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Diversidade Linguística na América Indígena

Thiago Costa Chacon


Universidade de Brasília

Editora Parábola
Coleção: Linguística para o ensino superior

Início do manuscrito: 20 de março de 2020

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Biografia e dados pessoais do Autor

Nome Completo: Thiago Costa Chacon


Cargo: Professor no Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas, Instituto de Letras,
Universidade de Brasília
E-mail: thiago_chacon@hotmail.com; thiagocostachacon@gmail.com; chacon@unb.br
Endereço: SQN 111 Bloco G Apartamento 601, Brasília-DF-, 70754070

Biografia:
Thiago Chacon é professor do Departamento de Linguística, Português e Línguas Clássicas na Uni-
versidade de Brasília. Concluiu seu mestrado e doutorado em Linguística pela Universidade do Havaí,
nos Estados Unidos da América. Foi professor na Universidade Católica de Brasília e trabalhou como
consultor para o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) junto ao Instituto do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Possui experiência como pesquisador visitante na
Universidade da Califórnia, Santa Bárbara, no Collegium de Lyon, e no Instituo de Estudos Avança-
dos de Paris. Realiza pesquisas sobre línguas, culturas e histórias indígenas no norte da Amazônia,
com especial foco nas línguas Tukano Oriental, Ninam (família Yanomami), e a língua isolada Aru-
tani. Desenvolve projetos interdisciplinares que relacionam a diversidade linguística, o multilin-
guismo, a história, o presente e o futuro das sociedades indígenas. Possui interesse específico nas
seguintes áreas de estudo teórico: Fonologia, Linguística Histórica, Linguística Tipológica-Funcio-
nal, Linguística Antropológica, Sociolinguística e Etnologia. Participa dos grupos de pesquisa Núcleo
de Tipologia e Línguas Indígenas, Kaapi - Grupo de Estudos Linguísticos e Antropológico do Noro-
este Amazônico, e Mobilang.

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Dedicatória

Esta obra não poderia ter sido escrita sem a relação entre seu autor e diversas pessoas dos povos
indígenas Kubeo, Kotiria, Tukano, Desano, Baniwa, Ninam e Arutani. A essas pessoas e a seus “pa-
rentes” de toda a América indígena, dedico essa obra com imensa gratidão, e espero que ela possa
lhes servir direta ou indiretamente para valorizar e fortalecer seu passado, presente e futuro.

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Prefácio

Este livro apresenta um olhar abrangente sobre a diversidade de línguas indígenas das Américas,
estimulando o leitor a se interessar, a conhecer e a refletir criticamente sobre essa diversidade. O livro
pretende servir como uma obra de referência introdutória para temáticas chave sobre a diversidade
linguística e as línguas indígenas. São ao todo 8 capítulos que traçam um panorama a partir de campos
teóricos basilares para a Linguística – como a Descrição e a Tipologia-Funcional, a Linguística His-
tórico-Comparativa, o Contato entre Línguas, a Dialetologia, a Sociolinguística, a Linguística Antro-
pológica e a Ecologia Linguística – e fazendo conexões transdisciplinares com outras áreas. A abor-
dagem que propomos é tributária, em larga medida, de uma tradição que vem se atualizando desde
Franz Boas, em que o estudo das sociedades humanas se faz pela especialização e diálogo entre lin-
guística, antropologia cultural, arqueologia e antropologia física. Os assuntos são abordados de forma
pertinente ao nível de alunos que já tiveram uma iniciação à linguística na graduação, trazendo um
conjunto de informações básicas sobre cada tema trabalhado, mas também exercitando uma discussão
mais avançada, no aprofundamento da discussão de certas temáticas, pertinente a alunos de pós-gra-
duação. Ele foi planejado principalmente para alunos dos cursos de Letras e Linguística, mas também
para alunos de Sociologia, Antropologia e Arqueologia, ou outros leitores interessados no conheci-
mento sobre as línguas indígenas.
Abordar as Américas como um todo é algo desafiador e que tomou forma neste livro graças à
combinação entre panoramas sobre vastas áreas do continente com pontos de aprofundamentos sobre
questões, situações ou fatos específicos julgados mais importantes (ou que simplesmente eram mais
bem conhecidos pelo autor desta obra). De modo a apreender a diversidade linguística em sua com-
plexidade e tornar o presente livro um percurso didático produtivo ao leitor, os assuntos serão tratados
a partir de contextos mais familiares aos leitores de língua portuguesa – como as de línguas indígenas
faladas em território brasileiro – mas também é nosso interesse que esses leitores conheçam outros
contextos nas Américas – como a Amazônia em geral, os Andes, a Mesoamérica e a América do
Norte –, comparando-os e contrastando-os entre si e com outros contextos a nível global.
Foi feito um trabalho de pesquisa e síntese de informações com um amplo escopo geográfico,
temático e teórico, seguindo uma revisão bibliográfica em fontes primárias e secundárias de informa-
ção, e combinando obras de referência já consagradas para os estudos sobre línguas indígenas com
textos mais atuais que revisam, expandem e trazem novas questões de pesquisa. Por muito tempo, a
obra de referência em língua portuguesa sobre as línguas indígenas tem sido o livro Línguas Brasi-
leiras: para o conhecimento das línguas indígenas, do professor Aryon Rodrigues, publicado em
1986. Na última década, têm surgido outros trabalhos com temática e escopos mais específicos, se-
guindo os avanços nas pesquisas nos mais de 35 anos que nos separam da publicação de Rodrigues.
Este presente livro, no entanto, é o único em língua portuguesa que procura trazer um panorama sobre
as línguas indígenas das Américas como tudo. Também tentou-se inovar neste trabalho ao abordar
uma gama de temas variados, objetivando uma visão holística sobre a diversidade linguística, as so-
ciedades indígenas e a linguagem. Ao longo do texto, citaremos as fontes utilizadas, e o leitor pode
consultar o capítulo 8 para uma apresentação das principais fontes de informação.
Além da divulgação do conhecimento científico que se tem produzido sobre as línguas indí-
genas, esse livro tem como especial interesse poder contribuir para o fortalecimento político e cultural
dos povos indígenas. Como se trata de uma obra acadêmica, é satisfatório ter como um dos principais
públicos de leitores um número cada vez maior de estudantes indígenas nas universidades. O conhe-
cimento produzido pelas universidades tem procurado estar cada vez mais atento para a diversidade
cultural e linguística dos povos originários, o que tem resultado em evoluções importantes como a
ampliação dos estudos e dos espaços acadêmicos interdisciplinares, interculturais e pluri-epistêmicos.
É por isso que uma das tarefas da linguística moderna é promover cada vez mais um engajamento
entre pesquisadores e comunidades falantes de línguas indígenas, e uma apropriação do fazer linguís-
tico pelos povos indígenas, de maneira que tenhamos uma linguística que não seja somente sobre as
línguas indígenas, mas também uma linguística feita para, com e pelos povos indígenas. Esperamos
que esse livro venha contribuir para avançarmos ainda mais nesta direção.

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O projeto para este livro começou em 20 de março de 2020, 9 dias após a Organização Mun-
dial da Saúde caracterizar a COVID-19 como uma pandemia global. O período foi duríssimo, como
sabem todos nós que o passamos, e pode-se dizer que neste exato momento em que se conclui esta
obra, ainda estamos tentando “juntar os cacos” e “organizar a casa” para “tocar a vida”. Familiares,
amigos, colegas, personalidades... muitas foram as perdas pessoais de cada um e da humanidade como
um todo. Em especial, a população indígena sofreu duramente o falecimento de pessoas que eram
bastiões para seu povo, suas famílias, sua cultura e sua língua. Algumas pessoas levaram consigo
conhecimentos que não poderão mais ser repassados para as próximas gerações. Entre as epidemias
e violências que assolam a história indígena recente desde o início do período colonial, muitas pessoas
foram caladas ou mortas, muitas línguas silenciadas ou extintas. Diante do terror e do abismo, este
livro pretende modestamente ajudar a ampliar as vozes daqueles que ficaram na história e daqueles
que a seguem fazendo.
A publicação dessa obra também não seria possível não fosse a universidade pública. Come-
çando pela minha atuação como professor na Universidade de Brasília, onde tive liberdade didática
para compor o programa e lecionar a disciplina de Tópicos Atuais em Linguística sob o tema Intro-
dução às línguas indígenas entre 2016 e 2023. As pesquisas para as aulas e os trabalhos conduzidos
por diversos alunos da disciplina foram o ímpeto inicial para o resultado aqui apresentado. A parceria
com diferentes colegas de profissão, sobretudo aqueles que compõem o grupo de pesquisa do CNPq
Núcleo de Tipologia e Línguas Indígenas foi também de grande contribuição para a maturação de
ideias e perspectivas dessa obra. Isso nunca teria sido possível sem a formação que obtive no Labo-
ratório de Línguas e Literaturas Indígenas (LALI) da Universidade de Brasília, quando fui orientado
pelos professores Aryon Dall’Igna Rodrigues e Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, bem como quando
fui aluno de doutorado nas Universidades de Utah e do Havaí, nos EUA, onde, sob orientação do
professor Lyle Campbell, e com apoio de uma bolsa da CAPES, pude expandir e consolidar minha
formação como linguista. Espero que colegas, professores, alunos e demais leitores disfrutem dessa
obra.

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Como usar este livro

O livro pode ser usado como uma obra completa, lida sequencialmente e tendo como fio condutor as
várias dimensões e desdobramentos da diversidade linguística nas Américas. Ou e pode ser lido em
partes, em que cada capítulo ou conjunto deles trata de aspectos específicos dessa diversidade e forma
um todo coerente em si mesmo. Ele pode servir como um passo inicial para um leitor que queira
explorar e se aprofundar no estudo das línguas indígenas, ou um recurso paradidático para disciplinas
de linguística ou mesmo um livro didático para um curso específico sobre línguas indígenas de 60.
Para dar apoio didático ao uso do livro, disponibilizamos uma página na web onde os leitores
terão acesso a exercícios, arquivos com imagem, sons, figuras e tabelas com assuntos pertinentes de
cada capítulo, bem como links para outras fontes de informação.
A obra também está amplamente ilustrada por mapas e figuras. São, na sua maioria, produções
originais, elaborados a partir de fontes diversas de informações; outras são imagens disponíveis na
internet sob uma licença Creative Commons de atribuição (CC BY). Para a produção dos mapas foi
utilizado o aplicativo de acesso livre QGis (2018). Todos os mapas e figuras que aqui utilizamos
foram originalmente produzidos sob a mesma licença CC BY, podendo ser reproduzidos livremente
desde que citada a fonte. Os principais mapas e figuras estão disponíveis online no site.
Para um melhor uso deste livro, o leitor deve estar familiarizado com algumas convenções.
Primeiramente, tentamos sempre evitar abreviações, mas isso nem sempre é possível. Portanto, o
leitor é instruído a sempre que necessário acessar as abreviações disponíveis no __. Os exemplos com
dados de palavras e frases de línguas indígenas foram transliterados usando-nos do “IPA” – o alfabeto
da Associação Fonética Internacional. Mantivemos a ortografia das fontes originais apenas em pou-
cos lugares em que ela seria transparente com os grafemas do português. Os exemplos estão divididos
em blocos numerados sequencialmente em cada capítulo. Cada exemplo é seguido de uma tradução
livre e, na maioria dos casos, uma tradução interlinear palavra por palavra, morfema por morfema,
seguindo em grande medida as convenções de glosas de Leipzig (ou Leipzig Glossing Rules), em que
temos no mínimo três linha para cada exemplo conforme o modelo abaixo:
§ Linha 1 Forma na língua alvo (minúsculas)
§ Linha 2 Tradução interlinear (morfemas funcionais em versalete)
§ Linha 3 Tradução livre (minúsculas, salvo nomes próprios)

As grafias dos nomes de línguas e povos indígenas, sejam do Brasil ou de fora do país, segui-
ram em larga medida as diretrizes das convenções da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)
de 1953 e sua atualização em Rodrigues (1986) e mais recentemente pelo IBGE (2010). Foram esses
os pontos específicos que nos baseamos:
§ Limitação ao alfabeto neolatino
§ unificar em um só grafema sons que podem ser representados por mais de uma letra, ou seja: usar
apenas k para [k] (em vez de c, q e k); usar apenas s para [s] (em vez de c e s); usar z para [z] (em
vez de s ou z); tx e x para [tʃ] e [ʃ] (em vez de ch, x), etc, resultando no seguinte alfabeto:
! p, t, k / b, d, g
! f, s, x [ʃ], h / v, z, j [ʒ]
! tx [tʃ], dj [dj]
! r, l
! m, n, ñ [ɲ], ng [ŋ]
! a, e, i, o, u, y [ɨ]
§ As palavras de grupos e línguas indígenas são invariáveis, sem flexão de gênero ou número
§ Acento agudo ´ e circumflexo ^ foram usados para identificar as sílabas tônicas e a abertura da
vogal, exceto em palavras paroxítonas, com a exceção quando necessitamos destacar a abertura da
vogal o e e.

A escolha do nome para representar as línguas e povos indígenas é uma questão complexa
devido à existência de nomes alternativos, incluindo aqui as autodenominações e nomes de ampla

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circulação, e diante do fato de que muitos nomes de ampla circulação serão ofensivos, como discuti-
remos no capítulo 1. Diante dessas questões, optamos pela escolha de um termo básico que procurasse
evitar os termos ofensivo ou que foram substituídos mais recentemente por autodenominações, sem-
pre que pudemos atualizar esse tipo de informação. Nem sempre isso foi possível, e antecipamos
nossas desculpas por isso. Assim, um termo básico foi escolhido para cada uma das unidades linguís-
ticas (famílias, línguas e dialetos) e será usado ao longo do texto. Quando se tratarem de termos pouco
conhecidos por serem novos acrescentaremos entre parêntese o nome pelo qual tal unidade é mais
bem conhecida. No apêndice online, oferecemos uma planilha com todos os nomes de famílias lin-
guísticas, línguas e dialetos que abordamos nesta obra.

7
Sumário

Biografia e dados pessoais do Autor .................................................................................................. 2


Dedicatória .......................................................................................................................................... 3
Prefácio ................................................................................................................................................ 4
Como usar este livro ............................................................................................................................ 6
Sumário ............................................................................................................................................... 8
Índice de Quadros ...................................................................................................................................... 11
Índice de figuras e mapas .......................................................................................................................... 12
Índice de tabelas ......................................................................................................................................... 14
Índice de Exemplos..................................................................................................................................... 16
Índice de Figuras do Apêndice Online ..................................................................................................... 19
1 Para o conhecimento da diversidade linguística nas Américas .. Error! Bookmark not defined.
1.1 Povos e Línguas Indígenas............................................................................................................ 20
1.1.1 Conceito de Língua Indígena .................................................................................................................... 21
1.1.2 Conceito de Famílias, Árvores e Troncos ................................................................................................. 22
1.1.3 Denominações de povos e de línguas indígenas ....................................................................................... 23
1.2 Panorama da Diversidade Linguística nas Américas ................................................................ 45
1.2.1 Diversidade linguística no Brasil, nas Américas e no mundo ................................................................... 46
1.2.2 Línguas, famílias linguísticas e regiões multilíngues das Américas ......................................................... 47
1.2.3 Demografia e Línguas Indígenas .............................................................................................................. 50
1.3 Línguas e Culturas Indígenas .......................................................... Error! Bookmark not defined.
1.3.1 Panorama sobre a diversidade cultural entre os povos indígenas ............................................................. 27
1.3.2 Nexos entre Línguas e Culturas Indígenas....................................................Error! Bookmark not defined.
1.3.3 Culturas, Famílias Linguísticas e Regiões Multilíngues ...............................Error! Bookmark not defined.
2 Para uma história de longa duração da diversidade linguística nas Américas ...................... 45
2.1 Preâmbulo: o que cria e sustenta a diversidade linguística?..................................................... 45
2.1.1 Multilinguismo e monolinguismo............................................................................................................. 55
2.1.2 Extinção e nascimento de línguas ............................................................................................................. 56
2.2 Um percurso sobre história social indígena ................................................................................ 35
2.2.1 O povoamento inicial das Américas ......................................................................................................... 35
2.2.2 Sociedades Indígenas Pré-Coloniais ......................................................................................................... 37
2.2.3 Moinhos de Gastar Línguas: Colonização e Glotocídio desde 1492 dC ................................................... 40
2.3 Modelos sobre a diversificação das Línguas Indígenas ................. Error! Bookmark not defined.
2.3.1 Antiguidade e Diversidade ....................................................................................................................... 58
2.3.2 1.1.3 A “ilha Americana” ......................................................................................................................... 59
2.3.3 Velocidade de Diversificação e ausência de hiperfamílias ....................................................................... 60
2.3.4 Diversificação e expansão agro-linguística .............................................................................................. 61
2.3.5 Muitas Línguas Isoladas e Pequenas Famílias, mas poucas línguas ......................................................... 62
2.3.6 Regiões Multilíngues e a distribuição diversidade linguística .................................................................. 64
2.3.7 Contato entre línguas e diversidade linguística nas Américas .................................................................. 64
2.3.8 Modelos Indígenas .................................................................................................................................... 66
2.4 Síntese ............................................................................................................................................. 67
3 Línguas, dialetos e o multilectalismo nas sociedades indígenas ............................................. 68
3.1 Línguas e Dialetos ......................................................................................................................... 68

8
3.2 Socioletos ........................................................................................................................................ 72
3.3 Gênero-leto: Fala Feminina e Fala Masculina ........................................................................... 74
3.4 Letos especiais................................................................................................................................ 76
3.5 Falas assoviadas e percussivas ..................................................................................................... 81
3.6 A língua escrita e as sociedades indígenas ...................................... Error! Bookmark not defined.
3.6.1 Escritas Indígenas ..................................................................................................................................... 82
3.6.2 Escritas com base no alfabeto latino .............................................................Error! Bookmark not defined.
3.7 Línguas de Sinais Indígenas ......................................................................................................... 89
4 Diversidade Tipológica das Línguas Indígenas ....................................................................... 92
4.1 Vogais e Consoantes ...................................................................................................................... 92
4.1.1 Vogais ....................................................................................................................................................... 92
4.1.2 Consoantes ................................................................................................................................................ 95
4.1.3 Síntese comparativa ......................................................................................Error! Bookmark not defined.
4.2 Sílaba .............................................................................................................................................. 99
4.3 Tons .............................................................................................................................................. 102
4.4 Tipologia Morfológica ................................................................................................................. 108
4.4.1 Introdução à Formação de Palavras ........................................................................................................ 108
4.4.2 Tipologia Morfológica Holística ............................................................................................................ 112
4.4.3 Grau de Síntese ....................................................................................................................................... 114
4.4.4 Índice de Afixação .................................................................................................................................. 115
4.5 Categorias Gramaticais .............................................................................................................. 116
4.5.1 Pessoa ..................................................................................................................................................... 116
4.5.2 Número ................................................................................................................................................... 118
4.5.3 Classificação Nominal ............................................................................................................................ 120
4.5.4 Tempo ..................................................................................................................................................... 127
4.5.5 Modalidade e Evidencialidade ................................................................................................................ 132
4.6 Sintaxe .......................................................................................................................................... 138
4.6.1 Posse ....................................................................................................................................................... 138
4.6.2 Ordem de Palavras na Oração................................................................................................................. 142
4.6.3 Alinhamento ........................................................................................................................................... 147
4.7 Exercícios ........................................................................................... Error! Bookmark not defined.
5 Famílias Linguísticas da América Indígena .......................................................................... 155
5.1 Noções de Linguística Histórica ................................................................................................. 155
5.1.1 O Método Histórico-Comparativo .......................................................................................................... 156
5.1.2 Subclassificação de famílias linguísticas ................................................................................................ 158
5.1.3 Reconstrução, subclassificação e o passado cultural .............................................................................. 159
5.1.4 Troncos, Macros, Famílias e a Léxico-Estatística .................................................................................. 161
5.1.5 Cronologia e Datação em Linguística Histórica ..................................................................................... 162
5.2 Panorama das famílias linguísticas nas Américas.................................................................... 164
5.2.1 Famílias Linguísticas da América do Sul ............................................................................................... 165
5.2.2 Famílias Linguísticas do México e América Central .............................................................................. 173
5.2.3 Famílias Linguísticas da América do Norte............................................................................................ 174
5.3 Línguas Isoladas, inclassificáveis e não-atestadas .................................................................... 179
5.3.1 Diversidade Interna de línguas isoladas.................................................................................................. 180
5.3.2 Perfil areal de línguas isoladas................................................................................................................ 180
5.4 Relações genéticas distantes ....................................................................................................... 181
5.4.1 Família Ameríndia .................................................................................................................................. 181
5.4.2 Tupi–Karib e Tupi-Karib-Macro-Jê........................................................................................................ 183
5.4.3 Quechumara ............................................................................................................................................ 184

9
5.4.4 Maya–Mixe–Zoque ................................................................................................................................ 184
5.4.5 Hokan ..................................................................................................................................................... 185
6 Contato Linguístico e as Línguas Indígenas.......................................................................... 186
6.1 Mudanças pelo contato entre línguas ........................................................................................ 186
6.1.1 Empréstimos linguísticos ........................................................................................................................ 186
6.1.2 Interferência ............................................................................................................................................ 194
6.1.3 Divergência e Manutenção (estabilidade) ............................................................................................... 195
6.2 Línguas e letos de contatos ......................................................................................................... 197
6.2.1 Pidgins e os letos mistos de contatos incipientes .................................................................................... 198
6.2.2 Mistas, Koinés, Crioulas e outras profundamente alteradas pelo contato ............................................... 201
6.2.3 Francas e Gerais...................................................................................................................................... 206
6.3 Regiões Multilíngues e Linguística Areal .................................................................................. 211
6.3.1 Áreas Etnográficas como Regiões Multilíngues ..................................................................................... 213
6.3.2 Áreas de acreação e dispersão ................................................................................................................ 216
6.3.3 Mesoamérica: uma área linguística forte ................................................................................................ 217
6.3.4 Áreas linguísticas na América do Norte ................................................................................................. 218
6.3.5 Amazônia................................................................................................................................................ 219
6.3.6 Gran Chaco: centro-periferia ou área de traços difusos? ........................................................................ 229
6.3.7 Os Andes e a “Esfera Inca” .................................................................................................................... 231
6.3.8 Contatos linguísticos entre as macrorregiões da América do Sul ........................................................... 234
7 As línguas indígenas hoje ....................................................................................................... 238
7.1 Vitalidade linguística .................................................................................................................. 238
7.1.1 Bases existenciais das línguas ................................................................................................................ 238
7.1.2 O que torna uma língua indígena forte, ameaçada ou extinta? ............................................................... 239
7.1.3 As escalas e indicadores vitalidade ......................................................................................................... 241
7.1.4 Graus de vitalidade das línguas indígenas das Américas ........................................................................ 244
7.2 Sinais de ameaça: línguas em risco, ameaçadas e em perigo .................................................. 246
7.2.1 Tendências demográficas........................................................................................................................ 246
7.2.2 Competência comunicativa e usos linguísticos ....................................................................................... 250
7.2.3 Ideologias linguísticas e seus efeitos ...................................................................................................... 256
7.2.4 Existem Línguas Indígenas Fortes nas Américas? .................................................................................. 258
7.3 Línguas extintas, silenciadas e em retomada ............................................................................ 259
7.3.1 Sobre os últimos falantes e os que vêm depois ....................................................................................... 260
7.3.2 Quando uma língua “extinta não está extinta” ........................................................................................ 262
7.3.3 Retomada: a revitalização muito além do código linguístico ................................................................. 263
7.4 O que está em jogo com a vulnerabilidade das línguas indígenas .......................................... 265
7.4.1 Saúde e Bem-Viver ................................................................................................................................. 266
7.4.2 Educação................................................................................................................................................. 267
7.4.3 Territórios, Meio-Ambiente e Conhecimentos Ecológicos Tradicionais ................................................ 267
7.5 As tarefas atuais da linguística para com as línguas indígenas .............................................. 268
8 Para saber mais ....................................................................................................................... 272
9 Notações Fonética ................................................................................................................... 275
10 Abreviaturas ........................................................................................................................ 276
11 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 277

Abreviaturas

10
Índice de Quadros
Quadro 1: Definições de pessoa indígena .......................................................................................... 20
Quadro 2: Correlação entre diversidade filogenética de línguas e ursos pardos na Colúmbia Britânica
............................................................................................................ Error! Bookmark not defined.
Quadro 3: Regiões Multilíngues e os Sistemas Regionais Indígenas ................................................ 34
Quadro 4: Antiguidade do Ser Humano nas Américas ...................................................................... 35
Quadro 5: Glotocídio e Etnocídio no período colonial ...................................................................... 41
Quadro 6: Indígenas que “não têm Fé, nem Lei, nem Rei” ............................................................... 96
Quadro 7: Hierarquia de Número (Corbett 2000:38) ....................................................................... 119
Quadro 8: Classificadores Genitivos do Kiriri (Rodrigues 1997).................................................... 123
Quadro 9: Tempo e Relativismo Linguístico ................................................................................... 130
Quadro 10: Hierarquia de Animacidade .......................................................................................... 143
Quadro 11: Mecanismos de codificação de relações gramaticais .................................................... 147
Quadro 12: a origem Nahuatl e difusão em cadeia da palavra "chiclete" ........................................ 190
Quadro 13: Pidgins Indígenas na América do Norte (Campbell 2023) ........................................... 199
Quadro 14: Definição de Região Multilíngue .................................... Error! Bookmark not defined.
Quadro 15: Definição de uma área linguística ideal ........................................................................ 212
Quadro 16: Características Areais da Amazônia (Aikhenvald 2012) .............................................. 220
Quadro 17: Características Areais do Uaupés (Aikhenvald 2012) .................................................. 223
Quadro 18: Influências areais no Alto Xingu Seki (1999, 2012)..................................................... 229
Quadro 19: Características areais do Gran Chaco (Comrie et al. 2010; Campbell et al. __)........... 230
Quadro 20: Características areais dos Andes (Adelaar 2008, Aikhenvald 2007, Torero 2002) ...... 233
Quadro 21: principais sinais de vulnerabilidade de uma língua ...................................................... 240
Quadro 22: Graus de Vitalidade nas línguas indígenas das Américas ............................................. 244
Quadro 23: Deslocamento linguístico em três gerações de famílias migrantes ............................... 250
Quadro 24: Critério de avaliação de Proficiência em Asuriní do Trocará e Português (Aquino 2009)
.......................................................................................................................................................... 254
Quadro 25: Consoantes do IPA e NAPA. Os símbolos em negrito são empregados em ambos os alfa-
betos, enquanto os em itálico são usados exclusivamente no NAPA. ............................................. 275
Quadro 26: Vogais do IPA e NAPA. Os símbolos em negrito são empregados em ambos os alfabetos,
enquanto os em itálico são usados exclusivamente no NAPA......................................................... 275

11
Índice de figuras e mapas
Figura 1: Exemplos de árvores de famílias linguísticas da Europa e da América do Sul. Línguas ates-
tadas na base, e protolínguas e pré-língua nos nós superiores. As famílias Românicas e Tupi estão
representadas de modo extremamente resumido nesta figura. ........................................................... 22
Figura 2: Distribuição geográfica de línguas faladas, extintas ou silenciadas nas Américas ............ 47
Figura 3: Regiões com maior densidade linguística nas Américas .................................................... 48
Figura 4: Principais Áreas Etnográficas das Américas ...................................................................... 24
Figura 5: Distribuição das 10 famílias linguísticas mais extensas das Américas .............................. 49
Figura 6: modelo ilustrativo de uma relação causal entre condições ecológicas, demográficas, sociais
e alta diversidade linguística .............................................................................................................. 55
Figura 7: Esquema ilustrativo da teoria de Daniel Nettle sobre o surgimento e extinção de famílias
linguísticas ......................................................................................................................................... 61
Figura 8: Modelo cardíaco de Lathrap (1970) para a dispersão das famílias Aruák e Tupí-Guaraní
desde a Amazônia Central.................................................................................................................. 61
Figura 9: Modelo de relação entre extinção linguística e a produção de línguas aparentemente isoladas
ou pertencentes a pequenas famílias .................................................................................................. 63
Figura 10: Chiboletes para o termo “Não” em Baniwa-Koripako ..................................................... 73
Figura 11: Distribuição dos letos silvados pelo mundo (Meyer 2015)Error! Bookmark not
defined.
Figura 12: Orientação de leitura de um texto Maya (Kettunen e Helmke 2019) ............................... 83
Figura 13: Dois glifos Mayas para a palavra witz 'montanha' (Kettunen e Helmke 2019) ............... 83
Figura 14: Alguns sinais da língua de sinais das Planícies Norte Americana ................................... 90
Figura 15: Produção do som ‘flap lateral duplo álveo-línguo-labial’ do Pirahã (com base em Everett
1979 e Rodrigues 2018). .................................................................................................................... 98
Figura 16: Distribuição dos sons ejetivo [p’], implosivo [ɓ], oro-nasal [ᵐb], nasal desvozeado [m̥] nas
línguas do mundo (Phoible; Moran e McCloy 2019) ........................................................................ 97
Figura 17: estrutura silábica para a palavra paz ................................................................................. 99
Figura 18: Média do ataque silábico entre as línguas indígenas agrupadas em diferentes regiões das
Américas .......................................................................................................................................... 101
Figura 19: média e valores máximo e mínimo dos índices de ataques silábicos para um conjunto de
famílias linguísticas.......................................................................................................................... 102
Figura 20: Distribuição de línguas e sistemas tonais nas Américas com base na amostra combinada
de Maddieson (2013) e Chacon e Carvalho (2020) ......................................................................... 106
Figura 21: tipos principais de alinhamentos morfossintáticos ......................................................... 147
Figura 22: Famílias linguísticas das Américas .................................. Error! Bookmark not defined.
Figura 23: classificação da família Tupí-Guaraní segundo inovações lexicais e fonéticas de acordo
com Mello (2000, 2001)................................................................................................................... 159
Figura 24: Origem e dispersão Tupí-Guaraní segundo Mello e Kneip (2017) ................................ 161
Figura 25: Famílias Grandes da América do Sul ............................................................................. 165
Figura 26: Famílias Médias da América do Sul ............................................................................... 168
Figura 27: Famílias Pequenas da América do Sul ........................................................................... 170
Figura 28: Línguas Isoladas da América do Sul .............................................................................. 172
Figura 29: Famílias da Mesoamérica ............................................................................................... 173
Figura 30: Famílias Grandes da América do Norte ......................................................................... 175
Figura 31: Famílias Médias da América do Norte ........................................................................... 175
Figura 32: Famílias Pequenas da América do Norte........................................................................ 177
Figura 33: Línguas Isoladas da América do Norte .......................................................................... 179
Figura 34: distribuição de étimos de palavras andarilhas referentes a 'onça' segundo Zamponi (2017)
.......................................................................................................................................................... 191
Figura 35: Línguas de Contato Indígenas nas Américas.................................................................. 197
Figura 36: grandes áreas etnográficas e distribuição das línguas indígenas nas Américas ............. 213

12
Figura 37: Línguas do Alto Rio Negro encontradas pela área linguística do Uaupés, regiões periféricas
e externas (línguas Baré [Aruák], Miriti-Tapuya [Tukano] e Arapaso [Tukano] estão silenciadas )
.......................................................................................................................................................... 222
Figura 38: línguas, famílias linguísticas e divisões culturais aproximadas no Sudoeste Amazônico
.......................................................................................................................................................... 224
Figura 39: distribuição tipológica de ‘ordem sintática entre adjetivo e nome’ e ‘presença ou asuência
de distinção entre posse alienável vs. inalienável' em línguas da América do Sul (a partir de dados de
Krasnoukhova 2012) ........................................................................................................................ 235
Figura 40: Bases existenciais das línguas ........................................................................................ 238
Figura 41: Distribuição do grau de vitalidade entre as macrorregiões das Américas ...................... 245
Figura 42: Porcentagem da população de cinco anos ou mais que falava uma língua indígena no Mé-
xico entre 1930 e 2020 (Fonte INEGI, 2020 www.inegi.org.mx) ................................................... 246
Figura 43: Número de pessoas indígenas maior do 5 anos que reportaram falar uma língua indígena
e/ou o português conforme a localização do domicílio (se está dentro ou fora de Terra Indígena)
(dados IBGE 2010) .......................................................................................................................... 247
Figura 44: Taxa de transmissão intergeracional do Zapoteco e Espanhol na cidade de Juchitán de
Zaragoza (Oaxaca, México) (Guerra-Mejía 2020) .......................................................................... 249
Figura 45: Proficiência em Zapoteco e espanhol ............................................................................. 251

13
Índice de tabelas
Tabela 1: número de famílias linguísticas e línguas por macrorregião do globo (dados de Hammars-
tröm 2016) .......................................................................................................................................... 46
Tabela 2: tamanhos de famílias linguísticas nas Américas segundo o número de línguas (fonte de
dados Ethnologue 2021)..................................................................................................................... 47
Tabela 3: Línguas extintas, ameaçadas e não-ameaçadas entres as macrorregiões do globo (Glottolog
_) ........................................................................................................................................................ 47
Tabela 4: 10 maiores famílias linguísticas e áreas etnográfica de sua maior predominância ............ 49
Tabela 5: Evolução da população indígena no Brasil (fonte: Melatti 2004) ..................................... 50
Tabela 6: Perfil populacional das línguas indígenas .......................................................................... 51
Tabela 7: Famílias linguísticas mais populosas nas Américas, com seus números de línguas, ordena-
das pelo número total de falantes e seu tipo demográfico (fonte Ethnologue 2021, Glottolog _).
............................................................................................................ Error! Bookmark not defined.
Tabela 8: Comparação entre regiões com relação à população indígena, número de povos e número
de línguas (fonte Sichra 2009) ........................................................................................................... 51
Tabela 9: Mecanismos que impactam a diversidade linguística ........................................................ 53
Tabela 10: Agricultura e Extensão Territorial de famílias linguísticas nas Américas ....................... 62
Tabela 11: Número de línguas e locus da variação gênero-letal (Rose 2015) ................................... 74
Tabela 12: Alguns símbolos Numéricos Desano (Diakuru e Kisibi 2006) ........................................ 84
Tabela 13: Sistema de sinalização por galhos e ramos Desano (Diakuru e Kisibi 2006) .................. 85
Tabela 14: Petróglifos e desenhos de mirações de ayawaska no Alto Rio Negro ............................. 85
Tabela 15: Vogais da língua Inga (Saphon _) .................................................................................... 92
Tabela 16: Vogais da língua Jaqaru (família Aymara) (Saphon _).................................................... 93
Tabela 17: Vogais Nheengatu (família Tupí-Guaraní) (Cruz _) ........................................................ 93
Tabela 18: Nasa Yuwe (Páez) (isolado) ............................................................................................. 93
Tabela 19: vogais da língua Yekwana (família Karib) (Cárceres 2007)............................................ 93
Tabela 20: vogais da língua Bororo (família Bororo-Umutina) (Nonato2008) ................................. 94
Tabela 21: vogais da língua Kwaza (isolada) (van der Voort 2004) ................................................. 94
Tabela 22: vogais da língua Apinajé (família Jê) (Oliveira 2005) ..................................................... 94
Tabela 23: vogais da língua Nadëb (Naduhup) (Martins 2005)......................................................... 94
Tabela 24: Consoantes do Pirahã (Everett 1983) ............................................................................... 95
Tabela 25: consoantes da língua Jaqaru (família Aymara) ................................................................ 95
Tabela 26: consoantes da língua Unangan (Aleuta)........................................................................... 97
Tabela 27: contrastes tonais em Itunyoso Triqui (Otomangue) (Di Canio 2008) ............................ 104
Tabela 28: Famílias Linguísticas, número e proporção de línguas tonais e não-tonais na amostra de
Maddieson (2013) e Chacon e Carvalho (2020) .............................................................................. 107
Tabela 29: distribuição dos níveis e do índice de síntese entre as línguas do mundo (Bickel e Nichol-
son 2013) .......................................................................................................................................... 114
Tabela 30: Tendências sufixantes e prefixantes nas línguas das Américas e no mundo ................. 116
Tabela 31: Pronomes da língua Nasa Yuwe (Páez) (Jung 2008: 136) ............................................. 118
Tabela 32: Resumo das propriedades dos principais tipos de sistemas de classificação nominal ... 120
Tabela 33: demonstrativos e classificadores dêiticos em Ãpyawa (Tapirapé, família Tupí-Guaraní)
(elaborado a partir de Praça _) ......................................................................................................... 124
Tabela 34: Gênero/Classe Nominal versus Classificadores (Dixon 1986) ...................................... 126
Tabela 35: Propriedades dos Sufixos de Forma do Tukano e os tipos de sistemas de classificação
nominal de Dixon (1986) ................................................................................................................. 127
Tabela 36: Ordens de palavras nas línguas do mundo de acordo Dryer (2013) e Hammarström et al.
(2016) ............................................................................................................................................... 146
Tabela 37: Ordens de palavras nas línguas da América (elaborado com base em Dryer 2013) ...... 146
Tabela 38: Tipos de argumento e transitividade verbal ................................................................... 147
Tabela 39: Prefixos pessoais e alinhamento ergativo-abslutivo em Akateko (Zavala 2017) .......... 150
Tabela 40: Alinhamento ativo-estativo em Guaraní Paraguaio (Gregores e Suárez 1967) ............. 151

14
Tabela 41: Lista de palavras de quatro línguas Yanomami (Migliazza 1972)................................. 156
Tabela 42: correspondências fonológicas em línguas Yanomami ................................................... 157
Tabela 43: Algumas palavras referentes à cultura material que podem ser reconstruídas para o Proto-
Yanomami ........................................................................................................................................ 160
Tabela 44: Esquema Taxonômico de Morris Swadesh (1955) ........................................................ 161
Tabela 45: classificação das famílias linguísticas segundo o número de línguas e sua localização 164
Tabela 46: Reflexos de *aq’wa / *uq’wa ‘água/beber’ do Proto-Ameríndio (Greenberg e Ruhlen
2013_) .............................................................................................................................................. 181
Tabela 47: Palavras ilustrativos de um suposto Proto-Tupi-Karib (Rodrigues 1985 380-3) ........... 183
Tabela 48: algumas formas semelhantes entre o Proto-Quechua e Proto-Aymara (Emlen a sair _)184
Tabela 49: Cognatos da suposta família Hokan (Sapir 1920) .......................................................... 185
Tabela 50: palavras emprestadas ao português pelo Tupinambá e que tinham formas alternativas de
origem românica .............................................................................................................................. 189
Tabela 51: tipos de mudanças e grau de contato Thomason e Kaufman (_) ................................... 192
Tabela 52: empréstimos Aruák em Kubeo (família Tukano) (Chacon 2013).................................. 193
Tabela 53: polaridade tonal entre Taiwano e Barasano (BLC 2013) ............................................... 196
Tabela 54: Mudanças Lexicais do Tupinambá ao Nheengatu (séculos XVII ao XX) (Rodrigues 1986:
104)c................................................................................................................................................. 210
Tabela 55: padrão de composição filogenética das grandes áreas etnográficas das Américas ........ 216
Tabela 56: Famílias linguísticas, população, línguas e povos no Alto Rio Negro .......................... 221
Tabela 57: distribuição dos traços tipológicos da área linguística do Uaupés entre diferentes línguas
do Noroeste Amazônico ................................................................................................................... 223
Tabela 58: distribuição de traços tipológicos que diferenciam as macro-áreas Ocidental e Oriental na
América do Sul (Krasnoukhova 2012)............................................................................................. 235
Tabela 59: escala de vitalidade linguística usada pelo Ethnologue ................................................. 243
Tabela 60: Graus de vitalidade e sua correspondência com diferentes escalas de vitalidade .......... 244
Tabela 61: Números absolutos e proporcionais dos graus de vitalidade das línguas das Américas e
suas macrorregiões ........................................................................................................................... 245
Tabela 62: Número de pessoas indígenas maior do 5 anos que reportaram falar uma língua indígena
e/ou o português conforme a localização do domicílio (se está dentro ou fora de Terra Indígena)
(dados IBGE 2010) .......................................................................................................................... 247
Tabela 63: Números de falantes absolutos e proporcionais para os povos Navajo (Na-Dené, EUA),
Kicwha (Quechua, Equador), Záparo (Equador), Angaité (Lengua-Mascoy, Paraguai), Guató (língua
isolada, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e Akuntsú (Tupi, Rondônia ..................................... 248
Tabela 64: Falantes monolíngues e bilíngues em Máko e Espanhol com números abosolutos e pro-
porcionais com relação à população total por faixa etária (adaptada de Labrada 2017) ................. 249
Tabela 65: Número de falantes como L1 e L2 por faixas etárias para as línguas Cree, Inuktikut, Mo-
hawk e Tlingit .................................................................................................................................. 252
Tabela 66: níveis de proficiência em Asuriní e português (Aquino 2010: 90) ................................ 254
Tabela 67: Usos da língua em contextos tradicionais e inovadores entre os Yanomami (Ferreira et al
2019) ................................................................................................................................................ 255

15
Índice de Exemplos
(1.1) Termos para neve em Inuit (Boas 1911) ................................................................................... 30
(1.2) Morfemas locativos e direcionais que fazerem referência à paisagem do litoral, rios e estuários
onde vivem os falantes de Kwakiutl na Costa Noroeste do Pacífico ................................................. 30
(1.3) Classificação de animais e outros objetos pelos classificadores numerais do Baniwa-Koripako
............................................................................................................................................................ 31
(3.1) Variação dialetal na língua Kashibo-Kakataibo Zariquiey (2011) ........................................ 68
(3.2) Fala de mulheres nobres versus de demais pessoas entre os Kadiwéu (Sândalo 1995: 149) .... 72
(3.3) Fala feminina e masculina em Karajá (Ribeiro 2012) ............................................................... 74
(3.4) Fala feminina e masculina em Teko (Rose 2015) ..................................................................... 74
(3.5) Partícula discursiva feminina e masculina em Kubeo (Chacon 2018) ...................................... 75
(3.6) Marcação de gênero feminina e masculina em Garífuna (Rose 2015)...................................... 75
(3.7) Marcação de negação na fala feminina e masculina em Garífuna (Rose 2015)........................ 76
(3.8) Diálogo Cerimonial Kubeo Buçi Boroteiye ‘Conversa de Tabaco’ .......................................... 77
(3.9) Frases de um diálogo cerimonial Wayamow dos povos Yanomami (Lizot 1996: 140) ........... 77
(3.10) Lamentação ritual Xokleng ..................................................................................................... 78
(3.11) Canto 'Tolo' Kuikuro por Mutua Mehinaku (2010: 103) ........................................................ 79
(3.12) Leto especial Karawara (Magalhães e Garcia 2019) ............................................................... 80
(3.13) RAP em Guaraní Kaiowá do grupo Bro MCs (Guilherme 2021: 39) ................................... 80
(4.1) Exemplos de sílabas CV em Kubeo .......................................................................................... 99
(4.2) Ataques complexos leves em Canela (Castro Alves 2004) ..................................................... 100
(4.3) Ataques leves e fortes em Nasa Yuwe (Jung 2008: 31) .......................................................... 100
(4.4) Ataques complexos em Yurok ................................................................................................ 100
(4.5) Ataques complexos em Apinajé .............................................................................................. 101
(4.6) Tons na língua Tatuyo (Gomez-Imbert 2005) ........................................................................ 103
(4.7) Tons na língua Gavião (Moore 1999) ..................................................................................... 104
(4.8) Tonas na língua Tikuna Bertet (2020) ..................................................................................... 105
(4.9) Tom gramatical na língua Miraña (Seifart 2005) .................................................................... 105
(4.10) Tom gramatical em Dâw (Martins 2005) .............................................................................. 105
(4.11) Prefixos e sufixos em Baniwa-Koripako (Ramirez 2021)..................................................... 108
(4.12) Circunfixos em Cavineña (Guillaume 2008)......................................................................... 109
(4.13) Infixo em Terena (Nascimento 2012: 70) ............................................................................. 109
(4.14) Palavras compostas em Kubeo .............................................................................................. 109
(4.15) Termo de classe -ky ‘semente, esférico, pequeno’ em Apurinã (Facundes 2009: 17) .......... 110
(4.16) Incorporação nominal em Tupinambém (Mithun 1984) ....................................................... 110
(4.17) Verbos serializados ou compostos em Tukano (Ramirez 2019) ........................................... 111
(4.18) Alomorfia da raiz em Tiriyó (Meira 1999) ........................................................................... 111
(4.19) Supleção da raiz nominal no paradigma de posse da língua Ninam ..................................... 111
(4.20) Supleção de temas verbais em Xavante (McLeod e McLeod 2003) ..................................... 112
(4.21) Padrão isolante em Yaminawa (Souza 2020: 176) ................................................................ 112
(4.22) Padrão aglutinante na língua Karajá ...................................................................................... 112
4.23) Padrão fusional em Tukano (Ramirez 2019) .......................................................................... 113
(4.24) Padrão polissintético em Yup’ik (Mithun 1996: 38) ............................................................. 113
(4.25) Padrão polissintético em Kadiwéu (Rorigues 1986: 25) ....................................................... 113
(4.26) Marcas pessoais em Baniwa-Koripako ................................................................................. 117
(4.27) Pronomes livres que marcam pessoa e número em Inga (Levinsohn 2000: 123-124) .......... 117
(4.28) Marcas pessoais em Kuna (Adelaar e Muysken 2004: 65) ................................................... 117
(4.29) 3a pessoa proximativa e obviativa em Ojibwa (Mithun 1999: 76), ...................................... 118
(4.30) Marcação de número na morfologia verbal em Ninam ......................................................... 118
(4.31) Número singular, dual e plural em Yup'ik (Mithun 1999:408) ............................................. 118
(4.32) Número singular, dual, paucal e plural em Panará (Dourado 2001: 16) ............................... 119
(4.33) Número em Navajo (Morgan e Young 1972) ....................................................................... 119

16
(4.34) Gênero em Lokono (Pet 2011) .............................................................................................. 121
(4.35) Plural animado e inanimado em Tukano ............................................................................... 121
(4.36) Classificadores do Akateko (Zavala 2000) ........................................................................... 123
(4.37) Sintaxe dos Classificadores Nominais em Jacaltec (Grinevald 2000: 65) ............................ 123
(4.38) Classificadores Nominais em Akateko.................................................................................. 123
(4.39) Classificadores genitivos em Kiriri (Mamiani 1877: 59-60): ............................................... 123
(4.40) classificador genitivo em Panare (Carlson and Payne 1989) ................................................ 124
(4.41) Classificadores verbais em Rikbátsa (Silva 2011: 49) .......................................................... 125
(4.42) Verbos classificatórios em Navajo (Mithun 1999: 362) ....................................................... 125
(4.43) Verbos classificatórios em Ika (Aikhenvald 2003: 156): ...................................................... 125
(4.44) Pronomes de 3a pessoa animada e inanimada Tukano.......................................................... 125
(4.45) Sufixos de forma Tukano (Ramirez 2019) ............................................................................ 126
(4.46) Sintaxe de gênero e sufxiso de forma em Tukano................................................................. 126
(4.47) Aspecto imperfectivo e perfectivo no português ................................................................... 127
(4.48) Quatro graus de passado no verbo Chinook (Mithun 1999) ................................................. 128
(4.49) Três graus de futuro em Washo (Mithun 1999) .................................................................... 128
(4.50) Cinco graus de passado no verbo Shipibo-Konibo (Valenzuela 2003: 285) ......................... 128
(4.51) Distância espacial e marcas de tempo no verbo Kubeo ........................................................ 128
4.52) Tempo futuro vs. não-futuro em Mẽbengokré (Epps e Salanova 2012)................................. 129
(4.53) Modo Irrealis em Kiowa........................................................................................................ 129
4.54) Expressão de tempo sem tempo gramatical em Paiute do Norte(Toosarvandani 2017: 567-9).
.......................................................................................................................................................... 130
(4.55) Tempo expresso por morfemas de aspecto verbal em Akateko ............................................ 130
(4.56) Tempo nominal em Kuikuro (Franchetto e Santos 2009) ..................................................... 131
(4.57) Tempo Nominal em Nivaclé (Campbell _) ........................................................................... 131
(4.58) Ambiguidade entre modalidade deôntica e epistêmica em português .................................. 132
(4.59) Uso do verbo ɨ ‘querer’ em Kubeo como parte da expressão da modalidade deôntica (deside-
rativa) e como modalidade epistêmica (situação iminente) ............................................................. 132
(4.60) Modalidade frustrativa em Kubeo ......................................................................................... 132
(4.61) Modalidade frustrativa em Sikuani (Queixalós 2000:20) ..................................................... 133
(4.62) Frutrativo e aspecto em Kwaza (van der Voort 2000) .......................................................... 133
(4.63) Frutrativio e modalidade avaliativa em Kwaza (van der Voort 2000: 405): ......................... 133
(4.64) Frutrativo e ironia em Tukano (Ramirez 1997: 157) ............................................................ 133
(4.65) Evidencialidade em português............................................................................................... 134
(4.66) Evidencial direto em Cherokee (Mithun 1999) ..................................................................... 134
4.67() Evidencial indireto em Cherokee (Mithun 1999) .................................................................. 134
(4.68) Evidencial direto, reportativo e conjectural em Tarma Quechua (Adelaar e Muysken 2004:
210) .................................................................................................................................................. 135
(4.69) Evidencial direto visual e não-visual em Tukano ................................................................. 135
(4.70) Evidencial inferido e assumido em Kubeo ............................................................................ 136
4.71) Seis evidenciais em Kotiria (Stenzel 2004: 360) .................................................................... 136
4.72) evidencialidade e egoforicidade em Pomo Central (Mithun 1999) ........................................ 137
(4.73) Partículas evidenciais e modais em Ãpyawa (Praça 2013) ................................................... 137
4.74) Posse por juxtaposição em Maih‹k̃ i (Farmer 2016: 189) ........................................................ 138
(4.75) Marcação de posse no termo dependente em Hup (Epps 2008: 225) ................................... 138
4.76) Marcação de posse no núcleo em Yurakaré (Krasnoukhova 2012) ....................................... 139
4.77) Marcação de posse dupla em Quechua de Ayacucho (Adelaar 2012).................................... 139
4.78) Marcação de núcleo em construções sintéticas de Quechua de Ayacucho (Adelaar 2012) ... 139
(4.79) Posse inalienável e alienável em Santee (Mithun 2001: 251) ............................................... 139
4.80) Posse inalienável e alienável em Apinajé (Oliveira 2005) ..................................................... 140
(4.81) Posse inalienável e alienável em Baniwa-Koripako (Ramirez 2021) ................................... 140
(4.82) Independentização de um termo inalienável em Baniwa-Koripako ...................................... 140

17
(4.83) Posse alienável e inalienável em Hyxkariana (Derbyshire 1985, 1999: 41) ......................... 141
(4.84) Posse inalienável e alienável em Tukano .............................................................................. 141
(4.85) Três tipos de construções possessivas em Ninam ................................................................. 142
(4.86) Ordem SOV em Ninam ......................................................................................................... 143
(4.87) Ordem SVO em Baniwa-Koripako ....................................................................................... 143
(4.88) Q'anjob'al: ordem fixa VSO .................................................................................................. 143
4.89) Variação entre ordens VSO e VOS e a hierarquia de animacidade em Tzeltal ...................... 144
(4.90) Ordem OSV em Nadëb (_https://wals.info/example/igt-258) ............................................... 144
(4.91) Ordem OVS em Hyxkaryana (_) ........................................................................................... 144
(4.92) Variação na ordem OVS e SOV e estrutura informacional em Kubeo ................................. 144
4.93) Variação em ordens de palavras e estrutura informacional em Cayuga (Mithun ................... 145
(4.94) Mecanismos de controle em orações coordenadas em português ......................................... 147
(4.95) Alinhamento Nominativo-Acusativo em Quechua de Imbabura (Cole 1982: 15; 103) ........ 148
4.96) Codificação de O no verbo de Quechua de Imbabura (Cole 1982: 108; 103) ........................ 148
4.97) Marcação Diferencial de Sujeito em Quechua de Imbabura (Cole 1982: 108) ...................... 148
4.98) Mecanismos de controle mostrando alinhamento de A e S-acusativo em Quechua de Imbabura
.......................................................................................................................................................... 149
(4.99) Marcação Diferencial de Objeto em Kubeo .......................................................................... 149
(4.100) Alinhamento Ergativo-Absolutivo em Embera do Norte (Mortensen 1999: 9). ................. 149
4.101) Alinhamento Ergativo-Absolutivo em Akateko (Zavala 2017: 226) ................................... 150
4.102) Mecanismo de controle ergativo-absolutivo em Yup’ik (Payne 1997). ............................... 150
(4.103) Alinhamento ativo-estativo em Baniwa-Koripako (Ramirez 2021).................................... 151
(4.104) Alinhamento Neutro em prefixos verbais do Puinave (Girón 2008)................................... 152
(4.105) Alinhamento ergativo-absolutivo na marcação de caso em Puinave (Girón 2008) ............ 152
(4.106) Sistema hierárquico em Ãpyawa (Praça 2007) ................................................................... 153
(5.1) Marcas Pessoais do suposto Proto-Ameríndio (Greenberg 1987, 1996)................................. 182
(5.2) Palavras do Proto-Tupi e Proto-Macro-Jê que sustentariam a hipótese de relacionamento dis-
tante entre a família Tupí e Macro-Jê (Nikulin 2023) ..................................................................... 183
(5.3) Cognatos de uma suposta família Maya-Mixe-Zoque ............................................................ 184
(6.1) Empréstimos lexicais do português ao Yanomae (Gomez 2009)............................................ 186
(6.2) Empréstimo pronominal em Mawayana (Carlin 2007) ........................................................... 187
(6.3) Decalques lexicais nas línguas da Mesoamérica (Campbell, Kaufman e Smith-Stark 1986) . 188
(6.4) Empréstimos encadeados do Nahuatl ao espanhol e além ...................................................... 190
(6.5) Étimos para milho sugerindo uma palavra andarilha com fonte independente de línguas Aruák
e Karib no Noroeste Amazônico (Cayón e Chacon 2022) ............................................................... 191
6.6) Sintagma de Posse em Baniwa-Koripako Kubeo e Tukano (Chacon 2017) ............................ 193
(6.7) Code-switching e empréstimo em um discurso Kubeo ........................................................... 193
(6.8) Empréstimo, mas não code-switching em um discurso Kubeo ............................................... 194
6.9) Interferência em português de falantes de Tukano como L1 (Chacon 2007) ........................... 194
6.10) Marcação Diferencial de Objeto no Nheengatu falado por pessoas que tem o Dâw como sua L1
(Finbow 2020) .................................................................................................................................. 195
(6.11) Leto de contato Awá-Guajá e Português ............................................................................... 200
(6.12) Orações em Mitchif mostrando as influências Cree (em itálico) e francesas (em negrito) (Baker
e Papen 1997). .................................................................................................................................. 202
(6.13) Oração em Media Lengua mostrando as influências Quechua (em itálico) e espanhola (em
negrito) (Muysken 1980) ................................................................................................................. 203
(6.14) Oração em Jopará mostrando itens lexicais em espanhol (negrito) e Guarani (itálico) (Lustig
1996) ................................................................................................................................................ 205
(6.15) Português de contato Kamayurá no Alto Xingu .................................................................... 206
6.16) Orações retiradas de catecismos que representam três fases da Língua Geral Amazônia através
dos séculos XVII, XVIII e XX (Rodrigues 2010: 41) ..................................................................... 210
(6.17) Palavras Andarilhas no Sudoeste Amazônico ....................................................................... 225

18
Índice de Figuras do Apêndice Online
Figura do Apêndice Online 1: proporção relativa da agricultura frente a outras estratégias de
subsistência entre povos indígenas das Américas. Em azul os povos com pouca ou nenhuma
agricultura, e em vermelho aquelas com agricultura mais intensiva (Kirby et al., 2016).................. 28
Figura do Apêndice Online 2: o “Templo Maior” dos Mexica e os Tipis dos Shoshone .................. 33
Figura do Apêndice Online 3: Cerâmica com figura humana-felina da cultura Chavín.................... 38
Figura do Apêndice Online 4: mapas da América do Sul com dados de pluviosidade, áreas com maior
densidade de línguas e de famílias linguísticas .................................................................................. 54
Figura do Apêndice Online 5: Continuum dialetal e subgrupos da família Quechua (a partir de Torero
2007) .................................................................................................................................................. 69
Figura do Apêndice Online 6: Distribuição dos letos silvados pelo mundo (Meyer 2015) ............... 81
Figura do Apêndice Online 7: Um Khipu usado nos Andes como sistema de registro de informações
............................................................................................................................................................ 83
Figura do Apêndice Online 8: Silabário Cherokee ............................................................................ 84
Figura do Apêndice Online 9: Contagem de Inverno Sioux com registros em couro de búfalo dos
principais eventos históricos em um período de 70 anos (elaborado em 1880) ................................ 86
Figura do Apêndice Online 10: tons em Kubeo medidos foneticamente pelas curvas de F0 extraídas
para as palavras kãmiko [kà ˈ̃ mı́k̃ ò] ‘ela dorme’ e kãmíko [kà ˈ̃ mı́k̃ ó] ‘ela carrega na cintura’ ........ 103
Figura do Apêndice Online 11: distribuição de línguas como diferentes índices de síntese de flexão
verbal (Bickel e Nichols 2013) ........................................................................................................ 114
Figura do Apêndice Online 12: Famílias linguísticas das Américas ............................................... 155
Figura do Apêndice Online 13: Modelos para se inferir o centro de origem da diversificação de uma
família linguística: (a) maior diversidade interna; (b) menor distância e número de rotas ............. 160

19
1. Povos, Línguas e Culturas Indígenas

Neste capítulo, vamos apresentar ao leitor alguns conceitos, dados e perspectivas básicas para
uma primeira aproximação à diversidade linguística e cultural na América indígena. Começamos por
uma conceituação bem ampla sobre quem são os povos indígenas e suas línguas. Depois veremos
alguns conceitos básicos para um entendimento da diversidade linguística. Em seguida, vamos ex-
plorar as relações entre diversidade linguística e cultural nas sociedades indígenas. Concluímos esse
primeiro capítulo com um panorama sobre a história dos povos indígenas para que tenhamos uma
base para entender a história de suas línguas e da diversidade linguística na América Indígena como
um todo.

1.1 Povos e Línguas Indígenas


Existem cerca de 1200 povos indígenas, falantes de quase 1000 línguas, totalizando uma população
de mais de 33 milhões de pessoas que vivem no território americano desde o Círculo Polar Ártico à
Terra do Fogo há pelo menos 15 mil anos. Veremos mais à frente as maneiras e os problemas de
como chegamos a esses números. Por ora, concentremos nas seções a seguir que apresentam alguns
conceitos básicos para podermos começar a conhecer melhor e a valorizar tamanha diversidade de
povos e línguas indígenas.

1.1.1 Conceito de Povos Indígenas e Etnias


Quando Cristóvão Colombo chegou às Américas em 1492, tinha a ilusão de haver alcançado as Índias.
Alheio a tudo e a todos nesta parte do mundo, chamou os povos de onde aportou no Caribe de índios.
De lá para cá, esse termo resistiu ao tempo, mesmo diante de evidências de que não existe qualquer
relação direta entre os povos da Índia e os povos indígenas das Américas. O termo indígena, apesar
da semelhança com a palavra índio, tem outra etimologia desde o Latim: indi- ‘interior, dentro’ -gene
‘gerar, dar à luz’. Ou seja, os nascidos, gerados nesta terra, a qual, hoje, chamamos de Américas,
capturando a mesma ideia de termos menos usuais entre nós, como “povos nativos”, “originários”,
“aborígenes”, etc.
A construção do discurso sobre quem são os índios no período colonial chegou até mesmo a
questionar se os povos indígenas teriam “alma” ou tivessem o mesmo “estatuto de humanidade” que
os europeus (Lévi-Strauss, 2007). Como comenta o antropólogo indígena Gersem Baniwa (2006).
Segundo [a] visão dos colonizadores, os povos colonizados, dentre os quais os povos indígenas, não pos-
suíam cultura, não detinham saber, não possuíam alma nem espírito. Por isso eram considerados e trata-
dos como povos bárbaros, sem civilização, sem progresso, sem religião e, portanto, sem humanidade, razão
pela qual, pela espada e pela cruz, deveriam ser humanizados, para então se tornarem civilizados, pa-
trióticos e cristãos.
Em tempos mais atuais, os estados-nações têm usados critérios distintos para definir quem são os
povos indígenas. Em 1949, o II Congresso Indigenista Interamericano formulou uma definição em
que indígena seria (Melatti, 2007):
o descendente de povos e nações pré-colombianas [...] assim mesmo considerado por eles próprios e por
estranhos, em seu sistema de trabalho, em sua língua e em sua tradição, mesmo que estas tenham sofrido
modificações pelo contato com estranhos.
Os destaques que fizemos neste trecho nos remetem a um conjunto de características fundamentais,
que comentamos no Quadro 1.
Quadro 1: Definições de pessoa indígena
Descendência: antes de tudo, os povos indígenas são pessoas que descendem de populações originárias das
Américas, que estão aqui muito antes da chegada dos europeus em 1492 d.C.
Reconhecimento: é indígena aquela pessoa que se auto-reconhece como tal, com respaldo de outras pessoas
indígenas, e eventualmente do Estado e da sociedade envolvente.

20
Modos de vida: os povos indígenas têm suas próprias formas de organização social, cultural e econômica,
sendo a língua – mas não só ela – uma das características fundamentais; a língua pode mesmo não mais ser
“falada”, mas a memória e expressões indígenas exclusivas persistem como uma marca da identidade indí-
gena;
Tradição e mudança: a condição de ser indígena é algo herdado da tradição, mas seu modo de vida não
está parado no tempo, mas sempre sujeito a transformações, como em todos os grupos humanos. Como nos
diz a antropóloga Alcida Ramos (1986: 91), a tradição não é uma coisa do passado, mas é o conjunto de
significados (como crenças, valores e saberes) que um povo construiu e vai transformando de geração em
geração.

A ideia de que os povos indígenas fariam parte de uma “raça” específica no mosaico de “raças” que
vieram a ocupar as Américas, como “brancos”, “negros”, “amarelos”, etc., é algo comum hoje em
nossa sociedade, mas traz alguns problemas. Os estudos da genética têm mostrado a unidade biológica
que subjaz a todos os grupos humanos, bem como sua intensa mistura ao longo dos milênios. Ao
mesmo tempo em que os estudos de genética têm em geral mostrado uma relativa homogeneidade
entre todos os povos indígenas das Américas e uma conexão com povos do Nordeste da Ásia, também
houve bastante mistura e trocas com outras populações, incluindo populações europeias e africanas
após 1492 (ver seção 1.4 para mais detalhes sobre a história indígena).
Neste livro, vamos usar os termos povos ou etnias indígenas como quase sinônimos. O termo
povo procura capturar uma unidade social que se reconhece sob uma identidade compartilhada e pos-
sui estratégias políticas de autogestão e determinação. Etnia é um termo mais flexível e serve para
definir diferentes escalas de coletivos sociais, podendo ser usado tanto para contrastar grupos que se
reconhecem como distintos, quanto para relacionar grupos que compartilham línguas, identidades,
práticas, memórias e uma senso de historicidade comum (L. R. C. de Oliveira, 1976). Por exemplo,
o povo Sanumá forma uma etnia que se assemelha e se diferencia de outras etnias Yanomami, como
os povos Ninam e Yanomamɨ. Ao mesmo tempo, o povo Sanumá junto com outros Yanomami for-
mam uma unidade maior que podemos chamar de etnia Yanomami, os quais por sua vez são distintos
de povos vizinhos falantes de línguas Karib, Aruák e os não-indígenas. A organização política mais
recente dos povos Yanomami em torno de uma Terra Indígena e uma associação (a Hutukara) e por
meio de reuniões entre líderes de diferentes regiões para tomadas de decisões coletivas tem criado a
esfera política do povo Yanomami que passa a atuar de modo mais articulado como uma coletividade.

1.1.2 Conceito de Línguas Indígenas


Como definimos o que são línguas indígenas? Comecemos com as palavras de Gersem Luciano Ba-
niwa (Luciano, 2014):
O primeiro aspecto das línguas indígenas é, portanto, o seu caráter sociocósmico, no sentido de que elas
propiciam o elo, a conexão e a comunicação com os mundos existentes. Elas expressam e organizam cos-
mologias, epistemologias, racionalidades, temporalidades, valores e espiritualidades [...], o homem ou a
mulher indígena exerce seu papel de destaque na mediação entre os humanos e os seres da natureza, por
meio de diversas formas de linguagem: palavras, cantos, músicas, rezas, rituais, cerimônias, etc. (Luciano,
2014, p. 17).
De forma complementar, as linguistas Altaci Rubim, Anari Bonfim e Sâmela Meirelles nos falam do
conceito de língua-espírito, ou seja, que para os povos indígenas a língua é mais que uma gramática
a ser aprendida, ela é algo fundamental que conecta as atividades cotidianas do indivíduo com seu
povo e com sua ancestralidade (Rubim et al., 2022). Essa concepções nos mostram uma perspectiva
êmica (ou interna) aos povos indígenas, para quem as línguas possuem um papel essencial no que diz
respeito à sua identidade, às suas formas de organização social e de interação com o mundo.
Vejamos agora um conceito de língua indígena desde uma perspectiva ética, de fora para
dentro, ou seja, desde um ponto de vista não-indígena. É importante diferenciar línguas indígenas e
línguas faladas por povos indígenas. São línguas indígenas todas aqueles que têm origem em lín-
guas faladas nas Américas antes da chegada da colonização europeia. São, portanto, todas as línguas
autóctones às Américas. Entre elas, há, também, línguas indígenas que surgiram durante ou após a
colonização a partir do contato com línguas europeias e/ou outras línguas indígenas, como as

21
chamadas línguas mistas, pidgins, gerais, entre outras. Elas são consideradas indígenas neste livro
porque têm como veio principal de seu desenvolvimento uma outra língua indígena e uma comuni-
dade de fala com uma importante contribuição demográfica indígena.
Entre as línguas não-indígenas faladas por povos indígenas, incluem-se as línguas alóctones
trazidas para as Américas a partir da colonização europeia, bem como as chamadas línguas crioulas
que surgiram essencialmente do contato entre línguas europeias e africanas (mas com mínima contri-
buição de línguas indígenas). Sabemos da história de como as línguas europeias chegaram nas Amé-
ricas e que se hoje são faladas por pessoas indígenas isso se deu junto a um histórico de violência.
Podemos reconhecer muitas vezes formas específicas de povos indígenas usarem o português, o es-
panhol, o inglês, etc. De fato, existe não apenas um, mas vários “portugueses” indígenas, i.e., varie-
dades do português (ou de outras línguas europeias) faladas de forma própria, particular por popula-
ções indígenas. Assim, apesar de não serem propriamente línguas indígenas, é também de nosso in-
teresse discutir situações em que povos indígenas usam essas línguas, seja como sua primeira ou
segunda língua. (Ver seção 6.2 para uma discussão mais aprofundada sobre línguas gerais, crioulas,
etc.).

1.1.3 Conceito de Famílias e Troncos Linguísticos


Como fazem para as demais línguas do mundo, os linguistas agrupam as línguas indígenas em uni-
dades genealógicas que chamamos de famílias linguísticas. A família linguística é uma forma de
representar que uma ou mais línguas descendem de uma mesma língua ancestral. Chamamos essa
língua ancestral de língua-mãe, ou mais especificamente de protolíngua se ela nunca tiver sido ates-
tada e for conhecida a partir de sua reconstrução teórica usando o Método Histórico-Comparativo
(ver seção 5.1). As línguas que descendem de uma língua mãe são conhecidas como suas línguas
filhas, as quais, entre si, são chamadas de línguas irmãs. Uma família com apenas uma língua é
conhecida como uma família de uma língua isolada1. Para uma língua isolada, não se pode recons-
truir uma protolíngua, e o máximo que conseguimos fazer é conhecer um estágio imediatamente an-
terior, o qual chamamos de pré-língua. As noções de pré-língua e protolíngua são bem próximas,
mas enquanto uma pré-língua é uma inferência de um estágio anterior de uma língua, a protolíngua é
um estágio anterior de duas ou mais línguas.
A forma tradicional de se representar uma família linguística desde o século XIX é pelo uso
de diagramas conhecidos como árvores, também usados na Biologia, e há muito tempo pelos registros
de genealogias familiares. As árvores linguísticas são concebidas a partir de uma raiz e nós que re-
presentam protolínguas, enquanto os pontos terminais (ou folhas das árvores) representam as línguas
atestadas. Na maioria das vezes, os linguistas representam uma árvore com a raiz ou a língua-mãe no
topo. A Figura 1 representa de forma esquemática quatro árvores de famílias linguísticas, duas da
Europa e duas das Américas, as famílias de línguas isoladas Basco e Trumai, e duas famílias maiores,
a família Românica e a família Tupi).
Figura 1: Exemplos de árvores de famílias linguísticas da Europa e da América do Sul. Línguas
atestadas na base, e protolínguas e pré-língua nos nós superiores. As famílias Românicas e Tupi
estão representadas de modo extremamente resumido nesta figura.

1
Não confundir “língua isolada” com “povos isolados”. Esse último se refere a grupos sociais que vivem em regiões de
difícil acesso e que há gerações buscaram um isolamento voluntário e hoje estão em situação com nenhuma ou pouca
frequência de interação com as sociedades nacionais.

22
Algumas famílias com um elevado número de línguas são frequentemente chamadas de “troncos” ou
“macros”, como o tronco Tupí e a família Macro-Jê. Na seção 5.1.4, vamos abordar em mais detalhes
o que estaria por trás dessas distinções, e justificaremos porque adotamos uma terminologia mais
enxuta ao não distinguir entre troncos e famílias. Assim, para este livro, o tronco Tupi é uma família
e a família Tupi-Guarani é um subgrupo desta família, assim como ela possui outros subgrupos, como
o Mundurukú. Quando necessário, poderemos eventualmente fazer uma distinção entre a família Tupí
e a subfamília Tupí-Guaraní, subfamília Mundurukú, etc.

