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Oralidade e os novos estudos do letramento: relatos de experiências num curso de

yorubá
Orality and new literacy studies: reports of experiences in a Yoruba course

ISABELA ESTEVES GOMES1

RESUMO: Ao problematizar a ‘grande divisão’ de Ong e a dicotomia entre letramento e


oralidade Brian Street inaugura os ‘novos estudos do letramento’, assumindo uma abordagem
sociológica. Tal consideração constitui uma ferramenta para questionar os dogmas instituídos
na educação formal que estruturada com intenções hegemônicas promove equívocos e
preconceitos. Ao considerar uma forma de letramento possível, induz a todas as demais à
marginalidade e a oralidade integrou muito tempo esse segundo grupo. Este trabalho se
desenvolve na lógica de problematizar esse contexto e metodologicamente traz a experiência
de um curso da língua yorubá ocorrido na cidade de Juazeiro, como relato de experiência.

PALAVRAS-CHAVE: Novos Estudos do Letramento. Oralidade. Práticas Sociais. Língua


Yorubá.

ABSTRACT: In problematizing Ong's 'great division' and the dichotomy between literacy and
orality Brian Street inaugurates 'new literacy studies', taking a sociological approach. Such a
consideration constitutes a tool to question the dogmas instituted in formal education that
structured with hegemonic intentions promotes misunderstandings and prejudices. When
considering a possible form of literacy, it induces all the others to marginality and orality has
long integrated this second group. This work develops in the logic of problematizing this
context and methodologically brings the experience of a course of the Yoruba language
occurred in the city of Juazeiro, as an experience report.

KEYWORDS: New Literacy Studies. Orality. Social Practices. Yoruba Language.

1 isabelaesteves@gmail.com, Mestranda em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos da Universidade do


Estado da Bahia - UNEB
Reflexões iniciais sobre os novos estudos do letramento

O presente trabalho se desenvolve como conclusão do componente curricular Políticas de


