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Bonecas russas

Um amigo passeia por Moscou e me conta, com seis horas de distância, que nas
bancas de matryoshcas, as bonecas podem ser compradas de acordo com uma hierarquia
de grandes nomes. Há bonecas para os grandes chefes de estado; neste caso, a boneca
maior é Lenin que se abre para Stalin e assim sucessivamente até a menor de todas,
Putin. Engraçado isso de dar nomes masculinos para bonecas de formato feminino, cuja
metáfora consagrada é a da gestação. Há também a matryoshca-canône de autores
russos, que começa com Tolstói e chega a Gógol. Compre uma (na verdade, cada
pequena escultura pode conter de 5 a 15 peças) e divirta-se com as surpresas que se
revelam do “maior” ao “menor” – política e culturalmente.
Isso me trouxe de volta a memória de um quadro que vi no Palazzo Barberini em
Roma. Um quadro que guardo coraçãomente, apesar de representar uma história que vai
se apagando com o tempo, um rosto pintado que impressiona pela capacidade de
concentrar toda sua mensagem nos olhos. Nele está retratada Beatrice Cenci (1577-
1599), uma jovem de família nobre que foi decapitada por parricídio – depois muito ter
sido violentada pelo pai. O título é “Beatrice Cenci às vésperas de sua execução” (cerca
de 1600). Como já disse Mark Twain certa vez, uma boa legenda pode determinar muito
do modo como olhamos para uma imagem. Aquele olhar de tristeza contida somado à
legenda é comovente. Muita gente famosa se impressionou com a tela, entre eles,
Shelley, Sthendal, Hawtorne, Artaud.
A obra é atribuída a Guido Reni (1575-1642), mas quando vemos a palavra
“atribuição”, pode abrir a boneca russa que lá vem história. A primeira delas é que o
pintor bolonhês não poderia ter visitado a moça às vésperas de sua execução porque as
datas não batem. Ao que tudo indica, Guido Reni chega a Roma pela primeira vez muito
depois do acontecido. Surge então a boneca russa de Elizabeta Sirani (1638-1665),
aprendiz na oficina de pintura de Guido Reni. Talvez ela seja a autora da pintura, mas
também não nasceu a tempo de ver a pobre Beatrice de perto. Por isso, os historiadores
da arte começam a se perguntar quem de fato era a modelo retratada. Acontece que
Elizabeta Sirani teve uma aluna que fez de si alguns autorretratos e todos eles guardam
grande semelhança com a figura de Beatrice Cenci no quadro atribuído a Guido Reni.
Teríamos então uma terceira boneca russa, Ginevra Cantofoli (1618-1672), a menor de
todas, mas provavelmente a verdadeira autora do quadro.
Não é que a lógica das matrioshcas nos dá uma lição diferente do mercado
turístico de Moscou¿ a boneca menor é a grande artista.
Não estou aqui inventando um nome poético para um método verticalizado de
investigação. Meu pensamento funciona menos por enraizamento do que por uma
horizontalidade de comparações arbitrárias. O que me permite, por exemplo, pensar em
outras lições das bonecas russas. Retomando sua metáfora de gestação, lembro
imediatamente do livro Reze pelas mulheres roubadas (Jenifer Clement, 2014. Trad.
Léa Viveiros de Castro, 2015) cuja história, baseada em fatos reais, se passa nas regiões
de plantação de papoula no México contemporâneo. Essas regiões são dominadas e
disputadas por diferentes cartéis do narcotráfico. As mulheres trabalham na coleta de
resina que vai produzir heroína. E suas filhas são cotidianamente sequestradas,
estupradas e assassinadas. Para sobreviver ao horror dessa realidade, as jovens mães
trabalhadoras cortam os cabelos de suas filhas mulheres para que passem por meninos.
E, numa estratégia terrível para sobreviver, quando percebem um carro chegando para
buscar uma de suas filhas, essas mães enterram suas crianças no ventre da terra para
escondê-las. São bonecas escondendo bonecas. Aqui, as matrioshcas não revelam
grandes nomes que ficaram na História (não há cânone a ser celebrado), mas apagam
suas identidades por pura necessidade de não perderem seus corpos na violência contra
mulheres ainda hoje escravizadas.

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