1.1.4 Conceito de Regiões Multilíngues e Áreas Etnográficas


As sociedades humanas ocupam certas regiões em que convivem povos de diferentes línguas e etnias,
criando relações interétnicas e multilíngues. Essas interações podem ser mais fortes ou mais fracas a
depender do tipo de organização social e cultural de cada povo. Para dar conta dessas relações entre
povos e entre línguas, usamos o conceito de regiões multilíngues (ver Quadro 2).
Quadro 2: Definição de Região Multilíngue
Região Multilíngue
§ áreas com a presença de três ou mais línguas;
§ evidência de relações sociais, culturais, políticas e econômicas entre povos falantes das diferentes
línguas;
§ evidência de mudanças linguísticas resultantes do contato entre línguas.

O conceito que adotamos de regiões multilíngues é flexível, podendo ser utilizado para dar conta de
muitas formas de relações espaciais entre línguas e povos. Semelhante ao conceito de áreas etnográ-
ficas da Antropologia (Melatti, 2007) (ver seção 1.2.4), ele nos permite fazer um recorte espacial
flexível para que possam compreender como se dão as relações interétnicas e multilíngues, e quais os
efeitos dessas relações nas formas como as línguas são usadas, transmitidas e alteradas pelo contato
entre os povos.
De fato, a escolha dos modelos geográficos depende, em última instância, dos fenômenos que
serão observados, de modo que outros recortes geográficos são desejáveis, como, por exemplo, as
fronteiras nacionais entre os países americanos, um recorte geológico e ecológico dividindo os biomas
do continente, ou um recorte sociocultural, como redes de comércio de longa distância ou mesmo as
grandes áreas etnográficas das Américas (ver mapa na Figura 2). Uma divisão que recorrentemente
adotaremos consiste nas seguintes macro-áreas americanas:
§ Em uma escala ampla, as Américas se dividem entre a América do Norte e América do Sul. A
linha divisória entre essas duas regiões se dá a partir da América Central, tomando a família Chibcha
desta zona como parte da região da América do Sul.

23
§ Dentro da América do Sul, podemos reconhecer duas grandes áreas principais, comumente chama-
das de Terras Altas e Terras Baixas da América do Sul. A primeira inclui as regiões compreendi-
das pela cordilheira dos Andes, Patagônia e uma parte da América Central, enquanto as Terras Bai-
xas incluem as demais áreas drenadas pelas bacias dos grandes rios: Amazonas, Prata, São Francisco
e Orinoco.
§ Na América do Norte, comumente se divide uma área ao norte do Rio Grande, fronteira entre os
EUA e o México, marcando uma divisa entre uma região que compreende ao norte os EUA e o
Canadá, e outra região ao sul que compreende o México e parte da América Central.

Apesar de diferenças ecológicas, nacionais e continentais serem importantes formas de concebermos


o espaço, os modelos baseados nas relações socioculturais e históricas dos povos indígenas são pre-
feríveis. Os antropólogos se debruçaram muito tempo sobre o problema de relações sociais e culturais
que tendem a se adensar em certas regiões e que produzem um sistema social que gera, ao mesmo
tempo, convergências e divergências em diferentes escalas. Esses recortes geográficos foram conce-
bidos a partir de diferentes conceitos, como Áreas Culturais, Áreas Etnográficas e Sistemas Regio-
nais (Galvão, 1960; Melatti, 2007; Velden & Lolli, 2021). Eles se referem a diferentes perspectivas
geográficas e antropológicas na tentativa de mapear conjuntos de relações socioculturais entre dife-
rentes povos que formam um aglomerado social mais ou menos coeso e, ao mesmo tempo, diferen-
ciado de outras áreas em seu entorno (ver seção Error! Reference source not found.). O mapa da
Figura 2 mostra nossa tentativa de síntese de diferentes propostas à cerca da divisão territorial das
Américas em áreas etnográficas, onde podemos notar que as regiões multilíngues destacadas na Fi-
gura 4 estão dentro de áreas etnográficas, mas nem todas as áreas etnográficas são áreas com alta
densidade linguística.
Figura 2: Principais Áreas Etnográficas das Américas

1.2 Nomes de povos, línguas e famílias linguísticas


A denominação de povos, línguas e famílias linguísticas é uma questão carregada de tensões culturais,
sociais e políticas. As diferentes denominações das línguas trazem as marcas das relações interétnicas
que se desenvolveram entre diferentes povos. No contexto dos povos e línguas indígenas, existe uma
forte relação de poder em que os nomes pelos quais são comumente conhecidos foram estabelecidos
a partir de uma lógica que muitas vezes não lhe é própria ou aceitável. Vejamos algumas questões
importantes a serem levadas em consideração sobre a onomática de povos, línguas e famílias linguís-
ticas.

24
1.2.1 Etnônimos
As denominações dos diferentes povos indígenas, seus etnônimos, são bastante heterogêneas e se
organizam em diferentes escalas e pontos de vista. É prudente fazermos uma diferença entre autode-
nominação e denominações dadas por outros povos, os exônimos. Em geral, as autodenominações
são termos que certos povos usam internamente como forma de autorreconhecimento, de se identifi-
carem e se diferenciarem entre si. Já os exônimos são os termos pelos quais os povos são conhecidos
por outros grupos, reproduzindo uma ótica do colonizador ou de outros povos indígenas.
Muitos exônimos são problemáticos por diferentes razões. Uma delas é que existe variação
na denominação de um povo que habita áreas transfronteiriças, ocupando territórios em mais de um
país. Essa variação pode ser apenas ortográfica, como Xiriana no Brasil e Shirián na Venezuela, ou
Tikuna no Brasil e Ticuna na Colômbia e Peru. Em outros casos, o nome é completamente diferente
entre os paíse. Por exemplo, o povo de língua Karib conhecido no Brasil como Taurepang, é chamado
na Venezuela de Pemon e na Guyana de Arekuna. Outro problema é quando um mesmo etnônimo
éusado para diferentes povos. Por exemplo, no Brasil temos diferentes grupos conhecidos como
“Arara” ou “Gavião”, como os “Arara do Acre”, povo de língua Pano e os “Arara de Rondônia” (povo
de língua Tupi); o povo “Gavião” do Maranhão (que falam uma língua Jê) e os “Gavião de Rondônia”
(que falam uma língua Tupi). A situação é mais grave quando os exônimos são ofensivos. Por exem-
plo, na América espanhola, muitos grupos ficaram conhecidos como orejones ‘orelhudos’, devido
aos brincos grandes ou alargadores de orelha que usavam como adereços. Igualmente, o termo
Mako/Makú de origem Aruák, e que se traduz como “os sem-fala, os que não falam”, foram usados
para nomear grupos vizinhos que não falavam uma língua Aruák.
Os termos de autodenominação de grupos indígenas são muitas vezes baseados na expressão
“pessoa” ou “gente”, usado para contrastar com outros povos não considerados como parte do grupo.
Vimos isso para os Ninam, mas há diversos outros exemplos. Um caso especial é o termo awa ‘gente’
em diversas línguas Tupí-Guaraní, que serve como autodenominação para vários povos identificados
por diferentes etnônimos, é o caso, por exemplo, dos dos Ka’apor e seus vizinhos Guajá no Maranhão,
dos Parakanã no Pará e dos Asuriní do rio Xingu. Enquanto a noção de “gente” absolutamente exclui
os não-indígenas, a posição de outros grupos indígenas é ambígua, podendo estar ou não dentro dessa
categoria. Um exemplo interessante sobre o grupo Zo’é (falante de uma língua Tupí-Guaraní no Pará)
ocorreu em 1992 quando foram visitados por uma comitiva do povo Wayampi (também falantes de
uma língua Tupí-Guaraní). Após anos de convivência apenas com os não-indígena, ao entrarem em
contato com os Wayampi, os Zo’é imediatamente se identificaram com eles, reconhecendo que, fora
de suas aldeias, além dos brancos, existem “outros como nós” (Tassinari 1995: 447).
Um caso curioso ocorre entre dois povos na T.I Yanomami que se autodenominam como
Ninam, falam dialetos diferentes de uma mesma língua da família linguística Yanomami, mas refor-
çam suas diferenças políticas e culturais pela apropriação de diferentes exônimos. O povo Ninam do
Norte são conhecidos por Xiriana e os do Sul por Xirixana. Os registros civis de pessoas dessas etnias
contêm os termos “Xiriana” e “Xirixana” como seus sobrenomes. O o termo “Ninam” significa lite-
ralmente “pessoa” e, em geral, conota uma classe mais familiar de pessoas com laços territoriais e de
parentesco que se identificam como o mesmo povo. Porém os Xiriana e Xirixana preferem marcar
suas diferenças e até evitam uma relação entre si (Ferreira et al., 2019).
Recentemente, muitos grupos indígenas estão reivindicando que sejam oficialmente reconhe-
cidas e usadas suas autodenominações, reagindo a termos alheios e muitas vezes pejorativos impostos
a eles. Como exemplos temos o termo Fulni-ô no lugar de Carnijó em Pernambuco, Mebengokré no
lugar de Kayapó no Pará, e Inuit no lugar de Eskimó no Ártico. Há também aqueles grupos indígenas
que estão mais confortáveis em adotar um exônimo perante a seus vizinhos indígenas e/ou a sociedade
não-indígena, guardando suas autodenominações para as relações sociais internas. Os problemas que
ainda pairam sobre muitas autodenominações são o pouco conhecimento que os não-indígenas ainda
têm deles e a dificuldade prática de escrever certos sons nos teclados convencionais.

25
1.2.2 Glossônimos
Em geral, as línguas são designadas por termos que se referem à localidade onde são faladas ou pelos
termos dos povos que as falam. Ou seja, são noções metonímicas, partes de um todo, de um coletivo
social, de um território ou de uma pessoa. Assim, temos os povos Tukano, Tuyuka e Desano e as
respectivas línguas Tukano, Tuyuka e Desano no Noroeste Amazônico. Já em regiões da Mesoamé-
rica é comum um padrão em que as línguas são nomeadas a partir de suas localidades, de modo que
temos, por exemplo, a língua Zapoteco de Albarradas (i.e., da localidade conhecida por Albarradas),
ou de Zapoteco del Istmo, Zapoteco de San Vicente Coatlán, etc.
A nomeação a parti de línguas indígenas segue um padrão recorrente com base na composição
entre o nome do povo + uma palavra para idioma. É importante notar que as palavras que se referem
a um idioma são em geral polissêmicas, não servindo apenas para se referir a um idioma. Por exem-
plo, o povo Kubeo usa a autodenominação Pamiwa ‘os Kubeo’ e, para sua língua, usam o composto
Pami kamu ‘a língua Kubeo’. O termo kamu é uma palavra dependente, servindo para traduzir “idi-
oma” como também “boca” como na palavra hihe kamu (hihe = lábios). Por exemplo, a língua do
povo Ninam é designada como Ninam thãw em que a aplavra thãw quer dizer ‘idioma’, mas também
‘palavras’, ‘histórias/contos’, ‘discurso (de alguém)’, etc.
Em alguns casos, não há uma palavra para “língua” ou “idioma”, de modo que as construções
para se referir ao idioma de um povo são as mesmas usadas para se referir a outros tipos de posses
culturais. Por exemplo, em Tukano Dase yee ‘língua, coisas, conhecimentos, músicas, etc., dos Tu-
kano’, onde Dase na língua do povo Tukano significa ‘tucano’. Curiosamente, “Tukano” é um exô-
nimo que fora adotado pelos próprios Tukano e que traduzido ao português se tornou o termo mais
corrente pelo qual esse povo é conhecido. Sua autodenominação é Ye’pa Masa ‘Gente da Terra’. Esse
termo, no entanto, parece ser compartilhado com alguns outros povos vizinhos que também se consi-
deram “gente da terra”, mas que lhes foram dados outros exônimos.
Em Kuikuro, não haveria palavra para “língua” como uma entidade autônoma ou mesmo me-
tonímica. Há, sim, diversas palavras que servem para referenciar a linguagem em sua dimensão prag-
mática, como vemos abaixo:
(1.1) Palavras metalinguísticas em Kuikuro (Franchetto, 2020)
§ ki ‘dizer’
§ itaginhuN ‘falar, conversar’
§ aki-nha ‘narrativa’
§ aki-tsuN ‘discursar aconselhando’
§ aki-ho ‘falador, fofoqueiro’, etc.
§ aki-sü ‘palavra, fala ou língua de alguém’

Um outro caso similar é da língua Karajá (família Macro-Jê). O povo se autodenomina Iny
‘gente’ (y se pronuncia como uma vogal central alta [ɨ]). A língua Karajá se nomeia iny rybè ‘língua
Karajá (lit. língua de gente)’, mas se engana quem acha que rybè se traduz apenas por língua. Primei-
ramente, ela é uma palavra morfologicamente complexa em que ryy quer dizer ‘boca’ e bèe ‘língua’.
A combinação pode ser usada para traduzir língua, mas também ‘fala’ como wa-rybè ‘minha fala’ ou
o verbo falar como em rarybèra ‘ele falou’ (Maia et al., 2019: 179).

1.2.3 Denominação de Famílias Linguísticas


As famílias linguísticas são denominadas por duas estratégias principais. Seu nome pode derivar do
nome de uma de suas línguas, a qual é em geral aquela mais bem conhecida pelos círculos acadêmi-
cos. Esse é o caso, por exemplo, da família Tukano, Karib, Tupí, Aruák e Quechua, todas possuem
uma língua que em algum tempo fora chamada pelo nome que hoje se associa ao da família. Em outra
estratégia, o nome de uma família (ou ramo) é uma composição ou amalgama a partir dos nomes
diferentes línguas. Por exemplo, a subfamília Tupí-Guaraní foi assim nomeada a partir das línguas
Tupí (ou Tupinambá) e Guaraní.
As famílias linguísticas não possuem, tradicionalmente, autodenominações entre os povos in-
dígenas uma vez que esse conceito nasceu nos meios científicos, sendo alheio às culturas indígenas.

26
No entanto, cada vez mais ele tem sido utilizado pelos povos indígenas. Nesse sentido, tem havido
um maior diálogo entre linguistas e os movimentos políticos indígenas sobre como melhor nomear
as famílias linguísticas, sobretudo quando o termo em uso mais geral é ofensivo. Alguns nomes que
foram revisados mais recentemente levando essas questões em consideração foram o da família Es-
kimó-Aleuta, hoje em dia sendo preferível o termo Inuit-Yupik-Unangan, ou o da antiga família
Makú, sendo preferível o amalgma Naduhup, formado pelos segmentos dos nomes de suas quatro
línguas: Nadëb, Dâw, Hup, Yuhup.

1.3 Diversidade Linguística e Cultural


As línguas são uma parte central das culturas humanas. O que fazemos com as línguas está ancorado
na cultura que vivemos e, ao mesmo tempo, nenhuma cultura pode ser experienciada e transmitida
sem uma língua. Logo, a diversidade linguística é, ao mesmo tempo, tributária e serve de base para a
diversidade cultural no que tange a construção das identidades, das visões de mundo, das relações
sociais e das práticas culturais. Vamos apresentar nesta seção uma discussão introdutória que nos
ajude a mostrar a relação entre diversidade linguística e cultural. Esse é um tema vasto – e se pode
dizer que passaremos boa parte deste livro tratando dele. Começamos por um breve panorama sobre
os principais aspectos culturais das sociedades indígenas para o leitor menos familiarizado sobre o
tema. Depois, analisaremos em que medida as línguas podem ser vistas como o veículo e o espaço de
expressão da cultura e do pensamento. Por último, encerraremos observando as continuidades e des-
continuidades culturais através de diferentes línguas, famílias linguísticas e regiões multilíngues.

1.3.1 Diversidade cultural entre os povos indígenas


A diversidade cultural indígena tem sido construída há milênios a partir de dinâmicas que advêm de
suas formas de interação com o ambiente e o território e das relações sociais entre pessoas de dentro
e de fora de cada povo. Tal diversidade pode ser inicialmente observada pelas formas que os grupos
estabeleceram contatos com as sociedade não-indígena. Por um lado, há ainda alguns grupos que
vivem em situação de isolamento voluntário, evitando contato até mesmo com seus vizinhos indíge-
nas mais próximos. Atualmente, na Amazônia brasileira, existem 114 registros da presença de indí-
genas isolados, segundo a FUNAI.2 Um caso oposto aos dos indígenas isolados seria o dos grupos
que vivem em cidades, fazendas e beiras de estrada, sem a devida posse de seus territórios, quando
então estão forçosamente numa situação de contato bastante intensa. Entre os dois casos, temos povos
que se mantiveram ora com mais ou ora com menos autonomia sobre seus territórios, sobre as esco-
lhas culturais e seu futuro. Não é tanto a antiguidade, mas a forma das relações de contato que pro-
duzem efeitos sobre a cultura dos povos indígenas. Prova disso é que enquanto temos povos como os
Guaraní que estão em contato com os não-indígenas desde 1500 e apresentam uma forte resiliência
com relação à manutenção de sua língua, religião e luta por seus direitos, outros povos de contato
bem mais recentes foram dizimados, restando às vezes um punhado de indivíduos como os Akuntsú
em Rondônia e os Avá-Canoeiro em Goiás e Tocantins (ver seção 7.2).
A grande diversidade cultural indígena tem seu desenvolvimento na história de longa duração,
bem antes da colonização europeia. A dispersão dos povos indígenas pelo continente americano desde
o Ártico à Terra do Fogo exigiu desde muito cedo que se desenvolvessem diferentes formas para se
interagir e pensar sobre o ambiente. As migrações e as trocas ao longo dos milênios entre as socieda-
des indígenas fizeram com que certas inovações fossem compartilhadas entre povos específicos a
cada dada região; esse seria o caso, por exemplo, das diferentes formas de construção de habitações
ou casas familiares, como veremos mais abaixo. Outras inovações se espalharam por zonas bem mais
amplas, como o tabaco, domesticado na Amazônia, e o milho, domesticado na Mesoamérica, hoje
encontrados de norte a sul no continente, bem como em outras regiões do globo. Ao mesmo tempo,
dentro dos nichos ecológicos ou áreas etnográficas mais restritas, encontramos também dinâmicas
que geram diversidade a nível local. Por exemplo, as sociedades da Terra do Fogo se dividiam entre

2
Acessado em 16 de Outubro de 2021 http://antigo.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/povos-indigenas-isolados-e-de-
recente-contato

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os povos “terrestres” e “marítimos”: os Selk'nam no norte e no leste exploravam basicamente os re-
cursos terrestres (enfatizando socialmente a caça ao guanaco [um camelídeo parente da lhama]), en-
quanto os canoístas, Yamana e Alakaluf, viviam nos canais sul e oeste explorando recursos marinhos.
Os povos indígenas domesticaram muitas plantas ao longo da história, inclusive aquelas bas-
tante difundida na cultura global, como milho, tabaco, batatas, cacau, tomate, entre outras. Os povos
variam conforme suas especialidades de cultivo. No território brasileiro, temos alguns que se dedicam
mais ao cultivo da mandioca, para outros o milho é mais importante; uns plantam feijões e abóboras,
outros preferem tubérculos como batata-doce e inhame. Os povos alto-xinguanos também são agri-
cultores, tendo a mandioca brava como seu principal cultivo. Entre os grupos Yanomami, temos os
Ninam que cultivam mandioca e bananas, principalmente, enquanto outros cultivam quase exclusi-
vamente a banana, como os Yanomam.
Os povos também variam com relação à suas técnicas de cultivo e dedicação à agricultura
frente a outras formas de produção econômica. É possível que todos os povos tenham algum tipo de
manejo de plantas domesticadas ou semi-domesticadas, mas enquanto alguns possuem extensas roças
das quais cuidam o ano inteiro, outros povos vivem basicamente da caça e da pesca, como por exem-
plo os povos Inuit (ou Eskimó). Outros diversificam sua dieta com coleta de produtos das matas e
com uma agricultura de baixa escala, como os Guahibo da Colômbia, diversos grupos Yanomami no
Brasil e na Venezuela, e os povos Nambikwara em Rondônia que apenas se dedicam à agricultura em
algumas épocas do ano. (Veja a Figura do Apêndice Online 1 para uma visão geral sobre o grau de
dependência de agricultura em relação a outras estratégias de produção de alimentos entre diferentes
povos indígenas.)
Figura do Apêndice Online 1: proporção relativa da agricultura frente a outras estratégias de sub-
sistência entre povos indígenas das Américas. Em azul os povos com pouca ou nenhuma agricultura,
e em vermelho aquelas com agricultura mais intensiva (Kirby et al., 2016).

Os povos também variam conforme o local onde fazem suas casas, na forma de urbanismo de
suas aldeias, comunidades, vilas e cidades. Por exemplo, enquanto alguns vivem em aldeias onde
encontramos apenas uma única casa habitada por um casal de idosos, seus vários filhos, genros, noras
e netos, outros vivem em aldeias multifamiliares com centenas de indivíduos vivendo em múltiplas
casas, ou em assentamentos urbanos com milhares de indivíduos. Observamos também grande vari-
ação nos tipos de moradia. Em uma extensa área das planícies e sul do Canadá e EUA o tipo de casa
chamado de Tipi é compartilhado por vários povos. Os tipis são estruturas cônicas feitas de pele de
búfalo costuradas (geralmente entre 8 e 15 peles), sustentadas por pelo menos três ou quatro postes,
onde cabem de 8 a 40 pessoas a depender do tamanho. Outros povos na região dos Pueblos no Sudo-
este Norte-Americano faziam suas casas de adobe, as quais tinham vários andares, enquanto os Inuit

28
construíam suas casas com neve. Na América do Sul, se os povos nas alturas dos Andes construíam
suas casas de pedra, barro e capim, nas Terras Baixas, madeiras e folhas de palmeiras são os materiais
mais recorrentes.
Para além dos tipos de residenciais e assentamentos, há outras formas em que os povos indí-
genas variam em sua organização social, como nas regras que organizam os casamentos e a descen-
dência. Os povos Aruák, Tukano e Naduhup do Alto Rio Negro ilustram um padrão de descendência
patrilinear, em que uma pessoa herda a sua etnia e sua língua de seu pai. Delimitar a linhagem do
indivíduo pela linha paterna é algo muito importante para essas sociedades em que existe um sistema
de exogamia, em que o casamento é proibido entre pessoas da mesma etnia, devendo-se buscar um
cônjuge junto a outro povo. Além de patrilineares, esses povos são em geral patrilocais, ou seja, é a
esposa que vem morar junto com a família do marido. Outros povos possuem uma organização ma-
trilinear: a sociedade Bororo está organizada em clãs matrilineares exogâmicos, todo indivíduo per-
tence ao clã de sua mãe e casa com uma pessoa de outro clã, como o clã de seu pai. A estrutura de
clãs exogâmicos permite à sociedade Bororo ser endogâmica, no sentido que as regras clânicas ser-
vem para mediar os casamentos dentro de sua sociedade.
A diversidade de formas de organização social também reflete em diferentes tipos de sistemas
políticos e religiosos entre os distintos povos indígenas. Por exemplo, tivemos povos que se organi-
zaram em Impérios, com aqueles dominados pelos Incas ou Aztecas, povos organizados em algo
próximo a “Cidades-Estado”, como os Mayas e as sociedades andinas pré-Incaicas, e povos cuja uni-
dade política é menor e mais dinâmica, podendo ser desfeita e refeita em uma ou poucas gerações.
Para algumas sociedades, encontramos uma estrutura social bastante horizontal, sem hierarquias a
não ser as eventuais de gênero e idade. Em outras, encontramos uma estrutura hierárquica que divide
a sociedade em grupos com mais poder e prestígio.
As religiões também tomam muitas formas, havendo, por exemplo, povos que cremam os
mortos, outros que os enterram com todos os seus pertences. Alguns povos possuem a prática do
exocanibalismo, ou o consumo ritual de seus inimigos, como faziam os Tupinambá, ou do endocani-
balismo, realizado em cerimônias fúnebres de um parente muito amado que faleceu, foi cremado, e
cujas cinzas são consumidas por algumas pessoas especiais, como fazem alguns grupos Yanomami.
Algumas culturas possuem um único especialista – o pajé – para interceder entre o plano terreno os
vários mundos espirituais. Outros grupos dividem essa tarefa em múltiplos especialistas.
Dentro deste plano de grande diversidade há também muitas semelhanças compartilhadas en-
tre os povos indígenas. Essas semelhanças não foram simplesmente herdadas de um passado primor-
dial longínquo, mas compartilhadas pelas dinâmicas sociais interétnicas ao longo da história. Crucial
para isso foram os sistemas de trocas indígenas que envolviam intercâmbios matrimoniais, compar-
tilhamento de rituais, comércio de matéria prima e produtos manufaturados, e, junto a isso, o fluxo
de ideias, práticas culturais e, claro, línguas. Ao mesmo tempo que esses sistemas serviam para di-
fundir uma cultura comum, ele também gera diversidade pois um sistema de intercâmbio pressupõe
a diferença e a complementariedade entre povos. Como veremos, a diversidade linguística e cultural
que apresentamos neste livro se construiu por uma espécie de jogo entre semelhanças e diferenças,
convergências e divergências, que tem acontecido ao longo do tempo e se apresenta em escalas geo-
gráficas que vão desde as relações mais locais entre grupos vizinhos a relações de longa distância.

1.3.2 Línguas como signos das culturas


Como vimos, a diversidade cultural é expressa de diferentes maneiras, as línguas sendo uma delas.
Por um lado, pode-se dizer que as línguas possuem uma função emblemática ao demarcar fronteiras
sociais por fronteiras entre línguas ou dialetos, de modo que as línguas estão relacionadas à maneira
como as culturas estão organizadas em termos ideológicos, identitários e sociais. Um exemplo disso
foi visto na seção 1.3, quando se notou que há uma maior quantidade de línguas e povos na Amazônia,
mesmo sendo sua população indígena bem menor do que em outras regiões das Américas. Para além
dessa relação entre unidades linguísticas e estrutura social, as línguas – enquanto um sistema com-
plexo de símbolos verbais – possuem recursos fonológicos, lexicais, sintáticos e semânticos que criam

29
um nexo entre o sistema linguístico e o que poderíamos chamar de cultural. É sobre esses recursos
que falaremos nesta seção.
Como escreve o norte-americanista Edward Sapir “o vocabulário de uma língua reflete mais
ou menos fielmente a cultura à qual este vocabulário serve para expressar” (Sapir, 2004 [1921]: 104).
Como parte desse vocabulário, as chamadas terminologias de parentesco são fundamentais para a
organização das sociedades com relação a regras de casamentos e descendência. Na língua Ninam,
por exemplo, a palavra para ‘pai’ papa pode ser usada para se referir também aos tios paternos (irmãos
homens do pai), enquanto nape pode ser usada para se referir tanto para ‘minha mãe’ quanto para as
tias maternas. Os tios cruzados possuem termos diferentes: txape se usa para a tia paterna, e xowatxë
para o tio materno. Por sua vez, uma pessoa não poderá se casar com os filhos de alguém que ela trata
como nape ou papa, pois são considerados irmãos. O casamento ideal é entre os chamados primos-
cruzados, ou seja, entre uma pessoa e o filho ou filha de alguém que ela chama de txape ou xowatxë.
Esse sistema de casamento entre “primo cruzado” e terminologias de parentesco que o organizam são
muito difundidos nas Américas.
Um outro campo semântico também muito oportuno para explorar a relação entre língua e
cultura é o de palavras relativas à expressão de características da paisagem. É bastante famosa, porém
extremamente mal difundida3, a observação de Boas de que os Inuit (ou Eskimó) teriam diferentes
palavras e – portanto – diferentes maneiras de se conceber o que em português se chama por um único
nome geral de “neve”. Os exemplos originais do Handbook of American Indian Languages foram os
seguintes (Boas, 1911):
(1.2) Termos para neve em Inuit (Boas, 1911)
qana ‘neve (quando está caindo do céu)’,
aput ‘neve (já caída no chão)’
piqsirpoq ‘neve (suspensa no ar, quando levantada do chão pelo vento)’
qimuqsuq ‘neve (quando acumulada em montículos e dunas)’

Um outro caso mencionado por Boas é a língua Kwakiutl (ou Kwakwala, família Wakash, Costa
Noroeste do Pacífico) que ilustra a relevância de uma terminologia especializada para a vida no litoral
e ao longo de rios e estuários. Os exemplos incluem uma série de morfemas locativos e direcionais
como
(1.3) Morfemas locativos e direcionais que fazerem referência à paisagem do litoral, rios e estuários
onde vivem os falantes de Kwakiutl na Costa Noroeste do Pacífico
atus ‘rio abaixo’
xta ‘em direção ao mar’
siu ‘na foz de um rio’
amala ‘pelo leito de um rio’
usdes ‘acima da praia’
xs ‘dentro de uma canoa’

O que está em jogo para Boas é que as palavras são criadas e usadas conforme o investimento
cultural acumulado na história particular de cada povo, de modo que os conceitos de uma língua e
cultura serão herdados e transformados de acordo com os modos de vida de geração em geração (Boas
1911: 24-5).
Alguns sistemas gramaticais também mostram relações entre língua e cultura. Por exemplo,
existem algumas categorias gramaticais, como os evidenciais e os classificadores numerais que, ape-
sar de não existirem em línguas como inglês e português, são muito recorrentes nas Américas. Eles
mostram como as línguas marcam padrões diferentes de categorização das coisas sobre as quais fala-
mos e com as quais interagimos. Os evidenciais categorizam os eventos ou situações por meio de

3
Boas havia proposta inicialmente 4 palavras para “neve”. Uma rápida inspeção na internet nos mostra que ao longo do
tempo essa conta chegou a 50 ou 100 palavras, claramente um exagero.

30
morfemas que indicam a fonte de informação do falante. Por exemplo, na língua Kamayurá (família
Tupí-Guaraní) temos dois evidenciais marcados na oração como partículas que antecedem aos verbos:
rak indica que o falante presenciou pessoalmente o fato, e je indica que ele ouviu o fato de outra
pessoa (ver seção 4.5.5 sobre outros sistemas de evidenciais). Já os classificadores numerais catego-
rizam o que está sendo quantificados em tipos de entidades com base em certos parâmetros semânti-
cos, como forma física, consistência, classe ontológica, gênero, entre outras (ver seção 4.5.3 para
exemplo de outros tipos de classificadores). Os exemplos abaixo mostram como o numeral aapa ‘um’
em Baniwa-Koripako (família Aruák) varia de acordo com o que está sendo quantificado (Ramirez
2021).
(1.4) Classificação de animais e outros objetos pelos classificadores numerais do Baniwa-Koripako
aapá-na héema ‘uma anta’ (-na classificador de animais quadrúpedes)
apa-ápa áadaro ‘uma arara’ (-apa classificador de várias espécies de pássaros)
apá-khaa áapi ‘uma cobra’ (-khaa classificador de objetos e seres compridos)
apa-íta píitiri ‘um morcego’ (-ita classificador masculino genérico)

A categorização simbólica que os sistemas lexicais e gramaticais proveem não são necessari-
amente as mesmas categorias expressas pela cultura de um povo. Por exemplo, numa dada cultura,
existem inúmeras formas de se categorizar os tipos de pessoas (conforme sua profissão, sua relação
de parentesco, seu signo, seu tamanho, seu cabelo, time que torce, etc.). Nunca haverá um conjunto
finito de palavras, nem categorias gramaticais para se expressar todas essas formas de categorizar o
mundo. É aqui que vem a centralidade do discurso como o momento em que acionamos todo nosso
conhecimento linguístico e de mundo para interagir e se comunicar. O discurso é o nexo por excelên-
cia entre língua e cultura (Sherzer, 1987). As formas e os conteúdos dos discursos serão tão diversos
conforme serão os tipos de situações sociais. São especialmente os discursos de cunho artístico, reli-
gioso e político que vão explorar de modo mais profundo os recursos e potenciais disponibilizados
pelo sistema simbólico de uma cultura, bem como pela fonologia, léxico e gramática de uma língua.
No capítulo 3, voltaremos a explorar algumas formas de discurso nas sociedades indígenas.
Por outro lado, as línguas possuem diferentes formas e funções, e nem todas estão diretamente
relacionadas com a expressão de algo relevante para a cultura. Há elementos que são mais propria-
mente estruturais aos sistemas linguísticos – ao menos em um primeiro nível – como, por exemplo,
o fato de as línguas apresentarem concordância sintática entre verbos e sujeitos (e.g. eu fui, tu fostes,
ela foi, elas foram). Ter ou não ter concordância numa língua ou noutra não parece ser algo que
podemos determinar por nenhuma variável cultural. No entanto, as sociedades podem atribuir certo
valor cultural a um dado linguístico que a princípio não está diretamente relacionado à cultura, como
é o caso com a variação no uso da concordância na 3ª pessoa do plural, em que a as formas elas foram
vs. elas foi pode implicar em diferentes avaliações culturais a depender do contexto, como, por exem-
plo, uma certa informalidade do falante, sua baixa escolaridade, classe social, etc.
Como vemos, podemos dizer que língua e cultura estão relacionadas como parte de uma
mesma experiência humana, mas não podemos dizer que são a mesma coisa, ou que a língua serve
pura e simplesmente para expressar a cultura, nem que a cultura encontra somente nas línguas sua
forma de expressão. Como o curso de um rio que se divide em vários braços quando chega num delta,
língua e cultura não necessariamente seguem o mesmo fluxo, mas se encontram e se separam contínua
e dinamicamente. Mas o que seria esse rio de onde línguas e culturas emanam? Na tradição Boasiana,
entende-se que todos os seres humanos são igualmente dotados das mesmas capacidades cognitivas,
mas as categorias do pensamento são determinadas pela experiência histórica particular de cada povo.
As línguas e culturas guardam uma relativa autonomia nas suas formas de organização, mas se so-
brepõem como meios de ligação entre o pensamento e a experiência humana. No curso da história
língua e cultura tomam, por vezes, caminho próprios, com dinâmicas distintas e, muitas vezes, com
velocidades diferentes, com aspectos da cultura mudando mais rápido do que aspectos das línguas, e
vice-versa. Nas palavras de Sapir (2004 [1921], capítulo X)

31
Cultura pode ser definida como o que uma sociedade faz e pensa. A linguagem é um modo particular de
pensamento. É difícil ver que relações causais particulares podem existir entre um inventário seleto da
experiência (cultura sendo uma seleção significativa feita pela sociedade) e a maneira particular pela qual
a sociedade expressa toda a experiência [i.e. a linguagem].
A ideia de que as línguas seriam sistemas semióticos que formariam um nexo entre a experi-
ência e o pensamento está na base do relativismo linguístico, segundo o qual as categorias linguísticas
(e culturais) influenciam o nosso modo de pensar e agir. Todas as pessoas que já experienciaram
algum nível de bilinguismo (independentemente da fluência) podem atestar como somos e pensamos
um pouco diferentes quando falamos em línguas diferentes, afetando não só a velocidade da fala ou
a forma compactamos as ideias no discurso, mas a nossa própria personalidade. A hipótese mais
radical nessa linha de pensamento foi apresentada por Benjamin Lee Whorf, sob o termo de Princípio
do Relativismo Linguístico, segundo o qual (ver Quadro 13: Tempo e Relativismo Linguístico na
seção 4.5.4)
os falantes de línguas com gramáticas marcadamente diferentes são direcionados por essas gramáticas a
diferentes tipos de observações e avaliações sobre fatos iguais, de modo que não são observadores equi-
valentes, mas que necessariamente chegam a ideias um pouco diferentes sobre o mundo (Whorf
19656:221).
As ideias de Whorf ficaram conhecidas pela hipótese de Sapir-Whorf. Ela faz parte de uma
tradição de pensamento que vê uma relação entre línguas e visões de mundo, o que remonta, pelo
menos, às ideias de Wilhelm von Humboldt (1767-1835). Elas também dialogam profundamente com
a maneira que Gersem Baniwa, Altaci Rubim e colegas definem o que são línguas indígenas, como
vimos no início da seção1.1.2).

1.3.3 Continuidades e descontinuidades culturais nas famílias linguísticas


As pesquisas antropológicas, arqueológicas e genéticas mais recentes têm demonstrado a importância
do conceito de famílias linguísticas para se discutir continuidades e descontinuidades na história de
longa duração das sociedades indígenas. Isso se deve ao fato de que se sabemos que povos falam
línguas filogeneticamente aparentadas, sabemos também que eles compartilharam direta ou indireta-
mente de um mesmo passado social e cultural desde há pelo menos algumas gerações.
Um caso marcante de continuidades linguísticas, sociais e culturais na América do Sul con-
cerne as três grandes famílias: Aruák, Tupí-Guaraní e Jê. Para os povos de línguas Jê e Tupi, haveria
uma visão de mundo mais centrada na realidade da aldeia, como discute Antonela Tassinari (1995).
Para os Jê, as aldeias se organizam em vários pares de metades, cada uma delas funcionado em mo-
mentos e em esferas especificas da vida social. A aldeia abarca a identidade e a alteridade, o “eu” e o
“outro”, regulando os casamentos, algumas de cunho político, outras da ordem religiosa ou ritual. Os
grupos Tupi, por sua vez, as relações sociais no interior da aldeia demarcam as relações de identidade,
onde se evidenciam os mecanismos sociais que aproximam e identificam as pessoas como membros
dos mesmos grupos. Já a alteridade domina as relações sociais que extrapolam os limites da aldeia ou
da sociedade: os estrangeiros, os espíritos, os animais, os mortos, os inimigos, os deuses. Com relação
à família Aruák, muitos etnólogos e arqueólogos, desde Max Schmidt no início do século XX che-
gando até propostas mais atuais com as de Alfred Hornborg, Fernando Santos-Granero, Jonathan Hill
e Michael Heckenberger, têm notado que seus falantes possuem um conjunto de características cul-
turais que parecem remontar a uma tradição de mais de 3 milênios, o que, nas palavras de Santos-
Granero (2002: 44-45), seria reflexo de um Ethos Aruák. Entre essas características, podemos listar
uma inclinação à construção de alianças políticas, econômicas e ritualísticas com povos vizinhos de
diferentes etnias; o estabelecimento de redes comerciais de longa distância, sociedades que enfatizam
a descendência comum, hierarquia e genealogias. Não são todos os povos Aruák que compartilham
dessas características, mas elas possuem uma ampla distribuição geográfica e nas divisões da família
Aruák, o que sugere que esse conjunto de característica está presente há um bom tempo.
Em muitos outros casos, a diversidade social e cultural ultrapassa as fronteiras linguísticas na
forma de povos falantes de línguas de uma mesma família linguística apresentarem diferenças cultu-
rais marcantes, revelando descontinuidades na relação entre língua e cultura. Por exemplo, os povos

32
falantes de línguas Uto-Aztecas se estendem do Sudoeste dos EUA à América Central. Nessa vasta
área, encontramos tanto grupos como os Mexica que dominavam o Império Azteca desde suas cidades
com milhares de habitantes e com domínio de metalúrgia, agricultura, escrita e prática de sacrifícios
humanos, quanto povos como os Ute e Shoshone, que até pouco tempo viviam em pequenas comu-
nidades locais como caçadores e recoletores seminômades nos estados de Nevada, Utah e Wyoming
nos EUA, não possuíam metalurgia, nem escrita, nem praticavam sacrifícios. O contraste entra essas
duas culturas pode ser bem ilustrado por suas edificações: a maior construção dos Mexica foi o cha-
mado Templo Mayor, erguido na capital de seu império, Tenochtitlan; o templo tinha cerca de 8 mil
metros quadrados de área, 60 metros de altura, numa estrutura piramidal, era usado para diversas
cerimônias e oferendas religiosas, e servia como o símbolo principal do poder, riqueza e tradição do
império Azteca. Já os Shoshone, como outros povos das Montanhas Rochosas e Planícies dos EUA
e Canadá, construíam os chamados Tipis, que eram usados como residência e local para rituais, po-
dendo ser desmontados e carregados quando os grupos se deslocavam. (Ambos estão ilustrados na
Figura do Apêndice Online 2.)
Figura do Apêndice Online 2: o “Templo Maior” dos Mexica e os Tipis dos Shoshone

1.3.4 Unidade e diversidade cultural nas regiões multilíngues


Se por um lado encontramos continuidades e diferenças entre povos falantes de línguas de uma
mesma família linguística, por outro, também encontramos semelhanças entre povos falantes de lín-
guas de famílias linguísticas distintas. Isso pode ser observado, sobretudo, dentro de regiões multi-
língues conhecidas tradicionalmente como áreas culturais. Por trás desse conceito está a noção de
difusão como um processo de transferência de elementos sociais, culturais, econômicos, políticos,
etc., entre povos vivendo em proximidade geográfica.4 Vejamos como região chamada de “Guiana
Brasileira” (compreendendo Roraima e Amapá) foi definida como uma área cultural por um dos pio-
neiros desses tipos de estudo no Brasil, Eduardo Galvão (1960):
§ Agricultura: mandioca
§ Artefatos: cerâmica; trançado; cestas retangulares; tecelagem de redes (fibras de tucum e algodão);
navegação (canoas de casca); bancos.
§ Técnicas de caça e pesca: uso do curare; ausência da zarabatana. Arcos, flechas e pequenos cacetes
de guerra.
§ Casas e vilas: Malocas de vários tipos, do arredondado ao retangular, usadas por um mesmo grupo.
Aldeias de 20 a 30 pessoas.
§ Organização social: sibs patrilineares, exceto pelos Warikyana que são matrilineares.
§ Contatos com grupos indígenas: aculturação intertribal em processo
§ Contatos com não-indígenas: contatos externos variando desde isolados e intermitentes (grupos
do centro) a integrados (Makuxi, Galibi, Palikur)

4
Difusão pode também ser entendida como transmissão horizontal, pois ocorre entre povos contemporâneos, e está em
oposição à ideia de transmissão vertical, que pressupõe a sucessão de gerações. Logo, a difusão está para áreas culturais,
de modo análogo de como a transmissão vertical está para o modelo de famílias linguísticas.

33
Uma área cultural não é um todo homogêneo, como nota Galvão, e é comum vermos subdi-
visões no formato de subáreas, núcleos ou zonais focais. Por exemplo, a área da Guiana Brasileira
faz parte de uma área maior chamada de Norte Amazônica, onde se incluem povos Yanomami e do
Alto Rio Negro como subáreas. Parte dessa diversidade é evidente quando se nota que a difusão dos
elementos culturais na área da Guiana Brasileira se deu através de povos falantes de pelo menos oito
línguas diferentes e transpassando as fronteiras de três famílias linguísticas: Aruák (língua Palikur),
Tupí-Guaraní (línguas Tekó [Emerillon], Wayampi) e Karib (línguas Waiwai, Makuxi, Taurepang,
Tiriyó, Aparaí).
Tal padrão se repete em muitas regiões multilíngues das Américas. Na região entre os estados
da Califórnia e Oregon, nos EUA, o mesmo ocorre entre os Hupa (falantes de uma língua Atabaska
[Na-Denê]), Yurok (família Algonquina) e Karok (falantes de uma língua isolada). Como comenta
Kroeber (1925: 1-8) os três grupos possuem uma economia voltada para a pesca, possuem relações
de intercasamentos e comércio, compartilham de uma mesma cerimônia religiosa que acontece com
a presença dos três grupos e possuem uma cultura material semelhante e complementar. Um quadro
semelhante, porém, talvez mais complexo, pode ser visto entre os povos do Alto Xingu, no Brasil,
onde também encontramos povos de diversas famílias linguísticas, como os Yawalapti (Aruák),
Kamayurá (Tupí-Guaraní), Kalapalo (Karib) e Trumai (língua isolada), e que possuem uma base co-
mum no que concerne seus rituais, organização das aldeias, economia e cultura material (Franchetto,
2011). É difícil dizer quais elementos desses contextos pertencem originalmente a este ou aquele
grupo, tão unidos eles estão nas práticas e formas de pensamento (ver seção 6.3). Se numa área cul-
tural grupos falantes de línguas e famílias linguísticas diferentes se tornaram mais semelhantes entre
si ao longo do tempo, o contrário também é verdadeiro, i.e., povos em áreas culturais diferentes, mas
falantes de línguas da mesma família, vão se tornar mais distintos ao longo do tempo. Assim, as
diferenças entre os Mexica e os Shoshone é proporcional à semelhança que esses povos guardam com
seus vizinhos da Mesoamérica e do Sudoeste dos EUA, respectivamente.
Na relação entre povo, língua e cultura, vemos que a continuidade e a descontinuidade, a
unidade e a diversidade são valores fundamentais aos sistemas de vida indígena. A diversidade lin-
guística nas Américas passa, portanto, pelas diferentes formas de relações interétnicas entre povos
indígenas e não-indígenas como parte do tecido social e cultural construído na história do continente.
Nesse sentido, a antropologia vem adotando um olhar mais relacional por meio de diferentes noções,
como áreas etnográficas, um recorte teórico que enfatiza as relações, trocas (logo diferenças) e traços
culturais compartilhados entre as sociedades de uma região. Essa perspectiva permitiu a proposição
de um conceito muito em voga na etnologia e arqueologia, o de sistemas regionais. Como comentam
Vander Velden e Lolli (2021), as investigações dos sistemas regionais ou das redes de intercâmbio
têm deslocado o foco das unidades étnicas para conjuntos “multicomunitários”, o que tem permitido
aprofundar o conhecimento sobre esses sistemas, desde uma perspectiva interna quanto externa, cri-
ando “relações entre relações (...) de modo a produzir um cenário de conexões de alcance continental,
um tecido contínuo de contatos (...)” (Vander Velden e Lolli 2021: 2). Seguindo essa perspectiva,
podemos propor que, dentro das regiões multilíngues, existam sistemas regionais com alta diversi-
dade étnica, linguística e filogenética, estruturados pela interdependência dos grupos sociais e sua
articulação em redes de intercâmbio social, cultural, econômico e linguístico. Como veremos, há um
conjunto de características encontradas por essas regiões que nos servem para detalhar o que são
sistemas regionais multilíngues, conforme resumido no Quadro 3.
Quadro 3: Regiões Multilíngues e os Sistemas Regionais Indígenas
§ Raízes históricas nos primeiros milênios de ocupação humana do continente
§ Presença de vários povos autóctones, falantes de línguas isoladas e/ou famílias pequenas e mé-
dias, o que atesta para a longa-duração do multilinguismo regional
§ Migração de povos de outras regiões trazendo mais diversidade na forma de novas línguas, famí-
lias linguísticas (como as grandes famílias) e relações culturais, incrementando o sistema inter-
namente e criando outras oportunidades de contatos de longa distância
§ Mobilidade interna causando distribuição da diversidade e criando contatos entre povos

34
§ Intercasamentos entre povos falantes de diferentes línguas, criando famílias e comunidade multi-
língues
§ Trocas comerciais e culturais locais e à longa distância, difundido elementos da cultural material
e imaterial, incluindo elementos linguísticos
§ Manutenção ou criação de diferenças de modo a sustentar sistemas culturais baseados na com-
plementariedade, especialização, e, em certos casos, hierarquia e assimetrias entre os grupos
§ Formações sociais e políticas que favorecem ou ao menos não reprimem o multilinguismo,
mesmo se eventualmente fizerem usos de línguas francas

1.4 Um percurso sobre a história social das línguas indígenas


As Américas têm sido uma intensa área de migrações e encontros entre povos há pelo menos 16 mil
anos. Os últimos grandes eventos migratórios ao continente tiveram início com as grandes navega-
ções, culminando com a colonização das Américas e a história dos estados nacionais. Antes dos eu-
ropeus, há cerca de 800 anos, no auge das grandes navegações polinésias, houve um encontro entre
navegadores polinésios vindos das Ilhas Marquesas no Pacífico e populações indígenas do Noroeste
da América do Sul. Sabemos que ocorreram trocas culturais e casamentos entre esses povos. Os po-
linésios regressaram levando consigo seus ou seus cônjuges, bem como a batata-doce, que fora do-
mesticada na Amazônia milênios antes (C. Clement et al., 2010). O tubérculo rapidamente se difundiu
entre os povos do Pacífico, sendo acompanhado por empréstimos lexicais responsáveis por espalhar
formas como kumara em Rapa Nui (Ilha de Páscoa) e k’umar ou k’umara em Quechua e Aimara.5
Pouco tempo antes dos polinésios, há cerca de 1000 anos, outro povo navegador, os Vikings, teriam
aportado na costa do Canadá, mas apesar de alguns episódios de contatos ora amistosos, ora violentos
com os povos indígenas, não parece ter havido grandes consequências de sua passagem por aqui.
Logo, devido ao relativo pouco impacto de Vikings e Polinésios, vamos dividir a história social das
Américas em três períodos: o seu povoamento inicial, um período de 2 a 3 mil anos antes da coloni-
zação europeia e o período iniciado pela colonização e que vivemos até hoje.

1.4.1 O povoamento inicial das Américas


Com base em evidências da arqueologia e genética, sabemos que as populações indígenas são oriun-
das de uma população maior que vivia no Nordeste da Ásia há mais de 30 mil anos. Uma parte dessa
população chegou às Américas pelo que é hoje o Estreito de Bering, mas que no passado foi uma
grande pradaria conhecida como Beríngia. A arqueologia sugere pelo menos dois períodos quando
teria sido possível haver migrações para a América. Primeiramente, entre 34 e 24 mil anos atrás, e,
depois, entre 16 mil (na Beríngia) e 14,5 mil anos (no Alasca) (Dias, 2019). Para a genética, os povos
ameríndios se separaram de seus parentes no Nordeste da Ásia por volta de 25 a 18 mil anos atrás, e
a entrada nas Américas teria ocorrido por volta de 16 mil anos, sugerindo um longo período de isola-
mento na Beríngia, o que é referido como a hipótese da Permanência na Beríngia (ou Beringia Stan-
dstill Hypothesis) (Castro e Silva et al., 2022). Assim, pode-se minimamente concluir que os povos
indígenas estão nas Américas há pelo menos 16 mil anos, não se podendo descartar por completo que
poderia ter havido uma ou mais migrações anteriores a 24 mil anos atrás (ver Quadro 4 para discussão
sobre as datas disponíveis mais relevantes).
Quadro 4: Antiguidade do Ser Humano nas Américas
Durante muito tempo, a hipótese dominante na arqueologia era a de que os seres humanos chegaram nas
Américas pela primeira vez há cerca de 12 mil anos. Essa data foi postulada com base em registros arque-
ológicos identificados como “Cultura Clóvis”. Mais recentemente, têm ganhado maior credibilidade pro-
postas de ocupações mais antigas. Importante nesse processo, foi a comprovação de ocupação datadas em
cerca de 13 mil anos antes do presente, no sítio de Monte Verde no Sul do Chile. Não só Monte Verde era
mais antigo, mas bem mais ao sul do que Clóvis (Dias 2019). Os esqueletos humanos mais antigos datam
dentre 14 e 12 mil anos atrás, entre os quais se encontra a Luzia, um esqueleto de uma mulher encontrado
em Lagoa Santa, Minas Gerais, o mais antigo achado no Brasil até agora. Há sítios arqueológicos ainda mais

5
Para mais detalhes dessa história fascinante, ver Adelaar & Muysken, 2004; Denham, 2013; Ioannidis et al., 2020)
Adelaar 2004: 41, Denham 2013, Ioannidis 2020.

35
antigos, mas sem esqueletos, como a Serra da Capivara, no Piauí (20 mil anos atrás) (Boëda et al., 2014), o
sítio Santa Elina, no Mato Grosso – datado de 27 mil anos atrás (Vialou et al., 2017) e, mais recentemente,
as pegadas fossilizadas no White Sands National Park, no Novo México, EUA, datadas entre 23 e 21 mil
anos atrás (Bennett et al. 2021).

Uma questão importante para entendermos a diversidade atual de línguas e culturas indígenas
é saber quão diversa era a população que povoou as Américas.6 Os estudos genéticos concordam que
há uma certa unidade biológica na população que se fixou na Beríngia e veio povoar as Américas.
Não parece ter havido uma leva populacional anterior, mas se de fato houve, esse grupo teria sido
posteriormente substituído e raramente se misturado à nova população. Há, no entanto, variação ge-
nética na população original e essa heterogeneidade teria sido adquirida por misturas entre populações
no Leste da Ásia há mais de 20 mil anos. Como exemplo, destaca-se a chamada “população Y”, que
teria contribuído material genético tanto para os povos que colonizaram a Oceania, quanto a América
do Sul. Isso pode sugerir que os primeiros povos a entrar no continente tenham ido mais rápida e
diretamente para a América do Sul, deixando a América do Norte para ser povoada por levas popu-
lacionais posteriores (Castro e Silva et al. 2022). Os últimos povos a cruzarem da Beríngia para as
Américas foram os ancestrais dos atuais falantes de línguas Na-Dené e Inuit-Yupik-Unangan (Es-
kimo-Aleuta), que se estabeleceram mais recentemente no Norte da América do Norte, há cerca de
11,5 mil anos (Matson & Magne, 2013) e 5 mil anos (Fortescue, 2013), respectivamente.
As migrações desde a Beríngia ocorreram em levas diferentes e seguindo rotas distintas, cri-
ando divisões e posterior misturas entre as linhagens populacionais. O povoamento se deu de Norte
a Sul e do Leste para o Oeste, seguindo inicialmente duas rotas distintas: uma costeira e outra terrestre.
A via terrestre teria sido possível somente após o descongelamento de imensas geleiras que bloquea-
vam o caminho entre o Alasca e o interior do Canadá, o que somente ocorreu por volta de 15 mil anos
trás. Já uma rota margeando o Oceano Pacífico, percorrida por populações que exploravam recursos
costeiros, estuários e rios que desaguam no Pacífico, quando então os níveis do mar estavam mais
baixos, teria sido possível em períodos anteriores. Ao longo do tempo, as populações foram cres-
cendo, migrando e se concentrando em certas áreas ecologicamente mais ricas e estratégicas. Com
base nas semelhanças genéticas e arqueológica de registros encontrados, houve uma rápida dispersão
pelo continente, de modo que há 10 mil anos as Américas já se encontravam ocupadas em suas prin-
cipais zonas ecológicas e já havia avançados níveis de especialização e diferenciação entre sociedades
indígenas. A separação entre povos que chegaram à Mesoamérica e à América do Sul dos que ficaram
na América do Norte parece ter ocorrido há 12 mil anos, bem cedo no povoamento do continente
(Castro e Silva et al., 2022; Da-Gloria, 2019).
Os povos indígenas da Mesoamérica e da América do Sul fazem parte de uma mesma popu-
lação ancestral, conhecida na literatura genética como Nativos Americanos do Sul (Castro e Silva et
al. 2022).7 Além dessa leva inicial, há evidência de pelo menos duas outras levas populacionais que
chegaram à América do Sul. A primeira leva teria chegado por volta de 15 mil anos atrás e teria se
dividido nos grupos que seguiram pelo Pacífico e pelo Atlântico, prefigurando as macrodivisões entre
Terras Altas e Terras Baixas do continente (Castro e Silva et al. 2022: 5; Dias 2019: 467). A segunda
leva teria chegado há 9 mil anos e teria sido aquela que mais contribuiu para o perfil genético atual
da população indígena e teria substituído a primeira população em vários lugares. A última leva teria

6
Uma proposta pioneira defendida por Walter Neves sugere a chegada de pelo menos duas camadas populacionais du-
rante a ocupação inicial do continente. Com base no estudo da morfologia craniana de diferentes sepultamentos ao longo
do tempo, Neves propôs que a primeira leva fora composta por indivíduo chamados de “Paleo-Índios”, entre os quais a
Luzia seria um representante. A segunda leva viria com os chamados “Ameríndios”, uma população que teria substituído
em grande parte a população Paleoíndia.
7
Sandoval et al. (2012) sugeriram que a maioria dos povos da Mesoamérica e da América do Sul são descendentes de
uma única onda migratória, o que é compatível com a ideia de que o México atual foi uma área de transição na diversifi-
cação durante a ocupação inicial das Américas. Moreno-Estrada (2013: 12) também observa que os povos Maya da pe-
nínsula de Yucatán compartilham uma parte considerável de seu genoma com grupos etnolinguísticos da Amazônia e do
Chaco.

36
chegado por volta de 4 mil anos atrás nos Andes Centrais e sua chegada sugere uma conexão com o
desenvolvimento de uma agricultura mais intensiva nesta região (Posth et al., 2018).

1.4.2 Sociedades Indígenas Pré-Coloniais


Separados do resto do mundo por pelo menos 16 mil anos, os povos indígenas das Américas tiveram
de trilhar um próprio caminho separado do resto da população mundial, criando suas próprias inven-
ções, formulando suas próprias regras e formas de organização social, política e econômica. Muito se
discute como – e se – devemos aplicar nas Américas as mesmas categorias arqueológicas que dividem
a pré-história do Velho Mundo entre o Paleolítico e Neolítico. Se a transição de um período para o
outro é marcado basicamente pela sedentarização e surgimento da agricultura, então, como em outras
regiões do mundo, podemos falar em uma transição gradual nas Américas, em que por volta de 5 mil
anos atrás aparecem sinais de maior densidade populacional, vida mais sedentária em aldeias, agri-
cultura e cerâmica. Esses elementos substanciaram o desenvolvimento de traços culturais localmente
distintos e economias especializadas, os quais inauguraram os chamados períodos formativos de vá-
rias regiões multilíngues que conhecemos hoje.
Tradicionalmente, ensina-se nas escolas que apenas os povos dos Andes e da Mesoamérica
teriam dado um “passo a mais na história”, “saído do Neolítico” e criado independentemente duas das
grandes “civilizações” mundiais (Mann, 2006).8 O conceito de “civilização” se baseia num conjunto
integrado de características, como: presença de agricultura intensiva, cidades e arquitetura monumen-
tal, sociedades hierarquizadas, centralização do poder político e especialização de papeis sociais, ex-
tensas redes de comércio, uso da metalurgia, desenvolvimento da escrita (seção 3.3.2) e seu emprego
na burocracia relativa à administração econômica, política e/ou religiosa. Os Olmecas são considera-
dos como uma das primeiras culturas a despontar na história americana por suas inovações tecnoló-
gicas. Eles aparecem no registro arqueológico do leste do México por volta de 1.800 a.C., quando
viviam em cidades e vilas centradas em templos construídos sobre elevações de terra. Na área da
cultura Olmeca, vemos o desenvolvimento da escrita por volta de 900 a.C. e a formação do primeiro
tipo de poder centralizado que os arqueólogos reconhecem como um “estado”. Ao mesmo tempo, os
Olmecas foram apenas as primeiras de muitas sociedades que surgiram na Mesoamérica nesta época.
Juntos, os povos mesoamericanos inventaram uma dúzia de sistemas diferentes de escrita, estabele-
ceram amplas redes comerciais, rastrearam as órbitas dos planetas, criaram um calendário de 365 dias
(mais preciso do que seus contemporâneos na Europa), registraram suas histórias em papeis feitos de
casca de árvores, e inventaram o número zero.
Nos Andes, entre 7 mil e 2,5 mil a.C., temos a formação dos primeiros assentamentos seden-
tários e da domesticação de plantas e animais, essencialmente camelídeos como as lhamas e as alpa-
cas, sendo o único lugar das Américas onde o ser humano domesticou animais para seu uso econô-
mico. Após esse período, temos evidência do surgimento de assentamentos maiores, com arquitetura
monumental e outros tipos de cultura material que sugerem estarmos diante de comunidades fundadas
em organizações sociais com alta complexidade cultural e ideológica. A partir da interpretação de sua
arte lítica (em pedra) e figuras gigantes modeladas em barros, podemos perceber que o pajé (o xama-
nismo) teria uma importância fundamental na organização dessas sociedades. Apesar de haver um
panteão de deidades (ou deuses) nos templos, a onça (ou um felino genérico) é o tema mais recorrente,
o que é reforçado pela quantidade de figuras que mesclavam traços humanos e felinos, sugerindo uma
transformação do pajé em onça (Figura do Apêndice Online 3). Ao mesmo tempo, havia grande va-
riabilidade de expressão desses temas entre as diferentes vilas e cidades nos Andes; isso chama aten-
ção para um tipo de organização cultural e sociopolítica dessas comunidades que, ao mesmo tempo
em que criava e reforçava elos, também valorizavam sua autonomia e diversidade. Alternando entre
períodos de maior autonomia e maior centralização, vamos assistir à primeira formação de um estado
nos Andes com os Mochica na Costa Norte do Peru depois de 100 d.C. Os primeiros quipus como
forma de registrar informações surgem a partir dessa época (ver seção 3.3.2 para mais informações

8
A ideia de que as “civilizações” andinas e mesoamericanas teriam se desenvolvido de modo independente deve ser
nuançada pelas evidências de contatos entre povos de ambas as regiões, como vimos acima para as evidências genéticas
de uma migração da Mesoamérica no período que coincide com novas formas de agricultura nos Andes.

37
sobre os quipus). Os Mochica foram seguidos por dois estados que vieram a dominar os Andes: Wari,
mais ao norte, e Tiwanaku, mais ao sul. A partir do século XIV os Incas aparecem como a primeira e
única força realmente imperial no Peru, conquistando grupos vizinhos, recolhendo tributos, expan-
dindo a infraestrutura de cidades, templos, estradas, sistemas de irrigação, bem como sintetizando
vários elementos culturais de seus predecessores. Quando os espanhóis chegaram, os Incas se encon-
travam no meio de uma guerra de sucessão ao trono (Villacorta Ostolaza, 2009).
Figura do Apêndice Online 3: Cerâmica com figura humana-felina da cultura Chavín

O conhecimento que se tem sobre a complexidade das sociedades andinas e mesoamericanas


contrasta com a visão que tradicionalmente se cultivou sobre os povos das Terras Baixas da América
do Sul e da América do Norte. Entre várias concepções, imagina-se que os povos dessas regiões
dependiam de uma combinação primitiva de caça, pesca e coleta, com agricultura de pequena escala,
vivendo em sua maior parte em grupos pequenos e isolados, com estruturas políticas igualitárias, e
que tinham tão pouco impacto no seu ambiente que, mesmo após milênios de ocupação, a natureza
permaneceu selvagem, quase intocada, como se os indígenas estivessem flutuando no tempo até 1492.
Essas concepções estão erradas de acordo com novas descobertas e reanálises de dados sobre o pas-
sado dessas sociedades. A seguir, resumiremos alguns fatos básicos sobre a história pré-colonial da
Mesoamérica, Andes e das áreas drenadas pela bacia do rio Amazonas (o maior do mundo) e do rio
Mississipi (o maior da América do Norte).

Bacia do Rio Mississipi


No Nordeste dos EUA, a partir de 500 a.C, desenvolveu-se um complexo cerimonial que envolvia
práticas funerárias e a construções de mounds (plataformas de terras). Esse complexo começou mais
claramente nos formadores do rio Mississipi, no estado de Ohio dos EUA, bem ao norte do Golfo do
México onde o Mississipi deságua. Nesse complexo, a chamada cultura Adena se destaca por suas
práticas agrícolas, por sua cerâmica, pelos trabalhos artísticos e sua extensa rede comercial. Foram
os percursores de uma revolução agrícola que lhes permitiu cultivar plantas como milho, abóbora,
girassol e abóbora em zonas temperadas. Foram também os percursores do sistema de intercâmbio de
longa distância Hopewell que ligava populações por uma ampla rede de rotas comerciais. As maté-
rias-primas vinham de toda o território atual dos EUA; eram entregues às pessoas que viviam nas
principais áreas comerciais do vale do Mississipi e que as convertiam em produtos a serem exportados
através de redes de intercâmbio locais e regionais. Havia uma estrutura política descentralizada e com
chefes locais sem uma autoridade direta sobre os habitantes. Com isso, a movimentação livre de pes-
soas era comum e a rede de trocas passava pelas diferenças e especializações entre os grupos.
A partir de 500 d.C, uma ordem social diferente começa a se desenvolver, tendo como maior
expoente arqueológico a cidade de Cahokia, que abrigou no mínimo 15 mil pessoas e construiu um
mound maior do que a Grande Pirâmide de Gizé no Egito. Como outros lugares semelhantes no vale

38
do Mississippi durante esta época, a sociedade de Cahokia baseava-se no poder político e religioso
centralizado nas mãos de poucos, com classes sociais estratificadas, e com hierarquia de tipos de
cidades, vilas e assentamentos menores, em que um centro principal tinha influência ou controle de
várias comunidades menores. A história tardia do Mississippi antes do contato europeu (c. 1300–1540
d.C) é caracterizada pelo aumento da guerra, turbulência política e movimento populacional. A po-
pulação de Cahokia dispersou-se no início deste período (1350–1400 d.C). Os estudiosos teorizam
que a seca e a redução da agricultura os forçaram a se afastar dos locais principais. Este período
termina com a chegada do conquistador espanhol Hernando de Soto, que liderou a primeira grande
expedição europeia à região entre 1539 e 1542 (para mais detalhes, ver (Hays, 2001; Mann, 2006).

Bacia do rio Amazons


A ocupação da Amazônia remonta a cerca de 11 mil anos e mostra datas bastante antigas de domes-
ticação de plantas (há cerca de 8 mil anos) e cerâmica (há 7 mil anos).9 Há cerca de 4 mil anos,
começam a aparecer de modo mais evidentes no registro arqueológico sinais de comunidades seden-
tárias, com agricultura diversificada e transformação da paisagem. A partir de então, vemos também
um acentuado crescimento populacional com o pico demográfico em 10 a 50 milhões de pessoas por
volta do ano 1000 d.C. segundo diferentes estimativas. Essa soma populacional e essas datas mostram
que as culturas amazônicas antecederam as culturas dos Andes na invenção da cerâmica e são a elas
contemporâneas na domesticação de plantas, o que serve para negar desde início um papel marginal
das Terras Baixas dentro da história cultural da América do Sul (Neves 2019)). Ao contrário do que
se pensava há muito tempo, há um crescente conjunto de evidências mostrando que a maioria dos
grupos na Amazônia não existia em sociedades isoladas, autônomas e de pequena escala, mas tinham
técnicas agrícolas diversificadas, comércio de longa distância e habitavam grandes assentamentos
ocupados por longos períodos, criando organizações sociais complexas ou articulada com uma soci-
edade complexas em amplas redes regionais interétnicas e multilíngues (Neves, 2019; Heckenberger
& Neves, 2009; Neves, 2013).
Na base das sociedades amazônicas está o manejo da floresta ao longo dos milênios, tornou a
Amazônia um dos mais importantes centros mundiais de domesticação de plantas. Pelo menos 83
espécies nativas foram domesticadas até a chegada dos europeus, incluindo mandioca, batata doce,
cacau, tabaco, abacaxi e pimenta, bem como numerosas árvores frutíferas e palmeiras. Foram desen-
volvidas diferentes técnicas de cultivo, como a agrofloresta, formas orgânicas de se enriquecer o solo
(como as chamadas terra preta de índio, cobiçadas atualmente por agricultores e arqueólogos), terra-
ços e canais para direcionar águas dos rios e da chuva. Mesmo as sociedades de pequena escala tive-
ram uma contribuição na chamada domesticação da paisagem da Amazônia, ajudando a dispersar
plantas e animais úteis, e a diversificar certas áreas em termos de espécies biológicas. Algumas flo-
restas (aparentemente “virgens”) foram altamente modificadas, como as plantações de castanha-do-
pará em vastas áreas da Amazônia, os açaizais do que dominam milhares de quilômetros quadrados
no estuário do rio Amazonas, e o manejo agroflorestal de áreas que se tornaram mais diversas do que
áreas intocadas. As técnicas agrícolas tiveram um profundo impacto na paisagem (Clement et al.,
2015).
A população vivia principalmente ao longo das principais áreas ribeirinhas e costeiras, onde
se estima que haveria uma alta densidade populacional, enquanto em áreas de rios menores haveria
uma menor densidade, e populações mais esparsas nas áreas interlfuviais. Em todas as áreas, encon-
tramos sinais de ocupações duradouras, populosas e complexas. Foram descobertos dezenas de mi-
lhares de campos elevados em Llanos de Mojos na Bolívia, nas costas da Guiana e Amapá, bem como
no Orinoco. Centenas de quilômetros de ruas elevadas e estradas nas regiões do Xingu, Mojos, Ori-
noco, Guianas e Amazônia Central; canais, cortes artificiais entre curvas de rios, lagoas artificiais e
açudes de peixes nas regiões de Llanos de Mojos, Xingu, Amazônia Central, e Ilhas do Marajó; além

9
Essas datas mostram que as culturas amazônicas antecederam as culturas dos Andes na invenção da cerâmica e são a
elas contemporâneas na domesticação de plantas, o que serve para negar desde início um papel marginal das Terras Baixas
dentro da história cultural da América do Sul (Neves, 2019).

39
de redes integradas de elementos de assentamento, incluindo montículos, praças, valas, muros e es-
tradas, em numerosos áreas.
A partir de pouco mais de dois mil anos, temos evidência de formação de sociedades interli-
gadas por diferentes relações interétnicas, com intercasamentos e cooperação ritual, bem como por
sistemas sociopolíticos de alianças e chefaturas. Em vez de dominados por um poder central, a arque-
ologia revela um quadro de grande diversidade cultural e autonomia política. Ao mesmo tempo, em
vez de isolados, temos evidências de que os povos estavam relacionados por extensas redes comerci-
ais que interligavam as regiões amazônicas entre si e com outras regiões da América do Sul e do
Caribe. Elas incluem rotas indo dos Andes para a Amazônia Ocidental, Central e Noroeste Amazô-
nico; outra rota liga o rio Amazonas ao rio Orinoco através do canal de Casiquiare, subindo até o
litoral da Guiana e Caribe; e uma outra rota liga o centro e baixo Amazonas com as Guianas através
dos rios Approuague e Rio Branco. As Guianas e o Orinoco estiveram ainda relacionados pelo co-
mércio com o Caribe e o nordeste da Colômbia (Eriksen, 2011).
Por volta do ano 1000 d.C., observamos algumas transformações importantes em diversos
lugares da Amazônia. Uma possível queda ou dispersão populacional depois desse marco temporal
pode estar correlacionada com sinais de relações conflituosas na confluência do Rio Negro e Soli-
mões, quando então vemos a substituição de cerâmicas da chamada tradição Borda-Incisa por cerâ-
micas da tradição Polícroma. Segundo hipótese de Lathrap (1970), a cerâmica da tradição “Borda-
Incisa” estaria associada à expansão da família Aruák, enquanto a cerâmica da tradição “Polícroma
da Amazionia” estaria associada à expansão dos povos Tupi-Guaraní. No entanto, devemos ter muita
cautela aqui para evitar relações simplórias, pois a pesquisa sobre a correlação entre padrões cerâmi-
cos e a filiação linguística das sociedades que produziam e trocavam essas cerâmicas é um tema que
ainda merece mais investigação.
Entre 1541 e 1542, o primeiro cronista da Amazônia, o Frei Gaspar de Carvajal, percorreu o
rio Amazonas das cabeceiras do rio Napo no Equador até o Atlântico. Carvajal descreve uma Ama-
zônia densamente povoada, sua viagem sendo repleta de encontros com vários povos ribeirinhos,
inclusive com uma sociedade de mulheres guerreiras, as Amazonas. Chama a atenção o tamanho das
comunidades que ele descreve, com aldeias lineares nas encostas do rio medindo cerca de 6 a 30
quilômetros, em locais grandes o bastante para populações que variavam de 800 a 10.000 pessoas
(Denevan, 1992). O que Carvajal viu e contou ficou em volto em mito, como as Amazonas. Mas
diante do que revisamos nessa seção, fica claro que o seu relato é bem mais próximo do que foi a
realidade do que a visão tradicional de que a Amazônia teria sido um eterno vazio demográfico, con-
formado por sociedades pequenas e isoladas. Essa visão, que hoje em dia é combatida pelos estudio-
sos e pelos povos indígenas, é fruto do impacto de séculos de colonização da Amazônia, como vere-
mos na seção a seguir.