Letramento integrante da grade multidisciplinar do mestrado em Educação, Cultura e
Territórios Semiáridos da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Esta experiência
discente provocou questionamentos para a pesquisa sobre saberes tradicionais das
comunidades quilombolas ainda em fase embrionária (semestre inicial do curso) a que
proponho ao referido programa, suficientes para ir a campo reunir evidências reais sobre
como os saberes tradicionais se configuram na contemporaneidade, haja vista a prevalência
nos meios escolares e suas representações nas políticas das formas escritas de uma única
língua considerada padrão e oficial brasileira, o português.
Os primeiros textos e as discussões coletivas da turma decorrentes das leituras individuais
e das visões apresentadas fazia ainda mais sentido propor a problematização que me
inquietava e necessária para minha pesquisa bem como para o grupo acadêmico do qual sou
integrante. Objetivamente, os textos iniciais sobre as abordagens clássicas do letramento,
traziam uma visão reducionista do que para mim significaria práticas de letramentos,
sobretudo aquelas advindas do cenário social o qual desejo representar academicamente, ou
seja, produzia uma dicotomia desnecessária entre oralidade e letramento, como se as ações
fundamentadas na língua oral não pudessem ser consideradas letramento.
Integrante deste mestrado no qual a proposta é pensar formas não hegemônicas de
educação, aliando estudos em cultura e a influência dos territórios semiáridos para a aquisição
de saberes autônomos e significativos, urgia a valência de registrar que oralidade é
letramento. Portanto, é nesta direção que o presente estudo seguirá com o objetivo de trazer
elementos de uma prática social representada pelo curso de yorubá realizado na cidade de
Juazeiro - BA, cuja língua está estruturada na função oral e contém signos e significados desta
natureza “as palavras estão no mesmo plano que os gestos, os deslocamentos do corpo, os
sons, os objetos, os cânticos, o sopro vital (…) que constroem ritualisticamente (…) o mundo”
(SODRÉ, 1988, p. 122).
E como referencial teórico para fundamentação desta proposição está a abordagem
sociológica do letramento proposta por Brian Street, registrada na sua obra ‘Letramentos
sociais’ que foi debatida nas aulas acima citadas, como gancho para dialogar com a
experiência aqui trazida, tendo o cuidado de problematizar alguns conceitos deste autor cuja
produção não trata do contexto local deste trabalho, mas é vanguardista dentro dos estudos de
letramentos e traz consigo importantes considerações que interpelam aquela verdade universal
sobre uma única possibilidade de letramento dentro da educação formal, apropriada
hegemonicamente para dominação. Para dialogar com Street e contemplar a representação
local, traz-se a obra ‘A verdade seduzida’ de Muniz Sodré que fornece fundamentos sobre
cultura ocidental e adentra em território brasileiro para tratar das múltiplas culturas aqui
existentes, principalmente as de matriz africana.
A preocupação central deste artigo é desvendar alguns equívocos sobre a oralidade, que, ao
serem elevados ao patamar de verdade se tornam fundadores de estereótipos, tão combatidos
pela produção atual de pesquisas científicas, por serem prejudiciais a realidade local ao
construir uma cortina que separa o conhecimento da realidade. Portanto, abordar-se-á como
equívocos a forma sendo mais importante que o conteúdo e contexto e o outro, trata-se da
função escrita da língua como fundamental para o registro da memória, como se, caso não
fosse utilizada, a informação desapareceria, tanto um quanto o outro foram extraídos de Street
(2014), os quais ele próprio tratou de questionar e serão retomadas criticamente neste
contexto.
Street torna-se um teórico importante na conjuntura descrita no início deste trabalho, pois
provocou a ampliação do olhar ao inaugurar academicamente no contexto mundial estas
discussões e em seu livro ele faz um convite a outros pesquisadores a levantar “práticas
letradas em contextos sociais ‘reais’” (2014, p.19) que investiguem outras formas de
letramento em contraponto ao letramento único e neutro costumeiramente estudados. Seu
desafio constrói um novo paradigma dentro dos estudos em letramento, o qual ele cunhou de
“Novos Estudos do Letramento”.
Embasado na crítica à ‘grande divisão’ que versa sobre a separação entre oralidade e
escrita, conceito integrante dos estudos clássicos do letramento, constitui uma forma
hegemônica de tratar o letramento ao considerar a escrita e leitura como metas a serem
seguidas por todo e qualquer indivíduo, associando esta forma ao progresso e ao mesmo
tempo em que as tratam distintamente, os pesquisadores desta ideologia automaticamente põe
todas as multiplicidades de linguagens e formas de conhecimento produzidas pela
humanidade à marginalidade, dando-lhes um caráter inferior às outras duas.
“Num quadro como esse, o estudo da transição da oralidade para o letramento em ‘outras
culturas’ tendia a ser um estudo do quanto ‘eles’ estavam se tornando ‘nós’: uma vez que
‘nós’, com nossas formas de letramento, realizamos maravilhas tecnológicas” (STREET,
2014, p.89), perceba o uso dos pronomes ‘eles’ e ‘nós’ cujo interesse é reforçar a ordem
hierárquica pensada, os considerados ‘eles’, representados pelos povos cuja formação se deu
pela oralidade conota distanciamento do conhecimento e portanto do progresso, enquanto os
‘nós’ está associado aos letrados formais, detentores do poder e exemplos a serem seguidos.
Esta lógica é de tal forma perigosa quanto preconceituosa, as práticas de letramento são
múltiplas e variam de acordo com espaço e tempo em que ocorrem e da formação cultural e
humana dos sujeitos envolvidos, pois a língua é mecanismo de interação social, de troca de
conhecimentos e expõe características daquele grupo que partilha seus significados.
No contexto histórico e cultural brasileiro permeado de exemplos de dominação desde a
fase de colonização, passada para a trágica escravização, onde a lógica de elevar um modelo
como ideal e aos demais, nutre-se a perversa razão de dominá-los, catequizá-los e pô-los no
esquecimento, esta realidade ainda prevalece no cenário escolar formal, cujo currículo
privilegia os saberes recortados, descontextualizados e manipulados em prol de um projeto de
nação que não respeita as diferenças culturais dos seus povos formadores, produz-se um
limbo opressor e limitador das potencialidades humanas.
A ideologia da transparência informacional (que tudo escreve, fotografa, filma, traduz,
codifica) é necessária à moderna mercantilização do saber, utilizado tanto para animar a
força de trabalho (pela indústria cultural) como para servir de insumo à produção
(controlado pela tecnologia informacional e telemática). (SODRÉ, 1988, p. 137)

