes eu vejo crianças que a doença voltou, e não teve final da


doença, a cura. Eu fico pensando nessas coisas. Penso que pode
acontecer o mesmo com o meu filho (Izabela, 30a).

As duas coisas (vida e morte) ficam presentes com a gente mesmo...


Acho que a partir do momento que a gente perde a esperança, acaba
tudo (Flávia, 33a).

As mães expressam que vivenciar a situação de recidiva do


filho proporcionou crescimento espiritual, maturidade e
aprendizagem:

Quando você se preocupa com isso (tratamento), você não se preocupa


se ela está feliz, rindo e você passa a proporcionar isto prá ela. Prá
mim foi assim que funcionou. No começo, eu pensava na doença,
depois nas reações. Hoje com a recidiva, me preocupo com o bem
estar dela, com ela e não com o tratamento. Como tem tantos outros
tratamentos... (Ana, 38a).

Após a recidiva da doença, eu pelo menos parei e senti mais esse


contato humano. Deixei de ter mais teoria, aquela coisa assim médica
de remédio. Hoje eu não importo mais com isto (Ana, 38a).

Que todas as pessoas que estão passando por isso tenham bastante
fé, lutem bastante e nunca percam as esperanças (Flávia, 33a).
166 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Eu acho que eu cresci muito, amadureci e aprendi que as coisas não


são como eu pensava que fossem. Toda ajuda é pouco. Hoje eu penso
que toda ajuda é pouco, todo apoio é pouco. Quanto mais gente quiser
apoiar ele, é bom. Não importa o que a pessoa seja, se é rico ou
pobre, ladrão, desde que queira o bem do meu filho e esteja torcendo
pelo bem dele. Isto que importa. Eu aceito de coração (Renata, 19a).

As mães que mostram sentimentos de aceitação da recidiva do


câncer e adaptação ao tratamento enfrentam melhor a situação,
mesmo diante da incerteza da cura.
Só que eu sou obrigada a ficar (no hospital) por causa do problema
dele. O único meio de tratar é assim (Fátima, 32a).

Sei que não tem cura. O mais importante que eu quero é que ela
tenha qualidade de vida e seja uma criança que brinque, jogue como
uma criança feliz (Ana, 38a).

Eu vejo que não é bem assim. Se ele está passando por isto, é porque ele
tinha que passar. Infelizmente é assim, é o carma dele, a trajetória que
ele teria que passar, a nossa trajetória, porque o que ele passa, a gente
passa junto. Às vezes eu agradeço pelo que ele está passando. Eu vi, eu
sei que tem gente passando por coisa muito pior. Eu não posso mudar,
para ele não passar por isto. Obrigado por ele está passando por isto, e
por ele está fazendo eu passar tudo isso (Renata, 19a).

A realidade é esta que ele tem um câncer e está cuidando. Eu vivo


muito dentro da realidade, da verdade do que se trata o fato (Janete,
29a).

Um mãe relata que o seu trabalho é um meio que ajuda a con-


centrar em outra atividade que não seja a doença, favorecendo pen-
sar e enfrentar melhor o tratamento:
O trabalho me faz ficar concentrada, desligo do problema, dá uma
aliviada. Você consegue se refazer e na hora que você pensar nisso,
consegue suportar mais (Renata, 19a).

As mães falam da importância do apoio profissional, familiar,


escolar e social
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 167

As mães descrevem a disposição para utilizar o apoio de toda a


equipe (médicos, psicólogas, enfermeiras e outros) desde o início do
tratamento até o momento atual da recidiva. Através do diálogo, da
atenção, da confiança, das informações, podem, assim, aliviar os seus
sentimentos:
Assim, eu fui conversando com a psicóloga e me acalentei mais, como
aqui com você. Logo fui acostumando com o tratamento e tudo
(Amélia, 38a).

Eu falo para minha filha lembrar do carinho, do abraço, do calor


humano da mãe que tem e dos auxiliares, como os médicos que dão
carinho, você (pesquisadora) quando pega e olha para minha filha
(Ana, 38a).

Quando eu venho prá cá, eu me sinto mais leve, as pessoas têm mais
amor comigo, as enfermeiras, os médicos, todos aqui têm um carinho
com ele (Izabela, 30a).

A ajuda dos familiares (os avôs maternos, os tios e o pai) contri-


buiu de maneira afetiva e financeiramente:
Apesar que eu tenho um povo (família) muito bom que me ajuda,
sabe? Eu não fico sozinha. Eu entrego para meus pais o programa (o
pedido médico) e eles me ajudam (Amélia, 38a).

Não adianta ter o melhor remédio do mundo se não tem o cuidado


em casa (Ana, 38a)

A minha tia chegou para mim e disse parabéns. Eu perguntei por


que, ela pergunta como eu estou suportando tão bem passar por tudo
isso. Você não culpa ninguém? Eu vou culpar o quê? Ela deu parabéns
de suportar tudo isso (Renata, 19a).

A mãe conta a preocupação e o espanto da professora sobre a


doença da criança:
Até a professora veio conversar comigo: Nossa, quem diria acontecer
isso com M.! A professora disse que não esperava acontecer isso com
ele (Amélia, 38a).
168 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

As mães buscam apoio nas redes sociais, seja através de religião,


de vizinhos, de amigos e de trabalho. A religião emerge como recurso
fundamental frente a fase temporal de crise que elas passam. Elas
procuram atender as suas necessidades no momento e dão sentido à
enfermidade:
Enquanto tiver um tratamento, tanto pela minha fé, como pelas
orações, pelo grupo de orações que existe. Eu acredito em tudo e
sei que Deus vai curar a minha filha. Ele vai curar. Ela pode
amanhecer amanhã... Eu quero isso, mas não fico esperando isso
(Ana, 38a).

Se você rezar prá um santo, outro, acima de tudo está Deus.


Quando você vai agradecer, agradece a todos. Você não sabe quem
curou. Elas tomam tanto remédio. Como vão saber qual remédio
curou? É o conjunto de tudo que curou. Então eu falo: a cura
dessa doença é a união dos médicos, é o recebimento do tratamento
dos enfermeiros, o tratamento em casa, a fé e a vontade de Deus.
O médico sozinho, nada funciona. É um conjunto de coisas que
cura (Ana, 38a).

No trabalho eles sabiam que C. tinha sido curado. Mas, os


colegas do trabalho estão juntos, não conhecem C., mas gostam
dele. Tem muita gente que não gosta muito de mim, mas gostam
muito dele. Porque você sente quando alguém tá perto e não
gosta de você, mas, gostando dele prá mim tá ótimo. Eu não
quero que gostem de mim, quero que gostem dele. Se meu filho
tá gostando, isto é que importa, eu passo a gostar da pessoa
(risadas). Há pessoas que fazem tudo por ele, rezam e ajudam
(Renata, 19a).

A mãe queixa da falta de ajuda e apoio dos familiares:


Ele (filho doente) não tem nenhuma pessoa que pode contar. Ele não
tem pai, não tem uma tia que eu posso contar. Na minha casa tem
menos carinho (Izabela, 30a).

O padrasto dele não entende, ele é muito agressivo também (Izabela,


30a).
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 169

5.2. Compreensão dos discursos das mães


Nos depoimentos, a maioria das mães relembra com muito sofri-
mento o cansaço, a luta e a esperança vividos quando tudo come-
çou: a peregrinação feita para chegar ao diagnóstico do câncer, o
tratamento e o impacto emocional com a volta da doença. Passam a
questionar a causa da doença de seus filhos, buscam explicações con-
cretas, como por exemplo, se há antecedentes familiares com câncer.
Como não encontram respostas definidas, compreendem a enfermi-
dade como um mistério, um destino, não existindo um culpado.
Algumas delas comparam-se a outras mães na mesma situação e per-
cebem a falta de paciência, desânimo e tristezas destas no cuidado
com os filhos em tratamento de câncer.
Frente à recidiva, as mães mostram desespero e choque maiores
do que os sentidos por ocasião do diagnóstico inicial, pois sabem que
têm de iniciar tudo outra vez, já com chances reduzidas de cura.
Algumas mães consideram a volta do câncer como período esperado,
menos difícil, por já conhecerem a doença e os procedimentos
terapêuticos. De modo geral, percebem que todos os seus esforços,
durante o tratamento foram em vão. Sentem-se derrotadas na sua
batalha anteriormente vivida contra o câncer nas crianças.
As mães passam por uma nova adaptação. O que as ajuda a
estarem mais atentas e receptivas ao lado dos filhos é o modo como
eles enfrentam o tratamento. A maioria delas relata que eles são
solidários, companheiros, curiosos, têm amizade e compaixão pelos
outros pacientes em tratamento e buscam ajuda de Deus. As mães
olham-nos com admiração. Entretanto, algumas delas vêem também
que as crianças enfermas se tornam apáticas, nervosas, deprimidas e
conformadas com a sua situação. Este modo de ser do paciente —
“fechar-se” em si mesmo — às vezes as incomoda e sentem-se angus-
tiadas por não poderem fazer mais nada para acabar com o sofrimento
deles. Algumas das mães expressam que não conseguem se apro-
ximar dos filhos e compreender o que está se passando com eles.
Sentem que as crianças não têm disposição para brincar, nem força
para lutar como antes da recidiva, atribuindo isto ao seu estado físico
mais frágil e debilitado. Assim, sentem-se muito próximas aos filhos
e descrevem que todas essas características influenciam e refletem o
170 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

modo como elas enfrentam a situação de recidiva de câncer. Procuram


organizar a rotina hospitalar deles, a reinserção escolar, conciliando-a
com a vida fora do hospital. Todavia, percebem que, na escola, ocor-
rem problemas de discriminação, de preconceito e de crítica dos
colegas por causa da máscara e da perda de cabelo, o que dificulta a
adaptação escolar.
Nas falas, as mães mostram a sua clara consciência da condi-
ção dos filhos doentes. Percebem que eles têm necessidade da sua
presença, mesmo que não possam fazer nada para mudar a reali-
dade. Então, elas adquirem estratégias de enfrentamento para
manterem-se úteis e fortes para encorajar os filhos a lutar e supe-
rar as dificuldades que surgem no período da recidiva. Procuram
manter um espírito de luta, alicerçado na fé religiosa e na medicina,
e na esperança para permanecerem a todo momento firmes e fiéis
nos cuidados com o filho de maneira mais íntegra. Entretanto,
essas atitudes se alternam com aquelas que manifestam impo-
tência, angústia e desânimo, revelando com isso toda a ambi-
valência que tal situação propicia. Diante disso, recorrem freqüen-
temente a um Ser Superior que possa apoiá-las, nesse momento
em que acontece a volta da doença.
Um sentimento significativo que aparece no discurso de uma
mãe é a culpa por não ter concretizado todos os desejos do seu
filho. Esta “falha” deixa-a angustiada: não ter atendido ao pedi-
do de sua criança que deseja ir para casa e brincar com os
primos no tempo que lhe resta. Esta mãe sente-se dividida, im-
potente, não sabendo o que seria melhor fazer para ajudá-lo,
uma vez que no hospital estão os recursos que podem aliviá-lo e
salvá-lo.
As mães manifestam o medo da perda dos filhos, sentimentos
de luto e, de algum modo, a preparação antecipada para esse mo-
mento, devido à progressão da doença e ao corpo debilitado. Elas
passam a habitar o mundo da doença dos filhos. Então, algumas
delas mostram a insegurança e a preocupação com o afastar-se
fisicamente dos filhos e “perdê-lo”. Uma mãe relata alterações do
sono, insônia e outra sonha com a morte do filho e se vê enterra-
da com ele. Estes discursos mostram a preocupação das mães com
a possibilidade da morte do filho, e então, elas se mostram
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 171

superprotetoras, atentas e vigilantes, realizando um excesso de


cuidados, que às vezes limita a capacidade das crianças doentes.
As mães expressam os seus sentimentos frente às atitudes dos
médicos. Vez por outra sentem confiança e empatia, o que favorece
a interação com eles. Em outras vezes sentem abandono, rejeição e
desamparo quando eles se restringem aos cuidados paliativos, uma
vez que a criança já não responde ao tratamento. Isto desperta ne-
las dor e revolta. A seu ver, os médicos não dão às crianças a mes-
ma atenção e cuidado como antes da recidiva do câncer. Esses sen-
timentos de solidão e desamparo se manifestam de forma angusti-
ante e dolorosa para elas, assim como o medo da proximidade da
morte dos seus filhos.
Um ponto a destacar é como as mães falam sobre os relaciona-
mentos familiares com a criança enferma. Mostram diferentes ati-
tudes do irmão sadio com o irmão doente, como preocupação,
ciúmes, brigas e intolerância. As mães relatam que o vínculo do pai
com a doença é menos forte, pois ele prefere não ir ao hospital e
acompanhar o tratamento do filho, de longe, protegendo-se assim
do sofrimento.
Um outro importante recurso referido pelas mães é o apoio dos
familiares, vizinhos e amigos: o suporte pode chegar através da
assistência afetiva e financeira. Apenas uma mãe queixa-se da falta
de apoio dos familiares e, freqüentemente, busca ajuda na equipe e
especificamente no atendimento psicológico. É significativo para
todas, o apoio da equipe oncológica pediátrica, que pode chegar
através do diálogo verdadeiro, do carinho, da atenção e da com-
preensão. Toda essa rede de apoio, além da religião, ajuda-as a en-
frentar a fase da crise.
Vivenciar a experiência de recidiva de câncer nos filhos leva
algumas mães a refletir sobre seus valores e dar sentido às suas
vidas. Com isso, verbalizam mudanças no modo de pensar e
viver, atingindo um crescimento espiritual, maturidade e apren-
dizagem existencial. Elas mostram um novo olhar para a realida-
de e aprendem a valorizar a vida na temporalidade em que se
encontram.
172 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

6. Considerações Finais

Este estudo fundamentou-se na abordagem fenomenológica,


na intenção de buscar a compreensão, a partir do ouvir a fala das
mães que experienciam a recidiva de câncer em seus filhos. Se-
guindo as orientações de Martins & Bicudo (1989) penso que con-
segui pôr diante dos olhos o fenômeno investigado, iniciando uma
descrição que possibilitou-me penetrar no mundo-vivido dessas
mães. Conviver com as crianças doentes nesta situação revela o
mundo destas mães, permeado de muito sofrimento, luta, angústia
e dúvidas. É como se elas tivessem que cumprir uma pena, da qual
desconhecem o sentido e o propósito, ainda mais quando não se
têm precedentes de familiares com câncer. Esta situação de recidi-
va gera sentimentos ambivalentes, pois o prognóstico é imprevísivel,
havendo possibilidade de ocorrer a morte. Penso que, para as mães,
o encontro para a obtenção das entrevistas, embora doloroso, pro-
piciou apoio e, ao mesmo tempo, um certo alívio por ter alguém
para compartilhar livremente as suas necessidades, tensões, ansie-
dades, inseguranças e temores nesse momento difícil e delicado com
a volta da doença no filho.
Encontram-se em nosso meio poucos trabalhos sistematizados
que estudam o comportamento de crianças em situação de recidiva
de câncer e o seu impacto na família. ARRAIS & ARAÚJO (1999)
é um dos poucos estudos brasileiros que se deteve nessa questão, e
mostrou alguns achados semelhantes à presente pesquisa, como por
exemplo, a ambigüidade de sentimentos manifestados pelas mães di-
ante da recidiva, e o medo da morte.
O estudo de HINDS et al. (1996) que descreve quatro compo-
nentes pelos quais passam a família: choque de adaptação,
monitorização da situação, atitude alternante e decisões dos pais,
também possibilitou uma aproximação com meu estudo, principal-
mente quando as mães vivenciavam as fases de monitorização da
situação e atitudes alternantes: em alguns momentos ao expe-
rienciarem a desconfortável questão existencial que se alternava en-
tre a luta pela cura, pela vida e a proximidade da morte.
VIVÊNCIAS DE MÃES EM SITUAÇÃO DE RECIDIVA DE CÂNCER EM SEUS FILHOS 173

Sendo a recidiva um período que as mães passam por diversas


dificuldades para se adaptar à nova situação, precisam de ajuda para
rearranjar a rotina hospitalar e familiar com a volta do tratamento.
Precisam elaborar as informações recebidas pelo médico, procurando
saber o que realmente está acontecendo e afastar a idéia da proximi-
dade da morte do filho. A ameaça da morte, permanente em seus
pensamentos, aguça indefinidamente as chamas da perda antecipada.
Para isso, questionam o sentido da volta da doença e buscam a cada
momento dar um significado a ela.
Este estudo mostra que é fundamental a troca de informações
nesse período da recidiva entre a equipe multidisciplinar, a família e
a criança, o que servirá de base para melhor compreender e forta-
lecer as relações interpessoais, e conseqüentemente, todos se senti-
rão mais capazes de dar um apoio integrado à criança e à família.
Quando o tratamento da recidiva do câncer não responde mais, pro-
cedimentos paliativos devem ser discutidos entre a equipe e a família
no intuito de propiciar uma melhor qualidade de vida à criança,
mesmo que a morte seja inevitável. A partir desse diálogo aberto é
possível evitar que os pais não se sintam desamparados e abandona-
dos pelos profissionais nesse momento tão difícil.
Os profissionais da equipe de oncologia pediátrica do Hospital
das Clínicas de Ribeirão Preto — USP mostram esta aproximação
adequada em relação à assistência das crianças doentes e seus fami-
liares, tenho percebido, dentro da minha experiência de pesquisadora
e profissional, a existência de um cuidado integral aos pacientes e à
família, não somente fazendo esclarecimentos técnicos sobre a reci-
diva, mas também conhecendo a subjetividade de cada participante.
Também tenho observado que as palavras, os gestos, os diálogos e os
silêncios que emergem das discussões entre a equipe, a família e a
criança manifestam a diversidade e a intensidade das relações entre
todos, indo ao encontro das situações-limite que são inerentes ao
processo de adoecer.
Deste modo, é vital destacar a reunião multidisciplinar que acon-
tece bi-semanalmente a fim de integrar a equipe, permitindo a dis-
cussão das experiências profissionais de cada área e refletir sobre elas
para melhor lidar com as especificidades de cada caso, onde todos
têm uma visão global e integrada do que está acontecendo e sendo
174 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

feito com a criança e a família. Além dessa troca de informações com


a equipe, é necessário um trabalho humanamente capacitado e pre-
ventivo, reconhecendo que o paciente, mesmo na condição de doen-
te, é uma pessoa com desejos, sentimentos e vontade de viver.
Almejo, com o presente estudo, despertar a atenção dos profis-
sionais da área de psico-oncologia pediátrica para que possam apri-
morar seus recursos pessoais e profissionais no sentido de implementar
seus atendimentos e criar estratégias face às reais necessidades das
mães e dos pacientes. E ainda, incentivar a equipe de Oncologia
Pediátrica, assim como os pesquisadores da área que reflitam sobre o
que verdadeiramente importa e tem significado para as famílias e as
crianças com recidiva de câncer. A partir daí, é possível criar condi-
ções mais humanizadas e dignas no trato com todos os envolvidos,
transmitindo-lhes confiança, mesmo que a morte seja inevitável.

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CAPÍTULO 4
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA
COM CÂNCER HOSPITALIZADA
EM IMINÊNCIA DE MORTE
Luciana de Lione Melo
Elizabeth Ranier Martins do Valle
1. A criança em iminência de morte

Uma das obsessões do homem moderno é tentar afastar a criança


da morte. Apesar desta atitude, a verdade é que a criança tem estado
historicamente vinculada à morte. Crianças já foram sacrificadas aos
deuses, para selar tratados de paz, torturadas, queimadas, assassinadas
ao longo dos tempos, e ainda o são até os dias de hoje.
Portanto, a morte na infância é uma realidade concreta. Para
HOFFMANN (1991), ela é revestida de especial crucialidade, pois
criança é sinônimo de alegria, crescimento e futuro. Em nossa con-
cepção de vida voltada para realizações materiais, a morte precoce é
vivenciada com grande resistência. A criança que morre estaria sen-
do privada do sentido de sua vida. Por isso, a maioria das pessoas
assume uma dificuldade maior em relação à morte de uma criança,
compreendendo-a como interrupção no ciclo de vida e de suas pos-
teriores descobertas. O morrer da criança apresenta-se, assim, como
a mais monstruosa, a mais impossível, a mais cruel de todas as reali-
dades, suscitando em todos, intensa ansiedade e medo.
Devemos considerar também que isto se deve por vivermos em
uma sociedade que se caracteriza por uma obsessiva repressão da
morte. Assim, necessitamos de recursos internos e externos para vi-
ver e acompanhar este estágio final da vida.
Antigamente, as epidemias dizimavam muitas vidas e a morte
de crianças era um evento muito freqüente. Com a rápida evolução
da Medicina nos últimos anos, este quadro alterou-se. A vacinação
184 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

em massa quase erradicou a maioria das doenças infecto-contagiosas


e os antibióticos contribuíram decisivamente para que houvesse um
decréscimo significativo na incidência da mortalidade geral e infan-
til (PINTO, 1996).
No entanto, a morte de crianças ainda pode se dar por vários
motivos como desnutrição, desidratação, algumas doenças infecto-
contagiosas, acidentes, violência, entre outros. Neste estudo nos
ateremos às crianças acometidas de câncer.
Com os progressos obtidos no tratamento do câncer, muitas cri-
anças se curam, porém cerca de 50% apresentam recidivas durante o
período de tratamento, até que se encontrem em situação de doença
refratária, onde o prognóstico é sombrio e não há mais opções tera-
pêuticas. Nos Estados Unidos aproximadamente 3.700 crianças
entre 5 e 9 anos de idade morrem a cada ano, sendo que parte signi-
ficativa deste índice ocorre devido ao câncer (CORR et al., 1996).
Desta forma, a criança acometida de câncer e seus familiares
passam a conviver com a dualidade morte-vida. Para os familiares, a
imposição de morte iminente de um filho leva a sentimentos bastan-
te difíceis e complexos, pois quando têm um filho, esperam que ele
cresça, tenha uma profissão, case e tenha filhos. De repente, todos
estes sonhos lhes são negados e o que resta de vida é transformado
em morte, uma vez que esta tem maior força.
Para a criança, a morte traz a idéia de separação definitiva do
corpo, perda dos pais, familiares e amigos, transformação brusca em
seus sonhos. Ela poderá, muitas vezes, sofrer angústias intensas que
se evidenciam e às vezes se escondem atrás de sintomas ou de difi-
culdades de conduta. Mas um aspecto de relevância é que, diante
desta situação, a criança fixa-se na vida que lhe resta e no comparti-
lhar desta com pessoas significativas. Já seus pais se preocupam com
a morte iminente. Este contexto poderá criar sentimentos ambíguos,
uma vez que criança e familiares parecem caminhar em direções opos-
tas, necessitando de toda ajuda possível (PRISZKULNIK, 1992).
RAIMBAULT (1979) relata a sua convivência com crianças
ameaçadas de morte. Uma de suas crianças fala: — Eles nada me
dizem, mas eu sei... tenho um tumor. A gente morre... existem crianças
que morrem, eu também vou morrer. Este relato denuncia o silêncio, o
desconhecimento e o medo em que se refugia o adulto. A criança
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 185

que tem uma percepção tão próxima da realidade, necessita de um


espaço para compartilhar seus pensamentos com os outros, mas o
que ocorre é que o adulto se cala, deixando a criança conviver sozi-
nha com a proximidade da morte, podendo levá-la a ter sentimentos
de estar sendo enganada.
A incompreensão do adulto, sua falta de resposta ou a resposta
com mentiras provocam mais dor e são causadores de diversos pro-
blemas. Ao mentir, o adulto acredita estar defendendo a criança do
sofrimento, como se, ao negar a dor pudesse magicamente anulá-la.
Além disso, acaba encorajando a ignorância e o esquecimento ao
assunto. Essa ausência de respostas às indagações infantis pode sufocar
o movimento exploratório necessário a todo processo de conheci-
mento e desenvolvimento e, como conseqüência, prejudicar suas
aquisições em vários níveis, podendo gerar distúrbios psicoafetivos,
tais como distúrbios da fala, anorexia, fobias, agitação, dentre outros
(PRISZKULNIK, 1992). Desta forma, o recusar-se a esclarecer ver-
balmente a morte, atravanca o primeiro momento da elaboração do
luto, que é a aceitação de que alguém desaparece para sempre.
Muitos pais não admitem que seu filho saiba da verdade; preferem
continuar a esconder sua tristeza atrás de uma fisionomia falsamente
alegre. Na maioria das vezes, a criança percebe a realidade camu-
flada e entra num jogo de mentiras, sente-se desconfiada, envolvida
num estado de confusão, desolamento, desesperança, passando tam-
bém a fingir. Tudo isto, pode favorecer o desencadeamento de algu-
mas reações na criança e nos familiares, aumentando consideravelmente
a dor e o sofrimento deste processo.
KÜBLER-ROSS (1977) descreveu algumas reações manifesta-
das por pacientes adultos em fase terminal, e de acordo com minha
experiência junto a crianças com câncer, considero extensiva a elas,
a seus familiares e à equipe de saúde. A autora deu atenção especial
ao papel que a negação, a raiva, a barganha, a depressão e finalmente
a aceitação representam neste percurso.
FLORES (1984), ao estudar as reações emocionais de crianças
terminais observou que estas compreendem a morte como cessação
da vida, perda do movimento vital, perda da existência e desapareci-
mento da lembrança (ser esquecido pelos outros). Observou que as
crianças terminais, além do medo da morte, apresentam o medo do
186 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

tratamento e do sofrimento agravados pelas separações constantes


dos familiares. Além disso, o mesmo autor evidenciou que as crian-
ças têm clara percepção da morte, mesmo sem ter obtido informa-
ções a respeito da gravidade de sua doença, contribuindo para isso
um contato mais íntimo e direto que a criança tem com seu corpo,
percebendo de imediato a deterioração que a doença provoca.
O aparecimento crescente de aparatos tecnológicos ao redor da
criança colocam-na diante da realidade da gravidade de sua situação
e conferem-lhe um sentimento de vulnerabilidade e fragilidade que
a qualquer custo a família tenta negar-lhe.
BERTOIA (1993) comenta que muitos familiares evitam falar
sobre morte com as crianças gravemente doentes, acreditando esta-
rem protegendo-as. Contudo, a autora enfatiza que apesar das diver-
gências “as crianças sempre sabem quando vão morrer”, afirmando
que na maioria dos casos, elas estão cientes da proximidade da morte,
porém só declaram tal percepção na dependência das suas relações
existentes com os adultos. São ainda capazes de comunicar-se cla-
ramente, entretanto, a atitude dos adultos pode interromper este
processo.
A criança espera que o adulto lhe diga a verdade, mesmo que
difícil. A mentira ou o silêncio só acrescentam confusão e dor a uma
permanente frustração. Entra em luta a convicção da realidade per-
cebida por ela e a que o adulto lhe relata.
KÜBLER-ROSS (1983) cita crianças que revelam seu conheci-
mento sobre a morte iminente através da linguagem não-verbal (de-
senhos e brincadeiras) ou também da linguagem verbal como por
exemplo esta criança de oito anos: Eu sei, eu vou morrer brevemente e
tenho que falar sobre isto.
VALLE (1997) também comenta sobre a expressão verbal e não
verbal de crianças com câncer ao abordar sua própria morte. Por
meio de frases, de histórias, de desenhos cujos temas são ameaças e
riscos, acidentes, estragos e perdas, dicotomias entre o bem e o mal,
mostram conhecimento sobre o assunto.
BERTOIA (1993) tem repetidamente encontrado desenhos de
crianças que revelam seu conhecimento sobre sua doença. Estes de-
senhos são usados pelos profissionais para compreender as idéias e os
sentimentos da criança doente e assim, melhor assistí-la e à sua famí-
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 187

lia no contexto de morte iminente. As crianças mais velhas são ca-


pazes de articular em linguagem verbal o que pensam, porém, muitas
vezes encontram o silêncio dos familiares, o que é extremamente
prejudicial a elas, pois ao perceber os acontecimentos, sentem-se
confusas e não têm como confirmá-los. O “não falar” sobre a morte
aumenta sua angústia e as deixa confusas.
Algumas crianças podem reprimir suas tristezas e preocupações
com medo de provocar rejeição nos adultos significativos para ela.
Configura-se, então, o que vários autores denominaram de “conspi-
ração do silêncio”. Com isto, a comunicação torna-se truncada e
estereotipada. A criança e a família vivem um estado de profunda
frustração e solidão (VALLE, 1990).
Adams apud CORR et al. (1996) descreve algumas necessida-
des da criança em iminência de morte de acordo com sua idade:
crianças pré-escolares têm preocupações sobre a causalidade da sua
doença, sobre ameaças em relação à imagem corporal, medo dos pro-
cedimentos hospitalares e medo de morrer. As crianças em fase esco-
lar preocupam-se com o futuro que não chegarão a conhecer, com
educação e relacionamentos familiares, mas também verbalizam sobre
procedimentos dolorosos e hospitalização. Portanto, os conceitos sobre
a morte e as necessidades de uma criança que vivencia a possibilidade
de morrer fazem parte da essência do ser-criança-com-câncer-em-
iminência-de-morte.
Isto mostra que, independente da compreensão da criança acer-
ca da sua vivência de terminalidade, o processo do morrer lhe revela
uma realidade bastante difícil de ser enfrentada, o que implica, tanto
para a criança como para o adulto, em uma sucessão de esforços e em
sentimento de sofrimento compartilhado que não pode e não deve
ser evitado, para que desse modo, ela sinta que os pais estão ao seu
lado, apoiando-a nesta trajetória.
O ocultamento da verdade para KOVÁCS (1994), perturba o
processo de luto da criança e sua relação com os adultos. A criança
tenta a princípio negar a morte, entretanto os fatos a contradizem; os
adultos significativos também o fazem, mas por vezes entram em con-
tradição, deixando-a completamente perturbada, não sabendo em
quem confiar, sentindo-se frustrada.
188 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Para BOWLBY (1985), as crianças têm modos semelhantes aos


dos adultos ao compartilharem o processo de luto. Nesta fase, é sabi-
do que a continência e o apoio são extremamente importantes, ao
contrário da falsa “proteção” à dor advindas do processo de morrer,
sendo esta atitude responsável pelas principais manifestações de sin-
tomas patológicos na criança.
Segundo RAIMBAULT (1979), para que o luto possa ocorrer é
necessário que haja um desenvestimento de energia, em geral, que
permita a introjeção do objeto perdido na forma de lembranças, pa-
lavras e atos, para que dessa forma seja possível estabelecer novos
vínculos.
Aparece nesta fase de aproximação da morte um sentimento de
culpa, tanto da criança como de seus pais, podendo ser consciente
ou inconsciente.
Assim, é de suma importância que a criança ameaçada de morte
compartilhe sua dor e angústia para que o processo de luto se efetive
e, com isto, haja espaço favorável a fim de elaborar seus medos.
FLORES (1984) cita um estudo realizado com crianças porta-
doras de doenças graves e com risco de vida, onde as mesmas expres-
saram medo de sofrer, de ficar mais doente e de ficar separada de
seus familiares. Na fase terminal, estas crianças muitas vezes não
diziam nada e recusavam-se aos cuidados da equipe de saúde, man-
tendo-se passivas a qualquer procedimento que lhes era realizado.
STEDEFORD (1986) complementa que os medos de morrer
mais freqüentes entre pacientes em fase terminal são: angústia de
separação, medo existencial, medo da doença, medo da dor, perda de
controle, morte súbita, medo de rejeição, o que vem corroborar com
os achados de FLORES (1984).
Há trabalhos que afirmam que a criança simboliza inadequada-
mente suas experiências e por isso passam emocionalmente a sofrer
mais. Isto se deve ao fato de que os adultos que a rodeiam tentam
durante todo o tempo negar-lhe a doença. Tal atitude impede que a
criança demonstre sua curiosidade e possa falar livremente sobre si.
Apesar de algumas controvérsias sobre a real percepção que a crian-
ça tem sobre a morte, FLORES (1984) acredita que ela tem todas as
potencialidades para metabolizar um luto, mas está impedida, a par-
tir do momento que os que a rodeiam negam a morte em si.
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 189