1.4.3 Moinhos de Gastar Línguas: Colonização e Glotocídio desde 1492 d.C.


As Américas foram partilhadas e disputadas pelas grandes potências europeias: Espanha, Portugal,
Inglaterra, França, Holanda, Dinamarca, Suécia e Rússia. O século XVIII marcou o auge do domínio
europeu, e os estados nacionais independentes que começaram a surgir no final do século XVIII im-
puseram, em grande medida, um processo análogo de colonização aos povos indígenas, ainda que
muitas vezes travestidos de propósitos mais “republicanos”, repercutindo em ações que poderiam ser
caracterizadas como uma espécie de colonialismo interno. Os poderes coloniais estiveram desde cedo
organizados de forma muito pragmática para que as colônias cumprissem seus objetivos principais:
o enriquecimento econômico da coroa, dos demais financiadores da empresa colonial e dos próprios
colonos; a expansão das terras e dos súditos da coroa; e a propagação da fé cristã.
A grande diversidade de línguas e povos indígenas sempre foi um problema para as colônias
europeias nas Américas, que pretendiam ser empresas eficientes e lucrativas. Se muitas sociedades
indígenas possuem uma ideologia que valoriza a diversidade, o multilinguismo e a autonomia, os
sistemas coloniais e a fundação dos estados nacionais foram seu contraponto, procurando reduzir a
diversidade e promover o monolinguismo para uma melhor gestão da empresa colonial. Isso se repe-
tiu desde o primeiro contato entre um povo europeu e um povo indígena – espanhóis e os Taíno – e

40
segue até hoje em dia em lugares como Rondônia, Bahia e o Mato Grosso do Sul (veja, em particular,
as histórias dos povos Akunstú e Guató na seção 7.2.1).
Como mostramos no Quadro 5, muitas línguas foram silenciadas ou extintas nos moinhos de gas-
tar gente da colonização (D. Ribeiro, 1995). Isso ocorreu devido à eliminação física de seus falantes,
pela dissolução das bases políticas, econômica e territoriais de suas sociedades, bem como pelo ataque
direto à sua cultura. O mapa da Figura 3 (seção 2.2.2) nos mostra que boa parte das línguas extintas
estão em zonas onde a colonização foi mais antiga e/ou mais intensa, como o litoral Atlântico e o
Caribe, o Nordeste do Brasil e da América do Norte, o vale do rio Amazonas, Solimões, médio e
baixo Rio Negro, e a costa da Califórnia. Ela foi mais intensa ao longo da costa, dos rios ou em áreas
de mineração e penetrou no interior do continente pelas mesmas rotas de intercâmbios que anterior-
mente conectavam as sociedades indígenas.
Quadro 5: Glotocídio e Etnocídio no período colonial
Pelo menos 30% de todas as línguas indígenas registradas historicamente foram extintas (ver seção 7.1.4).
Porém, muitas foram extintas sem terem sido registradas. Apenas no Brasil, estima-se que haveria cerca de
1215 línguas quando da chegada dos portugueses, mas, hoje, temos algo próximo a 200 línguas. Logo,
tivemos um total de 85% de línguas indígenas extintas após 1500 (Rodrigues 1993, D’Angelis 2019). De-
nevan (1992) calcula que a população nativa americana em 1492 d.C. estava na faixa de 43 a 65 milhões de
pessoas. Em 1750, a população total caiu para 16 milhões, cerca de 30% da população anterior. Enquanto
as populações europeias e africanas escravizadas cresciam lentamente, a dizimação das populações indíge-
nas nos primeiros séculos de colonização foi rápida e massiva. Cerca de 90% dessa população morreu nos
primeiros dois séculos. Números semelhantes foram obtidos por estudos de genética populacional. Castro e
Silva et al. (2022) estimam que 90,38% da população indígena sucumbiu nos últimos 500 anos. O maior
impacto foi estimado para os grupos na Mesoamérica, com um declínio efetivo do tamanho da população
de 99% entre os Uto-Azteca, 99% entre os Oto-Mangue e 97% entre os Maya, sendo apenas equiparado a
uma redução estimada de 98,9% para os povos Tupi, seguido pela população falante de línguas Quechua
com 95% e de línguas Jê com 83%.

Exceto nas áreas onde os europeus encontraram metais preciosos logo no início da coloniza-
ção (feito que os espanhóis conseguiram realizar primeiro), os contatos iniciais foram marcados por
um padrão de colonização comercial, mais voltado para a extração de Pau-Brasil e outras drogas do
sertão. Nesse caso, as sociedades indígenas gozavam de maior autonomia, e a colonização se estabe-
lecia pelo uso de intérpretes, pelo uso de línguas pidgins e outros tipos de línguas francas (ver capí-
tulo 6). Mesmo aparentemente mais brandos, desde os contatos iniciais sempre tivemos a dissemina-
ção de doenças que arrasaram as populações, mesmo aquelas sem contato direto com os europeus.
Guerras, escravização e desterritorialização também confluem como fatores que causaram a morte de
indígenas e de suas línguas. Essas foram estratégias típicas da colonização de exploração e de povo-
amento, em que houve um maior esforço para controlar as populações indígenas, seus territórios e
integrá-los ao sistema político, econômico e religioso da colônia. O poder colonial incentivou guerras
entre os povos indígenas e promoveu suas próprias guerras (as chamadas guerras justas e guerras de
resgate) como forma de submeter os indígenas como mão de obra e se apropriar de seus territórios.
O projeto colonial também se fazia por um projeto de dominação cultural, tanto religioso quanto
laico. Apesar de inicialmente algumas línguas indígenas terem sido usadas como línguas francas e/ou
línguas gerais (seção 6.2.3), gradualmente elas foram sendo substituídas pelas línguas europeias. A
propagação da fé cristã e o uso da conversão como forma de “pacificar” os povos indígenas mais
resistentes à colonização também contribuíram para a extinção de muitas línguas por meio da con-
versão e ensino religioso, da imposição de uma única língua nos aldeamentos, e da violência moral,
educacional e cultural aos povos indígenas (ver Mufwene (2001) para uma discussão sobre tipos de
colonização e seus impactos na diversidade linguística).
Não existe, hoje, uma realidade indígena que seja alheia ao processo colonizador. Se o grau e o
tempo do impacto foram diferentes de acordo com a história da dominação europeia e dos estados
nacionais em diferentes regiões, todos foram afetados, mesmo aquelas que permaneceram até recen-
temente como zonas de refúgio para grupos indígenas isolados, de recém contato ou isolamento vo-
luntário. Para entendermos de forma mais concreta como a colonização produziu esses resultados,

41
vamos conhecer um pouco sobre a história social de algumas de línguas das famílias Aruák e Tupi,
famílias cujas línguas estão em contato com os europeus desde o “ano zero” da colonização. Muitos
povos Aruák e Tupí estavam assentados ao longo de posições geográficas privilegiadas, vivendo em
grandes comunidades próximas aos principais cursos d’água e participando de trocas comerciais e
culturais com diversos outros povos das regiões onde estavam assentados. Por essas razões, se alguns
se tornaram inicialmente aliados de uma ou outra nação europeia, foram um dos principais e primeiros
alvos de epidemias, guerras, escravização e cristianização.

Os Taíno na colonização inicial do Caribe


Cristóvão Colombo aportou em outubro de 1492 d.C. no mar do Caribe, tendo entrado primeiramente
em contato com povos viriam a ser conhecidos como os Taíno, os quais dominavam a maior parte
das Grandes Antilhas (Bahamas, Cuba, Hispaniola, Jamaica e Porto Rico). Com base nos registros
históricos e arqueológicos, sabemos que os Taínos falavam uma ou até duas línguas Aruák distintas,
tinham uma sociedade complexa com importantes divisões internas e hierarquia social, somando cen-
tenas de milhares de indivíduos, e articulados em redes comerciais que se estendiam pelo Caribe e
América do Sul (Rouse, 1993). Foram com os Taínos que os espanhóis aprenderam pela primeira vez
sobre diversos produtos difundidos hoje no mundo todo, como milho, mandioca, bata doce, feijão,
amendoim, abóbora, goiaba, abacaxi, tabaco, borracha, canoas e redes para dormir. No português,
palavras como “tabaco”, “canoa”, “cacique”, “canibal”, “furacão” e “savana” são empréstimos lin-
guísticos cuja fonte original era a língua Taíno.
Chamou a atenção de Colombo os ornamentos em guanin (uma liga metálica feita de ouro,
prata e cobre) que muitos Taíno portavam. Outros pontos que chamaram a atenção do navegador foi
que os Taíno pareciam que “dariam servos bons e habilidosos, pois repetem muito rapidamente tudo
o que lhes dizemos” e que “facilmente tornar-se-iam cristãos, pois parecem não ter religião”. Co-
lombo partiu levando consigo seis Taínos para que aprendessem o espanhol, e voltou em 1494 com
17 barcos e 1500 colonos. Os primeiros assentamentos espanhóis tinham poucos recursos e sobrevi-
viam de pilhagens dos Taíno. Uma das estratégias de resistência dos indígenas era de abandonar suas
vilas, queimar suas roças e enveredar para o centro do mato, com a esperança de que assim os espa-
nhóis não encontrariam nada para comer e fossem embora. Com a chegada crescente de colonos, e
um interesse específico da coroa espanhola na mineração, a ordem eram dissolver a organização po-
lítica e social dos Taíno e tomar seus territórios para que se tornassem produtivos para a empresa
colonial. Depois de uma primeira rebelião em 1495, os espanhóis passaram a escravizar os grupos
indígenas considerados hostis. A ilha de Hispaniola foi tomada após uma grande traição dos espanhóis
que atraíram os Taíno para celebrar um acordo de paz, apenas depois para eliminá-los numa embos-
cada. Esse método de mentiras e traições teria sido usado sempre que oportuno pelos europeus na
colonização das Américas, mais notadamente na destruição do Império Inca e Azteca, por exemplo.
O tratamento para os grupos Taíno que se rendiam e se aliavam aos espanhóis não foi muito
melhor. O sistema de encomiendas instituiu o trabalho forçado durante 6 a 8 meses por ano, o que
tornava impraticável a agricultura e a vida nas comunidades indígenas. Devido ao sistema de enco-
miendas, guerras e epidemias, em 1514, a população Taíno adulta estava em 22 mil pessoas, e muitas
mulheres indígenas estavam casadas com os espanhóis. Em 1524 já havia mais africanos escravizados
trazidos ao Caribe do que indígenas, e a existência de aldeias ou outra forma de vida dos Taíno,
separada do sistema colonial, já não mais existia. A partir daí, apenas 30 anos desde o início da colo-
nização, os Taínos deixam de figurar nos registros coloniais como um contingente populacional “re-
levante” para a empresa colonial.

Os Manao e outros povos Aruák na colonização da Amazônia


Antes de os portugueses fundarem a cidade de Belém em 1616, havia já vários povos indígenas que
viviam e comerciavam drogas do sertão com holandeses, ingleses e franceses na Amazônia. Os por-
tugueses trataram de expulsar as outras nações europeias e a perseguir os povos indígenas que co-
merciavam com elas. Os holandeses se estabelecem definitivamente no atual território da Guiana e
Suriname, e os franceses, na atual Guiana Francesa. Para garantir a rentabilidade da colônia, as nações

42
europeias recorrem à mão de obra indígena obtida por meio de guerras contra grupos inimigos e pelo
comércio de escravos com povos aliados. Ao mesmo tempo, as sociedades indígenas amazônicas
passaram a disputar entre si o comércio com os europeus, principalmente o acesso a instrumentos de
metal como facas, facões, machados, panelas, armas de fogo, tecidos, etc. Isso gerou uma epidemia
de guerras inter e intratribais que se alastraram pela Amazônia até meados do século XIX.
Os três principais povos Aruák localizados no baixo curso do rio Amazonas eram: os Aruã,
que viviam na Ilha de Marajó, na entrada do rio Amazonas; os Aroaqui10, encontrados no baixo Rio
Negro e no curso central do Amazonas, e os Manao, encontrados no baixo e médio Rio Negro. Os
Aruã estiveram inicialmente aliados aos holandeses na primeira metade do século XVII. Em 1654, os
portugueses promoveram guerras justas contra os Aruã, o que os dizimou quase por completo, tendo
os sobreviventes migrado para o lado da Guiana Francesa, onde encontraram refúgio com outros
povos Aruák. Os Aroaqui aceitaram em 1657 receber em seu território os portugueses para que fos-
sem convertidos ao cristianismo e para comercializar escravos capturados em outras nações inimigas.
Pouco depois, os portugueses começaram a escravizar os próprios Aroaqui, que se rebelaram, inici-
ando um longo período de guerra contra os portugueses. Perseguidos em seus territórios e atacando
os assentamentos portugueses quando conseguiam, os Aroaqui resistiram até meados do século XIX.
Pouco a pouco foram perdendo a guerra. A última notícia que temos deles vem de 1880. A maior
parte do grupo morreu ou foi incorporada aos assentamentos coloniais, enquanto uma parcela da po-
pulação parece ter se refugiado nas cabeceiras do rio Uatumã, um afluente da margem esquerda do
rio Amazonas (Ramirez, 2020).
Os Manao foram mencionados pelos portugueses pela primeira vez em 1639. Até o momento
inicial do contato, eles controlavam boa parte do comércio de ouro, raladores de mandioca, redes,
escudos, bordunas, etc., nas rotas comerciais que interconectavam a Amazônia Central com os Andes
e a região das Guianas. Usando essas mesmas rotas, eles também começaram a comercializar escravos
em troca de ferramentas de metal, armas e tecidos dos portugueses e holandeses. Mais de cem anos
após a chegada dos portugueses em Belém, muitos grupos Manao estavam organizados numa grande
confederação multiétnica que resistia à intensificação da colonização portuguesa na Amazônia Cen-
tral. A confederação dos Manao foi derrotada em 1727, e o grande cacique Ajuricaba – o então líder
da confederação – foi aprisionado. Numa última emboscada dos Manao, Ajuricaba – mesmo acorren-
tado – conseguiu pular da embarcação onde estava sendo levado, preferindo se afogar do que ser
levado pelos portugueses. Depois desse episódio, alguns Manao passaram a trabalhar para os portu-
gueses, obtendo escravos na região das Guianas e trazendo-os para o baixo Amazonas; outros segui-
ram resistindo contra os portugueses até 1757, quando uma última investida Manao foi derrotada. O
último registro dos remanescentes Manao foi feito por Von Martius em 1819 no Alto Rio Negro
(Métraux, 1940).

Os Tupí na América Portuguesa


No início da colonização, a costa brasileira estava repleta de povos que falavam uma língua da família
Tupí-Guaraní, desde a foz do rio Amazonas até o Rio Grande do Sul. O Guaraní era falado ao sul de
São Paulo e o Tupí (ou Tupinambá) era falado nas demais regiões. Os Tupinambá do sul da Bahia
foram os que primeiramente encontraram a frota portuguesa de Pedro Alvares Cabral em 1500. Na
Amazônia, na colônia do Grão-Pará e Maranhão, os portugueses também vão encontrar inicialmente
uma população de Tupinambás. Havia outros povos, como vimos para povos da foz do Amazonas, e
os poucos enclaves dos chamados povos Tapuya como os Tremembé que vivem hoje no Ceará, os
Goitacá (já extintos) e os Aymoré no Espírito Santo, também conhecidos como Botocudos ou Krenak,
falantes de uma língua da família Macro-Jê, e que resistiram a colonização de seus territórios até
meados do século XIX.
A exploração da costa brasileira foi duramente disputada por portugueses e franceses nas dé-
cadas iniciais da colonização. Como muitos grupos Tupí também eram inimigos entre si, criou-se um

10
Também chamados de Aruák ou Arawak, mas não confundir com os Lokono, povo que vive nas Guianas, e que também
é eventualmente chamado de Aruák ou Arawak.

43
cenário para alianças e guerras no início da colonização. A mais conhecida delas foi a Confederação
dos Tamoios, em que Tupiniquins e portugueses (católicos) se aliaram para enfrentar os Tupinambás
e os franceses (calvinistas). O desfecho veio com a vitória dos portugueses. Aos Tupí aliados, eles
“concederam” terras e o cristianismo. Já aos derrotados, continuaram sendo perseguidos e extermi-
nados, com alguns eventualmente cansando de resistir e se fixando nos aldeamentos coloniais. Os
Tupiniquim e Tupinambá seguem, hoje em dia, como um grupo étnico do litoral do Espírito Santo e
Sul da Bahia, porém suas línguas já não mais são faladas correntemente em suas aldeias.
Durante os primeiros séculos, as línguas Tupí foram usadas como o principal meio de comu-
nicação da colonização portuguesa, tanto por indígenas, mestiços quanto por europeus. Isso ocorreu
porque os primeiros assentamentos coloniais eram totalmente dependentes dos povos indígenas, in-
clusive para sua reprodução física. Logo as famílias do primeiro século da colonização eram inicial-
mente formadas por casamentos interétnicos entre europeus e mulheres indígenas, de modo que as
mães da maioria da população colonial – “indígenas aldeados” e caboclos (mestiços) – falavam Tupi.
Posteriormente, quando a colonização tornou as mulheres indígenas – antes esposas – em escravas,
as amas de leite (mulheres que tomavam conta dos filhos dos colonos considerados cidadãos) conti-
nuaram exercendo esse papel (Barros, 2010) . Além disso, a coroa visava um maior pragmatismo na
gestão da colônia de modo que, inicialmente, incentivou o uso e a difusão da língua Tupí. Por mais
de dois séculos, os bandeirantes contribuíram para a criação de uma população mestiça e para levar
o Tupí a regiões do Brasil e de outros países vizinhos onde nunca houve falantes dessa língua. A
igreja usou o Tupí na catequese e na administração de aldeamentos que serviram para difundir o uso
da fé e o monolinguismo para populações que não eram falantes de Tupí.
A substituição do Tupí pelo português ocorreu logo cedo na colonização do Nordeste brasi-
leiro, onde o contingente demográfico de colonos europeus e africanos escravizados aumentou rapi-
damente. Porém, em São Vicente (São Paulo) e no Grão-Pará e Maranhão (Amazônia) tivemos o uso
continuado da língua Tupí, dando origem às chamadas Língua Geral Paulista e Língua Geral Ama-
zônica, as quais tiveram como base os dialetos Tupiniquim e Tupinambá, respectivamente. O declínio
das línguas gerais ocorre no início e em meados do século XIX para a Língua Geral Paulista e Ama-
zônica, respectivamente. Nos primeiros povoamentos do Brasil Colônia entre 1538-1600, a população
indígena “aldeada” (i.e. integrada à empreitada colonial) somava 50% de toda a população brasileira
(descontando os números de indígenas não recenseados por não viverem junto aos povoamentos co-
loniais). Já em 1700, o número de indígenas cai para apenas 10% da população e para apenas 2% no
final do Império em 1890 (Lobo, 2001). Tal processo demográfico se repetiu em todos os assenta-
mentos coloniais ao longo dos séculos, ainda que com ritmos e intensidades diferentes. Está claro, no
entanto, que é um dos principais responsáveis pela substituição do uso da língua Tupí pelo português.
Outro fator que contribui para esse processo foi o Diretório Geral dos Índios de 1757, emitido pelo
Marquês de Pombal, que, entre outras coisas, proibia o uso das línguas indígenas nos aldeamentos
coloniais. A repressão à revolta da Cabanagem no Grão-Pará e Maranhão, já depois da independência
em 1840, combinado com o aumento da população não-indígena também contribuíram para o declínio
das línguas gerais. Apenas a Língua Geral Amazônica conseguiu resistir, sendo hoje em dia conhecida
como Nheengatu e falada por povos Aruák do Alto Rio Negro, como os Baré, Baniwa e Warekena
(Freire, 2011).
O Brasil poderia ter se tornado um país bilíngue com português e Tupí como línguas coofici-
ais? Difícil dizer. De todos os modos, é trágica sua história. Se num primeiro período a política colo-
nial estimulou o uso das línguas gerais a ponto de muitas outras línguas indígenas terem sido extintas,
no final do período colonial e no início do Império, as línguas gerais acabam sendo vítimas dessa
política estatal, quando são definitivamente suplantadas pelo português como a língua da população
não indígena da maior parte do país (para mais detalhes sobre as línguas gerais no Brasil e na América
Latina, ver seção 6.2.3).

44
2 Para o conhecimento da diversidade linguística na América Indígena

Vamos agora conhecer a diversidade linguística da América Indígena mais profundamente. Começa-
mos com a definição do que entendemos por diversidade linguística. Em seguida, faremos um grande
panorama sobre a diversidade macrolinguística nas Américas e no Brasil, comparando-os com o resto
do globo, destacando suas características internas desde um ponto de vista geográfico e demográfico.
Em seguida, exploraremos as principais teorias e modelos que tentara explicar como teria se dado o
processo de diversificação linguística nas Américas.

2.1 Conceito de Diversidade Linguística


A ideia de diversidade linguística passa pelo reconhecimento de que as sociedades humanas são lin-
guisticamente plurais. O mundo está repleto de famílias linguísticas, línguas, dialetos, sotaques e
muitas outras formas de se usar uma mesma língua. Cada grupo humano precisa saber lidar com isso
a partir de dinâmicas que criam, sustentam ou diminuem essa diversidade. Assim as línguas são re-
gistros vastos e irreprodutíveis da organização social, dos conhecimentos, das formas de ver e de
manejar o mundo, resultantes da experiência de milhares de gerações ao longo da história. Por isso,
quando falamos de diversidade linguística na América Indígena, estamos nos referindo, antes de tudo,
a um bem cultural e a um ativo político dos próprios povos indígenas que estão e chegaram nas Amé-
ricas há mais de 15 mil anos. Ao mesmo tempo, estamos nos referindo a uma diversidade que é atual
e, ainda que ameaçada, tem contribuído e pode contribuir para as sociedades humanas como um todo.
Assim, partimos do princípio de que há tanto um sentido político quanto um valor inerente e universal
sobre o trabalho de investigação, preservação e promoção da diversidade linguística da América in-
dígena.
Uma primeira perspectiva que trabalhamos é com a noção de diversidade macrolinguística,
focando nos grandes agrupamentos como línguas, famílias linguísticas e regiões multilíngues, no-
tando sua distribuição e variação no espaço e no tempo. Essa visão é reminiscente das abordagens
macroecológicas sobre a diversidade linguística, que definem a diversidade linguística a partir das
seguintes dimensões (Gavin et al., 2013; Nettle, 1998):
§ Diversidade de línguas: número de línguas ou dialetos numa dada região ou família linguística
§ Diversidade filogenética: número de famílias linguísticas e seus subgrupos

Um olhar sobre unidades como línguas, dialetos e famílias linguísticas é complementado por pers-
pectiva microlinguística, que procura analisar a diversidade dos sistemas linguísticos. Nesse sentido,
podemos falar de uma outra dimensão da diversidade linguística, a diversidade tipológica ou estrutu-
ral, conforme definida abaixo e abordada, sobretudo, no capítulo 4:
§ Diversidade tipológica ou estrutural: variação entre línguas e famílias linguísticas de elementos
fonético-fonológicos, lexicais, semânticos, morfossintáticos, discursivos, etc.

A articulação entre a diversidade macro e microlinguística, bem como sua triangulação com
a sociedade, cultura e história são parte de um olhar que chamamos – num sentido amplo – de socio-
linguístico. Esse olhar procurar analisar a relação entre as dimensões macro e microlinguísticas com
aspectos sociais e culturais, como, por exemplo, as dinâmicas de usos de diferentes línguas e varie-
dades numa sociedade, os papéis de línguas e variedades para as relações interétnicas, bem como o
impacto das relações sociais, culturais e históricas em processos de mudanças linguísticas, diversifi-
cação ou perda da diversidade de línguas, filogenética e/ou tipológica.

2.2 Panorama da Diversidade Macrolinguística na América Indígena


Nas próximas seções, vamos traçar um panorama da diversidade macrolinguística das Américas. Va-
mos usar diferentes tipos de informações com o intuito de introduzir ao leitor as fontes mais impor-
tantes para a caracterização da diversidade macrolinguística, bem como para destacar como a tarefa
de mensurar a diversidade linguística é complexa, requer um trabalho difícil de catalogação e pres-
supõe questões conceituais de fundo, como, por exemplo, se estamos tratando de línguas diferentes

45
ou de dialetos de uma mesma língua, e se estamos diante de uma língua que ainda segue sendo falada
ou já extinta. Voltaremos a discutir essas questões mais profundamente nos capítulos 3 e 7.

2.2.1 Diversidade de línguas e famílias linguísticas nas Américas e no mundo


Segundo Hammarström (2016), existem 6409 línguas faladas atualmente no mundo. Elas estão agru-
padas em cerca de 400 famílias linguísticas. As Américas abrigam cerca de 180 famílias linguísticas
segundo seus dados, e algo em torno de 1000 línguas indígenas.11 Como base nesses dados, podemos
dizer que as Américas possuem 42% do total de famílias linguísticas e 15% do total de línguas ainda
faladas no mundo. A altíssima diversidade de famílias linguísticas sugere um aparente paradoxo com
um número relativamente baixo de línguas comparado a outras macrorregiões do globo.
Tabela 1: número de famílias linguísticas e línguas por macrorregião do globo (dados de Hammars-
tröm (2016))
Macrorregião Famílias Línguas
Américas 180 42.5% 1048 16.4%
Oceania e Pacífico 159 37.5% 2089 32.6%
África 50 11.7% 1845 28.8%
Eurásia 35 8.3% 1423 22.2%
Total 424 100% 6405 100%

As Américas são uma macrorregião com a maior diversidade filogenética do planeta, seguida
da região formada pela Oceania e o Oceano Pacífico, onde encontramos 157 famílias linguísticas. Na
África, encontramos 50 famílias, enquanto na Eurásia (a massa de terra que agrupa toda a Europa e
Ásia) encontramos 35 famílias linguísticas. As Américas também se destacam pela alta quantidade
de línguas isoladas. Na contagem de Lyle Campbell (2017), são 153 línguas isoladas no mundo, o
que representaria cerca de 36% do total de todas as famílias linguísticas que temos no globo. Dessas,
segundo Campbell, 79, ou 51% das línguas isoladas, encontram-se nas Américas, sendo 53 na Amé-
rica do Sul e 26 na América do Norte. A América do Sul, sozinha, possui um terço de todas as línguas
isoladas do mundo.
Num ranking global, as cinco maiores famílias linguísticas do mundo se concentram no velho
mundo, ou seja, na África, Europa e na Ásia. Podemos chamá-las de hiperfamílias, uma vez que
concentram mais de 30% de todas as línguas de sua macrorregião. A maior família linguística do
mundo é a família Niger-Congo com 1433 línguas, as quais incluem línguas da família Bantu e o
Yorubá, que são línguas africanas com bastante importância cultural para os brasileiros. Notemos que
de todas as línguas da África, mais de 70% pertencem a uma única família. A segunda maior família
linguística é a Austronésia que tem 1277 línguas, correspondendo a mais de 60% de todas as línguas
da Oceania e Pacífico. A terceira é a família Indo-Europeia com 589 línguas, distribuídas por toda a
Eurásia e com línguas que se expandiram por todo mundo na história recente da humanidade, como
Inglês, Holandês, Francês, Russo, Português e Espanhol. Não há o fenômeno de hiperfamílias nas
Américas como em outras macrorregiões do mundo. Apenas 5 famílias americanas estão entre as 20
maiores famílias do mundo com relação ao número de línguas.12 São elas:
§ em 9º lugar no ranking global, família Otomangue (México) com cerca de 100 línguas;
§ as famílias Aruák, Tupi e Uto-Azteca ocupando o 12º ao 14º lugar com cerca de 70 línguas cada
§ a família Na-Denê com cerca de 45 línguas em 20º lugar.

11
Vamos partir desses números como referência para uma comparação global, mas no capítulo 5 revisamos o número de
línguas e famílias linguísticas.
12
Dados extraídos de do Glottolog (Hammarström et al. (2022), exceto os da família Otomangue que foram modificados
com base em Campbell (1997).

46
Olhando exclusivamente para as Américas, vemos na Tabela 2 que 89% das famílias linguísticas são
compostas por línguas isoladas e famílias pequenas com no máximo 10 línguas. Também se vê na
Tabela 2 que 14 famílias classificadas como grandes concentram 70% de todas as línguas das Amé-
ricas. Entra essas, destacamos três na América do Norte – Na-Dené, Álgica, Uto-Azteca – uma na
Mesoamérica – a família Otomangue – e quatro na América do Sul – Tupi, Aruák, Macro-Jê, Karib.
Tabela 2: tamanhos de famílias linguísticas nas Américas segundo o número de línguas (calculado
a partir dos dados do Ethnologue (Simons & Fennig 2018))
Tamanho Número de línguas Total de famílias Total de línguas
Línguas isoladas 1 108 (57%) 108 (10%)
Famílias Pequenas 2 a 10 62 (32%) 238 (21%)
Famílias Médias 11 a 20 7 (3%) 93 (8%)
Famílias Grandes 21 a 100 14 (7%) 773 (70%)
Total 191 1111

Logo, o alto número de famílias linguísticas, línguas isoladas e o baixo número de línguas nas Amé-
ricas parecem estar correlacionados com um outro fato: as famílias linguísticas das Américas são
relativamente pequenas, contendo poucas línguas.
As Américas são também a macrorregião com a diversidade linguística mais ameaçada. Pri-
meiramente, como vemos na Tabela 3, totalizam-se 382 línguas extintas (sendo 198 na América do
Sul e 184 na América Central e do Norte), o que equivale a praticamente um terço de todas as línguas
historicamente atestadas no continente americano e 40% das línguas extintas no mundo. No outro
lado da escala de vitalidade linguística, as Américas possuem apenas 103 ou 8% de suas línguas não-
ameaçadas. Isso mostra que a situação de vitalidade da diversidade linguística nas Américas está bem
fragilizada, como discutimos mais profundamente no capítulo 7.
Tabela 3: Línguas extintas, ameaçadas e não-ameaçadas entres as macrorregiões do globo (Ham-
marström et al., 2022)
Línguas Línguas Línguas
Macrorregião Total
Extintas Ameaçadas Não-Ameaçadas
Américas 382 794 103 1279
Oceania e Pacífico 290 1392 796 2478
África 88 788 1329 2205
Eurásia 202 1184 369 1755
Total 962 2912 2697 6841

Em resumo, podemos dizer que as Américas são caracterizadas por um alto número de famí-
lias linguísticas, ainda que tenham um número proporcionalmente menor de línguas quando compa-
rada a outras macrorregiões do globo. É a macrorregião com a diversidade linguística mais ameaçada.
As famílias linguísticas são, em sua grande maioria, de tamanho pequeno ou de línguas isoladas, não
havendo por aqui as chamadas hiperfamílias.

2.2.2 Geolinguística da América Indígena: línguas, famílias e regiões multilíngues


O mapa na Figura 3 mostra as cerca de mil línguas indígenas das Américas, dividindo-as entre as que
ainda são faladas e as que não são mais faladas, sejam elas extintas ou silenciadas, as quais somam
quase 300 línguas ou um terço de todas as línguas conhecidas nas Américas (para uma discussão
sobre o que seria uma língua extinta e silenciada, ver capítulo 7).
Figura 3: Distribuição geográfica de línguas faladas, silenciadas ou extintas nas Américas

47
Comecemos notando que a distribuição geográfica das línguas silenciadas ou extintas reflete
as rotas e zonas onde a colonização foi mais antiga e/ou intensa (ver seção 1.4.3). Notemos também
que há áreas com maior concentração de línguas do que outras. Podemos visualizar melhor esse fe-
nômeno com um mapa de calor que representa em cores mais intensas áreas com maior densidade
linguística, ou seja, áreas onde há mais línguas por quilômetro quadrado. Vejamos isso na Figura 4,
onde se destacam com cores mais escuras as zonas com maior densidade linguística.
Figura 4: Mapas com zonas de calor representando regiões com maior densidade linguística nas
Américas

As principais áreas destacadas no mapa da Figura 4 nos permitem uma primeira observação
do que chamamos de regiões multilíngues, que são áreas com a presença de três ou mais línguas,
estruturadas por meio por trocas sociais, culturais, políticas, econômicas e linguísticas entre povos
falantes das diferentes línguas (ver seção 1.3.4 e 6.3 para mais detalhes). Muitas das áreas com alta
densidade linguística possuem “sociedades multilíngues” cujas formas de organização social e usos
linguísticos criaram e sustentaram uma alta diversidade linguística ao longo do tempo. O multilin-
guismo dessas zonas geográficas foi produzido ao longo dos séculos por sociedades que se baseavam
na complementaridade e diferença entre si para criar um conjunto comum a partir de relações

48
interétnicas e multilíngues, estabelecendo relações de comércio, intercasamentos, cooperação polí-
tica, econômica e religiosa, bem como a guerra e captura de pessoas. Em contraste com a história
recente da colonização, as regiões multilíngues das Américas possuem uma longa duração. Em muitas
dessas zonas, encontramos evidências arqueológicas de uma presença humana ininterrupta de mais
de 10 mil anos.
Além das regiões multilíngues, a geolingüística das Américas caracteriza-se por 10 famílias
que são geograficamente bem mais extensas do que as demais. O mapa da Figura 5 destaca essas 10
famílias, além de representar a área das demais famílias linguísticas do continente, cuja imensa mai-
oria, cerca de 160 das famílias, possui uma distribuição mais limitada. As 10 famílias mais extensas
estão divididas exatamente em 5 na América do Sul (sendo 4 nas Terras Baixas (Aruák, Tupi, Macro-
Jê, Karib) e uma nos Andes (Quechua)) e 5 na América do Norte (sendo Inuit-Yupik-Unangan (Es-
kimo-Aleuta) e Na-Denê com distribuição mais ao norte e a noroeste, as famílias Álgica e Sioux com
predominância nas planícies centrais e presença no Nordeste dos EUA e Canadá, enquanto a família
Uto-Azteca se estende desde os desertos de Nevada nos EUA à América Central (ver capítulo 5 sobre
as famílias linguísticas das Américas).
Figura 5: Distribuição das 10 famílias linguísticas mais extensas das Américas

Os territórios dessas famílias combinam zonas de distribuição mais contínuas e zonas mais
descontínuas, o que resulta do histórico de migrações, deslocamentos e mudanças linguístico-cultu-
rais ao longo dos séculos. Entre as 10 famílias com maior extensão territorial, todas elas, com exceção
de Eskimo-Aleuta, cruzam mais de uma área etnográfica (ver mapa na Figura 2). As famílias Aruák,
Tupi e Na-Denê parecem ser as que mais cruzam essas fronteiras culturais. Ainda assim, para muitas
áreas, podemos notar um certo predomínio de certas famílias linguísticas, como resumido na Tabela
4.
Tabela 4: 10 maiores famílias linguísticas e áreas etnográfica de sua maior predominância
Família Regiões Predominantes Regiões Secundárias
Inuit-Yupik-Unangan Círculo Polar (sem região secundária)

49
Álgica Nordeste da América do Norte Planícies da América do Norte
Na-Denê Subártico Sudoeste da América do Norte
Amazônia Meridional,
Tupí Leste e Sudeste do Brasil
Central e Oriental
Macro-Jê Brasil Central Sudeste e Sul do Brasil
Noroeste Amazônico, Amazônia Ocidental
Aruák
Amazônia Ocidental, Caribe Nordeste Amazônico
Uto-Azteca Sudoeste da América do Norte Mesoamérica
Sioux Planícies da América do Norte Nordeste da América do Norte
Karib Nordeste Amazônico Amazônia Meridional
Quechua Andes Centrais Andes Setentrionais e Meridionais

A diversidade macrolinguística ameríndia combina algumas famílias de ampla distribuição


geográfica, com famílias com distribuição mais restrita, bem como uma série de regiões com alta
densidade linguística e filogenética. Os tipos de dinâmicas socioculturais que geraram diversidade
em escalas locais e regionais, seja em contextos de contato entre línguas bem como na diversificação
de uma família linguística por um vasto território não estão dissociadas entre si. De fato, sob um
ponto de vista arqueológico e etnológico, temos vários elementos que sugerem uma integração entre
as diferentes regiões culturais e multilíngues das Américas. Essas relações de amplo alcance se base-
avam no encadeamento de laços e trocas entre regiões e grupos vizinhos, e tinham diferentes soluções
para transpor as fronteiras linguísticas e culturais, como veremos ao longo deste livro.

2.2.3 Demografia linguística das populações e povos falantes de línguas indígenas


O total de pessoas indígenas nas Américas está próximo a 33 milhões de indivíduos. Já a população
de falantes de línguas indígenas estaria entre cerca de 19 e 25 milhões de pessoas, o que equivale a
66% da população indígena, mas apenas 0,02% de toda a população das Américas.13 Isso mostra que
há cerca de 10 milhões de pessoas indígenas que não mais usam a língua de seu povo. Enquanto a
noção do que é um “falante” precisa ser mais bem discutida – como faremos no capítulo 7 – isso
mostra que vivemos um momento crítico com relação à sobrevivência das línguas indígenas.
A população indígena no Brasil superou em 2022 a marca de 1,5 milhão de pessoas. Foi um
número comemorado por aqueles que acompanham as tendências demográficas das populações indí-
genas. Na década de 1980, essa população chegou a seu patamar mais baixo, com 294 mil indivíduos,
o equivalente a 0,002% da população brasileira de então. Segundo Melatti (2007), muitos acreditavam
que os povos indígenas iriam desaparecer, fadados à assimilação inexorável com a sociedade não-
indígena. No entanto, Darcy Ribeiro teria mostrado que o desaparecimento físico de grande parte da
população indígena não seria fruto de perda da língua e assimilação cultural, mas às guerras, à escra-
vidão, à desorganização de suas sociedades e, sobretudo, à dizimação pelas moléstias contagiosas
contra as quais não possuíam resistência. Após 1980, a população indígena retomou seu crescimento,
como vemos na Tabela 5.
Tabela 5: Evolução da população indígena no Brasil
IBGE 1991 IBGE 2000 IBGE 2010
População Brasileira 146.815.790 169.872.856 190.755.799
Não-indígena 145.986.780 167.932.053 189.931.228
Indígena 294.131 734.127 896.917
Proporção Indígena 0,002% 0,004% 0,004%

13
Dados populacionais com base em Sichra (2009) para toda a América Latina (população indígena: 28,8 milhões), e os
censos nacionais dos EUA de 2006-2010 (2.7 milhões) e Canadá (1,6 milhões). Número de falantes ELCat (o Catalogue
of Endangered Languages; ver www.endangeredlanguages.com) e Ethnologue (Simons & Fennig, 2018).

50
Se hoje a população indígena tem crescido mais rapidamente do que no final do século XX, a
população de falantes de línguas indígenas tem diminuído consideravelmente. Enquanto há línguas
indígenas com centenas de milhares ou milhões de falantes em países onde temos um contingente
populacional indígena representativo, há uma grande quantidade de línguas que possuem apenas al-
gumas dezenas ou até menos falantes do que isso. A Tabela 6 traz um resumo dos dados populacionais
com base em duas principais fontes de informação.
Tabela 6: Perfil populacional das línguas indígenas (Simons & Fennig, 2018)
Contingente de falantes Número de línguas
Mais de 1 milhão de falantes 6
Entre 1 milhão e 100 mil 36
Entre 100 mil e 10 mil 151
Entre 10 mil e 1 mil 286
Entre 1 mil e 100 194
Entre 100 e 10 87
Entre 10 e 1 54
Total 814

Chama a atenção, primeiramente, que cerca de 20% das línguas das Américas possuem menos
de 100 falantes, sendo que 54 delas não chegam a 10 falantes. Isso representa que em pouquíssimo
tempo poderemos ver essas línguas deixaram de ser faladas. Olhando agora para a faixa de cima, a
língua indígena com maior número de falantes é o Guarani Paraguaio, que está nas Terras Baixas da
América do Sul, e é língua cooficial da República do Paraguai e falada por cerca de 4,5 milhões de
pessoas. Ela é uma exceção entre as línguas das Terras Baixas da América do Sul, que em geral não
ultrapassam 50 mil falantes. As línguas com mais de um milhão de falantes se encontram, principal-
mente, nos Andes e na Mesoamérica, onde estão, de fato, as maiores populações indígenas. Nos An-
des, encontramos a língua Quechua de Cusco, com 1,5 milhões de falantes, e o Quechua do Sul falado
por cerca de 2 milhões de pessoas na Bolívia, Argentina e Chile. Temos também o Aymara (ou Aru)
falado no Peru e Chile com algo em torno de 2 milhões de falantes. Na América Central e sul do
México, encontramos as línguas Mayas Q’eqchi’ e K’iche’, cada uma com cerca de 1 milhão de
falantes, bem como a língua Nahua que em seu conjunto de variedades soma cerca de 1,4 milhões de
falantes. Na América do Norte, a língua com a maior população de falantes é o Navajo com cerca de
120 mil.
Como vemos, a população falante de línguas indígenas é maior nas regiões em que se forma-
ram os estados pré-colombianos nos Andes e na Mesoamérica, lugares onde ainda hoje a população
indígena forma uma parcela considerável da população total (Melatti 2007). Seguindo essa observa-
ção, podemos verificar que nessas áreas onde temos línguas e povos indígenas com grandes popula-
ções, temos também um menor número de línguas e famílias linguísticas do que em áreas com povos
e línguas com menor população, encontramos uma maior diversidade macrolinguística. Isso pode ser
observado na Tabela 7, que resume dados para as principais regiões multilíngues na América Latina.
Podemos observar que a Amazônia e o Chaco & Cone Sul são as áreas com menor população, mas
maior número de povos e de línguas, seguidas por Mesoamérica e pelos Andes.
Tabela 7: Comparação entre regiões com relação à população indígena, número de povos e número
de línguas (Sichra 2009)
Região População Indígena Povos Línguas
Amazônia 1,4 milhões 316 297
Mesoamérica 12,5 milhões 77 75
Andes 11,5 milhões 36 18
Gran Chaco & Cone Sul 500 mil 35 31

51
Esses dados mostram que a diversidade linguística está diretamente relacionada com a maneira que
os povos se organizam social e culturalmente entre si. Vamos explorar essa questão mais afundo na
seção 1.3

2.2.4 Panorama sobre o Brasil indígena: povos, línguas e famílias linguísticas


O Brasil possui cerca de 30 famílias linguísticas, pouco menos de 200 línguas indígenas (o que re-
presenta 15% da diversidade filogenética e 20% da diversidade de línguas indígenas nas Américas) e
algo próximo a 300 povos indígenas, totalizando pouco mais de 1,5 milhão de indivíduos que se
declararam indígena no Censo do IBGE de 2022. Esses números, no entanto, não vêm sem problemas.
Vamos a seguir explorar as principais fontes de dados para justificar a estimativa que fizemos na
primeira linha desta seção, ao mesmo tempo em que discutiremos os problemas metodológicos por
trás da controvérsia sobre o número de línguas e famílias linguísticas no Brasil indígena.
O Censo do IBGE de 2010 perguntou para pessoas de 5 anos ou mais que se declararam
indígenas quais as línguas faladas em seu domicílio. Os resultados apresentados revelaram um total
de 274 línguas indígenas no Brasil, faladas por 305 povos e uma população de 896 mil pessoas, das
quais 37,5% ainda falavam uma língua indígena. Cerca de 122 línguas possuem no máximo 100 fa-
lantes. Acima de 10 mil falantes temos apenas a língua Tikuna com 34 mil, o Guarani Kaiowá com
26,5 mil, o Kaingang com 22 mil, o Xavante com 13,3 mil e o Yanomam com 12,7 mil (IBGE 2010).
O número de 274 línguas divulgados pelo IBGE foi surpreendente para todos os especialistas.
Na década de 1990, Aryon Rodrigues estimou um total de “cerca de 180” línguas indígenas ainda
faladas no país (Rodrigues, 1993: 99). Pouco mais tarde, ele revisa esse número para “cerca de 200
línguas” (ver também Rodrigues, 2013). Já Denny Moore e colegas estimam que a soma de línguas
indígenas no Brasil dificilmente ultrapassa 150 (Moore et al., 2008). Uma das mais respeitadas fontes
de informações sobre povos indígenas do Brasil, a enciclopédia Povos Indígenas no Brasil contabiliza
“mais de 160 línguas e dialetos” falados por 266 povos indígenas no Brasil (Ricardo, 2023). Bases
de dados globais sobre a diversidade linguística também oferecem seus próprios números para o de-
bate: a 22ª versão de Ethnologue reporta 217 línguas indígenas no Brasil, das quais 201 ainda são
faladas (Simons & Fennig, 2018); já a base de dados Glottolog lista 255 línguas indígenas atestadas
no Brasil, sendo que 166 seriam ainda faladas (Hammarström et al., 2022). A partir de uma base de
dados online e de livre acesso do IBGE14, pudemos realizar uma reanálise dos dados do censo e
chegamos a um total de 214 línguas, não as 274 como divulgado pelo instituto, o que tonaria os dados
do IBGE não tão discrepantes com relação às estimativas dos especialistas. (Vejamos como chegamos
a esse número no Quadro 6).
Quadro 6 : Uma reanálise dos dados do censo do IBGE 2010 para as línguas indígenas
§ Pessoas indígenas reportaram pertencer a 310 etnias
§ Para 35 dessas etnias não havia pessoas que reportaram falar sua língua indígena original.
§ Isso nos leva a um número de 275 etnias que em tese ainda teriam falantes de sua língua indígena.
§ Entre essas, há um total de 61 etnias que apresentaram um ou mais falantes de suas línguas origi-
nais. Para os linguistas, trata-se ou de línguas extintas ou de línguas não-atestadas, i.e., sem re-
gistros ou dados suficientes para determinar sua materialidade (ver seção 5.3). Pode ser que ainda
haja falantes dessas línguas, mas pode ser também que os tipos de falantes existentes atualmente
não possuem um tipo de proficiência ideal para os padrões dos linguistas (ver seção 7.1.1 sobre
tipos de falantes).
§ Logo, se desconsiderarmos pelo momento essas 61 línguas, chegamos a um total de 214, o que já
não está tão longe das estimativas dos especialistas.

Com relação ao número de famílias, os dados do IBGE somam 30 famílias linguísticas no


Brasil. São sete famílias grandes, começando pela maior, a Tupí (53 línguas), seguida pela Macro-Jê

14
Ver Tabela 3195 - Pessoas indígenas de 5 anos ou mais de idade, por condição de falar língua indígena no domicílio,
condição de falar português no domicílio e o tronco linguístico, a família linguística e a etnia ou povo a que pertencem
no site do IBGE https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-demografico/demografico-2010/universo-caracteristicas-gerais-
dos-indigenas.

52
(31), depois pela família Karib (24), Aruák (19), Nambikwara (15), Pano (15) e Tukano (13). Existem
dez famílias com menos de 10 línguas: Arawá, Katukina, Txapakura, Bororo-Umutina, Guaikuru,
Samuko, Yanomami, Naduhup, Bora e Witoto. Foram 13 famílias de línguas isoladas reportadas:
Aikanã, Tikuna, Yathê (Fulniô), Kariri, Kariri-Xokó, Guató, Irántxe-Mỹky, Kanoê, Kwaza, Pirahã e
Trumai. Outras bases de dados tendem chegar em números próximos ao do IBGE: o Glottolog reporta
27 famílias de línguas indígenas no Brasil; Rodrigues (2013) fala em 22 famílias linguísticas de lín-
guas indígenas no Brasil, mas sua base de dados possui 30 famílias (os “Troncos” Tupi e Macro-Jê,
mais 11 línguas isoladas e 17 outras famílias). Moore et al. (2008) reportam 22 famílias (incluindo os
Troncos Tupi e Macro-Jê), enquanto o resultado mais destoante é do Ethnologue, com um total de 42
famílias (sendo 23 línguas isoladas).
Em resumo, os números de línguas que discutimos acima mostram um intervalo bastante am-
plo entre o mínimo (150) e máximo (274) das estimativas. A mediana e a média entre todos esses
números é 188 e 193 línguas, respectivamente. Já o número de famílias tende a variar menos, porém
está baseado em critérios distintos que as fontes utilizam para classificar as línguas em famílias me-
nores ou maiores (ver capítulo 5 para mais detalhes).
Mas por que haveria uma discrepância entre as diferentes fontes de dados? Com relação ao
número de línguas, um dos principais problemas é que nem sempre os especialistas e outras fontes de
indicadores estão de acordo sobre o que é uma língua e o que é um dialeto ou variedade de uma
língua. Por exemplo, enquanto Rodrigues e o IBGE reportam 13 e 15 línguas Nambikwara, fontes
como Moore et al. (2008) reportam apenas 3 línguas, enquanto o Glottolog e o Ethnologue listam 6.
Outra diferença tem a ver com os métodos para se coletar essas informações. Enquanto os especialis-
tas recorrem a outros especialistas como fontes primárias de informações, dados como o do IBGE se
baseiam em autodeclarações. Com isso, o censo revelou que, para os povos indígenas, a questão foi
interpretada de diferentes maneiras, de modo que algumas pessoas reportaram falar línguas que al-
guns especialistas julgavam se tratar de dialetos de uma mesma língua, enquanto outras pessoas re-
portaram falar línguas que já estariam extintas segundo os linguistas. Por exemplo, muitos linguistas
analisariam a língua Kariri como extinta, mas ainda assim ela apareceu no censo com 12 falantes. Por
um lado, isso nos serve para questionar o que entendemos por falantes (ver seção 7.1.1). Por outro
lado, isso nos mostra que desde os povos indígenas, passando pelos censos e chegando às estimativas
dos linguistas, temos diferentes perspectivas conceituais e metodológicas para responder o que pode-
ria parecer uma questão meramente aritmética de contagem de línguas e famílias linguística.

2.3 O que cria e sustenta a diversidade linguística?


Como tamanha diversidade linguística na América Indígena foi construída ao longo do tempo? Para
começarmos a explorar essa questão fundamental, temos de entender como os processos de diversi-
ficação linguística ocorrem de modo geral. Um ponto crucial de partida é que a diversidade não é
incrementada de modo regular por um processo constante de surgimento de novas línguas ou formas
divergentes de se falar uma língua, mas há diferentes dinâmicas por trás desse processo, umas de fato
criando ou sustentando uma maior diversidade, outras reduzindo essa diversidade. Numa perspectiva
macrolinguística, processos de diversificação fazem surgir novos dialetos, línguas e famílias linguís-
ticas no tempo e no espaço. Seu contrário, a homogeneização, ocorre a partir de processos como o a
extinção de línguas. Numa escala microlinguística, a diversificação ocorre como resultado da dife-
renciação ou aumento da disparidade entre dialetos e línguas com relação a aspectos fonético-fono-
lógicos, morfossintáticos, lexicais, semânticos e discursivos, enquanto seu contrário – a convergência
– ocorre quando há um aumento da semelhança entre as línguas, dialetos e famílias linguísticas. Numa
dimensão sociolinguística, a diversidade é um reflexo dos tipos de relações sociais e culturais que
motivam e sustentam uma maior ou menor heterogeneidade de códigos utilizados enquanto repertó-
rios linguísticos de indivíduos e comunidades. Isso está resumido na Tabela 8.
Tabela 8: Mecanismos que impactam a diversidade linguística
Dimensões da Diversificação Homogeneização
Diversidade Aumento da diversidade Diminuição da diversidade

53
Sociolinguística Multilinguismo, Multilectalismo Monolinguismo, Normatização
Nascimento de novos dialetos, línguas, Extinção de línguas, Deslocamento
Macrolinguística famílias linguísticas Linguístico
Aumento das diferenças fonológicas, Convergência, Mudanças por Atrito
Micro-Linguística
gramaticais, lexicais e discursivas Linguístico

Os processos que levam à diversificação ou homogeneização linguística estão intimamente relacio-


nados com fatores culturais e extraculturais. Na busca pelas bases naturais e biológicas da linguagem
humana, é comum vermos estudos que procuram explicar certos padrões de diversidade linguística a
partir de correlações com fatores extraculturais. Elas estão baseadas em certas premissas comparti-
lhadas há muito tempo com a área da Biologia, como vemos no _:
Quadro 7: Fatores extraculturais que influenciam a diversidade linguística
Tempo: se duas línguas de uma mesma família linguística perdem totalmente o contato elas serão mais
diferentes entre si quanto mais tempo passar; por outro lado quanto maior for o tempo de contato entre
línguas diferentes mais elas tendem a se tornar semelhantes. No entanto o tempo e velocidade de mudanças
linguísticas nem sempre estão numa correlação direta como veremos.
Distância espacial: quanto maior a distância no espaço, menores as chances de contatos entre as línguas,
logo maior a chance de as línguas se diferenciarem. No entanto, é importante notar que a distância espacial
pode esconder processos de migrações ou contatos de longa distância que poderiam explicar maior simila-
ridade entre línguas distantes e maior diferença entre línguas próximas.
Topografia: regiões com condições descontínuas de ocupação humana (como montanhas e ilhas) geram
maior fragmentação, logo mais línguas e famílias linguísticas. Apesar de a topografia poder de fato impor
barreiras aos grupos humanos e suas línguas, essas barreiras podem ser transpostas por certas tecnologias,
como meios de transportes adaptados a cada ambiente (cano para rios, estradas nas montanhas, etc.).
Condições Climáticas: certos lugares possuem melhores condições climáticas do que outros para as popu-
lações humanas, logo atraem diferentes povos e favorecem seu crescimento demográfico, o que potencial-
mente pode aumentar ou sustentar uma maior diversidade linguística.

Assimetrias nas condições climáticas podem ajudar a explicar por que algumas áreas têm
maior diversidade linguística e filogenética do que outras. Por exemplo, numa escala global, estudos
como o de (Gavin et al., 2017) mostram que as línguas do mundo estão localizadas em áreas mais
próximas à linha do Equador. Na América do Sul (bem como em outras regiões do globo, ver Hua et
al. _) vemos que as zonas com maior precipitação pluviométrica são também as áreas com maior
número de línguas e famílias linguísticas. (Ver Figura do Apêndice Online 4). O que explicaria essas
correlações, se sabemos que temperatura, incidência solar e chuvas não fazem com que as línguas
literalmente brotem do solo?
Figura do Apêndice Online 4: mapas da América do Sul com dados de pluviosidade, áreas com maior
densidade de línguas e de famílias linguísticas

Uma hipótese veria uma relação indireta entre condições ambientais, crescimento populacio-
nal e diversificação linguística. Regiões com maior volume de chuvas (ou melhores condições climá-
ticas em geral) permitem maior diversidade ecológica de espécies de plantas, animais e nichos eco-
lógicos, o que permite maior concentração de diferentes populações humanas. Em tese, uma maior

54
concentração de pessoas e diferentes povos poderia permitir a existência de mais línguas. Porém,
olhemos um país como o Brasil. Neste vasto território, há mais de 200 milhões de pessoas falam
apenas o Português, e uma pequena fração que fala mais cerca de 200 línguas indígenas, outras tantas
línguas alóctones. Logo não há uma relação mecânica entre tamanho populacional para explicar uma
maior ou menor diversidade linguística.
Uma outra explicação enxerga um elo entre ecologia, subsistência, organização social e di-
versidade linguística. Ela foi formulada por Daniel Nettle como a hipótese do risco ecológico, se-
gundo a qual haverá mais línguas onde as populações humanas possam viver em grupos sociais me-
nores, o que é verdade para regiões tropicais onde os recursos são mais abundantes, ao passo que em
zonas mais temperadas onde a subsistência requer a formação de sociedades maiores, haveria menos
línguas (Nettle, 1998).
Como vemos, o meio ambiente, a demografia e as formas de subsistência são importantes
fatores para se explicar a diversificação linguística. Ao mesmo tempo, vimos que eles possuem uma
relação indireta. Antes, são as formas de organização política, social, cultural e econômica dessas
populações e suas relações entre si ao longo da história que vão influenciar o padrão de diversidade
linguística. Logo, precisamos estar atentos para um efeito em cadeia que coloca as dinâmicas socio-
linguísticas no centro da questão da diversidade linguística. Isso está ilustrado na Figura 6. Diante
disso, direcionaremos nossa discussão para alguns fatores sociais por trás de situações relacionadas
ao aumento ou diminuição da diversidade sociolinguística e macrolinguística. Como veremos, elas
estão relacionadas entre si, assim como a diversidade micro-linguística, sobre a qual falaremos mais
adiante nos capítulos _, _, e _.

Figura 6: modelo ilustrativo de uma relação causal entre condições ecológicas, demográficas, soci-
ais e alta diversidade linguística

2.3.1 Multilinguismo e Monolinguismo


Grosso modo, o multilinguismo passa pelo uso, pela circulação e/ou pela valorização de mais de uma
língua e suas variedades em uma sociedade. Podemos falar de multilinguismo a nível do indivíduo,
quando uma pessoa sabe duas ou mais línguas, sendo, portanto, uma pessoa bilíngue, trilíngue ou
plurilíngue; e podemos falar de multilinguismo na sociedade, quando mais de uma língua é usada em
diferentes espaços interações sociais. O multilectalismo, por sua vez, é caracterizado pela coexistên-
cia de múltiplas variedades e jeitos de usar uma língua em uma dada sociedade. Ele se manifesta em
diferentes dialetos, gênero-letos, falas cerimoniais, falas assoviadas, percussivas, falas entre seres
humanos e animais, seres humanos e espíritos, etc. (ver capítulo 3).
O multilinguismo tem sido caracterizado muitas vezes como uma característica do mundo
pós-colonial, em que países e grande metrópoles do mundo estão recebendo muitos povos migrantes
que trazem consigo suas línguas. Fala-se, por exemplo, que a cidade de São Paulo é um espaço mul-
tilíngue devido aos diferentes grupos sociais que migraram para lá. Existem ainda os contextos mul-
tilíngues baseados em processos sociais e culturais que não são resultado direto dessas mudanças
modernas. São as chamados situações de multilinguismo tradicional ou indígena (Lüpke et al., 2020),
ancoradas na diversidade étnica e trocas sociais, econômicas, culturais e linguísticas que existem
desde tempos anteriores à globalização. Nestes casos, o multilinguismo sempre foi a norma para a

55
maioria dos indivíduos e sociedades, ainda que a colonização e a globalização tenham induzido mui-
tas dessas áreas a realidades menos diversas ou até monolíngues. Em algumas situações de multilin-
guismo, o contato entre línguas equilibra tendências homogeneizadoras e diversificadoras, mantendo
a diversidade de linguística, bem como ativando processos de diversificação, como o surgimento de
novas línguas ou de divergência micro-linguística (ver seção 6.1.3).
O monolinguismo é uma ideologia e conjunto de práticas em que apenas uma língua é usada
e/ou valorizada pelos membros de uma sociedade. Seus efeitos são diversos, como a supressão de
todas exceto uma língua, o preconceito linguístico com os falantes de outras línguas e a extinção
dessas línguas. No Brasil, está na construção da nossa identidade como nação a ideologia de que
falamos todos o português. O paradigma de um estado monolíngue está em completa oposição aos
paradigmas indígenas centrados na diversidade e no multilinguismo. Isso não quer dizer que todos os
indivíduos e sociedades indígenas são ou eram multilíngues, mas que o multilinguismo em sociedades
indígenas era bem mais difundido do que estamos acostumados a conceber em nossas sociedades.
Em tempos atuais, algumas pessoas entendem que são mais fortes as línguas indígenas que possuem
um alto número de falantes monolíngues, ou seja, pessoas que somente falam uma língua indígena e
não o português, espanhol ou outra língua não-indígena. Isso é tomado como sinal de que as línguas
nacionais dominantes não teriam ainda avançado o bastante em certos grupos indígenas. Ainda que
entre certas sociedades indígenas o monolinguismo também existia, a julgar pelo nosso conhecimento
histórico e atual, a existência de indivíduos bi ou plurilíngues e grupos sociais com diferentes graus
de multilinguismo era a norma para a maior parte das sociedades indígenas. Assim, é provável que
muitas das situações de monolinguismo indígena – hoje valorizadas como símbolo de purismo, vir-
tude e resistência – sejam resultado da eliminação gradual do multilinguismo tradicional indígena.

2.3.2 Extinção e nascimento de línguas


A extinção de uma língua ocorre quando já não há mais pessoas que falem, saibam ou se identifiquem
com essa língua. No caminho até a extinção, temos em geral um processo de deslocamento linguís-
tico, que ocorre quando um grupo social deixa de falar sua língua em favor de uma outra língua. O
deslocamento costuma ter uma fase de obsolescência, quando de modo gradual a língua vai perdendo
espaço social e deixando de ser transmitida regularmente para as novas gerações. Assim, a língua
deixa de ser usada e passa a ser lembrada apenas pelas gerações mais velhas, enquanto as gerações
mais novas não mais a falam ou a falam com habilidades comunicativas parciais. Quando ocorre o
falecimento dos últimos falantes ou “lembrantes”, não podemos ainda dizer que uma língua está com-
pletamente extinta, pois enquanto há pessoas que encontram na língua um valor para sua identidade
e sua história coletiva – e enquanto houver recursos de documentação linguística disponíveis sobre
esta língua – ela estará tecnicamente “silenciada”, pois processos de revitalização linguística podem
fazer como essa língua possa voltar a ser ouvida e falada. Falaremos mais sobre isso no capítulo 7.
A emergência de novas línguas pode ocorrer por diferentes processos. Na forma mais simples
falantes de uma mesma língua se separam e com o tempo passam a falar línguas distintas. Esse pro-
cesso encontra paralelos no processo de especiação por distância da Biologia.15 Ele é causado tipica-
mente por migrações ou dispersão geográfica, em que a separação de comunidades de fala – total ou
parcial – faz com que o que antes era a mesma língua se tornem variedades diferentes e se distanciem
cada vez mais. O acúmulo de mudanças independentes e a falta de contatos regulares, portanto, seriam
o mecanismo básico desse processo.

15
Em biologia, especiação por distância ocorre quando duas populações de indivíduos se diferenciam geneticamente
devido à distância geográfica entre elas, o que interrompe o fluxos genético na população, e implica na perda da capaci-
dade reprodutiva entre indivíduos dessas duas populações ao longo do tempo. A analogia com o universo sociolinguístico
requer alguns ajustes, como a percepção de que a distância geográfica deve ser antes de tudo comprrendida como um
distanciamento social e cultural, o que pode ocorrer mesmo em contextos geográficos bastante próximos. Outra adaptação
necessária seria propor uma metáfora para a noção de “perder a capacidade reprodutiva entre duas populações”, o que, de
certa forma, podemos comparar como perder a capacidade de inteligibilidade mútua entre duas variedades de uma mesma
língua.

56
O contato com outras línguas também pode influenciar as mudanças linguística que substan-
ciam a separação de duas variedades ou línguas. Por exemplo, é certo que as línguas do ramo Apache
da família Na-Denê, faladas no Sudoeste da América do Norte, são resultado de uma migração de
povos vindos do Noroeste do Canadá e do Alasca, onde estão todas as demais línguas da família.
Ainda que as línguas Apache, como o Navajo, diferenciaram-se das demais línguas a partir de seu
isolamento, essa equação não fecha sozinha, pois o contato com o Espanhol, Inglês e, antes, com os
povos falantes de línguas das famílias Kiowa-Tanoa, Uto-Azteca e Zuni (que já estavam no Sudoeste
antes da chegada dos grupos Apaches e Navajo) também tiveram um papel na diferenciação dessas
línguas com relação às demais línguas Na-Denê.
Migrações e distância espacial são as principais dinâmicas por trás da diversificação de famí-
lias como Inuit-Yupik-Unangan e muitas outras. Entre as 10 famílias com maior dispersão territorial
que apresentamos na seção 2.2, apenas Sioux e Inuit-Yupik-Unangan não são famílias com grande
número de línguas (a primeira é considerada uma família média e a segunda, pequena). Logo, em
80% dos casos em que temos famílias com dispersão territorial também temos um relativo alto nú-
mero de línguas (mais do que 20 línguas por família). Isso não explica tudo, no entanto, pois nem
todas as famílias com alto número de línguas são territorialmente dispersas. Entre as 14 famílias com
mais de 20 línguas, seis estão mais restritas a uma região multilíngue: Pano-Takana, Tukano, Chib-
cha, Otomangue, Maya e Salish. Logo, a diversificação dessas famílias precisa ser explicada por di-
nâmicas locais que permitiram uma alta diversidade com uma dispersão territorial relativamente me-
nor.
Podemos chamar de diversificação in situ esse outro tipo de processo de diversificação,
quando ocorre uma cisão de ordem social, cultural e/ou política, mas sem um distanciamento geográ-
fico concomitante, de modo que contatos entre as pessoas não são interrompidos completamente. Ou
seja, numa situação de diversificação in situ, as regras sociais e culturais do contato entre línguas são
o mecanismo principal para a emergência de novas línguas. Encontramos exemplos mundo à fora,
como o caso das línguas Hindi e Urdu na Índia e Paquistão, respectivamente, ou o Norueguês e o
Dinamarquês na Escandinávia, e, nas repúblicas da antiga Yugoslávia, o Sérvio, Croata, Bósnio e
Montenegrino que antes eram reconhecidos como apenas uma língua. Nas Américas, encontramos
algumas famílias linguísticas com um conjunto de línguas muito próximas a ponto de a fronteira entre
língua e dialeto ser bastante tênue, mas as bases identitárias que separam os grupos falantes dessas
variedades implica o reconhecimento de línguas distintas. Esse é caso de certas línguas Tukano Ori-
entais; das variedades que compõe a língua Karib do Alto Xingu; certas línguas Quechua nos Andes;
línguas Zapoteca na Mesoamérica; e Algonquinas na América do Norte. Outros casos de emergência
de novas línguas a partir do contato, são as línguas mistas, koinés, pidgins e crioulas bem como as
chamadas línguas de sinais emergentes. Falaremos mais sobre línguas de contato na seção 6.2 (sobre
língua de sinais ver 3.3.4).

2.4 Para uma história de longa duração da diversidade linguística nas Américas
Como vimos explorando até aqui, a diversidade linguística das Américas é algo fascinante e que tem
suscitado muitas questões sobre como ela teria sido criada e sustentada ao longo da história. Uma das
questões de longa data veio a ser colocada como o seguinte paradoxo:

Como as Américas foram o último continente a ser ocupado pelos seres humanos e, ainda assim,
possuem a maior diversidade de famílias linguísticas no mundo?

Relacionada a essa questão está um outro aparente paradoxo que tem a ver com assimetrias entre
número de línguas e famílias linguísticas:
Por que haveria um alto número de famílias linguísticas, mas um baixo número de
línguas nas Américas?
Outra questão que intriga os linguistas é com relação ao perfil das famílias linguísticas das Américas
quando comparadas com famílias de outras regiões do mundo:

57
Por que encontramos nas Américas um altíssimo número de línguas isoladas e famí-
lias pequenas, mas não hiperfamílias como em outras regiões do globo?
Como vimos, a distribuição da diversidade linguística nunca é aleatória, mas segue certos padrões em
que certas áreas possuem maior diversidade do que outras. Dessa forma, podemos formular uma outra
questão importante para a história de longa duração da diversidade linguística nas Américas:

Por que certas regiões possuem mais diversidade linguística do que outras?

Além disso, e relacionado à questão anterior, devemos nos perguntar qual o papel do relativo isola-
mento e dos contatos na diversificação das línguas indígenas. As evidências que analisamos nos su-
gerem que o contato entre línguas ocorreu, sim, de forma intensa e duradoura. Nesse sentido, o que
precisamos entender é como esses contatos se deram de forma diferente do que o esperado por certos
modelos. Isso nos suscita novas perguntas, como

Em que medida as relações socioculturais nas Américas teriam criado e sustentado uma alta diver-
sidade linguística?

Como vemos, essas questões tocam em pontos centrais sobre a diversidade macrolinguística nas
Américas e a história dos povos indígenas. Para conseguir respondê-las é importante trabalhar com
modelos que abordem a história social indígena e de suas línguas. Como modelos, eles reduzem a
realidade, mas também nos permitem explorar hipóteses mais específicas sobre a realidade.