Uma das formas de combate é o conhecimento e a representação das muitas e ricas formas
como nosso povo se comunica e se forma sujeitos culturais. Como são múltiplos os sujeitos
habitantes deste país/continente, são múltiplas as suas formas de interpretar a vida e elaborar
sentidos para ela. Com a perspectiva de evidenciar o sentido real “aquilo que, resistindo a toda
caracterização absoluta, se apresenta como estritamente singular, como único” (SODRÉ,
1988, p. 38) das elucubrações filosóficas deste texto traz-se a língua yorubá como exemplo de
prática de letramento oral “são modos culturais gerais de utilização do letramento aos quais as
pessoas recorrem a um evento específico” (BARTON in STREET, 2014, p. 18), dentre as
inúmeras formas de praticar o yorubá elege-se neste contexto o curso como evento de
letramento, pois “a pertinência de uma fala ou de um discurso depende de seu instante, de sua
ocasião particular. Não há verdade absoluta, e sim práticas de fala, jogos discursivos, espaços
ritualísticos de linguagem” (SODRÉ, 1988, p. 136-137).
Para tal trabalho foi utilizado como procedimento metodológico a observação participante
de uma das aulas e entrevistas informais com o professor ministrante e três participantes do
curso, imagens das atividades e o áudio das entrevistas estão documentadas. A pesquisa
ocorreu no domingo dia 09 de julho de 2017, na Associação de Moradores e Amigos do
Bairro Quidé em Juazeiro no estado da Bahia.
A experiência do letramento social no curso de yorubá

Inicia-se aqui a apresentação do evento e da prática trazida como representação real do


letramento, para tanto, se faz imprescindível situar o contexto social no qual este exemplo está
inserido
Como se sabe, a formação da sociedade brasileira, iniciada no século XVI, foi um processo
de agrupamento, num vasto território a se conquistar, de elementos americanos (indígenas),
europeus (os colonizadores portugueses) e africanos (escravos negros, trazidos
principalmente da costa leste da África). No mesmo campo ideológico cristão do
colonizador, fixaram-se as organizações hierárquicas, formas religiosas, concepções
estéticas, relações míticas, música, costumes, ritos, característicos dos diversos grupos
negros. (SODRÉ, 1988, p. 90)

O multiculturalismo formador da cultura brasileira é condicionado à invisibilidade pelo


colonizador europeu, detentor de formas de dominação cultural que associavam a fundação de
uma língua única nacional, o português e uma forma religiosa, o catolicismo. Mas, ao
contrário do que se intentou dentro desta realidade branca europeia hegemônica imposta ao
território brasileiro foi-se estabelecendo paralelamente outras formas de organização social,
diferenciadas, segundo Sodré (1988, p.90) de acordo com a religiosidade, relações pessoais de
parentesco, onde consideram tanto os laços consanguíneos quanto os sociais, como também
de “ordem linguística – a manutenção do iorubá como língua ritualística”.
Isso justifica as práticas da língua yorubá restritas apenas aos terreiros de candomblé
naquele período, locais onde a cultura africana resistia, todavia seja pelas lutas dos
movimentos raciais pelo reconhecimento nas políticas públicas, seja pelas recentes pesquisas
científicas de revisitas à história brasileira para seu registro oficial ou pelos praticantes do
candomblé, contemporaneamente essa realidade é outra, no Brasil a língua yorubá está muito
presente na culinária, nas expressões populares, no batismo de ruas, nos patrimônios culturais,
nas danças e música e produz outros cenários sociais de representação para além do terreiro,
como é o caso do curso apresentado neste trabalho e já realizado, segundo testemunho do
arte-educador entrevistado Eduardo Pereira da Silva Neto ministrante do curso
Em 2008 eu fundei a biblioteca Abdias do Nascimento que é uma biblioteca especializada
em cultura afrobrasileira e africana que fica lá no Subúrbio Ferroviário, em Periperi (em
Salvador – grifo meu) e uma das ações dessa biblioteca foi justamente esse curso de língua
e cultura yorubá e a partir de 2008 eu comecei a ministrar esse curso como uma das
atividades da biblioteca e a partir de 2013 mais ou menos nós começamos a receber
convites para levar o curso para outros espaços, então, eu já ministrei em alguns espaços
culturais da Secult, em ong’s como Afoxé Filhos de Gandhi, em escolas como eu te falei, eu
tive uma experiência em realizar o curso para crianças tanto numa escola no terreiro de
candomblé (...) quanto também em escola pública, eu participei de um programa (…) logo
quando surgiu a lei 10.639 que obriga escolas a falarem sobre cultura e história
afrobrasileira, eu participei, eu fui um dos educadores de um programa de formação tanto
dos professores quanto dos alunos.
Neste relato também ficam evidenciados os interesses diversos das participantes do curso.
No dia desta pesquisa o grupo era composto apenas por mulheres e algumas representantes
dos povos de terreiro e outras não adeptas da religião, porém haviam pesquisadoras cujo
interesse volta-se para a investigação do poder da língua como instrumento formador de
identidades.
A língua como produtor e produto da cultura instrumentaliza o sujeito não só com
repertório de palavras, interfere nas relações interpessoais e produz uma lógica própria de
pensar, nesta perspectiva “a cultura yorubá de um modo geral para além da língua, ela está
muito relacionada com a filosofia africana, a questão do significado das coisas, o modo de
viver, da relação com a natureza, então, isso é bem marcante na língua” nos diz o professor
Eduardo. Ele também aponta suas características estruturais “é uma língua originalmente oral,
é uma língua tonal, as variações de tom de voz ela modifica completamente o significado
dela”, porém ele afirma que possui uma parte escrita “aqueles pontinhos ali embaixo das
letras modifica a tonalização das vogais. A escrita é uma coisa mais recente”. Pode ser
conferido na imagem abaixo.