Em seu estudo com crianças em fase terminal, PERINA (1992)


afirma que, apesar de a criança apresentar condições cognitivas de
elaborar sua própria morte, quando há um agravamento da doença,
a mesma passa por um processo de regressão em seu desenvolvimento.
Sente-se extremamente frágil, às vezes como um bebê, que não agüenta
nenhuma frustração, precisando da constante presença da mãe por-
que são revividas angústias intensas de separação e aniquilamento.
Qualquer negativa é sentida como intensa frustração podendo levá-la
a se comportar como uma criança pequena. Isto é uma forma de
garantir a presença constante da mãe ou alguém significativo, para
não ficar sozinha e para não correr o risco de morrer sem ter nin-
guém por perto. Porém tudo isto dependerá do estágio da doença, do
grau de sofrimento, das características de personalidade da família e
da criança e da forma de enfrentamento de crises.
Diante de todo sofrimento vivido nesta fase, a criança terminal
necessita, indispensavelmente, de atenção, carinho, companhia, con-
vívio com outras crianças ameaçadas pelos mesmos fantasmas, para
que possam falar de seus medos, de suas angústias, de sua doença, de
suas fantasias sobre a morte, da morte do outro e da sua própria morte.
Para isso, ela precisa encontrar um espaço receptivo e acolhedor ade-
quado que possibilite um possível enfrentamento da morte.
Neste contexto é que a comunicação sobre o tema da morte
torna-se essencial. A criança que não encontra este espaço não con-
seguirá elaborar o processo de luto com êxito, lembrando que este é
foco importante para novo crescimento psicológico e social. Contu-
do, o inverso também é verdadeiro, pois a criança que não tem esta
oportunidade poderá desenvolver comportamentos compensatórios
que poderão causar prejuízos emocionais (TORRES et al., 1990). As
autoras enfatizam ainda que, o processo de luto antecipado da criança,
segue a trajetória de qualquer outro luto, podendo manifestar-se atra-
vés de vários sintomas como choro, perturbações no sono, tristeza,
raiva e que mesmo causando dor, será um caminho para o desenga-
jamento ou dissolução da laços.
Todo este processo de luto antecipatório ocorre no interior do
hospital, ao redor de uma série de manipulações e intervenções so-
bre o corpo que lembram punições que são acompanhadas por várias
implicações. O hospital é marco de crise, stress no curso da doença
190 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

(TORRES, 1980). Mas, o hospital não se reveste apenas deste cará-


ter traumático, pois para RAIMBAULT (1979), é lá que a criança
inicia o tratamento e tem esperança de alcançar a cura, o que muitas
vezes não é possível.
Entretanto, há um outro lado do hospital que não deve ser esque-
cido. A criança deixa de ser criança e passa a ser uma doença, deixando
gradativamente de ser sujeito ativo para ser passivo. Neste aspecto, o
hospital funciona como uma “mãe má”, onde a criança tem que se
comportar passivamente para ser considerada um “bom doente” e des-
ta forma não ser rejeitada. Em suma, o hospital anula a identidade da
criança e lhe confere outra, passiva e submissa (TORRES, 1980).
Além de todas as dificuldades já relatadas, acrescenta-se aquela
de a criança estar se confrontando com a própria morte e vivendo quase
sempre cercada pelo silêncio que prefigura o silêncio da própria mor-
te, ou seja, vive por antecipação um atributo do morto.
Para isso, é importante mantermo-nos abertos à intercomunicação
e à escuta para que a criança sinta-se amparada e protegida nesta fase,
incentivando a comunicação real com os pais, para que não se instale
uma conspiração de silêncio. É importante deixá-la fazer perguntas ou
manifestar-se através de brincadeiras. O silêncio pode ser mais confor-
tável para o adulto, mas para criança pode significar que seu sofrimento
está passando despercebido. É essencial que os familiares permaneçam
o maior tempo possível ao seu lado e que compartilhem com ela seus
últimos momentos, compreendendo-a como um indivíduo que vive e
não somente como aquele que vai morrer.

2. O encontro com Daniela

O encontro com Daniela deu-se em uma enfermaria especializada


em oncologia pediátrica da Unidade de Pediatria do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. A enfermaria
localiza-se em uma ala designada por Isolamento Protetor.
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 191

Considera-se Isolamento Protetor aquele cujo objetivo é prevenir


a transmissão de microrganismos potencialmente patogênicos a pessoas
não infectadas e com resistência seriamente diminuída (Martins apud
LIMA, 1990, p. 88). Há algumas normas que devem ser seguidas em
enfermarias de Isolamento Protetor a fim de prevenir infecções, pois
estas são as complicações mais freqüentes dos portadores de doenças
neoplásicas, sendo que mais de 80% das infecções são causadas por
microrganismos da flora normal. São elas: o quarto deve ser indivi-
dual ou a enfermaria restrita a pacientes com o mesmo diagnóstico e
a porta deve ser mantida fechada. Todas as pessoas que entrarem no
quarto devem ser paramentadas com avental e máscara. As mãos
devem ser lavadas à entrada e saída do quarto. Luvas devem ser usa-
das por todas as pessoas que tenham contato direto com o paciente.
Aparelhos devem ficar retidos no quarto e as roupas devem ser este-
rilizadas (LIMA, 1990).
Fica claro, então, que o Isolamento Protetor apresenta um as-
pecto de anti-sepsia local. Contudo, há de se considerar que toda
essa rigidez necessária, pode gerar uma assepsia física e psicológica,
pois as pessoas podem acreditar que para manter o ambiente “estéril”,
a criança e seus familiares devem ficar sozinhos. Assim, é relevante
dizer que o isolamento protetor é parte do tratamento, pois evita a
principal complicação que é a infecção, porém a criança e seus fami-
liares não devem ser isolados do contato com outras pessoas em nome
da prevenção de infecções. O convívio com outras pessoas é extre-
mamente importante a fim de que eles possam compartilhar este
crucial momento de suas vidas.
Aos encontros que realizei com a criança, denominei de acom-
panhamentos. Segundo FERREIRA (1986), acompanhar significa
seguir a mesma direção de, participar dos mesmos sentimentos.
Os acompanhamentos ocorriam diariamente, sendo que meu
tempo de permanência na enfermaria variava de uma a duas horas,
dependendo do estado geral da criança e da disponibilidade física e
psicológica desta para compartilhar suas experiências.
A partir da minha convivência com a criança através do acom-
panhamento individual, procurei criar um clima de confiança, ten-
tando não conduzí-la, acompanhando seu falar livremente de si, dos
outros e das coisas. A opção pela não condução está embasada no
192 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

referencial fenomenológico, pois o pesquisador não considera diante


de si o ser humano como seu objeto de pesquisa, mas um sujeito que tem
um mundo a ser desvelado (VALLE, 1997, p. 47).
Outro aspecto relevante na condução de pesquisa com seres
humanos dentro deste referencial diz respeito à atitude do pesquisa-
dor que deverá ser aberta e engajada. VALLE (1997, p. 49) explicita
essa atitude:
Aberta no sentido de aquele que pesquisa não se fechar à expe-
riência vivida como pesquisador, apreendendo tudo o que possa
surgir... isso porque ele deve manter a fidelidade ao fenômeno tal
como aparece, em processo, e não uma idéia pré-concebida a ser
percorrida rigidamente. A atitude engajada diz respeito ao tipo
especial de presença do cientista na pesquisa — colocar-se com-
pletamente dentro dela.
CARVALHO (1991, p. 29, 34) complementa:
Ver e observar de uma perspectiva fenomenológica é ver e observar a
partir do espaço e do tempo do paciente. O espaço do paciente é um
espaço habitado que se mede pela amplitude da vivência e
possibilidades de alcance e captação de sua ‘visada’ do mundo. É esse
espaço que se pretende alargado e dilatado, medida de existência e
não-existência de medida, que implique a transformação e não a
coloque. Espaço que seja criação contínua. O tempo do paciente, por
sua vez, é seu engajamento e consciência de si. Ver e observar a partir
do tempo do paciente é, portanto, captar a sua subjetividade. É poder
tocar essa subjetividade no seu movimento. É compreender de que
forma a pessoa significa ‘si mesmo para si’, em sua interioridade...
Ver e observar na abordagem fenomenológica é, portanto captar a
maneira do paciente de vivenciar o mundo.

Como já explicitado anteriormente, os acompanhamentos de-


ram-se no interior da enfermaria de Isolamento Protetor, onde per-
manecia a criança e também o acompanhante, que poderia ser pai,
mãe ou alguém significativo para a criança. Nesta situação, o
acompanhante era o padrasto. Durante a entrega do consentimen-
to informado, eu questionei o acompanhante sobre dúvidas a res-
peito deste e esclareci que o acompanhamento seria realizado ape-
nas com a criança. Entretanto, o padrasto permaneceu na enfer-
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 193

maria durante os acompanhamentos e participou ativamente des-


tes, considerando este espaço como adequado para também
verbalizar suas vivências de acompanhante de uma criança com
câncer em fase terminal. Contudo, neste estudo analisarei apenas
as falas da criança.
Utilizei a ajuda de um gravador e em alguns momentos onde
este recurso não foi possível, registrei a situação imediatamente após
cada acompanhamento.
Os acompanhamentos se deram durante todo o período
daquela internação7 da criança, após sua inclusão no estudo, apenas
sendo interrompidos por modificações na rotina da hospitalização.

3. O mundo habitado por Daniela

Daniela era procedente do interior do Estado da Bahia, tendo


residido em São Paulo e atualmente em Franca, interior do Estado
de São Paulo, próxima a Ribeirão Preto e primeira filha em uma
família com o total de três filhos (dois irmãos do sexo masculino
com idades de 7 e 5 anos). Após a vinda da família para São Paulo,
houve a separação entre os pais e desta forma a mãe, juntamente
com as três crianças mudaram-se para Franca, tendo perdido con-
tato com o pai das crianças. A mãe de Daniela (Antonia), nessa
cidade trabalhava como empregada doméstica e, após um ano, pas-
sou a residir com um outro companheiro (Antonio) juntamente
com as crianças, que segundo informações de Antonia as trata como
“se fossem seus próprios filhos”.
Daniela freqüentava a 4ª série do 1º Grau em uma escola da
Rede Municipal de Ensino de Franca. Antonia conta-me que

7. Quando refiro-me “daquela internação”, compreendo um determinado período de internação,


continuamente, sem interrupções. Quando por motivos diversos interrompia- se os
acompanhamentos, o mesmo era finalizado., já que como dito anteriormente a ênfase é dada na
permanência domiciliar.
194 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Daniela tinhas boas notas e muitos amigos na escola, enfatizando


que esta ‘nunca causou-lhe problemas’, pois era estudiosa e
dedicada.
Durante as férias escolares, segundo o padrasto, Daniela e
seus irmãos foram levados a um clube nos arredores da cidade
com intuito de divertirem-se. O passeio transcorreu sem proble-
mas, sendo que neste dia, Daniela passou a maior parte do tempo
na piscina. Após um mês, Daniela apresentou dificuldade auditi-
va e cefaléia frontal de forte intensidade, além de protrusão em
ambos os olhos. Ao ser levada ao médico, o diagnóstico foi de
irritação nos olhos, sendo medicada com colírio, evoluindo com
melhora do quadro. Entretanto, embora houvesse melhora da
protrusão ocular, Daniela passou a apresentar-se desanimada, apá-
tica e indisposta. Concomitantemente surgiram equimoses por
pequenos traumas e houve redução no apetite com perda de 2
quilos num intervalo de 30 dias.
Foi novamente levada ao médico que após exames complemen-
tares diagnosticou Leucemia Mielóide Aguda. Daniela foi encami-
nhada para o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto, por este apresentar serviço especializado em Oncologia
Pediátrica.
Após transferência da criança ao referido hospital, concluiu-se
o seguinte diagnóstico: Leucemia Mielóide Aguda, infiltração
leucêmica em rins e massa em região temporal próxima a órbita, si-
nais indicativos de metástase, o que mostra a gravidade da situação.
No início dos acompanhamentos, Daniela estava em sua ter-
ceira internação. Durante as internações era acompanhada por
Antonio (padrasto). Sua mãe permanecia em casa a fim de cuidar
de seus dois irmãos. Na primeira e segunda internações, o padras-
to relata que Antonia esteve mais próxima de Daniela, porém
com a piora do estado clínico, a mãe ‘não conseguia controlar seu
nervosismo’ e preferiu ficar à distância, cuidando dos afazeres do-
mésticos e dos outros filhos. Antonio relata que Daniela também
preferiu que Antonia ficasse em casa e que ele a acompanhasse
durante as internações.
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 195

4. Em busca da compreensão das


vivências de Daniela

4.1 A fala de Daniela


Ao interagir com Daniela, pude compartilhar de suas falas em
dois momentos: a criança estável clinicamente e consciente de seu
novo contexto (tratamento, doença, hospitalização e a família cola-
borando neste processo) e a criança em estado crítico.
Após realizar a análise das falas de Daniela, pude apreender as
seguintes categorias temáticas: Daniela fala do hospital, fala do tra-
tamento, fala de seus medos, percebe as alterações em seu corpo,
rememora sua vida fora do hospital, fala em uma crença em um Ser
superior e vive um momento crítico.

4.1.1 Daniela fala do hospital


Ao acompanhar Daniela, pude apreender que a mesma estava
familiarizada com a nova rotina, apesar do diagnóstico ter sido feito
recentemente. Apesar desta familiaridade, o hospital aparece em suas
falas, como tendo um aspecto negativo e hostil, uma vez que agora
este é o mundo que Daniela passou a habitar devido à doença.
Aqui no hospital eu não gosto de nada...

... todo mundo fica acordando à noite, não deixa dormir, eles fica
apagando e acendendo a luz...

Daniela busca certezas, porém só encontra desconfianças:


Aqui tudo é amanhã, já faz três dia que o exame vai ser amanhã,
aqui todos mentem para mim.

Ficar internada é ruim...

Tou cansada de ficar aqui internada...


196 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

4.1.2 Daniela fala do tratamento e de sua dor

...toda hora beber remédio...eu não gosto...

Ah, não, não faz isto não...você vai picar de novo? (dirige-se à auxiliar
de enfermagem que entra em seu quarto)

Tia, estou com dor nas barriga, não passa...mãe, eu não gosto desse
leite da sonda, dói a barriga. Tia, não quero leite, minha barriga tá
doendo...

... o remédio não passa a dor...

...ficá doente a gente não pode fazer nada, tudo cansa, tem que tomar
injeções...

Tia, eu tomei remédio forte e agora fico passando mal, fico fazendo
xixi toda hora... dá falta de ar, sono, mas não consigo dormir por
causa da falta de ar... aí colocou oxigênio e melhorou um pouco...

...não posso sair desse quarto, não consigo andar sozinha, não tenho
meus brinquedos, quero comer pão e não pode...

A criança fala de várias rotinas que lhe são impostas, como por
exemplo tomar medicação via oral, endovenosa e não poder sair da
enfermaria. Às vezes mostra recusa ao tratamento que está sendo
realizado:
Tira esse leite, dói minha barriga...mas eu não quero

Minha barriga tá doendo demais, não estou aguentando...

Meus braço e minhas perna tão inchado, não quero mais picada...

Entretanto, apesar do descontentamento e do desconforto,


Daniela já incorporou as rotinas em seu mundo, uma vez que mani-
pula com precisão uma bomba de infusão, o que é função da equipe
de enfermagem.
Não precisa chamar, eu sei arrumar. (A bomba de infusão alarma
e o padrasto faz menção de chamar a funcionária, mas a criança,
já habituada com as rotinas hospitalares, consegue arrumá-la).
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 197

Por várias vezes Daniela solicita e dá informações, parecendo


com isso mostrar seu querer apropriar-se do tratamento:

Tá calor...quero que abane...

Tio E., quando eu vou fazer exame?

Quero sentar no corredor, lá tem vento...

Mãe, que hora vou no exame?

4.1.3 Daniela fala de seus medos

Você espera meu pai voltar? ... Então me dá a mão. Eu tenho medo
de dormir sozinha, de ficar sozinha aqui no hospital... Por isso eu
gosto que ele fique. Tenho medo de ficar só, medo de morrer, de deixar
minha família...

Pai, fica aqui perto de mim...

Tia, me dá a mão, não me deixa sozinha, eu estou com medo, não sei
o que tá acontecendo comigo, a falta de ar tá piorando...

Tia, espera eu dormi, não vai embora agora não.

...eu fiquei muito doente, os remédio não adiantou, eu fiquei com


medo, não queria ficar sozinha.

Daniela revela seus medos mais íntimos e o faz de modo explíci-


to (medo da morte, da separação, de deixar a família, de ficar sozinha
no hospital). Com isto abre espaço para fazer-se compreendida neste
crucial momento de sua vida.

4.1.4 Daniela percebe as alterações em seu estado físico


Durante suas falas, Daniela verbaliza as modificações que ocor-
reram em seu corpo com o aparecimento da doença, o início do tra-
tamento e as conseqüências advindas do mesmo.
198 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Tia, óia (mostra as pernas), está inchada... passa a mão assim ó


(demonstra como ela quer que eu faça com suas pernas).

Tia, tou cansada...eu não estou melhorando...quero descansar...

Agora eu melhorei um pouco, mas ainda tenho falta de ar...se eu


falar muito fico com falta de ar...tou com falta de ar... minha barriga
tá doendo...

Quando há regressão de alguma modificação em si, a mesma é


vista como melhora da patologia como um todo.
Tia, óia minha perna, tá menos inchada.

Essa percepção que a criança tem de seu estado físico é descrita


pela literatura específica, mostrando que ela acompanha toda evolu-
ção e/ou involução destes acontecimentos, diferentemente dos adul-
tos que ignoram ou negam essas alterações.

4.1.5 Daniela rememora sua vida fora do hospital

Eu brincava de tudo... de casinha, de boneca, eu sei ler...

Eu gosto de piscina, de nadar, lá no clube...eu fui com meus irmãos.Eu


tenho dois irmãos, o Fábio e o Renato, eles estão lá em casa.

As falas mostram que as lembranças do período anterior à doen-


ça ainda estão bastante presentes.
Apesar de Daniela revelar a grande diferença que há entre
sua casa e o hospital, mostra que seu lar também já incorporou
rotinas hospitalares, mas ainda permanece sendo “o seu lar”, onde
a proteção é garantida pela presença de todos os familiares. Evi-
dencia também que seus comportamentos se alteraram devido às
limitações da doença.
Na minha casa eu gosto de tudo, só não gosto do remédio, meu pai
faz eu tomar, o gosto é ruim, eu prefiro comprimido.

Lá em casa eu só fico deitada na cama...não brinco...


VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 199

Há verbalizações que denotam o desejo de voltar para casa e a


esperança de viver sem a doença.
Eu fico com saudade deles e eles não pode entrar aqui...eu fico com
saudades dos meus irmãos.

Quero voltar para escola, ver minha professora, minhas amigas.

Quero ir embora para casa...

4.1.6 Daniela fala em uma crença em um Ser superior

Eu rezo toda noite pra Deus me curar...

Daniela demonstra acreditar em ser superior, depositando nele


a esperança de cura. Entretanto, ela dá sinais evidentes que conhece
a gravidade de sua doença, uma vez que também cogita, apesar da fé,
não ser possível obter a cura. Porém, esse momento de realidade é
novamente velado pela crença em um ser superior.
Tia, eu quero sarar, não quero mais ficar doente. Quero tomar todo
remédio direitinho para sara mais rápido, mas... eu sei também que
posso não melhorá... mas já pedi a Deus pra me ajudar...

4.1.7 Daniela vive um momento crítico


Este é um momento muito especial dos acompanhamentos, pois
houve uma acentuada piora no estado clínico de Daniela, tornando
a morte mais presente. Neste período, a criança deixa de conversar,
pois a dificuldade em manter-se consciente é muito grande. Quando
em seu estado há uma mínima melhora, ela volta a conversar, mas
indícios de que o estado ainda é grave aparecem em suas falas, pois a
doença afetou momentaneamente sua consciência da realidade e com
isso a criança passa a apresentar-se bastante agitada, com verbaliza-
ções desconexas e desorientada temporalmente.
Cadê meu irmão? Você pegou ele, cê viu ele?

Eu quero água e ninguém me dá, quero comer danone. E você por


que não corta o cabelo para ficar igual ao meu, mas me dá o seu...
200 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Deixa eu ver seu papel. Eu vou ler. Isto é uma música e eu não
conheço.

Em alguns momentos, parece ter consciência de suas necessida-


des e do ambiente que a cerca:
Quero comer, quero comer, me dá comida, ninguém me dá... tou com
calor, falta de ar, faz vento em mim...

Tá calor...tá calor...quero água...

4.2 Compreendendo Daniela


Ao compartilhar as vivências de Daniela, pude desvelar algu-
mas facetas de seu mundo-vivido em iminência de morte.
Daniela mostra-se, na grande maioria dos acompanhamentos,
bastante inserida na realidade que lhe foi imposta, percebendo as
rotinas hospitalares como parte integrante de seu novo contexto,
embora com queixas sobre ela e sofrendo o afastamento de seu lar.
Entretanto, ela vai além de um simples entendimento da situação,
comentando sobre o quanto o hospital e suas rotinas, com os proce-
dimentos técnicos dolorosos e as conseqüências do tratamento alte-
raram seu modo de vida. Apesar deste conflito, Daniela mostra que
está conseguindo vivenciar a situação de modo saudável, pois fala de
maneira espontânea e explícita de seus medos íntimos, como medo
de morrer, de deixar a família, de ficar sozinha no hospital.
Ao falar de seus medos, há a verbalização das alterações perce-
bidas em seu corpo, das limitações de seu estado físico ocorridas após
o aparecimento da doença e o início do tratamento; esta percepção
denota sentimentos de desconforto e de estrago em seu corpo. A
diferença entre o lar e o hospital emerge em suas falas. Contudo,
Daniela já fala de seu lar com novas incorporações advindas do tra-
tamento, lembrando que houve mudanças que trouxeram algumas
limitações em seu cotidiano. Mas a criança revela que há ainda espe-
rança de voltar a viver sem a doença, através de seu desejo manifesto
de retornar para casa e para a escola. Esta esperança vem acompa-
nhada por uma crença em um Ser superior. Daniela deposita toda
sua fé neste Ser, a fim de obter a cura. Porém, em um dado momento
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 201

ela vislumbra a impossibilidade de atingir a cura, mas dentro da com-


plexidade de sua situação, este momento é sobrepujado novamente
pela crença neste Ser superior, e a esperança se restabelece.
Toda essa verbalização da realidade vai se perdendo com a piora
de seu quadro clínico, até chegar a momentos onde mostra-se bas-
tante desconexa e desorientada temporalmente, aparecendo em suas
falas muitos fragmentos de recordações de sua vida antes do diag-
nóstico. Nesse estado crítico, em alguns momentos parece ter noção
de suas necessidades pessoais e do ambiente ao seu redor, o que re-
veste todo esse caminhar de uma ambigüidade entre a doença, o
tratamento e suas conseqüências, a esperança de curar-se e a presen-
ça cada vez mais próxima da morte.