2.4.1 Antiguidade e Diversidade


Edward Sapir já em 1916 havia notado que para explicarmos o aparente paradoxo entre o altíssimo
número de famílias linguísticas nas Américas com uma história de ocupação humana mais recente do
que em outras regiões do globo, estaríamos diante de ao menos dois modelos possíveis de diversifi-
cação. No primeiro modelo, assume-se que a população que entrou nas Américas falava apenas uma
ou poucas línguas, de modo que a diversidade atual é fruto de dinâmicas internas ao continente. Neste
caso, estima-se que a chegada humana nas Américas ocorreu em um período bastante remoto, pois
seriam necessários vários milênios para que toda a diversidade linguística nas América se desenvol-
vesse como resultado da diversificação desde uma ou poucas línguas originais. No segundo modelo,
assume-se que parte considerável da diversidade foi trazida por diferentes populações que fizeram
seu caminho até as Américas ao longo dos tempos e trouxeram com elas suas diferentes línguas (Sa-
pir, 1916).
O linguista Joseph Greenberg (1987) propôs que todas as línguas das Américas pertenceriam
a apenas três famílias linguísticas: Inuit-Yupik-Unangan (Eskimo-Aleuta), Na-Denê e a hiper-família
Ameríndia. Segundo seus trabalhos, a primeira população a chegar nas Américas teria sido a dos
falantes de Proto-Ameríndio, a língua ancestral de todas as línguas e famílias linguísticas atuais (à
exceção das línguas Na-Denê e Inuit-Yupik-Unangan). Se tomarmos como base a data mais recente
para uma entrada possível nas Américas, 16 mil anos, e dividirmos pelas cerca de 170 famílias lin-
guísticas atuais que teriam se diversificado a partir do Proto-Ameríndio, seria necessário que ocor-
resse um novo nascimento de uma família linguística a cada 93 anos, o que parece um grande exagero.
O problema básico da hipótese de Greenberg, no entanto, permanece com a rejeição dos métodos
utilizados para demonstrar a existência da hiper-família Ameríndia, como veremos na seção 5.4.1. Os
métodos tradicionais da linguística histórica, por outro lado, não conseguem ir além de 5 a no máximo
8 mil anos, e é com base neles que os linguistas postulam um número bem maior de famílias linguís-
ticas nas Américas do que Greenberg (ver seção 5.1)
Para Johanna Nichols (1992, 1997, 2008), a diversidade linguística das Américas é incompa-
tível com a hipótese de um povoamento único e recente do continente. Nichols argumenta que as
famílias linguísticas se ramificam a uma taxa aproximadamente constante, estimada usando famílias
conhecidas, de uma nova família a cada 3.215 anos (imagine que a família Românica à qual pertence
o português tem algo próximo a 3 mil anos). Com este raciocínio, ela conclui que se todas as línguas

58
das Américas (exceto as famílias Na-Denê e Inuit-Yupik-Unangan) descendem de uma única linha-
gem, então pelo menos 50 mil anos se passaram desde que esta linhagem começou a se diferenciar.
Diante de um número tão antigo, ela postula que teriam existido várias ondas e rotas migratórias a
partir da Ásia para as Américas, o que representaria a entrada de mais protolínguas do que esperado
por Greenberg. Segundo suas estimativas, no modelo mais rápido de ocupação das Américas, teria
havido a entrada de uma nova protolíngua a cada 2 ou 3 milênios a partir de cerca 35 mil anos atrás.
Essa data coincide com as hipóteses sobre quando teria se iniciado o período em que os ancestrais
dos povos indígenas estiveram isolados na Beríngia.
A hipótese de uma única protolíngua falada pelos ancestrais dos povos indígenas quando pri-
meiro entraram nas Américas pode, a princípio, parecer coerente com os estudos genéticos que apon-
tam para uma relativa homogeneidade das populações que cruzaram o estreito de Bering para as
Américas (ver seção 1.4.1). No entanto, a ideia de uma maior heterogeneidade linguística dos povo-
adores iniciais das Américas não é incompatível com a relativa homogeneidade genética dessas po-
pulações. Como comentam Goddard e Campbell (1994), as pessoas podem aprender uma nova língua
durante sua vida, e repassá-la para as novas gerações, mas elas não podem alterar seu DNA. Línguas
podem se extinguir em populações que sobrevivam geneticamente, e o contrário também pode acon-
tecer, línguas sobrevivem numa nova população, mas o traço genético da população original de fa-
lantes é apagado ao longo das novas gerações. Logo, poderia ter havido outras línguas faladas pelos
povoadores iniciais. Essas protolínguas podem ter se desenvolvido ainda na Ásia, na Beríngia ou,
quem sabe, serem remanescentes de populações anteriores nas Américas ainda não identificadas ge-
neticamente.
Além de uma possível maior diversidade linguística (como previsto por Nichols) e contatos
entre línguas no Leste Asiático, há evidências de um imenso arquipélago ao sul de Beríngia entre 30
e 8 mil anos atrás, o que teria aumentado muito a disponibilidade de recursos marinhos e facilitado
rotas migratórias costeiras (Castro e Silva et al. 2022). Como sabemos de outros arquipélagos e áreas
costeiras mundo à fora, também seria um excelente ambiente para diversificação de povos, línguas e
dialetos. Essas descobertas ilustram como é importante elucidar de forma abrangente a história da
população do Leste Asiático e durante o tempo de ocupação da Beríngia, a fim de se compreender
melhor o quanto de diversidade linguística poderia ter sido trazida para as Américas e quanto dessa
diversidade teve um desenvolvimento interno ao nosso continente.

2.4.2 “Ilha Americana”


As Américas permaneceram isoladas do resto do globo por milhares de anos. Apesar de alguns even-
tos esporádicos como a visita dos polinésios, dos vikings e a migração reversa de alguns poucos povos
indígenas que fizeram um caminho de volta para Ásia, não temos evidências de conexões com outras
populações antes da chegada dos europeus. Rodrigues (2018) argumenta que esse relativo isolamento
após o fim das migrações iniciais para as Américas fez com que inovações aqui surgidas não chegas-
sem a outras áreas, e, do mesmo modo, inovações surgidas fora do continente não chegassem por
aqui. Isso explicaria certas características tipológicas particulares às Américas (capítulo 4), bem como
nos permite deduzir que a diversificação das línguas indígenas foi um processo essencialmente in-
terno ao continente há pelo menos 16 mil anos.
Desde um ponto de vista linguístico, as evidências de conexões entre Ásia e Américas são
muito poucas, inconsistentes ou ainda incipientes. De fato, técnicas tradicionais como o método his-
tórico comparativo (capítulo 5) possuem extrema dificuldade de serem aplicadas num passado tão
distante. Os casos mais óbvios refletem migrações reversas recentes de povos que voltaram para a
Ásia, onde hoje vivem no extremo leste do território da Rússia, como os falantes de Mednyj-Aleuta
(Unangan) e de Chukchee (Inuit). Um caso mais espetacular é a hipótese da relação genética distante
entre a família Na-Dené da América do Norte e a família Yeneisei da Sibéria Central, hoje falada
apenas pela língua Ket (Vajda & Fortescue, 2022)
Johanna Nichols propõe semelhanças entre as línguas do pacífico e das américas, as quais
seriam reflexos de migração ao longo dessas áreas (Bickel & Nichols, 2006). A partir de estudos
estatísticos sobre características tipológicas entre diferentes famílias linguísticas e regiões do mundo,

59
postula que toda a área interconectando as Américas como um todo, o leste e sudeste asiático, a
Oceania e as demais ilhas do Pacífico se destacam por apresentarem certas características tipológicas
que as agrupa e diferencia de outras regiões do globo. A partir dessas ainda frágeis evidências,16
Nichols interpreta que há uma profunda divisão tipológica entre línguas do Velho e do Novo Mundo,
enquanto áreas como Nova Guiné e a Oceania apresentam uma maior semelhança com o Novo
Mundo. Devido à escassez das evidências apresentadas, poderíamos estar diante de semelhanças ao
acaso, acidentais. Se insistirmos na hipótese de uma conexão histórica, então devemos deduzir que
são elementos encontrados nas línguas das populações que viviam do Nordeste e Leste Asiático, antes
das migrações dos ancestrais dos povos indígenas para as Américas.

2.4.3 Velocidade de Diversificação e ausência de hiperfamílias


Daniel Nettle (1999) se contrapõe às ideias de Nichols ao argumentar que sabemos muito pouco sobre
a velocidade de diversificação de línguas em dialetos e famílias linguísticas, de modo que não pode-
mos calcular o tempo de entrada no continente americano pelo número de línguas ou famílias linguís-
ticas. Por isso, ele investiga as dinâmicas e a velocidade de diversificação, partindo da premissa que
ela oscila com momentos de maior e de menor aceleração. Dependendo dessas variáveis, a diversi-
dade linguística nas Américas poderia ser compatível com qualquer hipótese de antiguidade temporal,
bem como como qualquer número de protolínguas eram faladas pelos povoadores do continente ame-
ricano.
Nettle, então, testa um modelo baseado na hipótese de Greenberg, e propõe que a taxa de
nascimento de novas línguas foi bastante alta no início da ocupação humana das Américas quando a
população se dispersava num vasto território previamente inabitado pelos seres humanos, e cada novo
nicho ecológico descoberto por essas populações representaria a possibilidade do surgimento de no-
vas linhagens que culminaram nas famílias linguística atuais. Como vimos, a hipótese de uma rápida
diversificação inicial é compatível com as evidências arqueo-genéticas de uma ocupação rápida dos
principais nichos ecológicos do continente, ainda que por uma população esparsa, por volta de 10 mil
atrás. À medida que a população ameríndia foi crescendo e ocupando os espaços, o maior adensa-
mento das áreas ocupadas, a diminuição de novos áreas para serem colonizadas e o maior contato
entre povos teriam motivado uma diminuição na taxa de diversificação de línguas e famílias linguís-
ticas. Alguns povos se tornaram demograficamente mais dominantes do que os demais, e suas línguas
teriam se difundido por uma área maior e entre populações que previamente falavam outras línguas,
ocasionando a extinção de algumas línguas, enquanto outras famílias linguísticas se expandiam e se
diversificavam.
Nettle parte de uma premissa questionável, a de que haveria um processo inexorável pelo qual
todas as macrorregiões do globo deveriam passar: uma rápida diversificação inicial de línguas e fa-
mílias linguísticas, seguida por um declínio gradual desse processo e até diminuição da taxa de di-
versificação, ocasionado pelo contato e, sobretudo, pela dispersão das hiperfamílias. A questão das
Américas é que esse processo teria se dado de forma incompleta devido a dois fatores principais: (1)
a ocupação humana mais do continente se comparado a outras áreas, (2) a chegada dos europeus nas
Américas pouco mais de 500 anos atrás teria interrompido o processo de crescimento das hiperfamí-
lias que vemos no velho mundo (Nettle 1999: 3328) (ver Figura 7. Um outro problema com a hipótese
de Nettle é que ele não diferencia a taxa de extinção do período pré- e pós-colonial, o que certamente
deve ser levado em conta. Além disso, com relação ao contato linguístico, Nettle parte de uma pre-
missa assumida por muitos linguistas, de que o contato linguístico seria uma força homogeneizadora
ou até redutora da diversidade linguística, o que já sabemos que nem sempre é o caso. Voltaremos a
essa questão no capítulo 6.

16
As evidências apresentadas são: classificadores numerais, marcação morfossintática de núcleo, e existência de prono-
mes com bases m- e n-.A a recorrência de formas pronominais com bases m- e n- encontra as mesmas limitações que
apontamos para a proposta de Greenberg. Ao mesmo tempo, as demais variáveis tipológicas são por demais frequentes
nas línguas do mundo, enquanto estão longe de serem uma regra para as América ou outras regiões analisada pela autora
(ver seção 5.4.1).

60
Figura 7: Esquema ilustrativo da teoria de Daniel Nettle (1999) sobre o surgimento e extinção de
famílias linguísticas

2.4.4 Diversificação e expansão agro-linguística


Além das condições ambientais e de organização social, cultural e política, as formas de organização
econômica entre as sociedades são fundamentais para modelos sobre a ocupação do espaço, cresci-
mento demográfico e organização social. Bellwood & Renfrew (2003) levantaram a hipótese de que
muitas das principais famílias linguísticas do mundo devem sua dispersão geográfica à adoção da
agricultura por seus primeiros falantes. Nomeada como a hipótese de dispersão agro-linguística (do
inglês farming/language dispersal hypothesis). Isso teria ocorrido, por exemplo, com as hiperfamílias
Indo-Europeia, Sino-Tibetana, Nígero-Congolesa e Austronésia. Essa hipótese segue uma premissa
na arqueologia de que, em tese, a agricultura permitiria um maior crescimento populacional do que
outras formas de subsistência, o que impele grupos sociais excedentes a migrarem em busca de novas
terras agricultáveis.
Décadas antes, um modelo parecido havia sido proposto por Donald Lathrap (1970) para a
dispersão da família Aruák e Tupí-Guaraní no vale do rio Amazonas. Segundo essa hipótese, chamada
de modelo cardíaco, os povos Aruák teriam começado uma expansão desde a Amazônia Central,
sendo posteriormente seguidos pelos povos Tupí-Guaraní, que substituíram os Aruák em certas áreas.
A hipótese sustenta que a agricultura desenvolvida na chamada área cultural da Floresta Tropical
estava induzindo aumentos populacionais que exerciam forte pressão sobre as limitadas terras aluviais
ribeirinhas. Para aliviar estas pressões, grupos começaram a se movimentar para fora da região, pro-
curando áreas ribeirinhas semelhantes. Esse modelo está resumido na Figura 8.
Figura 8: Modelo cardíaco de Lathrap (1970) para a dispersão das famílias Aruák e Tupí-Guaraní
desde a Amazônia Central

61
Um dos problemas iniciais com essa hipótese é a exata definição do que se entende por agri-
cultura e quais seriam seus efeitos diretos no contato entre línguas. Como vimos em seções anteriores,
a domesticação das plantas ocorreu de modo independente em muitas partes das Américas desde cerca
de 10 a 6 mil anos antes do presente. Em contraste, o desenvolvimento da agricultura intensiva é mais
recente e localizado, tendo até os tempos atuais coexistido com outras formas de tecnologias de sub-
sistência das sociedades indígenas, como a caça, a coleta ou mesmo a agricultura sazonal e/ou de
pequena escala. Muitos povos possuem sistemas de horticultura diversificados e dependem da agri-
cultura em diferentes graus (ver seção 1.3.1).
Além disso, algumas famílias linguísticas das Américas se espalharam geograficamente sem
agricultura intensa ou antes de a adotarem. Outras famílias para as quais há evidências de pelo menos
domesticação de plantas na época em que sua protolíngua foi falada estão divididas em dois grupos
(ver Tabela 9). Em um primeiro grupo, estão aquelas com uma distribuição geográfica mais restrita,
como muitas famílias na Mesoamérica, na região do Panamá e Colômbia, no norte dos Andes e no
oeste e noroeste da Amazônia. No segundo grupo, estão as famílias com uma distribuição mais ex-
tensa, incluindo Aruák, Karib, Tupi e Quechua. Logo, nas Américas, o modelo de dispersão agro-
linguístico, por si só, não é suficiente para explicar a diversificação línguas e famílias linguísticas no
continente (Campbell & Poser 2011: 339). Uma compreensão social e cultural mais complexa é, por-
tanto, necessária.
Tabela 9: Agricultura e Extensão Territorial de famílias linguísticas nas Américas
Distribuição Agricultura no início da diversificação da família
Presente Ausente
Chon, Macro-Jê, Uto-Azteca, Álgica,
Mais extensa Aruák, Karib, Tupi, Quechua
Sioux, Na-Dené, Eskimo-Aleuta
Mixe-Zoque, Otomangue, Chibcha,
Mais restrita Yuma, Salish, Guaicuru, Yanomami
Maya, Tukano

2.4.5 Poucas línguas, muitas pequenas famílias, e a extinção de línguas


O alto número de línguas isoladas e famílias linguísticas pequenas nas Américas pode ser explicado
por diferentes modelos. Seguindo as ideias como as de Nichols e as de Nettle, as línguas isoladas
poderiam ser remanescentes da colonização inicial do continente quando este ainda estava inabitado
pelos seres humanos. Para Nettle, essas linhagens sobreviveram porque não teria havido tempo sufi-
ciente para expansão das grandes famílias. Já para Nichols, as Américas possuem condições

62
climáticas e geográficas que possibilitam que pequenas sociedades possam exercer maior autonomia
sob territórios menores; essa autonomia teria se refletido, basicamente, em menos extinções de lín-
guas e famílias linguísticas do que em outras áreas. Por isso, a diferença fundamental entre as Amé-
ricas e as outras macrorregiões não está na antiguidade entre elas, ou no número de línguas trazidas
por migrações iniciais, mas nas diferentes formas de organização social e condições ambientais que
permitiram a manutenção da diversidade. Nesse sentido, Nichols vai agrupar as Américas com Papua
e Nova-Guiné, pois ambas possuem condições para sustentar uma alta densidade de famílias linguís-
ticas, ao contrário de regiões como Austrália e África, que são áreas planas e com pouca densidade
de rios, o que as torna áreas propícias para a difusão de hiperfamílias, causando repetidas extinções
de línguas e famílias.
Vamos agora sugerir uma outra hipótese, a de que a extinção de línguas teria um impacto
direto no relativo baixo número de línguas, e, incidentalmente, no número excessivo de línguas iso-
ladas e famílias pequenas. Isso pode parecer a princípio contraditório, pois o efeito mais direto da
extinção de línguas seria reduzir o número de línguas e, eventualmente, de famílias linguísticas se as
línguas extintas eram as últimas representantes de uma família. Enquanto não há estimativas de quan-
tas famílias teriam sido extintas nas Américas, sabemos que a história da diversidade linguística nas
Américas tem passado por um intenso processo de extinção linguística desde o período colonial, e
que as línguas do continente americano são hoje as mais ameaçadas no mundo (ver seção 2.2.1). Ao
mesmo tempo, se a taxa de extinção de línguas foi mais acelerada por aqui, os registros históricos e
conhecimento científico sobre as línguas evoluiu de forma bastante lenta. A combinação entre alta
taxa de extinção e baixo conhecimento científico pode ter criado um efeito aparente de uma altíssima
diversidade de línguas isoladas e famílias pequenas, enquanto na realidade muitas dessas linhagens
poderiam estar relacionadas geneticamente.
Para deixar isso mais claro, imaginemos uma família linguística que, no início do período
colonial, tinha oito línguas. Se cinco foram extintas sem que pudéssemos atestá-las, então sobrariam
apenas três para contar a história. Quando as línguas sobreviventes estão próximas entre si na árvore
da família, é mais fácil que identifiquemos que elas formam parte de uma pequena família, como as
línguas A e B da Figura 9. Mas se as línguas estão distantes na árvore da família, muitas vezes não
conseguimos demonstrar sua relação filogenética com as outras sem a presença de línguas interme-
diárias que foram extintas e não atestadas. Esse é o caso das línguas A e B para que pudéssemos
demonstrar sua relação filogenética.17
Figura 9: Modelo de relação entre extinção linguística e a produção de línguas aparentemente iso-
ladas ou pertencentes a pequenas famílias

17
Imaginemos a tarefa dura ou impossível que seria se quiséssemos demonstrar a relação entre o Irlandês (subfamíli
Celta) e o Urdu (subfámilia Indo-Iraniana) sem outras línguas Celtas, Indo-Iranianas e línguas intermediárias como as das
subfamílias Românica, Germânica e o Grego.

63
2.4.6 Regiões Multilíngues como centros de diversificação e refúgio
Uma correlação já há muito observada serviu de base para a chamada hipótese das rotas iniciais
segundo a qual as áreas de maior diversidade linguística estão no caminho das rotas iniciais de povo-
amento das Américas. As zonas mais ao Oeste da América do Norte (áreas como a Costa Noroeste
do Pacífico e Califórnia) e da América do Sul (como nos Andes Setentrionais, Noroeste Amazônico,
Amazônia Ocidental e Meridional) concentram uma maior diversidade quando comparadas a zonas
mais ao leste. Esse padrão encontraria ressonância com as rotas pré-históricas de migração costeiras
e movimentos de ocupação inicial vindos do Oeste para o Leste. Algumas outras regiões com alta
diversidade linguística no leste do continente (como o Golfo do México, Nordeste Amazônico e Nor-
deste e Leste do Brasil), também povoadas desde tempos muito antigos (ca. 8 a 10 mil a.C.) podem
sugerir divisões nas primeiras rotas interiores de colonização dos continentes e/ou rápidos processos
de dispersão linguística posteriores às primeiras migrações. Devemos notar que todas remontam a
sítios arqueológicas de grande importância para as sociedades indígenas pré-coloniais. Não à toa,
encontramos em regiões como Mesoamérica, Andes e Amazônia os principais centros de domestica-
ção e diversificação de plantas, por exemplo. São áreas que geram e sustentam diversidade biocultural
há milênios.
Falando especificamente sobre as línguas indígenas no Brasil e nas Terras Baixas da América
do Sul, Greg Urban propõe a hipótese das cabeceiras ou periferia, segundo a qual os centros de
diversificação das principais famílias linguísticas dessa região seriam nas áreas de cabeceiras (ou
formadores) dos grandes rios da bacia Amazônica e do rio São Francisco. Isso significaria que, entre
4 mil e 1 mil a.C., os ancestrais dos principais povos de hoje em dia estavam vivendo longe dos
grandes rios e em terras mais elevadas. Considerando que na bacia Amazônica as cabeceiras dos
grandes rios estão em geral à oeste de sua foz, então há uma convergência entre a hipótese das cabe-
ceiras e das rotas iniciais (Urban, 1998).
A concentração de línguas nas zonas de cabeceiras dos rios da Terras Baixas tem uma expli-
cação adicional documentada historicamente. Considerando que o processo colonial começou da foz
à montante (do Atlântico para o interior), à medida que a colonização avançou os grupos indígenas
foram buscando refúgio no interior e nas cabeceiras de rios, onde a distância e obstáculos como cor-
redeiras tornaram o acesso do colonizador mais difícil. Enquanto as cabeceiras foram recebendo mais
línguas, e melhor freava o processo de extinção linguística, a parte baixa do rio Amazonas ficou
despovoado de línguas indígenas, ainda que Carvajal tivesse encontrado muitos povos na região em
1542. As línguas do baixo Amazonas ou foram extintas ou seus falantes migraram para outras áreas,
como as cabeceiras.
Se as regiões multilíngues foram zonas que abrigaram refugiados, atuaram como centro de
diversificação biocultural do passado e ainda seguem existindo em muitos casos, há algo na forma de
organização das sociedades dessas regiões responsável por criar e sustentar sua diversidade linguís-
tica. A hipótese que vamos desenvolver na próxima seção procura uma explicação para isso pelas
formas como se dão as relações de contato linguístico no contexto de sociedades fortemente baseadas
em relações interétnicas e multilíngues.

2.4.7 Multilinguismo e diversidade linguística nas Américas


Os modelos que revisamos até aqui enfatizam que a diversificação das línguas indígenas teve um
grande impulso durante a colonização inicial do continente, à medida que os grupos sociais iam se
separando e ocupando o vasto território. Relações de contatos mais intensas decorrentes de um cres-
cimento populacional posterior refletiram num maior adensamento das regiões multilíngues e disper-
são das grandes famílias. Com a intensificação dos contatos, modelos como o de Nettle entendem que
haveria uma tendência maior à homogeneização e à diminuição da diversidade, enquanto modelos
como o de Nichols entendem que as formas de organização social nas Américas poderiam ter atuado
para frear essas forças redutoras da diversidade linguística. O modelo complementar que propomos é
que haveria certas formas de organização social e práticas culturais que nas situações de intensifica-
ção dos contatos linguísticos das Américas favoreceram não só a manutenção, mas um aumento da
diversidade.

64
É possível que as sociedades que povoaram as Américas há milênios tivessem como uma de
suas características um multilinguismo primordial, conforme hipotetiza Nick Evans (2017), especia-
lista em línguas da Austrália e Oceania. Evans sustenta que todas por dezenas de milhares de anos as
sociedades humanas estavam organizadas em grupos de caçadores e coletores com agricultura inci-
piente, formados por algumas dezenas ou centenas de indivíduos. Esses grupos formavam uma uni-
dade consanguínea de pessoas que se consideram parentes e, portanto, precisavam participar de uma
rede de relações de intercâmbio com outros povos considerados afins ou não parentes, em que a exo-
gamia tinha um papel fundamental. Em consequência da estrutura social baseada em unidades exogâ-
micas pequenas e interconectadas, as línguas passaram a fazer parte de uma teia de relações com um
duplo papel: por um lado, são formas de demarcar fronteiras sociais (“uma língua” e “um povo”); por
outro lado, o multilinguismo seria uma estratégia de relações interétnicas necessárias para a formação
de redes de relações sociais entre povos falantes de línguas distintas e ligados por trocas sociais e
culturais.
A perspectiva de Evans ressoa nas Américas no sentido em que elementos como exogamia,
língua como emblema de identidade e multilinguismo são recorrentes a muitas sociedades amerín-
dias. Epps (2020) defende que a diversidade linguística nas Terras Baixas da América do Sul tem
sido sustentada por uma ideologia em que a língua é a principal forma de marcar a identidade de um
povo, fato que é compartilhado por diversos grupos, e que é mais forte em regiões onde o contato
linguístico e as relações interétnicas são mais intensas. Epps analisa diversas regiões multilíngues,
mas uma região central para sua hipótese é o Alto Rio Negro, onde encontramos sociedades multilín-
gues, exogâmicas e onde a identidade dos mais de 20 povos da região é marcada pela língua do seu
grupo paterno (ver seção 6.3.4).
Além da ideia de que as línguas serviriam para marcar identidade interna de um povo, deve-
mos também entender seu papel nos processos de criar diferenças entre povos. Diferenças linguísticas
e cultuais se correlacionam com formações políticas baseadas em sociedades mais dinâmicas, autô-
nomas, livres, com menor centralização do poder (Clastres, 1974; Neves, 2013). A autonomia política
é contrabalançada pela necessidade de se construírem alianças sociais, criando complementaridade
junto à diferença por meio de relações de comércio, intercasamentos, cooperação política, econômica,
bélica e religiosa. Ao construir alianças, cria-se não só semelhanças mas novas diferenças, o que
numa escala temporal mais ampla cria múltiplas formas de se apresentarem línguas e etnias (Viveiros
de Castro 2015).
Como uma das conclusões de sua obra máxima, as Mitológicas, Lévis-Strauss preconiza que
as sociedades indígenas possuem um ethos voltado à criação de diferenças, e que essas diferenças
seriam mais claramente expostas na maneira como mito e linguagem se manifestam. Nesse processo,
as línguas se tornam meio de se expressarem essas diferenças. Podemos visualizar isso em processos
de etnogênesis, na criação e negociação de identidades étnicas no processo de criação e formação de
grupos étnicos em diálogo e oposição a outras grupos, e nos processos de divisões sociais conhecidos
como cismogênesis (cismo ‘divisão, separação’ genesis ‘criar, gerar’), termo cunhado por Bateson
(1935) para se referir à criação de diferenças culturais entre povos que vivem no rio Sepik na Nova-
Guiné, região em que também encontramos exogamia, multilinguismo e diversidade linguística.
Por outro lado, Hornborg & Hill (2013) salientam como as línguas compartilham com outros
tipos de marcadores étnicos o papel de construir identidades em sociedades pluriétnicas típicas das
regiões multilíngues na Amazônia. As línguas não são apenas uma forma de delimitar o grupo social
frente a outros grupos sociais, mas também uma forma de se construir identidades entre grupos sociais
e em escalas distintas. Como principal exemplo disso, eles sugerem que a expansão Aruák na América
do Sul teria sido motivada pela existência de uma ampla rede de trocas culturais e comerciais, em que
uma ou mais língua Aruák teria se difundido como uma segunda língua e língua franca devido ao
papel central de povos Aruák nessa rede. Isso está em franca oposição ao modelo cardíaco de migra-
ções de Lathrap que vimos acima. Argumentos similares foram propostos para o nascimento da língua
Mobilian Jargon e para a dispersão de línguas e de empréstimos Algonquinos (família Álgica) ao
longo da extensa rede de trocas de Hopewell na bacia do rio Mississipi (seção 1.4.2). Em ambas as
regiões, vemos que a expansão da área de influência de uma língua e cultura criaram planos diferentes

65
de relações sociais, mas não necessariamente suplantam as línguas e identidades locais. Assim, são
processos de etnogênese que vem mais para se somar do que subtrair, em que identidades e fronteiras
socioculturais são continuamente construídas com incorporações e emulações de marcadores étnicos,
levando ao estabelecimento e reprodução de identidades locais, regionais e transregionais. Nesses
processos que podemos chamar de dispersão sem subtração, a expansão de uma língua se dá por
relações de bi ou multilinguismo, e, mesmo quando resultam no deslocamento linguístico, observa-
mos processos subsequentes de divergência entre as variedades, mostrando que mesmo num processo
de assimilação de marcadores étnicos com a língua de um outro povo, há também um movimento
para diferenciar as variedades com que cada povo falaria a “mesma” língua (ver seção 6.1.3).

2.4.8 Modelos Indígenas


Vejamos agora o que seriam modelos indígenas sobre como se desenvolveu a diversidade linguística
e sua importância para suas sociedades. Esses modelos foram concebidos e expressos por meio das
mitologias que concebem o tema das línguas e da diversidade linguística como parte das cosmologias
indígenas. Vejamos os dos mitos Desano e Yanomam, a seguir:
Quadro 8: Mitologia e diversidade linguística para os Desano e Yanomam
O surgimento da diversidade linguística para o povo Desano
Para os Desano, o nascimento das várias línguas do rio Uaupés se deu há muito tempo na chamada “Maloca
de Cantos”. Estavam reunidos nesse local os ancestrais dos diversos povos que existem atualmente. Num
dado dia, uma das mulheres primordiais deu à luz a um “ser misterioso”, o Gahpi Mahsʉ̃ ‘Homem do Aya-
waska’. O nascimento desse ser trouxe consigo várias sensações e visões aos povos da “Maloca de Cantos”.
Com ele, surgiram também as várias cores e formas geométricas dos trançados e pinturas faciais indígenas.
Quando o recém-nascido foi trazido para dentro da “Maloca dos Cantos” (como costume nessas sociedades,
o parto ocorre fora da casa), sua presença era tão forte que toda a humanidade ali presente deixou de se
reconhecer. Foi aí que tiveram de criar novas formas de relações sociais, definir quem eram os grupos, quais
poderiam se casar e quais não poderiam. Sob efeitos do ayawaska, também ninguém mais se entendia.
Por·isso, cada grupo começou a falar uma língua diferente, a sua própria língua. (resumo de texto em
Umúsin Panlõn & Tolamãn, 1980)

O surgimento da diversidade linguística para o povo Yanomam


Estavam todas as pessoas reunidasnNa localidade de Hayoari, onde nasceu o demiurgo Omama, próximo
ao rio Orinoco na Venezuela. Uma moça tinha tido sua primeira menstruação e estava reclusa. Uma briga
envolvendo seu irmão fez com que ela deixasse seu lugar de reclusão. Isso foi muito grave e causou uma
grande crise e transformação no mundo. Logo escureceu e começou uma enxurrada vinda das montanhas
da Serra do Parima. Na enxurrada, muitos se afundaram, outros boiaram como espumas. Omama os salvou
e colocou as espumas de volta à terra. As espumas tinham cores distintas e, com base em suas cores e na
localidade onde Omama as depositou, deram origem aos diferentes povos: as espumas mais escuras, deram
origem aos negros; as alaranjadas a povos que foram para outras terras; as brancas aos não indígenas “bran-
cos”. Enquanto essas espumas foram colocadas bem longe, Omama colocou ali pertinho, em seus respecti-
vos lugares, as espumas que viriam dar origem aos povos Yanomami e Ye’kwana (povo que fala uma língua
Karib). As línguas surgem em consequência dessa diferenciação étnica e territorial. Os povos de língua mais
semelhantes, como as Yanomami, tiveram suas espumas colocadas lado a lado. Já os “brancos”, com uma
língua bem diferente que soa como “zumbido de vespas”, foram colocados bem longe dali (resumo do texto
narrado por Davi Kopenawa, em Ferreira et al., 2019: 17-18).

Essas histórias possuem a mesma temática da história da Torre de Babel nas religiões judaica,
muçulmana e cristã, bem como as antigas religiões da Mesopotâmia. Porém, apesar da semelhança
temática, o sinal da diversidade linguística aparece trocado nas histórias indígenas e na história bí-
blica: enquanto a Torre de Babel apresenta a diversidade como uma maldição ou um castigo imposto
por Deus diante da insolência dos seres humanos, para as mitologias indígenas a diversidade linguís-
tica aparece como algo com valor e apreço. A diversidade linguística nas duas histórias indígenas é
colocada em paralelo à criação da diversidade em outros planos culturais e sociais, como manifestado
pelas diferentes identidades étnicas e relações interétnicas, pelos grafismos, pelas músicas e canções,
e pela dispersão no território. Nesse sentido, são modelos que ilustram a concepção “sociocósmica”

66
da linguagem pelo pensamento indígena proposta por Gersem Baniwa (seção 1.1.2) e vão ao encontro
do que discutimos na seção anterior ao reforçarem a importância da identidade, da diferença e das
trocas entres sociedades indígenas na diversificação linguística.

2.4.9 Síntese
Vamos tentar agora oferecer uma síntese do que vimos nos capítulos e seções anteriores sobre os mais
de 16 mil anos de história de longa duração das sociedades indígenas e sua diversidade linguística.
Começamos com uma possível heterogeneidade linguística no povoamento inicial do continente, se-
guido por uma rápida dispersão dos povos e divisões de línguas mediante ocupações dos principais
nichos ecológicos até cerca de 10 mil anos atrás. O passar do tempo e o distanciamento no espaço das
populações em zonas diferentes refletiram em um lento processo de diferenciação. Com o cresci-
mento populacional mais intenso após 5 mil anos atrás, temos um maior adensamento de regiões
inicialmente ocupadas. É quando podemos observar a diversificação in situ das famílias médias e
pequenas, o começo das grandes migrações e expansão das grandes famílias, e a formação dos siste-
mas interétnicos e multilíngues e das redes de intercâmbio de longa distância. Isso representou um
maior contato entre as línguas, um provável uso de pidgins e línguas francas em certas áreas, e um
incremento do bi e multilinguismo de indivíduos e sociedades. Os contatos linguísticos foram res-
ponsáveis por difundir muitos dos padrões tipológicos recorrentes, bem como promover processos de
diferenciação e aumento da diversidade. O processo colonial trouxe uma mudança de paradigma, com
um número muito maior de extinções do que o período pré-colonial. Apesar de que algumas línguas
indígenas possam ter se expandido como resultado direto ou indireto de políticas coloniais, a perda
da diversidade foi muito grande, diminuindo drasticamente o número de línguas e aumentando o
aparente número de línguas isoladas e pequenas famílias. Hoje, como veremos no capítulo 7, a vita-
lidade muito baixa da grande maioria das línguas indígenas nos mostra o reflexo de séculos de contato
com europeus e com os estados nacionais, mas também nos mostra processos de retomadas e renas-
cimento de línguas indígenas como fruto da resiliência e da relação sóciocósmica e espiritual que os
povos indígenas têm com suas línguas.

67
3 Línguas, dialetos e outros letos

Vamos agora explorar a diversidade linguística a partir de um olhar centrado nas interações sociolin-
guístico dentro das sociedades indígenas. Vamos focar na diversidade de tipos de línguas, dialetos e
outros letos usados pelas comunidades como forma de expressão de sua diversidade cultural e como
um forma social de “organização da diversidade” como nos diz Dell Hymes (1989: 433). Por serem
ao mesmo tempo algo individual e coletivo, as línguas se manifestam pelos infinitos atos de fala dos
indivíduos em contextos sociais, culturais e históricos específicos. São, portanto, heterogêneas e di-
nâmicas. Dessa forma, toda língua possui múltiplos letos (ou variedades), comumente conhecidos por
uma gama de termos como “sotaques”, “jargões”, “gírias”, “falares”, “patoás”, “dialetos”, “estilo
formal vs. informal”, “registro oral vs. escrito”, etc. A língua padrão, aquela ensinada em gramáticas
normativas, é apenas um de seus possíveis letos. Em um trabalho recente, Patience Epps (2021)
chama atenção para a ideia de multiletalismo na Amazônia, fazendo referência à heterogeneidade das
sociedades indígenas com relação aos usos de suas línguas nas atividades cotidianas e cerimoniais.
Nas próximas seções, vamos apresentar alguns dos diferentes tipos de línguas, dialetos e outro letos
que existem nas sociedades indígenas, mostrando aspectos relativos à sua estrutura linguística e a
seus usos nas sociedades indígenas.

3.1 Dialetos, Socioletos e Generoletos


Vamos lidar inicialmente com os tipos de letos que diversificam as línguas a partir de variáveis como
geografia, estrutura social e divisão de gênero.

3.1.1 Dialetos
Existe uma questão complexa para a linguística que é a definição do que são línguas e variedades de
uma língua. Um dos termos que usamos para conceituar um tipo de variedade de uma língua é a noção
de dialeto. Para um leigo, dialeto é muitas vezes usado com um sentido depreciativo para se referir,
por exemplo, a uma língua sem tradição escrita, ou para uma língua sem um reconhecimento oficial.
É comum vermos pessoas se referindo a línguas indígenas como “dialetos”, como se essas línguas
tivessem um estatuto de “línguas inferiores”, quando na verdade são línguas tão línguas como quais-
quer outras. Para a linguística, como termo técnico, dialeto possui um sentido específico para se re-
ferir a variedades de uma língua faladas em diferentes regiões. O termo dialeto se generalizou e mui-
tos linguistas empregam a noção de dialeto como sinônimo de qualquer variedade de uma língua,
sendo sinônimo do que aqui estamos chamando simplesmente de leto ou variedade. Vamos explorar
nesta seção as complexas relações entre língua e dialeto no seio das sociedades indígenas.
A dialetologia procura relacionar variantes linguísticas, como sons e palavras, com a locali-
dade onde se falam essas variantes. Falamos de isoglossas quando podemos traçar áreas geográficas
com base na distribuição de diferentes variantes. O trabalho de Zariquiey (2011) sobre dialetologia
da língua Kashibo-Kakataibo (família Pano) nos oferece um bom resumo de como as línguas apre-
sentam variações dialetais entre diferentes localidades. Os quatro principais dialetos dessa língua são
identificados pelo nome dos rios onde são falados (todos afluentes do grande rio Ucayali): Bajo
Aguaytía (BA), Alto Aguaytía (AA), San Alejandro (SA) e Sungaroyacu (SU). A variação encontrada
por Zariquiey é vista principalmente na fonologia e, em menor escala, no léxico e na gramática, como
ilustrado abaixo:
(3.1) Variação dialetal na língua Kashibo-Kakataibo (Zariquiey, 2011)
BA SA AA SU Glosa
úɲe úwe uí eβ̞e ‘chuva’
ɲuʃín ɲuín juʃin junʃin ‘diabo’
ʂáɨ tɨṕa ʂáɨ ʂáɨ ‘jabuti’
mitsu mikama mitsu mitsu ‘vocês’

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Podemos notar que, do ponto de vista fonológico, os dialetos variam conforme a realização de /w/,
/ɲ/, /j/ e /ʃ/ nas palavras para ‘chuva’ e ‘diabo’. A palavra para ‘jabuti’ mostra uma variante lexical
divergente no dialeto SA. A mesma variedade também diverge com relação aos pronomes de segunda
pessoa plural ‘vocês’. Como resultado da análise de conjunto de dados mais amplo do que esse, Za-
riquiey confirma duas questões importantes: a primeira é que o dialeto SA, falado ao longo do rio
San Alejandro, é o mais divergente; a segunda é que a língua Kashibo-Kakataibo, apesar de ser falada
por um número relativamente pequeno de pessoas (algo entre 2000 e 3500 pessoas) e em localidades
próximas, apresenta uma diversidade dialetal significativa.
O desenvolvimento de variedades geográficas forma comumente um continuum dialetal (tam-
bém chamado de cadeia dialetal). Um continuum dialetal é baseado numa configuração em que va-
riedades geograficamente mais próximas, são linguisticamente mais semelhantes, e variedades de
localidades mais distantes, são linguisticamente mais divergentes. Dentro de um continuum dialetal,
dois processos aparentemente paradoxais estão em ação: processos centrífugos, que criam e mantêm
a diferenciação linguística; e processos centrípetos que sustentam a unificação dos diferentes letos.
A família Quechua é um bom exemplo desse fenômeno. Torero (2007) propõe que haveria
cinco línguas Quechua, e as classifica em dois grandes subgrupos, Quechua I (QI) e Quechua II (QII).
Segundo Torero, nenhuma língua Quechua permite atualmente a comunicação com toda a família
linguística, e nem mesmo uma variedade QI ou QII é totalmente inteligível em sua respectiva área
dialetal. As variedades pertencentes a QI são encontradas nos Andes Centrais em áreas próximas a
Lima e estendem sua área dialetal de uma forma virtualmente contínua. Os dialetos Wáylay e Wánkay
são os mais divergentes deste continuum e estão localizados nos extremos norte e sul, respectiva-
mente. As línguas do subgrupo QII estão nas periferias da área de QI. Estão classificadas em três
grupos, QII-A, QII-B, QII-C, denominados conforme as línguas se distanciam das variedades QI:
QII-A é o ramo mais próximo de QI desde um ponto de vista linguístico quanto geográfico, seguido
por QII-B e C, que estão geograficamente ao norte e ao sul, respectivamente. Nas áreas onde dialetos
dos três ramos estão atualmente em contato (nos departamentos de Lima, Lea e Huancavelica) passa-
se menos abruptamente dos dialetos QI, QII-A e QII-C, o que possibilita um entendimento relativa-
mente maior entre os falantes de cada dialeto. Na Figura do Apêndice Online 5, colocamos um mapa
com a representação dos principais ramos da família Quechua e seu continuum dialetal.
Figura do Apêndice Online 5: Continuum dialetal e subgrupos da família Quechua (a partir de To-
rero 2007)

69
Implícita na noção técnica de dialeto, está o fato de que esses diferentes letos pertencem a
uma mesma língua. É comum que a variedade que conta como língua padrão seja determinada pelo
dialeto que tem mais poder. Assim, por exemplo, a língua padrão Quechua foi por muito tempo esta-
belecida pelo Quechua falado e Cuzco (ramo Q-IIC), capital do antigo Império Inca. A célebre frase
atribuída a Max Weinreich “língua é um dialeto com um exército e uma marinha” é sempre pertinente
nesses casos em que aqueles grupos que gozam de maior poder ou prestígio numa sociedade são
aqueles que controlam a ideologia e a força para determinar o que é uma língua e o que é um dialeto.
Existe uma outra perspectiva possível, em que definimos como língua não o dialeto que goza
de mais prestígio e poder, mas como uma generalização teórica e/ou ideológica a partir dos seus
vários letos, como nos propõe Coseriu (1982). Assim, podemos falar de uma língua portuguesa sem
assumir que a variedade de Lisboa, Rio de Janeiro ou São Paulo serviriam como exemplar da norma
padrão da língua. Mas como determinar se dois letos fazem parte da mesma língua ou se são na
verdade duas línguas distintas? Como determinar se o português falado em São Paulo é a mesma
língua do português falado em Lisboa? Veremos isso na seção a seguir.

3.1.2 Como se diferenciam línguas e dialetos?


Não há uma só maneira para responder as perguntas que encerram a seção anterior. Como
tudo em ciências humanas e sociais, diferentes olhares salientam diferentes critérios e produzem re-
sultados distintos. Nos capítulos anteriores, mencionamos certos números de línguas por famílias ou
regiões, e usamos diferentes fontes de informação, as quais nem sempre se baseiam nos mesmos
critérios para delimitar as fronteiras entre línguas e dialetos. Por isso, é importante que conheçamos
os principais critérios usados pelos linguistas, como vemos abaixo:
(a) Inteligibilidade mútua: esse critério se baseia na ideia de que se falantes de letos distintos
conseguem se comunicar, cada um usando seu próprio leto, e se fazem compreender mutua-
mente, estaríamos diante de duas variedades de uma mesma língua e não de línguas distintas.
Se há inteligibilidade, fica implícita a existência de um nível satisfatório de similaridades es-
truturais e práticas discursivas mais ou menos compartilhadas entre os falantes das diferentes
variedades linguísticas. Não há somente um fator estrutural que determine inteligibilidade
mútua, mas sim um conjunto de fatores, do léxico à fonologia, da morfologia à sintaxe e ao
discurso. No entanto, esse critério não é algo absoluto, sendo sujeito a assimetrias e a uma
dimensão escalar. Primeiramente, podemos falar de uma escala de intercompreensão entre
línguas diferentes. Por exemplo, podemos supor que um falante monolíngue de português
brasileiro compreende mais facilmente um falante de espanhol do que de italiano, ainda que
compreenda alguma coisa nas duas línguas. Além disso, é possível que um determinado “leto
1” se preste mais facilmente à compreensão pelo falante do “leto 2”, enquanto o “leto 2” seja
incompreensível ou mais difícil para o falante do “leto 1”. Em geral, vemos isso com portu-
guês e espanhol: em muitos casos, é mais fácil um falante de português compreender falantes
de espanhol do que o contrário. Outra dificuldade emerge em línguas que possuem um contí-
nuo dialetal, em que falantes de letos geograficamente próximos conseguem se compreender,
mas aqueles de letos mais distantes não.
(b) Diferenças estruturais: segundo a dialetologia moderna, há parâmetros estruturais para se
demonstrar como uma variedade é sistemicamente diferente de outra. Quanto mais linguisti-
camente diferenciadas são as variedades, mais certo estaremos de que se trata de línguas di-
ferentes. As diferenças entre os sistemas linguísticos são globais, podendo ocorrer no léxico,
fonologia, morfologia e sintaxe. Portanto, não há um só́ parâmetro estrutural que seja sufici-
ente para motivar uma distinção objetiva entre o que é uma língua versus variedades de uma
língua. Também não está claro para os linguistas qual seria o limiar em que teríamos um
acúmulo de diferenças suficientes para determinar se estamos diante de línguas distintas ou
dialetos de uma mesma língua. Essa proposta contrasta com visões que buscam uma base mais
objetiva para operacionalizar a distinção de línguas e variedades. É ainda muito influente, por
exemplo, a proposta do linguista Morris Swadesh (1955: 1010) para quem, se dois letos

70
possuem menos de 81% de palavras cognatas do vocabulário básico estaríamos diante de lín-
guas diferentes.
(c) Fronteiras sociolinguísticas êmicas: com base nesse critério, leva-se em consideração o que
os falantes percebem como fronteiras entre línguas distintas ou variedades de uma mesma
língua. Quando duas variedades gozam de certo grau de inteligibilidade mútua, os falantes
põem em operação critérios sociais e culturais para determinar essas fronteiras. No fundo, os
falantes estão atentos a diversos componentes sistêmicos da linguagem que marcam seme-
lhanças e diferenças na fala de pessoas e grupos sociais. Porém, é sobretudo no nível das
atitudes ou ideologia linguística que as pessoas projetam a partir dessas diferenças que vemos
a construção de fronteiras linguísticas mais ou menos inclusivas, i.e., que separam variedades
em línguas distintas ou as incluem numa mesma língua. Temos vários exemplos em que dife-
renças de ordem social e política são acompanhadas por um discurso que substancia diferen-
ças linguísticas – por mais que as variedades/línguas sejam mutuamente inteligíveis. O con-
trário também existe, em que pessoas se reconhecem como falantes de uma mesma língua a
despeito de diferenças sistêmicas e comunicativas entre seus letos.

Mesmo entre os linguistas – e talvez principalmente entre eles – encontramos desacordos so-
bre a definição das fronteiras entre línguas e dialetos, como introduzimos na seção 2.2.4 ao lidar com
a controvérsia sobre o número de línguas indígenas no Brasil. Isso vale para outros contextos. Por
exemplo, para a família Quechua, enquanto Adelaar & Muysken (2004), bem como o Glottolog
(Hammarström et al., 2022), contabilizam um total de cerca de 45 variedades, Torero (2007) propõe
que elas poderiam ser agrupadas em sete supra dialetos ou cinco línguas. Outro exemplo vem da
família Otomangue, no México, analisada como tendo 181 línguas pelo Glottolog e 83 por Campbell
(2023). Somente no ramo Zapoteca - um dos mais notáveis sob este ponto de vista - seria possível
delimitar desde 6 até 60 línguas distintas. Não obstante uma tendência regional à diversificação de
línguas Zapotecas em zonas geográficas muito próximas, estaria por agora havendo movimentos po-
líticos organizados por instituições indígenas para se padronizar uma variedade que pudesse servir de
língua comum a certos grupos etnolinguísticos mais próximos. Isso segue uma tendência de se usar
as línguas ora demarcar diferenças ou identidades entre os grupos sociais.
Muitas vezes é a língua, mais do que outros marcadores étnicos, que mais claramente é usada
para se construir uma identidade coletiva entre diferentes grupos sociais. Para o povo Baniwa-Kori-
pako no Alto Rio Negro, por exemplo, a noção de falar a mesma língua é fundamental na demarcação
da esfera etnolinguística Baniwa-Koripako frente aos mais de 30 outros povos em sua vizinhança. A
noção de mesma língua subjaz ao reconhecimento dos Baniwa-Koripako de diferenças dialetais entre
os diferentes subgrupos de sua complexa sociedade. Não há, no entanto, um nome próprio para a
língua por eles falada. Suas autodenominações, em geral, enfatizam as diferentes fratrias e clãs inter-
nos, sendo mais recente a discussão de uma autodenominação para todo o povo. As principais auto-
denominações recentemente propostas, como Wakuenai ‘gente da nossa língua’ e Medzeniakonai
‘gente que nasce da língua original’, reforçam a noção da língua como um elemento definidor do
grupo social.
Em outros casos, o reconhecimento de uma única língua abrangendo diferentes dialetos é uma
análise dos linguistas, pois a atitude dos falantes é de exaltar diferenças e não enfatizar as semelhan-
ças. Por exemplo, a Língua Karib do Alto Xingu pode ser olhada desde um ponto de vista linguístico
como dois supradialetos contendo cada um dois codialetos: Kuikuro e Matipu-Uagihütü formariam
um supradialeto, e Kalapalo e Nahukua formariam um outro. Porém, os grupos Kalapalo, Nafukwa,
Kuikuro e Matipu enfatizam que possuem línguas distintas. Como nos informa Franchetto (2020: 27),
as principais diferenças notadas pelos falantes estão na prosódia, no ritmo e tom da fala. Essas dife-
renças linguísticas são, muitas vezes, imperceptíveis para o estrangeiro e servem para delinear fron-
teiras sócio-políticas de coletividades, parte da manutenção e reprodução do sistema englobante alto-
xinguano. Como se vê, há uma diferença de escala ou mesmo de conceitos entre a visão ética (o ponto
de vista do linguista) e êmica (o ponto de vista dos falantes). Uma vez que a diferença entre língua e
fala, língua e dialeto não tem uma distinção equivalente na língua Karib do Alto Xingu (ver exemplo

71
(1.1)) no ponto de vista indígena, vemos que a questão é minimamente de diferenças culturais, e sua
solução deve ser buscada na construção da interculturalidade. Nesse sentido, é importante destacar o
que dizem os autores do inventário linguístico das línguas Yanomami que identificou 18 dialetos e 6
línguas na família:
A principal razão para essas divergências [o que são línguas e dialetos], principalmente entre linguistas
e não linguistas, está provavelmente na conhecida polissemia da palavra “língua”. Há palavras da lin-
guística que pertencem só aos linguistas. “Língua” […], ainda que seja um conceito central para a Lin-
guística, […] é um conceito obviamente anterior a ela e dela independente. Todos os povos do mundo
elaboram em algum grau essa noção […] A história de cada povo e questões político-territoriais e de
identidade de grupo, étnica ou nacional, por exemplo, entram muitas vezes decisivamente nas formulações
êmicas desse conceito que é, não raramente, ele mesmo central na formação identitária desses povos. “So-
mos um povo diferente porque falamos uma língua diferente” ou “Falamos uma língua diferente porque
somos um povo diferente” (Ferreira et al. 2019: 25)
Assim, uma vez que a definição do que são línguas e dialetos não é e não deve ser uma questão
privativa aos linguistas, ela deve ser fruto de negociações entre os difrentes atores. Isso não é de fácil
resolução e exige que linguistas e comunidades estejam em total diálogo e transparência com relação
aos fundamentos e às consequências de tal definição. Por um lado, devemos levar em consideração
uma visão êmica, ou seja, dos próprios povos indígenas. Por outro lado, é sempre importante termos
uma visão ética sobre o sistema social e sociolinguístico como um todo, o que nos dá um ponto de
vista mais distanciado da realidade imediata dos indivíduos que vivem dentro destes sistemas. No
fim, estamos falando de um processo político e que deve ser negociado entre os diferentes atores
desse processo, começando pelo próprio povo e atingindo esferas mais amplas da sociedade indígena
e não-indígena.

3.1.3 Socioletos
Um socioleto pode ser visto como um tipo de variedade linguística falada por um segmento ou grupo
social específico dentro de uma determinada sociedade, como, por exemplo, o tipo de variedades
faladas por diferentes clãs de uma determinada etnia, ou por diferentes classes ou castas sociais. Di-
ferentemente da noção de dialeto, os socioletos são muitas vezes falados numa mesma localidade.
Mais do que uma questão geográfica, os socioletos surgem quando existe uma associação entre vari-
antes linguísticas e grupos sociais específicos.
A sociedade dos Kadiwéu (família Guaicurú, falada entre Argentina, Paraguai e Mato Grosso
do Sul) é marcada por um sistema social hierárquico baseado na divisão de castas sociais hereditárias,
com a casta dos nobres, chefes, guerreiros, servos e escravos. Métraux (1946: 303) argumenta que
esse sistema nasceu com a expansão do poderio das elites Kadiwéu que, após dominarem a técnica
do uso dos cavalos em suas práticas guerreiras, subjugaram muitos grupos do Chaco, os quais foram
integrados à sua sociedade ao mesmo tempo em que as famílias Kadiwéu originais constituíram uma
nova aristocracia. Filomena Sândalo (1995) mostra que essa estratificação deu origem a dois socio-
letos: um falado por mulheres nobres e o outro falado pelos demais Kadiwéu. As diferenças entre os
socioletos reflete no sistema prosódico da língua. Por exemplo, o socioleto das mulheres nobres marca
com dois tons uma palavra de quatro sílabas, enquanto no socioleto de pessoas de outras classes, há
apenas um pico tonal no mesmo tipo de palavra (ver seção 4.3 sobre tons).
(3.2) Fala de mulheres nobres versus de demais pessoas entre os Kadiwéu (Sândalo 1995: 149)18
Mulheres Nobres Demais classes e gêneros
i-bbáaɢādiʔ i-bbáaɢadiʔ
1POS-mão 1POS-mão
‘minha mão’ ‘minha mão’

A percepção das diferenças entre socioletos podem ser tão explícitas e relacionadas a divisões
sociais que podemos dizer que elas são marcas que indexam diferentes identidades linguísticas. Essas

18
Consoantes e vogais duplas representam segmentos com uma duração longa.

72
marcas são muitas vezes chamadas de chiboletes.19 Vejamos alguns exemplos. A divisão das línguas
Inuit está traçada por uma linha que divide os letos Orientais e os Ocidentais. Essa divisão espelha,
em grande medida, a maneira de se pronunciar a palavra para “pessoa”: inuit é o plural de inuk “pes-
soa” cujas formas correlatas são encontradas nos letos agrupados como Inuit Ocidental, falados ao
longo da costa do Golfo do Alasca e Sibéria; já yupik é a forma singular do termo para “pessoa de
verdade”, baseada na raiz yuk “pessoa”, cujas formas correlatas são usadas através do extenso conti-
nuum dialetal que forma o Inuit Oriental no norte do Alasca, Canadá e Groenlândia (Bergsland,
1967).
A língua Baniwa-Koripako (Aruák) também possui divisões dialetais e étnicas marcadas por
chiboletes. Seus falantes reportam que podem identificar a região de onde vem certo indivíduo pela
maneira como falam termos para “sim”, “não” e “pessoa”. Por exemplo, a palavra para “não” tem
como correspondente karo [kaʐʊ] no médio e baixo rio Içana, ñame no Aiari, médio e alto Içana,
além de kori [kʊʐi] no rio Guainía na Colômbia (Figura 10). A maneira como esses últimos falam a
palavra “não” é tão emblemática que serviu de base para sua identificação étnica: são os chamados
koripako, i.e., ‘os que falam ‘kori’’ (Gonçalves, 2018).
Figura 10: Chiboletes para o termo “Não” em Baniwa-Koripako (Gonçalves, 2018)

construção das identidades sociais por meio de fronteiras entre línguas e socioletos põe em
jogo as maneiras como os falantes avaliam a variação linguística. Certos falantes apesentam uma
tendência sobrevalorizar certas diferenças como evidência de que falam línguas distintas e, logo, fa-
zem parte de grupos sociais distintos. Outros falantes focalizam mais nas semelhanças em detrimento
das diferenças e constroem identidades mais inclusivas. Por exemplo, se medimos o número de vari-
antes lexicais entre diferentes socioletos Baniwa-Koripako, chegaremos a uma média de 11% de pa-
lavras diferentes numa análise léxico-estatística (ver seção 5.1.4). Por outro lado, no rio Uaupés, logo
ao sul do Içana, temos 12 línguas da família Tukano cuja distância lexical é apenas um pouco maior:
12%. Como se pode notar, 11% de diferenças lexicais separam socioletos de uma mesma língua
Aruák (Baniwa-Koripako), enquanto 12% de diferenças lexicais separam 12 línguas Tukano distintas
(Cayón & Chacon, 2022).
Isso mostra que os povos de línguas Tukano e Baniwa-Koripako possuem uma percepção das
diferenças socioletais bem diferentes. Enquanto os Baniwa-Koripako reconhecem diferenças

19
O termo vem do Velho Testamento. A história conta que quando os gileaditas lutavam contra os eframitas ao longo do
rio Jordão, quando capturavam um fugitivo, pediam-lhe que falassem o termo correspondente “espiga” em Hebraico, ao
qual os gileaditas chamavam de “chibolete”. De acordo com o relato das escrituras (Juízes xii, 6), os eframitas diziam
‘sibolete’, com [s] e não com ‘ch’ [ʃ], como os gileaditas. Aqueles que por esse método eram identificados como eframitas
eram presos e executados.

73
internas, mas focalizam nas semelhanças para construir a ideia de que falam a mesma língua, os
falantes de letos Tukano (igualmente aos do Karib do Alto Xingú que vimos acima) reconhecem
semelhanças, mas focalizam nas diferenças para construir a ideia de que são povos que falam línguas
distintas.

3.1.4 Gênero-leto: fala feminina e fala masculina


Como vimos para os Kadiwéu, parte das diferenças socioletais podem estar relacionadas à maneira
diferente que homens e mulheres se expressam linguisticamente. As diferenças gênero-letais podem
se manifestar de forma gradativa ou categorial. De forma gradativa, podemos mencionar o uso mais
frequente de diminutivos na fala feminina do que na fala de indivíduos masculinos falantes de portu-
guês brasileiro: é gradativa porque tanto homens quanto mulheres usam o diminutivo, apenas que
mulheres o usam mais que os homens. Já numa forma categorial, as falas masculina e feminina são
marcadamente distintas, em que os gênero-letos se revelam pelo uso de diferentes palavras, sons e
construções gramaticais como veremos a seguir.
Em seu estudo abrangente sobre a variação gênero-letal das línguas das Américas, Françoise
Rose (2015: 524) lista 52 línguas com algum fenômeno de variação categorias nas falas de homens e
mulheres. Tal variação se encontra distribuída em diferentes níveis gramaticais, como resumido na
Tabela 10
Tabela 10: Número de línguas e locus da variação gênero-letal (Rose 2015)
Marcadores
Fonologia Léxico Morfologia
Discursivos
Total de línguas 4 8 29 11

Começando pelo nível fonológico, um exemplo bastante comentado é o da língua Karajá (família
Macro-Jê). Eduardo Ribeiro reúne uma série de fenômenos típicos da fala masculina ou feminina,
como ilustrado a seguir:
(3.3) Fala feminina e masculina em Karajá (Ribeiro, 2012)
Fala feminina Fala masculina Glosa
kɔwɔrʊ ɔwɔrʊ ‘árvore’
hãlɔkɔe hãlɔe ‘onça’
ikoro, itʃoro idʒoro ‘raposa’
adõ-dã aõ-dã ‘coisa’

Como podemos ver, a fala masculina apaga em certas palavras o fonema /k/ presentes na fala femi-
nina, passando ainda por alguns processos fonológicos adicionais de reacomodação fonológica. Se-
gundo Ribeiro (2012), a fala feminina poderia ser vista como um leto mais conservador do que a fala
masculina sob um ponto de vista histórico, i.e., teria mudado menos ao longo do tempo.
No nível lexical, há línguas que possuem palavras usadas apenas por homens e palavras usa-
das apenas por mulheres, ainda que possuam o mesmo significado. Por exemplo, Rose (2015) reporta
o caso da língua Tekó (ou Emerillon, família Tupi-Guarani), em que certos termos de parentesco são
diferentes a depender do gênero do falante, como é o caso do termo para “irmão” ilustrado abaixo:
(3.4) Fala feminina e masculina em Teko (Rose 2015)
Fala masculina Fala feminina Glosa
e-ɾ-adʒɨɾ e-mẽbɨɾ ‘meu irmão’
1SG-REL-irmão 1SG-irmão

No plano discursivo, certas partículas também podem apresentar diferenças gênero-letais. Vejamos o
caso da língua Kubeo (família Tukano), em que uma partícula “afirmativa”, cuja função discursiva é

74
a de reforçar para o ouvinte um ato de fala declarativo, indexa o gênero do locutor: i-kɨ ‘afirmativo –
locutor masculino’ e i-ko ‘afirmativo – locutora feminina’, como ilustrado abaixo:
(3.5) Partícula discursiva feminina e masculina em Kubeo (Chacon, 2012)
maha yó=kà=wɨ i-kɨ / i-ko
1PL.INC aqui=ABL=COLETIVO afirmativo-M / afirmativo-F
‘nós somos mesmo daqui!’

Nos sistemas de pronomes pessoais, também encontramos a indexação de gênero do locutor. Em


línguas como o português é comum vermos a marcação de gênero do referente de um pronome de 3ª
pessoa, como ele vs. ela. Notemos que, aqui, não temos uma diferença gênero-letal, pois tanto homens
quanto mulheres usam as formas “ele” e “ela”. Muito mais raro é quando encontramos essa diferença
nas formas da 1ª pessoa, quando então a variação das formas pronominais se dá se o locutor ou a
locutora é do gênero masculino e feminino. Vejamos alguns exemplos. A língua Kokama (família
Tupí-Guaraní, Amazônia) possui a forma ta para um ‘eu-masculino’ e a forma etse para um ‘eu-
feminino’ (Vallejos, 2010). A língua Nasa Yuwe (ou Páez, língua isolada, Andes da Colômbia) possui
as formas adʲ para ‘eu-masculino’ e ũʔkʷe para ‘eu-feminino’ (Jung, 2008). Já a língua Miranha
(família Bora, Amazônia) possui diferenças para os pronomes de 1a pessoa dual, como em mɯ́ʔtsí
‘nós dual exclusivo masculino’ vs. mɯ́pɨ ‘nós dual exclusivo feminino’ (Seifart, 2005).
As variações gênero-letais também podem se aprofundar ao nível da morfologia das palavras.
No caso do português, nos termos obrigad-o e obrigad-a vemos uma variação no gênero da palavra
que depende do gênero do locutor ou locutora, diferentemente das palavras como o menino e o sal ou
a menina e a mesa que serão masculino e feminino, respectivamente, independentemente do gênero
do locutor20. Na língua Chiquitano, há também uma oposição gramatical entre gênero feminino e
masculino. Porém, apenas os homens usam os morfemas de gênero em sua fala, enquanto as mulheres
usam as mesmas palavras, porém sem a marcação de gênero (Adelaar & Muysken. 2004: 478–479).
Na língua Garífuna (família Aruák, América Central) existe também um sistema de gênero
gramatical que contrasta “masculino” e “feminino” para seres-humanos e outros seres animados,
como menino vs. menina em português. Quando se referem a termos inanimados, no entanto, a mar-
cação de gênero gramatical não é fixa em cada palavra, como seria o caso de o sal e a mesa em
português. Em Garífuna, o gênero de coisas inanimados e abstratas é marcado pelo gênero do locutor
ou locutora. Mais interessante ainda, homens usam o gênero feminino e mulheres usam a forma mas-
culina para se referir às mesmas coisas inanimadas. Vejamos os exemplos abaixo.
(3.6) Marcação de gênero feminina e masculina em Garífuna (Rose 2015)
Fala masculina
gúndan-tina t-au idemual t-ó
feliz-1SG 3F-com ajuda 3F-dêitico
‘estou feliz com essa ajuda’

Fala feminina
gúndan-tina t-au idemual t-ó
feliz-1SG 3M-com ajuda 3M-dêitico
‘estou feliz com essa ajuda’

A língua Garífuna descende diretamente da língua Kaliphuna ou Karib Insular, uma língua Aruák
com diversos empréstimos do Kariña, uma língua da família Karib. Rose (2015) menciona que o

20
A explicação para isso é diacrônica: obrigado/a é uma forma verbo-nominal que concorda em gênero e número com o
sujeito. Como reduções de formas de formas “Estou obrigado” ou “Estou obrigada” (perante alguém que lhe tenha feito
um favor), essas palavras ainda marcam o gênero do sujeito, encontrado em outros verbos no particípio passado, como
estou encantada ou encantado, etc.

75
morfema de negação usado por falantes masculinos é um sufixo com uma origem Karib -pa-, en-
quanto o usado por falantes femininos é um prefixo com uma origem Aruák ma-:
(3.7) Marcação de negação na fala feminina e masculina em Garífuna (Rose 2015)
Fala masculina Fala feminina Glosa
arámêtou-pá-tina ma-rámêtontina ‘Não estou escondendo nada’

Essa cisão etimológica entre as duas marcas de plural remonta à história do povoamento da região do
Caribe. Antes da chegada dos europeus, as ilhas eram dominadas por falantes de línguas Aruák.
Houve então uma outra migração do norte da América do Sul para as Pequenas Antilhas por falantes
de Kariña (família Karib). A fusão dessa nova população falante de línguas Karib com a população
local falante de uma língua Aruák levou à etnogênese dos Kalíphuna. É provável que nesse contexto
específico, homens Kariña tenham tomado como esposas mulheres Aruák. Essa nova sociedade, for-
mada por homens de origem Karib e mulheres de origem Aruák, manteve essa composição pluri-
étnica explícita pelos diferentes letos de sua língua. Isso também ocorreu no plano sociocultural:
ainda que apresentassem uma organização social e práticas culturais mais próximas dos Karib do que
dos Aruák (Santos-Grandero 2002: 40). O processo social preciso pelo qual esse gênero-leto surgiu
permanece um ponto de discórdia, em particular, se a chegada dos Karib foi uma migração pacífica
ou uma conquista violenta (ver Hoff, 1994; Whitehead, 2002)
Algo similar ocorre na língua Karajá, com a qual abrimos esta seção. As diferenças gênero-
letais são mantidas como parte de instituições sociais que reforçam o lugar e o papel de homens e
mulheres. Como sintetizado por Ribeiro (2012: 151-2), existem padrões de organização socila que
claramente separam homens e mulheres: pintura corporal e ornamentos claramente distintos em rela-
ção ao gênero; mulheres são ceramistas, enquanto homens são entalhadores de madeira; mulheres são
fabricantes de cestos delicados, homens são fabricantes de cestos de transporte rústicos e resistentes.
O espaço social também é claramente delimitado: a aldeia é vista como o lugar das mulheres por
excelência em uma sociedade matrilocal, enquanto há espaços rituais exclusivamente masculinos,
onde os principais festivais são planejados e realizados.