Figura 1: foto Isabela Esteves Gomes em


09 de julho de 2017

A partir destas constatações sobre a abrangência da língua para além da palavra e sua
modernização a partir da compilação numa forma escrita são indícios significativos de que o
conteúdo e o contexto são fundamentais e rebate aquele primeiro mito sobre o que por muito
tempo estudos clássicos do letramento consideravam, trazido no início deste texto de que “a
forma é mais importante do que o conteúdo e o contexto”.
Street já critica tal afirmação no seu texto considerando o letramento como prática social
“serve para produzir sentido” (2014, p. 106), portanto informação, valores, ética, moral,
conceitos tudo isso citado está atrelado ao conteúdo, citação confirmada pelos testemunhos
das entrevistadas do curso quando a pergunta segue na direção de identificar as motivações
que as levaram até o curso:
Pra gente de terreiro ganha uma dimensão mesmo da vida, apesar da gente ter muito foco
na questão do sagrado, mas quando você está na religião de matriz africana toda sua vida se
modifica, (...) a gente tem toda uma forma de comunicação oral que ultrapassa as paredes
do terreiro, a gente vai mesmo no dia-a-dia até pra entender o ser humano, entender a
dinâmica da vida em sociedade, partindo do idioma, partindo dos fundamentos (...) O olhar
da gente quando a gente passou pela iniciação em terreiro muda, o olhar e a relação da
gente muda completamente porque traz outro sentido. (Makota Ioná Pereira)

Com opinião semelhante a Ioná, a educadora Suzana de Almeida acrescenta que além da
religiosidade, reverbera na sua prática profissional escolar “no estudo da história da África, da
cultura africana” e cita ainda a aquisição de habilidade comunicativa
a oralidade trabalha com a sonorização (…) ela me remete a uma memória, a partir dessa
memória agora eu consigo observar algumas palavras, (…) percebo que já ouvi aquele som
(…) Eu tinha uma limitação para a oralidade diferentemente de quem tem a limitação para a
escrita. O curso me estimulou a oralidade (…)

Outro resultado importante do curso foi avaliado por Maria Rosa Almeida Alves, ao
estudar a língua yorubá acessa-se conhecimentos ancestrais formadores do nosso povo e de
contestação a algumas afirmações defendidas pela mal contada história do Brasil, cujos
muitos equívocos são cometidos.
uma aproximação mesmo com o universo africano, não naquela perspectiva de que a África
está lá e eu aqui, mas numa perspectiva de diáspora contante e de que essas Áfricas são
muitas, são multiplicadas e que elas estão presentes de várias maneiras aqui no nosso
cotidiano e principalmente estão presentes no sertão, coisa também que alguns
pesquisadores diziam que no sertão não houve escravidão, mas a gente testemunha isso
com esses vínculos que ainda estão aqui permanentes, que a África também veio ao sertão e
ela continua se reinventando, hoje e atualmente.

A conexão estabelecida entre ancestralidade, memória e oralidade está presente em todo o


curso, organizado em quatro módulos, a aula registrada para o trabalho integrava o terceiro
deles. O conteúdo abordado tratava-se dos números em yorubá e pude perceber a organização
lógica no qual está estruturada a língua, a cada casa numeral uma execução matemática era
realizada, numa simples contagem dos números, complexas relações entre adições, subtrações
e multiplicações se fazia necessária.
A aula porém iniciou com um texto, não chegava a ser uma cantiga, mas pela sonoridade
própria da língua suscitava essa associação, organizava-se em estrofes e como num diálogo
contava uma história relacionando elementos da natureza como rios, lagos com pessoas, onde
um solista protagonizava a história e estimulava o coro dos ouvintes em resposta a cada trecho
que narrava. Atividade representada na foto a seguir