5. Em busca do sentido das vivências


de Daniela

Buscar o sentido significa estabelecer um discurso feno-


menológico respaldado em um fenomenólogo. Através de disciplinas
realizadas, discussões e orientações, vislumbrei no discurso de Martin
Heidegger, em sua obra Ser e Tempo, uma possibilidade de compre-
ensão dessa facticidade — a morte iminente de uma criança com
câncer .
Em Heidegger, buscar o sentido é ultrapassar a verbalização, é ir
na direção do que funda o Ser-criança-com-câncer-em-morte-imi-
nente, é proceder ao avesso da facticidade, procurando desvelar o
que nela está velado.
HEIDEGGER (1997) comenta que a filosofia tradicional cons-
truiu um conceito metafísico de ser, ou seja, que entende o ser à
maneira do ente8. Esta forma de entendimento nunca conseguiu es-

8. Ente é “tudo de que falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela
maneira, ente é também o que e como nós mesmo somos” (HEIDEGGER, 1997).
202 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

clarecer a questão do ser e assim, a metafísica deixou sem resposta o


seu sentido. Diante disto, o autor retoma a questão do ser segundo o
método fenomenológico através de dois primados: afirma ser ôntico
os fatos que interessam em uma investigação científica, mas ao pro-
ceder ao questionamento do ser é do ente que se parte; e o ontológico
é o que funda a entidade, é o sentido do ser, ou seja, o ente em seu
desvelamento.
Em toda sua obra, Heidegger busca a compreensão do ser, deixan-
do transparecer como preocupação o mostrar-se do objeto em seu
movimento de velamento e desvelamento. Portanto, o homem é um
ser-aí (Dasein), que tem como horizonte o mundo, podendo se com-
preender a partir da existência da temporalidade. Desta forma, o ser-aí
é uma presença9 que existe e se desvela através do ser-no-mundo e do
ser-no-mundo-com-os-outros em busca do sentido do ser.
Ser-no-mundo, então, é uma constituição fundamental da
pre-sença nas suas formas de assumir uma relação com o mundo,
tornando-se estrutura essencial da vida cotidiana, sendo que esta
cotidianidade abrange a dimensão existencial da presença, onde ela
vive o desafio de existir ontologicamente, ou seja, viver autenti-
camente. Porém, diversas vezes, este existir no mundo se dá de modo
inautêntico, deixando-se guiar pelo domínio do impessoal, estando
no plano ôntico. Neste ponto, o homem se exime de suas responsabi-
lidades, não tem iniciativa, nem toma decisões, passando a ser um
mero imitador dos demais seres com os quais mantém relações
(HEIDEGGER, 1997).
Contudo, quando o homem vislumbra todas as suas possibilida-
des, tendo a coragem de olhar para a sua condição de não-ser, sen-
tindo a angústia do ser-para-a-morte, ele projeta-se numa vivência
autêntica de sua existência. Angústia para HEIDEGGER (1996, p.
33) não é um humor fraco, arbitrário e casual de um indivíduo singular,
mas sim a abertura ao fato de que, como ser lançado, a presença existe
para o seu fim. A angústia com a morte é angústia ‘com’ o poder ser mais
próprio, irremessível e insuperável (HEIDEGGER, 1996, p. 33). A an-
gústia, porém, é que permite que se mantenha aberta a ameaça ab-

9. Presença é o termo heideggeriano de concepção do humano como um processo de espacialização


e de temporalização, que guarda o ser e tenta manifestá-lo.
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 203

soluta e contínua de si-mesmo que emerge do ser mais próprio e sin-


gular do Ser-aí. O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia
(HEIDEGGER, 1996, p. 50). Como fonte de toda angústia, a morte
como finitude, como ameaça de não ser, pertence à própria existên-
cia e não pode ser suprimida.
Assim , a morte se apresenta como um fenômeno existencial e
singular que a pre-sença é chamada a assumir sozinha. Ela bloqueia a
realização de qualquer projeto já idealizado, pois é a possibilidade
última, suprema, pessoal e absoluta, que vem de fora, mas já sempre
se encontra presente na vida do homem que já nasce com idade
suficiente para morrer.
Nesse sentido, HEIDEGGER (1996, p. 20) esclarece que:
Ninguém pode assumir a morte do outro. De certo pode-se ‘morrer
por outrem’. No entanto isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo
outro ‘numa coisa e causa determinada’. Esse morrer por, no entanto,
jamais pode significar que a morte do outro lhe tenha sido, de alguma
maneira, retirada. Cada pre-sença deve, ela mesma e cada vez,
assumir a sua própria morte. Na medida em que ‘é’, a morte é,
essencialmente e cada vez, minha.

A vivência da morte para HEIDEGGER (1996, p. 42) está fun-


dada na possibilidade de que o homem ao existir, intercala momen-
tos autênticos e inautênticos, sendo que na maioria das vezes, vive
inautenticamente. Deste modo, a vivência da morte é a vivência da
inautenticidade, onde constantemente o privilégio do poder-ser-mais-
próprio é encoberto e com isto, passamos a morrer de nós mesmos. É
o não querer ter mais consciência da condição de ser lançado no
mundo para o seu fim, encontrando no falatório e na ambigüidade, a
interpretação do seu ser-para-a-morte.
A expressão falatório, segundo HEIDEGGER (1997, p. 227), sig-
nifica um fenômeno positivo que constitui o modo de ser da compreensão
e interpretação da pre-sença cotidiana. Ela possibilita a compreensão
de tudo, sem previamente ter-se apropriado de nada, pois jamais
mantém uma comunicação no modo de sua apropriação originária,
já que se satisfaz com um repetir e passar adiante a fala.
O ainda-não caracteriza o discurso ambíguo. Regida pelo fala-
tório, a ambigüidade nos é apresentada como casos de ocorrência
204 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

constante, nos quais ela é divulgada como algo real, mas retira-lhe a
possibilidade, quando o que está em jogo é o ser mais próprio e singu-
lar de cada pre-sença.
Assim, HEIDEGGER (1996, p. 41) parte da existência, da deca-
dência e da facticidade para interpretar o fenômeno da morte como
um ser-para-o-fim. Delimitando a morte enquanto um conceito
ontológico existencial nos diz que:
Enquanto fim da pre-sença a morte é a possibilidade mais própria,
irremessível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável da pre-
sença. Ela é e está em seu ser para o fim.

Entretanto, é através da fala que o ser-para-a-morte revela


seu ser-no-mundo que é também ser-no-mundo-com-os-outros.
É, portanto, no ouvir a fala que é possível compreender o sentido
da existência.
O estar-sendo (a existência) para Heidegger é sempre um sen-
do-para-a-morte e esta condição simples, mas ao mesmo tempo ex-
traordinária, nos mostra que a morte é a potencialidade existencial
do indivíduo e a verdade fundamental do significado de estar-sendo.
O ser-no-mundo é sempre um “ainda-não”, algo ainda não maturo.
Ser é, portanto, ser incompleto, não realizado, mas ao mesmo tempo,
todos aqueles que estão sendo estão-em-direção-ao-não-sendo, em
direção ao seu próprio fim.
Desta forma, somos temporalidade, pois é essa ambigüidade en-
tre o já vivido e o futuro que constitui o tempo. É importante pensar
que o tempo não é uma dimensão cronológica, medida em dias, me-
ses e anos, mas sim um horizonte de possibilidades do ser.
Diante do discurso heideggeriano, busco o sentido das vivências
de Daniela.
O Ser-criança-com-câncer-em-iminência-de-morte possui um
tempo cronológico que está se findando, ficando destituído de sua
temporalidade e centrado no tempo sem sentido e sem sentí-lo.
Preso à temporalidade de passado e presente, parece fechar-se,
por momentos, ao porvir, ao futuro. Para Heidegger, o futuro
não é uma coisa que ainda vai ser, é um “movimento para”, “um
ir para”.
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 205

À medida que vai atingindo sua finitude, a criança com câncer,


deixa de viver sua existência10, sendo que esta passa a ser do outro,
ou seja, da família e da equipe de saúde, pois são eles que passam a
decidir pela criança. Não se vendo como possibilidade pura, a pre-
sença existe fechada, quando na verdade ela é um ser de relações,
abertura e possibilidades.
Entretanto, esse conviver da criança com o outro subentende
um envolvimento humano, no qual é possível estabelecer uma rela-
ção dinâmica e bilateral, na tentativa de um autêntico Ser-com.
Daniela pede a proximidade do padrasto, o contato físico com a en-
fermeira, bem como a sua presença.
Na tentativa de apreender o sentido das vivências de Daniela
enquanto Ser-para-a-morte, a partir dos aspectos ônticos, busquei os
aspectos ontológicos ali velados, isto é, sua compreensão de mundo.
Uma das facetas reveladas foi em relação a sua permanência
dentro do hospital. As falas mostram que Daniela vive uma
facticidade, pois foi lançada neste novo mundo, sem oportunidade
de escolha. Uma vez lançada ao mundo de todos, vive a cotidianidade,
o impessoal.
HEIDEGGER (1997) comenta que é próprio da pre-sença coti-
diana o impessoal. Sendo assim, cada pre-sença se acha dispersa na
impessoalidade, precisando encontrar-se a si mesma. Esta impes-
soalidade no cotidiano do hospital é revelada na seguinte fala:
...todo mundo fica acordando à noite, não deixa dormir, eles fica
apagando e acendendo a luz...

Daniela habita o mundo da doença grave que necessita de hos-


pitalização. Habitar esse mundo significa ter familiaridade com ele,
com suas rotinas e equipamentos (como quando consegue controlar
a bomba de infusão), com suas limitações (não poder fazer nada,
sentir falta de ar), os procedimentos invasivos (tomar medicação
endovenosa, colocar sonda nasogástrica). Percebe-se neste mundo
impessoalmente. Isto revela o modo do ser-para-a-morte cotidiano,
que desvia-se do seu ser mais próprio, aderindo a um cotidiano

10. Existência é “o próprio ser com o qual o “Ser-aí” pode se comportar dessa ou daquela maneira
e com o qual ele sempre se comporta de alguma maneira” (HEIDEGGER, 1997, p. 39).
206 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

inautêntico que encontra na decadência11 o seu movimento próprio,


que se deixa conduzir pela banalidade do ôntico.
Neste mundo não escolhido, a presença teme, pois há uma pos-
sibilidade futura que ameaça seu próprio ser. Daniela teme todo o
contexto no qual agora está envolvida e nos mostra através de sua
verbalização em relação ao tratamento e à dor por ele causado:
Meus braço e minhas perna tão inchado, não quero mais picada...

HEIDEGGER (1997, p. 197) comenta que em determinado


momento este temor pode modificar-se:
Na medida em que uma ameaça, em seu ‘na verdade ainda não, mas
a qualquer momento sim’, subitamente se abate sobre o ser-no-mundo
e o temor se transforma em pavor.

Esta transformação se dá também para Daniela através da


verbalização de seus medos, conforme se vê em uma de suas falas:
Tia, me dá a mão, não me deixa sozinha, eu estou com medo, não sei
o que está acontecendo comigo, a falta de ar tá piorando...

Ao verbalizar seus medos, Daniela passa de uma vivência inau-


têntica para o vislumbrar da autenticidade, pois revela-se angustiada
com os acontecimentos. Em Heidegger, o existir angustiado é carac-
terizado por uma busca constante de si mesmo, um despertar para o
existir na verdade do ser.
HEIDEGGER (1997, p. 251) complementa esse pensamento
quando diz:
A angústia singulariza a presença em seu próprio ser-no-mundo que,
na compreensão, se projeta essencialmente para possibilidades.

Na angústia, a presença é chamada à existência e assim retirada


do plano ôntico e colocada no plano ontológico, isto é, diante de si
mesma, passando a sentir a possibilidade do próprio não-ser, do ser-
para-a-morte, do nada.

11. Decadência significa que, em primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença está
junto e no “mundo” das ocupações.
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 207

Por várias vezes, Daniela ao querer apropriar-se de seu trata-


mento, resiste em ser tratada como algo fechado e luta pelo existir
autêntico, que é uma maneira diferente do ser-aí comportar-se em
relação ao mundo:
Tá calor... quero que abane...

Mãe, que hora vou no exame?

Ao existir autenticamente, sua angústia pode transformar-se em


medo da morte, do deixar de viver. Mas, no existir autêntico, a sua
angústia é aceitar sua própria finitude, o seu poder-ser mais próprio,
irremessível e insuperável, o ser-para-a-morte.
...tenho medo de ficar só, medo de morrer, medo de deixar minha família...

Esta vivência autêntica, como já dito anteriormente, intercala


vivências inautênticas. Ao mesmo tempo que Daniela percebe piora
de seu estado clínico, também espera que esse piorar regrida e haja
melhora. As duas falas abaixo mostram o explicitado:
Eu não estou melhorando... Quero descansar...

Tia, óia minha perna, tá menos inchada.

A esperança de cura que Daniela manifesta está existencialmente


fundada não no porvir, mas no vigor de ter sido. A esperança em
oposição ao temor, costuma caracterizar-se como espera de um bonum
futurum, apoiada numa fé religiosa (DAMASCENO, 1997). Esta os-
cilação entre autenticidade e inautenticidade, assegura a retomada
dos laços que a prendem à banalidade cotidiana:
Tia, eu quero sarar, não quero mais ficar doente. Quero tomar todo
remédio direitinho para sará mais rápido, mas... eu sei também que
posso não melhorá... mas já pedi a Deus pra me ajudar...

Daniela ora ganha-se ao enfrentar o desafio de vivenciar o coti-


diano autenticamente, de despertar de si mesma como possibilidade
pura, ora perde-se ao novamente submergir na inautenticidade do
cotidiano, fechando-se num aí.
208 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Este ir e vir, acontece com Daniela, mesmo quando esta encon-


tra-se num momento crítico, onde é visível uma acentuada piora do
estado clínico e suas falas já emergem bastantes desconexas, reto-
mando, contudo, algumas vezes, a consciência de sua existência. Isto
fica explícito nas seguintes falas:
Cadê meu irmão? Você pegou ele, se viu ele?

Quero comer, quero comer, me dá comida, ninguém me dá...

Para Heidegger este ir e vir da inautenticidade é uma forma de


permanecer fechado à maneira da entidade, não sendo aí possível
captar o sentido das vivências. Daí a necessidade de se buscar o sen-
tido velado nas significações extraídas das falas de Daniela, no seu
modo de ser diante da iminência da morte.
No entanto, apesar de todo esforço, tenho claro que não foi
possível esgotar a plenitude do sentido, pois este é inesgotável. O
desvelado foi o horizonte alcançado por minha compreensão que
nunca se dará plenamente. O velado permanece encoberto,
inapreensível diante da impossibilidade de se captar todas as possibi-
lidades existenciais de um Ser-no-mundo.

6. Considerações Finais

Nesta pesquisa busquei desvelar o mundo vivido de uma crian-


ça com câncer em iminência de morte. Através do método
fenomenológico vislumbrei um caminho que me permitiu compre-
ender o sentido das vivências de Daniela, que como ser humano ex-
periencia o ser-com uma doença grave e em iminência de morte.
Ao refletir sobre o existir de Daniela, nessa situação extrema,
aproximei-me do pensar ontológico de Martin Heidegger, que anali-
sa o Ser do homem em suas mais amplas dimensões, vindo ao encon-
tro de meus questionamentos. Diante do caminho mostrado pela
ontologia, percebi que não se trata de encontrar respostas precisas e
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 209

exatas, mas de compreender as várias formas de algo tornar-se mani-


festo, sentido, percebido.
Por maior que tenha sido minha aproximação à essência deste
Ser-criança-com-câncer-em-iminência-de-morte, ainda ficam la-
cunas, um por-ser que não me é totalmente desvelado na sua
completude.
Entretanto, o estar convivendo com as crianças com câncer em
iminência de morte e mais proximamente de Daniela fizeram-me
repensar vários aspectos de minha existência pessoal e profissional,
fazendo desta, uma experiência imensamente enriquecedora, já que
atualmente vivemos uma época difícil, onde a pessoa humana não é
considerada e onde o homem não tem perspectivas de mudar esta
situação. Desta forma, é importante que qualquer ação humana seja
orientada no sentido da valorização da pessoa.
Em sendo-com, nos relacionamos com uma variedade de indivíduos
em diversas fases da vida, costumes e culturas diferentes. Faz-se neces-
sário, que cultivemos dentre outras coisas, a capacidade de relaciona-
mento interpessoal, pois ao vivenciar a doença grave de forma autêntica
ou inautêntica, o certo é que não existe um sujeito e uma doença
separados, mas sim um Ser que adoece. Este Ser vivencia o processo de
morte iminente enquanto uma experiência pessoal e única.
A criança que convive com o câncer e percebe que não está
melhorando, por mais que a equipe de saúde procure animá-la, o
sentir-se a si mesma intui-lhe que está em direção ao fim, surgindo
muitas incertezas, que inquieta e incita o sentimento de medo, medo
do desconhecido, do vir-a-ser.
Assim, o tempo do Ser-criança-com-câncer-em-iminência-de-
morte é tempo de incertezas, dúvidas e medo. Para atenuar esse existir
sofrido, a criança deve ser apoiada e sentir a presença de seus fami-
liares e da equipe de saúde, mantendo a possibilidade de Ser-com.
Entendo que a finitude é um processo individual e que não exis-
tem receitas prontas de como agir a não ser descobrindo, junto à pró-
pria criança, do que ela precisa, para o alívio dos sintomas, para seu
conforto e para a sua qualidade de vida até a morte.
Ao admitirmos que os recursos científicos já não são suficientes
para atingir a cura da criança com câncer, faz-se necessário nos
instrumentalizarmos para oferecermos o que na atualidade vem sen-
210 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

do bastante discutido: os cuidados paliativos. Esta nova abordagem


compreende, dentre outros, o controle da dor e dos demais sintomas
desconfortáveis, além da compreensão dos problemas psicológicos e
sociais, favorecendo ao máximo o bem estar e o conforto da criança.
É importante que haja uma preocupação por parte dos profissio-
nais de saúde, não apenas com o curar, mas principalmente com o
cuidar entendido como um autêntico Ser-com-o-outro. O cuidar,
compreendido como cuidado paliativo, tem como meta a mais alta
qualidade de vida do doente em iminência de morte e de sua família.
Imbricado a este cuidado está a comunicação. Esta é parte es-
sen-cial do relacionamento efetivo entre equipe de saúde, criança e
família. É através da comunicação, na relação com a criança, que a
equipe de saúde desempenha suas funções; faz com que esta se mova
da dependência para a interdependência e independência, sauda-
velmente, reconhecendo suas potencialidades e aceitando suas limi-
tações, tornando-se participante ativa no seu cuidado.
O profissional de saúde pode aproximar-se da criança e de sua
família, através do esforço empreendido para atingir uma boa assistên-
cia a ambos; enfrentando situações que surgem como por exemplo,
respondendo às questões que a criança lhe faz, por mais difíceis que
sejam, sem mentir-lhe, ajudando-a a entender o que está se passando
consigo através de sua atenção e sensibilidade às suas expressões.
Mais do que a morte, a criança tem medo da separação e do
abandono. É na qualidade das suas relações com sua família e equi-
pe, nas trocas afetivas que reside a certeza da criança de poder con-
tar com elas, sentir-se segura, confiante, apesar das ameaças que a
circundam (VALLE, 1997).
A mesma autora enfatiza que ajudar a criança é dar apoio aos
pais. É preciso considerar o turbilhão em que se encontra mergulha-
da a família; por isso as informações devem ser repetidas, a agressivi-
dade e a negação toleradas. É essencial preservar as trocas verbais e
emocionais; manter uma ajuda recíproca — pais e profissionais de
saúde — para melhorar a qualidade da assistência à criança.
Os profissionais envolvidos nesta problemática devem inces-
santemente buscar os aspectos vivenciais e não considerar unica-
mente o aspecto intelectual e teórico, pois desta maneira poderá
apreender o que está sendo mostrado, no sentido de um
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 211

desvelamento desse cotidiano de doença grave, em que uma crian-


ça está em iminência de morte.
O olhar dos profissionais deve ser amplo e estar sempre motivado
a ampliações constantes, permitindo uma visão do existir humano
em sua totalidade, abrangendo os fenômenos da vida e da morte.
A angústia da morte geralmente não é assumida pelo ser
huma-no, principalmente na nossa sociedade. Assim, é necessá-
rio haver uma retomada dos conceitos vida-morte, para encarar
a realidade da finitude do ser. Esta tarefa é árdua e penosa, mas
deve ser vista como um direito e um dever daqueles profissio-
nais ligados ao campo da saúde. Será benéfico o lidar com seus
próprios sentimentos acerca da questão mencionada. Ainda que
sofrida, a possibilidade do não-ser-mais-aí deve ser enfrentada
com o intuito de se chegar à compreensão ontológica do ser.
Somente quando os profissionais entenderem a morte como parte
da existência e não como um ponto final, somente quando tam-
bém compreenderem que todo ser é um ser-para-a-morte, é que
eles poderão assumir a sua própria humanidade e se relacio-
narem de maneira autêntica com os outros seres que, pela
facticidade do mundo, estão vivendo uma situação de morte
iminente (OLIVIERI, 1985).
A criança com câncer é fragilizada e sensível pela sua própria
doença. Portanto, ao assistí-la, são necessárias atitudes de ajuda
que possam minimizar sua angústia. O envolvimento da equipe de
saúde através do estar-com a criança doente, é para Heidegger uma
forma de solicitude.
A solicitude é o modo de ser através do qual os homens se
relacionam entre si, podendo manifestar-se autêntica ou inautênti-
camente. A solicitude pode desenvolver-se enquanto paciência e
consideração ou em modos deficientes como a negligência e a
desconsideração. A consideração e a paciência por sua vez po-
dem assumir extremos de libertador e dominador. O extremo
dominador é o que acontece no cotidiano, é o saltar sobre o
outro, retirando dele a responsabilidade de seu ser. O extremo
libertador é aquele que salta diante do outro, possibilitando o cres-
cimento e a responsabilidade de encontrar-se consigo mesmo
(HEIDEGGER, 1997).
212 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Assim, o profissional de saúde deve possibilitar o crescimento e


a compreensão do momento doloroso que a criança próxima de sua
morte e sua família precisam enfrentar.
Para isso, a equipe de saúde necessita de um “instrumento”: a
compreensão. Compreender de forma única a singularidade destes
seres em sofrimento, adotando uma postura reflexiva e aceitando a
morte como um atributo inalienável do ser-aí.
Torna-se evidente, então, a necessidade de uma aproximação exis-
tencial do profissional de saúde ao paciente, através de uma atitude
humana e ontológica, compreendendo o outro em sua facticidade.
Para compreender o outro é preciso transportar-se para o outro,
imaginar-se no lugar dele. Do mesmo modo que se poderá estar em
algum lugar ou viajar a alguma parte pelo imaginar, assim também é
possível transportar-se para o outro e sentir o que ele vivencia. Pare-
ce, assim, indispensável, ao ser-com-a-criança-com-câncer-em-mor-
te-iminente, sentir e apreender o sentido daquilo que nos mostra,
não só com palavras como também através de gestos e do seu portar-
se, enfim, de seus modos de ser nessa situação.
VALLE (1997) através de suas pesquisas, pôde captar como a
doença e a perspectiva de morte costuma ser fonte de crescimento e
amadurecimento emocional, um acontecimento existencial enri-
quecedor para as pessoas doentes e para os que delas cuidam. Justa-
mente por deparar-se com uma situação inesperada e fora de seu
controle, a pessoa que adoece pode dar-se conta de uma outra di-
mensão de sua existência. As crianças, muitas vezes, adquirem ma-
turidade e um senso de valor aos olhos de seus pais e mesmo da
equipe, pelas experiências de sofrimento e dor que suportam e en-
frentam. A percepção de serem enxergadas com essa dimensão pode
ajudá-las a evoluir nessa direção. Em tais condições, as crianças po-
dem encontrar uma segurança na relação com os adultos que a cer-
cam, que as ajudam a suportar a doença.
As inquietações que me conduziram para tal propósito fazem
parte da minha existência, como ser temporal e histórico, lançado
no mundo pessoal e profissional. Mundo este recheado por situações
conflitantes. Entretanto, acredito que, se cada vez mais voltarmos
nossos olhares ao Ser que sofre, estaremos ampliando horizontes e
construindo um mundo mais compreensivo e humano.
VIVÊNCIAS DE UMA CRIANÇA COM CÂNCER HOSPITALIZADA EM IMINÊNCIA DE MORTE 213

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207p.
CAPÍTULO 5
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS
COM CÂNCER: UM DESAFIO À ATUAÇÃO
MULTIPROFISSIONAL
Gisele Machado da Silva Moreira
Elizabeth Ranier Martins do Valle
1. Introdução

O sucesso da medicina no tratamento do câncer infantil, visando


o desaparecimento da doença com o mínimo de seqüelas físicas ou
emocionais, tem sido responsável pelo crescimento de uma popu-
lação sem precedentes na história: a população de jovens cuja infância
foi marcada pelo adoecimento e subseqüente cura de uma neoplasia
maligna. As crianças que sobreviveram ao câncer estão prontas para
freqüentar a escola, conviver com seus pares e futuramente integrar
a força de trabalho, pois continuam sendo crianças com potencial
para crescer e se desenvolver como quaisquer outras (DEASY-
SPINETTA, 1981; PECKHAM, 1991).
Todavia, em linhas gerais, quando a criança com câncer chega à
escola ainda traz alguns efeitos colaterais do tratamento, que é longo e
invasivo, tais como, perda dos cabelos, náusea, fadiga, dentre outros.
Isto faz com que estas crianças representem uma nova população tam-
bém dentro da escola, que por suas características, não pertence ao tra-
dicional grupo dos alunos especiais, constituído por crianças com algum
tipo de deficiência visual, auditiva ou intelectual. Estas crianças geral-
mente são antigos alunos da escola que agora, vitimizados por uma
doença estigmatizada e potencialmente fatal como o câncer, adquiriram
218 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

a necessidade de cuidados especiais que são transitórios e distintos de


acordo com a fase de seu tratamento. Este capítulo focaliza a escolarida-
de da criança com câncer em algumas de suas inúmeras faces, tais como,
a escola diante de seu aluno doente, a criança com câncer e sua família
frente à reinserção escolar12 e o papel dos centros de tratamento de cân-
cer infantil na questão da escolaridade de seus pacientes.

2. A vivência escolar

O câncer não interrompe o processo de desenvolvimento infantil,


entretanto restrições físicas e ou psicossociais impostas pela doença e
pelo tratamento podem retardá-lo. A preocupação das equipes de saúde
atualmente envolve a cura orgânica do câncer com o mínimo de pre-
juízo da capacidade de crescimento e desenvolvimento da criança e a
cura psicossocial, para que esta se mantenha intelectual, social, emocional
e fisicamente adaptada às funções pertinentes a sua idade.
Segundo VENDRÚSCULO (1998), a compreensão acerca do
desenvolvimento das crianças portadoras de doenças crônicas deve
estar sempre pautada no processo de desenvolvimento normal. Para
a criança com câncer, isto se dará em uma situação que acrescenta
dificuldades àquelas previstas, mas que são passíveis de serem supe-
radas se bem assistidas pela equipe hospitalar. Esta, deve estar infor-
mada sobre o que é esperado em cada etapa do desenvolvimento
infantil para ajudar seus pacientes a vivenciar e superar tarefas.
De acordo com os sócio-interacionistas o desenvolvimento se
dá por meio da interação entre o sujeito e o mundo, através das trocas
sociais. Assim, em conjunto com a família, a escola exerce um papel
importantíssimo na formação da identidade pessoal e social da criança,
pois dentro de seu ambiente, nas interações com os adultos e com
seus pares, as crianças desenvolvem as habilidades cognitivas e sociais

12. O termo reinserção escolar será usado para designar a volta da criança à escola após o diagnóstico
do câncer, independente de seu período de afastamento.
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 219

necessárias à formação de um senso de independência, competência


e ética, além de adquirirem conhecimentos acadêmicos, políticos e
sociais. Ao entrar na escola a criança descobre um outro universo,
ampliam-se suas oportunidades de trocas e ela pode experienciar
novos e diferentes papéis complementares, tais como aluno, colega,
amigo (OLIVEIRA et al., 1996).
A educação formal pode possibilitar ao homem uma visão cons-
ciente do amplo contexto social no qual está inserido, dando-lhe meios
de se posicionar criticamente perante a sociedade (FREIRE, 1996).
O adoecimento por câncer tende a nutrir a passividade e a depen-
dências nas crianças devido às características de sua terapêutica longa,
agressiva, impositiva, dentre outras, o que pode ser minimizado pela par-
ticipação nas atividades escolares e outras relacionadas à escola.
Particularmente, quando se trata de uma criança portadora de
câncer, a freqüência à escola lhe diz: “Você tem um futuro!”, sinali-
zando-lhe possibilidades concretas de normalidade (NUCCI, 1998).
Neste sentido, a continuidade escolar pode embasar o discurso mé-
dico que apresenta a perspectiva de cura, amenizando o impacto oca-
sionado pelo diagnóstico da doença.
A manutenção das atividades cotidianas da criança com câncer o
mais próximo possível do que era anteriormente ao aparecimento da do-
ença, com a conservação dos compromissos sociais e a freqüência à escola,
pode contribuir para que ela cultive acesa a esperança de sobreviver por
meio da “construção” de seu futuro. A esperança é o que ajuda o paciente
a manter o seu ânimo, a suportar os dissabores da doença, é o que os con-
forta nos momentos críticos e é o sentimento que usualmente persiste du-
rante todos os estágios da doença e do tratamento (KÜBLER-ROSS, 1977).
A literatura psicossocial sobre o câncer na infância nos Estados
Unidos, na Europa e também aqui no Brasil vem enfatizando a ne-
cessidade da criança doente não se afastar do convívio social e a
escolaridade é significativamente destacada (WEITZMAN, 1982;
VARNI et al, 1994; VALLE, 1994; NUCCI, 1998; FUNGHETTO,
1998; GONÇALVES & VALLE, 1999). Para VENDRÚSCULO
(1998), a escola é o local onde as crianças experienciam o sucesso, a
realização e o senso de competência, sendo que a abstinência escolar
pode levar à perda destas experiências que levam ao desenvolvimen-
to normal da auto-estima e do senso de domínio e controle sobre seu
220 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

ambiente. Com a manutenção da escolaridade a criança está garan-


tindo seu futuro acadêmico e profissional, além de manter-se adap-
tada ao meio social e escolar, o que lhe possibilita uma melhor quali-
dade de vida durante e após o tratamento (VARNI et al, 1994).
O câncer infantil é muito impactante para a vida da criança sob
vários aspectos, atingindo do polo prático e objetivo ao seu extremo
que envolve o emocional e individual da criança e de seus familiares.
Sendo assim, até mesmo a cura da doença exige uma readaptação
pessoal num processo que apresenta avanços e recuos, onde a evolu-
ção de cada criança está relacionada às suas próprias possibilidades e
às condições em que foi cuidada pela família e pela equipe hospitalar.
Deste modo, quanto mais integrada às vivências diárias próprias de
sua idade, como a freqüência à escola, mais facilidade terá neste pro-
cesso de readaptação ao mundo livre da doença (VALLE, 1994).
Os benefícios da vivência escolar para a criança com câncer são
claros. Entretanto, esta atividade encontra enormes barreiras práti-
cas que estão relacionadas ao próprio tratamento antineoplásico e
seus efeitos colaterais, ao despreparo da equipe escolar para o acolhi-
mento de seu aluno com câncer, à rejeição, ao preconceito e à desin-
formação dos demais alunos com relação à criança em tratamento,
às inseguranças da família em manter a freqüência escolar de seu
filho doente, à falta de comunicação entre os hospitais e as escolas
das crianças, dentre outros.