3.2 Letos especiais


Alguns usos linguísticos se diferenciam da linguagem do dia a dia por apresentarem contextos, con-
teúdos, construções e performances específicas. Observamos isso em certos gêneros discursivos
como narrativas míticas, oratória política, linguagem reverencial, diálogos cerimoniais, lamentações
rituais, canções benzimentos, entre outros. Precisam ser aprendidas e aperfeiçoados, são usados em
geral por especialistas pois requerem a especialização dessas pessoas para seu uso correto e eficiente.
São formas de linguagem com usos e estruturas especiais e que plasmam o multilinguismo e a poli-
fonia das culturas indígena.
Muitas sociedades possuem um leto usado especificamente para demonstrar respeito e reve-
rência a pessoas mais velhas ou de maior hierarquia social, ou mesmo para demonstrar respeito em
relação ao conteúdo referencial de um texto. Entre os Mexica que falavam Nahuatl (família Uto-
Azteca), bem como entre os falantes de Nahua hoje em dia, a chamada “linguagem reverencial” pos-
sui algumas combinações entre formas e sentidos que a diferenciam da linguagem cotidiana. Por
exemplo, um substantivo como ilama ‘anciã’ terá a forma ilama-tzin ‘honorável senhora’, ou a pala-
vra para ‘água’ a-tl terá a forma a-tzin-tli ‘água sagrada’. Em ambos os casos, tem-se o acréscimo do
morfema -tzin- para indexar a fala referencial. Em outros contextos, esse morfema é usado como
um(Silver & Miller, 1997: 77) ‘diminutivo’.
Em outras sociedades, a linguagem reverencial possui marcas prosódicas, modificando a en-
toação e o tipo de voz dos indivíduos. A linguista Walkíria Neiva Praça, que trabalha junto aos
Ãpyawa (ou Tapirapé, família Tupí-Guaraní) costuma contar a seus alunos e colegas uma história de
que certa vez um homem chegou rouco à aldeia, quase sem voz, após ter ficado sozinho com seu
sogro por alguns dias em uma pescaria. O leto necessário para um genro falar com seu sogro requer
uma voz do tipo renhida ou crepitante (também conhecida como creaky voice). A rouquidão que o

76
homem teria ao chegar na aldeai teria sido resultado do uso exclusivo e extensivo desse tipo de leto,
uma vez que o coitado do genro não tinha ninguém mais com quem falar além do sogro.
Um tipo de leto especial que encontramos em diversos grupos indígenas, sobretudo ao norte
do rio Amazonas, são os diálogos cerimoniais. Entre os Kubeo (família Tukano) e outros grupos do
Alto Rio Negro, temos a “conversa de tabaco”, travada entre dois especialistas, cada um pertencendo
a um grupo exogâmico distinto, sendo, portanto, cunhados. O diálogo ocorre em uma cerimônia re-
gionalmente conhecida como dabukuri, em que ambos os grupos se saúdam e falam sobre a história
de cada um, reforçando os laços de troca e cooperação ancestral entre eles. Esse leto possui uma
entoação que está a meio termo de um canto e uma narrativa, usa palavras e algumas construções não
observadas no uso cotidiano da língua e possui um caráter reverencial. Por exemplo, as palavras co-
tidianas para cunhado em Kubeo são çimakɨ ou kapenɨmɨ, enquanto no diálogo cerimonial temos
nutedu – um étimo de origem Aruák, remontando ao fato de certos grupos Kubeo que falavam uma
língua Aruák (e não Tukano) no passado. Vejamos abaixo um trecho desse diálogo, performado ape-
nas por um dos especialistas, o senhor Simão Saldanha (o áudio poderá ser ouvido no apêndice on-
line):
(3.8) Diálogo Cerimonial Kubeo Buçi Boroteiye ‘Conversa de Tabaco’
- kuinakʉ mahe ñekũ Yuri pãrãmena
‘netos de um só avô, netos de Yuri’
- mahẽ ðẽkuwã ne nurẽ kui tawarõa
‘nossos avós, os lugares onde eles andaram’
- mahẽ bʉkʉya ẽkãboa põetei tawarõa
‘os lugares de nossa origem na beira do grande rio’
- mahe bahu põe tei dobare há ̃ rĩ kʉri-wʉ kari pedeka mahe ñekuwã mare ne bahu yáwarĩ núrĩ
kame durida mahare aruka nutedu
‘nós que nascemos por nós mesmos, enquanto nossos avós conversaram entre si, deixando essa cultura
para nós, meu cunhado’
- harãwʉa kuinope teino ma mahare hi aiyedeka meda mʉre, nutedu
‘os dias estão terminando para nós, como eu digo para você, meu cunhado’

Entre os Yanomami, há um diálogo cerimonial conhecido como Wayamow realizado entre pessoas
de diferentes localidades quando estão se visitando. Esse diálogo teria sido criado pelo demiurgo
Omama como uma forma de garantir a convivialidade entre pessoas que não se veem com frequência,
permitindo que elas troquem notícias, façam comércio e estabelecem relações sociais que misturam
amistosidade e animosidade (Lizot, 1996: 228). O Wayamow é falado de modo formulaico e quase
cantado; enquanto um homem fala, o outro repete o que esse acabou de falar. As mulheres apenas o
entendem, mas não o utilizam (Migliazza, 1972: 48). A linguagem empregada no Wayamow já foi
pensada como um dialeto que contivesse traços conservadores de uma antiga proto-língua, e que
funcionasse como uma língua franca para auxliar a transpor a barreira entre as diferentes línguas
Yanomami (Migliazza 1972: 40). Vejamos um exemplo de uma locução de Wayamo entre os Yano-
mamɨ da Venezuela abaixo no exemplo (3.9). Para ouvir trechos de um diálogo original, ver o apên-
dice online.
(3.9) Frases de um diálogo cerimonial Wayamow dos povos Yanomami (Lizot 1996: 140)
kihi waika a rë përɨ-ra-ti
lá Waika 3 MOD viver-DIS-DUR
“(d)os Wáika que vivem por lá...”

ei rahaka shiiwë kɨ rë pëyë-piye-i


DEM bambú pontas PL MOD cortar-DIST-PRESENTE
“estas pontas de bambús que cortam...”

weti ipa ta prapa-rɨ

77
INT 1POS IMP por.no.chão-PERFECTIVO
“me ofereça uma delas”
(“me ofereça uma das pontas de bambú dos Waiká que moram por lá”)

Urban (1986), analisando os diálogos cerimoniais entre os povos Waiwai e Trio (família Karib), os
Yanomami, os Shuar e Ashwar (família Chicham), os Kuna (família Chibcha) e os Xokleng (família
Jê), mostra que os diferentes tipos de diálogos cerimoniais possuem alguns objetivos pragmáticos
específicos, como: o compartilhamento de uma mesma tradição, o intercâmbio e o equilíbrio de poder
entre os grupos. Segundo Urban, os diálogos cerimoniais são um veículo de interação linguística e
social solidária, comunicando uma mensagem sobre como a coesão entre diferentes grupos deve ser
alcançada num contexto em que essa mesma coesão está sendo reconstruída, ou seja, nas interações
cerimoniais envolvendo participantes que estão distanciados enquanto indivíduos e grupos sociais.
Na “conversa de tabaco”, vemos a interação entre grupos cunhados, uma relação social frágil baseada
na troca e na construção de elos comuns entre grupos que, ao contrário, poderiam até ser inimigos
(Viveiros de Castro, 2015).
As lamentações rituais são um outro tipo de leto bastante difundido entre os povos indígenas.
Elas chamaram a atenção de portugueses e franceses desde o século XVI, quando entraram em contato
com os Tupinambá na costa do Brasil. Com esse leto, os Tupinambá recebiam em suas aldeias paren-
tes e até estrangeiros que há muito não se viam. Urban (1988) traz um estudo comparativo de diversos
tipos de lamentações rituais na América do Sul e mostra que, desde um ponto de vista cultural, esses
letos estão relacionados à expressão de afeto e tristeza expressos de modo ritualizado em uma maneira
que é culturalmente apropriada às sociedades e aos contextos em que ocorrem. Desde um ponto de
vista formal, as lamentações rituais envolvem ritmos, tons e usos marcados da voz que remetem ao
choro, como falsetes, voz crepitante, vozeamento ingressivo, entre outros. Desde um ponto de vista
comunicativo, as lamentações são quase como monólogos, não se direcionam a um ouvinte especí-
fico, mas antes à demonstração do sentimento do seu emissor perante a sociedade como um todo.
Entre os lamentos Xavante, Urban (1988: 391) nos fala que não há formação de palavras propria-
mente, apenas vogais e a oclusiva glotal são usadas. Já entre outros grupos, palavras, frases e sequên-
cias mais complexas são produzidas. Entre os Xokleng, o lamento consiste em um conjunto de ora-
ções declarativas, que podem ser sobre a situação atual da pessoa que lamenta ou sobre a pessoa cuja
ausência causou o luto. Um exemplo segue abaixo (ver lista de abreviaturas das glosas interlineares):
(3.10) Lamentação ritual Xokleng
ẽn-cõ ẽn káka-òŋ mlè zòŋden-mõ nẽ kèke yò
eu-ERG eu parentes-PL com estar.em.paz-DAT CONT HAB PASSADO
ẽn-cõ wèn nẽ ŋeke kũ nũ òŋ to plãl kũ kònò nẽ kũ
eu-ERG ver CONT HAB CONJ eu eles para chorar CONJ doente CONT CONJ
‘junto com meus parentes eu estava em paz, mas agora eu choro por eles e estou adoecido

Enquanto os diálogos cerimoniais e lamentações rituais são gêneros que estão a meio termo
da canção e do diálogo, os povos indígenas apresentam repertórios riquíssimos de canções, as quais
também vão revelar propriedades formais e de conteúdos diferentes da linguagem cotidiana. Entre os
Ute e Shoshone do Sudoeste dos EUA (família Uto-Asteca), os repertórios de canções são compostos
por diferentes tipos de temáticas como, por exemplo, as “canções de cura” chegam para o pajé durante
um sonho quando seu poder é pela primeira vez revelado e se tornam uma propriedade privada desse
pajé; a “dança do urso” é uma dança cerimonial que ocorre na primavera em um evento de dez dias
com danças, festas, jogos, corrida de cavalos e jogos de azar para fortalecer os laços sociais dentro
da comunidade, encorajar o namoro e marcar o fim da puberdade para as meninas. O urso simboliza
liderança, força e sabedoria. Já as “canções de roda” são mais livres e podem ser criadas e entoadas
por qualquer pessoa. As canções podem apresentar alterações fonéticas que em geral levam a certas
ambiguidades poeticamente propositais no sentido das palavras ao transformar consoantes surdas

78
geminadas como [kk], [pp] [ttsi] em pré-nasalizadas, como [ŋg], [mp] e [ndz] (Silver e Miller 1997:
84-5) (um exemplo da “dança do urso” pode ser ouvido no apêndice online).
Os povos do Alto Xingu são falantes atualmente de cerca de 6 línguas e possuem um rico
repertório cerimonial (ver também seção 6.3.4). São ao todo cerca de 15 diferentes rituais, parte de
um repertório cultural usado em eventos cerimoniais que reúnem povos de distintas aldeias e, por-
tanto, servem para criar e reforçar os laços sociais construídos por essa sociedade milenar. Segundo
Franchetto (2011: 8) o “ritual é o locus do que os Kuikuro [família Karib], por exemplo, chamam de
tis-ügühütu, ‘a nossa (tis-, 1a pessoa plural exclusiva) maneira de ser’, e tis-akisü, ‘a nossa pala-
vra/língua’”. As canções alto-xinguanas estão divididas em gêneros e são performadas em contextos
específicos. As canções do Kwaryp – o ritual intertribal mais importante de comemoração dos chefes
falecidos cujas origens míticas remontam à origem da humanidade– são memorizadas e transmitidas
há várias gerações desde que foram “descobertas e conquistadas pelos antigos” (Mehinaku, 2010:
80). Como Franchetto nos explica, as canções do Kwaryp (ou egitsü em Kuiluro) “contêm palavras e
expressões Tupi e Karib, com alguns cantos provavelmente Arawak” (Franchetto 2011: 17), o que
revela um amalgama linguístico que remonta à história milenar da composição multiétnica alto-xin-
guana.
Outras canções do Alto Xingu foram criadas mais recentemente, enquanto há ainda aquelas
que podem ser criadas a qualquer momento. Segundo Mútua Mehinako (2010: 102) Tolo é um ritual
feminino que foi instituído faz pouco tempo. Outrora proibido às mulheres, há algumas gerações,
“uma mestra Kalapalo começou uma ‘revolta’, assumindo uma posição forte, encarando, assim, os
mestres homens para poder cantar publicamente”. Com isso, começou-se a ritualização dessa festa
feminina. Vejamos no exemplo um trecho de um canto Tolo transcrito e traduzido da língua Kuikuro
por Mutua Mehinaku (2010: 103). Como em outros do gênero Tolo, o canto fala de amor e saudade.
A mulher compositora se refere a seu amante, um Kagaiha – um ‘não indígena’ – que havia lhe pedido
para preparar braceletes e joelheiras feitos de fios de algodão.
(3.11) Canto 'Tolo' Kuikuro por Mutua Mehinaku (2010: 103)
togokige tsange engikeke uinha
‘você vai cortar fio de algodão para mim’
uhisü kilü egei, uhisü kilü egei
‘meu querido disse, meu querido disse’
kagaihate manga utai utono-hoingo
‘quando eu estiver no meio dos Brancos sentirei saudade (de você)’
itate hüte manga utai utono-hoingo
‘quando eu estiver no buritizal sentirei saudade (de você)

Em muitas sociedades indígenas da América do Sul, formas de discurso específicas são fre-
quentemente associadas a práticas de cura, adivinhação, profecia e formas de magia. O discurso xa-
mânico frequentemente envolve o uso de letos ininteligíveis para não especialistas; também é comum
que os xamãs usem cantos, sussurros e sopros (Beier et al., 2002). Letos xamânicos tendem a depen-
der fortemente de substituições lexicais, envolvendo expressões metafóricas e étimos que às vezes
podem ser identificados como arcaísmos ou empréstimos de outras línguas (Epps 2021). Por exemplo,
o Callahuaya é um leto secreto dos Andes, usado em rituais de cura por pajés treinados profissional-
mente, que falam Quechua em seu cotidiano. O vocabulário principal de Callahuaya vem de Pukina
(uma língua isolada que, apesar de ter sido usada como língua franca em uma ampla região do Alti-
plano boliviano, foi extinta logo após a conquista). Sua gramática é composta de construções
Quechuas, enquanto fonologicamente mistura oclusivas aspiradas e glotalizadas Quechuas e o sis-
tema de cinco vogais do Pukina ((Adelaar & Muysken, 2004; Muysken, 1997)
Entre os Awá-Guajá (Tupi-Guarani) do Maranhão, um leto especial é usado para se comunicar
com os seres Karawara, que vivem nos patamares celestes, caçadores infalíveis e espíritos auxiliares
no xamanismo (Garcia 2011: 375). Essa população celeste se comunica com os humanos por meio
de canções relacionadas ao universo xamânico, muito importantes para o sistema de cura e o

79
conhecimento da caça. Quando os Awá cantam no leto dos Karawara são as vozes e as perspectivas
dos Karawara que entoam. Assim, produzem substituições lexicais que recategorizam os referentes
usuais das palavra do cotidiano. No exemplo abaixo, vemos substituições para: ‘macaco guariba’
tawamỹ (leto cotidiano) à wari (leto Karawara), ‘comer’ me à u’u, e ‘floresta’ ira à ka’a (Maga-
lhães & Garcia, 2023)
(3.12) Leto especial Karawara (Magalhães & Garcia, 2023)
Leto dos Karawara
ira r-opy tawamỹ Ø-me-hara jaha (Leto Kawarara)
árvore REL-copa guariba REL-comer-NMZ eu
‘Eu sou um comedor de guaribas da floresta’
Leto comum
ka’a wari Ø-’u-hara jaha (Leto cotidiano dos Awa-Guajá)
árvores guariba REL-comer– NMZ eu
‘Eu sou um comedor de guaribas da floresta’

Vejamos que quando falam de “árvores”, os Karawara usam o termo “copa das árvores”, uma vez
que, estando no céu, sua perspectiva das árvores é de cima para baixo, ao contrário dos humanos que
as veem de baixo para cima. Existem dezenas de Karawara e os cantos são referidos diretamente à
presa que um determinado Karawara caça. Por isso, são também cantos de caça, entoados pelos Awá
quando vão caçar (baixinho para não serem ouvidos) e, principalmente quando retornam (bem alto
para que todos saibam que animal abateram)” (Garcia, 2011: 401). Essas canções são também ento-
adas em rituais especiais, conhecidos como Takajá, cujo objetivo é aproximar os Karawara dos hu-
manos “para cantar na terra, e propiciar que os homens viajem para o iwá [céu], também para cantar”
(Garcia 2011: 405).
Os letos especiais indígenas não ficam restritos ao domínio da cultura tradicional. A lingua-
gem acompanha as transformações socais e culturais, e novos letos surgem para novos contextos.
vimos isso no caso dos cantos do gênero Tolo no Alto Xingu. Um outro exemplo notável disso é da
juventude Guarani, que tem usado o rap como uma arte verbal e veículo para expressar sua identidade
e resistência frente às injustiças que seu povo vem sofrendo desde os primórdios da colonização. Os
Brô MCs do Mato Grosso do Sul talvez sejam o primeiro grupo de rap indígena no Brasil e suas
músicas misturam o Guarani com o português de uma forma que “longe de se configurar como uma
aculturação – no sentido de perda –, aponta para modos de atualizar as formas de uso da palavra
Kaiowá e Guarani” (Guilherme, 2021: 39). Vejamos a seguir um trecho da música Tupã transcrito
e traduzido pela antropóloga Jacqueline Guilherme (o restante da música pode ser escutado no canal
do Youtube dos Bro MCs a partir de um link disponibilizado no apêndice online):
(3.13) RAP em Guaraní Kaiowá do grupo Bro MCs (Guilherme 2021: 39)
Che ru Tupã, Aiko ñondive, Ñande reko
‘Meu pai, Tupã, nós estamos juntos, nosso modo de ser e viver’
heta omaño pra defender Ñande reko
‘muitos já morreram para defender o nosso modo de ser e viver’
Che ru Tupã, Aiko ñondive
‘Meu pai, Tupã, nós estamos juntos’

Nas palavras da antropóloga, que investigou junto aos Guaraní os processos de criação de suas rimas
e versos:
O que os MC’s chamam de seu ‘ñande reko’ (nosso jeito de ser e viver) aparece constantemente nos apelos
de suas rimas, aconselhando os indígenas a se orgulharem de quem são, a não deixarem sua maneira de
ser, sua língua materna (o guarani), e sinalizando condutas especificas frente às intempéries da vida em
reserva, da vida próxima às cidades, frente ao preconceito que sentem ao transitar pelas cidades, da vida
nas retomadas de terras, e assim por diante. Além de valorizarem o seu ñande reko, sinalizam que essa é

80
uma das maneiras de se alcançar o que chamam de reko porã (bem viver) ao tomarem o caminho das boas
condutas. (Guilherme 2021: 41).
3.3 Línguas Multimodais: assovios, tambores, escritas e sinais
As línguas orais são adaptadas à expressão pelo aparelho fonador humano. Porém, o sinal emitido
por nós, a nossa voz, possui certas limitações, a começar pela dificuldade de comunicação a longa
distância e pela necessidade de condições ambientais e físicas dos indivíduos para que se escute a fala
de alguém, bem como pela efemeridade da palavra falada que logo que é dita desaparece sem deixar
vestígios. Para superar esses problemas, as sociedades desenvolveram sistemas de comunicação ba-
seados em outros canais para além da voz humana. Veremos alguns desses sistemas nas seções a
seguir.

3.3.1 Falas assoviadas e percussivas


O uso de assovios e tambores são duas modalidades que sociedades em diferentes partes do mundo
usaram para adaptar sua língua a contextos comunicativos específicos. Não estamos falando códigos
arbitrários , Estamos falando de verdadeiras falas assoviadas e percussivas que emulam a língua oral
em diferentes modalidades, recodificar propriedades da fala em assovios e tambores para transmitir
mensagens a longa distância em ambientes naturais. A recodificação de uma língua oral à expressão
por assovios e tambores realiza uma otimização bio-acústica, adaptando a fala a um contexto natural
que demanda uma comunicação à longa distância. No extenso estudo de Julien Meyer (2015) sobre
falas assoviadas, o autor mostra como boa parte dessas falas se encontra em regiões de alta altitude
ou em lugares com vegetações densas, conforme vemos na Figura do Apêndice Online 6. Nas Amé-
ricas, Meyer identificou letos silvados entre os seguintes povos:
§ América do Sul: Aché, Wayampi, Gavião, Suruí e Tupari (Tupi); Bororo; Karajá (Macro-Jê); Ashe-
ninka (Aruák), Pirahã (Mura-Pirahã).
§ América do Norte: Chinanteco, Mazateco e Mixteco (Mixe-Zoque), Tepehua (Totonaca), Kicka-
poo (Álgica), e Yup’ik de St. Lawrence (Eskimó-Aleuta).
Figura do Apêndice Online 6: Distribuição dos letos silvados pelo mundo (Meyer 2015)

Além de uma adaptação ao meio-ambiente, os letos silvados e percussivos são usados para comunicar
mensagens do dia a dia ou de eventos especiais. Entre os Bora do Noroeste da Amazônia, os tambores
conhecidos como manguaré são usados para comunicação dentro e entre comunidades com até 20
km de distância. Em princípio, todo homem Bora adulto pode usar os tambores e todo membro da
comunidade pode entender as mensagens de manguaré, ambas habilidades adquiridas sem treina-
mento explícito, apenas pelo convívio social. Os Bora usam seus tambores de dois modos: no modo
musical, usado em festas e rituais, as batidas representam ou uma música instrumental ou emulam as
sílabas de uma canção baseada na fala modal; no modo conversatório, são usados para codificar qual-
quer tipo de mensagem do cotidiano (Seifart et al., 2018). (No apêndice online, disponibilizamos um

81
vídeo de uma demonstração do manguaré dos Bora e um exemplo de falas assoviadas entre os Ma-
zatecos e Chinantecos do México).
Além da adaptação ambiental e pragmática, os letos silvados e percussivos efetuam uma adap-
tação às propriedades formais das línguas orais, principalmente no que tange a fonologia, manipu-
lando elementos como a qualidade das vogais, tons, entoação e ritmo. Entre os letos silvados, temos
a possibilidade de emulação de propriedades linguísticas mais ricas, como as qualidades das vogais,
além de tom e ritmo. Meyer (2015) sugere que existe, no entanto, uma especialização do uso dos
assovios a depender do tipo de língua. Em línguas tonais, os silvos refletem as alturas melódicas das
sílabas, enquanto em línguas não tonais, encontramos uma caracterização dos diferentes tipos de vo-
gais das línguas, como [i] vs. [a], por exemplo. No modo conversatório do manguaré Bora, os tam-
bores emulam os intervalos rítmicos entre vogais que ocorrem na língua, diferenciando, por exemplo,
intervalos com duração breve e longa a depender da estrutura silábica da palavra. Por exemplo, a
palavra múútsúʔòhts•́n está estrutura em quatro sílabas que representam diferentes tipos de intervalos
rítmicos: múúţ (CVVC), tsúʔ (CVC), ʔòhţ (CVCC), tsı́n (CVC). Além do ritmo, os tambores emulam
também os tons da língua, usando-se um tambor maior para tons baixos ou graves e um tambor menor
para tons altos ou agudos (Seifart et al. 2018). Ainda com relação aos tons, Seifart e seus colegas
notam que os letos percussivos se desenvolvem predominantemente em línguas tonais.

3.3.2 Escritas Indígenas


Semelhantemente aos tambores e assovios, a escrita confere às línguas um canal de expressão que
permite seu uso para além da comunicação face a face. O registro gráfico da linguagem possibilita,
crucialmente, que as mensagens sejam lidas por diferentes pessoas, em diferentes lugares e momentos
históricos. A escrita é, portanto, uma tecnologia que amplia os potenciais e, ao mesmo tempo, trans-
forma em um novo formato a linguagem humana. Entre as línguas indígenas das Américas, encon-
tramos diferentes experimentações com o uso de recursos gráficos e outros tipos de materiais para
representar aspectos simbólicos e formais da linguagem e do pensamento. Vamos explorar alguns
desses recursos nessa seção, focando tanto em sistemas que podem diretamente ser vistos como es-
crita stricto sensu, i.e., uma representação visual de uma língua como alfabetos, silabários, hieróglifos
e logogramas, bem como aqueles sistemas mais bem compreendidos como sistemas ideográficos, i.e.
sistemas de símbolos usados para representar ideias e não necessariamente sons ou palavras.
Os pesquisadores que se dedicam ao estudo da história da escrita debatem há muito tempo
sobre quando e onde a humanidade inventou a escrita. A Mesopotâmia, o Egito, a Índia e a China são
lugares no velho mundo onde temos os registros mais antigos, enquanto nas Américas é a Mesoamé-
rica o primeiro local de invenção da escrita. Como as áreas do velho mundo estiveram conectadas
historicamente, não está claro se a escrita foi inventada de modo independente em cada lugar ou se
haveria uma influência de um lugar a outro no desenvolvimento da escrita. Dado o isolamento geo-
gráfico, a escrita desenvolvida na Mesoamérica não deixa dúvidas de que ela teve um desenvolvi-
mento independente.
Os primeiros sinais de escrita na Mesoamérica aparecem no chamado período formativo da
região, entre 1500 a.C. e 400 a.C., como parte da cultura Olmeca. Os registros gráficos desse período
ainda permanecem indecifrados, porém a escrita do período Épi-Olmeco, datado entre 300 a.C. e 200
d.C., pôde ser decifrada e relacionada às línguas Zoque, possuindo claras conexões com a forma de
escrita utilizada pelos povos Mayas em períodos posteriores (Justeson & Kaufman, 1993). Os textos
Mayas mais antigos remontam há mais de 2200 anos e foram escritos provavelmente até o século
XVII d.C. em áreas menos afetadas pela colonização espanhola, que proibiu o uso da escrita e destruiu
muitos dos registos feitos pelos Mayas e outros povos mesoamericanos. Nas sociedades Maya, os
textos eram escritos em monumentos com o objetivo de registrar a história e a vida de grandes líderes
políticos, bem como ideias religiosas, astronômicas e calendários em livros chamados de códices
escritos em papeis feitos de casca de árvore. Em geral, um texto Maya era lido a partir do canto
esquerdo superior, de cima para baixo e da esquerda para a direita como em colunas (ver Figura 11).
A escrita Maya combina símbolos que significam palavras (logogramas) ou sílabas (silabogramas),
(característica que compartilham com a escrita hieroglífica egípcia). Ela seria composta de cerca de

82
200 grafemas, dos quais 80 serviriam para representar sílabas. Assim, para representar a palavra witz
‘montanha’ poderiam ser usadas duas formas: o logrograma para montanha, como na Figura 12a, ou
um glifo composto de dois silabogramas wi + tz(i) com na figura Figura 12b
Figura 11: Orientação de leitura de um texto Maya (Kettunen & Helmke, 2019)

Figura 12: Dois glifos Mayas para a palavra witz 'montanha' (Kettunen e Helmke 2019)

§ §

Nos Andes, acredita-se que que o império Inca (1438–1533 d.C.) tenha usado um sistema de nós e
fios com cores diferentes chamados de khipu (ou quipu), usados como forma de registros de informa-
ções. Existem várias centenas de khipus no mundo hoje, esperando para serem completamente deco-
dificados. Pesquisas lideradas pelo arqueólogo Greg Urton têm mostrado que na maior parte dos khi-
pus as informações se referem a quantidades baseadas num sistema de contagem decimal tal qual
usado pelos falantes de Quechua. Cores e o espaçamento entre as diferentes cordas trariam informa-
ções que codificam a identidade dos elementos sendo contados, como dados de recenseamentos po-
pulacionais, transações comerciais, nomes e unidades de organização de grupos que faziam parte do
império Inca (Medrano & Urton, 2018). É possível que os khipus permitissem a codificação de infor-
mações não numéricas por meio do uso de cores, tipos de cordas diferentes e/ou adição de objetos
como penas, ossos, e contas cujo significado cultural deveria ser memorizado. Fora dos Andes, na
região amazônica, os khipus foram encontrados como objetos mnemônicos usados para relembrar
sequências rituais, canções e eventos de narrativas mitológicas (Chaumeil, 2005; Hugh-Jones, 2016)).
Para um exemplo de umkKhipu andino, ver Figura do Apêndice Online 7.
Figura do Apêndice Online 7: Um Khipu usado nos Andes como sistema de registro de informações

83
Houve também em outras regiões das Américas o desenvolvimento de sistemas de escritas
locais. Porém, apesar de algumas delas terem sido tecnologias culturais autenticamente criadas pelos
povos indígenas, elas surgiram após o contato com os europeus. Entre elas, podemos listar o silabário
Cherokee criado pelo intelectual indígena Sequoya, a escrita dos Apache Ocidentais desenvolvida
pelo Xamã Silas John no início do século XX, o silabário Cree desenvolvido no final da década de
1830 pelo missionário metodista James Evans e usado pelos Cree e Ojibwa no Canadá, o silabário
Chipewya (adaptado do silabário Cree), o silabário Inuit do Ártico canadense central e oriental (tam-
bém baseado no silabário Cree), o silabário dos Grandes Lagos Ocidentais (às vezes chamado de
silabário Fox, mas usado também por Potawatomi e alguns Ojibwas, bem como por Sauk, Fox e
Kickapoo, e o silabário Micmac (Hinton, 2001: 244). Vejamos um exemplar do silabário Cherokee
na Figura do Apêndice Online 8.
Figura do Apêndice Online 8: Silabário Cherokee

Na Amazônia, dois eminentes conhecedores do povo Desano (família Tukano), Diakuru & Kisibi
(2006) publicaram uma narrativa cultural do seu clã Wahari Diputiro Põrã, em que descrevem um
sistema de símbolos numéricos, talvez o primeiro tipo de escrita desenvolvido por povos indígenas
nas Terras Baixas da América do Sul. Esses símbolos foram usados por batedores e espiões durante
guerras intertribais para indicar o número de inimigos encontrados. Os símbolos eram conhecidos
apenas pelos chefes, pajés, espiões, mensageiros e alguns outros homens da elite do clã. A primeira
pessoa mencionada a ter conhecido o sistema foi o bisavô de Diakuru. Ele teria precedido a geração
atual em oito gerações, o quê, assumindo 20 a 30 anos por geração, nos indica que ele teria vivido
entre o início e meados século XIX. Diakuru & Kisibi (2006: 140–144) apresentam os símbolos nu-
méricos em uma série de tabelas, contendo sinais para os números de 1 a 10, diferenciados se homens
ou mulheres estavam sendo contados, bem como sinais para múltiplos de 5, 10, 50 e 100, chegando
até 500. Os símbolos numéricos apresentam uma organização que combina, em parte, um sistema de
organização quinário (baseado em múltiplos de 5), conforme a língua oral Desana tradicionalmente
organiza seus numerais, porque são contados nas mãos e nos pés. A contagem oral para em “vinte” e
o quantificador maha, “muito”, é usado para transmitir a ideia de valores maiores. Por outro lado, boa
parte dos símbolos numéricos que vemos na Tabela 11 possui uma organização decimal, como o
português e ausentes entre os povos indígenas na região dos Desano (Overmann et al., 2022). Veja-
mos um resumo dos símbolos na Tabela 11
Tabela 11: Alguns símbolos Numéricos Desano (Diakuru e Kisibi 2006)
Símbolo Nome do Símbolo em Desano Tradução
marã ninguém, nada
wakã um homem
wasõrũrõ dois homens
pe wasõrẽrõ três homens
sẽrẽrõ quatro homens
muhũpama uma mão = cinco homens
yuhu mutõmarã cinco mulheres
pe kururi or gõã serẽ dois grupos = vinte pessoas

84
yuhu mutõmarã kururi or gõã
cinco grupos = cinquenta pessoas
kaya
hutuyari puibu dez grupos = 100 pessoas
pe mutõmarã puiburi muitas pessoas = “perigo de vida”

Além dos símbolos numéricos, povos indígenas como os Desano possuem outras estratégias
simbólicas de comunicação que lhes serviam para transcender os limites da linguagem oral. Uma
delas consiste no uso de galhos e folhas posicionados de modo estratégico para indicar direções e
riscos potenciais, como vemos na Tabela 12:
Tabela 12: Sistema de sinalização por galhos e folhas Desano (Diakuru & Kisibi 2006)
Símbolo Significado
Um galho enfiado no chão, rachado no meio e cruzado com outro galho significava que o
caminho era proibido ou havia perigo de vida.
Um galho com folhas quebradas fora do caminho e apontando para a floresta apontava para
um caminho secreto.
Um galho quebrado e sem folhas apontando para fora do caminho significava que coisas
importantes (como armas) foram armazenadas naquela direção.
Um galho com folhas cortado e jogado em uma bifurcação em uma encruzilhada significava
que as pessoas deveriam evitar o caminho fechado (aquele com o galho) e tomar o aberto.
Uma vara inclinada colocada para fechar um caminho indicava que havia um perigo nesse
caminho a ser evitado.

Outra forma de comunicação gráfica são as pinturas rupestres, os petróglifos, e os grafismos usados
por povos indígenas por toda as Américas. Os grafismos estão presentes nas pinturas corporais, nos
desenhos que adornam paredes e pilares das habitações, em motivos geométricos de utensílios de uso
diário como cuias, cestarias, tecidos, máscaras, bem como nos enfeites usados nos rituais. Esses ele-
mentos são recursos gráficos que transmitem mensagens e ideias para as pessoas que fazem parte
daquelas culturas, codificando informações que se relacionam com narrativas orais, cantos e orações
xamânicas, momentos da vida das pessoas como o nascimento de um filho, a morte de um parente, a
chegada da primeira menstruação, bem como a visão mais ampla que a sociedade tem do mundo.
Entre o povo Huni Kuin (família Pano), o grafismo conhecido como Kene Kuin contém uma varie-
dade de motivos com nomes próprios, sendo feitos exclusivamente por mulheres. São grafismos tra-
dicionais chamados de pinturas verdadeiras, nascem de desenhos das escamas da anaconda mitoló-
gica, sendo transposto em pinturas corporais, tecelagens, cestarias e cerâmicas (Lagrou, 2023).
Os petróglifos são desenhos ou pictogramas cravados em baixo relevo em uma pedra. No
Noroeste da Amazônia, entre os rios Japurá e Orinoco, existem abundantes registros dessa natureza.
Segundo povos de línguas Aruák da região, como os Yukuna ou Baniwa-Koripako, esses símbolos
foram feitos pelos seus ancestrais míticos, quando as rochas ainda eram moles. Exploradores como
Ermano Stradelli (1890)procuraram registrar esses petróglifos na esperança de se chegar a uma espé-
cie de escrita hieroglífica. Pesquisas mais recentes, no entanto, têm mostrado que os petróglifos fazem
parte de uma rede de conhecimentos e discursos associados à história da humanidade, aos rituais e às
relações sociais entre os povos do Alto Rio Negro. O antropólogo Reichel Dolmatoff fez uma série
de experimentos em que registrou junto a pajés falantes de línguas Tukano os desenhos que eles
visualizavam durante suas mirações ao tomarem a bebida sagrada ayawaska (Banisteriopsis caapi).
Esses desenhos funcionam como ideogramas no sentido em que são mais ou menos convencionali-
zados e remetem a certos conceitos culturais fundamentais. Vejamos na Tabela 13 os ideogramas
ilustrados e interpretados por Dolmatoff (1976: 83-7) e alguns petróglifos recorrentes na paisagem
do Alto Rio Negro, conforme registrados por Koch-Grünberg (Koch-Grünberg, 2009).
Tabela 13: Petróglifos e desenhos de mirações de ayawaska no Alto Rio Negro
Petróglifos Pinturas e seus simbolismos
Koch-Grünberg (2009 [1907]) Reichel-Dolmatoff (1976)

85
Refere-se à masculinidade a partir da representa-
ção do fruto da sorveira, cujo látex se relaciona a
sêmen

Órgão feminino

Útero e, por analogia, um portal entre diferentes


dimensões

Duas armadilhas para se pegar peixes dispostas


uma de costas para a outra. Representa a exoga-
mia, a troca de mulheres entre clãs

Espiral que remete a flautas sagradas que marcam


a filiação patrilinear e o ritual de iniciação mascu-
lina

O líder e intelectual André Baniwa compara os petróglifos a um “ícone da internet”, pois são portais
para acessar diversos tipos de informações. A conclusão de Caco Xavier sobre os petróglifos entre os
Baniwa-Koripako nos parece muito acertada:
Aquilo que, à primeira vista, reputamos como um ‘desenho simples’ (em sua forma e estilo), deve ser
entendido como elemento importante em um ambiente lógico no qual imagem e língua estão [...] profun-
damente vinculadas. [...] Aquilo que o signo ‘abre’ está no âmbito da memória. […] Somos levados a
pensar que as informações estão contidas neles mesmos, à maneira de códigos a serem decifrados – como
Stradelli os via. O mais adequado, no entanto, é entendê-los como chaves que abrem a memória para
conhecimentos e fios (ou ‘colas’) que ligam e vinculam tais conhecimentos, não apenas entre si, mas, prin-
cipalmente, entre estes e as pessoas, as comunidades, passado e presente; entre estes e a vida e a organi-
zação social [...] (Xavier, 2012).
Na América do Norte, temos exemplos escritas ideográficas que serviram para registrar acontecimen-
tos históricos. Por exemplo, os Navajo elaboraram um painel de petróglifos que descreve a campanha
de Kit Carson contra seu povo. Os Sioux elaboraram a chamada “contagem de inverno”, feita em uma
pele de búfalo, acompanhando os principais eventos históricos em um período de 70 anos (ver uma
imagem da contagem de inverno Sioux no apêndice online). Como comenta Leanne Hinton (2011)
mesmo que um sistema de registro visual não represente a língua de um modo stricto sensu, ele pode
representar ideias com bastante precisão. Por meio do uso de sistemas ideográficos complexos como
esses, a maioria das funções da escrita pode ser desempenhada por essas sociedades. Infelizmente, o
conhecimento desses sistemas fascinantes e, muitas vezes, artística e intelectualmente estonteantes
vem sendo perdidos com as mudanças sociais e culturais postas em práticas desde os primórdios da
colonização.
Figura do Apêndice Online 9: Contagem de Inverno Sioux com registros em couro de búfalo dos
principais eventos históricos em um período de 70 anos (elaborado em 1880)

86
O que vimos nessa seção sugere que podemos dilatar nossa concepção sobre escrita num sentido
estrito para escritas indígenas num sentido amplo. A seguir, trataremos da “escrita alfabética”, que
corresponde ao uso da escrita num sentido mais estrito.

3.3.3 Escritas com o Alfabeto Latino


Para as sociedades indígenas das Américas, à exceção dos povos Mayas e Mixe-Zoque na Mesoamé-
rica, a escrita alfabética (i.e., a possibilidade de escrever vogais e consoantes de uma língua) foi uma
tecnologia que surgiu durante o contato com a cultura europeia. Inicialmente, a escrita foi usada como
instrumento europeu de conhecimento e colonização, mas não muito tempo depois muitos povos in-
dígenas que tiveram contato com a escrita perceberam a importância de dominá-la. As primeiras es-
critas usando o alfabeto latino para línguas indígenas remontam ao primeiro século da colonização,
com as gramáticas do Nahuatl em 1547, do Quechua em 1560, do Muisca em 1605, do Guarani em
1639 e do Tupi em 1595. Os primeiros textos tinham como objetivo a conversão dos indígenas e o
ensino de suas línguas para os europeus. Há também alguns exemplos bastante antigos no período
colonial de uso da escrita por indivíduos indígenas que escreveram para outros indivíduos indígenas,
como as cartas escritas em Tupi entre os caciques Felipe Camarão, Pedro Poti e Antônio Paraopeba
em 1645, durante a guerra contra os holandeses no Nordeste do Brasil (ver apêndice online para mais
informações)21.
Até pouco tempo, os contextos comunicativos mais comuns em que a escrita vem sendo uti-
lizada entre os povos indígenas é a escola e a leitura da bíblia cristã. Esses eram contextos altamente
dominados por agentes não indígenas. Mais recentemente, não só os povos indígenas têm ampliado
seu domínio e protagonismo sobre esses domínios, como também têm usado a escrita nos mais vari-
ados contextos de sua vida social, como as redes sociais, sites na internet, a literatura, textos jornalís-
ticos, informativos e jurídicos. A escrita, portanto, serve a objetivos importantes para as sociedades
indígenas atuais. Desde um ponto de vista político, a escrita proporciona às línguas indígenas um
status que falta às línguas orais numa sociedade “escritocêntrica”. Se antes a memória era o principal
recurso para se guardar e transmitir a tradição, a escrita passou a ser um aliado importante para a
documentação e preservação de aspectos da cultura e do pensamento indígena. Ela também empodera
as sociedades indígenas para desenvolverem seus próprios sistemas de educação escolar e a expandir
os usos das línguas a novos gêneros e contextos comunicativos.
Porém, nem sempre a escrita é vista ou usada de forma positiva. Por exemplo, ao se docu-
mentar em forma escrita o saber indígena, alguns povos se sentem mais vulneráveis, como se estives-
sem perdendo o controle de seus próprios conhecimentos; há também quem argumente que o uso da
21
Ver matéria do Jornal da USP sobre a pesquisa de Eduardo Navarro sobre o tema: https://jornal.usp.br/cultura/pesquisa-
revela-troca-de-cartas-em-tupi-entre-indigenas-do-seculo-17/

87
escrita possa diminuir a força das culturas indígenas que tradicionalmente foram baseadas no uso da
língua oral; outros argumentam que o uso da escrita e o estabelecimento da escola como o lugar de
letramento e alfabetização faz com que a transmissão da língua em ambientes familiares seja negati-
vamente afetada. Neste ponto, antes de explorar alguns problemas específicos, devemos lembrar junto
como o que prega o RCNEI (Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas), que a escrita
das línguas indígenas não é nem um bem, nem um mal, mas, sim, que a desvalorização do conheci-
mento tradicional só ocorre se a incorporação da escrita for feita de forma incorreta (Brasil, 1998:
128).
Usar o alfabeto latino para se escrever uma língua indígena não é algo trivial desde um ponto
de vista linguístico e sociolinguístico. O problema mais óbvio é como se escrever sons para os quais
não temos letras no alfabeto latino tradicional. Por isso, existem diferentes estratégias e tradições para
se adaptar o alfabeto latino à fonologia das línguas indígenas. Alguns sistemas partem das ortografias
das línguas nacionais dos países onde são faladas essas línguas. Assim, por exemplo, é comum ver-
mos em países de língua espanhola o uso da letra j para representar uma fricativa glotal ou velar surda
[h] ou [x]. Outros sistemas se baseiam num sistema de escrita fonética estabelecida pela tradição
americanista ou pela associação internacional de fonética (IPA). Existem certas diferenças notáveis
entre os sistemas de notações. Por exemplo, o uso da letra y na tradição americanista serve para re-
presentar uma aproximante palatal, transcrita por [j] pelo IPA; já a letra y no IPA representa uma
vogal anterior alta não arredondada; ainda, na tradição de estudos Tupi, y foi comumente empregado
para representar uma vogal alta central não arredondada, transcrita como [ɨ] no sistema IPA. Uma
vez que o uso da notação baseada no IPA e na tradição americanista são bastante recorrentes para
estudiosos das línguas indígenas das Américas, apresentamos no capítulo 9 um quadro comparativo
dessas duas formas de notações.
Devido ao valor dado à língua escrita e à premissa ideológica de que a representação oficial
da língua se dá na forma escrita, os sistemas de grafias ou ortografias de línguas indígenas possuem
uma importância fundamental. Um sistema ortográfico pode em si ser problemático se não represen-
tar adequadamente as estruturas de uma língua. Por exemplo, Moore & Gabas (2006: 11) mencionam
o caso da língua Gavião de Rondônia (família Tupí), em que a escrita até então utilizada não distin-
guia vogais breves e longas, fazendo com que fossem escritas da mesma forma palavras distintas,
como, por exemplo, “aka” para escrever três palavras fonologicamente diferentes: aka ‘matou’, aaka
‘se matar’ e aakaa ‘(ele) vai’. Isso pode acarretar inúmeros problemas tanto para a aquisição quanto
para o uso da escrita.
Talvez um dos problemas mais sérios com relação às grafias de línguas indígenas seja não
somente sua deficiência técnica, mas também a existência de diferentes sistemas gráficos numa soci-
edade indígena e as vinculações dessas sistemas a disputas de poder criadas de fora para dentro em
sua sociedade. Bruna Franchetto (2008) menciona o caso da língua Wapixana (língua Aruák) de Ro-
raima que nos finais da década de 1980 se encontrava numa encruzilhada no mundo da escrita. Havia
dois sistemas ortográficos: um elaborado por missionários evangélicos entre os Wapixana da Guiana
Inglesa, e outro por missionário católicos no lado brasileiro. A encruzilhada entre crenças e nações
era completada por um sentimento de que nenhuma das grafias lhes parecia adequada, fazendo com
que um professor comentasse que “[s]empre fiquei com a impressão de que essas nossas línguas são
duras, até impossíveis de serem escritas direito” (Franchetto 2008: 43). O principal problema da es-
crita evangélica era o seu uso de grafemas baseados na ortografia do inglês, como <sh>, ainda que
fosse fonologicamente adequada. Já a escrita dos católicos representava mal muitos aspectos da fo-
nologia da língua, e, apesar de usar grafemas do português e ser por isso mais “aceitável”, introduzia
vários problemas, como a ausência de um grafema para a vogal [ɨ] ou o uso de diferentes grafemas
como <c> e <qu> para grafar um único fonema /k/. Desejosos de implementar programas de alfabe-
tização e educação escolar próprios, os Wapixana queriam uma escrita que se distanciasse das pro-
postas existentes. Procederam com um confronto crítico entre as diferentes escritas e iniciaram um
processo de “descoberta” das estruturas da sua língua. Após vários ensaios ortográficos, chegou-se a
uma grafia como resultado de uma discussão coletiva e que podia, agora, ser usada para os programas
educacionais que almejavam junto às autoridades oficiais de Roraima.

88
Um bom sistema de representação alfabética deve, portanto, representar as propriedades for-
mais de uma língua de modo adequado e deve, sobretudo, ser um sistema prático que os falantes dessa
língua saibam usar e se sintam representados pelos mesmos. Sob um ponto de vista sociopolítico, as
grafias devem se basear num acordo entre os diferentes falantes de uma língua. Tomando como base
diversas problemáticas, Moore & Gabas (2006: 16-7) sugerem que o desenvolvimento de ortografias
para as línguas indígenas deve proceder de forma sistemática segundo os pontos no Quadro 9.
Quadro 9: Etapas para o desenvolvimento de uma grafia para línguas indígenas
1. Análise da fonologia e representação adequada dos contrastes e estruturas fonológicas da língua;
2. Levantamento dos dialetos da mesma língua e adequação do sistema proposto para todos os dialetos da
língua desde que possível;
3. Verificação das ortografia(s) pré-existente(s) e tentativa de minimizar mudanças em ortografias já bem
estabelecidas (de uso amplo, com um bom corpus de material escrito)
4. Testagem do uso da ortografia por falantes, tanto no que concerne à escrita quanto à leitura, checando
a conveniência dos símbolos escolhidos e minimização de possível interferência com a ortografia por-
tuguesa (e de outras línguas nacionais relevantes);
5. Discussão da ortografia proposta, tendo assegurado que todos compreendam as alternativas envolvendo
convenções ortográficas e as respectivas consequências no futuro.

3.3.4 Línguas de Sinais Indígenas


Além da diversidade de línguas e letos baseados na linguagem oral e escrita, as sociedades indígenas
desenvolveram ao longo da história línguas de sinais para a comunicação de pessoas surdas. Essas
línguas são muitas vezes classificadas como línguas de sinais emergentes pois se desenvolveram de
modo espontâneo em comunidades com uma taxa elevada de pessoas surdas sem um processo de
elaboração e sistematização formal, e sem contar com um contexto institucional como a escola e o
Estado para sua difusão. Muitas delas são também conhecidas como línguas de sinais alternantes
pois são usadas não somente entre surdos ou entre ouvintes e surdos, mas também entre interlocutores
ouvintes. Outras são línguas de sinais caseiras, pois se desenvolvem a partir de crianças surdas sem
um contato com uma ampla comunidade de falantes de uma língua de sinais e, por isso, se limitam a
ambientes domésticos e restritos à convivência dessas crianças surdas com seus pais e familiares mais
próximos. Em seu conjunto, são diferentes de línguas de sinais nacionais, como a Língua Brasileira
de Sinais (LIBRAS) ou a American Sign Language, que são originárias ou fortemente influenciadas
pela Língua de Sinais Francesa e faladas por uma grande população, além de contar com um aparato
do Estado e/ou outras instituições responsáveis pela normatização e difusão dessas línguas em escolas
e meios de comunicação. Assim, sejam elas caseiras, emergentes ou alternantes, as línguas de sinais
indígenas que veremos aqui devem ser vistas como mais uma das invenções e soluções linguísticas
dos povos indígenas para dar conta da diferença e do multilinguismo em suas sociedades.

Língua de Sinais das Planícies ou American Indian Sign Language (AISL)


A língua de sinais indígena que tem sido estudada há mais tempo é a Língua de Sinais das Planícies
ou American Indian Sign Language (AISL). Essa língua foi e segue sendo usada por ouvintes e surdos
pertencentes a uma enorme gama de povos indígenas nos EUA e Canadá: Davis (2017) lista 41 povos
indígenas que historicamente utilizam essa língua, principalmente povos das Planícies (como os
Crow, Blackfoot, Cheynne, Apache), do Subártico (como os Cree e os Ojibwe) e do Sudoeste dos
EUA (como os Shoshoni e os Zuni).
A AISL provavelmente surgiu entre povos do sudeste das Planícies antes do contato com os
europeus como uma língua de sinais emergente e se difundiu como uma língua de comunicação “intra
e intertribal” em períodos subsequentes sendo usada como uma língua franca de comunicação inte-
rétnica e aprendida por colonizadores espanhóis, franceses e ingleses (Campbell, 1997: 10). Mais do
que uma língua de sinais caseiras, ou um pidgin, a AISL desenvolveu um léxico e gramática sufici-
entemente complexos, sendo usada em uma variedade de contextos discursivos (incluindo narrativas
tradicionais e pessoais, rituais, mitologia, rezas, piadas, jogos e conversas) e apresentando variações
dialetais através das vastas regiões onde ela foi falada. Hoje em dia, essa língua segue sendo adquirida

89
como primeira língua para alguns surdos e como segunda língua para poucos ouvintes. Como também
é o caso das línguas indígenas orais, encontra-se ameaçada. Primeiramente, a maior parte dos falantes
são adultos e idosos; em segundo lugar, ela encontra competição em um duplo sentido: como língua
franca entre os ouvintes, o inglês passou a substitui-la; como língua de pessoas surdas, a American
Sign Language está a substituindo (Davis 2017). A Figura 13 mostra alguns sinais da AISL. No apên-
dice online, mostramos link para vídeos antigos e contemporâneos com o uso da AISL.
Figura 13: Algumas palavras da Língua de Sinais das Planícies Norte Americana

Língua de Sinais Ka’apor


No Brasil, a língua de sinais indígena que há mais tempo tem tido a atenção de linguistas e antropó-
logos é a falada por surdos e ouvintes do povo Ka’apor, falantes de uma língua da família Tupi-
Guaraní, e habitantes do Noroeste do Maranhão (Kakumasu, 1968). Diferentemente da língua de si-
nais das planícies, a dos Ka’apor é usada unicamente para comunicação interna a seu povo. Os
Ka’apor possuem um número consideravelmente alto de indígenas nascidos surdos, cerca de 1% a
2% de sua população, o que sugere uma cifra de 20 a 30 surdos numa população de quase 3000
pessoas. O número de falantes deve ser ainda maior, uma vez que ela é usada por ouvintes que são
bilíngues no Ka’apor oral e de sinais. Os Ka’apor teriam suas próprios explicações para o surgimento
da surdez; uma delas diz que uma mulher comeu jacaré́ quando estava grávida. Uma vez que o jacaré
tem uma língua bem pequena, e uma vez que os tipos de comidas que consumimos têm, em geral,
efeitos sobre as pessoas, a criança teria nascido surda (Godoy 2020: 363). No apêndice online, apre-
sentamos um link para uma história Ka’apor contada usando a língua de sinais deste povo e legendado
em português.
Como analisa Godoy (2020), os ouvintes são peça fundamental da base social da língua, pois
constituem a maioria dos sinalizantes. Devido ao baixo número de surdos em certas aldeias, os sina-
lizantes ouvintes servem de modelo muitas vezes para a aquisição da língua de sinais pelos surdos.
Não há, por assim dizer, uma comunidade de surdos segregada da comunidade de ouvintes, tampouco
os surdos são forçados a se oralizar, e as pessoas surdas não carregam o estigma de deficiente ou de
que falta algo como estamos acostumados em relação aos surdos urbanos. Para eles, nada os falta,
apenas é uma característica que causa uma necessidade diferente de comunicação. Esta forma de lidar
com a diferença (“não ouvir”) implica numa forma diferente em que os surdos e ouvintes interagem
entre si (Brito, 1984).

Muitas outras Línguas de Sinais Indígenas e a necessidade de sua valorização


Existem muitas outras línguas de sinais indígenas. Ainda que nosso conhecimento sobre essas línguas
e sua identificação estejam apenas começando a vir à luz, podemos resumir um quadro que aponta
para 29 línguas indígenas de sinais faladas nas Américas. Elas estão distribuídas em diversas regiões,
desde o ártico com a língua de sinais dos Inuit, passando pela região noroeste central dos EUA com
as línguas de sinais do Platô, das Planícies e do povo Keres, atravessando a América Central com as
línguas de sinais Maya da península de Yucatán e as línguas dos povos Chibcha da Costa Rica, até a
América do Sul, com línguas de sinais indígenas desde o Peru às Guianas, Brasil e Argentina. No
Brasil, temos documentação ou ao menos uma identificação primária de cerca de 14 línguas emer-
gentes ou de sinais caseiros. Uma planilha com referências bibliográficas e informações básicas des-
sas línguas está disponível no apêndice online.

90
Ainda que o padrão de convivência e bilinguismo entre surdos e ouvintes que vimos para os
Ka’apor se repete em muitos outros contextos, nem sempre vemos a mesma forma de se lidar com a
surdez, ou a formação de uma língua plenamente estruturada. Segundo Vilhalva (2009), entre povos
indígenas do Mato Grosso do Sul, como os Guarani, Terena e Kadiwéu, existem cerca de 30 a 40
indígenas surdos. Os sinais utilizados variam bastante de comunidade para comunidade; alguns gru-
pos possuem dificuldades para manter os indivíduos surdos no convívio da comunidade, enquanto
ouros os acolhem e se esforçam para que a comunicação seja estabelecida com eles. Em muitas co-
munidades temos também a existência de “sinais caseiros” e não de “línguas de sinais emergentes”
ou da LIBRAS, i.e., de línguas plenamente desenvolvidas, diferentemente dos Ka’apor que possuem
uma língua de sinais com uma estrutura de língua já formada, com constância de sinais usados por
diferentes indivíduos e com um longo histórico de uso por grande parte da comunidade.
Se é verdade que a LIBRAS, falada como língua oficial em todo o Brasil, precisa de maior
reconhecimento, valorização, documentação e fortalecimento junto aos sistemas de educação e outras
esferas públicas, as línguas de sinais indígenas estão numa situação bem mais delicada. O reduzido
número de falantes, os poucos estudos existentes e um atual ou iminente contato com a LIBRAS
podem fazer com que essas línguas deixem de ser praticadas muito em breve, sem que tenhamos tido
a oportunidade de conhecê-las a fundo. Cada língua indígena de sinais representa um momento de
gênese da linguagem, pois muitas delas se desenvolveram como criações indígenas locais, sem rela-
ção a outras línguas de sinais pelo mundo. Mais do que isso, elas são formas de comunicação que
agregam não somente pessoas surdas de diferentes famílias e comunidades dentro e entre povos in-
dígenas, mas também são veículos de comunicação inclusivos de surdos e ouvintes dentro de suas
comunidades. Uma interrupção na transmissão dessas línguas em suas comunidades causada, por
exemplo, pelo ensino escolar segregado da LIBRAS apenas para alunos indígenas surdos – e não para
toda a comunidade outrora bilíngue – poderia criar desestabilizações indesejáveis nos sistemas soci-
ocomunicativos inclusivos entre surdos e ouvintes desenvolvidos por muitas sociedades indígenas.

91
4 Diversidade Tipológica das Línguas Indígenas

Este capítulo aborda algumas das principais características fonológicas, gramaticais e semânticas das
línguas indígenas. Vamos trazer um olhar descritivo e, sobretudo, tipológico. Tradicionalmente, os
estudos tipológicos se desenvolveram classificando as línguas de acordo com certas propriedades que
elas compartilhassem, de modo que pudéssemos chegar a um conjunto mínimo e universal dos tipos
de línguas existentes (assim como podemos falar de tipos básicos de rochas no planeta). Com o tempo,
percebeu-se que tantos tipos de línguas existiriam conforme fosse o número de propriedades linguís-
ticas que utilizássemos para a comparação. Por isso, passou-se a focar mais nas propriedades linguís-
ticas do que na classificação holística das línguas a partir de poucas propriedades. Nas seções a seguir,
discutiremos algumas propriedades que nos permitem conhecer a diversidade tipológica das línguas
indígenas e compará-las ao resto do globo. Sempre que oportuno, destacaremos de que maneira os
dados das línguas indígenas se aproximam e se distanciam de tendências universais, quais elementos
tipologicamente raros são encontrados entre as línguas ameríndias, bem como quais características
são mais específicas a certas regiões e/ou famílias linguísticas das Américas.

4.1 Vogais e Consoantes


Nessa seção, vamos apresentar os principais sons vocálicos e consonantais que ocorrem em línguas
indígenas, como eles se organizam em diferentes sistemas fonológicos e dentro de uma perspectiva
tipológica. Quando falamos de sistemas, estaremos nos referindo sobretudo aos fonemas que com-
põem esses sistemas. Os fonemas podem ser identificados pelo contraste entre diferentes sons num
mesmo ambiente fonológico, como os chamados pares mínimos, em que a permutação (troca) de um
som por outro acarreta a mudança de significado entre palavras praticamente idênticas. Assim, em
português, /a/ e /ɔ/ são fonemas diferentes como vemos pelas palavras faca e foca, enquanto /f/ e /v/
são fonemas como evidenciado nas palavras faca e vaca. Cada língua possui um conjunto restrito de
fonemas, os quais são analisados como parte de sistemas ou inventários vocálicos e consonantais.

4.1.1 Vogais
As vogais podem ser descritas foneticamente a partir de parâmetros articulatórios como a altura e a
anterioridade da língua, o fechamento ou abertura do maxilar, e o arredondamento dos lábios. Os
menores sistemas vocálicos no mundo possuem um mínimo de duas ou três vogais. Nas Américas,
sistemas com três vogais ocorrem desde a Costa Noroeste do Pacífico, como na língua isolada Haida,
até línguas no extremo sul, na Terra do Fogo, da família Chon, passando por línguas no centro da
América do Norte, como Caddo, na Amazônia, como o Pirahã, e nos Andes, como línguas da família
Quechua e Aymara. Vejamos os fonemas vocálicos da língua Inga (família Quechua) falada na Co-
lômbia na Tabela 14. Notemos que apesar de haver poucas vogais, elas se encontram em posições
maximamente distantes no espaço vocálico, ou seja, elas não se aglomeram numa única posição na
boca. O Inga não possui vogais médias fonêmicas, mas as vogais altas podem apresentar alofones que
incluem vogais médias, como [e] e [o] quando os fonemas /i/ e /u/ se encontram em final de palavras,
como em /alku/ [ˈalko] ‘cachorro’ (Levinsohn & Tandioy J., 2000: 123)
Tabela 14: Vogais da língua Inga (Levinsohn & Tandioy J., 2000)
Anterior Central Posterior
Alta i u
Média
Baixa a

As línguas podem ampliar o contraste fonêmico ao explorar outras propriedades articularória


como a duração, a nasalidade e a laringalização. Vogais laringalizadas podem ser ilustradas pelos
seguintes pares míninos da língua Mazateca: vogal vozeada [tʰǽ] ‘semente’ vs. vogal laringalizada
[ndǽ̤] (áudio disponível no apêndice online (Ladefoged, 2001)). A duração serve para contrastar

92
vogais longas vs. breves, como ocorre nas línguas Aymara, bem como outras variedades da família
Quechua, em que há sistema de três vogais longas e breves, como ilustrado na Tabela 15
Tabela 15: Vogais da língua Jaqaru (família Aymara) (Hardman 1966)
Anterior Central Posterior
Alta i iː u uː
Média
Baixa a aː

O contraste entre vogais longas e breves pode ser ilustrados em /ts’aːka/ ‘osso’ vs. /ts’aka/ ‘pescoço’,
/kaːka/ ‘asa’ vs. /kaka/ ‘tio materno’ (Hardman, 1966). Tecnicamente, podemos dizer que existem 6
fonemas vocálicos em Jaqaru, mas esses correspondem a apenas 3 qualidades vocálicas: a, i, u. Algo
bem mais raro são línguas que usam até três graus de duração, como seria o caso da língua Mixe de
El Paraíso que contrasta ʔoj ‘apesar’, ʔo:j ‘ele se foi’ e ʔo::j ‘muito’ (Suárez, 1983: 34).
Línguas com um sistema de quatro tipos de qualidades vocálicas geralmente acrescentam uma
quarta vogal explorando contrastes entre vogais altas, médias e baixas. No Nheengatu (família Tupí)
as quatro qualidades vocálicas são adicionalmente acompanhadas pelo contraste entre vogais orais e
nasais (Tabela 16). Na língua isolada Nasa Yuwe (ou Páez), as vogais contrastam nasalização e la-
ringalização (Tabela 17).
Tabela 16: Vogais Nheengatu (família Tupí-Guaraní) (Cruz, 2011)
Anterior Central Posterior
Alta iĩ uũ
Média eẽ
Baixa aã

Tabela 17: Nasa Yuwe (Páez) (Rojas Curieux, 1998)


Anterior Central Posterior
Alta i ḭ ĩ ı̰ ̃
Média e ḛ ẽ ḛ ̃ o o̰ õ õ̰
Baixa a a̰ ã a̰ ̃

Sistemas com 5 vogais estão presentes em 30% das línguas do mundo. Tipicamente assumem a forma
das vogais /a/, /e/, /i/, /o/, /u/, como em espanhol. Porém, é bastante comum que as vogais médias
sejam realizda como média-abertas, logo /ɛ/ e /ɔ/ (como em português “é” e “ó”).
São bastante populares, especialmente na América do Sul, sistemas com 6 ou 7 vogais, em
que tipicamente encontramos as vogais centrais alta /ɨ/ e média /ə/. Vemos essas vogais, por exemplo,
nas seguintes palavras da língua Ninam: ëhëhë [əhəhə] ‘sarar’ e ɨmɨɨ [ɨˈm‹ɰ̃ ̃ ] ‘locomover-se nas altu-
ras (como macacos na copa das árvores)’ (áudio disponível no apêndice online)22. Na família Yano-
mami (como o Ninam), Karib, Tupi, Chibcha encontramos muitas línguas com sistemas de 7 vogais,
como ilustrado para a língua Yekwana na Tabela 18.
Tabela 18: vogais da língua Yekwana (família Karib) (Cáceres, 2007)
Anterior Central Posterior
Alta i iː ɨ ɨː u uː
Média e eː ə əː o oː
Baixa a aː

22
A voz é de Albino Xiriana.

93
Algumas línguas, no entanto, possuem sistemas semelhantes, mas não contrastam /ɨ/ e /ə/, tendo ape-
nas um desses fonemas, como é o caso da língua Tukano como os 6 fonemas /a/, /ɛ/, /i/, /ɨ/, /ɔ/, /u/
(Ramirez, 2019), e o da língua Ika (família Chibcha) com o mesmo sistema, porém com /ə/ no lugar
de /ɨ/ (Landaburu, 2000)
Língua com 7 ou mais vogais tendem a explorar contrastes em diferentes níveis de abertura
de vogais médias. A língua Tunica (isolada) possui um sistema de qualidades vocálicas estrutural-
mente igual ao do português com /a/, /ɛ/, /e/, /i/, /ɔ/, /o/, /u/. O Guató (isolado) possui um sistma de 8
vogais que consiste nos mesmos fonemas do português e Tunica mais a vogal alta central /ɨ/ (Postigo,
2009). Outras línguas exploram a oposição entre vogais arredondas e não-arredondadas na mesma
altura e anterioridade. O Bororo (família Bororo-Umutina) possui 7 vogais com um contraste entre
vogais posteriores arredondadas e não-arredondadas (Tabela 19). O Kwazá (isolado) ilustra um sis-
tema de 9 vogais que é a cópia do sistema Guató com o acréscimo do contraste de arredondamento
entre vogais médias-anteriores (Tabela 20).
Tabela 19: vogais da língua Bororo (família Bororo-Umutina) (Nonato, 2008)
Anterior Central Posterior
Alta i ɯu
Média e ɤo
Baixa a
Tabela 20: vogais da língua Kwaza (isolada) (Voort, 2004)
Anterior Central Posterior
Alta i ɨ u
Média
e o
Fechada
Média
ɛœ ɔ
Aberta
Baixa a

Nas Terras Baixas da América do Sul, encontramos os sistemas vocálicos mais complexos do conti-
nente, envolvendo 9 ou mais vogais. Sistemas mais extensos são especialmente encontrados em lín-
guas das famílias Macro-Jê e Naduhup, como ilustrado na Tabela 21 e na Tabela 22 pelas ínguas
Apinajé e Nadëb, respectivamente
Tabela 21: vogais da língua Apinajé (família Jê) (C. C. Oliveira, 2005)
Anterior Central Posterior
Alta iĩ ɨ ‹̃ uũ
Média
eẽ ə ə̃ oõ
Fechada
Média
ɛ ʌɔ
Aberta
Baixa aã

Tabela 22: vogais da língua Nadëb (Naduhup) (Martins, 2005)


Anterior Central Posterior
Alta iĩ ɯ ɯ̃ u ũ
Média
e ɤo
Fechada
Média
ɛ ɛ̃ ʌ ʌ̃ ɔ ɔ̃
Aberta
Baixa aã

94
4.1.2 Consoantes
As consoantes são em geral descritas por seu ponto de articulação (bilabial, alveolar, palatal, etc.),
modo de articulação (oclusivo, fricativo, africado, etc.), tipo de fonação (surdo, sonoro, glotalizado,
aspirado, etc.), pelos mecanismos de produção de correntes de ar (dando origem a consoantes plosi-
vas, implosivas, glotálicas e aos cliques) bem como por articulações secundárias envolvendo fenô-
menos como palatalização, labialização, entre outros.
As línguas possuem um número mais elevado de consoantes do que de vogais. Numa compa-
ração global, o número modal de consoantes numa língua é de 21 sons (Maddieson, 2009). Elas ten-
dem a combinar em seus inventários os seguintes tipos de fonemas consonantais mais frequentes:
obstruintes oclusivas (e.g. /p/, /b/, /t/, /k/, /g/, /ʔ/ etc.), fricativas ou africadas (e.g. /f/, /s/, /ʃ/, /tʃ/, /h/,
etc.); oclusivas nasais (e.g. /m/, /n/, /ɲ/, /ŋ/); aproximantes líquidas (e.g. /l/, /r/, etc.) e semi-vogais
(e.g. /j/, /w/, etc.). Todas as línguas possuem algum tipo de consoante oclusiva e em 99% dos casos
estamos certos de que haverá uma obstruinte surda, como /p/, /t/, /tʃ/, /s/ ou /k/. No entanto, os inven-
tários consonantais apresentam grande variação na quantidade de fonemas e suas características fo-
nética. Começamos com a língua Pirahã, que possui apenas 8 consoantes, como vemos na Tabela 23.
Somadas às suas 3 vogais, a língua possui o menor inventário segmental do mundo.
Tabela 23: Consoantes do Pirahã (Everett, 1983)
Consoantes Bilabial Alveolar Velar Glotal
Oclusiva surda p t k ʔ
Oclusiva sonora b ɡ
Fricativa s h

Nesse diminuto inventário do Pirahã, vemos que não ocorrem fonemas nasais e líquidas. Na verdade,
o som [m] existe enquanto um alofone nasalizado de /b/ e o fonema /g/ tem como alofone um seg-
mento lateral que constitui um dos sons mais inusitados que conhecemos nas Américas, sobre o qual
falaremos mais abaixo.
Vimos que a língua Jaqaru (Aymara) também possui apenas 3 qualidades vocálicas em seu
inventário, mas as combina com um total de 36 fonemas consonantais, um dos maiores das Américas,
como vemos na Tabela 24. Vejamos que apesar deste extenso inventário consonantal, não há oposição
entre oclusivas surdas e sonoras, como vemos para o Pirahã. Em vez disso, as oclusivas contrastam
com base em padrões de fonação: surdo /p/, aspirado /pʰ/e laringalizado /p̰/. A existência de fonemas
retroflexos, três tipos de fricativas distintas, nasais em quatro pontos de articulação e três líquidas
completam as consoantes da língua.
Tabela 24: consoantes da língua Jaqaru (família Aymara) (Hardman, 1966)
Modo Fonação Bilabial Alveolar Retroflexa Palatal Velar Uvular
aspirada pʰ tʰ tʲʰ tsʰ ʈʰ cʰ kʰ qʰ
Oclusiva/Africada glotal pʼ tʼ tʲʼ tsʼ ʈʼ cʼ kʼ qʼ
surda p t tʲ ts ʈ c k q
Fricativa surda s ç x
Nasal sonora m n ɲ ŋ
Aproximante sonora j w
Vibrante simples sonora ɾ
Lateral sonora l ʎ

Inventários com um baixo número de qualidades vocálicas e alto número de consoantes complexas
são recorrentes em outras línguas dos Andes, como também atestado na família Chon, na Terra do
Fogo, em línguas da Mesoamérica, Califórnia e costa Noroeste do Pacífico. Igualmente recorrentes
nesses sistemas consoantes uvulares (como [q] e [χ]) e a existência de três ou mais consoantes líquidas
que, em geral, podem ser /ɾ/, /l/, /ʎ/ ou /ɬ/ (uma aproximante lateral fricativa alveolar). Essas línguas
contrastam com sistemas consonantais de línguas Amazônicas, onde não há um número significativo

95
de fonemas uvulares, nem ejetivos, nem um grande número de líquidas, sendo encontrado duas ou
apenas uma líquida, como /ɾ/, /l/, ou /ɺ/ ‘tap lateral’.
Quadro 10: Indígenas que “não têm Fé, nem Lei, nem Rei”
Cabe aqui um comentário sobre o que o missionário Pero de Magalhães Gândavo disse sobre a fonologia da
língua Tupinambá (ou Tupí Antigo) falada na costa brasileira. Como opina o missionário, em seu Tratado
da terra do Brasil, que data do ano 1573, quando escrevia sobre a “condição e costumes dos índios da terra”:
A língua deste gentio toda pela Costa he huma: carece de tres letras —scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R,
cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordena-
damente.
De fato, a língua Tupinambá não possui os fonemas /f/, /l/ e /r/ (entendido como uma vibrante múltipla) das
palavras fé, lei, rei do português de então. Apenas duas línguas na América do Sul possuem os três fonemas
/r/, /f/ e /l/ ao mesmo tempo em seus inventários: a língua isolada Mochica (Andes Central) e Kawesqar
(Terra do Fogo). Certamente, podemos listar muitas propriedades que existem no português e faltam no
Tupinambá, ou vice-versa. Por exemplo, no português brasileiro, falta a vogal /ɨ/ do Tupinambá e tão comum
em línguas indígenas como vimos. Por outro lado, a conclusão do missionário – de que os indígenas não
teriam formas de justiça, organização política e religiosa não possui a menor lógica; ou melhor, faz parte de
uma retórica quinhentista acostumada a sofismas. Além disso, a sociedade Tupinambá, de fato, carecia de
reis ou monarcas em geral, mas faltou ao missionário aprender mais sobre esse povo, para conhecer seus
costumes e crenças, leis e fé.