Figura 2: foto Isabela Esteves Gomes em 09 de julho de 2017

Entre uma lição e outra as participantes compartilhavam memórias que ganhavam sentido
na compreensão do equivalente aos termos conhecidos oralmente transpostos para a forma
escrita. Pode-se inferir desta reflexão que pelo letramento formal vivenciado por todas ao
longo da vida, esta conversão tem sentido, ao passo que nos seus relatos a este trabalho todas
afirmam estar com os mais velhos as habilidades e informações mais importantes desta
língua, sendo desnecessário para eles, letrados no yorubá, a conversão material dos sons das
orações, dos cumprimentos e das lições de vida transmitidas pela língua. O conhecimento se
processava de outra forma.
Com isso, argumenta-se o outro mito que o estudo pretendeu questionar é que sem o
registro escrito da memória o resultado é o esquecimento das informações, talvez seja
necessário para uma geração ou para um grupo de pessoas, mas a oralidade está vinculada à
memória, as informações estão registradas na experiência de vida e nas práticas sociais
“imagens, rituais, narrativas, tudo isso transforma o evanescente em quase permanente”
(STREET, 2014, p 168).
Há além destes elementos uma ética nas culturas de tradição oral, sem uma representação
formal escrita, as palavras ditas são consideradas a própria pessoa, isso traz uma crença/
confiança no outro sem mediação de registros escritos, a mediação é imediata, direta e afetiva,
constrói uma proximidade entre os envolvidos na comunicação.

Não são considerações finais e sim, reflexões para futuros estudos

Por tudo o que foi descrito acima e fundamentado pelos estudos de Street e Sodré, resta-
nos considerar a importância do letramento como prática comunicativa, sendo assim
representada por variações de formas, o que demonstra sua riqueza e criatividade, elementos
definidores da complexidade cognitiva humana. Além disso é na interação social que a vida
ganha sentido e a comunicação interpessoal contribui na produção da cultura de um grupo.
Embora ainda prevaleça o status de um registro pelo outro, o escrito e o oral, não devemos
deixar de considerar que não é coerente admitir padrão quando indivíduos estão envolvidos no
processo, quando sua história é objeto de investigação científica ou gestão para políticas
públicas, reconhecer uma versão monocórdia da realidade é antiético, incoerente e desumano,
extrai dele sua potencialidade cultural. Deve-se sempre, como propõe Street conceber a
realidade de uma “perspectiva mais culturalmente sensível e politicamente consciente” (2014,
p. 143).
E assim, numa proposta que deseja fomentar os novos estudos do letramento precisa estar
atenta a entender não “qual o ‘impacto’ que o letramento tem sobre as pessoas, mas como as
pessoas afetam o letramento” (KULICK E STROUD in STREET, 2014, p. 124). É a
conversão do olhar, a ciência moderna deformou de tal forma o pensamento científico que
coisificou as pesquisas e a contemporaneidade experimentando um momento de ruptura desse
paradigma precisa voltar para a gênese da questão, onde tudo se origina, o ser humano. Em
vez de objetos de pesquisa, pesquisemos sujeitos, não para dominá-los, mas para aprender
com eles.
Importante ressaltar que o letramento enquanto prática social não é um fim, é um processo
dinâmico que permeia toda a vida do sujeito tendo na aquisição de novas habilidades seu
objetivo mais sublime, a vida é uma conta de soma de conhecimentos, estamos no eterno
mundo do ensino-aprendizagem e ele é vivo, se renova e amplia.
Cada língua é única haja vista que sua estruturação se funda numa lógica muito particular
com a seleção de signos e seus significados associados, também possui múltiplas
modalidades: escrita, oral, gestual, leitura e cada uma delas requer um conjunto de habilidades
para sua compreensão e produção de sentido. A estas habilidades estão associadas atividades
cognitivas específicas e isto é letramento na língua, ou seja, o domínio de habilidades
múltiplas para sua compreensão.
O letramento não é único apenas porque possui muitas modalidades comunicativas como
também por ocorrer ao longo de toda uma existência social do indivíduo que, depara-se com
inúmeras formas de eventos dentro das práticas de letramentos sociais.
“O letramento, agora é evidente, não pode ser separado da oralidade com base seja na
coesão, seja na conectividade ou no fato de empregar recursos paralinguísticos em oposição
a recursos lexicais. Tampouco se pode sugerir que a língua oral é mais encaixada em
situações sociais e em ‘intercâmbios’, enquanto a escrita permanece independente e
autônoma”. (STREET, 2014, p. 187)

REFERÊNCIAS

SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: pro um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro:
Ed. Francisco Alves, 1988;
STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no
desenvolvimento, na etnografia e na educação. Tradução Marcos Bagno, 1ª ed. São Paulo:
Parábola Editorial, 2014.

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