3. Efeitos colaterais do tratamento e


sua relação com o desenvolvimento
acadêmico

Os efeitos neurológicos do tratamento antineoplásico que pode


envolver cirurgia no sistema nervoso para remoção de tumor,
quimioterapia intratecal e radioterapia craniana são sentidos emi-
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 221

nentemente no setting escolar. Certas doses de quimioterápicos ou


dados procedimentos cirúrgicos podem, por exemplo, comprometer
as funções sensoriais temporária ou definitivamente, alterando a vi-
são e a audição do paciente. Em geral, as crianças tratadas de câncer
têm um desempenho intelectual situado dentro da média. Compa-
rando crianças que receberam um tratamento direcionado ao siste-
ma nervoso central com aquelas que não receberam, não foram
encontradas diferenças significativas entre os dois grupos, embora os
índices de desempenho mais precários estejam associados às que re-
cebem profilaxia do sistema nervoso central (PECKHAM, 1991).
Existem estudos que evidenciam uma maior probabilidade de
déficts intelectuais em crianças que receberam radiação craniana
antes dos oito anos em comparação com aquelas que a receberam
após esta idade. Estes têm evidenciado dificuldades específicas rela-
cionadas à atenção, memória, integração viso-motora e performance
em testes de QI como as baterias Wechsler (MEADOWS, et al, 1981;
JANNOUN et al, 1987; in PECKHAM, 1991).
Para algumas crianças os efeitos colaterais do tratamento desa-
parecem por completo após aproximadamente um ano. Contudo, os
estudos que envolvem este tópico não são conclusivos. Concordan-
do que o grau dos efeitos tardios do tratamento varia conforme a
individualidade de cada um e seu protocolo terapêutico específico. É
importante que as crianças que receberam terapêutica direcionada
ao sistema nervoso central sejam acompanhadas por meio de avalia-
ções neuropsicológicas e monitoramento de sua performance no sis-
tema educacional para que suas deficiências possam ser supridas por
meio de intervenções apropriadas (PECKHAM, 1991).
Alguns problemas de aprendizagem podem ser agravados por
serem confundidos com dificuldades comportamentais, onde, defi-
ciências reais de atenção, memória e desânimo generalizado em relação
às atividades escolares são confundidos com preguiça, depressão,
problemas familiares ou questões emocionais inespecíficas. A equipe
escolar deve se ater sempre ao impacto físico e emocional causado
pelo câncer e sua terapêutica na vida da criança para que suas atitudes
não causem frustração e sim contribuam ao bom desempenho escolar
de seu aluno (GRANOWETTER, 1994; in BEARISON, 1994).
222 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

DEASY-SPINETTA (1981) dirigiu um estudo longitudinal que


abrangeu um período de 3 anos, onde professores responderam a um
questionário comportamental — Deasy-Spinetta Behavioral
Questionaire — avaliando a performance escolar de crianças com cân-
cer, comparando-as a grupos controle (estudantes típicos). Seus resul-
tados indicam que na escola as crianças já curadas, ou em tratamento,
brincam, discutem e brigam como as demais, além de não se mostra-
rem muito apegadas ou dependentes. Em algumas áreas as professoras
relataram diferenças significativas entre os dois grupos: as crianças com
câncer foram apontadas como tendo uma freqüência escolar e um cum-
primento de tarefas irregular, maior dificuldade de concentração, de
memória, de aprendizagem de leitura, de matemática e menos energia
física. As professoras avaliaram as crianças com câncer como tendo
mais dificuldade em iniciar atividades formais ou desestruturadas, sendo
mais contidas emocionalmente que as do grupo controle, mais tímidas
e mais preocupadas que as demais, embora também apresentem com-
portamentos de choro, lamúria, frustração, raiva, alegria, amor, solida-
riedade, tristeza, dentre outros.
Efeitos do tratamento como náuseas, vômito, alterações de peso
e, sobretudo, a alopecia podem exercer influência direta na freqüên-
cia escolar da criança com câncer, ou indireta, gerando estranhamento
e preconceito nos demais alunos. Este preconceito pode advir de
inúmeros fatores que podem estar isolados ou interpostos, tais como,
o desconhecimento a respeito da origem da doença e a crença de
que esta possa ser transmitida através do contato físico e ou social, a
dificuldade em lidar com a dor, o sofrimento e a possibilidade clara
de morte do outro, dentre outros. Quando “estigmatizado”, por ve-
zes, o portador de câncer prefere se isolar do convívio social. Para a
criança, as dificuldades impostas pela falta de compreensão da pato-
logia são agravadas e envolvem o medo da família em expor seu filho,
ocasionando o afastamento escolar.
Segundo PECKHAM (1991), as crianças que receberam trata-
mento de câncer dirigido ou não ao sistema nervoso central, estão
freqüentando a escola e se comportando como seus pares, sendo que
algumas apresentam dificuldades neurológicas ou adaptativas espe-
cíficas. Estas dificuldades podem ser minimizadas com a assessoria
dos serviços de saúde em parceria com as escolas; ambos devem estar
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 223

mobilizados para proporcionar à criança com câncer uma vida inte-


grada à sociedade, tal qual a aquelas que jamais estiveram doentes.

4. A escola diante de seu aluno


com câncer

A escola não está preparada para receber a criança doente de


câncer. Professores, direção e demais alunos necessitam ampliar seu
conhecimento a respeito das inúmeras questões que envolvem este
tema. A inserção da criança em tratamento antineoplásico no siste-
ma regular de ensino é algo novo em nossa realidade, possível com a
ampliação da sobrevida destes pacientes.
O Decreto de Lei nº 1044, de 21 de outubro de 1969, dispõe
sobre o tratamento diferenciado para os alunos portadores de afecções
congênitas ou adquiridas, como infecções, traumatismos ou outras
quadros mórbidos caracterizados por: 1) Incapacidade física relativa
incompatível com a freqüência escolar mas com a conservação das
condições intelectuais e emocionais necessárias para a manutenção
da escolaridade. 2) ocorrência isolada ou esporádica. 3) Duração que
não ultrapasse o máximo admissível para a continuidade do processo
pedagógico de aprendizagem , o que inclui, por exemplo, a hemofilia,
asma, etc. A estas crianças doentes, como compensação à ausência
nas aulas, são propostos exercícios domiciliares com acompanhamento
da escola, compatíveis com seu estado de saúde e com o processo de
ensino. Não existe legislação específica para casos de câncer, a lei é
geral, e a literatura não tem relatos a respeito de benefícios trazidos
pelos mesmos às crianças com câncer.
Até pouco tempo atrás, era comum que a criança doente de câncer
tivesse seu contato com o ensino formal restrito às classes hospitalares,
quando estas existiam em seu local de tratamento. A classe hospitalar
é uma modalidade de ensino da Educação Especial, regulamentada por
legislação específica, que visa atender pedagógico-educacionalmente
224 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

crianças e adolescentes hospitalizados (MEC, 1994), onde professores


procuram adequar a programação da classe do hospital à programação
em andamento nas classes originais dos alunos.
FONSECA (1998), mapeou os estados brasileiros que contam
com classes hospitalares em seus centros de atendimento médico, sen-
do encontradas 30 classes distribuídas por 10 estados, além do distrito
federal, com 1.408 alunos atendidos mensalmente e 80 professoras em
exercício nesta modalidade de ensino. Isto demonstra que, na prática,
nem todas as crianças estão tendo seu direito respeitado ou atendido,
dado o reduzido número de classes hospitalares existentes.
As classes hospitalares têm um caráter importantíssimo por
poderem trabalhar várias necessidades infantis, além do desenvolvi-
mento acadêmico, desvinculando as crianças da problemática de saú-
de por algum período. O atendimento da classe hospitalar pretende
evitar o atraso escolar durante os períodos de internação, o que faci-
lita a reinserção escolar, contribuindo para que a criança doente pos-
sa acompanhar o desenvolvimento da turma.
A tendência terapêutica atual objetiva que a criança passe cada
vez menos tempo na hospital e mais tempo em casa e na escola. No
entanto, a realidade do sistema educacional brasileiro apresenta gra-
ves deficits quantitativos e qualitativos, como por exemplo, o núme-
ro de aproximadamente 4.000.000 de crianças em idade escolar, sem
escola, e o de analfabetos, a partir da faixa etária de 14 anos de
16.000.000 (FREIRE, 1996). Acrescido a isto, somam-se os altos
índices de evasão e repetência, que caracterizam o fracasso escolar
enquanto um complexo processo psico-social, mas que, no entanto,
é encarado socialmente através de concepções históricas dissociadas
da realidade, como teorias racistas, dentre outras, que impedem que
o problema seja tratado realisticamente com a busca de soluções efi-
cazes (PATTO, 1990).
Diante deste quadro, que retrata “descaso” e “desvalorização”
de questões envolvendo o ensino no país, é que se posicionam os
professores das crianças doentes de câncer, em sua maioria, sentin-
do-se despreparados técnica e emocionalmente para lidar com seu
aluno enfermo (GONÇALVES & VALLE, 1999; NUCCI, 1998).
Em 1996, NUCCI, apresentou um questionário a 24 professores
sobre as suas expectativas relacionadas a seus alunos com câncer,
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 225

100% destes professores consideraram-se despreparados para atuar


junto a estas crianças, solicitando informações sobre a doença e apoio
emocional.
Em outro estudo, NUCCI (1998), solicitou a 129 professores de
escolas públicas e particulares de 8 estados do Brasil, atuantes na
pré-escola, 1º e 2º graus e classe especial, que possuiam alunos com
leucemia, que respondessem a um questionário especialmente ela-
borado. A finalidade era verificar como eles viam sua atuação profis-
sional junto das crianças doentes e quais as suas percepções com
relação às necessidade de ambos, alunos e professores. Os resultados
indicaram tendência a uma visão emocional sobre a experiência, com
predomínio de conhecimentos adequados, embora parciais, sobre a
doença e tratamento. Quanto às suas necessidades, os professores
chamaram a atenção para a importância da obtenção de maiores in-
formações sobre a leucemia e uma formação acadêmica especial e
priorizaram as necessidades psicológicas da criança doente em detri-
mento das pedagógicas.
GONÇALVES & VALLE (1999), realizaram uma pesquisa com
o objetivo de ouvir o significado atribuídos por professores à expe-
riência de ter um aluno com câncer. Estes também verbalizam sua
reação pessoal frente à experiência, manifestaram seus sentimentos
em relação a este aluno, atenção ao seu desempenho acadêmico e
social, preocupação com a continuidade de seus estudos e dificulda-
de em tratar do adoecimento do aluno diante dos demais.
Os professores mostram dificuldades objetivas referentes à de-
sinformação sobre o câncer de modo geral e sobretudo, a respeito do
câncer infantil, de sua etiologia, tratamento e possibilidades de cura.
Ainda revelam certo impacto emocional diante da criança portadora
de câncer, por ser esta uma doença grave que traz consigo o estigma
da morte. Para RAIMBAULT (1979), a aceitação da morte do outro
é difícil por exigir aceitação de um nunca mais de bases de troca com
este outro, caracterizando a ausência de projeto de um futuro imagi-
nário comum, um ponto final. Dentre outras questões, a aceitação
da possibilidade da morte do outro implica na aceitação da própria
morte futura como destino inevitável dos seres vivos.
Enfim, são várias as razões segundo as quais a experiência de ter
um aluno em tratamento antineoplásico pode ser classificada como
226 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

uma situação de estresse agudo para professores e demais funcionários


da escola (DEASY-SPINETTA, 1981). Esta equipe pode se sentir
temerosa a respeito da integridade física da criança, sobretudo quando
o número de alunos é elevado e o de funcionários é reduzido, tendo
em vista o fato de que acidentes com pequenas lesões são comuns na
escola e a presença de alunos com doenças infecciosas é constante.
A isso se soma a preocupação de que a criança tenha algum tipo de
mal-estar ou intercorrência médica no período de aula e o atendi-
mento recebido não seja adequado.
Conclui-se que os docentes requerem ampliação de seus conheci-
mentos sobre o câncer infantil e suas implicações no cotidiano esco-
lar de seu aluno, para que possam ajudá-lo no período de “volta às
aulas”. Esta é uma máxima apontada por estudiosos de vários países,
inclusive europeus e norte-americanos, onde existem as enfermeiras
escolares objetivando uma atenção diferenciada aos alunos com al-
gum tipo de problema de saúde (J. SPINETTA, 1986; STEVENS,
1988; PECKHAM, 1991; NUCCI, 1998; FUNGHETTO, 1998,
MOREIRA & VALLE, 1999; GONÇALVES & VALLE, 1999). Cabe
à equipe hospitalar oferecer o apoio necessário aos professores para
que estes possam estar preparados para receber, de modo acolhedor,
seu aluno doente e lidar com esta situação perante as demais crianças
com naturalidade, informando-lhes sobre o câncer infantil e evitando
atitudes preconceituosas.

5. A família frente à reinserção escolar


de seu filho com câncer

Nem sempre é fácil para a criança com câncer e seus pais a ma-
nutenção das atividades diárias e da vida acadêmica, pois a rotina de
seu filho passa a ser permeada por retornos hospitalares, pelos mal-
estares advindos da doença e do tratamento, além da presença no
corpo da criança das “marcas” do câncer e de sua terapêutica, tais
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 227

como, alopecia, modificações de peso, pontos de radioterapia (ARAÚJO


& ARRAES, 1998). Os pais geralmente são absorvidos pelas neces-
sidades práticas da problemática do filho e necessitam de tempo para
reorganizar seu cotidiano e aí sim, se aterem à questão da escolaridade
da criança (BESSA, 1997).
É bastante comum o afastamento escolar temporário nas fases
mais críticas do tratamento, onde a criança eventualmente é sub-
metida à cirurgia e/ou sessões mais próximas de quimioterapia ou
radioterapia, dentre outros, necessitando até de internação em
dados momentos. Contudo, há pais que numa atitude superprotetora
em relação ao filho doente, tentando poupá-lo de qualquer situação
que envolva algum tipo de esforço, seja físico, intelectual ou social,
além daqueles já exigidos pelo câncer e seu tratamento, impedem a
criança de freqüentar a escola, mesmo quando esta se sente bem e
capaz fisicamente para tal (VALLE, 1997).
Os pais também podem afastar o filho da escola mediante a per-
cepção da falta de informação de seu corpo docente com relação ao
câncer infantil e de atitudes preconceituosas por parte deste ou de
outras crianças. Isto pode ser agravado por exigências burocráticas
de freqüência, realização de provas ou exames em datas rigoro-
samente fixadas e pouca disponibilidade da escola com relação a cer-
tas necessidades da criança, tais como: se sentar em local ventilado e
próximo à porta, ter uma sala de aula com condições adequadas de
higiene, evitar contato com crianças portadoras de doenças infecto-
contagiosas, não administrar nenhum medicamento sem conheci-
mento do médico responsável, cuidados com a dieta alimentar e com
possíveis lesões físicas, para citar algumas.
A preocupação com a integridade física e emocional da criança
sobressai em relação a outras, como a escolaridade, e se os pais não
sentirem que seus filhos estarão bem assistidos no ambiente escolar
certamente o manterão em casa, em detrimento da vontade deste e
de recomendações da equipe médica. Relatos da criança ou de
professores sobre apelidos, como, “careca”, “cabeça de ovo”, “masca-
rado”, etc., podem inibir o desejo dos pais com relação à freqüência
escolar do filho.
Há que se considerar ainda, a dificuldade que estes pais possam
encontrar relacionadas à comunicação do diagnóstico da criança ao
228 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

ambiente escolar, que envolve a sua representação sobre a doença,


cuja imagem está popularmente associada à morte e destruição.
Estes podem temer que seu filho seja alvo de pena, curiosidade e
atitudes preconceituosas voltadas a ele e à família, o que os impede
de falar claramente à escola a respeito do diagnóstico, reduzindo a
compreensão e o apoio por parte de professores e alunos direcionados
à criança doente.
Contudo, apesar de todas estas dificuldades, FUNGHETTO
(1998), relata que os pais de crianças com câncer podem se engajar
em atividades como oficinas de expressão dramática e alfabetização,
pois sempre demonstram uma preocupação com a perda das ativida-
des escolares.
Adentrando um pouco mais na questão da escolaridade da cri-
ança com câncer pôde-se notar o quanto é delicado para a escola, a
princípio, receber este aluno. Refletindo sobre o papel da família, vê-
se o quanto esta pode se sentir insegura e solitária no momento de
entregar seu filho gravemente doente, por um período longo do dia,
ao convívio de pessoas, muitas vezes, também inseguras e despre-
paradas quanto às reais possibilidades desta criança em estar na escola.
A família deve ser orientada e apoiada pela equipe de saúde
sobre os aspectos físicos e psicossociais envolvidos na escolaridade
de seu filho, para que possa estar certa sobre a importância do
convívio com outras crianças e adultos no meio escolar, sobre as
possibilidades deste e cuidados que devem ser tomados neste am-
biente. Assim, terá condições de transmitir informações e segurança
à equipe escolar.

6. A criança com câncer e a escola

A qualidade da vida escolar da criança doente está intimamente


relacionada à sua saúde física e mental. O estágio de sua doença e
tratamento vão exercer influência direta sobre sua possibilidade e
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 229

disponibilidade em ir para a escola, alterando seu aprendizado e con-


seqüente desempenho acadêmico.
VALLE (1990) relata que, de 25 crianças em idade escolar (6- 12 anos)
atendidos no Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo, 19 apresentavam atraso em sua
escolaridade de acordo com a idade cronológica, o que pôde ser as-
sociado a fatores como a demora a ingressar na escola ou a repetência,
oriundos por faltas mediante a necessidade de retornos e internações;
estilo de vida que a criança passa a levar com atitudes de insegurança,
apego à mãe, desânimo, comportamentos regressivos e desadaptados
influenciados pela preocupação excessiva dos pais; sintomas da doença;
recusa explícita da criança em ir para escola devido à aparência, à
perda dos cabelos, à necessidade de usar máscara de proteção, a edemas
e protuberâncias, vômitos e alterações de peso; doenças paralelas,
freqüentes devido ao tratamento que causa a baixa da resistência
orgânica, dentre outros. Esta autora chama a atenção ao fato de que as
dificuldades escolares, podem ainda, ter ligação a problemas pré-exis-
tentes ao aparecimento da doença.
FUNGHETTO (1998) relata que a escola e os acontecimentos
de seu meio são postos pelas crianças como parte de sua vida até o
aparecimento do câncer e que este tema é tratado com alegria e sau-
dade por elas. Falam da necessidade e do desejo de freqüentar a es-
cola, pois o cotidiano escolar se confunde com o cotidiano de suas
próprias vidas. Para a autora, a escola é um evento na infância e a
manutenção do laço que existe entre ambas, criança e escola, repre-
senta a preservação do contato delas com a realidade em que viviam
antes do seu adoecimento.
GONÇALVES & VALLE (1999), realizaram um estudo a fim
de ouvir 11 crianças com câncer, de 7 a 15 anos, sobre suas experiên-
cias de estarem afastadas da escola devido ao tratamento. Os seus
depoimentos indicaram que a criança vivencia o afastamento da es-
cola de maneira negativa, reconhece as exigências do tratamento
como limites a sua escolarização e socialização, percebe a importân-
cia do apoio de colegas e professores para a manutenção de seus es-
tudos e mostra grande esforço pessoal para a continuidade escolar.
Em 1975, LANSKY et al, estudando a escolaridade de crianças
com câncer, relataram casos de fobia escolar em 10% dos pacientes
230 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

atendidos pelo Centro Médico da Universidade de Kansas, caracte-


rizada pela recusa destas em freqüentar a escola, levando ao apareci-
mento de sintomas físicos diante possibilidade real de lá estar, tais
como, dores de cabeças e abdominais e fortes manifestações de can-
saço. Isto foi associado ao medo e ansiedade diante da separação
materna e da ocorrência de algum problema de saúde na escola por
parte da criança e dos seus pais.
Em geral, nos anos atuais, casos como os relatados acima são
isolados e requerem uma atenção especial por parte da equipe de
saúde que assiste a criança e sua família (PECKHAM, 1991).
STEHBENS et al (1983), concluíram que as crianças com câncer
durante o primeiro ano de tratamento continuam indo à escola, em-
bora faltem aproximadamente quatro vezes mais que seus colegas e
quase a metade delas apresentem níveis mais baixos de performance
acadêmica.
No convívio escolar as crianças curadas de câncer ou em trata-
mento são percebidas pelos professores como menos sociáveis e pro-
pensas a comportamentos de liderança e mais isoladas socialmente
que as demais (NOLL, et al, 1990). Estas crianças que tiveram sua
infância abruptamente interrompida pela doença e foram envolvidas
numa atmosfera de dor e sofrimento, podem trazer consigo questões
não formuladas, sentimentos sobre os quais não falaram com nin-
guém ou que não são capazes de traduzir em palavras, sobre morte,
por exemplo. Isto pode torná-las mais introspectivas que outras e,
neste caso, a escolaridade novamente se mostra como um parâmetro
de normalidade, de vida livre do câncer e suas exigências médicas (J.
SPINETTA, 1986).
HENNING & FRITZ (1983), avaliaram 37 crianças atendidas
pelo primeiro ano no programa de reinserção escolar do Serviço de
Hematologia Oncológica do Hospital da Criança de Stanford, Palo
Alto, Estados Unidos. Foram encontradas cinco categorias de pro-
blemas relacionados ao processo de reinserção escolar, voltados a
aspectos emocionais, à inserção no ambiente acadêmico, à freqüên-
cia regular, à equipe da escola e à diminuição da performance acadê-
mica. Geralmente as crianças apresentavam dificuldades em pelo
menos duas destas categorias, com o predomínio de preocupações
relativas aos aspectos psicológicos dos pacientes, como o medo de
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 231

estar entre seus colegas e ser rejeitado por eles, vergonha relativa à
modificação da aparência e o embaraço diante da possibilidade de
ter que falar sobre sua doença.
Além da escola e da família, é sobretudo, a criança doente de
câncer quem vai encontrar os maiores obstáculos diante da pos-
sibilidade de freqüentar a escola durante seu longo tratamento.
Esta se vê numa situação onde tem que lidar com medos, desinfor-
mação, curiosidade e zombarias dentro da escola, com as insegu-
ranças e problemas práticos de seus familiares e com seus próprios
receios e dificuldades físicas (dor, mal-estar, dificuldades sensoriais)
e/ou emocionais suscitadas pela nova situação (ser vista como
uma criança diferente das demais por estar acometido por uma
doença grave que modifica sua aparência física). Assim, esta deve
receber um suporte das equipes escolares e de saúde para que
não se sinta sozinha em mais este difícil caminho de sua traje-
tória de vida.
Para os adolescentes a reinserção escolar representa um desafio
especial devido às questões desenvolvimentais próprias de sua faixa
etária, que inclui maturação sexual e emocional e maior sensibilida-
de com relação à aparência física. Estes podem se beneficiar muito
com a escolaridade e necessitam ser encorajados para tal.
A aceitação dos colegas tem um importantíssimo papel no su-
cesso da reinserção escolar do paciente oncológico. A desinforma-
ção sobre as questões de seu adoecimento podem gerar concepções
míticas e fantasiosas sobre o estado de saúde dele. Com o desapare-
cimento dos conceitos errados os colegas de classe se tornam mais
solidários e interativos para com a criança com câncer (BAYSINGER
et al., 1993).
Uma forma de tornar mais amena a reinserção escolar é a
busca de compreensão acerca da temática que possa nortear ações
de profissionais do hospital e da escola junto a esta criança e de-
mais pessoas envolvidas. Isto tem sido feito em diversas partes do
mundo. Os estudos sobre este tópico ouvem geralmente professo-
res, pais e crianças sobre a adaptação destas ao ambiente acadê-
mico, buscando estratégias de intervenção que facilitem a
reinserção escolar da criança. É sobre estas formas de apoio que
trataremos a seguir.
232 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

7. A equipe de saúde frente


à reinserção escolar da criança
com câncer

Casos de abstinência escolar têm sido associados a problemas


de saúde, como o câncer. De acordo com WEITZMAN (1982),
quando a equipe hospitalar está atenta a aspectos comportamentais
e emocionais de seu paciente pediátrico, pode reconhecer pos-
síveis problemas de adaptação psicossocial e atuar preventivamente
sobre os mesmos. A percepção precoce sobre a freqüência escolar
da criança com neoplasia e o despendimento de apoio para que
não ocorra o abandono acadêmico tem sido visto como uma
maneira eficaz de preservar a integração social da criança doente.
Este autor relata ainda, que o abandono escolar tem se consti-
tuído em um problema de grande magnitude, afetando o bem-estar
e gerando sofrimento e desqualificação profissional entre as
crianças abstinentes.
Trabalhar para a qualidade de vida da criança com câncer deve
ser um dos objetivos das equipes de saúde que devem incluir, na sua
rotina de atuação, programas voltados para a reinserção escolar de
seus pacientes. A preparação de professores e funcionários para re-
ceber seu aluno-paciente, bem como a compreensão dos pais sobre a
importância da escolaridade é muito importante no momento da
“volta às aulas”. A família em parceria com o hospital deve dar à
escola todas as informações necessárias para que a criança possa es-
tar livre para aprender, sendo vista como aluno, não como paciente.
É necessário que sejam estabelecidos canais constantes de comuni-
cação entre o hospital e a escola, pois esta interação não deve se
restringir à ocasião do diagnóstico.
Hoje, as equipes de atendimento ao câncer infantil em diversas
localidades do mundo estão conscientes do seu papel frente à
reinserção escolar do paciente e lançam mão de estratégias de atua-
ção que possam facilitar o convívio da criança doente na escola.
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 233

VARNI (1994), relata uma modalidade de intervenção junto às


próprias crianças doentes de câncer, que se caracteriza por um “trei-
no de habilidades sociais” para o ajustamento da criança na escola.
Esta se caracteriza por um treino para assertividade de respostas,
referentes à doença e ao tratamento, e de comportamentos apropria-
dos para que a criança doente não se diferencie das demais na escola.
Este trabalho é complementado por palestras informativas a profes-
sores e alunos.
Os programas voltados para este fim têm o objetivo de promo-
ver uma experiência educacional positiva para que a criança com
câncer se torne um adulto produtivo e bem sucedido; reduzir o im-
pacto dos efeitos tardios do tratamento na performance educacional
do paciente; mobilizar a escola e os pais para a importância da esco-
larização de seu filho com câncer; promover à comunidade
escolar formas de intervenção que incluam a compreensão sobre o
estado psicológico e físico do paciente, dentre outros (BAYSINGER
et al., 1993).
Um contato do hospital com a escola que se dê antes do retorno
da criança doente às suas atividades acadêmicas tem sido considera-
do essencial. Devem ser transmitidas informações específicas do alu-
no, como diagnóstico, plano de tratamento e limitação de atividades,
dentre outras. Instruções para o cuidado desta criança também são
consideradas necessárias, tais como o procedimento a ser adotado
diante de febre, exposição a doenças infecto-contagiosas. Benefícios
são alcançados com informação a professores, colegas de classe e fun-
cionários sobre a situação do aluno doente.
Têm sido divulgados por centros de atendimento de oncologia
alguns programas de reinserção escolar de crianças com câncer, que
são elaborados a partir das necessidades específicas das clientelas
(HENNING & FRITZ, 1983; WISSLER, 1999). Não existem mo-
delos de atuação junto a esta questão, mas propostas oriundas dos
problemas apresentados pelos pacientes e familiares junto às equipes
vêm sendo postas em ação.
Em 1988, STEVENS et al., mapeou 13 centros de atendimento à
oncologia pediátrica do Reino Unido, segundo seus modos de atuação
para a reinserção escolar. Os resultados indicam que 43% dos cen-
tros enviavam para as escolas panfletos com informações sobre o câncer,
234 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

36% enviavam folhetos de informações sobre a temática, elaborados


especificamente para professores e apenas um desses centros tinha
como rotina contatos pessoais entre o pessoal do hospital e o da escola.
A Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica (SIOP), em
seu encontro realizado em São Francisco — USA — (1993) decla-
rou oficialmente a importância fundamental de programas de comu-
nicação entre hospital e escola, abrangendo os seguintes aspectos:

– A assistência à criança com câncer deve ser prestada por uma


equipe multidisciplinar, composta por médicos, psiquiatras e/ou psi-
cólogos, enfermeiras, assistentes-sociais, professores e recreacionistas,
com o objetivo de envolvê- la em atividades lúdicas e educacionais.
– Os centros de atendimento ao câncer infantil devem ter pro-
gramas voltados à reinserção escolar, que aprovados pelos pais,
devem criar canais de comunicação entre o hospital e a escola de
origem da criança. O intuito é explicar aos professores e colegas as
condições médicas específicas da criança, dando segurança ao do-
cente para o desempenho de seu papel de ensinar. A importância do
contato da criança doente com seus colegas deve ser destacada e o
professor deve ser preparado para estimular a freqüência desse aluno.
– Quando houver necessidade, devem ser desenvolvidos pro-
gramas de educação personalizados, com parceria entre o hospital e
a escola, a fim de garantir um suporte educacional adequado às ne-
cessidades das crianças com câncer (Orientações Psicossociais em
Oncologia Pediátrica — Comitê Psicossocial SIOP, 2000).