A ausência de consoantes consideradas “comuns”, como consoantes nasais, fricativas e bila-


biais, é algo um pouco mais comum nas Américas. Maddieson (2013) observou que, numa amostra-
gem de 503 línguas ao redor do globo, apenas 5 línguas não possuem nenhuma consoante bilabial –
como /p/, /b/, /m/ ou /β/ – e todas elas são faladas na América do Norte (Eyak, Tlinguit, Chipewa,
Oneida, Wichita). A ausência de fonemas nasais, como o Pirahã, ocorre em um total de 12 línguas ao
redor do mundo, 7 das quais se encontraram nas Américas (Eyak, Quileute, Epena, Kubeo, Waimaha,
Pirahã, Kaingáng23). A ausência de consoantes fricativas bucais marca os inventários de 49 línguas
ao redor do mundo, sendo essa ausência mais concentrada na Oceania e Pacífico; nas Américas, 6
línguas encontradas esparsamente nas Terras Baixas da América do Sul também não possuem frica-
tivas (Bororo, Maxakalí, Wari’, Yagua, Waorani, Waimaha, Panare). De fato, é comum em línguas
Amazônicas encontrarmos línguas que ou não possuem fricativas ou possuem apenas uma fricativa,
como /s/ ou /ʃ/.24
Por outro lado, há alguns sons relativamente raros nas línguas do mundo e que são mais fre-
quentes nas Américas. Esse é o caso de consoantes glotalizadas, como /p’/ ‘oclusiva bilabial ejetiva’,
/ɓ/ ‘oclusiva bilabial implosiva’ e /m’/ ‘oclusiva nasal bilabial glotálica’, as quais produzimos com o
fechamento da glote e seu alteamento (no caso de ejetivas) ou abaixamento (no caso de implosivas).
O contraste entre uma oclusiva velar e uma ejetiva velar ocorre, por exemplo, em /kujui/ ‘mover’ e
/k’ujui/ ‘torcer’ provenientes de uma variedade Quechua (áudio disponível no apêndice online (La-
defoged, 2001)). Línguas bem conhecidas das Américas com ejetivas incluem a família Quechua
(Quechuan; Bolívia) e Aymara, Yucatec (Maya) e Navajo (Na-Dené), encontradas principalmente ao
longo da cordilheira dos Andes, na Mesoamérica, e no Noroeste da América do Norte (Maddieson
2013). Línguas com sons implosivos como /ɓ/ ou /ɗ/ são relativamente comuns na Mesoamérica (fa-
mília Maya e Otomangue, sobretudo), oeste e norte da América do Sul e na Amazônia. A língua
Yucatec Maya é uma das poucas línguas que combinam consoantes ejetivas e implosivas em seu
inventário, apresentando um contraste entre quatro consoantes bilabiais: /p/, /m/, /p’/ e /ɓ/. Também
são raras no globo, mas mais frequentes nas Américas (e no Sudeste Asiático), as consoantes soantes
desvozeadas, como [m̥], [n̥] e [l̥ ]. A língua Baniwa-Koripako (Aruák) possui esses sons, como vemos
nas palavras nhoa [n̥ʊa] ‘eu’, lhia [l̥ ia] ‘ele’ e mhadoa [m̥adʊa] ‘(pessoa) sem mãe’ (áudio disponível

23
Ver (Wetzels, 2010) para uma análise que trata as consoantes nasais do Kaingang como um fonema e não como alofo-
nes.
24
Excluímos o fonema /h/ dessas generalização por se tratar de uma fricativa glotal e não bucal

96
no apêndice online25). Línguas com soantes desvozeadas estão distribuídas dispersamente pelas Amé-
ricas, ocorrendo desde o Krenák no Leste do Brasil, Trumai no alto Xingu, as línguas Aruák do No-
roeste Amazônico, Mesoamérica, Califórnia e as línguas Eskimó-Aleuta. Vejamos na Tabela 25 os
dados da língua Unangan (Aleuta), falada no extremo norte do continente, e que possui até seis pares
de consoantes soantes que se opõem pelo traço vozeado vs. desvozeado. A Figura 14 mostra a distri-
buição dos sons que são relativamente mais frequentes nas Américas (juntamente com a África, o
Sudeste Asiático e a Melanésia) e são raros em outras regiões do globo, como implosivas e.g. [ɓ],
soantes desvozeadas [m̥], ejetivas [p’], segmentos complexos naso-orais [ᵐb].
Tabela 25: consoantes da língua Unangan (Aleuta) (Maddieson et al 2016)
Classe Modo Fonação Bilabial Dental Alveolar Palatal Velar Uvular Glotal
Oclusiva Surda t̪ k q
Africada Surda t̠ ʃ
Obstruinte
Surda s x χ h
Fricativa
Sonora ð z ɣ ʁ
Sonora m n ŋ
Nasal
Surda m̥ n̥ ŋ̥
Sonora w j
Soante Aproximante
Surda ʍ j̥
Sonora l
Lateral
Surda l̥

Figura 14: Distribuição dos sons ejetivo [p’], implosivo [ɓ], oro-nasal [ᵐb], nasal desvozeado [m̥]
nas línguas do mundo (Phoible; Moran e McCloy 2019)

Aryon Rodrigues (2018) elenca alguns sons de línguas Amazônicas que são raros ou inexistentes
entre outras línguas do mundo. Um deles é um som com articulação simultânea entre uma oclusiva
alveolar surda e uma vibrante múltipla bilabial desvozeada [t͡ʙ̥] existente na língua Oro Win (Txapa-
kura) (Ladefoged & Everett, 1996). Esse som é pronunciado com uma articulação simultânea envol-
vendo uma oclusiva dental [t] e uma vibrante bilabial surda [ʙ̥͜], como na palavra [t͡ʙ̥um] ‘garotinho’
(áudio disponível no apêndice online (Ladefoged, 2001)). Vibrantes bilabiais são sons raros e ocorrem

25
A voz é do professor Artur Garcia Gonçalves.

97
como parte de uma articulação complexa envolvendo oclusivas e/ou nasais. Elas apenas ocorrem em
Oro Win e em poucas línguas na Melanésia, Sudeste Asiático e África.
Outro som raro ocorre na língua Pirahã, o qual poderíamos chamar de ‘flap lateral duplo ál-
veo-línguo-labial’. O símbolo do IPA para representar esse som é [ɺ͡ɺ̼ ] e, com base na descrição de
Everett (1979) e Rodrigues (2018), podemos dividir sua produção em três partes, conforme ilustrado
na Figura 15. Esse som é na verdade uma variante alofônica de /g/ produzida, sobretudo, por mulheres
em um estilo especial da fala. Além do Pirahã, sons línguo-labiais ocorrem em um grupo de línguas
das ilhas do Espírito Santo e Malekula em Vanuatu, na Melanésia. Porém há uma diferença sutil entre
os sons do Pirahã e da Melanésia: enquanto o primeiro é produzido com uma parte sub-laminal sobre
os lábios inferiores, na Melanésia esses sons são apicais ou laminais, ou seja, a ponta da língua ou
lâmina encostam os lábios inferiores. Isso tornaria, de fato, o som do Pirahã um tipo único.
Figura 15: Produção do som ‘flap lateral duplo álveo-línguo-labial’ do Pirahã (com base em Everett
1983 e Rodrigues 2018).

Flap Lateral Apical: movimento Dental: projetando-se a língua Labial: e finalmente projetando-se
inicial da língua para os alvéolos para frente e tocando a parte a ponta para fora da boca por
com que se faz a vibrante simples posterior dos dentes incisivos entre os dentes incisivos e os
como o <r> em arara, aplicando- lábios
se as bordas laterais desse órgão
aos dentes molares superiores
(como na produção do nosso l])

Como explicar as raridade tipológicas, como os sons do Pirahã e do Oro Win vistos acima? Por
um lado, eles demonstram que inovações podem surgir de várias formas, em diferentes lugares e
momentos históricos, de modo que não podemos prever totalmente os sons existentes nas línguas
humanas (Ladefoged & Everett 1996), nem passados nem futuros. Junto com a Fonologia Evolutiva
(Blevins, 2004), podemos entender que as raridades tipológicas existem por razões diacrônicas com
base em como as línguas mudam: enquanto os padrões mais comuns que ocorrem nas línguas seriam
decorrentes de mudanças fonéticas naturais, regulares e transparentes, os padrões mais excepcionais
seriam explicados por vias excepcionais. Uma dessas vias é a raridade de mudanças fonológicas que
criariam sons com articulações complexas. Outra via de mudanças que tornam esses sons raros é que,
devido à sua complexidade, eles são frequentemente objeto de tendências a simplificação articulató-
ria, perdendo sua complexidade ao longo do tempo.
Podemos ainda abordar a raridade desses sons por um viés sociolinguístico. Se algumas inova-
ções se expandem a línguas diferentes através dos contatos linguísticos e inter-étnicos, outras perma-
necem restritas a determinados grupos sociais, como uma marca de sua identidade etnolinguística, ou
de um registro especial de uso de sua língua. Como discute Daniel Everett (1979)s, o som [ɺ͡ɺ̼ ] do
Pirahã é restrito à fala das mulheres em contextos especiais, enquanto os homens não costumam pro-
duzi-lo. Além de ser um fenômeno de gênero-leto (ver seção 3.1.4), Everett sugere que os homens se
sentem mais inibidos socialmente de produzirem esse som por estarem mais em contato com pessoas
que não são Pirahã. Nesse sentido, o surgimento e manutenção de raridades fonéticas em apenas uma

98
ou outra língua podem estar relacionados aos processos que criam e sustentam diferentes identidades
sociolinguísticas como produtos das relações sociais, culturais e históricas entre os povos indígenas.

4.2 Sílaba
As sílabas agrupam e organizam a disposição dos sons consonantais e vocálicos numa palavra fono-
lógica, servindo também para estruturar o ritmo e outros aspectos entoacionais. A estrutura silábica
tem como constituinte básico o seu núcleo, que em geral é ocupado por uma vogal (V). As consoantes
(C), geralmente, se posicionam na periferia do núcleo, ainda que haja consoantes silábicas em certas
línguas. A posição à esquerda do núcleo é conhecida como ataque e a posição à direita do núcleo,
como coda. Vejamos na Figura 16 uma representação da estrutura silábica (seguindo um modelo
misto com base em Hockett (1955) e Clements e Keyser (1983))26.
Figura 16: estrutura silábica para a palavra paz

Ataque Núcleo Coda


C V C
p a z
Todas as línguas possuem uma estrutura silábica mínima do tipo CV (ataque + núcleo). Nem todas
as línguas aceitam uma estrutura mais complexa com consoante em coda, de modo que a estrutura
silábica CVC (ataque + núcleo + coda) é menos frequente do que CV. Também menos frequente do
que CV é a estrutura silábica CCV em que o ataque é complexo, composto por duas consoantes CC.
Enquanto o português permite até duas consoantes no ataque silábico, e o inglês até três (com em
split ‘separar’), há algumas línguas que apenas permitem um ataque simples CV. Vamos explorar a
seguir a diversidade tipológica dos padrões silábicos entre línguas indígenas, focando no ataque si-
lábico. Nossa fonte de dados será o banco de dados fonológicos Lapsyd (Maddieson et al., 2016)

Línguas com ataque simples C


Pode-se estimar que metade das línguas das Américas permitem sílabas com no máximo uma conso-
ante no ataque. Cerca de 60% dessas línguas se encontram na América do Sul. Em Kubeo (família
Tukano) existem apenas ataques simples, como vemos nas palavras abaixo:
(4.1) Exemplos de sílabas CV em Kubeo
Fonética Sílabas Glosa
[tàˈtáɾókɔ́] CVCVCVCV ‘borboleta’
[hè ˈ̃ mé b̃ ò] CVCVCV ‘paca’
[kaˈparo] CVCVCV ‘macaco-barrigudo’

Quando uma palavra com ataque complexo é emprestada pelos falantes de Kubeo, temos a resolução
da sequência CC pela inserção de uma vogal epentética: CCV > CVCV. Por exemplo:

Português Kubeo
prego > perekuyo

26
Uma das teorias silábicas mais em voga defende uma estrutura silábica em que núcleo e coda estariam agrupado por
um nó denominado de “rima”, mas essa questão não tem relevância para nossa discussão a seguir. Para mais detalhes,
ver, por exemplo, Bisol 2014 .

99
O exemplo mostra que a raiz pereku foi adaptada fonologicamente ao evitar o padrão *CCV, inexis-
tente na língua, inserindo uma vogal, que é a cópia da vogal seguinte. A sílaba final da palavra em
Kubeo (yo) é um morfema classificador que indica a forma pontiaguda do objeto (ver seção 4.5.3
sobre o que é um morfema classificador).

Línguas com ataque complexo CC


As sílabas com ataques silábicos complexos podem ser divididas entre aquelas que permitem apenas
encontros silábicos entre uma obstruinte (oclusiva, fricativa ou africada e uma consoante “leve” como
o tepe (CrV, como em prato), as laterais (CLV, como em blusa), e os glides ou semi-vogais (CGV,
como em quase). Outras línguas vão possuir ataques “fortes”, com nasais (CNV, como na forma
erudita de pneumático), fricativa (CSV, como na forma erudita de psicologia) ou oclusiva (CTV,
como na forma erudita de pterossauro).
Nas Américas, pouco mais de um terço das línguas possuem ataque complexo, sendo quase a
metade delas com ataque leve e outra metade de ataque forte. As palavras abaixo da língua Canela
(Jê) ilustram casos de ataque leve:
(4.2) Ataques complexos leves em Canela (Castro Alves 2004)
Fonética Sílabas Glosa
[ka.t͡ʃwa] CVCGV ‘sal’
[mrɔ̃] CLV ‘mergulhar’
[am.krɔ] VC.CLV ‘dia’

Notemos que enquanto qualquer consoante pode estar na posição de um ataque simples em Canela,
há restrições sobre quais consoantes podem ocorrer em posição de ataque complexo. Apenas oclusi-
vas orais e nasais ou a consoante africada podem ocorrer na primeira posição de um ataque complex,
e apenas r, w e j podem ocupar a segunda posição. Ao mesmo tempo, os pontos de articulação entre
as duas consoantes não podem ser os mesmos, de modo que *pw (com duas consoantes biliabiais) e
*tr (com duas consoantes apicais) não ocorrem na língua (ver Castro Alves 2004: 42-3 para outras
restrições e explicações). Uma língua com padrão de ataque forte é a língua Nasa Yuwe (Páez, língua
isolada).
(4.3) Ataques leves e fortes em Nasa Yuwe (Jung 2008: 31)
Fonética Sílabas Glosa
[kla] CLV ‘vaca’
[ptam] CCV ‘casal (humanos)’
[mxĩ] CCV ‘trabalhar’

Línguas com ataque complexo CCC


As línguas com ataque complexo CCC são principalmente encontradas na América do Norte, onde
se localizam cerca de 75% das línguas com esse padrão de ataque. A língua Yurok (família Álgica),
falada no Norte da Califórnia, ilustra bem o padrão CCC e outros padrões de ataques fortes CC:
(4.4) Ataques complexos em Yurok
Fonética Sílabas Glosa
[t͡spi] CCV ‘apenas’
[ɬkeɬ] CCVC ‘terra’
[ɬkjor.kwek] CCCVC.CGVC ‘eu olho’

Na América do Sul, os casos de ataque CCC estão esparsamente espalhados de sula a norte pelo
continente, desde a língua Selknam no extremo sul, às línguas Aruák no oeste Amazônico, como
Chamicuro e Yine, bem como a língua Apinajé (família Jê), falada em Tocantins, próximo à língua

100
Canela que vimos para o padrão de atasque CC. Os exemplos a seguir ilustram dados CCC do Apinajé
(Oliveira 2005):
(4.5) Ataques complexos em Apinajé
Fonética Sílabas Glosa
[mbjeɲ] CCCVC ‘marido’
[ŋwra] CCCV ‘buriti’

Síntese comparativa
Numa escala global, Maddieson (2013b) nota que 12% das 486 línguas de sua amostra permitem
apenas ataques simples CV. Nas Américas, com base numa amostra de 192 línguas (LAPSYD), ve-
mos que a proporção de línguas CV é bem maior, chegando a 52% das línguas permitindo apenas um
ataque CV. Sabemos, no entanto, que em todas as regiões vamos encontrar línguas com diferentes
padrões de ataques silábicos – CV, CCV e CCCV. Por isso, é importante para o conhecimento da
diversidade linguística nas Américas conhecer a distribuição interna dos padrões de complexidade
silábica. Para isso, fizemos um pequeno experimento em que postulamos um índice quantitativo para
os padrões de ataque silábico, seguindo a tipologia:
§ CV = 1
§ CLV = 2
§ CCV = 3
§ CCC(+)V = 4
Em seguida calculamos a média da complexidade do ataque entre línguas agrupadas numa mesma
região dentro das Américas. Os resultados estão no gráfico na Figura 17.
Figura 17: Média do ataque silábico entre as línguas indígenas agrupadas em diferentes regiões das
Américas

A Figura 17 mostra que, em média, há mais línguas com ataques mais complexos na Mesoamérica,
seguidas de línguas nos EUA e Canadá, nos Andes e, por último, nas Terras Baixas da América do
Sul. O retrato que temos com relação à complexidade do ataque silábico entre as diferentes regiões é
o mesmo se comparamos a complexidade de outras posições silábicas, como a complexidade das
codas. Isso nos permite concluir que as sílabas em línguas da Mesoamérica são, em média, mais
complexas do que as demais regiões do continente, enquanto as das línguas das Terras Baixas da
América do Sul são as mais simples.
A Figura 18 ilustra os índices de ataque silábico para um conjunto de famílias linguísticas das
Américas. Apresentamos a média da soma dos índices de cada língua pertencente a uma família, bem
como os índices máximos e mínimos que ocorre em pelo menos uma língua da família. Como vemos
a partir da análise conjunta desses três valores, algumas famílias como Arawá e Tukano possuem
apenas línguas com ataques simples CV; outras famílias como Barbacoa, Karib e Kiowa-Tano

101
apresentam algumas línguas com ataques mais complexos CLV. Ataques CCV ocorrem línguas da
família Sioux, Uto-Azteca e Maya, enquanto ataques CCCV ocorre em línguas da famílias Aruák,
Álgica, Caddo, Chibcha, Na-Dené e Macro-Jê. Famílias grandes tendem a apresentar maior variação
entre os padrões de ataques silábicos de suas línguas. A família Aruák é a família com padrão de
ataque silábico mais variável: na média, a família é formada por línguas com ataques simples, mas
línguas como Yine e Chamicuro do ramo Purus da família Aruák (Ramirez 2020) possuem ataques
CCCV. As famílias Macro-Jê, Álgica e Caddo também apresentam grande variação, porém, em mé-
dia, suas línguas apresentam maior complexidade do que a família Aruák.
Figura 18: média e valores máximo e mínimo dos índices de ataques silábicos para um conjunto de
famílias linguísticas

4.3 Tons
Os falantes de todas as línguas exploram variações em tons graves e agudos da voz para produzir
diferentes sentidos a seus enunciados. Em português, uma afirmação como “hoje vai chover” é ex-
pressa diferentemente de uma interrogação como “hoje vai chover?” com base na elevação do tom
das sílabas acentuadas nas palavras “hoje” e “chover” no enunciado interrogativo quando comparado
ao declarativo. Os tons usados a nível do enunciado fazem parte do que chamamos de entoação, uma
área central para os estudos da prosódia, abarcando também parâmetros como duração, ritmo e inten-
sidade. Isso é realizado pela manipulação da vibração e tensionamento das pregas vocais: um maior
tensionamento e número de vibrações das pregas vocais corresponde a tons mais altos, enquanto tons
mais baixos decorrem do menor tensionamento laríngeo e consequente menor número de vibrações
das pregas vocais. Chamamos de frequência fundamental ou F0 (medido em Hertz - Hz) o parâmetro
fonético- acústico que corresponde ao número de pulsos vibratórios por segundo pregas vocais: 1 Hz
(Hertz) é igual a um pulso vibratório por segundo (YIP, 2002).
Quando nos referimos a uma língua tonal estamos tratando de um subgrupo de línguas que
usam tons para distinguir significados entre palavras ou morfemas, e não apenas em seus enunciados,
como o português. Dito de outra forma, uma língua tonal é aquela em que informações sobre os tons
são propriedades intrínsecas (ou subjacentes) de pelo menos algum morfema (Cagliari 1992, Hyman
2006). Por exemplo, em Kubeo (família Tukano), as palavras kãmiko [kà ˈ̃ mı́k̃ ò] ‘ela dorme’ e kãmíko
[kà ˈ̃ mı́k̃ ó] ‘ela carrega na cintura’ possuem as mesmas consoantes e vogais, os mesmos sufixos (-
miko ‘3a pessoa feminino’), mas contrastam com base nos tons de suas raízes verbais. Podemos dizer
que temos dois tipos de raízes em Kubeo: as raízes-A, que são marcadas intrinsicamente por um tom
A (alto) (gerando melodias do tipo BAA, como kãmíko [kà ˈ̃ mı́k̃ ó] ‘ela carrega’) e as raízes-Ø que
não são marcadas por um tom subjacente e geram melodias do tipo BAB, como kãmiko [kà ˈ̃ mı́k̃ ò]
‘ela dorme’).27 Os tons lexicais em Kubeo possuem uma distribuição limitada: eles apenas se realizam
na sílaba pós-tônica de uma palavra, como vemos nos padrões BAB vs. BAA (em negrito o tom que

27
O Kubeo possui um sistema tonal relativamente simples, mas com uma complexa interação com o sistema de acento
que não podemos nos aprofundar aqui (ver Chacon 2012).

102
corresponde ao da sílaba tônica). A Figura do Apêndice Online 10 ilustra o contraste tonal com base
na curva de F0 obtida com o software de análise acústica PRAAT (Boersman e Weenink, 2024)28.
Podemos classificar o sistema Kubeo como um de tons restritos, dado o contraste privativo entre um
tom A vs. Ø ‘zero’ (ausência de tons subjacentes) e à distribuição desse contraste estando restrita à
posição do acento da palavra. Diversas línguas tonais das Américas possuem tons restritos como o
Kubeo, sendo, assim, semelhantes a sistemas como o do Japonês, conhecidos por pitch-accent ou
“acento-tonal”.
Figura do Apêndice Online 10: tons em Kubeo medidos foneticamente pelas curvas de F0 extraídas
para as palavras kãmiko [kà ̃ ˈmı́k̃ ò] ‘ela dorme’ e kãmíko [kà ̃ ˈmı́k̃ ó] ‘ela carrega na cintura’

Um sistema relativamente mais complexo pode ser visto numa língua próxima ao Kubeo. Em
Tatuyo (família Tukano), há dois tons subjacentes: A (Alto) e B (Baixo). As raízes lexicais nessa
língua possuem sempre duas vogais, e cada vogal deve estar sempre associada a um tom A ou B. Não
parece haver uma limitação na distribuição desses tons com propriedades do acento da palavra. Nesse
sentido, as raízes lexicais podem estar marcadas por até quatro melodias: A (alto-alto) (2a), B (baixo-
baixo) (2b), BA (baixo-alto) (2c) e AB (alto-baixo) (2d):
(4.6) Tons na língua Tatuyo (Gomez-Imbert 2005)
júú A ‘tragar’
rìì B ‘carne’
rìí BA ‘sangue’
ríì AB ‘argila’

Uma outra diferença sutil, mas fundamental entre os sistemas de tons do Kubeo e do Tatuyo
tem a ver com sua TBU (do inglês tone bearing unit) ou unidade de associação dos tons. Em Tatuyo,
cada vogal ou mora está associada a um tom, de modo que uma sequência VV pode apresentar pa-
drões imprevisíveis V́V́, V́V̀, V̀V́ e V̀V̀; já em Kubeo, podemos dizer que a unidade é a sílaba, uma
vez que sequências de vogais VV possuem tons previsíveis e jamais contrastivos: se o toma da sílaba
for A a sequeência será sempre V̀V́ ou V́V́, mas se o tom for B a sequência terá somente tons baixos
V̀V̀.
A língua Nambikwara do Sul apresenta também tons A e B em sílabas com núcleo composto
por uma só vogal, mas, em sílabas com vogais longas ou com consoantes em coda, a língua contrasta
até quatro melodias tonais: alto-alto, baixo-baixo, baixo-alto (ascendente) e alto-baixo (descendente)
(ver Costa 2020). Logo, como o Tatuyo, a mora é sua TBU, porém, diferentemente, a TBU do Nam-
bikwara inclui as codas soantes.

28
A voz é do professores Osvaldo Torres.

103
Na língua Gavião (família Tupi, subfamília Mondé). Um sistema de tons subjacentes A e B
permitem o contraste de até três tons em uma só vogal, uma vez que nessa língua uma mora pode
estar associada a mais de um tom (Moore, 1999). Os tons dos exemplos _ são conhecidos como tom
de nível, pois possuem uma altura fixa, como em Kubeo e Tatuyo; já o tom do exemplo _ é conhecido
como tom de contorno, uma vez que sua altura é dinâmica, podendo apresentar padrões ascendentes
(BA) (como em Gavião) ou descendentes (AB).
(4.7) Tons na língua Gavião (Moore 1999)
káp A ‘objeto pequeno redondo’
kàp B ‘gordo’
yǎp BA ‘flecha’

Um sistema semelhante ao Gavião pode ser encontrado na língua Choguita Rarámuri (ou Tarahumara
Central, família Uto-Azteca), que contrasta tons alto, baixo e descendente: mê ‘ganhar’, mè ‘mezcal’,
niʔwí ‘relampejar’, niwì ‘celebrar casamento’ (Cabellero e Gordon 2020).
Sistemas como do Gavião, Choguita Rarámuri, Tauyo, Nambikwara do Sul e Kubeo apresen-
tam semelhanças com os sistemas de línguas Nígero-Congolesas com dois tons subjacentes, como é
o caso de várias línguas da subfamília Bantu (Hyman et al 2020). Como veremos, esses padrões são
os mais recorrentes nas Américas. O que não encontramos aqui com frequência são sistemas tonais
mais complexos, com três ou mais tons de nível ou tons de contorno, algo relativamente comum na
África Sub-Sahariana e no Sudeste Asiático (Yip 2002).
Há, no entanto, algumas línguas indígenas que possuem sistemas tonais mais complexos. É o
caso das línguas da família Otomangue. Por exemplo, na língua Itunyoso Triqui, existem quatro tons
de nível e mais cinco tons de contorno. Di Canio (2008) utiliza um sistema de notação distinto do que
vimos acima, similar ao que se usa para os sistemas tonais mais complexos do mundo, como o do
Mandarim, Cantonês e Vietnamita. Nessa notação, a altura dos tons de nível é representada por um
sistema de números crescentes que vão do “1” (tom mais baixo) ao “4” (tom mais alto), enquanto os
diferentes tons de contorno são representados pela combinação desses níveis, por exemplo: “43”
marca um tom descendente que parte da altura “4” e termina na “3”, enquanto “45” marca um tom
ascendente que parte da altura “4” e termina na “5”. A Tabela 26 apresenta esse sistema e oferece
algumas palavras ilustrativas:
Tabela 26: contrastes tonais em Itunyoso Triqui (Otomangue) (Di Canio 2008)
Tons de Nível Glosa Tom de Contorno Glosa
4 ββe4 ‘cabelo’ 43 li43 ‘pequeno’
3 nne3 ‘arar’ 32 nne32 ‘água’
2 nne2 ‘mentir’ 31 nne31 ‘carne’
45 yãh45 ‘cera’
1 nne1 ‘nu’
13 yah13 ‘poeira’

Sistemas complexos como o de Itunyoso Triqui são amplamente encontrados na família Otomangue
e nos remetem aos sistemas mais complexos do Sudeste Asiático. Fora da família Otomangue, são
raros nas Américas, mas avanços na descrição da língua Tikuna (família Tikuna-Yuri) têm nos mos-
trado que seu sistema tonal é comparável aos sistemas mais complexos do mundo. Se anteriormente
o sistema Tikuna já havia sido analisado como o mais complexo da América do Sul com três tons
subjacentes A, M e B (__), Bertet (2020) demonstra que há até 8 tons subjacentes nas sílabas tônicas
de palavras do Tikuna, como ilustrado abaixo.29

29
Como podemos ter ido de 3 a pelo menos 8 níveis tonais entre as duas analyses do Tikuna? É possível que as descrições
anteriores do Tikuna tenham se baseado em análises impressionísticas (“de ouvido”), deixando escapar certos contrastes
mais sutiis como tons 21 vs. 22 e 31 vs. 33. Avanços nas técnicas de descrição linguística, com a popularização do acesso
à análise acústica promovido pelo software livre Praat (__) pode ter fornecido as condições necessárias para o avanço
promovido por Bertet.

104
(4.8) Tonas na língua Tikuna Bertet (2020)
a. [ˈba͡ɪ52] ‘sequer’
b. [ˈnãɪ ̃ ]͡ 36
‘outro (neutro)’
c. [ˈnã͡ɪ43 ̃ ] ‘picante’
d. [ˈnãɪ ̃ ] ͡ 34
‘quente’
e. [ˈnã͡ɪ31 ̃ ] ‘árvore’
͡
f. [ˈt̪ aʊ ] 33
‘cinzento’
g. [ˈnã͡ɪ21 ̃ ] ‘outro (feminino/masculino)’
h. [ˈtaɪ ]͡ 22
‘forte’

Muitas línguas tonais também apresentam em seus inventários o que se convencionou chamar de tom
gramatical ou morfema tonal. Trata-se de um padrão tonal contrastivo no nível da morfossintaxe,
distinguindo significados gramaticais como classe gramatical, tempo, pessoa, modo, etc. Além dessa
diferença de função, tons gramaticais podem ser vistos como morfemas não-segmentais, ou seja, cujo
significante não consiste em vogais e consoantes, mas apenas em tons. Na língua Miraña, Seifart
(2005) mostra como verbos com padrão AB se tornam BB quando são nominalizados
(4.9) Tom gramatical na língua Miraña (Seifart 2005)
námè-:bè
defecar-GCM.masc.sg
‘ele defeca’

nàmè
L(NMZ)=defecar
‘fezes’

Na língua Dâw (família Naduhup), encontramos dois tipos de morfemas tonais. Um tom ascendente
marca a melodia de verbos nominalizados, como em (_), e uma melodia descendente marca o tom de
verbos intransitivos que foram transitivizados, com em _ (Martins _):
(4.10) Tom gramatical em Dâw (Martins 2005)
Nominalização: tom ascendente
wɛ̂ːd ‘comer’ > wěːd ‘comida’

Transitivização: tom descendente


júʔ ‘estar quente’ > jûʔ ‘esquentar’

Em Navajo (família Na-Dené, EUA), os aspectos imperfectivo e perfectivo são distinguidos em ter-
mos tonais, como vemos no par-mínimo jìʧà ‘ele está chorando (imperfectivo)’ vs. jíʧà ‘ele chorou
(perfectivo)’ (McDonough 1999:509).

Síntese comparativa
Encontramos línguas tonais em quase todas as macrorregiões do mundo, exceto na Austrália e Poli-
nésia, ainda que haja um bom número de línguas tonais em Papua e outras regiões da Melanésia.
Entre as famílias linguísticas do mundo, algumas famílias são consistentemente tonais, como a famí-
lia Nígero-Congolesa e Sino-Tibetana, em que quase todas as línguas possuem tons. Outras, como a
família Indo-Europeia e Austronésia, são apenas marginalmente tonais, ou seja, tons se desenvolve-
ram apenas em algumas línguas da família, como é o caso de certos dialetos de Holandês, do Norue-
guês e do Sueco na família Indo-Europeia.
Segundo estimativas de Larry Hyman (2001), 50% das mais de seis mil línguas do globo são
tonais. Porém, o banco de dados de Lapsyd (_), que possui informações fonológicas para cerca de

105
760 línguas no mundo, classifica 251 ou 33% das línguas como tonais. Em um trabalho anterior, com
um corpus mais restrito, Maddieson (2013) havia reportado que 42% das línguas do mundo eram
tonais.30Podemos estimar que um terço das línguas indígenas faladas nas Américas são tonais, uma
média ligeiramente inferior à média global. O banco de dados de Lapsyd soma um total de 240 línguas
faladas no continente americano, 62 ou 25% das quais são tonais. Das 84 línguas da América do
Norte, 25 ou 30% são tonais; entre as 25 ínguas da Mesoamérica, 9 ou 36% das línguas são tonais,
enquanto na América do Sul, de um total de 131 línguas, 28 ou 21% são tonais. Em um estudo inde-
pendente, Chacon e Carvalho (2020) contam 64 línguas tonais na América do Sul, o que representa
32% do total de línguas em sua amostragem de cerca de 203 sistemas prosódicos sul-americanos.
Somando as bases de dados de Chacon e Carvalho (2020) (exclusiva para América do Sul) e Maddi-
eson (2013) (abrangendo todo continente americano), somam-se 96 ou 32% de línguas tonais num
total de 296 línguas.
Ainda que tenhamos visto na seção anterior que encontramos nas Américas tipos de sistemas
tonais comparáveis em complexidade a outros sistemas do mundo, há menos sistemas de tons com-
plexos nas Américas do que no resto do globo se comparamos com a África Sub-Sahariana, o Leste
e Sudeste Asiático. Maddieson (2013) reporta que cerca de um quarto das línguas do mundo (132 ou
25% de sua amostra de 526 línguas) possui sistemas de tons simples (com no máximo dois tons
contrastivos), como o Kubeo e o Tatuyo. Menos de um quinto, 88 ou 16,7%, possuem sistemas de
tons complexos (com três ou mais tons contrastivos), como o Gavião, o Nambikwara do Sul, o Tikuna
e as línguas Otomangue. Nas Américas, segundo os dados combinada entre Maddieson (2013) e Cha-
con e Carvalho (2020), das 96 línguas tonais, 11 possuem sistemas tonais complexos (11% do total
de línguas tonais, ou 3% do total de línguas da amostra) e 85 possuem sistemas de tons simples (89%
do total de línguas tonais, ou 29% do total de línguas da amostra).
As línguas tonais nas Américas se distribuem em algumas regiões e famílias linguísticas es-
pecíficas, como mostramos no mapa da Figura 19 e na Tabela 27. Zonas com uma mais alta concen-
tração de línguas tonais são: a Califórnia, o Sudoeste dos EUA, a Mesoamérica, e um grande cinturão
que vai do Noroeste, ao Oeste e Sul da Amazônia, penetrando no Pantanal. A Tabela 27 nos mostra
que certas famílias linguísticas possuem mais de 50% de suas línguas como tonais, o que é um número
significativo dado que a média da mostra está em 33% de línguas tonais. Para algumas dessas famí-
lias, é possível reconstruir tons para suas protolínguas. Dessa forma, podemos dizer que as línguas
tonais são encontradas em zonas de acreação, com alta diversidade de línguas, famílias linguísticas e
tipológica (onde há intensos contatos linguísticos), ou em zonas de dispersão de uma família linguís-
tica cuja protolíngua possuía tons (ver seção 6.3.1 sobre o que seriam zonas de acreação e dispersão).
Há, no entanto, línguas tonais que fogem a esse padrão distribucional, como Chon (no extremo me-
ridional da América do Sul), Yaathê (no Nordeste do Brasil) e Passamaquoddy-Maliseet (única língua
da família Álgica a possuir tons).

Figura 19: Distribuição de línguas e sistemas tonais nas Américas com base na amostra combinada
de Maddieson (2013) e Chacon e Carvalho (2020)

30
Hyman (2001) – como um bom africanista – pode ter sobrevalorizado o número de línguas tonais no mundo dado o
fato de que tons são um fenômeno presente em quase todas as línguas da África Sub-Sahariana. No entanto, a amostragem
do Lapsyd segue critérios mais objetivos, possuindo uma amostra ampla, equilibrada e bem distribuída entre diferentes
famílias e regiões do mundo, de modo que podemos ter maior confiança de que o número de Lapsyd é o mais represen-
tativo da realidade para as cerca de mil línguas do continente.

106
Tabela 27: Famílias Linguísticas, número e proporção de línguas tonais e não-tonais na amostra de
Maddieson (2013) e Chacon e Carvalho (2020)
Línguas Línguas Línguas Tonais/
Família
não-Tonais Tonais Total de Línguas
Otomangue 0 10 100%
Tikuna 0 1 100%
Tukano 2 16 89%
Nambikwara 1 4 8%
Naduhup 1 3 75%
Iroquês 1 2 67%
Na-Dené 3 4 57%
Chibcha 4 4 5%
Média da Amostra 192 96 3%
Pano-Takana 12 6 3%
Aruák 17 8 3%
Tupí 13 6 3%
Maya 3 1 2,5%
Uto-Azteca 6 2 2,5%
Álgica 4 1 2%
Karib 20 0 -
Macro-Jê 7 0 -
Yanomami 2 0 -
Quechua 5 0 -
Aymara 2 0 -

Na América do Norte, a distribuição das línguas tonais segue, em grande parte, a localização das
línguas da grande família Na-Dené, a mais consistentemente tonal nessa região, sendo tons recons-
truíveis para o Proto-Atabasko (a maior subfamília Na-Dené; ver capítulo 4) (Krauss 2005). Temos
ainda, na região do Golfo, a pequena família Muskogue, e, nas Planícies, as pequenas famílias Kiowa-

107
Tano e Caddo como consistentemente línguas tonais. Outras famílias como Álgica, Iroquês, Sioux e
Uto-Azteca são marginalmente tonais, ou seja, apresentam tons apenas para algumas línguas.
Na Mesoamérica, a família Otomangue é 100% tonal, além de apresentar alguns dos sistemas
mais complexos do continente. Outras famílias que marginalmente apresentam línguas tonais são:
Maya (línguas Maya de Yucatec, Tzotzil de San Bartolo e Uspantec), Uto-Aztea (Huichol) e a pe-
quena família Huave (Soarez 1983: 51).
Na América do Sul, vê-se que as línguas tonais estão sobretudo concentradas no Oeste e Norte
do continente, mais do que no Sul e Leste, e mais nas Terras Baixas do que nas Terras Altas. As
famílias Chibcha (Norte), Nambikwara (Sudoeste Amazônico), Tukano e Naduhup (Noroeste Ama-
zônico) são as mais consistentemente tonais, juntamente com um alto número de línguas isoladas e
pequenas famílias (Aikaná, Bora, Witoto, Andoke, etc.) que também se encontram nas mesmas regi-
ões onde essas línguas são faladas. Famílias com distribuição mais ao Leste, como Karib e Macro-Jê,
não possuem línguas tonais em nossa amostra. A família Tupí possui um terço de línguas tonais,
como Gavião, Karitiana, Karo, Mundurukú, Xipaya e Suruí, mas nenhuma pertence à subamília Tupí-
Guaraní. A maioria das línguas Arawak localizadas nas partes Oeste e Noroeste da Amazônia é tonal,
incluindo a língua mais meridional, Terena, hoje falada na região do Pantanal. A família Pano-Takana
possui 6 línguas tonais em nossa amostra, e todas pertencem à subfamília Pano (Amahuaca, Kashi-
nahua, Kakataibo, Chácobo, Capanahua e Sharanawa (Marinahua), não havendo tons nas línguas Ta-
kana.

4.4 Tipologia Morfológica


Um dos temas centrais desde os primórdios da tipologia linguística é a classificação dos fenômenos
relativos à morfologia – ou aos processos de formação de palavras. Apesar de não haver ainda uma
definição universalmente satisfatória para o que é uma “palavra”, a tipologia tem procurado rever
categorias e procedimentos classificatórios tradicionais, sem perder o interesse em investigar a diver-
sidade dos processos de formação de palavras e quão morfologicamente complexa é uma palavra em
diferentes línguas. Nesse sentido, começamos na seção 4.1 revisando os processos mais gerais de
formação de palavras. Em seguida, exploraremos a Tipologia Morfológica das línguas indígenas das
Américas, procurando tecer uma visão panorâmica sobre os perfis morfológicos da diversidade lin-
guística nas Américas.

4.4.1 Introdução à Formação de Palavras


Existem muitos processos de formação de palavras. Desde um ponto de vista formal, eles podem ser
divididos entre aqueles baseados na concatenação sintagmática entre morfemas (como em boca-s
tema+sufixo ou guarda-roupa tema+tema), na alomorfia da raiz ou tema (como mouse [ˈmaws] ‘rato’
e mice [ˈmajs] ‘ratos’) ou na supleção de um tema (como em irei vs. fui vs. vou). Todos esses tipos de
processos são encontrados nas línguas indígenas das Américas, alguns de formas surpreendentes,
como veremos a seguir.

Afixação
Os processos de afixação são talvez os primeiros que nos vêm à mente quando pensamos em morfo-
logia. Os mais típicos afixos são os prefixos e sufixos. Prefixos ocorrem antes ou à esquerda de uma
raiz ou tema, e os sufixos ocorrem à direita ou depois. Vejamos os exemplos abaixo da língua Baniwa-
Koripako, falada no rio Içana:
(4.11) Prefixos e sufixos em Baniwa-Koripako (Ramirez 2021)
§ no-káapi
1A/S-mão
‘minha mão’
§ newíki-nai
pessoa-PL
‘pessoas’

108
Outro padrão de afixação são os circunfixos, que são afixos compostos simultaneamente de um ma-
terial prefixal e sufixal. A língua Cavineña (sub-família Takana, família Pano) é descrita como tendo
um amplo conjunto de circunfixos. Vejamos os exemplos abaixo:
(4.12) Circunfixos em Cavineña (Guillaume 2008)
e-...-ki ‘nominalizador instrumental’
tawi ‘dormir' > e-tawi-ki ‘roupa de cama’
bade ‘pendurar-se' > e-bade-ki ‘rede’

k(a)-...-ti ‘verbalizador de nomes em verbos intransitivo’


-atsanaka ‘boca’ > k-atsanaka-ti ‘bocejar’
-ana ‘língua’ > ka-ana-ti ‘falar'

e-...-ke ‘3a pessoa’


wane ‘esposa’ > e-wane-ke ‘esposa dele’

A língua Terena (família Aruák) apresenta um tipo de afixo menos comum, conhecidos como infixo.
Ele ocorre dentro da raiz para designar a posse inalienável de segunda pessoa em algumas palavras,
como vemos nos exemplos abaixo (Nascimento 2012: 70):
(4.13) Infixo em Terena (Nascimento 2012: 70)
Raiz Infixo de 2ª pessoa
hura > h-i-ura
‘barriga” ‘tua barriga’

taki > t-e-aki


‘braço” ‘teu braço’

Veja que o infixo é uma vogal alta anterior [i] quando precede uma vogal alta como [u] em hiura ‘tua
barriga’, ou será uma vogal média [e] quando preceder uma vogal não-alta como [a] em teaki ‘teu
braço’. Isso que dizer que a segunda pessoa teria dois alomorfes [e] e [i], i.e., formas alternativas de
um mesmo morfema condicionadas, principalmente, por questões fonológicas.
Um último tipo de afixo que mencionaremos é o que se convencionou chamar de suprafixo,
termos que se refere a processos de formação de palavras por meio de alterações prosódicas, como
acento e tons. Os tons gramaticais dos exemplos (4.9) e (4.10) são um tipo de suprafixo.

Composição, Incorporação e Serialização Verbal


São muito produtivos entre as línguas indígenas os processos de composição, que ocorre quando duas
raízes ou temas são concatenados para formar uma nova palavra gramatical. Em palavras compostas,
dois itens lexicais se combinam para formar uma nova palavra por meio de relações icônicas, moti-
vadas semântica e pragmaticamente. Assim, beija-flor se refere a um passarinho que se alimenta de
flores a partir de uma ação que categorizamos com o evento de beijar.O léxico das línguas indígenas
está repleto de palavras que atestam o caráter criativo e produtivo dos compostos nominais,. A língua
Kubeo fornece um exemplo oportuno com base nos termos para mí ‘pássaro’ e yawi ‘onça’ ilustrados
nos exemplos (11) e (12). Vejamos que, em Kubeo, o tema que está à direita é o núcleo do composto.
Logo, em (11a-c), mí identifica espécies de pássaros, enquanto (12a-c) yawi ‘onça’ é o termo mais à
direita e identifica um grupo de animais predadores, como felinos, piranha e aves de rapina. Note,
sobretudo, o contraste entre as formas (11a) e (12a), construídas pela permutação dos dois temas.
(4.14) Palavras compostas em Kubeo
Núcleo semântico e sintático mi ‘pássaro’
a. yawí mi
onça pássaro

109
‘pássaro tesourão’
b. muhã́ mi
urucum pássaro
‘sanhaço de fogo’
c. makã̀ kõriá mi
floresta capim pássaro
‘tico-tico-de-bico-preto’

Núcleo semântico e sintático yawi ‘onça’


a. mí yawi
pássaro onça
‘harpia (ave de rapina)’
b. muñú yawi
piranha onça
‘piranha-gigante’ (criatura mitológica)
c. hiá yawi
rio onça
‘ariranha’

A partir de palavras compostas ou outras construções no SN, as línguas desenvolvem um conjunto


limitado e recorrente de formativos nominais, chamados de termos de classe e termos de medida.
Termos de medida são nomes que constroem um referente quantificável para nomes com referentes
genéricos ou massivos, como um copo de água ou um sopro de vida. Já os termos de classe são nomes
que categorizam outros nomes com base em um tipo de entidade e, assim, servem para especificar
um referente como uma instância das categorias veiculadas pelo nome e o termo de classe. Gramati-
calmente, estão na posição de núcleo da palavra composta ou SN. Em Apurinã (família Aruák), Fa-
cundes (2009) argumenta que termos referentes a partes de plantas passaram a ser usados como ter-
mos de classe referents a objetos esféricos quando passaram a ser usados em palavras para partes do
corpo humano e para objetos manufaturados. Vemos isso ilustrado para -ky ‘semente, esférico, pe-
queno’ em (13)
(4.15) Termo de classe -ky ‘semente, esférico, pequeno’ em Apurinã (Facundes 2009: 17)
a. meky-ky ‘grão de milho’
b. teny-ky ‘mamilo’
c. xamyna-ky ‘balas’

A incorporação nominal forma um novo verbo a partir da composição entre um nome e um verbo.
A incorporação é um recurso muito produtivo para a criação de novas palavras, para a sintaxe da
oração e o discurso. Desde um ponto de vista lexical, a incorporação é usada para precisar o sentido
de verbos mais genéricos ou modificar seu significado. Por exemplo, em Tupinambá, a raiz verbal ʔu
significa ‘comer’ ou ‘ingerir’, mas quando incorporado ao nome referente a água ʔɨ+ʔa (água+comer)
significa ‘beber’. Vejamos outros exemplos nas frases abaixo (ver também seção 4.5.3 sobre os cha-
mados classificadores verbais como um tipo de incorporação nominal):
(4.16) Incorporação nominal em Tupinambém (Mithun 1984)
a. a-ka-ʔú
1sg-cauim-ingerir
‘eu bebo cauim’
b. a-por-ú
1sg-humano-ingerir
‘eu como carne humana’

110
Os verbos também podem se combinar para formar um predicado complexo num tipo de construção
conhecida como composição verbal ou serialização verbal. Vejamos os exemplos abaixo da língua
Tukano (Ramirez __):
(4.17) Verbos serializados ou compostos em Tukano (Ramirez 2019)
a. wã’rôpı͂ -re bɨê we͂he-ya!
mutum-ref flechar matar-IMP
‘mate o mutum flechando-o’
b. wa’i ba’â yã’a-ya!
peixe comer experimentar-IMP
‘prove o peixe (lit. veja de comer o peixe)’
c. pisana kasawa bu’i-pɨ bu’pu mɨha peha eha-mi
gato jirau em.cima-LOC pular subir estar.por.cima chegar-3M.PRESENTE.VISTO
‘o gato pulo em cima do jirau (lit. o gato foi até se colocar em cima do jirau subindo pulando)

Podemos ver que na construção em (_a), os dois verbos se combinam semanticamente fundindo dois
verbos (flechar e matar) num só predicado e com um só objeto. Em (_b), o segundo verbo que traz o
sentido de “experimentar” ou “testar”, é na verdade derivado do verbo yã’a ‘ver’, mostrando que
alguns verbos em construções seriais apresentam tendências à gramaticalização. Por último, a oração
em (_c) traz um exemplo fascinante com verbos compostos para descrever a trajetória do sujeito da
oração.

Alomorfia da raiz ou tema


Os processos baseados em alomorfia de raízes e temas ocorrem em línguas com morfologia complexa,
como as línguas Karib. Sérgio Meira (1999) descreve mais de cinco processos morfológicos que pro-
duzem alomorfia nas raízes ou temas da língua Tiriyó (família Karib, Nordeste Amazônico). Entre
eles, temos o processo de ablaut, em que todas as raízes apresentam dois alomorfes, um com vogais
iniciais mais anteriores (/e/, /a/) e outro com vogais iniciais mais posteriores (/ə/, /o/). O uso de cada
alomorfe do tema verbal depende de condicionantes morfológicos, como o prefixo k- ‘1+2O’, ‘12AO’
(para entender esses códigos, ver seção) e as formas no supino negative, conforme ilustrado abaixo
(4.18) Alomorfia da raiz em Tiriyó (Meira 1999)
eta əta-ewa k-əta
‘escutar’ ‘não escuta’ ‘ela/ele nos ouviu’ ou ‘eu te ouvi / você me ouviu’
apəi əpəə-sewa k-əpəi
‘pegar’ ‘não pega’ ‘ela/ele nos pegou’ ou ‘eu te peguei / você me pegou’

Supleção
São comuns línguas que usam palavras distintas para diferenciação do sexo de animais, como poeb
‘pata’ e sore ‘pato’ em Baure (Aruák, Danielsen 2007:118), e termos de parentesco, como Ninam ami
‘irmã mais velha’ e awə ‘irmão mais velho’. Em certo sentido, esses casos não são muito diferentes
do português quando vemos pares como cavalo e égua ou pai e mãe. Sistemas de parentesco de
línguas Yanomami, como o Ninam, mostram como certos termos de parentesco podem ter diferentes
bases lexicais a depender de seu contexto gramatical. A palavra para ‘irmã (mais nova)’ pode ter até
três diferentes bases a depender do ego (a pessoa de referência para a relação de parentesco) e se o
termo de parentesco está sendo usado numa função vocativa ou referencial:
(4.19) Supleção da raiz nominal no paradigma de posse da língua Ninam
tɨse ‘irmã mais nova! (vocativo)
xĩa ‘irmã mais nova’ (raiz para ego de 1a e 2a pessoa)
ethe ‘irmã mais nova’ (raiz para ego de 3a pessoa)

111
A língua Xavante apresenta um fenômeno de supleção de temas verbais de acordo com o número do
sujeito de um verbo intransitivo ou do objeto de um verbo transitivo. Considerando que a Xavante
tem número singular, dual e plural, cada verbo pode apresentar até três bases lexicais distintas. É algo
similar à supleção do português para o verbo ir (vou vs. irei vs. fui), mas enquanto em português
temos o tempo gramatical como condicionante, o Xavante (família Jê) tem o número gramatical dos
participantes. Veja as frases abaixo para o verbo ‘carregar’ que varia conforme o número do argu-
mento em função de objeto:
(4.20) Supleção de temas verbais em Xavante (McLeod e McLeod 2003)
a. si'õno ma tô ti'â
cesto PERF carregar (objeto singular)
‘ele levou o cesto’

b. si'õno ma tô timra
cesto PERF carregar (objeto dual)
‘ele levou dois cestos’

c. si'õno ma tô waibu
cesto PERF carregar (objeto plural)
‘ele levou vários cestos’

4.4.2 Tipologia Morfológica Holística


A classificação das línguas com relação ao seu padrão morfológico é um tema tradicional na linguís-
tica comparada. A longo do tempo, essa abordagem tem proposto alguns parâmetros holísticos para
classificar o “perfil” morfológico das línguas. Uma abordagem bastante popular no final do século
XIX e início do século XX foi o reconhecimento de quatro tipos ideais de línguas: isolantes, agluti-
nantes, fusionais (ou flexionais), e polissintéticas (ou incorporantes) (Comrie, 1989). A diferença
básica entre esses termos tem a ver, primeiramente, com o número de morfemas que tipicamente
ocorre nas palavras de cada língua. Línguas isolantes apresentariam um número próximo a 1 (um),
uma vez que suas palavras são geralmente formadas por um só morfema. Não existem línguas total-
mente isolantes, especialmente nas Américas, onde as línguas tendem a possuir uma morfologia rica.
No entanto, algumas línguas possuem construções que se aproximam de um padrão mais isolante.
Algumas línguas da subfamília Pano, como o Yaminawa, apresenta orações em que as palavras ten-
dem a apresentar um padrão isolante. Vejamos o exemplo abaixo (Souza 2020: 176)
(4.21) Padrão isolante em Yaminawa (Souza 2020: 176)
anã wai wetsa ẽwẽ epã a-ve vepeati-tũ
de_novo roçado outro meu pai ele-com abrir-quando
‘novamente, estava indo com meu pai abrir um outro roçado’

Já as línguas aglutinantes, fusionais e polissintéticas apresentam um número maior de morfemas por


palavras. As línguas aglutinantes apresentam palavras geralmente longas, compostas por muitos
morfemas, que em geral podem ser segmentados facilmente. As línguas Karib, Tupí-Guaraní e Ma-
cro-Jê possuem uma tendência aglutinante (__). Vejamos um par de exemplos da língua Karajá (Ma-
cro-Jê, Franchetto et al. Línguas e gramática universal: 180-1)
(4.22) Padrão aglutinante na língua Karajá
a. r-a-rybè-reny-õ-ra
3-VT-falar-PL-NEG-PST
‘eles não falaram’
b. iny-wè-boho-na
Karajá-barriga-quebra-lugar
‘Lugar onde houve a quebra da barriga dos Karajá’ (nome de aldeia mítica)

112
A característica fundamental das línguas fusionais está num alto número de morfemas portmante-
aux, ou seja, em morfemas que codificam mais de uma categoria gramatical. Por exemplo, as línguas
Tukano são conhecidas por sua morfologia verbal altamente fusional. Na frase abaixo, vemos como
o morfema que encerra a palavra verbal codifica pessoa, tempo, aspecto, evidencialidade e modo.
4.23) Padrão fusional em Tukano (Ramirez 2019)
Baria ãyu-go nii-wõ
Maria bonita-f ser-3.f.passado.visto.declarativo
‘Maria era/estava bonita’

As palavras em línguas fusionais não são tão longas quanto em línguas aglutinantes, uma vez que um
só morfema em línguas fusionais concentra informações que estariam distribuídas em diferentes mor-
femas numa língua aglutinante. Loogo, enquanto línguas aglutinantes possuem uma relação mais
próxima de “1 para 1”, ou seja, um morfema codifica uma só categoria gramatical, morfemas em
línguas fusionais possuem uma relação de “1 para muitos”, ou seja, um morfema codifica mais de
uma categoria gramatical.
Uma outra categoria proposta é a de línguas polissintéticas. Nesse tipo de língua, além de um
alto número de morfemas por palavras – característica compartilhadas com línguas aglutinantes –
encontramos também uma tendência de todo o conteúdo semântico de uma oração ser expresso na
palavra verbal. De fato, muitas línguas indígenas nas Américas são analisadas como polissintéticas
ou com tendências polissintéticas. O que há de comum entre elas é que o verbo (ou o núcleo do
predicado em geral) tende a concentrar todas as informações sobre os participantes diretos e circuns-
tanciais da oração, como o agente, o paciente, o espaço, o tempo, etc. São línguas de marcação de
núcleo, como vermos em _. Isso se atinge por processos morfológicos de incorporação nominal e de
outros constituintes da oração, bem como por um conjunto de afixos e clíticos concatenados à base
verbal. Vejamos alguns exemplos abaixo, primeiramente, das língua Yupik falada no Alaska:
(4.24) Padrão polissintético em Yup’ik (Mithun 1996: 38)
kaig-piar-llru-llini-u-k
ter.fome-muito-PASSADO-aparentemente-INDICATIVO-3.PESSOA.DUAL
‘eles dois tinha aparentemente muita fome’

A língua Kadiwéu (família Guaicurú) também possui um verbo com tendências polissintéticas, como
analisa Rodrigues (1986: 25)
(4.25) Padrão polissintético em Kadiwéu (Rorigues 1986: 25)
dj-ika-n-aGa-taki-ke
1-soltar-classe_verbal-envolvimento.do.falante-iterativo-alativo-plural
‘nós estamos soltando outra vez’

Como vemos, os tipos morfológicos que analisamos acima permitem certas distinções entre línguas
isolantes vs. aglutinantes, fusionais e polissintéticas. Entre essas últimas, podemos ainda diferenciar
os tipos morfológicos com relação à frequência de morfemas portmanteaux (uma alta frequência des-
ses morfemas caracterizaria uma língua fusional) e quanto à distribuição das categorias semânticas e
gramaticais na oração (se o verbo ou núcleo do predicado possui uma tendência de concentrar todas
essas informações em sua morfologia, então estaríamos diante de uma língua polissintética). Porém,
como pontuam Comrie (1989: 46-52) e Campbell (2012: 259-260), há um número de problemas e
limitações desse tipo classificação em tipos morfológicos. Há línguas – talvez a grande maioria delas
– cuja classificação em um tipo morfológico não é tão clara. Vejamos como um linguista, David
Fleck, descrevendo uma língua da subfamília Pano, Matsés, lida com esse problema:

Morfologicamente, Matsés é difícil de classificar. Situa-se entre línguas isolantes (em que a maioria das
palavras consiste em um único morfema, como no chinês) e línguas polissintéticas (em que as palavras

113
tendem a consistir em muitos morfemas, como no Eskimó). (...) Da mesma forma, Matsés situa-se entre as
línguas aglutinantes (em que cada morfema representa um único significado, como no Eskimó) e as línguas
flexionais/fusionais (em que os morfemas ligados tendem a representar vários significados ao mesmo
tempo, como nas línguas românicas) (Felck 2003: 62)31

A classificação em tipos morfológicos esbarra na dificuldade de que as diferenças entre os tipos não
são categórica, mas graduais ou contínuas. Assim, faz mais sentido falarmos de línguas que são mais
analíticas (mais próximas ao tipo isolante) e línguas que são mais sintéticas (mais próximas de lín-
guas aglutinantes, polissintéticas ou fusionais). Ao mesmo tempo, a dificuldade de classificação em
tipos morfológicos advém da coexistência de mais de um “tipo” numa mesma língua, como padrões
aglutinantes e fusionais, ou polissintéticos e aglutinantes.

4.4.3 Grau de Síntese


Para contornar o problema da natureza contínua e não categórica dos padrões morfológicos, Bickel e
Nicholson (2013) propõem uma abordagem focada na palavra verbal como núcleo do predicado e
uma classificação mais gradual de cada língua. A partir de uma pré-seleção de 13 categorias (como
pessoa, número, tempo, aspecto, modalidade, voz, valência, etc.) e 145 línguas distribuídas por todo
o globo terrestre, Bickel e Nicholson calculam para cada língua um índice de síntese de flexão verbal
com base no número de categorias gramaticais codificadas pela morfologia verbal em cada língua.
Assim, se uma língua codifica apenas pessoa e tempo na morfologia verbal ela terá um índice de 2, o
que será menor do índice de 3 de uma língua que codifica pessoa, gênero e tempo no verbo. O índice
vai de 0 até 13, mas Bickel e Nichols agrupam as línguas em 7 níveis. A Tabela 28 mostra os níveis,
os valores correspondentes ao índice de síntese e número de línguas classificadas em cada nível.
Destacamos o número de línguas das Américas e a proporção relativa de línguas das Américas em
relação aos dados globais. A Figura do Apêndice Online 11 mostra a distribuição dos dados no globo.
Tabela 28: distribuição dos níveis e do índice de síntese entre as línguas do mundo (Bickel e Nicho-
lson 2013)
Número de Línguas Número de Línguas Américas /
Nível Índice de Síntese
Globo Américas Globo
1 0-1 categorias 5 0 0%
2 2-3 categorias 24 2 8%
3 4-5 categorias 52 20 38%
4 6-7 categorias 31 6 19%
5 8-9 categorias 24 16 66%
6 10-11 categorias 7 3 42%
7 12-13 categorias 2 2 100%

Figura do Apêndice Online 11: distribuição de línguas como diferentes índices de síntese de flexão
verbal (Bickel e Nichols 2013)

31
Morphologically, Matses is hard to classify. It stands between isolating languages (where most words consist of a single
morpheme, as in Chinese) and polysynthetic languages (where words tend to consist of many morphemes, as in Eskimo).
(...) Similarly, Matses stands between agglutinative languages (where each bound morpheme represents a single meaning,
as in Eskimo) and inflecting/fusional languages (where bound morphemes tend to represent several meanings at once, as
in Romance languages).

114
Inspecionando esses resultados, podemos concluir que as Américas possuem uma grande parcela de
suas línguas com um elevado grau de síntese na palavra verbal. Mais da metade de suas línguas na
amostra possui um índice igual ou superior a 6 categorias. As Américas também concentram o maior
número de línguas com morfologia verbal complexa do mundo, com índices superiores a 8 categorias
por verbo. Essa alta proporção de línguas mais sintéticas é somente comparável ao que encontramos
na região do Cáucaso e da Papua-Nova-Guiné. Vemos também que a América do Norte possui uma
proporção ligeiramente maior de línguas mais sintéticas do que a América do Sul. De fato, as duas
línguas com um índice igual ou superior a 12 estão na América do Norte: a língua Koasati (família
Muskogue) e Wichitá (família Caddo). Apenas duas línguas foram analisadas como tendo pouca mor-
fologia verbal, mais próximas do polo isolante do continuum: a língua Wichí (família Mataco, falada
na Argentina e Paraguai) e Rama (família Chibcha, falada na Nicarágua). Não foram encontradas
línguas tipicamente analíticas ou isolantes no continente.

4.4.4 Índice de Afixação


Dryer (2013) adotou uma tipologia morfológica de Bickel e Nichols (2013). Dryer utilizou 10 cate-
gorias gramaticais distribuídas entre nomes e verbos para calcular um índice de afixação em mais de
969 línguas do mundo, determinando se a língua tem uma tendência a apresentar mais sufixos ou
prefixos ou ainda se é uma língua exclusivamente sufixante ou prefixante. Caso determinada operação
fosse realizada numa língua, seria atribuído 1 ponto ao índice de prefixação se a língua usasse prefixos
ou 1 ponto ao índice de sufixação se a língua usasse sufixos para expressar as categorias acima. So-
mando os índices de sufixação e prefixação, teríamos o índice de afixação total de cada língua, a
partir da qual se pode calcular a proporção de quão sufixante ou prefixante é uma língua. Por exemplo:
uma língua que tenha 3 operações morfossintáticas realizadas por sufixos e 1 por prefixos tem um
total de 4 no seu índice de afixação, sendo ainda predominantemente sufixante com 75% (3/4) de
morfologia sufixante e 25% (1/4) de morfologia prefixante. Se o índice de afixação de uma língua for
1 ou 2, ela é considerada como um caso de língua com pouca afixação (ou mais tradicionalmente
conhecida como isolante). As línguas com um índice igual ou maior que 3 são classificadas nas se-
guintes categorias, de acordo com a proporção de operações sufixantes ou prefixantes:
§ Fortemente prefixante 81% das operações morfossintáticas
§ Fortemente sufixante 81% das operações morfossintáticas
§ Igualmente prefixante e sufixante 40% a 60% das operações morfossintáticas
§ Levemente prefixante 40% a 60% das operações morfossintáticas
§ Levemente sufixante 61% a 80% das operações morfossintáticas
§ Pouca afixação 61% a 80% das operações morfossintáticas

115
Os resultados do trabalho de Dryer estão resumidos na Tabela 29. Repartimos sua amostra entre um
recorte global e outro exclusivo para as Américas, como um total de 246 línguas, sendo 142 na Amé-
rica do Norte e 104 na América do Sul, distribuídas entre diferentes famílias e regiões. Vemos que
apenas 13 línguas foram analisadas como tendo pouca afixação. Esse número corresponde a apenas
6% das línguas das Américas, levemente inferior à tendência global de 14%. O padrão mais frequente
nas Américas é o de morfologia sufixante, ocorrendo em 124 línguas, cerca de 50% da amostragem
de Dryer (somando a com morfologia fortemente e levemente sufixante). No mundo, são cerca de
55% das línguas com esse mesmo padrão. Vemos, assim, que as línguas das Américas se conformam
com o padrão global de evitar uma morfologia mais predominantemente prefixante. Ao mesmo
tempo, chama a atenção o fato de que cerca de um terço das línguas das Américas serem igualmente
sufixantes e prefixantes, enquanto no mundo essa proporção cai para menos de 15%.
Tabela 29: Tendências sufixantes e prefixantes nas línguas das Américas e no mundo (calculado a
partir de Dryer 2013)
Mundo Américas
Contagem Porcentagem Contagem Porcentagem
Fortemente prefixante 58 6% 12 5%
Fortemente sufixante. 406 42% 88 35%
Igualmente prefixante e
147 15% 71 29%
sufixante
Levemente prefixante 94 10% 26 10%
Levemente sufixante 123 13% 36 15%
Pouca afixação 141 14% 13 6%

Algumas famílias linguísticas com padrão fortemente sufixante estão espalhadas em todos os cantos
das Américas: Eskimo-Aleuta na América do Norte; Barbacoa, Quechua e Aymara nos Andres; e
Tukano e Pano-Takana no Noroeste e Oeste da Amazônia, respectivamente. Não existem famílias
linguísticas fortemente prefixantes, mas algumas apresentam maior tendência à prefixação, como a
família Iroquês, Na-Dené e metade das línguas Maya. As famílias Karib e Otomangue possuem lín-
guas com morfologia igualmente prefixante e sufixante; em menior escala, Uto-Azteca e Aruák tam-
bém mostram uma grande proporção de línguas igualmente prefixante e sufixante, ainda que nessas
famílias cerca de 50% ou mais das línguas são mais sufixantes do que prefixantes. A família Tupí
aparece dividida entre os principais tipos: entre as nove línguas na amostra de Dryer, três como igual-
mente prefixante e sufixante (Émérillion, Kamaiurá, Tapieté), duas são classificadas com pouca afi-
xação (Ramarama e Tuparí, duas línguas não Tupí-Guaraní), três como mais prefixantes (Guaraní,
Sirionó e Kaapor).

4.5 Categorias Gramaticais


Nessa seção, vamos explorar algumas categorias gramaticais que expressam de modo um pouco di-
ferente funções típicas às da gramática do português, bem como categorias que são dificilmente en-
contradas na gramática das línguas europeias mais bem conhecidas. Vamos conhecer mais especifi-
camente como as línguas indígenas expressam pessoa e número; gênero e classificação nominal;
posição e direcionalidade; tempo e evidencialidade.
4.5.1 Pessoa
A categoria de pessoa tem como função principal localizar os objetos discursivos (i.e. as coisas sobre
as quais falamos) com relação aos interlocutores (falantes e ouvintes). De modo geral, podemos dizer
que quando um falante se refere a si, ele usa a 1ª pessoa; quando fala sobre o ouvinte, usa a 2ª pessoa;
e quando fala sobre algo ou alguém que não é um dos interlocutores, usa a 3ª pessoa. Assim, pessoa
é uma categoria dêitica porque quem é a 1ª, 2ª ou 3ª pessoa depende, essencialmente, de quem está
falando, quem está ouvindo e sobre o quê ou quem se está falando.