Assim, os programas de reinserção escolar devem ser incluídos


na rotina de atendimento dos centros de oncologia pediátrica para
que se enquadrem no conceito de atenção integral à saúde infantil
almejado internacionalmente.
De acordo com HENNING & FRITZ (1983), as intervenções
junto à reinserção escolar precisam seguir certos princípios, como:

– Atenção à individualidade de cada caso, pois cada um, seja o


aluno-paciente, a família ou a escola, revela suas peculiaridades.
– Os profissionais envolvidos nos programas devem ser compe-
tentes e comprometidos com uma avaliação crítica de sua atuação.
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 235

– A equipe de saúde deve estar coordenada com objetivos e


ideais comuns.
– Deve-se transmitir a mensagem de que na escola a criança
doente precisa ser tratada como aluno e não como paciente, para
que esta possa se sentir igual a seus pares.

Estes autores, assim como BAYSINGER et al (1993), reconhe-


cem que algumas questões típicas necessitam ser respondidas, como,
“Meu colega vai morrer?”, “Ele vai estar fraco na classe?”, “Por que a
criança doente é enviada à escola? Ela não pode simplesmente brin-
car?”. A forma como o conteúdo informativo vai chegar à escola de-
pende da disponibilidade de ambas as equipes, a de educação e a do
hospital. São descritas exibições de vídeos informativos, palestras com
professores e alunos, construção de teatros de marionetes, distribuição
de livros informativos e ou de pareceres médicos, dentre outros.
A importância dos programas de reinserção escolar está na reso-
lução dos obstáculos não-médicos da freqüência da criança com cân-
cer. De acordo com ROSS (1984), seminários didáticos dirigidos à
equipe escolar podem atuar preventivamente na antecipação de pro-
blemas, aconselhando professores e promovendo o suporte neces-
sário ao acolhimento de seu aluno doente.
Centros de referência mundiais no atendimento ao câncer in-
fantil como a “Association Votre École Chez Vous” na França e o
“Comitato Maria Letizia Verga — Universitá di Milano — Ospedale
Nuovo di Monza”, na Itália, põem em prática programas de reinserção
escolar quando a criança tem alta para ir para a escola e programas
de educação hospitalar, como “Escola no Hospital”, quando o paci-
ente está em período de internação.
No Brasil, foram elaborados e traduzidos diversos tipos de mate-
riais informativos sobre o câncer infantil e suas implicações físicas e
psicossociais. Estes, geralmente livretos destinados a professores e
alunos, como “Carta ao Professor de uma Criança com Câncer”
(TONE et al., 1990); “O leão sem Juba” (NUCCI, 1997), “Não tem
choro” (APACC, 1993), “Seu colega tem uma doença chamada cân-
cer” (SGARBIERI, 2000), dentre outros.
A informação sobre o câncer infantil aos alunos tem se mostra-
do capaz de mobilizá-los para a questão levando-os a fornecer apoio
236 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

prático e emocional à criança doente. MOREIRA & VALLE (1999)


relatam uma intervenção junto a alunos e professores de uma escola
estadual a fim de propiciar esclarecimentos sobre o câncer infantil.
Esta teve o intuito de prevenir posturas preconceituosas que pudessem
prejudicar a criança doente em seu processo de cura e reinserção no
ambiente escolar e consistiu na exibição a 87 alunos, de 8 à 12 anos,
e professores de uma escola pública do município de Ribeirão Preto/SP,
em sala de aula, de uma fita de vídeo com duração aproximada de
20 minutos, intitulada “Não tem choro”. Neste filme, sob a forma de
desenho, é contada a história de uma menina que adoece de câncer
e interrompe a freqüência às aulas para se tratar. O desenho é ani-
mado pela Turma do Snoop (1973), destinado ao entretenimento de
crianças e trata da questão do câncer infantil de modo simples, didá-
tico, natural e lúdico, sendo portanto, um desenho instrutivo e
divertido, apesar de abordar a questão de forma séria e real. A fita
traz informações esclarecedoras a respeito da etiologia do câncer, de
seu tratamento, das questões de relacionamento social implicadas,
dentre outras.
Após a exibição do filme, foi feita uma recaptulação livre com
as crianças e solicitado que cada aluno escrevesse uma redação,
cujo tema seria o câncer, para verificar a compreensão a respeito
da doença. A análise qualitativa dos dados revelou que a com-
preensão dos alunos sobre o câncer infantil ultrapassou os limites
biológicos e técnicos, adentrando em questões como: afastamento
social, preconceitos e incompreensão. Concluiu-se, que as crianças
que recebem informações sobre o câncer infantil podem assimilá-las
e reproduzí-las. Mais ainda, os alunos se mobilizam para a ques-
tão do câncer infantil, manifestando a importância de se compar-
tilhar os dissabores da doença e a alegria da cura. Estes dados
reafirmam pontos discutidos pela literatura sobre a importância
de a equipe hospitalar estar atenta para estratégias de informação
sobre a doença que possam facilitar a reinserção escolar de crian-
ças com câncer.
Aqui no Brasil, também se tem buscado uma atenção especial
para a questão da escolaridade dos pacientes oncológicos, o que pode
ser observado através do relato a seguir.
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 237

8. A reinserção escolar — O
atendimento prestado pelo GACC

Em Ribeirão Preto/SP, o Grupo de Apoio à Criança com Câncer —


GACC, vem desenvolvendo estratégias de atuação junto à reinserção
escolar das crianças atendidas no Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto — Universidade de São Paulo
(HCFMRP-USP). O GACC, é uma entidade filantrópica, sem fins
lucrativos, composto por uma equipe multiprofissional com médicos,
psicólogos, assistente social e nutricionista ligados ao HCFMRP-USP,
além de um corpo de voluntários. Este grupo, há mais de dez anos
presta assistência à criança com câncer e sua família por meio de
suporte psicológico individual à criança com câncer, grupos de apoio
aos pais, grupos de atividades lúdicas não dirigidas com as crianças,
manutenção de uma casa de apoio onde as mães vindas de outras
localidades podem se instalar com as crianças doentes por ocasião do
tratamento, dentre outras.
As crianças com câncer internadas no HCFMRP-USP, freqüen-
tam a classe hospitalar que funciona regularmente no Setor de Pedia-
tria há 5 anos, com professor habilitado para o trabalho em Classe
Especial e vinculado a uma escola da rede pública de ensino do mu-
nicípio, conforme determina a legislação vigente. Nesta classe as
crianças têm condições de dar continuidade ao conteúdo acadêmico
desenvolvido em sua escola de origem, de acordo com sua série, o
que não ocasiona prejuízo da escolaridade, já que as crianças são
matriculadas como alunos regulares da rede pública e cumprem to-
das as exigências necessárias à escolarização regular.
A professora desta classe relata que crianças que nunca haviam
freqüentado a escola anteriormente devido à pouca idade e mesmo
adolescentes sem qualquer contato prévio com a escolarização for-
mal foram alfabetizados lá. Além do que, segundo ela, pais e mães
analfabetos puderam se beneficiar das aulas no hospital e serem alfa-
betizados junto com seus filhos. O relato da rotina de trabalho da
professora da classe hospitalar revela que a participação das crianças
238 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

extrapola os objetivos do aprendizado acadêmico, adquirindo uma


dimensão terapêutica por desvinculá-las das questões relativas à do-
ença, facilitar a reflexão de pontos difíceis em sua trajetória, por meio
de redações e ou desenhos, propiciar a troca de experiências entre
elas e até mesmo ajudar no alívio da dor, quando são propostas ativi-
dades lúdicas, por exemplo.
As crianças que não estão internadas, mas continuam o trata-
mento através de atendimentos ambulatoriais, podendo portanto,
retornar à escola, recebem um acompanhamento específico.
A partir da percepção pela equipe de saúde de problemas enfren-
tados pelos pacientes e familiares, por ocasião da reinserção
escolar, que estavam demandando uma intervenção com maior aber-
tura de canais de comunicação diretos entre as equipes do hospital e
da escola, levou ao estabelecimento de novas estratégias de atuação.
Estas estão relacionadas, dentre outra atividades, ao meu projeto de
mestrado que ainda está em desenvolvimento e que envolve direta e
indiretamente a equipe do GACC.
As crianças com câncer vinham queixando-se de preconceitos
no ambiente escolar, algumas devido a brincadeiras relativas à sua
aparência, principalmente à queda dos cabelos e ao uso da máscara,
e a partir dessa situação estavam se recusando a freqüentar a escola,
o que é comum segundo a literatura, mas estava causando inquieta-
ção na equipe. Alguns pais vinham se mostrando apreensivos com
relação à reinserção escolar dos filhos. Como eu já vinha trabalhan-
do há cerca de dois anos na área, envolvida em atividades de aperfei-
çoamento junto ao GACC, e minha trajetória de pesquisa me fazia
olhar com especial atenção a questão da escolaridade da criança com
câncer e das necessidades que se presentificavam, iniciei a pós gra-
duação junto a este tema.
O trabalho para a reinserção escolar que está sendo posto em
prática no GACC, destinado às crianças em tratamento de câncer no
HCFMRP-USP, envolve a rotina de uma equipe multidisciplinar e in-
tervenções relacionadas a atividades de pesquisa, da seguinte forma:

– A questão da escolaridade da criança é trabalhada com ela e


com sua família pelas psicólogas e estagiárias de psicologia do GACC,
nos atendimentos de grupo e individuais de rotina.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 239

– A possibilidade de a equipe hospitalar iniciar contato com a


escola da criança é posta em pauta.
– Todo contato com a escola só é iniciado com autorização dos
pais e consentimento da criança doente.
– Estabelecimento do contato inicial entre as equipes de saúde
e de educação: Após agendamento telefônico é realizada uma reu-
nião na escola de origem da criança. Uma psicóloga, mestranda em
psicologia, e a assistente social do GACC, representam a equipe
hospitalar, enquanto geralmente a diretora, um coordenador peda-
gógico e um professor da criança doente compõem a equipe escolar.
Nesta, são trocadas informações sobre o estado de saúde do aluno,
diagnóstico, terapêutica, etc. A equipe hospitalar fala da impor-
tância do convívio escolar para a criança com câncer e de suas
necessidades específicas, como faltas, cuidados alimentares e abo-
no nas aulas de educação física. Implicações da terapêutica no
cotidiano da criança, como cuidados ligados a lesões físicas e
contaminação por doenças contagiosas tipo sarampo e catapora, den-
tre outras, são discutidos. Orientações básicas de cuidado como a
manutenção da criança em local ventilado com acesso livre ao ba-
nheiro e demais dependências são dadas. Os telefones do hospital
são deixados à disposição com o ramal direto dos oncologistas,
assistente social e nutricionista.
– Dúvidas da equipe escolar são solucionadas com relação ao
câncer de modo geral, suas especificidades na criança e possibilida-
des reais de sobrevivência são destacadas.
– A equipe hospitalar também solicita informações sobre a fre-
qüência escolar da criança e pontos como interação social e bem-
estar físico são destacados pela direção.
– São distribuídos livretos informativos sobre o câncer infantil e
reinserção escolar da criança doente, como “Carta ao professor de
uma criança com câncer” (TONE et al., 1990) e “Seu colega tem
uma doença chamada câncer” (SGARBIERI, 2000).
– É feita a explicação a respeito da possibilidade de se realizar
um trabalho informativo sobre o câncer infantil junto aos alunos que
estudam no mesmo período da criança doente. O objetivo deste é
servir como facilitador da continuidade escolar da criança com cân-
cer, evitando atitudes preconceituosas e expondo claramente a proble-
240 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

mática é discutido. É dito que este trabalho faz parte das atividades de
pesquisa da psicóloga e constitui-se por: 1) Rapport com os parti-
cipantes, professores e colegas, para a apresentação da pesquisadora
e introdução do filme informativo. 2) Exibição do vídeo “Não tem
choro” (1973), anteriormente caracterizado. 3) Recapitulação livre
do filme com as crianças, levantando aspectos como a etiologia da
doença, diagnóstico, tratamento, o não oferecimento de riscos de
contágio, possibilidade de cura, dentre outros.
– A direção das escolas vêm acolhendo a visita da equipe de
saúde e o trabalho informativo de forma muito positiva, o que se
caracteriza pela abertura e participação interessada nas atividades
informativas, que demandam apoio total de seus funcionários e
professores.
– Aproximadamente um mês após o término das atividades
informativas é enviado um questionário à escola com o intuito de
saber como está a freqüência da criança doente. As respostas são
prontamente enviadas e apresentam saldo muito positivo no que diz
respeito ao acolhimento da criança com câncer pelos seus colegas.
– Contatos telefônicos posteriores à visita à escola entre as equi-
pes são comuns.

Esta forma de atuação envolvendo reunião direta entre repre-


sentantes das equipes escolar e hospitalar para a troca de informações
sobre a criança com câncer agora faz parte da rotina de atendimento
à criança em fase de reinserção escolar atendida no HCFMRP-USP.
Seu desdobramento, o trabalho informativo realizado com os demais
alunos da escola, por enquanto, está ligado a atividades de pesquisa
da autora. Acredita-se que este trabalho informativo possa facilitar o
acolhimento da criança doente, atuando objetivamente por meio das
informações transmitidas e dando suporte emocional para ela no
delicado momento de voltar a freqüentar a escola. Entretanto, seus
resultados ainda não são conclusivos e reflexões mais específicas se-
rão prematuras. Com o término da dissertação de mestrado que tem
como objetivo geral a avaliação deste trabalho, o mesmo poderá tam-
bém ser incorporado nesta rotina definitivamente.
Os resultados do contato direto com a escola vêm se revelando
muito positivamente através das falas de pais nos grupos de apoio e de
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 241

crianças nos atendimentos de rotina. As escolas também têm se mos-


trado sensibilizadas pela problemática do seu aluno e pelo empenho da
equipe hospitalar em zelar pela manutenção de sua escolaridade.
Vale ressaltar que o apoio dado aos pacientes em seus atendimentos
regulares pela equipe de psicologia é fundamental para que a criança e
sua família estejam mobilizadas para a importância da escolarização. É
nestes atendimentos que as crianças têm a oportunidade de elaborar
seus medos e ansiedades diante da possibilidade de voltar doente para
a escola, o que permite que elas se tornem receptivas ao estabe-
lecimento dos canais de comunicação entre as equipes.
Toda a equipe de saúde do GACC e/ou do HCFMRP-USP, que
atende as crianças com câncer, tem tido um importante papel com
relação ao atendimento frente a reinserção escolar destes pacientes.
Os médicos dão todas as orientações e incentivos necessários à família
para que esta se sinta segura em mandar seu filho para a escola. Eles
também se mostram disponíveis aos demais profissionais da equipe
de saúde para esclarecimentos quanto ao estado da criança, suas
possibilidades de freqüência escolar, dentre outros. A nutricionista
fornece os esclarecimentos referentes à alimentação que a criança
pode ter na escola, orientando as mães quanto à necessidade ou não
de confecção de lanches em casa, dependendo da fase do tratamento
de cada criança. A assistente social tem tido um papel importantís-
simo nos contatos com a escola e na apresentação das possibilidades
do trabalho de contato direto entre as equipes, a criança e a sua
família. Enfim, todos os profissionais estão atentos para a necessidade
da criança em tratamento manter seus espaços de convívio social e
freqüência acadêmica, despendendo a atenção necessária para con-
tribuir no processo de reinserção escolar.
Esta ampliação da assistência à reinserção escolar dos pacientes
da oncologia pediátrica que ocorreu em Ribeirão Preto/SP, é fruto da
crescente demanda de crianças em tratamento capazes de ir para a
escola e conviver com seus pares, tomando-se os devidos cuidados
inerentes ao câncer. O relato do atendimento prestado pela equipe do
GACC não tem outra pretensão senão a de compartilhar suas inquie-
tações e experiências com profissionais da área e demais pessoas inte-
ressadas, o que propicia reflexão enriquecedora que pode se reverter
na melhora da qualidade do atendimento prestado à criança.
242 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

9. Comentários gerais

O câncer infantil é uma patologia orgânica que devido a sua


gravidade tem o potencial de atingir as esferas emocionais e soci-
ais dos doentes. É de extrema importância que a equipe de saúde
que atende estas crianças possa cuidar para que as seqüelas de
seu câncer sejam mínimas em termos físicos e psicossociais, o que
implica numa atenção especial à sua escolaridade. O apoio, in-
centivo e as orientações referentes à reinserção escolar, por ve-
zes, precisam ser complementados por intervenções diretas da
equipe de saúde para que a freqüência à escola possa ser viabilizada.
Esta atenção requerida quando o tema é à escolaridade da crian-
ça com câncer não se restringe à equipe hospitalar, envolve esfor-
ços de profissionais de diferentes áreas de atuação. Fala-se então,
em um trabalho integrado entre dois setores reconhecidamente
desprivilegiados de nossa sociedade, a saúde e a educação.
Os problemas enfrentados pelos profissionais destas áreas são
reconhecidos por todos e não cabe retomá-los aqui. A idéia não é
minimizar suas dificuldades de condições de trabalho ou aquelas,
também reais, quando se busca a abertura de canais de comuni-
cação entre duas equipes que por si mesmas podem apresentar
grandes dificuldades internas de entendimento. O que se almeja
é por em discussão a questão das necessidades que se apresentam
diante da reinserção escolar da criança com câncer e mobilizar os
profissionais da saúde e da educação envolvidos com esta ques-
tão para a importância de seu papel junto a seu paciente ou ao
seu aluno. Deve-se primar sempre pela qualidade do serviço pres-
tado ainda que este não possa suprir os ideais de atendimento de
cada equipe. É preciso que a realidade seja tomada como ponto
de partida num caminhar onde a manutenção do processo de de-
senvolvimento físico e psicossocial da criança com câncer seja a
única direção a ser seguida.
A CONTINUIDADE ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER 243

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CAPÍTULO 6
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER:
MODOS DE EXISTIR
Juliana Vendrúscolo
Elizabeth Ranier Martins do Valle
1 – Câncer infantil: o impacto no
desenvolvimento

O desenvolvimento continua quando a criança é acometida pelo


câncer. Em uma criança jovem o tempo é precioso pois o período
para ela desenvolver habilidades específicas é curto e ela encontra-se
em condições maturacionais precárias. Dificuldades nessas fases
podem retardar o desenvolvimento pessoal e profissional destas
crianças. Os adultos que foram curados de câncer na infância, pode-
rão ter sua saúde abalada em outros aspectos.
Dizer que uma criança sobreviveu ao câncer, implica atualmen-
te levar em conta a saúde mental da mesma e o nível de adaptação
das funções pertinentes à sua idade, além, é evidente, do perfeito
funcionamento orgânico. Há de se considerar que sobreviver não diz
respeito apenas quanto tempo uma pessoa vive, mas como transcorre
sua vida dentro dos limites impostos por sua doença. Na atualidade,
os profissionais da saúde se deparam com uma nova perspectiva:
necessitam não apenas salvar a vida do paciente, mas também
devem se preocupar com a qualidade da vida dessa criança que so-
breviveu ao câncer e com os possíveis efeitos que esse tratamento
agressivo pode trazer para seu desenvolvimento.
Segundo PERRIN & GERRITY (1984):
A enfermidade física encerra definidas implicações em cada fase do
desenvolvimento e encerra o potencial de previnir ou aumentar a
dificuldade ideal, de uma fase do desenvolvimento para a próxima
(p. 21)
250 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

As autoras citam que uma melhor compreensão do desenvolvi-


mento das crianças portadoras de enfermidades físicas crônicas, ocor-
rerá se esta for efetuada no contexto das expectativas acerca do de-
senvolvimento cognitivo e sócio-emocional de todas as crianças.
Considerando esta afirmação, torna-se imprescindível direcionar
a atenção para o processo do desenvolvimento normal das crianças;
este deve ser a base que referenciará toda a discussão que envolve o
desenvolvimento da criança com câncer e conseqüentemente auxi-
liará na compreensão daquelas que já se encontram livres da doença.
Visto que PERRIN & GERRITY (1984) descrevem com muita
clareza os padrões de desenvolvimento normal e algumas possíveis
variações relacionadas à presença de enfermidades crônicas, torna-
se pertinente retomar tais descrições detalhadamente. Estas serão
apresentadas a seguir e relacionadas a outras idéias, como as propos-
tas de GREESNPAN (1993)13, a fim de se obter uma perspectiva
desenvolvimentista, e portanto, mais ampla, sobre o impacto de uma
enfermidade crônica, como o câncer14.
Esse estudo enfatiza que as implicações de uma enfermidade crô-
nica sobre o desenvolvimento social, emocional e cognitivo das cri-
anças, diferem consideravelmente dependendo da idade em que se
instalou e das limitações geradas pela enfermidade nas fases do de-
senvolvimento. Com o intuito de compreender essas diferenciações,
a autora baseia-se em duas teorias — de Piaget e de Erikson — que
descrevem as tarefas de desenvolvimento cognitivo e sócio-emocio-
nal esperadas nas crianças.
Ambos acentuam a importância dos acontecimentos sociais externos
e ambientais na influência do curso do desenvolvimento. Em cada
caso, a criança precisa determinar uma série progressiva de tarefas
ou desafios, através de diferentes tipos de choque que tem com o

13. O autor propõe um enfoque estruturalista do desenvolvimento, focalizando o modo como a


pessoa organiza a experiência em cada estágio desenvolvimental. Propõe aspectos (categorias) a
serem observadas, em diferentes situações, com intuito de facilitar a compreensão do
desenvolvimento geral da criança.
14. Na apresentação do texto de PERRIN & GERRITY (1984) será mantida a expressão enfermidade
crônica, por esta ser mais abrangente. Entretanto cabe ressaltar que se aplica precisamente ao
câncer infantil, que tem característica de uma doença crônica devido ao tempo prolongado do
tratamento, com possíveis recidivas.
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 251

ambiente. O sucesso na realização de um conjunto de tarefas


precedentes é necessário para a progressão ideal para a próxima fase
do desenvolvimento.(p.22)

A autora diferencia sua explanação em cinco períodos do de-


senvolvimento: Lactância, Quando começa a andar, Pré-escolar, Esco-
lar e Adolescência.
Nos primeiros 18 meses de vida, a Lactância, o bebê deixa de
ser indefeso e totalmente dependente de um ambiente protetor e
começa a ser capaz de se comunicar e mover-se independentemente
em seu ambiente. Para Erikson, a principal tarefa do desenvolvimento,
nesse período, é o desenvolvimento da confiança básica, que possibi-
litará à criança visualizar o mundo como um lugar seguro e estável,
adquirindo o sentido de confiabilidade, proteção e previsão em rela-
ção às outras pessoas e a si mesma. Para tanto, é preciso respostas
coerentes do ambiente físico e interpessoal do lactente.
Para Piaget, essa é uma fase de exploração sensório-motora, onde
as interações do lactente com seu ambiente são governadas, sobretu-
do, por sensações primitivas e atividades, que à medida que ele
interage repetidamente com um meio estável, esses padrões reflexos
iniciais são modificados pelo reconhecimento das experiências pre-
cedentes, até que ele aprende a dominar suas atividades motoras.
Por volta de 1 ano, o lactente adquire a noção de que os objetos
e pessoas em seu ambiente são permanentes, existindo mesmo quan-
do não estão no local. Aos 15 meses de idade inicia-se um período de
nova experimentação, onde as atividades e estratégias associadas a
objetivos específicos passam a ser utilizadas em novas situações.
Um ambiente imprevisível não favorece o desenvolvimento do
senso de confiança e nem mesmo uma noção de domínio motor. A
presença de uma enfermidade física crônica tende a interromper a
estabilidade e a dependência do ambiente do lactente.
O nascimento de um bebê com uma incapacitação física ou en-
fermidade séria, ou ainda aquele bebê que as desenvolve precoce-
mente, suscita nos pais uma frustração em suas expectativas de um
filho sadio. As reações de tristeza dos pais podem estar associadas a
sentimentos de raiva, culpa, depressão ou resultar em uma fuga do
ambiente emocional e, às vezes, numa assistência física inconstante.
252 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Essas respostas imprevisíveis não propiciam ao bebê um senso


de confiança; o mundo externo não se mostra seguro e confiável. A
ligação normal às pessoas importantes encontra-se sob risco.
As hospitalizações ou visitas freqüentes nos consultórios médi-
cos interrompem o fluxo uniforme do desenvolvimento familiar. Os
pais têm o seu senso de competência e confiança nessa paternidade
repetidamente desafiado pela necessidade de procurar uma opinião
sábia para o cuidado diário do bebê.
Além desses aspectos associados aos pais, pode ocorrer que a
enfermidade limite os movimentos da criança, ameaçando a capaci-
dade de a mesma explorar o ambiente e, portanto, o desenvolvimen-
to cognitivo na lactância.
Assim como GREENSPAN propõe em alguns trabalhos (1981,
1993) a importância de se ter sempre em mente uma moldura
desenvolvimental ao trabalhar com crianças, nesta situação de do-
ença grave esta indicação também se aplica. Em relação ao nível das
funções básicas do ego, é preciso estar atento a dois aspectos:
– A forma como transcorrerá o desenvolvimento físico e neuro-
lógico do lactente gravemente enfermo — nesse período o bebê está
em um estágio onde exercita a capacidade de desenvolver a
homeostase, ou seja, uma fase de regulação inicial do sono, alimen-
tação e outros processos orgânicos. Como a criança enferma croni-
camente, com internações constantes, exames e outras situações
estressantes, desenvolve sua regulação orgânica?
– Funcionamento psicológico — é preciso estar atento sobre a
forma como a criança desenvolve uma relação de apego, a qual é
esperada nessa fase. A criança enferma precocemente, é forçada a
desenvolver essa relação em um contexto, muitas vezes ameaçador e
desfavorável, em que tem que se distanciar da mãe para exames, ou
mesmo essa mãe tem que contê-lo para intervenções desagradáveis.
Tais situações podem vir a gerar uma certa tensão nesse relaciona-
mento, pautado por medos, inseguranças e tristeza.
Todos esses aspectos devem ser observados tendo em vista os
níveis organizacionais do desenvolvimento. Nessa situação da
lactância, é importante perceber como e em que grau a criança está
engajada e compartilha atenção. Ela consegue desenvolver um in-
teresse pelo mundo? Vincula-se a este mundo? De que maneira? É
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 253

uma forma adaptada? E sua comunicação intencional, desenvol-


veu-se?
De maneira geral, é importante observar como esse bebê conse-
gue cumprir as tarefas de desenvolvimento que são esperadas para a
idade, porém em uma situação ímpar, que é a de ter uma enfermida-
de crônica.
O período compreendido entre 18 meses e 03 anos de idade,
Quando a criança começa a andar, é para Erikson, a fase do desen-
volvimento da autonomia e autocontrole . O aumento das habilida-
des motoras da criança favorece maior independência dos pais na
exploração do ambiente e na satisfação das necessidades, bem como
suscitam confiança em tais habilidades e senso de competência social.
Então, querem fazer “tudo” por si mesmas, buscando intensamente
explorar, controlar e manipular o mundo.
Os pais precisam agir com certa permissividade, passando,
gradativamente, às crianças, os controles de atividades e escolhas que
afetam suas vidas. Porém, é necessário manter regras e limites, demarcan-
do proteção e orientação. Quando as crianças não podem exercitar-se
nesse desenvolver da autonomia, muitas vezes devido à impaciência
ou superproteção dos pais, estas incorporam um senso de dúvida acerca
de sua própria eficácia no controle do mundo e de si mesmas.
Quanto à cognição, a criança que começa a andar possui repre-
sentações mentais do mundo. Objetos e pessoas continuam, agora, a
existir mesmo quando não são vistos. A aquisição da linguagem faci-
lita a comunicação e proporciona novos instrumentos para experi-
mentação do mundo. É uma fase onde as crianças crescem em ter-
mos de capacidade imaginativa e de pensamentos mágicos. Não há
compreensão através da lógica, porém há uma assimilação através da
magia; desta forma a criança que está em um período de egocentrismo
e onipotência, acredita que pode fazer acontecer as coisas desejadas.
Uma criança gravemente enferma convive com restrições que a
própria doença introduz e com demandas incomuns à rotina infantil.
Os repetidos episódios de dor, passividade, imobilização e separação,
assim como o pouco controle sobre os procedimentos, medicações e
a dieta, impedem que a criança efetue escolhas em sua vida. Tais
ocorrências podem gerar um sentimento de derrota, tornando a
criança apática, passiva e apegada.
254 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Frente à situação de uma doença crônica, os pais enfrentam di-


ficuldades para desincumbir-se da supervisão e responsabilidade da
assistência total para a criança. Então, ao invés de encorajar a inde-
pendência, por exemplo, na alimentação e hábitos de higiene, pode-
rá ser necessário estar limitando estas atividades, pois terão que realizá-las
se a criança estiver imobilizada. Além disso, os pais podem relutar
em estabelecer limites adequados para o comportamento do filho
enfermo, pois isso poderia soar-lhes como mais uma restrição, sendo
que essa pode ser suprimida. Porém, essa permissividade interfere no
desenvolvimento normal do controle dos impulsos.
Em relação às crianças, estas parecem apreciar a incapacidade e
a passividade forçada, demonstram certa felicidade em ser depen-
dentes e mimadas. Entretanto, com o passar do tempo, isso priva-as
do sentimento de competência e autodomínio oriundos do aumento
da independência, o que constitui o fundamento básico de um senti-
mento de auto-valia. Cognitivamente, essas crianças têm dificuldade
para o estabelecimento de um senso a respeito de si mesmas, como
um ser físico separado e intacto. Há de se considerar que as limita-
ções de movimento e atividades são especialmente problemáticas para
uma criança dessa idade, em termos do desenvolvimento intelectual.
Por exemplo, uma criança cujas mãos e braços foram contidos du-
rante longos períodos de tempo, não consegue dominar as tarefas
que resultam em coordenação viso — motora normal, nem dispõe de
habilidade para empilhar, reunir e classificar objetos.
A interferência da enfermidade no desenvolvimento normal varia
em decorrência das complexas interações entre crianças, famílias e
outros, e a situação médica específica. De maneira geral, as crianças
que começam a andar só compreendem as enfermidades na medida
em que elas afetam e interferem com suas atividades e escolhas. Po-
dem significar sua doença como algo que as separa das pessoas im-
portantes em suas vidas e como uma situação que requer tratamen-
tos dolorosos e passivos, visitas freqüentes aos médicos e interferên-
cia com suas brincadeiras. A interpretação da causalidade da doença
passa por uma visão mágica e egocêntrica, aliada ao desejo de con-
trolar, caracterizando a enfermidade e hospitalização como eventos
causados por elas próprias.
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 255

Refletindo sob a visão mais integrativa de GREENSPAN (1993),


é possível destacar alguns aspectos. Em relação às funções básicas do
ego, o funcionamento orgânico (desenvolvimento físico e neurológi-
co) pode estar sendo dificultado quando a criança não pode execu-
tar atividades que desenvolvam sua coordenação motora, integração
sensório-motora, cognição, linguagem e capacidade para concentrar
e focalizar atenção. O funcionamento psicológico pode estar sendo
afetado pela ocorrência da enfermidade em diversas formas, como,
por exemplo, na capacidade de relacionamentos. Esta, muitas vezes,
é marcada pela dificuldade de a criança desenvolver independência,
então, mantém um padrão de “agarramento” excessivo aos pais. É
preciso ater-se à qualidade dessa relação.
Em termos da organização desenvolvimental, uma criança nesta
etapa deveria estar iniciando a capacidade para elaboração e diferen-
ciação representacional. Porém, frente à imposição da enfermidade
crônica, às vezes não consegue nem ao mesmo organizar suas sensa-
ções, dificultando a percepção sobre si própria como indivíduo —
funde-se à situação.
Um aspecto que também deve ser observado refere-se às preo-
cupações e conflitos que a criança apresenta. Mesmo não falando
perfeitamente, a criança pode dar indícios sobre o que está sentindo
e pensando, através da forma de se relacionar, do humor, dos seus
afetos e dos temas que passa a apresentar em brincadeiras.
As crianças com idade entre 04 e 06 anos, as Pré-escolares, são
desafiadas pelo mundo social a serem cada vez mais ativas, a domi-
nar novas habilidades e a serem produtivas. Erikson considera que a
principal tarefa psicossocial desse período é a aquisição de um senso
de iniciativa, o qual acrescentará à autonomia atos de empreender,
planejar e realizar tarefas. É um começar a assumir responsabilidade
em relação a si mesma e a outras pessoas e coisas do mundo. O su-
cesso dessa tarefa de iniciativa depende da repetida aquisição, pela
criança, dos objetos desejados, e dos recebimentos de aprovação so-
cial pelos objetivos selecionados.
Para Piaget, os anos situados entre a fase que a criança começa
andar e 06 ou 07 anos de idade referem-se ao período pré-operacional.
As crianças conseguem pensar nas coisas que não estão presentes,
ainda que de maneira ilógica e egocêntrica. Dessa forma suas próprias
256 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

opiniões e desejos exercem exagerada influência sobre sua compre-


ensão acerca dos fenômenos do mundo. A lógica nessa etapa é mais
correlacional do que causal, compreendendo apenas superficialmen-
te as relações, isso associado a uma forte ligação com a percepção
justificam idéias como: julgar a idade pela altura, o sexo pelo compri-
mento do cabelo, etc.
Como já foi citado anteriormente, a enfermidade física pode li-
mitar a capacidade de as crianças adquirirem competência motora e
social, reduzindo as oportunidades de interação com os companhei-
ros e de aprovação social. As restrições físicas, as limitações da força
ou agilidade e os repetidos episódios de passividade forçada ou de
experiências dolorosas associados à enfermidade, podem limitar seu
entusiasmo e capacidade em relação aos esforços dirigidos para um
objetivo. Além disso, os pais muitas vezes limitam o entusiasmo e a
iniciativa das crianças, a fim de protegê-la contra um agravamento
de seu estado de saúde. Essa limitação pode resultar em uma criança
medrosa, passiva e excessivamente dependente dos adultos.
A compreensão sobre os mecanismos e causas da enfermidade,
para esta faixa etária, é bastante concreta, específica e superficial. A
conscientização do estar doente ocorre frente a um sinal externo —
“ter que ficar na cama”. Devido ao egocentrismo existente nesse pe-
ríodo, as crianças acreditam ter adoecido em decorrência de uma
ação concreta que fizeram ou deixaram de fazer e julgam que a cura
pode estar associada a um conjunto de regras rígidas como — “co-
mer bem”, “não beber no copo de outra pessoa”. Não compreendem
que um conjunto de eventos externos inter-relacionados a estados
internos poderia causar a enfermidade; julgam que esta decorra de
um evento específico.
As crianças pré-escolares exprimem idéias excessivamente
simplificadas e mágicas em relação ao funcionamento de seu corpo, con-
siderando que as partes do corpo têm intenções e desejos autônomos.
Considerando qua a cada nova etapa do desenvolvimento a
criança precisa das tarefas anteriores já elaboradas para obter sucesso
nas seguintes, é importante lembrar que na ocorrência da enfermi-
dade precoce, este processo pode ser comprometido. Seguindo as
propostas de GREENSPAN (1993) é possível observar aspectos
relevantes nesse período pré-escolar, porém tendo em mente a
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 257

necessidade de se olhar o desenvolvimento como um todo. Quanto


ao nível das funções básicas do ego, destacando o desenvolvimento
psicológico, é importante estar atento à forma como se efetuam os
relacionamentos. Aos 04 anos a criança já está apta a ampliar suas
relações com companheiros, já aceita separação e tem o “outro”
internalizado. Será que a criança enferma, hospitalizada, tem pronti-
dão para estas tarefas? O humor que poderia estar mais organizado
nessa fase, no caso da criança enferma, pode estar sujeito ao seu bem
estar físico, da ocorrência ou não de intervenções dolorosas, ou seja,
esse caráter condicional é constante, o que para uma outra criança
seria esporádico. Seus afetos, muitas vezes, podem resultar de uma
auto-imagem negativa, de um senso de derrota imposto pelas limita-
ções, mesclando-se à ansiedade e medos acerca de ferimentos cor-
porais, culpa e medo de serem separados dos pais. Esses aspectos
podem aparecer como tema em falas e brincadeiras da criança.
Em termos dos níveis organizacionais do desenvolvimento, aos
04 anos a criança já deveria ter uma capacidade de organização bem
elaborada. Dessa forma, há necessidade de observar como a criança
utiliza representações, jogos simbólicos, palavras e o quanto conse-
gue realizar uma diferenciação representacional e assim fazer conexões
entre diferentes idéias e sentimentos. Falhas em tarefas anteriores
podem retardar essas aquisições.
Crianças com idade entre 06 e 12 anos, na fase Escolar, gastam
muito tempo fora de casa e longe da família. Adquirem independên-
cia cada vez maior dos genitores, necessitando de um forte senso de
propriedade. O resultado é a identificação com os companheiros e a
necessidade de aprovação pelos mesmos.
Para Erikson, essa fase é marcada pela aquisição de um senso de
atividade versus um senso de inferioridade. As crianças nessa idade
sentem-se gratificadas pelo sucesso e pela aquisição do senso de ade-
quação e competência sobre si mesmas.
A capacidade cognitiva das crianças escolares são muito mais signi-
ficativas, há uma noção e preocupação com regras e princípios generali-
zados. As regras lógicas acrescentam nova estabilidade a todos os seus
conceitos, incluindo-se os de tempo e causalidade. Não são mais tão
ligados à percepção, mas sim às regras que são fixas e absolutas. O pen-
samento continua a ser concreto e apenas sobre o que já experienciaram.
258 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

A enfermidade nessa etapa do desenvolvimento instaura a preo-


cupação acerca das diferenças e da interferência da enfermidade nos
relacionamentos com os companheiros. As diferenças, por exemplo,
ter que ir ao médico freqüentemente, queda do cabelo, são observa-
das imediatamente pelos colegas da escola e sentidas como
desconfortáveis, o que leva, muitas vezes, quando não orientados, a
evitarem ou isolarem a criança doente. Sendo a escola o local para
elas experimentarem o sucesso, a realização e o aumento do senso de
competência, as limitações cognitivas ou a freqüência irregular gera-
da pela enfermidade, colocam as crianças sob risco de ineficiência e
fracasso. Podem perder as experiências que levam ao desenvolvimento
normal da auto-estima e o senso de domínio e controle sobre seu
ambiente.
A causa da enfermidade é compreendida como uma contami-
nação, por germes, através de pessoas más ou objetos externos nocivos
apenas pela sua presença física ou contato. A recuperação é atri-
buída ao cuidado e obediência ao que o médico disse — conservam
uma posição passiva e não vêem suas respostas como responsáveis
pelas causas ou perversões da enfermidade ou dos sintomas. O mis-
tério que cerca as causas da enfermidade, seu curso e prevenção,
produzem uma fonte de desconforto e senso de incapacidade em uma
idade em que o domínio e a força sobre o ambiente são fundamentais
para o desenvolvimento.
Tendo em vista que as tarefas desenvolvimentais são cumulati-
vas, nessa fase, além do que já deveria ter sido conquistado, é preciso
observar o nível das funções básicas do ego e do funcionamento psi-
cológico. Como está a capacidade de relacionamento dessa criança
enferma fora do grupo familiar? Há bons relacionamentos na escola?
Estará ocorrendo uma preparação para a adolescência, com relacio-
namentos com sexo oposto? Outro aspecto importante refere-se ao
humor, que deveria estar organizado e estável, havendo capacidade
para lidar com frustrações sendo que comportamentos passivos emer-
giriam apenas intermitentemente, em situações de estresse. Como
isso se aplica ao estresse constante da enfermidade crônica? O afeto
primordial desta etapa, a auto-estima positiva, é conquistado? As
crianças nessa fase enfrentam medos e ansiedades frente à perda de
respeito, à humilhação, à vergonha e à própria culpa. Como lidam
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 259

com exames médicos constantes onde expõem seu corpo, com o ró-
tulo de diferente por serem “doentes”, com sentimentos de culpa por
estarem doente?
A Adolescência, período de transição durante o qual as crianças
assumem novas funções sociais, emocionais e orgânicas e confirmam
sua própria identidade, as enfermas isoladas de seus genitores e com-
panheiros. A tarefa central do desenvolvimento, segundo Erikson, é
o sucesso na aquisição da identidade pessoal em oposição à difusão
da identidade. Há uma luta para determinar a própria personalidade
e independência, enquanto, ao mesmo tempo, precisam confiar e
estar próximas dos pais.
Para Piaget, é a fase intelectual do pensamento operacional for-
mal; este torna-se menos concreto. Inicia-se o pensar acerca de hipó-
teses, idéias abstratas, valores e teorias. Buscam conformação a regras
e regulamentos previsíveis para ordenar suas vidas tumultuosas.
As sensações e respostas orgânicas são novas, surge o desejo
sexual, que constitui um desafio constante e fonte de ansiedade e
auto-crítica. As alterações e readaptações internas, cognitivas e fisio-
lógicas ocorrem ao mesmo tempo em que os adolescentes estão
lidando com pressões externas da escola, trabalho, relacionamentos
com companheiros e namoro. Tornam-se introspectivos, calculistas,
confusos e arbitrários.
Quando o adolescente enfrenta uma doença crônica, ele se de-
para com uma nova crise. É uma fase de preocupação com a aparên-
cia, valorizando o fato de ser fisicamente atraente. Dessa forma, alte-
rações físicas, causadas pela enfermidade podem significar imperfei-
ção, complicando o aparecimento de uma identidade física e sexual
segura e de um conceito positivo de si próprio. Esses conflitos podem
levar o adolescente à fuga da participação social e do desenvolvi-
mento de relacionamentos significativos com companheiros de
ambos os sexos, retardando ou distorcendo o desenvolvimento psi-
cossexual sadio.
Outra situação conflitante está relacionada à contradição em
estar buscando independência e ter que se submeter a uma falta de
autonomia e dependência forçadas pela presença da enfermidade e
do tratamento. A conseqüência pode ser uma rebeldia expressa na
recusa a obedecer ou boicotar as orientações médicas.
260 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

GREENSPAN (1993) refere-se mais especificamente às crianças


com idade até 10 anos, porém muito de suas considerações se aplicam
à adolescência, principalmente, considerando o caráter cumulativo
do desenvolvimento. É preciso verificar como o adolescente está
podendo vivenciar situações específicas para sua idade-namoro, rela-
cionamentos com colegas, se ele aspira ou idealiza como alguém de
sua idade (quer independência, autonomia?), como reage às limitações
e frustrações (rebela-se, fica passivo?) e tantas outras manifestações
que ele possa apresentar.
Com base nas considerações apresentadas acima, sobre cada eta-
pa, pode-se notar como o papel do ambiente é decisivo na evolução do
desenvolvimento da criança enferma cronicamente. O curso de seu desen-
volvimento transcorrerá em uma situação que acrescenta dificuldades
àquelas já esperadas. Porém, assim como as crises previsíveis podem
ser superadas, as não previstas, como a doença, também podem ser.
Nesse ponto, novamente vem a importância do meio em que a criança
está inserida. Uma equipe multiprofissional em pediatria, que estiver
informada sobre o que é esperado para cada etapa da vida de uma
criança, é capaz de auxiliá-la, através de um papel mediador, no decor-
rer de uma enfermidade, a vivenciar e superar as tarefas previstas no
seu desenvolvimento. Poderá ainda, orientar os pais, a fim de também
ampliar suas compreensões sobre o processo do desenvolvimento com
uma doença crônica e desta forma, instrumentalizá-los para o contato
e cuidado adequado com o filho enfermo.
Essa visão desenvolvimentista da enfermidade crônica na infân-
cia vem complementar os estudos já existentes e também sugerir uma
medida preventiva para a manutenção da qualidade de vida da
criança quando esta se encontrar livre da doença, ou seja curada.

2 – O expresso sobre a cura

Há algumas décadas atrás o câncer era considerado uma doença


fatal. No decorrer de 1950 até 1960, as informações sobre a doença
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR E O ACONTECER DO TRATAMENTO DA CRIANÇA COM CÂNCER 261

não eram compartilhadas com a criança e as famílias eram prepa-


radas para a inevitabilidade da morte. Nessa época, o tratamento era
voltado para amenizar o sofrimento da criança. Na década de 70, o
foco foi substituído de “morrer” para “viver com uma condição de
vida ameaçadora”.
Muitos estudos foram realizados procurando compreender como
a criança vivenciava o tratamento oncológico. VALLE (1997) refere
alguns desses estudos e evidencia a importância de a criança estar
informada sobre seu próprio tratamento de maneira adequada ao seu
nível de compreensão, bem como a relevância de se estar atento às
significações atribuídas pela criança aos diversos aspectos que envol-
vem o tratamento, tais como hospitalização, quimioterapia, cirurgia,
medo da morte, dentre outros.
A partir do início de 80, e ainda atualmente, vem ocorrendo um
direcionamento da atenção para o viver com câncer, assim como
para as necessidades psicossociais da criança curada (EISER, 1994).
Esta postura pode estar associada ao desenvolvimento das técnicas
cirúrgicas, da quimioterapia e da radioterapia, gerando um aumento
no número de crianças que sobrevivem ao câncer.
Frente a esta nova realidade tornou-se necessário estudar o pe-
ríodo da cura. Os estudos foram direcionados por áreas distintas,
desde a investigação de seqüelas em nível cognitivo (PAINE,1984;
WABER,1992; MULHERN,1992; RADCLIFFE,1994) até a com-
preensão dos estados emocionais da família quando a criança termi-
na o tratamento de câncer (NATIONAL CANCER INSTITUTE,
1980; VALLE,1994 e 1995).
Segundo GESINI (1980), a década de 80 se caracterizou pela
preocupação dos profissionais e especialistas da área com a dimensão
psicológica da cura do câncer, atendo-se os estudiosos aos aspectos
individuais dos pacientes, à depressão, ao medo da morte. Já nos
anos 90, o objetivo é gerenciar uma dimensão social da cura para
recuperação completa do estado de saúde e integração do indivíduo
no ambiente escolar, de trabalho e social porque haverá muitos adul-
tos curados.
CHANG (1991), em uma revisão da literatura sobre crianças
sobreviventes ao câncer, relatou ter encontrado duas tendências de
estudos sobre o ajustamento global dessas crianças. Uma tendência
262 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

relacionou-se à investigação de distúrbios psicológicos, psiquiátricos


e cognitivos, como por exemplo, ansiedade, depressão e dificuldades
de aprendizagem. Já uma outra direção de pesquisa preocupou-se
com a qualidade de vida, procurando conhecer a performance esco-
lar, ajustamento social, emprego, vida independente e casamento.
Com base nessa visão, conclui que o mais importante em termos do
cuidado com esses indivíduos, ex-pacientes, é a preocupação com a
qualidade de vida.
Referir-se à qualidade de vida remete em um primeiro momen-
to, a uma busca de definição para o conceito de cura. EYS (1991),
retomando o conceito de “criança verdadeiramente curada”, inserido
em 1977, situa os três componentes da cura: cura biológica, psicoló-
gica e social; sendo que os dois primeiros já estão sendo realizados.
Segundo o autor, a cura biológica não é discernida por nenhum obje-
to de medida, só é definida retrospectivamente quando algum antigo
paciente vem a morrer em idade avançada de outro problema. Ape-
sar da dificuldade de mensuração, a cura biológica é um conceito
amplamente utilizado por médicos e pacientes. Entretanto, é preciso
ter em mente que a meta da cura deve envolver cura psicológica.
Esta não é possível se biologicamente não se pode curar. É possível
aproximar-se da cura psicológica se, desde o tratamento e após o
mesmo, permitir à criança que fale do que lhe é aversivo e desta
forma as experiências presentes e passadas são incorporadas dentro
de uma total experiência de realidade. O único caminho para uma
cura social, envolvendo a reintegração na sociedade, mantém-se di-
retamente relacionado à efetivação de ambos os aspectos citados
acima: cura biológica e psicológica.
Com base nas considerações referidas, o autor trás seu conceito
de que a criança verdadeiramente curada deve poder expressar e ser
ajudada em relação aos seus medos (de solidão, abandono, desinte-
gração, perda de controle, raiva). Um exemplo de uma cura verdadeira
pode ser observado no estudo de DAVIES (1992), onde descreve a
psicoterapia de uma criança de quatro anos de idade que sobreviveu
a um tumor cerebral. A partir de uma intervenção que prioriza o
domínio dos impasses desenvolvimentais e não a psicopatologia, a
criança teve a oportunidade de compreender e dominar a experiên-
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 263

cia do câncer, mostrando-se capaz de expressar seus afetos, pouco


ansiosa em relação ao seu estado físico e ainda muito ativa física e
socialmente.
Após essas breves considerações sobre a questão da cura do câncer,
torna-se oportuno retomar a questão de qualidade de vida. Tendo
em vista que o número de óbitos de crianças com câncer é inferior ao
número de incidência da doença, e que, conseqüentemente há um
aumento no grupo de crianças que sobreviveram ao câncer, surge a
necessidade de refletir como está vivendo essa criança — está cura-
da (bio-psico e socialmente) ou apenas livre da doença? Como está
sua qualidade de vida e o que significa isso para ela?
SHAVELZON (1994) questiona, em relação à qualidade de vida,
como se sente o paciente. Coloca ainda, que não há leis gerais, ou
escalas de valores a esse respeito que possam ser generalizadas, mas
que tal aspecto é relativo a cada paciente e possui uma apresentação
simbólica muito importante. Essa conceituação vem diferenciar subs-
tancialmente qualidade de vida e duração de vida. Segundo
SHAVELZON (1994) é possível averiguar o que é qualidade de vida
para o outro, se houver respeito; caso contrário, sem respeito, será
feito apenas um julgamento. Esta averiguação pode ser efetuada por
duas formas distintas: condutivamente (escalas, questionários,
entrevistas dirigidas sem efeito psicoterapêutico) ou psicodinami-
camente. Descrevendo melhor esta última forma citada, o autor
refere que agindo desta maneira, há uma valorização do terapeuta
que precisa de um preparo maior, procedendo a entrevistas individua-
lizadas, sem muitas preocupações de cunho estatístico e, principal-
mente, mantendo um caráter terapêutico na própria entrevista.
Portanto, a qualidade de vida deixa de ser um conceito teórico e
insere-se como uma função do atendimento de saúde, sendo uma
responsabilidade moral e legal dos profissionais.
Pensar em uma cura verdadeira, nos seus três aspectos, bio, psico
e social, pressupõe uma atuação voltada para a promoção do bem
estar de cada paciente de forma individualizada. Entretanto, alguns
aspectos continuam impedindo essa evolução. EYS (1991) levanta
alguns fatores que podem emergir como obstáculos a esse processo
de cura verdadeira e qualidade de vida. As intervenções médicas
excessivas constituem um dos obstáculos identificados. Há um limi-
264 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

te muito conflituoso entre sucesso e falha na intervenção médica,


que está facilmente equiparado com a escolha entre a vida e a morte.
Essa situação conflituosa propicia a opção por determinadas inter-
venções que podem privar a criança do seu desenvolvimento
normal, sem que essas conseqüências possam ser reparadas. Os obs-
táculos educacionais, identificados pelo autor, dizem respeito à iden-
tificação das leis educacionais no que se refere à criança que se
ausentou da escola por problemas de saúde e tem a evolução de seu
desenvolvimento escolar prejudicada. Muitas vezes, as necessidades
pessoais dos profissionais de saúde os impulsionam a estar traba-
lhando com este tipo de pacientes, pois estão relacionados a motivos
inconscientes, que necessitam desta atuação para obter gratificação.
Esta questão é muito delicada, podendo trazer prejuízos para o pro-
gresso normal de ajustamento e independência do paciente. Cada
profissional atuante deve ter o seu papel delimitado, evitando a uti-
lização de recursos inadequados, ou seja, evitar a resolução de
problemas apenas com base em sentimentos e reconhecer que as
desordens emocionais necessitam de técnicas e conceitos teóricos
específicos para serem tratadas. Sendo assim, não basta qualquer pro-
fissional agir com sensibilidade fundamentada em suas emoções em
detrimento do profissional de saúde mental. Agir desta forma só vem
acarretar danos ao paciente. Conseqüentemente, em coerência aos
aspectos levantados, é essencial que os problemas posteriores ao
tratamento não sejam minimizados a fim de eliminar a culpa dos
profissionais de saúde, advinda da dificuldade de precisar o limite
entre o que se constitui como sucesso ou falha. A cura social ou seja,
re-integração à sociedade, torna-se difícil de ser viabilizada quando
não foi desenvolvida a cura psicológica no passado. Surge, portanto,
a necessidade de uma psicoprofilaxia.
A readaptação da criança que sobreviveu ao câncer deriva de
algumas condições como tempo, especificidade do tratamento, as
motivações para viver e a estrutura da personalidade. O tempo de
integração ao seu novo mundo-vida livre da doença é peculiar a cada
criança. É importante não cair em extremos opostos: obrigá-la a re-
tomar de uma só vez as atividades que interrompeu, ou permitir que
se acomode em um comportamento dependente. Além do tempo, as
especificidades do tratamento são também relativas à individuali-
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 265

dade, pois referem-se ao agravo sofrido pela criança pelos efeitos do


tratamento (quimioterápicos, radioterápicos e outros). A criança pre-
cisa de motivação para viver, e o caminho para alcançá-la está liga-
do à qualidade de vida familiar que deve ser representada pelo apoio
compreensivo e ajustamento dos seus membros. É importante que a
criança sinta-se vencendo desafios, como por exemplo a escola. Es-
ses aspectos serão facilitados pela personalidade bem estruturada
da criança antes da doença. Os mecanismos psicológicos de adapta-
ção e integração que ela criou no decorrer da sua história de vida
facilitarão ou dificultarão sua capacidade de conviver com a doença
(RAIMBAULT,1984, apud VALLE, 1994). Apesar de toda dificul-
dade experienciada pela criança que é submetida a um tratamento
de câncer, há perspectivas de ocorrer uma readaptação à vida após o
término do tratamento.
Em uma pesquisa sobre a auto-imagem de sobreviventes de
câncer infantil, ANHOLT (1993) comparou depoimentos de jo-
vens que haviam feito tratamento oncológico com depoimentos
de jovens que não tiveram tal experiência. O autor verificou que
os ex-pacientes de câncer infantil apresentavam uma auto-ima-
gem positiva e até superior aos outros jovens no que se referia a
aspectos intelectuais, escolares, comportamentais e de felicidade
e satisfação geral.
PICADO (1996) em um estudo sobre avaliação de parâmetros e
alterações de imagens em crianças sobreviventes de leucemia
linfoblástica aguda, obteve resultados positivos. Observou a adequa-
ção da maior partes desses sobreviventes quanto aos parâmetros de
peso e estatura; a presença de alterações sutis nos processos intelec-
tuais e também uma capacidade de readaptação satisfatória dessas
crianças ao cotidiano, bem como a apresentação de uma boa quali-
dade de vida.
Com objetivo de ouvir crianças e adolescentes que tinham ter-
minado tratamento de câncer, encontrar os significados e compreen-
der o sentido que elas atribuem ao ser-no-mundo sem a doença, foi
realizado um estudo que partiu da interrogação do autor — “O que é
para a criança que terminou o tratamento de câncer conviver com a
cura?”(Vendrúscolo, 1998).
266 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

3 – Compreendendo o discurso

A leitura atentiva dos discursos possibilitou uma compreensão


do fenômeno ser-no-mundo curado de câncer. As crianças e os ado-
lescentes mostraram, em suas falas e silêncios, à maneira do velado,
como estão sendo-no-mundo enquanto pessoas curadas de um cân-
cer infantil.
O mostrar-se do fenômeno se deu em diferentes facetas, as quais
foram apreendidas nas convergências dos relatos e agrupadas em
unidades significativas. Essas unidades, configuraram algumas
temáticas ou categorias que puderam ser captadas na perspectiva da
questão norteadora da entrevista do autor com 15 crianças: Como
tem sido a sua vida? Dessa forma, está sendo possível desvelar o fenô-
meno ser-no-mundo curado de câncer.