116
Pessoa é expressa por marcas pessoais como afixos e pronomes livres. Em muitas línguas indígenas,
é comum que marcas pessoais sejam usadas para determinar as relações gramaticais entre nomes
dentro do sintagma nominal, como nas construções possessivas (seção 4.6.1), e numa relação entre
argumentos e núcleo do predicado (seção 4.6.3). Vejamos os exemplos a seguir da língua Baniwa-
Koripako, em que as prefixos pessoais no- ‘1ª pessoa singular’ e pi- ‘2a pessoa singular’ são usados
para marcar tanto o possuidor do nome ‘mão’, quanto o sujeito do verbo ‘ver’.
(4.26) Marcas pessoais em Baniwa-Koripako
no-kaapi ‘minha mão’
pi-kaapi ‘tua mão’

no-kapa ‘eu vejo’


pi-kapa ‘tu vês’

É bastante comum que as marcas pessoais combinem a expressão de pessoa com outras categorias
dos sintagmas nominais, como número, gênero e caso. O padrão mais recorrente é uma combinação
de pessoa com número singular e plural, como vemos nos pronomes da língua Inga (família Quechua)
abaixo:
(4.27) Pronomes livres que marcam pessoa e número em Inga (Levinsohn 2000: 123-124)
Pessoa Singular Plural
1 nuka nukantʃi
2 kam kamkuna
3 paj pajkuna

Porém, em alguns sistemas, as marcas pessoais apenas codificam a categoria de pessoa, como vemos
para a língua Kuna no exemplo abaixo:
(4.28) Marcas pessoais em Kuna (Adelaar e Muysken 2004: 65)
an 1ª pessoa
pe 2ª pessoa
e 3ª pessoa

É relativamente comum a ausência de pronomes pessoais para expressar a 3ª pessoa em certas línguas;
nesses casos, a 3ª pessoa é normalmente expressa pelos nomes, por demonstrativos, outros consti-
tuintes da oração ou inferida pelo contexto, como era o caso do Latim. A língua Qawasqar, falada no
sul do Chile, não possui pronomes pessoais de 3ª pessoa nem a categoria de número. Assim, “eu” e
“nós” são expressos por uma única forma ce, enquanto “você” e “vocês” também se expressam por
uma única forma, caw (Clairis 1985: 462-5).
Outras línguas apresentam mais distinções dentro da categoria de pessoa do que as convenci-
onais 1ª, 2ª e 3ª pessoas. Em muitas línguas encontramos a categoria de clusividade. Essa categoria
se aplica às formas de primeira pessoa não-singular (i.e. plural, dual ou paucal) e tem como parâmetro
a inclusão ou exclusão da 2ª pessoa. Por exemplo, a língua Tukano falada no Alto Rio Negro possui
duas formas para a 1ª pessoa do plural: mari ‘nós inclusivo’, usado para as pessoas 1+2(+3) “eu,
você(s) (e eles)”, e •s̃ ã ‘nós exclusivo’ usado para 1+3 “eu e ele(s), mas não você(s)”. Clusividade é
uma categoria característica de muitas línguas e famílias linguística como Tukano, Yanomami, Karib
e Tupi, na América do Sul; línguas Maya, Mixe e Otomí na Mesoamérica; e Álgica, Sioux e Iroquês
na América do Norte.
Na América do Norte, especialmente da família Álgica, uma distinção entre 3ª pessoa proxi-
mativa e obviativa é usada para diferenciar dois ou mais referentes que participam de um mesmo
evento ou história. 32 Como nos diz Marianne Mithun, a 3ª pessoa proximativa é sempre aquele

32
Tal distinção já foi também rotulada como uma oposição entre 3ª pessoa e 4ª pessoa, respectivamente

117
personagem sobre o qual o falante possui maior empatia e sobre cujo ponto de vista os eventos são
descritos, enquanto os demais personagens serão marcados como obviativo.
(4.29) 3a pessoa proximativa e obviativa em Ojibwa (Mithun 1999: 76),
ogii-biindoomon-na iniw anishnaab-en ahaw Misaabe
3PROXIM-carregar-3OBV aquelas(OBV) pessoas-OBV aquele Gigante
‘o Gigante carregou as pessoas’

Uma outra forma de incrementar a expressão da categoria de pessoa é pela indexação de ca-
tegorias nominais como gênero ou classes nominais junto às marcas pessoais. O padrão mais comum
é que isso ocorra na 3ª pessoa. Algo mais raro são os sistemas que diferenciam gênero e classes
nominais na 1ª e 2ª pessoa. Como vimos na seção 3.1.4 sobre gênero-letos, a língua Kokama (família
Tupí-Guaraní, falada na Amazônia) possui a forma ta para codificar a ‘1ª pessoa masculina’ e a
forma etse para a ‘1ª pessoa feminina’ (Vallejos 2010). A língua Nasa Yuwe (ou Páez, língua isolada,
falada nos Andes colombianos) expande essa distinção também para a segunda pessoa, mas não para
a 3ª pessoa, como vemos em seus pronomes livres na Tabela 30.
Tabela 30: Pronomes da língua Nasa Yuwe (Páez) (Jung 2008: 136)
Pessoa Singular Feminino Singular Masculino Plural
1 ũʔkwe adʲ kweʔsʲ
2 iʔkwe idʲ ikweʔsʲ
3 tʲã: tʲã:weʔsʲ

4.5.2 Número
Estamos acostumados a pensar a categoria de número a partir de noções como singular e plural e
como parte da morfologia nominal, como em português gato e gato-s. Apesar de ser amplamente
encontrada em diversas línguas, a distinção entre número singular e plural não é universal. Tal é o
caso da língua Qawasqar que mencionamos na seção anterior, em que a distinção entre singular e
plural depende de outros constituintes da oração ou é elucidada pelo contexto. Mesmo em línguas
com a expressão da categoria de número, ela não se dá de forma uniforme. Ela pode ser expressa por
um sufixo, como em português gato-s; por um lexema independente, como em Tagalog (família Aus-
tronésia, Filipinas) mga bahay ‘casa’ e mga tubig ‘águas’ (Corbett 2011: 134); ou, ainda, pela mor-
fologia verbal e não pela morfologia nominal, como vemos no exemplo abaixo da língua Ninam (Ya-
nomami):
(4.30) Marcação de número na morfologia verbal em Ninam
toroto txa= pɨk= wa pexmo-ɨ
bodó(peixe) 1SG PL= comer querer-PRES
‘eu quero comer bodós (espécie de peixe)’

Algumas línguas apresentam marcas de plural restritas a uma subclasse de nomes, como seres huma-
nos ou seres animados em geral. Em pelo menos seis línguas indígenas na América do Sul (Baure,
Bororo, Huallaga Quechua, Leko, Trumai, e Yurakaré) plural é mais frequentemente usado com no-
mes que denotam seres humanos e não-humanos, enquanto em outras cinco línguas (Dâw, Hup, Ka-
maiurá, Mosetén , Tariana) o plural é marcado mais frequentemente com nomes que denotam seres
humanos (Krasnoukhova 2012: 102).
Voltando-nos agora para os sistemas de número que apresentam distinção para além de sin-
gular e plural, vemos em línguas como o Yup’ik Central (família Inuit-Yupik-Unangan) a expressão
do número dual, usado quando o referente nominal consistir em dois indivíduos, enquanto o plural é
usado para referentes com três ou mais indivíduos. Vejamos os exemplos abaixo
(4.31) Número singular, dual e plural em Yup'ik (Mithun 1999:408)

118
angya-q ‘barco’
angya-k ‘dois barcos’
angya-t ‘três ou mais barcos’

Outras línguas possuem uma quarta categoria de número, o paucal, usado para se referir a nominais
em relativa “pouca” quantidade, ou seja, acima de dois, mas não mais que quatro, cinco ou seis,
quando então deve ser usado o plural. Esse é o caso da língua Panará (família Jê), como vemos nas
formas abaixo para a 3a pessoa.
(4.32) Número singular, dual, paucal e plural em Panará (Dourado 2001: 16)
singular dual paucal plural
3ª pessoa mara mara-ra mara-pɨra mara-mɛra

Os estudos tipológicos têm proposto que os diferentes valores num sistema de número gramatical
tendem a seguir a chamada hierarquia de número como representado no Quadro 11.
Quadro 11: Hierarquia de Número (Corbett 2000:38)
singular > plural > dual > trial/paucal > quadral
A hierarquia prevê que se uma língua possui o número dual ela também apresentará o plural; igualmente, se
uma língua possuir o paucal, ela também apresentará o dual e o plural. Nas Américas, não encontramos
sistemas com número trial e quadral, sendo bastante raros e encontrados mais especificamente na Oceania.

Outras categorias de número são possíveis, no entanto. A língua Navajo (família Na-Dené, falada
nos EUA) apresenta uma outra forma de se especificar referentes não-singulares. Além de singular,
dual e plural, ela possui a categoria de plural distributivo e a de duo-plural. Essa última categoria
serve para expressar um referente em que dois indivíduos são definidos, mas os demais são indefini-
dos. Já o plural-distributivo faz referência a cada um dos indivíduos dentro de um conjunto de indi-
víduos. Essa distinção se expressa como marcas do sujeito no verbo Navajo, conforme vemos nos
exemplos a seguir:
(4.33) Número em Navajo (Morgan e Young 1972)
yishááɬ ‘estou andando sozinho’ SINGULAR
yiit’ash ‘nós dois estamos andando juntos’ DUAL
yiikah ‘nós todos estamos andando juntos’ PLURAL
niheezná ‘eles dois e os outros se mudaram’ DUO-PLURAL
ndahaazná ‘cada um deles se mudou’ PLURAL-DISTRIBUTIVO

Um tipo diferente de categoria de número é o chamado número verbal, que quantifica a ocorrência
de eventos e estados. Um verbo como “correr” será pluralizado se tivermos como referência múltiplas
ações de correr ou corridas, seja elas praticadas por um mesmo indivíduo em momentos diferentes,
sejam praticadas num único momento por diferentes indivíduos. Um exemplo de número verbal foi
dado na seção 4.4.1 sobre a supleção verbal na língua Xavante (família Jê), em que o terá diferentes
bases léxicas conforme o número do argumento absolutivo (S/O), como em ti'â carregar (O singular),
timra ‘carregar (O dual), waibu ‘carregar (O dual)’.
Línguas da família Jê, como o Xavante e o Panará, bem como em diversas outras línguas
indígenas, possuem a categoria de coletivo. Em Panará, essa categoria é claramente distinta do plural
e é marcada pelo sufixo -ara que ocorre sufixado aos nomes (mas não aos pronomes). Assim, temos
palavras como prĩ ‘criança’ e prĩ-ara ‘uma turma de crianças’, kukrɛ ‘casa’ e kukrɛ-ra ‘um conjunto
de casas’. O coletivo se refere a um grupo delimitado de indivíduos, interpretado como uma unidade.
Por isso, nomes coletivizados podem ser pluralizados, como em suãkia ‘antepassado’, suãkia-ara
‘grupo de antepassados’ e suãkia-ara-mɛra ‘grupos de antepassados’ (Dourado 2001: 16). Algo se-
melhante ocorre no português na diferença semântica entre o ‘singular’ boi, ‘plural’ bois, ‘coletivo’

119
rebanho e ‘coletivo plural’ rebanhos). Apesar de coletivizadores expressarem uma noção semântica
relativa à quantificação, eles não fazem parte propriamente da categoria de número.

4.5.3 Classificação Nominal


A gramática de muitas línguas está estruturada a partir de categorias nominais que classificam os
nomes e sintagmas nominais com base em propriedades semânticas inerentes ou transitórias dos re-
ferentes nominais. Desde um ponto de vista semântico, essas categorias nominais fazem referência a
significados relativos a propriedades ontológicas e de gênero (como humano, animado, inanimado,
masculino, feminino), a propriedades físicas (como redondo, alongado, pontiagudo) e relações fun-
cionais (como animal de caça versus animal de estimação, utensílio para transporte versus utensílio
para armazenamento, etc.). Desde um ponto de vista gramatical, essas categorias têm sido reconhe-
cidas pela literatura tipológica como parte de Sistemas de Classificação Nominal, entre os quais se
destacam os sistemas tradicionalmente mais estudados, como gênero nas línguas indo-europeias e
semíticas, as classes nominais encontradas em línguas da família Níger-Congo na África e os classi-
ficadores numerais das línguas do Leste e Sudeste Asiático (ver Allan 1977).
A expansão do corpus da linguística, sobretudo para línguas de regiões como a Oceania e as
Américas, tornou essa tipologia ainda mais complexa. Diante dessa crescente diversidade, um dos
resultados da pesquisa tipológica no final do século XX foi tentar chegar à definição de um conjunto
finito de SCNs. Uma das propostas tipológicas mais influentes foi apresentada por Colette Grinevald
(2000) e Alexandra Aikhenvald (2002), como resumida na Tabela 31. Como vemos, a definição de
cada sistema tem como parâmetro sua função morfossintática e seu locus morfossintático proto-típi-
cos (i.e. a classe de palavras ou sintagma em que se expressa um dado sistema de classificação)
Tabela 31: Resumo das propriedades dos principais tipos de sistemas de classificação nominal
Sistema Função Locus
Concordância e Indexa- Constituintes do Sintagma Nominal
Gênero
ção (SN) e Verbal (SV)
Concordância, Indexação
Classe Nominal Constituintes do SN e SV
e Derivação
Classificador Numeral Quantificação Numeral e Quantificador
Classificador Genitivo Posse SN de posse
Classificador Nominal Discursiva e Pragmática Determinante do SN e Pronome
Indexação de Argumen-
Classificador Verbal SV
tos
Classificador Dêiticos Localização Determinantes do SN

Vamos a seguir ilustrar esses sistemas e discutir como eles se manifestam em diferentes línguas indí-
genas. Concluímos discutindo a questão de certos sistemas de classificação nominal na Amazônia
que têm desafiado as propostas tipológicas existentes.

Gênero
Sistemas de gênero são expressos por diferentes padrões morfossintáticos que marcam a concordância
entre um nome e outros constituintes da oração, como adjetivos, demonstrativos e verbos (Corbett
1991). Os padrões de concordância classificam todos os nomes de uma língua e não apenas uma parte
deles. Tal classificação é semanticamente motivada para pelo menos um conjunto nuclear de nomes
em cada classe, enquanto outras palavras podem ter uma classificação semanticamente arbitrária.
Vemos isso em português: masculino e feminino são categorias que correspondem ao sexo de nomi-
nais com referentes humanos e de alguns animais (e.g. são masculinos o homem e o cachorro, e
femininos a mulher e a cadela), mas não quando o referente é inanimado (e.g. a parede, o teto, a rua,
o caminho). As classificações seguem parâmetros semânticos como masculino e feminino, animado
e inanimado, humano e não-humano, racional vs. irracional.

120
Vejamos agora o sistema de gênero da língua Lokono (família Aruák). Desde um ponto de vista
formal, gênero é expresso por pronomes, demonstrativos, artigos, modificadores e verbos. Semanti-
camente, dividem os nomes em duas classes de concordância que, nos exemplos abaixo, podemos
chamar de ‘humano’ e ‘não-humano’.
(4.34) Gênero em Lokono (Pet 2011)
a. kydy-tho to siba
pesado-NMZ.NHUM ART.NHUM pedra
‘a pedra é pesada’
b. firo-thi li wadili
grande-NMZ.M ART.M homem
‘o homem é grande’

Aparentemente, é um sistema semelhante ao do português. Porém, apesar de haver apenas duas clas-
ses de concordância em Lokono, Pet (2011) propõe que existam três gêneros. Tomando os artigos
como base, ele nota que, no plural, o artigo na é usado com nomes referentes a seres humanos, en-
quanto para seres não-humanos, usa-se o artigo tho. No singular, seres não-humanos também são
modificados pelo artigo tho, enquanto os seres humanos são divididos em duas classes: os masculinos
exigem o artigo li e os femininos o artigo tho, o mesmo usado para não humanos. Com base nisso,
temos ao final três padrões de concordância se tomarmos o sistema como um todo: seres não-humanos
tho/to, seres humanos-femininos tho/na e seres humanos-masculinos li/na. A extensão dessas cate-
gorias para outros nomes segue caminhos que mapeiam uma lógica cultural Lokono, como resumimos
abaixo.

§ HUMANO-MASCULINO: li / na. Usado para os homens do grupo étnico do falante, para bebês
quando não se foca no seu sexo, para o sol, seres espirituais e certos animais quando “considerados
bons ou desejáveis” ou “quando são protagonistas de histórias”.
§ HUMANO-FEMININO: tho / na. Usado para todas as mulheres e para homens de outro grupo étnico,
exceto se existir uma relação de respeito mútuo entre o falante e o referente, quando então se usa o
gênero humano masculino.
§ NÃO-HUMANO: tho / tho. Usado para todos os objetos, bem como para animais e seres espirituais
não previstos pela regra do gênero humano masculino.

Um sistema semelhante é também reportado para a língua Mohawk e Oneida da família Iroquês,
faladas nos EUA. Nessas línguas, há três gêneros formalmente marcados no singular: masculino,
feminino e neutro. Porém, há apenas dois no dual e plural: masculino versus não-masculino. Para
outras línguas, podemos analisar um sistema de gênero feminino versus não-feminino. Este é o caso
da língua Baniwa-Koripako, em que, por exemplo, o prefixo pessoal de 3ª pessoa ro- toma apenas
seres femininos animados como referentes, enquanto o prefixo li- abrange tanto os seres de sexo
masculino, quanto os seres inanimados sem gênero biológico.
Muitos linguistas vão reconhecer sistema de gênero quando esses forem expressos em outras áreas
da gramática das línguas para além de um sistema de concordância. Na língua Tukano, por exemplo,
gênero condiciona a morfologia de número: o plural dos animados se fazendo com o sufixo -a e o
plural de nomes inanimados se faz com os sufixos -ri (Ramirez 2019), como vemos abaixo.
(4.35) Plural animado e inanimado em Tukano
PLURAL ANIMADO ake-á ‘macacos’, ɨmɨ-á ‘homens’
PLURAL INANIMADO makâ-ri ‘povoados’, maâ-ri ‘igarapés’

Toda língua que possui gênero como recurso para marcar a concordância morfossintática também usa
gênero com suas marcas pessoais. Inversamente, há línguas que possuem gênero pronominal, mas
não necessariamente manifestam esse gênero na relação sintática entre nomes, modificadores adno-
minais e núcleos do predicado. Isso segue o universal 43 de Joseph Greenberg, que diz: “Se uma

121
língua tem categorias de gênero no substantivo, ela tem categorias de gênero no pronome” (Greenberg
1963). Em línguas com gênero pronominal, é mais comum que gênero seja marcado apenas na 3ª
pessoa, mas em certas línguas como o Rikbátsa (família Macro-Jê) vemos que essa distinção também
foi estendida à primeira pessoa: ikɽa ‘1ª pessoa feminino’ vs. uta ‘1ª pessoa não-feminino’, e atatʃa
‘3ª pessoa feminino’ vs. ata ‘3ª pessoa não-feminino’ (Silva 2011: 51). Outras línguas possuem sis-
temas pronominais com distinções semânticas que lidam com animacidade, mas não com sexo, como
em Tiriyó (Karib): nërë ‘3ª pessoa animado’ vs. irë ‘inanimado’ (Meira 1999: 154).
Oferecemos um resumo dos principais tipos de sistemas de gênero nas Américas, caracteriza-
dos pelo seu sistema semântico e formal de expressão (as análises têm como base Campbell 1996,
Mithun 1999, Aikhenvald 2003, Regúnaga _, Krasnoukhova 2012, Chacon e Satelles 2019).

Animacidade
Sistemas de gênero opondo animado versus inanimado ocorrem de forma proto-típica na família Al-
gonquina, marcado pela expressão de número (singular e plural), demonstrativos e verbos. Na família
Kiowa-Tanoan, gênero é expresso nos índices pessoais verbais, sufixos nominais de número, demons-
trativos e adjetivos. Línguas da América do Norte com gênero marcado apenas em pronomes de ter-
ceira pessoa são o Paiute do Sul, línguas da família Uto-Azteca. Gênero apenas marcado no plural
ocorre nas línguas Na-Dene, Yuki, Karok, Yana, Miwok, Costanoao, e Hopi (Uto-Azteca) que além
de animado ou inanimado também distingue a classe de vegetais. Na América Central, gêneros ani-
mado e inanimado estão presentes em algumas línguas Otomangue Tequislatec (Costenla 1991: 117).
Na América do Sul, vemos essa oposição nos demonstrativos das línguas Kariri (isolada) e Tariana
(Aruák), bem como nos pronomes da língua Jarawara (Arawá), diversas línguas Karib (como Hyxka-
riana e Apalaí), Ocaina (Witoto) e Yagua (Peba-Yagua).

Sexo
Na América do Norte, línguas da família Chimaku e Salish distinguem os gêneros masculino e femi-
nino. Na Califórinia, apenas as línguas Pomo, sendo isso restrito aos pronomes de 3ª pessoa singular.
Na América do Sul, sistemas de gênero que contrastam apenas sexo são mais comuns em línguas da
família Aruák, como Palikur, Apurinã, Achagua, Yukuna, Baniwa, Tariana, Baure. Línguas Macro-
Jê possuem sistemas menos proto-típicos. Em Rikbatsa há dois clíticos nominalizadores que catego-
rizam um nominal derivado em masculino e feminino (Silva 2011). Em Kaingang, encontramos mar-
cas pessoais de terceira pessoa. O Kadiweu (Guaikuru) marca gênero masculino e feminino em adje-
tivos e demonstrativos. Nos Andes, a língua isolada Mosetén marca gênero nos pronomes, modifica-
dores e verbos. Em um sistema menos proto-típico, a língua Chipaya (Uru-Chipaya) possui um clítico
nominal que indexa o sujeito no sintagma que leva o foco da oração, como o predicado, mas também
qualquer outro constituinte do SN.

Sexo e Animacidade
Na América do Sul, predominam sistemas de gênero que combinam sexo e animacidade, em que, em
geral, sexo é uma categoria que distingue apenas nomes animados, enquanto nomes inanimados pos-
suem marcas de gênero distintas, como em línguas das famílias Guahibo, Tukano, Txapakura, Chon,
as línguas Palikur e Lokono da família Aruák, e a língua isolada Movima. Na América do Norte,
línguas da família Chinook possuem sistema que opõem masculino, feminino e neutro, essa última
categoria sendo usada para referentes indefinidos. Na família Iroquesa, as línguas do ramo norte pos-
suem gênero masculino e feminino para humanos e inanimado para não-humanos.

Classificadores
Em línguas com classificadores numerais, os numerais e certos quantificadores (e.g. muitos, quan-
tos) não podem modificar um nome diretamente, mas requerem a presença de um morfema (um clas-
sificador) que singulariza o nome a ser contado. Além de singularizar, o classificador classifica o
nome numa semântica mais ampla. Algumas línguas Mayas possuem Classificadores Numerais,

122
como nas construções abaixo do Akateko, em que vemos duas grandes classes semânticas: “humano”
vs. “inanimado”.
(4.36) Classificadores do Akateko (Zavala 2000)
a. kaa-wan skutzin patron
2-CL.humano suas.filhas patrão
‘as duas filhas do patrão’
b. ’ox-eb’ solom
3-CL.inanimado cabeça
‘três cabeças’

Já classificadores nominais não ocorrem em contextos de quantificação, mas como um determinante


do SN, semelhante a um artigo, e como núcleo de um sintagma nominal, semelhante a um pronome.
Os exemplos em (23) vêm também de uma língua Maya, o Jacaltec:
(4.37) Sintaxe dos Classificadores Nominais em Jacaltec (Grinevald 2000: 65)
a. xil naj xuwan noʔ lab’a
viu clf.masc Juan clf.animal cobra
‘João viu a cobra’
b. xil naj noʔ
viu clf.masc clf.animal
‘ele viu a cobra’

O Jacaltec possui pouco mais de 20 classificadores nominais, divididos entre os que fazem referência
às interações sociais humanas e os que fazem referência à essência de entidades animadas não-huma-
nas e inanimadas. Vejamos uma lista dos classificadores em Akateko:
(4.38) Classificadores Nominais em Akateko
comam ‘deidade masculina’ ix ‘mulher’
comi’ ‘deidade feminina’ no’ ‘animal’
ya’ ‘pessoa importante’ te’ ‘planta’
ho’ ‘parente masculino’ ixim ‘milho’
xo’ ‘parente feminino’ ch’as ‘pedra’
unin ‘criança’ as ‘líquido’
metx ‘cachorro’ ka ‘fogo’
naj ‘homem’ tx’otx’ ‘terra’

Focando-nos nos sistemas de classificadores genitivos, esses classificadores categorizam um nome


possuído pelo tipo de relação que se cria com o possuidor. Na língua Kiriri (ou Kipeá, família Kariri),
existem 12 nomes que classificam itens de posse alienável (ver capítulo 8) com respeito às formas de
aquisição e preparo de comidas, animais e objetos (Rodrigues 1997). Por exemplo, um animal do-
méstico é marcado por enki, mas se o animal servir como comida, o classificador ude deve ser usado
para a carne cozida ou upodò para a carne assada, como nos exemplos abaixo (Mamiani 1877: 59-
60). Ver o Quadro 12 para uma lista de classificadores da língua.
(4.39) Classificadores genitivos em Kiriri (Mamiani 1877: 59-60):
a. hi-enki do cradzò ‘minha vaca’
b. dz-ude do cradzò ‘minha carne cozida’
Quadro 12: Classificadores Genitivos do Kiriri (Rodrigues 1997)
Os classificadores genitivos do Kiriri abrangem as seguintes categorias semânticas
Aquisição de Comida

123
uaprú ‘comida caçada ou coletada’
enkí ‘animal doméstico’
uanhí ‘mandioca cultivada’
boronunú ‘saque’
Preparo de Comida
udé ‘cozido’
upodó ‘assado’
ubó ‘amadurecido em casa (i.e. após retirado do pé’
Outros tipos de itens
uitó ‘achado’
ukisí ‘compartilhado’
ubá ‘presente de um forasteiro’
e ‘itens sendo transportados’

Se os classificadores genitivos classificam relações contextuais, os classificadores do nome possuído


destacam uma categoria mais inerente ao nominal, como vemos abaixo com um exemplo da língua
Panare (Karib) (Carlson and Payne 1989) (formas semelhantes são oferecidos para a língua Tukano
no exemplo (4.84)):
(4.40) classificador genitivo em Panare (Carlson and Payne 1989)
y-uku-n wanë
1-CLF.LÍQUIDO-POS mel
‘meu mel (diluído para beber)’

Os classificadores dêiticos ocorrem com artigos e demonstrativos e categorizam a forma e


posição do referente nominal. Na língua Apyãwa (Tupí-Guaraní), essas características podem ser
inerentes, duradouras ou temporárias aos referentes nominais, a depender de questões semânticas e
pragmáticas. Nos exemplos abaixo, vemos três séries de demonstrativos para referentes próximo ao
falante, perto do ouvinte, distante de ambos (Yonne Leite 1998: 87, Praça 2007: 82). Praça (2007:
82) acrescenta que esses demonstrativos podem ser núcleos de sintagmas nominais, recebendo mor-
fologia e atuando em contextos sintáticos tipicamente nominais (Tabela 32).
Tabela 32: demonstrativos e classificadores dêiticos em Ãpyawa (Tapirapé, família Tupí-Guaraní)
(elaborado a partir de Praça _)
Prox Med Dist Glosa Tipos de Entidades, Formas e Posições
“faca no chão, remo, canoa surubim (peixe), traíra
‘comprido,
ka ekwe kwe (peixe), bicuda (peixe), rede, animais mortos,
chato’
água correndo, peixe elétrico, cobra”
“prato, peneira, cachorro, boi, homem/mulher de
‘redondo, não-
’ã epe pe pé, tartaruga, arraia, árvores, pássaros, água no
contínuo’
poço, mosca, escorpião, sapo, besouro”
“panela, copo, pacu (peixe), tucunaré (peixe), coi-
‘alto, apoiado sas empilhadas, cobra enrolada para dar o bote,
’ỹ ewĩ wĩ
sobre uma base’ abóbora, abacaxi, homem/mulher sentado(a), faca
espetada numa árvore”

Diferentes demonstrativos podem ser usados com o mesmo nome de modo a salientar propriedades
semânticas distintas. Como nos diz Leite (p. 87): “O exame também nos mostra que os objetos mudam
de forma: ora um homem é “redondo” (quando está de pé), ora é “alto” (quando está sentado); uma
faca pertence à categoria ka “chato/comprido”, quando está no chão, e à categoria ‘yn “alto”, quando
está espetada em uma mesa ou em uma árvore”.

124
Os classificadores verbais ocorrem incorporados ao verbo e formando com ele um verbo
composto, cuja função é classificar semanticamente os argumentos absolutivos desses verbos – seja
o argumento único para verbos intransitivos ou o argumento paciente para verbos transitivos. Esse
tipo classificador foi analisado também como incorporação classificatória por Mithun (1984). Em
Rikbátsa, Leia Silva identifica um conjunto de quatro nomes que aparecem como parte da locução
verbal e categorizam os referentes nominais quanto às suas propriedades físicas: -hara ‘arredondado’,
-we ‘alongado’, -oki ‘o interior de algo’ e -tʃa ‘trançado’. Vejamos o exemplo abaixo que ilustra do
uso de -we ‘alongado’:
(4.41) Classificadores verbais em Rikbátsa (Silva 2011: 49)
ikɽa moko-tʃa ø-mɨ-ʃi-we-pik
1SG.F mandioca-PL 1SUJ-N.PAS-CLF:ALONGADO-lavar
‘eu vou lavar as mandiocas’

Por último, vejamos os chamados verbos classificatórios. De modo geral, os verbos e outros núcleos
de predicados tendem a especificar as categorias semânticas dos referentes nominais de seus argu-
mentos. Por exemplo, verbos como comer e beber categorizam os tipos de nominais que tomam como
objetos: coisas sólidas com comer e coisas líquidas com beber. Já em Alemão, há dois verbos distintos
para comer: essen e fressen, o primeiro usado quando o agente for humano e o segundo, com um
agente não-humano. Da mesma forma, algumas línguas possuem um conjunto elaborado de verbos
que predicam sobre uma dada postura ou posição que geralmente ou temporariamente o referente de
seus argumentos assume, como em Yanomam araa ‘estar em pé’, horea ‘estar de quatro’, pɨrɨa ‘estar
deitado na rede’, praa ‘estar deitado no chão’ (Perri Ferreira, 2017). Em Navajo, a noção compreen-
dida pelo verbo “estar” é expressa por diferentes verbos a depender do tipo e da posição no espaço
do sujeito do verbo. Vejamos esses verbos abaixo:
(4.42) Verbos classificatórios em Navajo (Mithun 1999: 362)
beesò sì-ʔá ̃ ‘ali tem dinheiro (uma moda)’
beesò sì-nìl ‘ali tem dinheiro (várias moedas empilhadas)’
beesò sì-tsòòz ‘ali tem dinheiro (uma nota esticada na superfície)’

Em Ika (família Chibcha) há quatro formas que correspondem ao verbo “estar(em algum lugar)” do
português:
(4.43) Verbos classificatórios em Ika (Aikhenvald 2003: 156):
gaka ‘estar’ para um objeto alongado
pa ‘estar’ para um objeto achatado
as ‘estar’ para um objeto tri-dimensional
tʃo ‘estar’ para um objeto ereto’

Notemos que os verbos classificatórios compartilham com os classificadores dêiticos (como visto
acima para o Apyãwa) a classificação semântica dos nomes com relação à sua posição ou postura.

Classificadores, Classes Nominais ou um tipo particular da Amazônia?


Línguas da família Tukano são interessantes por combinarem animacidade, sexo e propriedades físi-
cas em seus sistemas de classificação nominal. Vejamos seus pronomes livres para a 3ª pessoa nos
exemplos a seguir:
(4.44) Pronomes de 3a pessoa animada e inanimada Tukano
Animado Inanimado
3a pessoa k‹ɨ̃ ‘masculino’ ti-gɨ ‘tal árvore (ou coisa retilínea)’
koo ‘feminino’ ti-ga ‘tal fruto (ou outra coisa roliça)’

125
O Tukano ilustra como um sistema de gênero baseado na oposição entre animado vs. inanimado se
combina com um subsistema de gênero que opõe masculino vs. feminino para seres animados, e
propriedades físicas para seres inanimados. São seis morfemas na língua Tukano que codificam a
forma física de coisas inanimados, como vemos abaixo
(4.45) Sufixos de forma Tukano (Ramirez 2019)
-ga ‘forma roliça’
-tɨ ‘forma de pote’
-gɨ ‘forma retilínea’
-wɨ ‘forma tubular’
-wa ‘forma de abóboda’
-ra ‘forma de lago’

Tanto os sufixos de forma física, quanto os de gênero masculino e feminino são usados para marcar
a concordância no sintagma nominal, porém apenas gênero masculino, feminino e inanimado são
marcados nos verbos.
(4.46) Sintaxe de gênero e sufxiso de forma em Tukano
a. ã’rĩ wima-gɨ nii-mi
DEM.PROX.M criança-M ser-3M
‘este é um menino’

b. a’ti-go wima-go nii-mo


DEM.PROX-F criança-F ser-3F
‘esta é uma menina’

c. a’ti-ga ‹r̃ e-ga nii-’


DEM.PROX-roliço pupunha-ROLIÇO ser-3INANIMADO
‘esta é uma fruta de pupunha’

Com base nessas diferenças, e outras mais (ver Ramirez 2019 [1997], Chacon 2007), podemos falar
de dois sistemas de classificação nominal no Tukano: um sistema de gênero, que distingue categorias
como animado vs. inanimado, e masculino vs. feminino, e um sistema de sufixos de forma que basi-
camente distingue propriedades físicas.
Há um certo debate em como analisar sistemas como os sufixos de forma da língua Tukano e
outros semelhantes a ele na Amazônia. Para entendermos esse problema, vejamos a proposta de Di-
xon (1986) que opõe sistemas de classificadores versus sistemas de gêneros e classes nominais, resu-
mida na Tabela 33.
Tabela 33: Gênero/Classe Nominal versus Classificadores (Dixon 1986)
Gênero/Classe Nominal Classificadores
Função de Concordância Não apresenta função de concordância
Concatenados a nomes Morfemas independentes
Fusionam-se com outras classes de palavras Não se fusionam
Classificam todos os nomes Não classificam todos os nomes
Cada nome possui uma classe Cada nome pode aparecer em mais de uma classe
Sistema fechado Sistema aberto
Poucas classes (2 a~20) Muitas classes (+20)
Não apresenta variação Variação estilística

É um consenso hoje em dia entre os estudiosos do assunto que muitas línguas apresentam sistemas
menos prototípicos ou ambíguos com relação a seu status enquanto gênero, classe nominal ou

126
classificadores. O problema fica mais claro pela Tabela 34. Ela resume as propriedades do sistema de
classes nominais em Tukano e os distribui dentro dos tipos de sistemas segundo a proposta de Dixon.
Tabela 34: Propriedades dos Sufixos de Forma do Tukano e os tipos de sistemas de classificação
nominal de Dixon (1986)
Sistemas Tipológicos de Dixon (1986) Propriedades dos Sufixos de Forma Tukano
Função de Concordância
Classes Nominais/Gênero Afixado a nomes
Sistema fechado
Não se fusionam
Classificadores Não classificam todos os nomes
Cada nome pode aparecer em mais de uma classe

Diante do fato de que os sufixos de forma Tukano compartilham o mesmo número de propriedades
com sistemas de gênero/classes nominais ou classificadores, parece impossível decidir se estamos
diante de um sistema ou do outro. Essa questão permanece com debate em aberto na literatura tipo-
lógica, em que as propostas lançadas procuram analisar esses sistemas dentro dos seguintes paradig-
mas:
§ sistemas mistos ou híbridos de classificadores e classes nominais (Derbyshire e Payne 1990)
§ classificadores em múltiplos ambientes morfossintáticos (Aikhenvald 2003)
§ classes nominais incipientes (Grinevald e Seifart 2004)
§ um tipo único encontrado em línguas Amazônicas (Seifart e Payne 2007)

4.5.4 Tempo
As situações sobres as quais falamos são ancoradas no mundo objetivo por diferentes funções, entre
elas a referência temporal. O recurso gramatical mais especializado e difundido entre as línguas do
mundo para essa função é o que podemos chamar de tempo gramatical, usado para localizar tempo-
ralmente uma situação em relação a um ponto de vista temporal externo, o que, geralmente, é o ponto
de vista do falante no momento do ato de fala. Outra forma gramatical de se codificar a noção de
tempo é o aspecto, que caracteriza as situações a partir de sua constituição temporal interna. Há duas
formas principais de caracterizarmos aspectualmente uma situação: o aspecto imperfectivo apresenta
a situação como algo durativo, inacabado; já o aspecto perfectivo, a situação é apresentada como um
todo, com início, meio e fim. Vejamos os dois períodos a seguir
(4.47) Aspecto imperfectivo e perfectivo no português
Eu dormia, quando os convidados chegaram
Eu dormi, quando os convidados chegaram

Ambos os períodos localizam a situação de dormir no passado. No primeiro período, a situa-


ção tem aspecto imperfectivo, o que implica que ela começou e ainda não tinha acabado quando os
convidados chegaram. No segundo período, a situação de dormir é apresentada como um todo, tendo
seu início após o momento em que chegaram os convidas, e seu fim em algum momento no passado
antes do anto de fala.
Grande parte das línguas apresenta uma lógica linear do tempo, em que o presente se usa para
situações julgadas contemporâneas ao ato de fala, o passado para situações temporalmente anteriores
e o futuro, para as posteriores. Essa seria a base do sistema do português, com o seu tempo pretérito,
presente e futuro. Nas línguas indígenas das Américas, encontramos muitos exemplos de sistemas de
tempo gramatical. Começando pela América do Norte, os sistemas de tempo gramatical mais com-
plexos apresentados por Mithun (1999) vêm das línguas Washo (isolada), Chinook (família Chinook)
e Creek (família Muskogue). No passado, essas línguas distinguem de quatro a cinco categorias rela-
tivas ao grau de distanciamento do presente, como ilustramos com os prefixos verbais do Chinook
abaixo. A língua ainda possui uma marca de futuro, enquanto o presente se realiza pela ausência de
marcas verbais.

127
(4.48) Quatro graus de passado no verbo Chinook (Mithun 1999)
ga(l)- MÍTICO ‘situações ocorridas há mais de um ano e nos tempos míticos’
ni(g)- PASSADO REMOTO ‘situação ocorridas em algum momento no passado, em geral menos
que um ano e mais que um dia’
na(l)- PASSADO RECENTE ‘situação ocorridas no dia de hoje mais cedo’
i(g)- PASSADO IMEDIATO ‘uma ação ocorrida hoje (tempo hodierno)’

A língua Washo também possui 4 sufixos que indicam graus de distanciamento no passado, mas se
destaca pela presença de três graus de futuro:
(4.49) Três graus de futuro em Washo (Mithun 1999)
-áʃaʔ FUTURO IMEDIATO ‘até uma hora, mais ou menos, depois do ato de fala’
-tiʔ INTERMEDIÁRIO ao ‘fim do dia ou cedo no dia seguinte’
-gab FUTURO DISTANTE ‘depois de um dia ou mais’

É importante notar que a medição de tempo que as gramáticas oferecem é uma aproximação,
sendo o grau de distância temporal algo subjetivo, dinâmico e manipulável do falante. Como a expe-
riência nos mostra, o mesmo falante pode usar tempos do passado distintos para falar de situações
contemporâneas. Isso sugere que, nesses sistemas complexos, os falantes possuem certa margem de
escolha em quão remotamente no tempo eles querem localizar a situação.
Na América do Sul, há também línguas com sistemas complexos de marcação de tempo passado.
A língua Wichí (família Mataco, falada no Chaco argentino) foi reportada como tendo um sistema de
cinco tempos no passado (Terraza 2009). A língua Shipibo-Konibo (família Pano) também foi anali-
sada com cinco tempos gramaticais referentes a situações no passado, como vemos abaixo:
(4.50) Cinco graus de passado no verbo Shipibo-Konibo (Valenzuela 2003: 285)
-wan ‘hoje mais cedo’
-ibat ‘ontem, há poucos dias’
-yantan ‘há alguns meses ou anos’
-kati(t) ‘há muito tempo (há várias gerações e no tempo mítico)
-ni ‘passado remoto’

Sistemas com 4 tempos no passado ocorrem em línguas Pano e em línguas geograficamente pró-
ximas da família Chicham (Jivaroan). Certas línguas da família Tukano, no Noroeste Amazônico,
foram analisadas com até 3 tempos gramaticais, como é o caso da língua Karapanã, com passado
imediato (há poucas horas), histórico (há vários anos) e regular (para situações intermediárias na
escala temporal).
As línguas Tukano Orientais também ilustram como a referência temporal e espacial estão
relacionadas no seu sistema de tempo gramatical. O chamado passado histórico na língua Karapanã
ou o passado remoto do Kubeo são usados tanto em referência temporal para situações que ocorreram
num passado longínquo, como em referência espacial para situações que ocorreram há pouco tempo
ou ainda estão ocorrendo em lugares distantes. Vejamos o exemplo abaixo da língua Kubeo. A frase
se refere a uma situação que era verdadeira no momento da fala: a esposa do falante estar grávida.
No entanto, o passado remoto foi usado, tendo em vista que o falante estava muito distante da situação
sendo reportada: o falante no rio Uaupés, no Noroeste do Amazonas, e a esposa em Brasília:
(4.51) Distância espacial e marcas de tempo no verbo Kubeo
hí-marepako mika-te-ako
minha-esposa estar.grávida-PERFECTIVO-PASSADO.REMOTO.FEMININO
‘minha esposa está grávida’

128
Existe de fato uma relação intrínseca entre tempo e espaço. Vemos isso em como metáforas espaciais
são usadas para referência temporal: como em tempo longo vs. tempo curto, terminar na frente vs.
terminar atrás, etc. O que as línguas Tukano têm de especial é que essa analogia é “carregada” para
o seu sistema de tempo gramatical.
Muitas línguas não codificam o passado gramaticalmente, mas possuem sistemas de tempo
futuro versus não-futuro, em que as forma de não-futuro são usadas para situações que estejam ocor-
rendo no presente ou no passado. Este é o caso da língua Mẽbengokré (ou Kayapó, família Jê), como
vemos nos exemplos abaixo. Notemos ainda que, nessa língua, tempo gramatical não é codificado
como parte da morfologia verbal, mas por uma partícula que se localiza na segunda posição de uma
oração. Sistemas semelhantes são atestados em outras línguas da família Jê, Tupí e Karib
4.52) Tempo futuro vs. não-futuro em Mẽbengokré (Epps e Salanova 2012)
a. ba nẽ ba to
eu NÃO-FUTURO eu dançar
‘eu dancei’
b. ba mỳja krẽ
eu algo comer
‘comerei algum a coisa’

Nas Américas, há mais línguas com marcação de tempo futuro do que de tempo passado. De acordo
com os dados de Müller (2013), de um total de 64 línguas distribuídas pela América do Sul, 86%
codificam gramaticalmente o tempo futuro, enquanto 70% codificam o tempo passado, sendo que 12
línguas (18%) marcam apenas o futuro e 2 línguas (3%), apenas o passado. Na América do Norte
(incluindo a Mesoamérica), entre as 32 línguas da amostra de Dahl e Velupillai (2013), 46% possuem
formas gramaticalizadas de codificar o passado e 60% possuem formas de codificar o futuro, en-
quanto 8 línguas (25%) codificam apenas o futuro e 5 línguas (15%), apenas o passado.
A existência de sistemas que marcam tempo futuro versus não-futuro é bem atestada em di-
versas línguas (Comrie 1985). No entanto, em muitas línguas não está claro se o futuro é de fato um
tempo gramatical ou se deve ser concebido como uma categoria de modo ou modalidade, uma vez
que depende de uma avaliação do falante sobre o que poderá acontecer (ver seção 4.5.5). Numa aná-
lise modal, alguns linguistas têm usado o modo realis para situações no presente e no passado e que
podem ser atestadas (não-futuro), e o modo irrealis para situações ainda não realizadas, hipotéticas,
imaginadas (como as previstas para o futuro). Em sistemas que operam em termos modais mas não
temporais, o uso do irrealis ocorre inclusive em situações que não fazem referência ao tempo futuro,
como é o caso da língua Kiowa, falada nos EUA, em que o modo irrealis é marcado como um sufixo
verbal em situações previstas no futuro (_), mas também em situações contrafactuais com referência
temporal no passado (_) e orações subordinadas concessivas (_) (Mithun 1999: 173):
(4.53) Modo Irrealis em Kiowa
hàgyà à-báː-tɔ́ ̃
talvez 1SG-ir-IRREALIS
‘talvez eu vá’

mágyá à-báː-tɔ́ ̃
mas.não 1SG-ir-IRREALIS
‘pensei que iria, mas não (fui)’

à-tʰɔ́ ̃ː-tɔ́ ̃ː gɔ̀ à-tôl


2SG-encontrar-IRREALIS então 2SG-enviar.IMPERATIVO
‘se você o encontrar, mande-o o aqui’

129
Se aceitamos que o Kiowa (e outras línguas similares) não possui um sistema de tempo, mas de modo,
então devemos admitir que estamos diante de línguas sem tempo gramatical. Mas o que isso implica
sobre a ideia de que a referência temporal é uma função universal da linguagem?
Quadro 13: Tempo e Relativismo Linguístico
A questão de línguas sem tempo gramatical há muito tem sido objeto de debate na linguística antropológica,
alimentando ideias como a relativismo linguístico, cuja expressão mais célebre foi até hoje a hipótese Sapir-
Whorf (assim nomeada partir dos linguistas Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf), que postula que a ma-
neira pela qual as línguas codificam informações gramaticais influencia e se correlaciona com a visão cul-
tural do mundo dos falantes. Um dos elementos que sustentam essa hipótese surgiu da análise de Whorf
sobre a noção de tempo na língua Hopi (família Uto-Azteca, falada nos EUA). A ausência de um sistema
de tempo gramatical semelhante ao de línguas europeias serviu de base para Whorf sugerir que a cultura e
a língua Hopi concebem o tempo como um ciclo que se repete, e não como algo linear, como se o tempo
não progredisse de forma incessante desde o passado até o futuro (Whorf 1944). Outra língua analisada sem
tempo gramatical foi o Pirahã. A língua Pirahã possui dois morfemas semelhantes a tempos verbais, -i 'pró-
ximo' e -a 'remoto'. Eles são usados na referência temporal tanto para eventos no passado quanto no presente,
e servem principalmente para marcar se um evento está no controle ou experiência imediata do falante
(“próximo”) ou não (“remoto”). Daniel Everett (2005) trouxe à tona uma discussão sobre alguns elementos
da língua Pirahã que desafiariam alguns universais da linguagem humana. A ausência de tempo gramatical
– entre outros elementos que não vamos detalhar aqui – seguiria a um princípio cultural do povo Pirahã
denominado “imediatismo da experiência”, que impõe restrições à sua gramática e à sua forma de pensar.
O sistema do Pirahã tem forte semelhança com os sistemas de evidenciais egofóricos que discutiremos na
seção, e, também, em certa medida, com o sistema Kubeo que vimos acima. Mais recentemente, Malotki
(1983) propõe para a língua Hopi, e Salles (2023) para o Pirahã, propõem que as línguas possuem um sistema
de tempo gramatical que opõe os tempos futuro versus não-futuro, como vimos para o Mẽbengokré.

Certamente, existem diferentes concepções culturais sobre o tempo e a gramática das línguas é sen-
sível a isso em certa medida. No entanto, devemos notar que os falantes de línguas sem tempo gra-
matical não estão limitados a falarem somente sobre o presente ou sobre fatos atemporais. Eles usam
outros recursos, como informações inferidas do contexto, como adjuntos do predicado e da oração,
bem como constituintes do sintagma nominal. Os mais básicos recursos são os advérbios e adjuntos
adverbiais que fazem referência ao tempo, como “amanhã”, “ontem”, “desde criancinha”, “há muito
tempo”, “quando eu crescer”, etc. Vejamos seu uso numa língua sem tempo gramatical, o Paiute do
Norte (família Uto-Azteca, falada nos EUA). Notemos como os advérbios são os únicos responsáveis
pela mudança da referência temporal, uma vez que o restante da oração é idêntico.
4.54) Expressão de tempo sem tempo gramatical em Paiute do Norte(Toosarvandani 2017: 567-9).
a. mino’o tɨ=kaadzi madabbui-wɨnnɨ
agora REFLEXIVO=carro consertar-PROGRESSIVO
‘eles estão consertando seu próprio carro’

b. idzi’i tɨ=kaadzi madabbui-wɨnnɨ


ontem REFLEXIVO=carro consertar-PROGRESSIVO
‘eles estavam consertando seu próprio carro ontem’

Em certas línguas Mayas, a ausência de tempo gramatical é compensada por um sistema de prefixos
e outros elementos pré-verbais que indicam o aspecto e o modo verbal, como vemos abaixo pelos
exemplos do Akateko (Zavala 1992):
(4.55) Tempo expresso por morfemas de aspecto verbal em Akateko
x-ach-wey-i
PERF-B2SG-dormir-INDICATIVO
‘você dormiu

130
lalan a-wey-i
PROGRESSIVO A2SG-dormir- INDICATIVO
‘você está dormindo’

Desde os gramáticos gregos, estamos acostumados na tradição ocidental a pensar o tempo como uma
categoria verbal, mas encontramos nas Américas exemplos de sistemas de tempo nominal, em que a
referência temporal é expressa pela morfologia nominal ou outros constituintes do sintagma nominal.
Em línguas Tupí-Guaraní, por exemplo, encontramos sufixos nominais como -kwera/-pwera ‘pas-
sado’ e -rã/-rãma ‘futuro’. Por exemplo, em Guaraní Paraguaio, pa’i quer dizer ‘padre’, pa’i-kwera
‘ex-padre’ e pa’i-rã ‘futuro padre’. Na língua Kuikuro (família Karib, falada no Alto Xingu), o suffix
-pe marca o passado nominal, como em ihitsü-pe ‘ex-esposa dele’ (separada ou falecida). Nos exem-
plos abaixo, a presença e ausência do sufixo -pe mostra como seu uso altera a semântica da oração.
(4.56) Tempo nominal em Kuikuro (Franchetto e Santos 2009)
u-ingü tu-ndagü u-heke e-inha
1-roupa dar-continuativo 1-ergativo 2-benefactivo
‘eu estou dando (emprestando) minha roupa para você’

u-ingü-pe tu-ndagü u-heke e-inha


1-roupa-ex dar-continuativo 1-ergativo 2-benefactivo
‘eu estou dando minha roupa para você’

Como nos explicam Franchetto e Santos (2009), no primeiro exemplo, sem o sufixo –pe, o ato de
“dar” é temporário, um empréstimo a alguém, pois o possuidor não se desfez da roupa. No segundo
exemplo, ingü-pe ‘ex-roupa’, o ato de dar é em definitivo, pois -pe marca que o possuidor está se
desfazendo de sua roupa, que não lhe pertencerá mais.
Outra forma de se codificar o tempo per meio de um nominal é com o uso de determinantes,
como artigos e demonstrativos. Em Movima (língua isolada, Bolíva) os artigos contrastam se um
referente nominal está presente, passado imediato (algo ausente, mas que ainda vive ou existe) e
passado (algo que não mais existe) (Haude 2006: 159). Em Nivaclé (família Matako, falada na região
do Chaco), a referência temporal depende das propriedades semânticas dos demonstrativos para fazer
distinção entre o presente e o passado (bem como de certos morfemas como jayu 'prospectivo' para o
futuro, e o clítico temporal-locativo =ʔna 'aqui, recentemente'). Os demonstrativos contrastam pro-
priedades relativas à visibilidade, i.e. se um objeto está visível ou invisível para o falante, e se o
falante teve experiência direta ou indireta com o objeto. Nas frases a seguir, a referência ao tempo
presente versus passado é produzida unicamente pelo contraste dos demonstrativos naʔ ‘visível’ (pre-
sente) e jaʔ ‘não-visível, mas visto antes pelo falante’ (passado).
(4.57) Tempo Nominal em Nivaclé (Campbell _)
y-oy naʔ siwônôk
3-escapar VISUAL dourado
‘o dourado (espécie de peixe) está escapando’ [visível agora]

y-oy ja7 siwônôk


3-escapar NÃO.VISUSAL dourado
‘o dourado (espécie de peixe) escapou’ [visto antes, não mais visível agora]

Os dados do Nivaclé mostram não somente como a marcação de tempo pode se dar fora do domínio
verbal, mas também como categorias semânticas relativas à evidencialidade podem ser usadas para
se estabelecer a referência temporal.
Ao longo dessa seção, vimos que tempo é uma dimensão da experiencia humana com dife-
rentes caminhos e formas de se na linguagem, seja a partir de sistemas de tempo gramatical, com

131
línguas apresentando escalas temporais complexas, seja a partir de outros meios como aspecto e mo-
dalidade.

4.5.5 Modalidade e Evidencialidade


Costuma-se descrever a modalidade nas línguas a partir de dois tipos de sistemas principais: por um
lado, a modalidade epistêmica marca o grau de certeza, probabilidade ou comprometimento que tem
o falante sobre a fatualidade de seu enunciado; por outro lado, noções como necessidade, obrigação,
permissão, proibição, capacidade ou vontade do sujeito para realizar uma ação são parte da modali-
dade deôntica. Vejamos a frase abaixo
(4.58) Ambiguidade entre modalidade deôntica e epistêmica em português
João pode chegar cedo amanhã

Dita fora do contexto, a frase é ambígua, podendo ser lida com modalidade deôntica (João tem a
permissão de chegar cedo amanhã) ou como modalidade epistêmica (É provável que João chegue
cedo amanhã). Encontramos sistemas algo similar na gramática de línguas indígenas. Por exemplo,
o Kubeo (família Tukano) possui o verbo auxiliar ɨ que podemos chamar de ‘desiderativo’, pois indica
que o sujeito da oração quer, tem desejo ou vontade de realizar a ação descrita pela verbo principal.
É, por tanto, um auxiliar modal deôntico. Ao mesmo tempo, quando usado com sujeitos em situações
involuntárias, em que eles estão desprovidos de controle e agência, o auxiliar ɨ indica que o falante
julga que uma situação está prestes a acontecer, sendo, por tanto, um tipo de modalidade epistêmica.
Vejamos os exemplos abaixo:
(4.59) Uso do verbo ɨ ‘querer’ em Kubeo como parte da expressão da modalidade deôntica (deside-
rativa) e como modalidade epistêmica (situação iminente)
a. hápiai ɨ-wa-be-wɨ mi aino-re
escutar querer-hab-neg-1sg 2sg.pos dizer-ac
‘não quero escutar o que você está dizendo’
b. na tɨi ɨ-ma
eles cair querer-3AN
‘eles estão para cair (lit. eles estão querendo cair)’

O Kubeo, como outras línguas indígenas, possui um extenso rol de construções que podem ser anali-
sadas como parte de um sistema de modalidade deôntica e/ou epistêmica. Nessa seção, vamos conhe-
cer dois tipos especiais de categorias modais epistêmicas que caracterizam as gramáticas de diversas
línguas ameríndias. Começamos pelas construções conhecidas como frustrativo, que grosso modo
marca uma “frustração” do falante com a maneira como um dado fato ocorreu, e depois focaremos
nos ricos sistemas de evidenciais, que especificam a fonte de informação de um enunciado.

Frustrativo
Muitas línguas indígenas na América do Sul, sobretudo na Amazônia, têm sido descritas contendo
um tipo de construção gramatical identificada como frustrativo. Veja o exemplo abaixo, novamente
da língua Kubeo:
(4.60) Modalidade frustrativa em Kubeo
yawiwa-re wore kurĩ há r̃ i kõhẽri du-ameða
pajés-AC buscar andar examinar mandar frustrativo-3M.PAS=REP
‘(estando doente) ele andava procurando um pajé para mandar que o examinasse (porém...)’

O conteúdo proposicional básico da frase é uma pessoa que estava procurando um pajé para que fosse
examinado. O morfema du ‘frustrativo’ indica que algo nessa busca não deu certo. As linhas seguintes
da história confirmam isso: apesar de ter encontrado diferentes pajés, ninguém foi capaz de curar a

132
doença que a pessoa tinha. Logo, foi uma busca “em vão”, “frustrada” por não atingir os resultados
esperados. O frustrativo em Kubeo é um verbo auxiliar que faz parte de um paradigma funções mo-
dais, como vimos para o verbo ɨ ‘querer’ nos exemplos (4.59). É diferente de construções com adjun-
tos adverbiais em português, como “fiz tal coisa sem sucesso”, “fui lá em vão”, estou feliz, só que
não” etc.
Esse estatuto gramatical modal do frustrativo em Kubeo é compartilhado por outras línguas
indígenas. Segundo o estudo tipológico de Simon Overall (__), o frustrativo faz parte do domínio da
modalidade epistêmica em muitas línguas Amazônicas. Seu estatuto como epistêmico, se relaciona
ao conhecimento que o falante tem sobre o mundo e às suas expectativas sobre os fatos. No exemplo
do Kubeo acima, a busca por um pajé evoca o conhecimento entre os interlocutores das habilidades
de cura de um pajé, e gera uma frustração, uma quebra de expectativa, quando esse conhecimento
não se comprova, ou seja, os pajés não foram capazes de curar o doente. Vejamos outro exemplo
abaixo da língua Sikuani (família Guahibo, falada na Colômbia; Queixalós 2000:20):
(4.61) Modalidade frustrativa em Sikuani (Queixalós 2000:20)
uba-hü pikani
plantar-1 frustrativo
‘Eu plantei, porém...’ (... não consegui aproveitar a colheita)

Queixalós coloca como contraponto, como frustração à ideia de o sujeito ter plantado, o fato de que
a pessoa que plantou não foi quem aproveitou da colheita. Isso é contrário às expectativas das culturas
agrícolas de muitas sociedades indígenas, em que a pessoa que planta é necessariamente uma bas
beneficiadas da colheita. Mas é importante notar que a mesma frase poderia ter sido dita com outro
tipo de frustração em contexto, como, por exemplo, se alguns pragas ou animais tivessem consumido
o que fora plantado antes do tempo da colheita.
Há, no entanto, uma tendência para que o frustrativo também assuma funções avaliativas e
aspectuais. Vejamos o exemplo do Kwazá (língua isolada, falada em Rondônia) abaixo, em que o um
sufixo frustrativo marca uma ação inacabada, cujos resultados não foram atingidos por completo:
(4.62) Frutrativo e aspecto em Kwaza (van der Voort 2000)
hy’ja-ça-le-ki
cair-2-frustrativo-declarativo
‘você quase caiu’

A língua Kwaza também possui usos avaliativos do frustrativo, como vemos abaixo. Existe uma ava-
liação por parte do falante que lhe dá uma certa pena pelo sujeito verbal, que apreciava seu tabaco
quando ele se acabou.
(4.63) Frutrativio e modalidade avaliativa em Kwaza (van der Voort 2000: 405):
ui 'hu-le-hỹ-ki
tabaco fumar-frustrativo-nominalizador-declarativo
‘ele estava fumando (mas infelizmente o cigarro acabou)’

Em outros contextos, os aspectos avaliativos se revelam num tom irônico ou sarcástico, como vemos
na frase a seguir do Tukano em que o frustrativo está sendo usado numa pergunta:
(4.64) Frutrativo e ironia em Tukano (Ramirez 1997: 157)
bu’ê-mi-a-ti
estudar-frustrtativo-passado-interrogativo
‘você estudou, hein?’ (nem parece, só tem notas baixas!)

Como vemos, o frustrativo é uma categoria modal versátil, como muitas outras, mas cujo núcleo
semântico está baseado num conhecimento lógico e cultural sobre o mundo, o que estabelece um jogo

133
entre expectativa e realidade, de onde explora outras nuances semânticas e pragmáticas pelo uso cri-
ativo de seus falantes.

Evidencialidade
Evidencialidade é uma categoria que se refere à fonte de informação ou à maneira pela qual um falante
veio a conhecer um fato sendo por ele transmitido. Vejamos as frases a seguir:
(4.65) Evidencialidade em português
A mulher puxou o policial e eu vi que ela lhe deu algo
Disseram que a mulher puxou o policial e lhe deu algo
A mulher puxou o policial e eu acho que ela lhe deu algo

As duas primeiras frases marcam a evidencialidade ao deixar explícito que o falante viu ou ouviu de
alguém. A sua própria visão ou o relato de alguém são as fontes de sua informação. Na terceira frase,
o verbo achar reflete uma avaliação por parte do falante quanto à probabilidade de seu relato corres-
ponder aos fatos. O verbo achar, portanto, é um recurso que chamamos de modalidade epistêmica,
mas não de evidencialidade. Há um certo debate na literatura quanto à maneira como essas duas
categorias se distinguem e se mesclam nas línguas, como veremos ao longo deste capítulo (ver Chafe
1986 e Aikhenvald 2003). Nosso foco, no entanto, será nos morfemas e paradigmas analisados pri-
mariamente como marcadores de evidencialidade. Em português, a evidencialidade pode ser expressa
por recursos lexicais e discursivos, e não é obrigatória gramaticalmente. Em algumas línguas, no
entanto, evidencialidade se desenvolve como uma categoria gramatical (e muitas vezes obrigatória),
o que ocorreu de forma proeminente em várias línguas indígenas das Américas. Chamamos de evi-
dencial ou evidenciais os morfemas gramaticais que codificam a evidencialidade.
Os sistemas de evidenciais podem ser inicialmente descritos e comparados pelo número de
categorias que utilizam. Sistemas mínimos de evidenciais marcam obrigatoriamente a fonte de infor-
mação a partir de duas categorias: (1) evidências baseadas no conhecimento direto do falante e (2)
evidências baseadas em conhecimento indireto, como as adquiridas “da boca de alguém”. Em Che-
rokee (família Iroquês), o evidencial direto abrange situações em que o falante conheceu um fato
passado por alguns de seus sentidos (visão, audição, tato, olfato, paladar). Vejamos os exemplos
abaixo:
(4.66) Evidencial direto em Cherokee (Mithun 1999)
a. wesa u-tlis-ʌʔi
gato ele-correr-DIRETO.PASSADO
‘um gato passou correndo’ (eu o vi)
b. un-atiyohl-ʌʔi
eles-discutir-direto.passado
‘eles discutiram (eu os ouvi)’

Já o evidencial indireto é usado quando o falante ouviu o fato partir do relato de alguém ou inferiu o
fato a partir de evidências indiretas ou consequências de um fato. Vejamos os exemplos abaixo:
4.67() Evidencial indireto em Cherokee (Mithun 1999)
a. u-wonis-eʔi
ele-falar-indireto.passado
‘ele falou (alguém me contou)’
b. u-wonis-eʔi
ele-chover-indireto.passado
‘choveu (acordei, e encontrei tudo molhado’

Em línguas como o Kashibo-Kakataibo (família Pano), há uma oposição entre reportativo (ouvido de
alguém) vs. outras evidências. Apenas o evidencial -is ‘reportativo’ é morfologicamente marcado.

134
Ele é usado quando o falante aprendeu sobre um fato pelo relato de alguém, em narrativas míticas,
sonhos e notícias nos programas de rádio (mas não na televisão). Qualquer outro tipo de evidência
não é marcada gramaticalmente na língua (Zariquiey 2011: 508-9). Sistemas com dois evidenciais
como em Cherokee e Kashibo-Kakataibo são bastante recorrentes nas Américas (e nas línguas do
mundo). De acordo com Silver e Miller (1997: 38), nas línguas indígenas norte-americanas, “se existe
uma única prova obrigatória numa língua, é quase sempre a citativa, que discrimina o boato dos rela-
tos de testemunhas oculares”. Na América do Sul, tais sistemas são encontrados na família Zaparoan
no nordeste do Peru, na língua Dâw (família Naduhup), línguas Aruák d como Terêna, Ignaciano,
Waurá, Pareci e Piro, Resígaro, Piapoco, Baniwa de Içana e Achagua, bem como em Suruí, Karitiana
e Gavião, da família Tupí (ver Aikhenvald 2003: 32).
Línguas Aymara e Quechua nos Andes possuem sistemas com três evidenciais, contrastando
o evidencial direto com o reportativo e o conjectural (usado para fatos presumidos, inferidos ou de-
duzidos pelo falante). Em línguas Quechua, esses evidenciais são marcados por enclíticos que se
concatenam à primeira palavra disponível na oração. Dados abaixo da língua Tarma Quechua.
(4.68) Evidencial direto, reportativo e conjectural em Tarma Quechua (Adelaar e Muysken 2004:
210)
a. mana-m ali-tʃu
não-DIRETO bom-IRREALIS
‘não é bom’ (eu sei por conhecimento pessoal direto)
b. reportativo
mana-ʃ ali-tʃu
não-reportativo bom-IRREALIS
‘não é bom’ (eu ouvi dizer)
c. mana-č ali-ču
não-CONJECTURAL bom-IRREALIS
‘não é bom’ (eu imagino, presumo)

Outras línguas indígenas com sistemas de três evidenciais estruturados de forma similar às línguas
Quechua e Aymara incluem: Kapanawa, Maidu, Sanumá, Sekoya, Ponca e Haida (Aikhenvald 2003:
46). Encontramos certa variação em outros sistemas com três categorias. Em Comanhce (Uto-
Azteca), além de um evidencial direto, temos dois tipos de evidenciais indiretos, usados exclusiva-
mente para fatos que alguém reportou previamente. A partícula kɨ é um reportativo e parece em nar-
rativas, sejam elas míticas ou atuais, enquanto a partícula me é um quotativo, usado para demarcar
uma citação direta (ver exemplos _ para uma ilustração desse contraste). A distinção entre evidenciais
reportativo e quotativo pare ser recorrente em línguas indígenas norte-americanas (Mithun 1999: 184-
6), bem como em línguas com mais do que quatro evidenciais, como veremos a seguir.
Sistemas de quatro evidenciais acrescentam um evidencial direto ou indireto com base nos sistemas
de três categorias. Línguas como o Tukano, com quatro evidenciais, possuem dois os indiretos já
conhecidos por nós, reportativo e inferido, e mais dois evidenciais diretos: o evidencial visual – usado
para fatos que o falante tomou conhecimento por meio da visão – e o evidencial sensorial não-visual
– usado para fatos que o falante tomou conhecimento por meio de outros sentidos. Vejamos os exem-
plos abaixo da distinção entre os dois evidenciais diretos:
(4.69) Evidencial direto visual e não-visual em Tukano
a. diâyɨ wa’î yahá-a-bı͂
cachorro peixe roubar-PAS.REC-3M.VISTO
‘o cachorro roubou o peixe’ (eu vi ele entrando e pegando o peixe)
b. diâyɨ wa’î yahá-a-sı͂
cachorro peixe roubar-PAS.REC-3M.SENTIDO
‘o cachorro roubou o peixe’ (eu ouvi ele entrando e pegando o peixe)

135
O Kubeo, uma língua irmã ao Tukano, possui também um sistema semelhante de quatro evidenciais.
Porém, em vez de ter dois evidenciais diretos, acrescenta uma distinção entre evidencial inferencial
– quando o locutor tem contato apenas com o resultado do evento que está sendo relatado – e o
evidencial assumido – quando o locutor baseia sua afirmação em conhecimentos culturais gerais,
intuições ou suposições. Esses dois tipos de evidenciais do Kubeo estão ilustrados nos exemplos a
seguir.
(4.70) Evidencial inferido e assumido em Kubeo
Inferido
hĩdɨ-a hawe ye-debu
ovo-PL já eclodir-INFER.3IN
‘os ovos já eclodiram’

Assumido
yope ðarĩ hɨeðokɨ-re mearõ kɨwa-rãmu
assim fazer criança-OBL bem ter-ASSUM.1PL
‘fazendo dessa maneira, podemos dar à luz sempre problemas’

Sistema com cinco evidenciais são ainda mais raros, sendo encontrados, sobretudo, no Alto Rio Ne-
gro, onde as línguas Kubeo e Tukano são falados. A língua Tuyuka (família Tukano) e Tariana (fa-
mília Aruák) possuem sistemas que consistem na união dos evidenciais que vimos em Kubeo e Tu-
kano, apresentando as seguintes categorias: dois evidenciais diretos – visual e não-visual; e três evi-
denciais indiretos – inferencial, assumido e reportativo. Já a língua Wanano, também da família Tu-
kano e falada no Alto Rio Negro, exemplifica um sistema com seis evidenciais, acrescentando o evi-
dencial quotativo ao sistema de cinco categorias do Tuyuka, como vemos abaixo (Stenzel 2004: 346–
360):
4.71) Seis evidenciais em Kotiria (Stenzel 2004: 360)
Visual
mʉ’ʉ tʃʉ-dua-re na-ta-i
2SG comer-DESID-OBJETO pegar-vir-1VIS.PERF
‘Nós trouxemos o que você queria comer’

Sensorial Não-Visual
numi-a yã’ã-ina ta-’a ni koa-ta-ra
mulher-PL agarrar-NMZ.PL vir-NMZ estar vir-VIS.IMPERF.NMZ.1
‘As mulheres sequestradoras estão vindo (posso ouvi-las)’

Inferido
yoa-ta-pʉ wiha-tu’sʉ-ri hi-ra
longe-REF-LOC sair-acabaram-V.NOM.INFER ser-VIS.IMPERF.NON.1
‘Eles se foram completamente (escaparam todos)’

Assumido
wa’i-kĩna ko’ta-ro-wa’a-a makãkã-pʉ
animal-PL esperar-NMZ-ir-ASSUM.PERF floresta-LOC
‘Foram caçar no mato (eu sei pelo comportamento habitual deles)’

Reportativo
ti-ro wʉ’ʉ-pʉ wa’a-yu-ti
anáfora-SG casa-LOC ir-REP
‘Ele foi pra casa (disseram)’
Quotativo

136
ti-ro wʉ’ʉ-pʉ wa’a-yu-ka
anáfora-SG casa-LOC ir-QUOT
‘(Ele/elas/eles) me disseram que ele foi para casa

É comum que em sistemas mais extensos os paradigmas de evidencialidade estejam relacionados com
a expressão de outras categorias gramaticias. Nos sistemas de 4, 5 ou 6 categorias das línguas Tukano
que vimos acima, os evidenciais estão fusionados com marcas de tempo, pessoa e número. Por exem-
plo, o evidencial -sĩ marca 3a pessoa singular masculino evidencial sensorial não-visual. Em Pomo
Central (falado na Costa Leste dos EUA) além de cinco evidenciais que em muito se parecem com o
sistema Tuyuka, dois outros morfemas fazem parte do mesmo paradigma morfológico e estão relaci-
onados mais diretamente à egoforicidade, ou seja, a marcar como o falante teve um envolvimento
pessoal com o fato. Um desses morfemas indica que o falante foi o principal agente num evento e
outro indica que o falante foi o principal paciente de um evento.
4.72) evidencialidade e egoforicidade em Pomo Central (Mithun 1999)
da-tʃé-w=la
puxar-prender-PERF=AGENTE.PESSOAL
‘eu agarrei’

da-tʃé-w=wiya
puxar-prender-PERF=PACIENTE.PESSOAL
‘eu fui agarrado’

Em outras línguas, os sistemas de evidenciais parecem configurar um sistema aberto e em conexão a


outras categorias gramaticais, como tempo, modalidade e egoforicidade. É o caso de muitas línguas
Tupí-Guaraní que possuem um conjunto de partículas que, em geral, ocupam a segunda posição da
oração. Praça (2013) descreve o funcionamento de 12 partículas do Apyãwa, analisadas como parte
de um sistema de modalidade epistêmica, dentro do qual encontra-se um subsistema de evidenciali-
dade ou fonte da informação. Vejamos a lista abaixo com um resumo do sistema e a principal função
de seus morfemas
(4.73) Partículas evidenciais e modais em Ãpyawa (Praça 2013)
Conhecimento de Primeira-Mão
Indicam que a informação está sendo transmitida pela primeira vez e que foi atestada pelo falante.
§ rãka: ‘primeira mão, passado recente’
§ kwee: ‘primeira mão, passado médio’
§ karãe: ‘primeira mão, passado médio’

Reportativo
Indicam que o falante não presenciou o evento, mas tomou conhecimento indiretamente porque al-
guém lhe contou.
§ rãkwee: ‘reportativo passado médio’
§ rãkã’ẽ: ‘reportativo passado remoto’

Conhecimento compartilhado com o ouvinte


Indicam que a informação é de conhecimento pessoal tanto do falante quanto do seu interlocutor.
Parece haver uma distinção com base em quão claramente o falante se recorda do fato.
§ ãkaj: conteúdo informacional compartilhado
§ kwãkaj: evocação da memória partilhada pelos interlocutores

Deduzido
A dedução pode ser decorrente de uma evidência sensorial não-visual, baseada na observação de algo
que leva a conclusão de outro, ou de notícias que correm publicamente.

137
§ pa ‘conteúdo deduzido.

Confiabilidade da informação
§ ekwe: 'futuro iminente' indica que o falante tem um elevado grau de certeza quanto ao evento/estado
em via de efetivação imediata
§ rõ'õ: ‘não assumido pelo falante'; expressa que o conteúdo da informação não é assumido pelo fa-
lante e o exonera de qualquer responsabilidade sobre o que foi dito
§ tanã: 'certificação'; indica que que o conteúdo informado é altamente confiável e o falante se res-
ponsabiliza por ele
§ ke: 'dubitativo' expressa dúvida do falante com relação ao conteúdo da informação

4.6 Sintaxe
Nessa seção vamos focar em três temas caros à tipologia linguística. Começamos pela sintaxe das
construções possessivas no sintagma nominal. Em seguida, focamos na tipologia de ordem de pala-
vras na oração e em sintagmas menores. Depois, veremos algumas maneiras morfossintáticas que as
línguas indígenas codificam os argumentos verbais para além da ordem de palavras e como esses
padrões suscitam os diferentes tipos de alinhamentos morfossintáticos.