3.1 – As temáticas
Para as crianças e adolescentes, a vida atual — o ser-no-mundo
curado de câncer — tem sido:

3.1.1 Uma afirmação de normalidade.


É possível apreender que esta afirmação de normalidade está
muito relacionada a um significado atribuído à doença — anormali-
dade. Sendo assim, a cura, o término do tratamento, o cabelo que
volta a crescer e o estabelecer de uma rotina semelhante a que viviam
antes de adoecer, remetem-nos ao poder voltar a ser de maneira
parecida ao que já foram. É como se a doença fosse uma turbulência,
algo externo, que chega, bagunça, mas vai embora.
Agora tá normal minha vida. Não tenho nada mais, não queixo de
nada, não fico doente... (J.C.F., 14 anos)

Normal. Não atrapalha em nada o que aconteceu... Minha vida tá sendo


de uma pessoa normal, como se nunca tivesse acontecido o que aconteceu,
Amigos, namorados. Em casa tudo normal. (M.H., 16 anos)
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 267

O convívio com as pessoas o mesmo... Uma rotina normal. Eu acordo


de manhã, estudo, vejo um pouco de televisão... Agora tá normal.
Como se eu não tivesse tido nada. (C.A. M., 16 anos)

Depois que voltou (o cabelo) voltou ao normal. Fazendo tudo de


novo, como era antes... (E.B.M., 14 anos)

Normal. Igual aos outros... Igual as pessoas assim, que nunca


passaram por isso, né... Igual a todos. (M.H., anos)

Em seus discursos, parecem exemplificar o que envolve a normali-


dade que referem. Isso ocorre ao falarem sobre o estudar e o trabalhar ou
mesmo a pretender estudar e trabalhar associando-os a uma retomada
do que faziam e/ou pretendiam fazer antes de adoecer e que foi inter-
rompido ou dificultado pela doença. Ao falarem sobre a escola e/ou tra-
balho, falam de um retomar e assumir suas vidas nestas atividades, nos
remetendo à experiência por eles nomeada como normalidade.
Tem sido normal, como antes d’eu ter ficado doente... Como tinha
sido antes, estudando, brincando, saindo... Trabalhando não, que eu
ainda não trabalho... Porque durante o tratamento, parou muito a
escola... tomei bomba em matemática (na sétima série)... Agora eu
tô na oitava. (E.B.M., 14 anos)

Na escola os outro tenta aprende, tanta coisa, mas se por na conta


assim, não sabe nada. (Quem não sabe nada?) Eu. Fico lá oiando,
oiando. A hora que você vai fazer não dá nada na cabeça...(Fala
com a professora?) Não... Os moleque chama eu de bobo. Fala que
eu sou burro. Por isso não falo. (R.J., 11 anos)

Agora eu vou continuar a estudar. Continuar meus estudos porque


eu parei, né. Quando eu fiquei doente eu parei... (F.M., 16 anos)

Eu gostaria de voltar à trabalhar, mas tô parado por enquanto... Eu


era ponta de caixa. trabalhava em um supermercado...(Parou?) Por
causa de um tumor na cabeça... Tô encostado. Recebo pelo INPS,
agora. (A.L.A., 17 anos)

Eu vendo sorvete lá em T. Dá prá ganhar um troquinho.... Agora tô


normal... (J.C.F., 14 anos)
268 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Uma adolescente referiu não estar estudando e atribuiu uma


série de justificativas para esse fato. Porém, no decorrer de sua fala,
foi se desvelando o sentido da mesma, tornando possível compreen-
der que ela não está vivenciando o estar livre da doença (o que po-
deria impulsioná-la para a afirmação da normalidade) mas está
vivenciando o adoecer, a não normalidade, a não retomada de ativi-
dades, permanecendo presa à situação do tratamento. Sua
temporalidade é outra.
Minha mãe quis ponhá eu na escola de novo... Mas até agora eu não
voltei ainda. Por causa que toda hora eu venho em Ribeirão. A escola
é longe...Os outros sempre me perguntam — Já voltou prá escola? Aí
eu falo, ainda não, que eu tenho muita coisa prá pensar na minha
cabeça, porque se eu estudar agora eu não vou ter como pensar, porque
ainda esse meu medo tá na minha cabeça. Então eu nem penso nessas
coisas de escrever, nessas coisas... (T. I., 15 anos)

3.1.2. Uma rememoração da doença e do tratamento.


A questão norteadora “Como tem sido sua vida?” deixa em aber-
to sobre qual período da vida está sendo indagado. Quando solicita-
do às crianças e adolescentes que falassem sobre suas vidas, imedia-
tamente retomavam a época do adoecimento e do tratamento,
explicitando, portanto, como o presente está se dando à maneira do
passado.
Ah! Prá mim não mudou nada. Eu tenho até orgulho de falar que eu
fiz tratamento... até que foi ruim tudo... (B.L.L., 17 anos)

No tempo que eu fiz tratamento? (Pode ser.) No tempo que eu fiquei


doente a vida foi normal, mas depois que eu fiquei internado, foi
difícil prá mim... (J.C.F., 14 anos)

Minha vida? ( É me conta da sua vida.) Quando nóis tava aqui em


Ribeirão era muito chato porque a gente vinha na coisa, ficava lá,
não podia sair, brincar e não podia mexer, saia a aguia... (R.J.,
11 anos)
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 269

Minha vida? (Isso.) Depois que terminou o tratamento, né, é,


praticamente viver dentro de uma gaiola, eu tinha mais cuidados, eu
não podia entrar em locais fachados, era uma vida de isolamento,
mas pro meu bem, mas prá minha saúde. (D.C., 18 anos)

A maneira de se relacionarem com o adoecer e o tratamento


realizado divergia entre as crianças. Algumas apenas citavam, de modo
velado o acontecido:
Fazendo a quinta série porque eu fiquei dois anos fora da escola. Por
causa do meu problema. Então, por isso eu fiquei um pouco atrasada.
Mas, eu tô seguindo a minha vida normalmente... (M.C., 16 anos)

Outros, ao relembrarem o adoecer, sentiram-se nele:


Eles me chama de careca, eu falo bobeira prá eles... Porque eu fico
nervoso. Eu penso naquele saquinho preto lá. (Quimioterapia) (R.
J., 11anos)

Você passar aquilo, depois vim ao médico, muitas vezes tem que dar
de cara com outros médicos, às vezes situações que aconteceram no
seu tratamento, às vezes você tem que falar pro médico tudo que
aconteceu. (D.C., 18 anos)

Alguns, após falarem sobre o período em que adoeceram, verbalizaram


não conseguir permanecer nesse assunto.

Isso não é humano de ficar assim fazendo... só porque a pessoa tá doente.


Eles ficava fazendo tipo pouco caso da pessoa. É desumano. (Silêncio)
(Você quer falar sobre isso?) Gesticula que não. (J.F., 10 anos)

Essa ambivalência entre as crianças — lembrar e não querer


falar — também ocorria no mesmo discurso. Algumas crianças pu-
deram evidenciar as diferentes emoções que sentiam frente à situa-
ção do adoecer e tratar.
Nossa agora eu não vou poder mais, agora, eu ia toda a semana no
hospital. Aí eu falei, nossa , agora ir de três em três meses, agora, vai
ficar muito difícil. Foi duro acostumar, porque eu acostumava aqui
dentro do hospital, né. E foi difícil prá mim, né. Mas ao mesmo tempo
270 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

eu me senti bem de ter feito aquilo... Mas foi horrível mesmo... (D.C.,
18 anos)

Vários pais têm medo da quimio, mas não é um bicho como todo mundo
pinta. É um remédio forte, tudo bem, mas tem que tentar de tudo...
Era horrível. Sabe às vezes tava pegando a veia minha, as enfermeiras,
eu não queria nem escutar elas falá perto de mim. (F.M.,16 anos)

As vivências do adoecer e do tratamento trouxeram algumas


conseqüências no que tange à escola e aos relacionamentos sociais.
Foram relatadas da seguinte maneira:
Quando eu fiquei doente, quando eu fiz quimioterapia eu tomei bomba
em uma matéria, matemática. (E.B.M., 14 anos)

Um pouco assim, de amizade que eu tinha, parou um pouco. Quando


eu comecei, eles ficaram meio com medo... eles começaram a se afastar
um pouco... Ainda continuam assim, afastados. (C.A.M., 16 anos)

Porque no tratamento eu ficava lá, isolado... (A.I.,11 anos)

Quando eu falava quimio eles não ficava perto de mim. Pensa que
era uma doença contagiosa. (T.I., 15 anos)

Tais relatos envolviam ainda a descrição de seus sentimentos


sobre o adoecer e o tratamento, considerando-o sofrido, penoso, trau-
mático e para uma adolescente a necessidade de encontrar uma cau-
sa para o adoecer, pois sentia-se culpada.
Me sentia assim, triste, desanimada. Porque eu via as pessoas, tudo
bonitas, de cabelo e eu né? Eu tinha 13 anos, uma adolescente...
Quando a gente tá na idade de 13 anos é bem vaidosa. E eu sem
cabelo, é muito difícil. Aí eu sofri!( M.C., 16 anos)

Naquela época eu não podia fazer praticamente nada, eu vivia


praticamente dos remédios. Aqueles remédios acabava sabe. É
horrível. Aquela época foi horrível mesmo... Mas foi horrível mesmo
porque se de repente eu fosse bem criança naquela época, acho que
eu não ia ter tanto trauma como eu tenho hoje, porque a doença me
pegou na fase da adolescência. (D.C., 18 anos)
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 271

Eu nem sei, porque o tanto que eu sofri, eu num, num dô nem prum
cachorro, o meu sofrimento. Porque eu sei como foi, como que não
foi. Eu chorava muito... (V.M.,14 anos)

Para algumas crianças, essas características anteriormente des-


critas refletiam em medo:
Eles falavam prá mim o que era (o diagnóstico). Além deles falá eu
ficava com um pouco de medo ainda. Eu tinha minhas dúvidas, como
que era, eu ficava com um pouco de medo assim. Pensando o que ia
acontecer. (T.I., 15 anos)

Quando eu fazia tratamento. Imagine se eu pegasse uma gripe. E o


medo de ficar internada, aquela... Medo de todo mundo era de ficar
internado....Cada vez que eu tinha uma febre eu vinha chorando pro
hospital. (B.L.L., 17anos)

3.1.3 – Um retomar da vida


Embora num primeiro momento ficassem presos na doença e no
tratamento, as crianças em seguida, manifestam em seu discurso o
contentamento em estar vivendo sem o câncer.
Tá sendo boa. (a vida) (A.L.A., 17 anos)

Vixe!.. Depois passou tudo. Agora é muito melhor...(J.C.F., 14 anos)

Agora melhorou. Agora eu posso brincar, jogar bola...(R.J., 11 anos)

Tá ótima. Tá muito bem... Minha vida é legal, é divertida. Bem,


assim... E agora, é... eu tô assim, muito contente, né. Tá assim boa,
né. De ter mais disposição... (M.C., 16 anos)

Depois que terminei o tratamento minha vida mudou e para melhor....


Agora eu vou ao clube... (D.C., 18 anos)

Depois do tratamento tá sendo melhor... (A.I.,11 anos)

A vivência do adoecer na infância é tida por alguns deles como


uma experiência positiva, que os impulsionou para o amadurecimen-
272 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

to e propiciou a ampliação do universo de vida. Isso se revela, algu-


mas vezes, ambíguo para a própria criança.
... se for tocar nos detalhes mesmo (do tratamento). Mas, nossa, eu
tive médicos maravilhosos, enfermeiras, então. Foram uns amores
comigo, né. Isso que é gostoso, né. Essa parte né. (D.C., 18 anos)

... não sofri nenhum trauma...não tenho nenhum medo de falar nisso...
Eu comentei com a minha mãe, a gente tava saindo do hospital e ela
disso — essa parte é tão triste, e eu falei, eu tenho saudade daqui.
Ela ficou parada e falou — o quê? Eu disse, foi bom ter ficado doente...
foi ruim, mas foi bom. (B.L.L., 17 anos)

... hoje eu sou outra pessoa. Praticamente é uma outra D. Eu falo


que aquela D. já não existe mais... De 03 anos para cá, que sou eu e
minha mãe, nossas vidas mudaram e prá melhor... Minha mãe vai
pro serviço e eu vou aqui pro hospital. Eu não tenho receio nenhum...
(D.C., 18 anos)

Eu posso brincar mais. Antes eu não podia fazer isso, e agora eu


posso. (A.I., 11 anos)

Melhorou muito a cabeça (o tratamento)... Amadureci muito, Cresci


muito. Larguei um monte de coisa prá trás....para dar valor prá outras,
principalmente a família. (B.L.L., 17 anos)

Há os que referem sentirem-se vitoriosos sobre a doença.


... não tinha chance, não tinha nem 1% de chance de vida. E hoje eu
tô aqui. Eu sinto que nasci de novo... Eu tive por uma linha e eu não
morri. Eu passei tudo que tava escrito prá mim passar, eu passei...
Então quem tem, tem que lutar, porque não é assim. (F.M., 16 anos)

... lá tinha milhares de pessoas do meu lado assim. essas pessoa morreu
tudo... E eles tá morto e eu não. ( J.C.F., 14 anos)

Vale ressaltar que dois adolescentes mostraram ainda vivenciar


o estar doente e não apresentaram esse bem-estar. Um deles, já se
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 273

abre a novas possibilidades, como por exemplo retomar a escola, tra-


balho, apesar de se sentir em tratamento
Eu fiz muita coisa lá na escola... eu entrei na aula de reforço e
passei... Eu vou no banco, faço cobrança... Agora tá bom né, mas
eu sei que tem que acabar mais um tempo,né. Eu vou ficar aqui até
mais quanto tempo? (refere -se ao retorno para controle
hematológico. (J.F., 10 anos)

A outra adolescente, vai desvelando em sua fala o quanto


ainda se sente doente e, portanto, não pode retomar suas antigas
atividades ou mesmo empreender outras, presa ainda a um tempo
já vivido.
Agora minha única preocupação é que o médico disse prá mim que tem
chance dessa doença voltar. Aí eu fico só pensando nisso.... Isso aí tá
na minha cabeça agora. Agora eu num fico nem pensando no jeito das
pessoas. E agora elas tão mais perto de mim, conversa mais comigo...
Penso de noite quando eu vou dormir... quando fico sozinha, assistindo
televisão, aí eu fico pensando.... É a mesma coisa de não tê acabado. É
a mesma situação... O medo é maior que a vontade que eu tenho de
trabalhar, de estudar...Ocupa um grande espaço. (T.I., 15 anos)

O tempo, foi um aspecto ambiguamente presente quando as


crianças se referiam ao tratamento. A ele foi atribuído o passar a
situação,
Só com o tempo passa, melhora. (agitação e nervosismo frente ao
tratamento) (F.M.,16 anos)

bem como tiveram a sensação de não vê-lo passar, transcorrer


Nossa faz tanto tempo, que às vezes eu cheguei até a contar, é igual
a Dra. que me atendeu. Ela tava falando: Nossa faz três anos! Eu
mesma não acreditei. Eu mesma não sabia que fazia tanto assim... o
tempo foi passando, de repente eu acabei esquecendo. Hoje sinto que
eu até esqueço que fiz tratamento. (D.C., 18 anos)

Parece que faz tanto tempo, que passou tão, rápido e se você for ver,
for analisar dia por dia, passou tanto coisa... (B. L.L, 17anos)
274 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

3.1.4 Um reconsiderar os vínculos


As crianças explicitam em seus discursos a importância dos vín-
culos afetivos, tanto durante o tratamento, como após o mesmo.
Alguns dizem com satisfação sobre os amigos que se mantiveram ao
seu lado durante o adoecer.
Amigo é aquele que tá sempre junto se você precisar dele... (Os amigos)
Acompanharam desde o começo... Quando eu fiquei doente eles me
deram apoio. Muita gente, quando eu fiquei careca ficava mexendo.
Eles não mexiam, às vezes me defendiam dos outros que ficavam
mexendo. (E.B.M.,14 anos)

Eles quase, assim, dedicaram à doença também. Quase que levou


tudo igual minha mãe... Eles acompanharam muito a minha doença...
Então, eles me ajudaram bastante. Eles me davam conselho... Acho
que eles correram tudo atrás de mim com a doença. Eu acho
interessante. (V.M.,14 anos)

Há também quem relate o afastamento dos amigos:


Um pouco assim de amizade que eu tinha, parou um pouco. Quando
comecei (o tratamento), eles ficaram com medo... ainda continuam
afastados. (C.A.M.,16 anos)

... as amizades que iniciaram durante o tratamento:


Aí eu conheci muita gente legal. O R. que morreu, os pais dele...E o
Ro.... os pais, eu acabei ficando muito amiga... até chorei quando fui
embora. (B.L.L., 17 anos)

... e os novos amigos e namorados.


... agora tem novas amizades, entendem o que era (a doença)... novas
amizades na escola, normal. (C.A.M, 16 anos)

Tô namorando faz uns dois meses. (M.H.,16 anos)

Um outro vínculo presente em suas falas, relaciona-se aos


laços familiares. Este tem seu espaço durante o adoecer e o tra-
tamento:
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 275

A gente sempre quer a mãe da gente. E naquela época minha mãe


nunca saiu do meu lado. Minha família também, muitas vezes eu
tava internada, vinha me visitar. (D.C. 18 anos)

Quando eu fiquei doente meu pai pensava que era mentira... Depois
com o tempo minha mãe me levou no médico... Aí que ele foi caí na
realidade. Só que aí ele ajudava minha mãe, num dia ele ficava aqui,
outro dia era ela. (F. M.,16 anos)

Eu sei o que a minha mãe passou comigo... Quando eu voltei (de um


estado de coma) eu lembro da minha tia, ela falava prá mim.... (J.C.F.,
14 anos)

e também na atual situação.


Saio pela porta dos fundo. Aí ela não me vê (mãe). Só depois que ela
vê que eu não tô lá que ela grita — R!... eu tenho que sair correndo...
tem dia que tenho que lavá a loça. Eu lavo a cozinha e meu irmão o
banheiro. (R.J., 11 anos)

Minha casa não é muito bom não. Minha irmã fica brigando comigo
à toa. Aí é... A minha mãe na mesma hora tá lá enchendo o saco da
gente por culpa dela... O pai já é legal comigo. Dele eu gosto mais né.
(J.F.,10 anos)

Meu pai tá com problema no ouvido. Nos dois... Hoje ele ia colher
amendoim... Ele nem vei com nóis por causa disso. Veio meu tio...
Minha mãe coitada, ela sofre demais. Tudo é minha mãe. Minha
mãe e mais nada... Por exemplo, minha irmã ficou internada no
hospital... minha irmãnzinha só queira minha mãe...(J.C.F., 14 anos)

Além desses vínculos descritos, que envolvem as ligações afetivas


com familiares, amigos e namorados, as crianças parecem despertar
para um sentimento de solidariedade, que abrange o ajudar colegas
durante o tratamento e também, agora, livres da doença, orientar e
dar esperança a outros que estejam passando por algo que eles já
vivenciaram.
Eu comecei no particular, depois que eu vim prá cá, conviver com
muita gente, ter que ajudar todo mundo. Você tá na mesma situação,
276 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

tem que ajudar todo mundo... Eu tô com um menino que a prima


dele teve recaída e agora vai fazer transplante — Aí B., vamos lá
conversar com a minha prima? Ela tá tão deprimida. Eu falo: Lógico,
vamos sim. Por quê não?... Se precisar eu até viajo prá visitar alguém
que esteja doente... Prá mim é importante, porque sabe o que a gente
passou, né. E querendo ou não, por mais que uns sofram mais e
outros menos, é sempre a mesma coisa, que tá na cabeça é a mesma
coisa... Eu me sinto bem de ajudar essas pessoas por isso... A gente
sabe o que ela tá pensando.... é por isso que eu gosto de conversar
com os pais dos pacientes. (B.L.L., 17 anos)

Quando vejo uma pessoa que teve o mesmo problema que eu, não
falo nada, tento até ajudar... assim igual eles falavam de mim,
chamando de careca. Eu não faço isso, tento ajudar às pessoas. Às
vezes conto a minha estória. Tenho um conhecido meu... que teve
câncer. Aí, tava muito triste, achava que não tinha cura. Aí eu
conversei com ele, falei que eu tive câncer também. É isso que eu
normalmente falo pra pessoa que eu conheço e que eu sei que teve
câncer. (E.B.M.,14 anos)

Me sinto triste quando se fala dessas pessoas, que elas estão doente.
Eu gostaria de ajudar bastante também. Assim, tá perto delas prá
dar um conselho, que não é assim que vai coisando, falando que vai
morrer. Não é assim... Eu queria participar de uma equipe que
ajudasse as pessoas, dar conselho bastante, que não desanimasse...
Eu queria também participar da doença.... Porque eu já sofri muito,
então muitas pessoas já me deram conselho que não era assim... Eu
também quero ajudar essas pessoas, como me ajudaram. (V.M.,
14 anos)

Eu vi na televisão aquele remédio que mulher toma para engravidar,


aquele nenê que nasce sem os pés e sem os braços... Se eu pudesse,
por exemplo, se o governo falasse prá não tomá isso. Passasse algum
anúncio na televisão prá não passar. ( J.C.F., 14 anos)

3.1.5 Um libertar-se
O estar-no mundo curado de câncer é significado por algumas
crianças como um libertar-se. Sentem-se livres de um tratamento sofrido...
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 277

... aliviada te ter superado tudo que aconteceu, de tá livre... É ótima né.(vida)
Porque não tem que ficar tomando aquelas doses fortes... Agora livre assim
não tenho mais que passar por isso. Eu espero! (M.H., 16 anos)

... o qual é até visto como uma prisão:


... e quando tava assim, quase prá terminar o tratamento, aí eu tava
esperando prá ser livre daqui. (T.I., 14 anos)

Dessa forma autorizam-se a viver:


Um dia eu sortei pipa, eu e um moleque, só que ele é maior que eu, aí
sortô a pipa e ficou tudo enrolado na pipa. Eu puxei, com o vento
cortou a pipa dele... Aí eu saí correndo prá casa, senão ia apanhar...
Eu ando de bibicleta...Tem dia que eu posso ir na minha tia, lá em
O... Minha mãe não deixa eu ficá muito na rua de noite. Lá em O.;
ela deixa, com a tia. Eu fico sortinho. (R.J., 11 anos)

... e a serem independentes:


Minha mãe vai pro serviço e eu vou aqui pro hospital. Eu não tenho
receio nenhum. Na época, acho que se a minha mãe não estivesse eu
me sentia a pessoa mais perdida do mundo. (D.C., 18 anos)

3.1.6 Um defrontar-se com o paradoxo: Vida e Morte.


Ao falarem sobre a vida, envolvendo tanto a doença, o trata-
mento quanto a cura, as crianças também se remetem ao tema da
morte. Essa temática aparece de várias formas. De maneira implícita,
surge quando a criança fala sobre a doença poder voltar, o que signi-
fica ter que conviver com a possibilidade de morte iminente:
Eu fico com medo de me dá outro tumor e eu tê que fazê saquinho
preto de novo. (quimioterapia) (R.J., 11 anos)

... eu já pensei, nossa, de repente pegar um pneumonia, alguma coisa,


será que a doença vai voltar? (D.C., 18 anos)

Depois, logo que passa dois anos não tem mais chance (da doença
voltar). Mas o meu, ainda tá quase prá completar dois anos... Dá
um pouco de medo. Só de pensar assim, minha cabeça até estora de
278 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

tanto pensar. Fico até... Então eu esqueço um pouco, depois volto a


pensar. (T.I., 15 anos)

Elas transitam explicitamente pelo paradoxo vida e morte ao


falarem sobre a morte de maneira geral:
Eu tinha um gato, só que morreu... A minha mãe dava muito banho
nele, aí de noite assim, ele ficou, dava umas miadas feias, aí morreu.
Aí meu pai pegou o gato, pôs num saco e jogou fora... Eu senti dó
dele. Tadinho. (R.J., 11 anos)

Porque se um dia chegá, se acontece da pessoa morrer é porque tinha


mesmo que morrê. (F.M., 16 anos)

... a morte de colegas de tratamento:


Quando eu fiz tratamento muita gente tinha, parou o tratamento.
Quando voltava a fazer não dava tempo mais. Chegava a morrer...”
(F.M., 16 anos)

“A dele (colega) era leucemia, parece que era aguda, não sei. Aí, eles
foi, passou um tempo e ele morreu. Quando ele correu para a Santa
Casa aí não adiantou mais.( J.F., 10 anos)

Aí quando eu fiquei internado, lé tinha milhares de pessoas do meu


lado assim. Essas pessoa morreu tudo. A doença mais fraca que a
minha. É ele tá morto e eu não. (J.C.F., 14 anos)

... e sobre o medo de sua própria morte:


Eu pensei que ia morrer... Eu pensei mesmo que ia morrer. Porque o
tratamento, os medicamentos eram muito fortes. ( D.C., 18 anos)

Eu me vi morta em cima de uma cama... A primeira cirurgia falou


que não me dava nem 1% de vida... (F.M., 16 anos)

Porque se não fosse ele, era prá mim tá morta mesmo... Quase fui
morta... (V. M., 14 anos)

O tema — morte — constitui o ser-no-mundo dessas crianças. Mas


há também a presença da vida, embutida na preocupação com a saúde
dos outros.
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 279

Só meus irmãos agora tá meio doente... Minha irmãzinha ficou


com pneumonia esses dias... Meu irmãozinho mais novo, de três
anos tá com começo de pneumonia... Ele (pai) tem bronquite...
Hoje ele ia colher amendoim... trabalhando nessa poeira de
amendoim pode atacar ainda mais a bronquite dele. (J.C.F.,
14 anos)

... na preocupação com a aparência:


Olha aí, ó.(mostra a barriga) não sei. Tô ficando gordo... Eu não
quero engordar... (R.J., 11 anos)

... nos planos para o futuro:


(o que você pensa em fazer?) “Medicina...” (C.A.M., 16 anos)

Eu gostaria de me formar, nem que fosse prá professor, alguma coisa,


me formar... No momento eu tô pensando em fazer faculdade prá
professor... (A.L.A., ,17 anos)

... a gente sempre faz planos prá vida da gente... esse ano eu já vou
começar a dar aula... Vou começar também a dar aula de ginástica
(D.C., 18 anos)

Agora eu vou começar a estudar. Continuar meus estudos, porque eu


parei. (F.M., 16 anos)

Eu penso em muitas coisas. Trabalhar fora. Trabalhar num lugar


muito assim , chique, bonito. Conhecer bastante pessoas interessante...
Trabalhar bastante, estudar bastante. Essas coisas assim, renovar
minha vida... ( V.M., 14 anos)

... e no gerar uma nova vida:


Eu não podia ter a T., minha filha. Ele (médico) falou que depois que
tomou medicamento, a quimio, não arruma mais... Aí depois
arrumei... Foi muito bom. A vida, a gente aprende, né. Eu porque
não imaginava... Até hoje ela tá bem, não tem nada. Mas é uma
experiência muito boa. (F.M., 16 anos)
280 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

4 – Sobre os modos de existir

Estar curado de um câncer infantil, mostrou-se como uma ma-


neira peculiar de existir, de estar sendo-no-mundo. Esse “mundo”
envolve o conjunto de relações consigo mesmo, com os outros e com
os objetos dentro do qual a pessoa existe englobando a experiência
do adoecer de câncer e seu tratamento na infância, passando a cons-
tituir-se como um novo universo de referência na vida das crianças.
Vale ressaltar que a “identidade de cada um de nós está implicada
nos acontecimentos que vivenciamos no mundo”(FORGHIERI,
1993, p. 27) Quando o tratamento termina e a criança já se encontra
sem a doença, ainda permanecem, por algum período, as antigas re-
ferências, utilizadas na época do tratamento. Sendo assim, podemos
observar, conversando com quem já terminou o tratamento, como o
seu existir é permeado pela presença do câncer, mesmo tendo sido
curado. É importante observarmos o quanto as significações atribuí-
das à doença e ao adoecer refletem-se na significação contida no
estar curado.
As crianças e os adolescentes expressaram, em um primeiro
momento, em seus discursos, de maneira implícita, o desejo de des-
tacar a experiência do adoecer de suas vidas, como se pudessem rea-
tar duas extremidades — a do período que antecedeu a doença com
a do que sucedeu a doença, a cura — deixando de fora o período do
tratamento. Desta forma, caracterizam o processo do adoecer como
anormalidade.
Curar-se seria vivenciar a possibilidade de poder retornar à nor-
malidade, àquilo que foi antes de ser acometido pela doença, que
passa a ter um papel de divisor de épocas e etapas na vida da criança.
No início dos discursos fica claro o quanto o período do trata-
mento é visto por uma elaboração racionalizada. As crianças debru-
çam-se sobre o passado, refletem sobre o que já viveram e fazem
previsões do que poderá acontecer, rememorando o período do tra-
tamento como um tempo à parte, destacável, ao qual foram subme-
tidos. Expressam o desejo de retomar sua aparência física anterior,
suas atividades que foram interrompidas ou dificultadas pela doença
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 281

(escola, trabalho) como se pudessem se ausentar da vivência que


tiveram durante o tratamento. Entretanto, existir implica na vivência
do tempo como uma totalidade, com um presente que abarque o já
ocorrido e o que esperamos acontecer.
Durante o discurso, porém, as crianças vão mostrando, parado-
xalmente, que a sua existência tem se constituído enquanto indivíduos
que vivenciaram o adoecimento de câncer, e que essas experiências,
desejadas como passíveis de serem destacadas, estão intrinsecamente
presentes no seu ser-no-mundo. Ao indagarmos sobre como tem sido
suas vidas, imediatamente retomavam a época do tratamento, evi-
denciando uma vivência presente que se constitui à maneira de
referenciar-se a um passado. Rememorar o passado, da maneira descri-
ta anteriormente, favoreceu a que algumas crianças apenas o
relembrasse, mas também houve aquelas que se sentiram presas nes-
se período, chegando, algumas, a não conseguir falar no assunto.
Podemos associar a esse mostrar-se paradoxal que as emoções relati-
vas ao tratamento também são ambivalentes. Foi um período difícil,
sofrido, amedrontador, em que relatam ter ocorrido alterações im-
portantes na vida escolar e social — afastamento de alguns amigos,
reprovação do ano letivo — mas no qual também foram construídas
experiências positivas, mesmo aquelas relacionadas ao enfrentamen-
to e ao sucesso face à doença, tornando fundamental integrar esse
período à vida como um todo.
É nesse movimento de integração das experiências passadas à
realidade atual que essas crianças e adolescentes começam a retomar a
sensação de estarem vivos, verbalizando, explicitamente, o conten-
tamento por estarem sem o câncer. Quando conseguem sentir, e
então refletir, sobre a impossibilidade de dissociação das diversas ex-
periências no decorrer da vida, passam a vivenciar a experiência do
câncer que tiveram na infância como uma possibilidade de amplia-
ção do universo de vida que impôs a necessidade de amadurecimento.
Essas experiências se revelam , muitas vezes, ambíguas para eles, como
diz uma adolescente: “foi ruim, mas foi bom...”, expressando as difi-
culdades pelas quais passaram , mas também a vitória sobre as mes-
mas. A dimensão que têm da vida hoje, o sentido atribuído à sua
vida, é percebido como inerente às suas experiências como um todo.
Conseguem se aproximar e se afastar das experiências passadas, sen-
282 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

do que a vivência do tempo e do espaço é experienciada por eles com


amplitude, abrindo perspectivas para o futuro e para as lembranças
do passado se atualizarem no presente.
Ao longo de suas falas, quando já conseguem relatar suas expe-
riências, vivenciando-as de maneira integrada, ou seja, o que acon-
teceu não ficou para trás, esquecido, mas está aí, se dando como
passado nesse momento presente, as crianças e adolescentes expli-
citam a importância dos vínculos afetivos em sua vida, a sua relação
com o mundo humano. Mundo humano, segundo Binswanger (apud
FORGHIERI, 1993), diz respeito ao encontro e à convivência da
pessoa com os seus semelhantes. Assim, relatam com satisfação so-
bre os amigos que se mantiveram próximos durante o adoecer, bem
como sobre as novas amizades que fizeram durante o tratamento,
que, em alguns casos se mantêm atualmente, junto às amizades e
namoros recentes. Esse aspecto se sobrepõe ao relato de amigos que
se afastaram durante o adoecer. Os laços familiares são extremamen-
te valorizados, mostrando-se imprescindíveis durante o tratamento,
especialmente no que diz respeito aos familiares mais próximos (pai,
mãe, irmãos), mantendo-se no presente, de maneira intensa, a liga-
ção afetiva com aquelas pessoas que se responsabilizaram pela crian-
ça durante o tratamento.
A vivência integrada das experiências de adoecer e tratar um
câncer infantil e a experiência de agora estar curado suscita nas
crianças e adolescentes um sentimento de solidariedade, que abran-
ge o ajudar colegas durante o tratamento e, também, agora, livres da
doença, a orientar e a dar esperança a outros que estejam passando
por algo semelhante ao que já vivenciaram. Evidenciam dessa forma
um aspecto fundamental do existir, que é ser-com o outro, ou seja,
por sermos-no-mundo, só atualizamos nossas potencialidades humanas
como amor, liberdade e responsabilidade quando nos encontramos
em relação com outras pessoas (FORGHIERI, 1993).
Quando realmente sentem-se estando-no-mundo curados de
câncer, e não mais procuram a dissociação temporal de suas experiên-
cias, as crianças e adolescentes vivenciam um libertar-se de um tra-
tamento sofrido, que é visto como um prisão, algo limitador. Então
autorizam-se a viver e a tornarem-se independentes. Expressam uma
abertura ao mundo que permite transcender a vivência limitada da
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 283

corporeidade, que foi acometida por uma doença. Não há uma com-
pleta determinação, pois o homem não está simplesmente em um
ambiente, mas habita o mundo, que para ele se abre com muitas
possibilidades.
Ao longo de todo esse processo, em um constante aproximar-se
e afastar-se das situações que envolviam o adoecer e o tratamento,
eles defrontaram-se com o paradoxo vida e morte. O falar da morte
surgiu tanto de maneira implícita, ao referirem o temor frente à pos-
sibilidade de a “doença voltar”, quanto explicitamente, falando da
morte de maneira geral, da morte de amigos, e até da sua própria
morte. A vivência tão intensa da possibilidade de morte iminente
durante o adoecer parece ter sido elaborada e integrada à vida das
crianças e adolescentes, favorecendo que eles pudessem falar sobre o
que sentiam em relação a essa possibilidade, mas também expressa-
rem o quanto direcionam a atenção para a vida. Isto se mostra na
preocupação com a saúde e com a aparência, nos planos para o futu-
ro e até no gerar uma nova vida. Existir desse modo implica numa
extensão do temporalizar, na qual, prosseguir em direção ao futuro,
não se limita a uma projeção do passado, mas em correr o risco de
soltar-se na fluidez e imprevisibilidade do futuro (FORGHIERI, 1993).
Essa compreensão sobre a vivência de algumas crianças e ado-
lescentes que se encontram fora de tratamento não pôde ser mantida
em alguns casos. Uma adolescente, por exemplo, referiu que não re-
tomou os estudos interrompidos na ocasião do adoecimento e atri-
buiu uma série de justificativas para esse fato. Porém, no decorrer de
sua fala, foi se desvelando o sentido da mesma, sendo possível com-
preender que ela experiência o tempo de forma restrita, como uma
repetição de momentos iguais. Portanto, ainda vivencia o adoecer,
não podendo se inserir na normalidade relatada por aqueles que es-
tão curados (biológica e psicologicamente) o que impossibilita um
retomar das atividades. Essa vivência constitui-se na exacerbação da
maneira preocupada de existir envolvendo um sentimento global de
preocupação e intranqüilidade, que segundo a autora que segundo
FORGHIERI (1993):
ocorre tanto em situações concretamente presentes na nossa vida,
como naquelas em que nos lembramos de coisas já acontecidas, ou
284 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

que temos receio de que venham a acontecer, podendo surgir, também,


sem que percebamos as razões de seu aparecimento. (p. 36).

Dessa forma, não vivencia o ser-no-mundo curado de câncer à


maneira de uma integração com a vida, atualizando essa experiência
e ressignificando. A angústia, modo mais originário e profundo do
existir preocupado, que não tem um objeto definido a ser superado, é
transformada, momentaneamente, em medo a ser vencido — a volta
da doença. Em busca desse controle, mantém-se em um fechamento
na experiência do tratamento, o presente se dando à maneira do
passado que precisa ser vencido.

5 – Algumas considerações

Durante a realização desse trabalho, em que me aproximei da


rotina do “ambulatório de curados”, foi possível compreender uma série
de aspectos relacionados entre si, envolvendo a vida das crianças que
fazem tratamento oncológico, a equipe e a estruturação do serviço.
Estar com a criança curada de câncer remeteu-me, em alguns mo-
mentos, ao período do tratamento, considerando o quanto este é agres-
sivo e invasivo. O discurso das crianças evidenciou que o câncer que
tiveram, bem como seu tratamento não ficaram para trás, podendo ser
esquecido, mas integram-se, continuamente ao presente, sendo signifi-
cado de diferentes maneiras por cada criança. Não podemos esquecer
que essa criança enquanto realizava o tratamento de câncer estava em
desenvolvimento, havendo alguns casos onde este processo foi forte-
mente alterado, mas também outros em que o cancêr se fez presente
sem deteriorar a qualidade da vida da criança. É preciso considerar as
particularidades de cada diagnóstico que imprimem a necessidade de
diferentes tratamentos, podendo ser mais ou menos agressivos para a
criança. Entretanto, não é possível relegar a segundo plano a singulari-
dade de cada criança, bem como sua relação familiar, que estão intrinse-
camente presentes no modo como vivenciam esse período.
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 285

A relação entre esses dois aspectos — particularidade da doença


e singularidade individual — é mediada pela maneira como o serviço
é estruturado e, conseqüentemente, pela forma de atuação da equi-
pe. Devemos, portanto, nos remeter à organização desse serviço onde
foi realizado. A criança que chega em nosso serviço, geralmente en-
caminhada por outro serviço de saúde e já com uma suspeita de um
câncer, é imediatamente avaliada pela equipe médica, sendo realiza-
dos exames com finalidade diagnóstica. Nesse momento, o médico já
explica à família sobre o que está sendo investigado, abrindo espaço
para que a mesma possa verbalizar suas dúvidas e temores. Muitas
vezes, a criança e a família já recebem atendimento psicológico de
apoio nesse período pré-diagnóstico, procurando favorecer uma ven-
tilação dos sentimentos opressivos e atenuação da ansiedade, bem
como esclarecimentos quando necessário. Quando o diagnóstico é
definido, a família é informada pelo médico, que vem realizando os
atendimentos anteriores, e posteriormente passa a ser acompanhada
por um psicólogo. Muitos pais não permitem a participação da criança
nessa primeira conversa, sendo que alguns, passado o impacto inicial,
procuram integrar o filho nessa nova realidade. Há pais, porém, que
permanecem na mesma postura de poupar o filho dessa informação,
procurando esconder-lhes os fatos, seus sentimentos, suas preocupa-
ções, sendo que na maioria das vezes a criança sabe o que tem, espe-
rando apenas por uma confirmação. Esses aspectos são trabalhados
em sessões de psicoterapia de apoio e esclarecimento15, alcançando
em nossa prática resultados positivos (FRANÇOSO; VALLE,1992).
Ao longo do tratamento, a criança e família são assistidas pelo
serviço de psicologia. Quanto à família, esta geralmente representada
pela mãe ou pelo pai, pode expressar o modo como estão existindo

15. A psicoterapia de apoio tem como objetivo a atenuação ou supressão da ansiedade e de outros
sintomas clínicos, como meio de favorecer um retorno à situação de homeostase anterior à
descompensação ou crise. A sua estratégia básica é o estabelecimento de um vínculo terapêutico
encorajador, protetor e orientador; tendo o terapeuta a função de de assumir um papel encorajador
diretivo. A psicoterapia de esclarecimento tem como objetivo desenvolver no paciente uma atitude
de auto-observação e um modo de compreender suas dificuldades diverso do que é fornecido pelo
senso comum, isto é, mais próximo do nível se suas motivações e de seus conflitos. Sua estratégia
básica é o estabelecimento de relação de indagação, centralizada no esclarecimento das conexões
significativas entre a biografia e a transferência de vínculos básicos conflituosos para as relações
atuais e os sintomas (FIORINI, 1991).
286 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

nessa situação de ter um filho com câncer. Referem preocupações,


temores, dúvidas, problemas familiares, dentre outros (VALLE, 1988).
A criança, além de poder expressar a forma como está vivenciando o
tratamento de câncer, é acompanhada, neste atendimento psicológi-
co, em relação ao seu processo de desenvolvimento. Vale ressaltar
que, em muitos casos, detecta-se um determinado problema que re-
quer um trabalho em outra instância, mais longa e específica, fora do
âmbito hospitalar, o qual nem sempre é viabilizado devido aos precá-
rios recursos da família e da comunidade.
No tratamento de um câncer podem ocorrer dois desfechos: a
morte ou a cura. Vamos nos deter a falar sobre a cura: terminados os
ciclos de quimioterapia e/ou radioterapia, são realizados novos exa-
mes e constata-se que não há sinais da doença, então, essa criança
vai para o “ambulatório dos curados”. Os retornos são próximos, a
princípio, e vão sendo espaçados gradativamente. Nesse ambulató-
rio, as crianças e a família são atendidas apenas pelo médico, sendo
que o contato com a psicóloga se restringe à participação nos grupos
de apoio — de crianças e de pais, respctivamente (VALLE, 1997).
No período de um ano em que participei do “ambulatório de curados”,
foi possível conhecer algumas facetas dos pacientes que o consti-
tuem. A minha compreensão foi se constituindo a partir das entre-
vistas em que eu requisitava a participação das crianças e também a
partir dos casos em que me solicitavam, a equipe ou a própria família
para uma avaliação. Dessa forma, foi se elucidando a demanda de
acompanhamento psicológico individual nesse ambulatório.
De modo geral, as crianças e adolescentes com quem eu conver-
sei, mostraram-se implicados em sua própria existência, ou seja, envol-
vidas com a sua história passada (tendo o câncer um papel demarcador),
com suas atividades atuais, assim como com planos futuros. Os discur-
sos evidenciaram que não é uma questão de “voltar à vida normal”,
como é freqüentemente sugerido aos pacientes e familiares ao acabar
o tratamento (BRUN, 1996). Não é possível voltar ao que já foi
vivenciado, a uma maneira de significar. Estar-no-mundo curado de
câncer exclui a possibilidade de estar-no-mundo “como se nada tives-
se acontecido”. Essas crianças e adolescentes desvelam em suas falas,
a vivência atual, buscando uma normalidade a princípio idealizada
como idêntica ao período que antecedeu à doença, porém, que se mostra
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 287

ao longo do discurso, uma normalidade que é constituída a partir da


vivência do adoecer e das novas significações experienciadas. Portanto,
referem-se a um novo sentido, ou seja, uma nova maneira de
intencionar o mundo. Pode continuar havendo a preocupação com a
possibilidade de uma recidiva, ou mesmo um receio em lembrar do
que se passou, entretanto, revelam vivenciar um tempo presente que
se dá à maneira do estar curado — não sendo nem o da doença e nem
o que a antecedeu. Existem aquelas crianças que mostraram estar
vivenciando o presente à maneira do passado, da doença. Nesses ca-
sos, a preocupação com a recidiva torna-se o ponto central de suas
vidas — há um outro sentido, delimitado pela doença, não há vivência
do estar-no-mundo curado de câncer.
Gostaria de acrescentar mais alguns aspectos que pude apre-
ender durante a realização da coleta de dados no ambulatório de
curados e que não estão referidos nos resultados dessa pesquisa,
como por exemplo, o trabalho através de desenhos com as
crianças curadas, com idade inferior a 11 anos (VENDRÚSCOLO;
VALLE, 1998), e os atendimentos psicológicos breves que reali-
zei com algumas crianças.
As crianças mais novas expressaram em seus desenhos e relatos
sobre as suas vidas, aspectos similares aos adolescentes. Também para
elas, é um novo período, exigindo novas significações e, demarcando
para alguns, certas dificuldades. Falar sobre a vida, as remetia imedi-
atamente ao tratamento, que é vivenciado como um divisor tempo-
ral. Há possibilidade de uma integração da experiência do adoecer e
de curar-se, mas para algumas crianças, as seqüelas cognitivas e emo-
cionais atrasaram o desenvolvimento de forma significativa, instau-
rando uma outra realidade.16
Nos casos em que observei uma seqüela neurológica e cognitiva
grave (através de avaliação geral do discurso e da possibilidade de
compreensão e comunicação), tanto nas crianças menores quanto nos
adolescentes, não foi possível haver expressão sobre a maneira de com-

16. Segundo MULHERN (1993), crianças com idade inferior a 18 meses, com diagnóstico de
Leucemia Linfóide Aguda — LLA, apresentam menor probabilidade de cura e maior risco de
toxicidade posterior ao tratamento. As crianças que sofreram radiação cranial tendem a apresentar
baixo QI; performance rebaixada em mensuração de memória visual e auditiva e menor interesse
por habilidades matemáticas.
288 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

preenderem a própria vida. Foi realizado, então, um encaminhamento


dos mesmos para serviços de psicologia em suas respectivas cidades.
Os casos encaminhados para que eu realizasse uma avaliação
apresentavam queixas específicas e delimitadas, tais como: proble-
mas de comportamento (apresentados em casa e na escola), dificuldade
de aprendizagem e dificuldade de sociabilidade. Nessa situação, reali-
zei atendimentos psicológicos breves de apoio e esclarecimento com
os pais e a criança e, quando necessário, encaminhava-os para para
um serviço apropriado à problemática apresentada. Os atendimentos
se mantinham até que a família e as crianças se mostrassem inte-
grados à situação e até que os encaminhamentos tivessem sido efeti-
vados e iniciado algum tipo de atendimento psicológico. A título de
ilustração, posso relatar brevemente a situação de uma criança de
11 anos, tratada de um tumor de testículo. A mãe relatou ao médico
que estava muito preocupada com a criança, pois a professora quei-
xara-se que ela falava “bobeiras para os amigos” (a criança referia,
em conversas na classe, que gostaria de ser estuprada) e estava “dan-
do trabalho” na escola. O médico solicitou-me que interviesse nesse
caso. Durante o atendimento com a mãe, ela referiu seu medo relacio-
nado à cirurgia que o filho fez na ocasião do tratamento (há 07 anos),
tendo que retirar os testículos. Apresentou dúvidas e temores quanto
ao desenvolvimento da sexualidade do filho, mostrando-se retraída
frente a essa temática de maneira tão intensa a prejudicar seu relacio-
namento conjugal. Percebi a necessidade da realização de dois traba-
lhos distintos mas inter-relacionados, o atendimento psicológico de
apoio e esclarecimento à mãe, por mim realizado no próprio hospital,
assim como a avaliação e posterior atendimento psicoterápico da cri-
ança, que deveriam ser feitos em sua cidade. O menino foi avaliado
por uma psicóloga e iniciou um processo terapêutico, apresentando
evoluções satisfatórias, sendo que seus pais participaram do mesmo,
em sessões de orientação. Complementando o atendimento psicoló-
gico da mãe, no retorno hospitalar, foi possível trabalhar com a mes-
ma a integração de sua vivência de todo processo do adoecer com o
momento atual, com as novas significações.
Descrevendo as minhas percepções iniciais de que a estruturação
do serviço de oncologia tem um papel mediador entre as particulari-
dades da doença e tratamento e a singularidade da criança e seus
A CRIANÇA CURADA DE CÂNCER: MODOS DE EXISTIR 289

familiares, permito-me afirmar que o atendimento psicológico às


crianças fora de tratamento mostrou-se como uma continuidade do
trabalho que foi iniciado no diagnóstico da doença. Sendo assim, a
atuação junto às crianças curadas de cancêr transcende a avaliação
e minimização de seqüelas cognitivas e emocionais, fundamentan-
do-se na compreensão do estar-no-mundo curado de cancêr. Para
que isso ocorra, é imprescindível que essa criança tenha sido tratada
de um câncer sem que perdesse a dimensão de futuro.
Quando iniciei esse trabalho, não sabia com o que iria defron-
tar-me. Podia inferir alguns aspectos, como por exemplo, dificuldade
de adaptação da criança à vida sem a doença, a qualidade da sua
vida. Respaldada pela metodologia fenomenológica, despojei-me de
pré-concepções para poder captar a essência do fenômeno ser-no-
mundo curado de cancêr. Pude compreender que não se trata de
adaptação, não há uma ruptura na vivência dessas crianças entre o
durante e o após o tratamento e que estas têm seus modos de existir.
A qualidade da vida é inerente ao modo de existir, que é contínuo,
seja antes, durante ou após o tratamento. Falamos portanto de uma
continuidade — a vida toda de uma criança que se depara com o
câncer em um determinado momento. É imprescindível que essa cri-
ança passe pelo tratamento oncológico sem que se perca a sua di-
mensão temporal de um presente que se constitui de um passado e
de expectativas futuras. Isto implica na necessidade de um trata-
mento bio-psico e social voltado para a dimensão humana, ou seja,
não se objetiva apenas acabar com a doença, mas tratar uma criança de
maneira a erradicar a doença e preservar sua possibilidade de existir —
não apenas de viver.
Finalizando, considero relevante situar um outro aspecto da
importância dessa maior aproximação da Psicologia ao ambulatório
de curados, pois nesse movimento é possível apreender o serviço como
um todo. Realizando esse trabalho pude dimensionar a extensão do
serviço realizado pelo GACC, reconhecendo conquistas e identifi-
cando necessidades. Percebo, sem dúvida, a demanda de atendimento
psicológico no ambulatório de curados, que se evidenciou de tal
maneira a mobilizar a equipe para estruturar essa modalidade de aten-
dimento. Ficou ressaltada a importância do trabalho psicoprofilático
quanto ao desenvolvimento cognitivo e emocional das crianças du-
290 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

rante o tratamento oncológico, bem como a necessidade de a equipe


estar aberta a compreender o modo de existir de cada um durante e
após o tratamento para apreender o que lhe é de qualidade. Porém,
considero ainda que esse trabalho possibilitou uma apreensão global
de nosso serviço, desvelando o sentido do mesmo — cuidar da vida
(não só da doença) da criança com câncer em toda sua amplitude.

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p. 810- 817, 1992.
Os Autores

Organizadora:

Elizabeth Ranier Martins do Valle. Psicóloga, Professora livre-docente


aposentada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto — Universidade de
São Paulo; orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Enfermagem
Psiquiátrica — EERP — USP, Interunidades de Doutoramento em Enferma-
gem — USP, em Psicologia da FFCLRP — USP. Docente da disciplina
Psicologia da Saúde da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) e da
UNIP — Ribeirão Preto.
Coordenadora de Psicologia do GACC — Grupo de Apoio à Criança
com Câncer — Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribei-
rão Preto — USP
Autora dos livros “Câncer infantil — compreender e agir”, Campinas,
Psy, 1997 e “ Psico-Oncologia Pediátrica — vivências de crianças com cân-
cer”, Ribeirão Preto, Scala, 1999.

Colaboradores:

Daniel de Paula Lima e Oliveira Lopes. Psicólogo. Mestre em Psicolo-


gia pela Faculdade de filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto — USP
e doutorando pela mesma Universidade.
294 PSICO-ONCOLOGIA PEDIÁTRICA

Gisele Machado da Silva Moreira. Psicóloga. Mestranda em Psicolo-


gia pela FFCLRP — USP.

Joelma Ana Espíndula. Psicóloga. Mestre em Psicologia pela FFCLRP —


USP. Psicóloga do Serviço de Hematologia e Oncologia do Departamento
de Pediatria e Puericultura do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medi-
cina de Ribeirão Preto — USP.

Juliana Vendrúscolo. Psicóloga. Mestre em Psicologia pela FFCLRP —


USP. Psicóloga do Instituto de Oncologia do HCFMRP — USP. Docente da
Universidade de Ribeirão Preto e da UNIP — Ribeirão Preto.

Luciana de Lione Melo. Enfermeira. Mestre em Psicologia pela FFCLRP —


USP. Doutoranda em Enfermagem pelo Programa Interunidades de
Doutoramento — USP.

Luciana Pagano Castilho Françoso. Psicóloga. Mestre em Enfermagem


de Saúde Pública — EERP — USP. Doutoranda em Psicologia pela FFCLRP —
USP. C o-autora do livro” Psico-Oncologia Pediátrica: vivências de crianças
com câncer”, Ribeirão Preto, Scala, 1999.

Todos os autores desenvolveram seus estudos com bolsa da FAPESP


Se existe alguém que pode conferir credibilidade, respeito
teórico e científico a alguém é a Dra. Elizabeth; a carreira
acadêmica da Elizabeth dispensa qualquer apresentação; o
trabalho que ela desenvolve na área de oncologia nos princi-
pais hospitais de Ribeirão Preto dispensa qualquer aval por
mais qualificado que esse possa ser; a doçura e meiguice do
seu sorrir fazem dela uma das pessoas mais especiais que se
pode deparar ao longo da vida; os seus escritos colocam-na
no rol dos grandes autores na área da psico-oncologia; e seu
trabalho de orientadora de dissertações e teses acadêmicas
na USP igualmente colocam-na num pedestal dificilmente
superável em nossa realidade. Minhas palavras são dispen-
sáveis diante de tamanha envergadura teórica e pessoal.
Impressão que se tem é que ao escrever essas linhas apenas
engrandeço a mim mesmo pelo privilégio de poder estar
presente nesse trabalho. E ainda que nossas verdades se-
jam as mais pequenas entre as menores certamente serão
determinantes de muitas conquistas pelo simples fato de
que continuamos a acreditar e a fazer crer numa realidade
mais humana na área da saúde.

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