4.6.1 Posse
Chamamos de “posse”, “possessão”, “construção possessiva” ou “genitiva” quando dois nominais
estão em uma relação de propriedade, parte-e-todo ou de parentesco (e.g. meu carro, meu dedo,
minha mãe, respectivamente. Dentro da estrutura sintática do sintagma nominal, o nome possuído é
analisado como o núcleo e o possuidor, como dependente ) (ver Dixon 2010: 262-4).
As línguas com construções possessivas mais simples usam a justaposição entre nomes ou pronomes
para marcar a relação entre o possuidor (dependente) e o possuído (núcleo). Vejamos os exemplos da
língua Maih•k̃ i (Tukano Ocidental, Peru) em que ambos os termos são expressos por um nome.
4.74) Posse por juxtaposição em Maih•k̃ i (Farmer 2016: 189)
bék‹́ chóbì
anta cabeça
‘cabeça da anta’

Mákòbè wèè
Makobe casa
‘casa do Makobe’

A seguir, vamos analisar a variação tipológica das construções possessivas de duas maneiras. Primei-
ramente, com relação ao locus morfossintático onde ocorre a marcação formal de posse. Em seguida,
focamos na divisão dos nomes em classes semânticas e gramaticais com base no critério da aliena-
bilidade.

Marcação de Núcleo e Dependente nas relações possessivas


Construções possessivas podem ser marcadas formalmente apenas no nome núcleo do SN (i.e. o nome
possuído), apenas no termo dependente (o possuidor) ou em ambos (ver Nichols _). A língua Hup
(família Naduhup, Noroeste Amazônico) possui um padrão de marcação do dependente (possuidor),
como vemos abaixo:
(4.75) Marcação de posse no termo dependente em Hup (Epps 2008: 225)
a. Pedú nɨh cug’æt
Pedro POS livro
‘livro do Pedro’
b. cug’æt Pedú nɨh
livro Pedro POS

138
‘livro do Pedro’

No português, num sintagma como carro do João temos a preposição de como marcador de posse.
Ela marca o possuidor, i.e., o termo dependente, como evidente nas frases a seguir: De quem é este
carro? Este carro é do João. O padrão conhecido como marcação do núcleo pode ser visto na língua
isolada Yurakaré (Bolívia). Note que nos exemplos abaixo o prefixo a- ‘3ª pessoa singular’ ocorre
junto ao termo sendo possuído.
4.76) Marcação de posse no núcleo em Yurakaré (Krasnoukhova 2012)
a. shunñe a-sibë
homem 3SG-casa
‘a casa do homem’
b. a-sibë
3SG-casa
‘a casa dele’

Sistemas com marcação dupla marcam tanto o termo possuído quanto o possuidor. Podem ser en-
contrados em línguas Quechua e Aymara, em que um morfema de caso genitivo é acrescentado ao
possuidor enquanto, ao mesmo tempo, a pessoa gramatical do possuidor é indexada no substantivo
possuído. Vejamos os exemplos abaixo da língua Quechua de Ayacucho
4.77) Marcação de posse dupla em Quechua de Ayacucho (Adelaar 2012)
a. runa-pa wasi-n
pessoa-GENITIVO casa-3
‘casa de uma pessoa'
b. qam-pa wasi-ki
você-GENITIVO casa-2
‘tua casa'

É possível também uma construção sintética em que apenas o nome núcleo/possuído é marcado por
uma marca pessoal na função de possuidor
4.78) Marcação de núcleo em construções sintéticas de Quechua de Ayacucho (Adelaar 2012)
uma-y
cabeça-1
‘minha cabeça’

Desde um ponto de vista comparativo, as Américas se destacam por uma maior concentração de
construções possessivas com marcação de núcleo do que outras partes do globo. No corpus de Nichols
e Bickell (2013), vemos que 68% das línguas da América do Norte e 48% das línguas da América do
Sul possuem um padrão de marcação de núcleo no sintagma nominal.

Alienabilidade
Muitas línguas apresentam uma distinção em dois tipos de construções possessivas: um tipo de cons-
trução que geralmente envolve a expressão de relação de propriedade, sendo chamada de posse alie-
nável, e outro tipo de construção que abrange relações de parte-e-todo e parentesco, sendo chamada
de posse inalienável. Em Santee (família Sioux, falada nos EUA) as construções inalienáveis são
marcadas pelo uso do pronome prefixal possessivo, como mi ‘meu (inalienável)’, e construções alie-
náveis são marcadas pelo pronome mitha ‘meu(alienável’:
(4.79) Posse inalienável e alienável em Santee (Mithun 2001: 251)
Inalienável
a. mi-pʰa ‘minha cabeça’

139
b. mi-tʃʰṹ ‘minha irmã mais velha’
Alienável
a. mitʰá-isã ‘minha faca’
b. mitʰá-kʰoka ‘minha caixa’

Na língua Apinajé, a diferença entre posse alienável e inalienável se dá pela presença de um morfema
genitivo -õ nas construções alienáveis (Oliveira 2005)
4.80) Posse inalienável e alienável em Apinajé (Oliveira 2005)
Inalienável
a-krə̃
2SG-cabeça
‘tua cabeça’
Alienável
a-ɲ-õ meõ
2SG-RP-GEN comida
‘tua comida’

Como vemos, é comum que as construções alienáveis tenham um morfema a mais ou sejam grama-
ticalmente mais complexas do que as inalienáveis. Esse padrão é reforçado pelo dados da língua
Baniwa-Koripako (Aruák) abaixo:
(4.81) Posse inalienável e alienável em Baniwa-Koripako (Ramirez 2021)
Inalienável: apenas um prefixo pessoal
no-káapi
‘minha mão’
Alienável: prefixo pessoal e sufixo dependentizador
no-tsíno-ni
1-cão-DEPENDENTIZADOR
‘o meu cachorro’

Outro padrão morfossintático recorrente em línguas com distinção entre nomes alienáveis e
inalienáveis é que os termos inalienáveis são morfossintaticamente dependentes, enquanto os termos
alienáveis são independentes, podendo ocorrer fora de construções possessivas. Para se usar um termo
inalienável como um termo independente é necessário haver uma construção independentizadora. Por
exemplo -káapi ‘mão’, é um nome inalienável, e que sempre deve aparecer possuído como em (4.81)
e ((4.82) abaixo. Para ser usado como uma palavra independente, como uma “mão qualquer” (e não
de alguém em específico), há uma construção com o uso de um sufixo “independentizador
(4.82) Independentização de um termo inalienável em Baniwa-Koripako
Inalienável
Pedʊɻʊ i-káapi
Pedro PRO-mão
‘mão do Pedro’
Construção independentizadora de um termo inalienável
i-kaapí-t̪ i
PRO-mão-INDEPENDENTIZADOR
‘mão’

O padrão do Baniwa-Koripako é comum a outras línguas da família Aruák, em que além da distinção
alienável e inalienável, é comum encontrarmos uma terceira classe, a dos termos “não possuíveis”,
os quais incluem corpos celestes, fenômenos naturais, animais perigosos e nomes de pessoas.

140
Línguas Karib também utilizam prefixos pessoais e sufixos para marcar relações possessivas.
Em Hyxkariana, temos três classes de nomes: os nomes não-possuíveis (nomes de plantas, pessoas,
animais), os nomes inalienáveis ou obrigatoriamente possuíveis (partes do corpo e parentesco) e os
nomes alienáveis ou opcionalmente possuíveis (objetos, em geral). O sufixo de posse é obrigatório
com os nomes inalienáveis, tanto quando usados de forma independente ou quando estiverem sendo
possuídos. Por outro lado, nomes alienáveis somente tomam o sufixo se estiverem possuídos. Veja-
mos os exemplos abaixo
(4.83) Posse alienável e inalienável em Hyxkariana (Derbyshire 1985, 1999: 41)
Inalienável
a. awo-rɨ ‘tio (de alguém)’
b. ɨ-awo-rɨ ‘teu tio’
c. Haname y-awo-rɨ ‘tio do Haname’
Alienável
a. kanawa ‘canoa’
b. ɨ-kanawa-rɨ ‘tua canoa’

Uma característica marcante dos prefixos usados na posse em línguas como Apinajé, Baniwa-Kori-
pako e Hyxkariana é que os prefixos nessas línguas também são usados na morfologia verbal para
indexar os argumentos de um predicado. Porém, há diferenças importantes. Por exemplo, enquanto
em Baniwa-Koripako os prefixos ocorrem com sujeitos de verbos transitivos e intransitivos, em Api-
najé os prefixos são os mesmos que marcam sujeitos de verbos intransitivos e objetos de verbos tran-
sitivos. Voltaremos a essa questão na seção 4.6.3.
Vejamos agora um padrão de posse alienável diferente com a língua Tukano. A posse aliená-
vel em Tukáno é marcada por um morfema possessivo que funciona como um determinante do nome
possuído, concordando com ele em classe nominal, e posicionado entre o possuidor e o possuído,
como vemos abaixo (essas estruturas se assemelham a dos classificadores genitivos da seção 4.5.3).
Vejamos os exemplos abaixo:
(4.84) Posse inalienável e alienável em Tukano
Inalienável
mɨ’ɨ pakɨ
2SG pai
‘teu pai’
Alienável
a. mɨ’ɨ yaa-gɨ ake
2SG POS-M macaco
‘teu macaco’
b. mɨ’ɨ yaa-pĩhĩ di’i-pĩhĩ
2SG POS-lâmina carne-lâmina
‘tua faca’
c. mɨ’ɨ yaa=wɨ peka=wɨ
2SG POS=TUBULAR fogo=TUBULAR
‘tua espingarda’

A construção do tipo inalienável em Tukano é baseada na estrutura de justaposição de dois SNs, o


possuidor precedendo o possuído. Ela se aplica para partes do corpo e termos de parentesco, como
em mɨ’ɨ pakɨ (você pai) ‘teu pai’ e mɨ’ɨ dipoa (você cabeça) ‘tua cabeça’, porém há termos ambíguos
enquanto alienáveis ou inalienáveis. Por exemplo, palavras para partes do corpo, que podem seguir
um padrão inalienável mɨ’ɨ ɨso ‘tua coxa’ ou alienável mɨ’ɨ yaa ɨso ‘tua coxa’. Isso sugere uma tran-
sição mais gradual entre relações considerados alienáveis ou inalienáveis.
Por último, vejamos um padrão mais raro de línguas com três tipos de construções possessi-
vas. Línguas da família linguística Yanomami apresentam uma construção para expressar a posse de

141
objetos e coisas, outra para a posse de partes do corpo e uma terceira usada com termos de parentesco.
Há também padrões diferentes para a terceira pessoa e o padrão da primeira e segunda pessoas. Ve-
jamos os exemplos abaixo da língua Ninam:
(4.85) Três tipos de construções possessivas em Ninam
Alienável
a. ipa yãno ‘minha casa’
b. xama yãno e ‘casa da anta’

Parentesco
a. nape-txë ‘minha mãe’
b. Nei mene e ‘mãe do Nei’

Partes do Corpo
a. txa=poko ‘meu braço’
b. ipa poko ‘meu braço’
c. xama poko ‘braço da anta’

Primeiramente, se levarmos em consideração a primeira pessoa, o Ninam foge à uma interpretação


binária entre posse alienável e inalienável. Ao mesmo tempo, as partes do corpo apresentam uma
ambiguidade: na primeira pessoa, o uso opcional de ipa mostra uma sobreposição com o padrão da
posse alienável. Já as relações de parentesco apresentam na terceira pessoa um padrão semelhante ao
da posse alienável. É importante também notar que os morfemas txa= e =e= são usados também
como clíticos verbais, além de participarem nas construções possessivas acima.

4.6.2 Ordem de Palavras na Oração


Nesta seção vamos discutir os padrões tipológicos sobre a ordem básica de palavras na oração entre
um verbo transitivo (V), o argumento sujeito (S) e o argumento com papel de objeto (O). Essa análise
depende da identificação de uma “ordem básica” de palavras para cada língua, o que não é o caso
para todas as línguas. Para se descobrir a ordem básica de palavras, os linguistas, em geral, procuram
orações transitivas em que:
§ o verbo deve estar no modo declarativo e na voz ativa
§ sujeito e objeto tenham igual estatuto semântico e pragmático de modo que posam igualmente ocu-
par a posição de agente ou paciente do verbo (e.g. ambos com referentes definidos, humanos ou
animados)
§ nenhum argumento esteja focalizado ou topicalizado
§ os argumentos devem estar expressos por sintagmas nominais encabeçados por um nome, sem uso
de formas pronominais

Exemplos de frases em português com aplicação desses critérios seria


S V O
[O cachorro] [mordeu] [o gato]
[O policial] [prendeu] [o ladrão]

É importante notar, no entanto, que o tipo de estrutura resultante da aplicação desses critérios é raro
em falas espontâneas em muitas línguas. Também é o caso de que as línguas, em geral, apresentam
variações na ordem sintática devido a motivações discursivas, como topicalização e focalização, ou
devido à semântica dos sintagmas nominais, como, por exemplo, termos referentes a humanos virem
antes na oração por serem mais importantes do que termos referentes a animais ou coisas inanimadas.
Há também línguas em que não existe uma ordem básica de palavras predominante.
Todas as seis combinações possíveis de ordens de palavras na oração – SVO, SOV, VSO,
VOS, OSV, OVS – são atestadas em línguas indígenas. A seguir, vamos ilustrar os padrões de ordens
de palavras nas línguas indígenas das Américas, notando também o que pode determinar a variação

142
na ordem básica, bem como o que governa o sistema de ordem de palavras em línguas sem uma ordem
predominante. Ao final, concluímos com uma síntese comparativa dos padrões encontrados nas prin-
cipais regiões e famílias linguísticas do continente.

Línguas SOV e SVO


As ordens mais recorrentes nas línguas do mundo são SOV e SVO, em que o sujeito vem antes do
verbo e do objeto. A ordem SOV é amplamente encontrada nas Américas, exceto na Mesoamérica
onde é mais raro. Abaixo, vemos um exemplo SOV da língua Ninam (família Yanomami, dialeto
setentrional):
(4.86) Ordem SOV em Ninam
okoro-n orɨkɨ si wa-ɨ
cachorro-ERG cobra pele comer-IMPERF
'o cachorro está comendo a pele da cobra'

A proporção de línguas SVO no mundo chega a 44%. Nas Américas, essa proporção é significativa-
mente menor, ocorrendo em apenas 13% do total de línguas, segundo dados de Dryer (2013). A fa-
mília Aruák se apresenta como tendo a grande maioria de suas línguas com ordem básica SVO, como
vemos abaixo nos exemplos da língua Baniwa-Koripako:
(4.87) Ordem SVO em Baniwa-Koripako
Pedʊɻʊ i-iiɲha-ka kʊphe
Pedro CONECTIVO-comer-PRESENTE peixe
‘Pedro está comendo peixe’

Línguas VSO e VOS


Línguas de verbo inicial, em que os argumentos seguem os verbos ocorrem em cerca de 17% nas
Américas, sendo especialmente encontradas na Mesoamérica (Dryer 2013). Para ilustrar esses pa-
drões, vejamos as línguas da família Maya. Todas as línguas Maya apresentam uma ordem de palavras
em que o verbo vem antes de seus argumentos numa oração transitiva, à exceção da língua Ch'orti'
que apresenta unicamente a ordem SVO (England 1991). Um grupo de línguas do ramo Mameano e
Q'anjob'alano apresenta uma ordem VSO rígida, como vemos nos exemplos a seguir:
(4.88) Q'anjob'al: ordem fixa VSO
maxskol ix Xhuxhep naq Luwin
ajudar ART Josefa ART Pedro
‘Josefa ajudou Pedro’

Em outro grupo de línguas, existe variação entre VSO ou VOS com outras ordens de palavras moti-
vadas por questões semânticas ou discursivas. Em Tzeltal, encontramos VSO quando o sujeito e o
objeto tiverem referentes com um mesmo “estatuto de animacidade” seguindo uma hierarquia de
animacidade (ver Quadro 14). No exemplo __ de uma oração VSO abaixo, vemos S e O se referem
igualmente a seres humanos. Por outro lado, a ordem VOS é usada quando há assimetria de animaci-
dade entre os referentes do sujeito e do objeto. Vemos isso no exemplo _, em que S se refere a um
humano e O, a um animal.
Quadro 14: Hierarquia de Animacidade
seres humanos > animais > objetos inanimados
A hierarquia prevê que certos tipos de referentes de argumentos verbais terão tratamento morfossintático
diferente de acordo com sua posição hierárquica. Isso pode se materializar em diferentes tipos de constru-
ções morfossintáticas, como a expressão de número, na marcação de caso e na ordem de palavras na oração.
Por exemplo, como vimos, em certas línguas, número plural é restrito a referentes altos na hierarquia, ocor-
rendo com nomes referente a seres humanos, mas não com seres inanimados. O sistema de marcação

143
diferencial de objeto é também em parte guiado pela hierarquia de animacidade. A ordem de palavras na
oração tende a diferenciar argumentos mais altos e baixos na hierarquia, com a maioria das línguas posici-
onando os argumentos mais altos antes dos mais baixo, porém há exceções como vemos em Tzeltal.
4.89) Variação entre ordens VSO e VOS e a hierarquia de animacidade em Tzeltal
VSO: agente e paciente com igual estatuto na hierarquia de animacidade
lasmil jpetul te Jwan
matou Pedro DET Juan
‘Pedro matou Juan’

VOS: agente e paciente com estatuto assimétrico na hierarquia de animacidade


la smil báka te jpetul
matou vaca DET Pedro
‘Pedro matou a vaca’

Em línguas Mayas do ramo Yukateko, VOS é a ordem básica, mas SVO é usada quando se topicaliza
o sujeito ou objeto (England 1991: 460):

Línguas OVS e OSV


As ordens básicas OVS e OSV – em que o objeto precede o verbo e o sujeito – ocorrem em apenas
1% das línguas do mundo (Hammarström et al. 2016). A língua Nadëb (família Naduhup), falada no
Noroeste Amazônico, possui ordem OSV, como vemos abaixo:
(4.90) Ordem OSV em Nadëb (_https://wals.info/example/igt-258)
awad kalapéé hapúh
onça criança ver.IND
‘A criança vê a onça’

A ordem de palavras OVS ocorre apenas na América do Sul, sendo uma marca de certas línguas da
família Karib, mas não é atestada na Mesoamérica e América do Norte, segundo dados de Dryer
(2013). A língua Hyxkaryana (família Karib) ficou mundialmente conhecida entre os linguistas
quando foi apresentada com o uma ordem básica OVS, o que seria um contraexemplo às ordens de
palavras atestadas por Joseph Greenberg (1963), como vemos abaixo:
(4.91) Ordem OVS em Hyxkaryana (_)
O V S
[xofrye heno] [yanotometxkonà] [kurumyana komo]
preguiça pobrezinho eles-o-escravizaram urubu_gente grupo
‘o grupo dos urubus transformaram o pobre do bicho preguiça em seu servidor’

Na língua Kubeo (família Tukano), encontramos também a ordem básica OVS, porém em alternância
com a ordem mais básica SOV (Chacon e Genetti 2018). Tal alternância é determinada por questões
discursivas relativas à apresentação do sujeito como um tópico novo ou já conhecido. Vejamos os
exemplos abaixo, em que o pronome de 1a pessoa na posição final na oração OVS segue o padrão
mais básico para quando o falante assume que o sujeito é previsível para o ouvinte. A ordem SOV é
preferida para apresentar um novo sujeito.
(4.92) Variação na ordem OVS e SOV e estrutura informacional em Kubeo
OVS: sujeito previsível
kuitote kahe-a haweke ba-kede hedewa-i haruwa-ki yɨ
algodão pele-PL velhas que.estão fora-LOC jogar-FUT eu
‘Eu vou jogar fora as roupas que estão velhas’

144
SOV: sujeito como informação nova
ãñɨ bɨkɨ-kɨ hi peduba-re ĩ-mi
aquele.msc velho-msc minha flauta-obl pegar-3msc
‘aquele velho pegou minha flauta’

O Kubeo possui uma ordem mais flexível que muitas línguas, permitindo também a ordem SVO. No
entanto, o que em geral não ocorre nas orações declarativas do Kubeo é uma ordem em que o verbo
esteja na primeira posição da oração como VSO e VOS.

Línguas sem uma ordem dominante


Em línguas sem uma ordem dominante, todas as 6 ordens de palavras são possíveis, o que não quer
dizer que não haja regras que guiem a escolha de ordem de palavras na oração. Em seu trabalho
clássico sobre o tema, Marianne Mithun (1992) demonstra que em certas línguas – especialmente nas
quais os argumentos S e O são morfologicamente marcados no verbo – a ordem de palavras entre
verbos e argumentos é pragmaticamente determinada, e não é usada para definir funções gramaticais
como sujeito e objeto. Para Mithun, nessas línguas, os falantes posicionam os argumentos julgados
mais importantes antes dos argumentos menos importantes. O que é ou não importante depende da
relevância de um dado argumento para o momento do enunciado no discurso. Vejamos os dados
abaixo da língua Cayuga (família Iroquês). Primeiramente, notemos que todas as seis ordens de pa-
lavras são possíveis na língua. Em seguida, vejamos que há ambiguidade nas orações entre quem é o
agente ou o paciente do verbo, devido ao fato de que ambos os argumentos são de 3ª pessoa e plural.
4.93) Variação em ordens de palavras e estrutura informacional em Cayuga (Mithun
SOV ou OSV
Khyotroːwé ː̃ Ohsweːké ’̃ ahõwatiːkwéːni’
Buffalo Six.Nations eles.ganharam.deles
‘Os Buffalos ganharam dos Six Nations’ ou ‘Os Six Nations ganharam dos Buffalos’

OVS ou SVO
Ohsweːké ’̃ ahõwatiːkwéːni’ Khyotroːwé ː̃
Six.Nations eles.ganharam.deles Buffalo
‘Os Buffalos ganharam dos Six Nations’ ou ‘Os Six Nations ganharam dos Buffalos’

VSO ou VOS
Ohsweːké ’̃ ahõwatiːkwéːni’ Khyotroːwé ː̃
Six.Nations eles.ganharam.deles Buffalo
‘Os Buffalos ganharam dos Six Nations’ ou ‘Os Six Nations ganharam dos Buffalos’

Como se vê, na ausência de evidências pragmáticas ou semânticas entre os referentes de S e O, os


falantes podem ter dificuldades de interpretar quem seria o agente e paciente numa oração transitiva.
Isso apenas ocorre porque o Cayuga não restringe sintaticamente a posição de sujeito ou objeto, apre-
sentando uma ordem livre de palavras no nível da oração.

Síntese Comparativa
Em seu estudo clássico sobre ordem de palavras, Joseph Greenberg (1963) comparou cerca de 30
línguas ao redor do globo e atestou apenas três ordens possíveis: SVO (como português), SOV (como
o Latim) e VSO (como o Irlandês). Estudos mais recentes, como Dryer (2013) e Hammarström et al.
(2016), com base numa amostragem imensamente maior do que a de Greenberg, não só mostram
padrões não atestados anteriormente (OVS, OSV e VOS), mas são estatisticamente robustos para
permitir analisar diferenças na frequência de cada ordem de palavras nas línguas do mundo. Conforme
vemos na Tabela 35, as ordens OVS, OSV e VOS possuem distribuição bem mais limitada do que

145
SVO, SOV e VSO. Uma análise mais detalhada dos dados de Dryer (2013) nos permite fazer com-
parações entre macrorregiões e famílias linguísticas a nível global.
Tabela 35: Ordens de palavras nas línguas do mundo de acordo Dryer (2013) e Hammarström et al.
(2016)
Ordem de Palavras Hammarström et al. (2016) Dryer (2013)
SOV 2.275 43,3% 565 41%
SVO 2.117 40,3% 488 35%
VSO 503 9,5% 95 7%
VOS 174 3.3% 25 2%
OVS 40 0,7% 11 0,7%
OSV 19 0,3% 4 0,3%
sem ordem dominante 124 2,3% 189 14%
Totais 5.252 1.370

Os dados de Dryer também nos permitem fazer uma análise comparativa entre as diferentes regiões
das Américas, como resumido na Tabela 36.

Tabela 36: Ordens de palavras nas línguas da América (elaborado com base em Dryer 2013)

Ordem América do Norte Mesoamérica América do Sul Total


SOV 56 2 71 129 42%
SVO 3 13 24 40 13%
VSO 15 21 6 42 13%
VOS 2 6 4 12 4%
OVS - - 7 7 2%
OSV - - 1 1 0,3%
Não dominante 50 7 21 78 25%
Totais 126 49 134 309 100%

Com base nesses dados, vemos que América do Sul, a Oceania e a África são as únicas macrorregiões
em que todas as possíveis ordens de palavras são atestadas. As ordens OVS e OSV são igualmente
raras nas Américas e no mundo. A ordem SOV ocorre em 42% das línguas ameríndias, próximo ao
valor global. Por outro lado, SVO é pouco frequente nas Américas, ocorrendo em apenas 13% das
línguas, contra 35% numa escala global. As Américas possuem cerca de 25% de suas línguas sem
uma ordem dominante de palavras, o que é uma proporção superior à de outras regiões do globo. A
América do Norte se destaca com quase 40% de suas línguas apresentando esse padrão. A Mesoamé-
rica se destaca por possuir mais da metade de suas línguas com ordem VSO ou VOS, além de pou-
quíssimas línguas com ordem básica SOV.
Algumas famílias linguísticas podem ser caracterizadas pela alta recorrência de uma mesma
ordem básica de palavras entre suas línguas. Famílias com grande número de línguas SOV são Macro-
Jê, Tupí, Pano, Tukano, Chibcha, Uto-Azteca, Sioux, Na-Dené e Muskogue. As família Aruák e
Guaicurú são os únicos exemplos de famílias com maior número de línguas SVO. Otomangue e Salish
são famílias com maior número de línguas VSO, enquanto as línguas Mayas estão divididas entre
ordens VSO e VOS. A ordem OVS é mais recorrente em línguas da família Karib do que nas demais
famílias, ainda que seja igualmente recorrente línguas SOV e sem uma ordem dominante de palavras
na família Karib. Na américa do Norte, as famílias Iroquês e Álgica possuem a grande maioria ou
quiçá todas as suas línguas sem uma ordem dominante de palavras. É interessante notar que os pa-
drões mais raros como VOS, OVS e OSV não são predominantemente encontrados em nenhuma

146
família linguística. Isso sugere que esses padrões são inovações recentes de certas línguas e/ou que
são padrões instáveis e não transmitidos na diversificação das famílias linguísticas.

4.6.3 Alinhamento
A Linguística Tipológica tem investigado a diversidade das relações gramaticais entre predicados e
seus argumentos nucleares pela noção de alinhamento morfossintático. Para entender essa noção,
vamos começar apresentando os três tipos básicos de argumentos de acordo com a transitividade do
verbo (Dixon 2010: 116):
Tabela 37: Tipos de argumento e transitividade verbal
Argumento Verbo/Predicado
S o único argumento de um verbo transitivo
A o argumento mais agente de um verbo transitivo
O o argumento mais paciente de um verbo transitivo

As formas básicas para se marcar formalmente as relações entre verbos e argumentos são chamadas
de mecanismos de codificação (Keenan 1976) e abrangem um conjunto mecanismos morfossintáti-
cos:
Quadro 15: Mecanismos de codificação de relações gramaticais
(1) marcação de dependente: regência ou marcação de caso (e adposições, preposição e posposição);
(2) marcação de núcleo: indexação ou concordância entre o núcleo do predicado com seus argumentos;
§ (3) ordem básica de palavras: ordem entre o núcleo do predicado e os argumentos na oração.
Para ilustrar essas propriedades, vejamos alguns exemplos do português abaixo.
Argumento S
a. Eu cheguei cedo
b. Pedro chegou cedo
Argumentos A e O
a. Eu vi o Pedro
b. O Pedro me viu
Em (1a-b), o argumento S é “eu” e “Pedro”, respectivamente, que controlam a concordância com o verbo.
Em (2), os argumentos A, “eu” e “Pedro”, também controlam a concordância com o verbo. Além da con-
cordância, vemos que A e S normalmente precedem o verbo na ordem básica da oração. Já o argumento O
é codificado de forma assimétrica com relação aos outros argumentos. O emprego dos pronomes pessoais
“me” para O e “eu” para A/S ainda mostra como o caso nominativo marca pronomes na função A/S (“eu”,
pronome do caso reto), e o acusativo, na função O (“me”, pronome do caso oblíquo).
Além das propriedades de codificação, devemos olhar para as chamadas propriedades de com-
portamento e controle (Keenan 1976). Vejamos a construção a seguir com orações coordenadas que
ilustram um tipo de relação de controle
(4.94) Mecanismos de controle em orações coordenadas em português
a. Marcos viu João e saiu correndo
b. João viu Marcos e saiu correndo

Para falantes de português, não há dúvida de que o sujeito verbal dos verbos da segunda oração
é correferente ao sujeito da primeira oração. Vejamos que o sujeito da primeira oração é A e da
segunda, S. Por outro lado, o argumento O nunca é correferenciado ao sujeito S da segunda oração.
Quando uma língua agrupa formalmente A/S e os diferencia de O, como vimos nos exemplos
acima, chamamos o sistema de alinhamento de Nominativo-Acusativo. Há outros tipos de alinhamen-
tos possíveis. Como ilustrado na Figura 20, conheceremos os padrões de alinhamento Nominativo-
Acusativo, Ergativo-Absolutivo, Ativo-Estativo e Neutro a partir de dados de diferentes línguas in-
dígenas e concluiremos essa seção com uma síntese comparativa.
Figura 20: tipos principais de alinhamentos morfossintáticos

147
Nominativo-Acusativo
Como vimos para o português, nos sistemas Nominativo-Acusativo, os argumentos A e S estão ali-
nhados de acordo com seu comportamento morfossintático em relação ao núcleo do predicado de
oração transitivas e intransitivas, enquanto o argumento O possui um comportamento diferente dos
demais. O padrão Nominativo-Acusativo é o mais recorrente entre as línguas do mundo (Comrie
2013). Nas Américas, temos vários exemplos, entre eles os das línguas Quechua e Aymara nos Andes.
Vejamos abaixo uma oração intransitiva e outra transitiva da língua Quechua de Imbabura, falada no
Equador.
(4.95) Alinhamento Nominativo-Acusativo em Quechua de Imbabura (Cole 1982: 15; 103)
a. Juzi-ka Agatu-pi kawsa-n
José-FOCO Agato-LOC morar-3
‘José mora em Agato’

b. Juzi-ka Marya-ta juya-n


José-FOCO Maria-ACUSATIVO amar-3
‘José ama Maria'

O argumento A e S em ambas as frases é Juzi ‘José’, que está acompanhado do sufixo se foco -ka. O
argumento O está marcado com o acusativo -ta, algo semelhante para o adjunto adverbial de lugar
marcado como locativo -pi na oração intransitiva. Também é digno de nota que quando o argumento
O estiver na 1ª pessoa ele estará marcado no verbo, juntamente com o argumento A:
4.96) Codificação de O no verbo de Quechua de Imbabura (Cole 1982: 108; 103)
Marya-ka ñuka-ta juya-wa-n
Maria-FOCO 1-ACUSATIVO amar-1O-3A/S
‘Maria me ama’

Marcação Diferencial de Sujeito e de Objeto


Os dados do Quechua de Imbabura ficam mais interessantes quando notamos que um pequeno nú-
mero de argumentos S é marcado pelo morfema acusativo -ta, como em _. Argumentos S marcados
pelo caso acusativo, os chamados “experenciadores acusativos” por Cole (1982: 107), são bastante
restritos, ocorrendo apenas em combinação com predicados como “ter sono” e “ter calor”, ou seja,
processos corporais que afetam o sujeito verbal. Fazem parte do que se convencionou chamar de
Marcação Diferencial de Sujeito, ou seja, um sistema de marcação de caso em que alguns sujeitos
são marcados de modo diferente dos demais.
4.97) Marcação Diferencial de Sujeito em Quechua de Imbabura (Cole 1982: 108)
Juzi-ta puñu-naya-n
José-AC dormir-querer-3
‘José está com sono’

148
Cole mostra que os experienciadores acusativos se comportam de fato como qualquer outro
sujeito com relação à outras construções sintáticas da língua. Ele fornece evidência a partir de padrões
de controle de sujeitos anafóricos em orações subordinadas como vemos abaixo:
4.98) Mecanismos de controle mostrando alinhamento de A e S-acusativo em Quechua de Imbabura
a. Marya kallari-n [ø Juan-ta riku-y-ta]
Maria começar-3 ANÁFORA Juan-AC ver-INFINITIVO-AC
‘Maria começa [a ver Juan]’
b. Marya kallari-n [ø puñu-naya-na-ta]
Maria começar-3 ANÁFORA dormir-querer-INFINITIVO-AC
‘Maria começa [a sentir sono]’

As orações subordinadas entre colchetes [ ] não possuem um sujeito explícito dentro de seu sintagma,
mas possuem uma anáfora-zero “ø” que serve para retomar os mesmos sujeitos que estão expressos
na oração principal. O fato de o sujeito dos verbos riku ‘ver’ e puñu-naya ‘ter sono’ serem igualmente
correferenciados ao argumento A da oração principal mostra que os experiencadores acusativos se
comportam da mesma maneira que argumentos A e S. Assim, vemos que mesmo se morfologica-
mente um sujeito experienciador possa estar marcado pelo caso acusativo, sintaticamente ele se com-
porta como outros sujeitos da língua dentro de um alinhamento Nominativo-Acusativo.
Outras línguas possuem sistema de Marcação Diferencial de Objeto. Nesses sistemas, em
geral, o caso acusativo é reservado apenas para os argumentos O que sejam altos na hierarquia de
animacidade, definidos e específico, enquanto os demais argumentos O não recebem marca de caso
acusativo. Vejamos os exemplos abaixo do Kubeo.
(4.99) Marcação Diferencial de Objeto em Kubeo
O-acusativo: Humano, Definido, Específico
ãja kũ-abẽ jɨ-kakɨ-re
cobra morder-3M.PASSADO meu-amigo-ACUSATIVO
‘uma cobra mordeu meu amigo’

O-acusativo: Inanimado, Definido, Específico


hapopo-ha-kɨ mi kuitotekahe-a-re
estender-IMP-M 2SG.POS roupa-PL-ACUSATIVO
‘estenda as tuas roupas’

O não-acusativo: Inanimado, Indefinido, Não-Específico


kuitotekahe-a hoa-biko
roupa-PL lavar-3FEM
‘ela lavou roupas’

Ergativo-Absolutivo
Em um sistema Ergativo-Absolutivo, o argumento único do verbo intransitivo, S, se comporta como
o argumento O, o paciente de um verbo transitivo. É, de certa forma, o padrão espelhado do padrão
Nominativo-Acusativo. Sistemas de alinhamento morfologicamente Ergativo-Absolutivos são os
mais frequentes nas línguas do mundo depois dos sistemas Nominativo-Acusativo (Comrie 2013). A
língua Embera do Norte (família Chocó) falada na Colômbia, possui um sistema de marcação de caso
que diferencia o argumento A dos argumentos S/O. Como vemos nos exemplos abaixo, o sufixo -ra
marca o caso ‘absolutivo’ e o sufixo -a, o caso ‘ergativo’ (Mortensen 1999: 9). Notamos que os verbos
nessas construções não mostram concordância com os argumentos.
(4.100) Alinhamento Ergativo-Absolutivo em Embera do Norte (Mortensen 1999: 9).
a. mʉ-ra carlo-a
eu-ABS carlos-DECL

149
‘eu sou carlos’

b. itʃi-a mʉ-ra ũnũ-shi-a


ele-ERG eu-ABS ver-PASS-DECL
‘ele me viu’

c. mʉ-a phata ú-shi-a


eu-ERG banana plantar-PASS-DECL
‘eu plantei uma banana’

Línguas da família Maya são também morfologicamente Ergativo-Absolutivas. Porém, diferente-


mente do Embera do Norte, o alinhamento é codificado por afixos pessoais verbais que correferen-
ciam a pessoa e o número dos argumentos. Os afixos pertencem a dois conjuntos diferentes, chamados
de conjunto A e conjunto B na literatura Maya. Os argumentos S e O são marcados pelos afixos do
conjunto B, enquanto os argumentos A são marcados pelo conjunto B, como ilustrado na Tabela 38.
Tabela 38: Prefixos pessoais e alinhamento ergativo-abslutivo em Akateko (Zavala 2017)
Marcadores Função Alinhamento 1ª Pessoa 2ª Pessoa
“A” A Ergativo w- aw-
“B” SeO Absolutivo in- ach-

Os exemplos abaixo mostram o uso dos dois conjuntos de marcadores. Na primeira oração ach- ‘2a
pessoa singular absolutivo’ é usado para o sujeito único de um verbo intransitivo, e na segunda oração
o mesmo prefixo é usado para o argumento O de um verbo transitivo, cujo argumento A é marcado
por w- ‘1a pessoa singular ergativo’ Akateko.
4.101) Alinhamento Ergativo-Absolutivo em Akateko (Zavala 2017: 226)
a. tol chi-ach-kam eyman
então FUT-2SG.B-morrer rápido
‘Então, tu morrerás rapidamente’

b. chi-ach-w-a’ ok jun aab’il y-ul te’


FUT-2SG.B-1sgA-colocar DIR um ano A3-em madeira
‘eu vou te colocar na prisão por um ano’

c. maa in-aw-etne
NEG B1g-A2sg-enganar
‘você não me engana’

É comum encontrarmos em línguas com alinhamento Ergativo-Absolutivo sistemas cindidos, ou seja


com um alinhamento Ergativo-Absolutivo em certas construções e outro alinhamento em outras cons-
truções. Este é o caso da língua Huni-Kuin ou Kaxinawá da família Pano, em que os SNs formados
por pronomes pessoais apresentam um alinhamento Nominativo-Acusativo, mas os SNs formados
por nomes seguem um alinhamento Ergativo-Absolutivo (Camargo et al. 2002).
Dixon (1994) distingue ainda dois tipos de línguas Ergativo-Absolutivas: as que são morfo-
logicamente ergativas e as que são morfológica e sintaticamente ergativas. Ambos os tipos se asse-
melham por apresentarem padrões de codificação Ergativo-Absolutivo, como os que vimos acima;
porém, eles se diferem quanto às propriedades de comportamento e controle. Vemos isso a seguir
numa oração coordenada da língua Yup’ik (família Eskimó-Aleuta), em que a primeira oração é tran-
sitiva e a segunda é intransitiva (Payne 1997).
4.102) Mecanismo de controle ergativo-absolutivo em Yup’ik (Payne 1997).
Tom-am Doris-aq cinga-llru-a tua-llu quyi-llru-u-q

150
Tom-ERG Doris-ABS greet-PAS-3>3 então-e tossir-PAS-INTR-3
‘Tom cumprimentou Doris e então (ela) tossiu’

Como vemos, o argumento S da segunda oração -q é interpretado como correferente ao argumento O


da primeira oração “Doris”, consistente com o padrão S=O do alinhamento Ergativo-Absolutivo.
Note que numa língua Nominativa-Acusativa, a segunda oração teria como sujeito o argumento cor-
referente ao argumento A da primeira oração “Tom”.

Ativo-Estativo
Em sistemas de alinhamento Ativo-Estativo, há uma cisão dos argumentos de verbos intransitivos
entre aqueles que possuem as mesmas propriedades de codificação que o argumento A de verbos
transitivos, e aqueles que são codificados como o argumento O do verbo transitivo. Podemos então
falar de dois tipos de argumentos S: os argumentos ativos SA=A e os argumentos estativos SO=O.33
Em línguas Tupí-Guaraní, é comum encontrarmos essa distinção codificada pelos prefixos pessoais
que funcionam como argumentos verbais. Por exemplo, em Guaraní Paraguaio, a primeira pessoa
pode ser codificada no verbo pelo prefixo a- ou ʃe-, sendo a- uma de argumentos ativos e ʃe-, estati-
vos/pacientes, como mostramos na Tabela 39:
Tabela 39: Alinhamento ativo-estativo em Guaraní Paraguaio (Gregores e Suárez 1967)
Paradigma Ativo SA=A Paradigma Estativo SO=O
SA A SO O
a-ha a-dʒuka ʃe-ɾasi ʃe-dʒuka
eu-ir eu-matar me-doente me-matar
‘eu vou’ ‘eu mato’ ‘eu estou doente’ ‘me mata’

A família Aruák também possui muitas línguas com alinhamento Ativo-Estativo. Elas também codi-
ficam o sistema por meio de marcas pessoais, porém, como vemos para a língua Baniwa-Koripako
abaixo, os argumentos ativos (SA=A) são marcados por prefixos, enquanto os argumentos estativos
(SO=O) são marcados por sufixos (Ramirez 2001)
(4.103) Alinhamento ativo-estativo em Baniwa-Koripako (Ramirez 2021)
SA SO AeO
ɺi-heekʊ-ka-wa iinʊnaa-ka-ni ɺi-iiɲha-ka-ni
ele-correr-SUB-MED triste-SUB-ele ele-comer-o
‘ele está correndo’ ‘ele está triste’ ‘ele o está comendo’

Observa-se que o prefixo pessoal ɺi- ‘ele’ é usado como agente de um verbo transitivo e agente de
um verbo intransitivo ativo. Já o sufixo -ni ‘ele/o’ é usado como objeto de verbo transitivo e paci-
ente/tema de um verbo intransitivo estativo. Outro fato importante a se notar é que adjetivos em por-
tuguês como doente e triste são classificados como verbos estativos em muitas línguas indígenas,
como vemos em Guaraní e Baniwa-Koripako.
Algo central às línguas Ativas-Estativas são os critérios semânticos e gramaticais que definem
as classes de verbos intransitivos como ativos ou estativos. Apesar de serem sistemas gramaticais
específicos a cada língua e de haver variação com relação a quais verbos ou tipos de predicados são
classificados como ativos ou estativos, sistemas Ativos-Estativos estão longe de serem arbitrários e
apresentam critérios semânticos semelhantes desde um ponto de vista tipológico (Mithun 1991). Por
exemplo, nas línguas Guaraní Paraguaio e Lakota (família Sioux, falada nos EUA) são estativos os
verbos que traduzem estados e propriedades como estar doente, estar com sono, estar com frio, estar
morto, ter fome, ser alto, ser forte etc. Porém, elas diferem na classificação de alguns verbos; por
exemplo, cair e morrer em Guaraní são classificados como ativos, enquanto em Lakota são estativos.
33
Esses sistemas são conhecidos por diferentes termos na literaturA, tais como: intransitividade cIndida, split-S, verbos
inergativos versus inacusativos, ativo-neutro, ativo-inativo, ativo-estático, estativo-ativo, agente-paciente, etc.

151
Inversamente, estar deitado, morar e ser prudente são verbos ativos em Lakota, mas estativos em
Guaraní. Segundo Mithun, essas diferenças podem ser explicadas quando notamos que, em Lakota,
o principal critério para a classificação dos predicados em ativos ou estativos é o papel semântico do
argumento S: se ele for um agente, que instiga e performa uma ação, então o verbo será ativo. Já em
Guaraní, o critério é o aspecto lexical: verbos que denotam situações dinâmicas serão classificados
como ativos e verbos que denotam estados ou propriedades são classificados como estativos (Mithun
1991: 512-15).

Neutro
Línguas com alinhamento Neutro não distinguem a codificação dos argumentos A, S e O. Encontra-
mos esse padrão ilustrado nos exemplos abaixo pelo prefixo ka- ‘3ª pessoa plural’ da língua Puinave
(língua isolada, falada na Colômbia):
(4.104) Alinhamento Neutro em prefixos verbais do Puinave (Girón 2008)
a. ka-si-kút-ya
3pl-pros-fugir-fut
'Eles vão escapar'

b. káwa-bíkdik ka-sek-dí ka-wõk-á


galinha-ovo 3PL-roubar-PAS 3PL-comer-tudo
'Eles roubaram um ovo de galinha para comer'

c. tínda ka-'ɯ́î'ɤ-m-pɤn-di
morcego 3PL-matar-AGT-RES-PAS
'O morcego os matou'

Muitas línguas que apresentam um alinhamento Neutro em uma dada estratégia de codificação pos-
suem um outro tipo de alinhamento em outra estratégia de codificação. O Puinave, por exemplo,
possui um sistema de marcação de caso em orações finitas que revela um alinhamento Ergativo-
Absolutivo (Girón 2008: 352):
(4.105) Alinhamento ergativo-absolutivo na marcação de caso em Puinave (Girón 2008)
juan-at mesa pou
Juan-ERG mesa bater
‘Juan está batendo na mesa’

Já em línguas da família Maya, enquanto os prefixos verbais refletem um alinhamento Ergativo-Ab-


solutivo, os sintagmas nominais apresentam um alinhamento Neutro (Zavala _: 229). Isso vale tam-
bém para várias línguas Karib, Aruák, Tupi e Macro-Jê, em que os sintagmas nominais não são ne-
cessariamente codificados com marcas de caso para as funções A, S ou O, enquanto apenas os prefi-
xos verbais codificam um padrão Ativo-Estativo, Ergativo-Absolutivo ou Nominativo-Acusativo.

Sistemas Hierárquicos e Inversos


Numa língua de marcação de núcleo, em que os argumentos são marcados como parte da morfologia
verbal, a marcação morfológica de dois argumentos de um verbo transitivo não será possível caso o
verbo nesta língua tenha apenas uma posição morfológica disponível para a indexação de argumentos.
Muitas línguas indígenas encontram-se nessa situação. Um dos recursos utilizados é o que se chamou
de hierarquia referencial em que os falantes devem escolher um dos argumentos como o mais rele-
vante sob um ponto de vista informacional e gramatical para ser codificado.
Vejamos o caso da língua Apyãwa (Tapirapé, família Tupí-guaraní) (Praça 2007). Há somente uma
posição argumental na morfologia verbal. Num verbo transitivo, quando os dois argumentos são de
3a pessoa, o agente é marcado por a- ‘3’. Porém, quando a situação envolve a 1ª e a 3ª pessoa

152
simultaneamente, o falante deve sempre marcar a 1ª pessoa no verbo. A função sintática da 1ª pessoa,
no entanto, será assinalada de forma distinta, como ã- ‘1ª singular agente’ ou xe- ‘1 singular paciente’:
(4.106) Sistema hierárquico em Ãpyawa (Praça 2007)
Argumento A e O são 3ª pessoa
a-mamyn rõ’õ w-ã’yr-a
3.I-embrulhar N.ASS 3.III-filho-REFER
‘parece que ele embrulhou o filho dele’
Argumento A é 1ª pessoa e O é 3ª pessoa
ã-nopỹ
1sg.agente-bater
"eu bati nele"
Argumento A é 3ª pessoa e O é 1ª pessoa
pãxe xe=pyter
pajé 1SG.PACIENTE=chupar
"o pajé me chupou"

Quando as pessoas envolvidas são a 2a e a 3a, o falante deverá marcar sempre a 2ª pessoa. De fato a
terceira pessoa somente será marcada se não houver uma 1a ou 2a pessoa envolvida na situação. Mas
como será que fica quando a 1a e a 2a pessoa estão ambas envolvidas na situação? Aqui, vemos que
o verbo marca apenas a 1a pessoa. Isso nos mostra que há uma hierarquia na marcação dos argumentos
de um verbo transitivo que se traduz numa hierarquia de pessoa

1 > 2 > 3

Mas isso tornaria homófonos os predicados em que a 1a pessoa é o paciente e a 2a ou 3a pessoa é o


agente. Segundo Praça (2007: 103), haveria uma classe exclusiva de pronomes em posição final de
sentença que identificam quando o sujeito é ou inclui o ouvinte, como xepe ‘2sg age sobre 1sg’.

Síntese Comparativa
Durante essa seção falamos em termos de alinhamento com se fosse um padrão holístico para toda
uma língua. Apenas na seção sobre alinhamento Ergativo-Absolutivo falamos sobre a possibilidade
de as línguas apresentarem mais de um tipo de alinhamento. É nesse sentido, que nessa síntese com-
parativa, começamos fazendo essa ressalva de que, na tipologia linguística moderna, discute-se a
noção de alinhamento como propriedades de construções específicas e não de uma língua como um
todo.
O padrão de alinhamento Nominativo-Acusativo é o mais recorrente entre as línguas do mundo.
Existe uma maior concentração de línguas com esse alinhamento no Oeste da América do Norte,
Mesoamérica e Oeste da América do Sul. Famílias como Tukano, Nadahup, Aymara, Quechua, Uto-
Azteca e Otomangue apresentam todas ou grande parte de suas línguas com alinhamento Nominativo-
Acusativo. O alinhamento Ergativo-Absolutivo é uma característica de línguas das Terras Baixas da
América do Sul, sendo encontrado principalmente em línguas Karib, Pano-Takana, Yanomami, Chi-
bcha, Trumai, bem como Maya e Eskimó-Aleuta. O alinhamento Ativo-Estativo possui uma maior
distribuição entre as línguas indígenas das Américas do que em outras regiões do globo. Ele ocorre,
sobretudo, em línguas da família Tupí-Guaraní, Aruák, Jê, Sioux e Iroquês.
O alinhamento Neutro é um dos padrões mais amplamente difundidos nas línguas do mundo,
sendo o mais amplamente encontrado nas línguas indígenas das Américas com relação à marcação
de caso nos sintagmas nominais e pronomes livres (Comrie 2013). Isso segue uma característica mar-
cante nas Américas que é o padrão tipológico de marcação de núcleo (head-marking), em que o verbo
é o núcleo, e os argumentos, os dependentes. Isso quer dizer que a função de um argumento como A,
S ou O não é identificada no sintagma nominal, mas apenas no verbo. Segundo dados de Nichols e

153
Bickel (2013), cerca de 37 ou 45% das línguas indígenas em seu corpus apresentam um padrão ex-
clusivamente de marcação do verbo.

154
5 Famílias Linguísticas da América Indígena

Como vimos no capítulo 1, as Américas possuem o maior número de famílias linguísticas no mundo.
Segundo nossas estimativas, são ao todo mais de 170 famílias linguísticas, sendo que 89 delas são
línguas isoladas (ver mapa na Error! Reference source not found.). As famílias linguísticas são
uma peça fundamental para conhecermos a diversidade linguística. Ao classificarmos línguas como
pertencentes a uma mesma família linguística, estamos imediatamente postulando que elas estão re-
lacionadas a uma mesma língua ancestral do passado. Isso nos permite conhecer a evolução diacrô-
nica das línguas desde esses tempos mais remotos, bem como compreender os processos de diversi-
ficação linguística de uma para muitas línguas ao longo do tempo, juntamente com o passado cultural
dos falantes dessas línguas. Nase seções a seguir, vamos introduzir o Método Histórico-Comparativo
em Linguística Histórica como a principal ferramenta para a classificação de línguas em famílias
linguísticas, reconstrução de proto-línguas e aplicação desse método no estudo da (pré-)história. Em
seguida, faremos um panorama sobre as famílias linguísticas de toda a América, sua distribuição
espacial e alguns estudos e questões para a classificação das principais famílias. Concluímos esse
capítulo destacando alguns aspectos importantes para a caracterização das línguas isoladas e as prin-
cipais hipóteses de relações genéticas distantes entre diferentes famílias linguísticas.
Figura do Apêndice Online 12: Famílias linguísticas das Américas

5.1 Noções de Linguística Histórica

A Linguística Histórica investiga o processo de mudanças linguísticas e aplica o tradicional método


Histórico-Comparativo para demonstrar o parentesco genético entre um grupo de línguas e fazer a
reconstrução de suas proto-línguas. Com isso, pode-se investigar as mudanças linguísticas desde uma
protolíngua até suas línguas filhas, e, também, pode-se inferir informações sobre a sociedade e cultura

155
dos povos falantes das protolínguas a partir da reconstrução de seu vocabulário e gramática, bem
como formular hipóteses sobre origem e formas de dispersão geográfica de uma dada família linguís-
tica.

5.1.1 O Método Histórico-Comparativo


O Método Histórico-Comparativo é uma das mais tradicionais e consolidadas ferramentas de análise
na história da linguística. Sua aplicação tem como objetivos centrais determinar se duas ou mais
línguas são geneticamente relacionadas, como era a proto-língua comum a essas línguas e como fo-
ram os processos de mudanças linguísticas desde a proto-língua a suas línguas filhas. O cerne do
método está na identificação de semelhanças e regularidades de forma e sentido entre palavras ou
outros tipos de construções entre um grupo de línguas sendo comparadas. Essas regularidades devem
ser demonstradas como algo sistemático, não triviais ou acidentais, nem que pudessem ter sido ad-
quiridas por empréstimos. A um conjunto de semelhanças que ocorrem de forma sistemática chama-
mos de correspondências. As correspondências são as evidências de que um conjunto de palavras
ou construções são cognatas, ou seja, são encontradas em determinadas línguas pois têm uma origem
num ancestral comum a essas línguas. A partir das palavras e construções cognatas procede-se com
a reconstrução desses elementos a uma proto-língua. A última etapa de aplicação do método se faz o
caminho reverso, ou seja, a demonstração dos reflexos (mudanças) desde a proto-língua às línguas
filhas. Os resultados dessa análise podem ser empregados de diferentes maneiras, a mais imediata
delas sendo a classificação interna ou subagrupamento de uma família linguística.
Vejamos a aplicação do Método Histórico-Comparativo a uma família específica, nesse caso,
a família Yanomami, com um conjunto dos dados de Migliazza (1972), conforme vemos na Tabela
40. Vejamos que os dados já foram organizados semanticamente, mas é importante frisar que nem
sempre as palavras cognatas terão os mesmos sentidos. A aplicação do método começa de maneira
bastante intuitiva, quando notamos semelhanças superficiais entre as formas das diferentes línguas.
Das semelhanças, elaboramos hipóteses de correspondências sistemáticas para serem testadas em no-
vos dados. Com isso, caso as correspondências se provem de fato regulares e sistemáticas, construí-
mos os conjuntos de cognatos.
Tabela 40: Lista de palavras de quatro línguas Yanomami (Migliazza 1972)
Glosa Ninam Yanomam Yanomamɨ Sanɨma
§ eu tʃa- ja- ja- tsa-
§ mostrar
waoma totopu wəjə taɨma
como
§ peixe tʃaraka juri juri tsalaka
§ bater ʃə ʃə ʃə se
§ braço poko poko poko poko
§ ficar em pé ɨra upra upra ɨpa
§ grande reo prewə prewə pewe
§ guariba iro iro iro ilo
§ bêbado noma noma ʃiwari polemo
§ rio abaixo mana koro koro kolo
§ animal tʃaro jaro jaro tsalo
§ cachorro okoro heim hiima pole
§ veado hatʃa haja haja hatsa
§ restos, so-
bras
ʃe ʃee ʃee se
§ asa hakoi fako hakora hatapɨna
§ pensamento pihi pifi puhi pihi

156
Vamos analisar agora as palavras cognatas e as correspondências sonoras de algumas consoantes
chave. Vejamos a primeira linha com palavras para o conceito referente a eu (primeira pessoa singu-
lar), composto por prefixos pessoais nas quatro línguas. A vogal é a mesma e o ponto de articulação
muito semelhante entre as consoantes (j é uma semi-vogal palatal, tʃ uma africada palato-alveolar e
ts uma africada alveolar). Essa semelhança não parece trivial e pode ser testada como hipótese de
correspondência. De fato, a correspondência tʃ : j : j : ts ocorre nas linhas 3, 11 e 13. Logo, com base
na correspondência tʃ : j : j : ts identificamos 4 conjuntos de palavras cognatas: eu, peixe, animal e
veado. Fato diferente ocorre na linha 2 mostrar como, em que as palavras me nada se assemelham e
podem ser descartadas como hipótese de cognatas.34 Continuando a análise de palavras cognatas, na
linha 4, as palavras para bater são muito semelhantes e a correspondência entre ʃ : ʃ : ʃ : s é regular e
encontrada também na palavra para restos, sobras na linha 14. As palavras nas linhas 5 e 16 atestam
a correspondência p : p : p : p. As palavras na linha 6 ficar em pé parecem mais distintas, porém entre
as duas vogais em cada palavra há uma correspondência entre r : pr : pr : p que também se repete na
linha 7 grande. Na linha 8 guariba, encontramos novamente um r em Ninam, porém veja que a cor-
respondência r : r : r : l não é a mesma das linhas anteriores. De fato, trata-se de um novo conjunto
de correspondências. Ela é parcialmente observada em duas outras palavras: na linha 9 rio abaixo em
que temos - : r : r : l (- representa falta de cognato em Ninam) e na linha 10 peixe em que temos r : -
: - : l. Por último, vejamos o caso das palavras nas linhas 15 e 16 que apresentam a correspondência
h : f : h : h (note que na linha 15 a palavra asa em Sanɨma não parece cognata às demais). Essa
correspondência é distinta da que encontramos na palavra para veado na linha 13, em que temos h :
h : h : h.
Com base na identificação das palavras cognatas e das correspondências sonoras, podemos
reconstruir itens do vocabulário da proto-língua e seu sistema sonoro. A reconstrução de uma proto-
forma deve prestar atenção à fonética, ao ambiente fonológico e ao sistema fonológico da proto-
língua e das línguas filhas. Além disso, a reconstrução das proto-formas precisa se ancorar em crité-
rios válidos a todas as línguas, como:
§ Direcionalidade: sabemos que X mudou para Y em parte porque pelo nosso conhecimento de lin-
guística (fonética, sintaxe, etc.) sabemos que esse é a direção correta da mudança
§ Realismo e naturalidade: as proto-formas e proto-línguas precisam ser coerentes com os princípios
tipológicos mais gerais que conhecemos sobre a estrutura das línguas e sobre como ocorrem mu-
danças linguística
§ Economia: reconstruções que implicam em menos mudança devem ser preferíveis a reconstruções
que implicam em mais mudanças

Aplicando esses princípios aos dados das línguas Yanomami, obtemos os resultados da Tabela 41,
que resume as correspondências e as proto-formas que elas ensejam para o Proto-Yanomami.
Tabela 41: correspondências fonológicas em línguas Yanomami
Ninam Yanomam Yanomamɨ Sanɨma Proto-Forma
tʃ j j ts *j
ʃ ʃ ʃ s *ʃ
p p p p *p
r pr pr p *pr
r r r l *r
h f h h *f
h h h h *h

34
Outras linhas que também não apresentam as quatro palavras cognatas são: linha 3 com dois conjuntos de cognatos
(Ninam & Sanɨma, Yanomam & Yanomamɨ), linha 8 com dois conjuntos de cognatos (Ninam & Yanomam, Yanomam
& Yanomamɨ), linha 9 como apenas um conjunto de cognato (Ninam & Yanomam), linha 10 e 12 com também apenas
um conjunto de cognatos de cada (Yanomam & Yanomamɨ).

157
A reconstrução de *p é a mais óbvia dado que não há variação nos dados. As de *ʃ e *r não são
problemáticas, pois tanto as mudanças *r > l quanto *ʃ > s são tipologicamente comuns, fonetica-
mente naturais e sugerem o cenário mais econômico, uma vez que ambas as mudanças ocorreram
somente em Sanɨma, enquanto as demis línguas Yanomamio apresentam retenções de *r e *ʃ. A re-
construção da sequência *pr é pode igualmente explicar as mudanças independentes de *pr > r em
Ninam e *pr > p em Sanɨma, além da retenção de pr em Yanomam e Yanomamɨ, enquanto o caminho
contrário de r > pr ou ou p > pr seriam extremamente improváveis. As mudanças por trás do som
reconstruído como *j são semelhantes: retenção em Yanomam e Yanomamɨ, africanização em Ninam
e Sanɨma, sendo que essa última língua teve uma mudança a mais: *j > tʃ > ts. Com relação aos sons
reconstruídos como *f e *h, eles são os mais difíceis dado que seus reflexos são os mesmos em todas
as línguas exceto o Yanomam. O fato de a vogal seguinte a *f e *h ser igualmente [a] nas linhas 13 e
15 reforça que não haveria nenhum elemento fonético condicionante a variants alofônicas. Isso justi-
fica a reconstrução dos dois sons –*f e *h – e ilustra o rigor do método Histórico-Comparativo na
reconstrução do sistema fonológica de uma proto-língua.
Com o que vimos até aqui, temos a aplicação do Método Histórico-Comparativo, seguindo
suas etapas centrais, a saber: identificação de correspondências e palavras cognatas, o que traz a de-
monstração de que as línguas estão geneticamente relacionadas e permite a reconstrução de proto-
formas (sons, palavras, etc.), e análise dos reflexos das proto-formas nas línguas filhas. A seguir
vamos apresentar a aplicação desses resultados a duas questões de pesquisa caras à Linguística His-
tórica, a saber: a classificação interna de uma família linguística e o estudo da pré-história linguística
(ou paleolinguística).

5.1.2 Subclassificação de famílias linguísticas


A subclassificação ou classificação interna de uma família linguística consitem em agrupar as línguas
são filogeneticamente a partir da identificação de inovações ou mudanças linguísticas compartilhadas
significativas. As retenções de formas desde uma proto-língua não servem par estabelecer um sub-
grupo filogenético. Assim, apenas as inovações compartilhadas podem ser interpretadas como evi-
dência de que houve uma separação no passado entre proto-línguas que vieram a dar origem a dife-
rentes subgrupos de uma família linguística. Existem diferentes maneiras de se representarem as sub-
classificações de uma família linguística, a mais utilizada sendo o modelo arbóreo, como introduzi-
mos na seção 1.1.3. Uma árvore impõe uma hierarquia em que todo processo de mudança ocorre
verticalmente em etapas sucessivas ao longo do tempo, entre uma protolíngua e suas línguas filhas.
O modelo arbóreo presume que depois de uma divisão entre línguas, não haveria possibilidade de as
línguas seguirem se influenciando, o que muitas vezes não ocorre na realidade. Mesmo diante desse
problema, o modelo arbóreo segue sendo a principal forma que representamos famílias linguísticas.
A subclassificação da família Tupí-Guaraní no trabalho de Mello (2000) utilizou-se de inova-
ções fonológicas e lexicais para estabelecer os subgrupos da família. Vejamos um caso de inovações
lexicais relativas a cognatos referentes ao macaco guariba. Segundo Mello, haveria 2 proto-formas
possíveis: *akɨkɨ e *wariβ. Uma das razões para isso é que o Tupinambá possuía as duas formas e
ambas estão bastante dispersas entre as línguas da família. Os dados a seguir ilustram a distribuição
desses étimos em diferentes línguas, bem como um conjunto de línguas com formas inovadoras que
podem ser reconstruídas como *karaja

§ *wariβ: Tembé warɨw, Guajá wari, Kaapor wari, Aurá wari, Tupinambá gʷariβ
§ *akɨkɨ: Ausriní akɨkɨ, Apiaká akɨkɨ, Kamayurá akɨkɨ, Parintintin akɨkɨ, Emerillon akɨkɨ,
Anambé akɨkɨ Tupinambá akɨkɨ.
§ *karaja: Sirionó karaja, Guaraní Paraguaio karaja, Chiriguano karaja, Guaranaí Antigo karaja.

Mello identifica que a forma *karaja é uma inovação lexical das línguas do ramo Guaraní apenas.
Essa análise é coerente com outras inovações que somente ocorreram neste ramo da família, como,
por exemplo, a palavra *anaʔi ‘abóbora’, enquanto a maior parte das línguas manteve a forma *ju-
rumũ ‘abóbora’ ou ‘jerimum’ (essa palavra sendo um empréstimo do Tupi).

158
Nem sempre os dados convergem de forma clara para apontar um subgrupo específico para
uma dada língua. É comum que uma língua A compartilhe inovações tanto com a língua B e C. Por
exemplo, a inovação fonológica *pʷ > kʷ é compartilhada entre o ramo de línguas Guaraní e outras
línguas localizadas bem longe, no leste da Amazônia: Tembé, Asuriní, Tapirapé, Kaapor. Já a mu-
dança que levou à apócope de *n em posição final de palavra é compartilhada pelas línguas Guaraní
e outro grupo de línguas Amazônicas, como Wayampi, Guajá, Anambé e Aurá. Vejamos que estamos
numa situação complicada para agrupar as línguas Guaraní às demais línguas da família, pois as duas
mudanças que analisamos sugerem diferentes línguas como hipoteticamente mais proximamente re-
lacionada às línguas Guaraní. Como resolver essa questão?
Primeiramente, as subclassificações devem se basear numa análise sistêmica e não de itens
isolados. Com base num volume de inovações, pode-se adotar uma abordagem qualitativa, quantita-
tiva ou mista. Na abordagem quantitativa é possível fazer diferentes cálculo estatísticos para se inferir
uma classificação da família. A abordagem qualitativa procurar fazer uma análise mais interpretativa,
parcimônica e probabilística ao julgar algumas inovações como mais importantes do que outras para
se inferir a subclassificação de uma família. Uma outra abordagem, a adotada por Mello para sua
subclassificação das línguas Tupí-Guaraní, consiste em evitar os casos ambíguos e problemáticos de
sobreposição de isoglossas, e fazer uma subclassificação com subgrupos rasos, com poucas línguas e
sem estar agrupados em estruturas hierárquicas mais complexas. Assim, como base na análise de 16
proto-fonemas e de 761 palavras reconstruídas, Mello (2001) chegou à seguinte classificação da fa-
mília TupiGuaraní:
Figura 21: classificação da família Tupí-Guaraní segundo inovações lexicais e fonéticas de acordo
com Mello (2000, 2001).

As línguas Tupí-Guaraní, bem como da grande família Tupí, possuem uma longa história de estudos
sobre classificação interna e o estudo interdisciplinar da história indígena, como discutiremos a se-
guir.

5.1.3 Reconstrução, subclassificação e o passado cultural


Os resultados obtidos pela aplicação no Método Histórico-Comparativo nos permitem postular uma
série de hipóteses sobre o passado social e cultural dos povos falantes das línguas de uma família.

159
Isso torna a Linguística Histórica uma área com grande potencial interdisciplinar. A reconstrução do
vocabulário cultural e dos sistemas terminológicos de uma proto-língua pode nos dizer muito sobre
como viviam seus falantes. Com base nos dados de Migliazza (1972) para a família Yanomami, po-
demos reconstruir palavras referentes a itens da cultura material como *hapoka ‘panela de cerâmica’,
*fesi ‘cuia’, *rakamtʰotʰok ‘rede para dormir’, *jaɾaku-na ‘anzol’, *tʰomɨ-na ‘faca’, *nahi ‘arco’, e
*ʃokop ‘lança’ (ver Tabela 42). Ao mesmo tempo, a análise etimológica de algumas palavras nos
permite ver como certos itens eram fabricados. Por exemplo, a palavra faca *tʰomɨ-na é polimorfê-
mica: *tʰomɨ ‘cutia’e *na ‘dente’, o que sugere que e o instrumento usado como faca seria feito a
partir do dente da cutia. De fato, esses itens da cultura material formam parte da cultura de vários
povos indígenas da atualidade.
Tabela 42: Algumas palavras referentes à cultura material que podem ser reconstruídas para o
Proto-Yanomami
Ninam Yanomam Yanomamɨ Sanɨma Proto-Forma
hapoka hapoka hapoka hapoka * hapoka
hesi fesi hesi hɨɨsɨ *fesi
ɾakamtʰok ɾakamtʰok mɾakamatʰoto mɾakamatʰotʰo *mɾakama-tʰotʰok
ʃokop ʃokop ʃokopi sokopi *ʃokopi
tʰõmɨna tʰõmɨna tʰõmɨna tʰomɨnakɨ *tʰomɨna

Além de aspectos culturais, a subclassificação pode nos ajudar a compreender os processos de migra-
ções e dispersões a partir de um centro de origem geográfico. O chamado princípio do centro de
gravidade filogenética assume que a origem de uma proto-língua será na área em que encontramos
um maior número de sub-grupos de uma família linguística, como ilustrado na Figura do Apêndice
Online 13a. Caso isso não seja possível, a parcimônia nos sugere que podemos calcular rotas migra-
tórias a partir da postulação de movimentos populacionais com um menor número e distância percor-
rida possíveis, como ilustrado na Figura do Apêndice Online 13b.
Figura do Apêndice Online 13: Modelos para se inferir o centro de origem da diversificação de uma
família linguística: (a) maior diversidade interna; (b) menor distância e número de rotas

A origem e rotas de dispersão da família Tupí e subfamília Tupí-Guaraní têm sido objeto de
estudos há muito tempo por linguistas e arqueólogos. Aryon Rodrigues percebeu que cinco subfamí-
lias Tupi se encontram no na região de Rondônia na bacia do rio Madeira, enquanto as demais sub-
famílias estão dispersas ao leste dessa localização. A concentração das cinco famílias no alto rio
Madeira foi usada como base para que Rodrigues postulasse o local de origem da família Tupí. Ro-
drigues reconstrói uma série de palavras para o Proto-Tupi que indicam que seus falantes eram bas-
tante familiarizados com a agricultura, como a palavra para roça, enxó (tipo de enxada feita de

160
madeira), machado, pote de cerâmica, mandioca, batata doce, cará e bem com uma série plantas
semi-domesticadas.
O centro de origem da família Tupí-Guaraní foi objeto de três hipóteses diferentes: (1) na
mesma área do Proto-Tupi (Rodrigues 2000), (2) na região da Amazônia Central na confluência do
rio Madeira com o Amazonas (Brochado 1984), (3) na Amazônia Oriental (Mello e Kneip 2017). O
Proto-Tupí-Guaraní teria surgido após se separar do Awetí e do Mawé, as línguas mais próximas na
família Tupi às línguas Tupi-Guarani (cf. Rodrigues e Dietrich 1997, Meira e Drude 2015). Logo,
parece claro que os falantes do Proto-Tupi-Guarani migraram de uma posição mais central na Ama-
zônia. O centro de origem a diversificação parece ter sido na Amazônia Oriental, onde se concentra
a maior diversidade de línguas e até seis dos nove ramos da família segundo classificação de Mello
(2001). Enquanto alguns grupos ficaram nesta área até hoje, outros tiveram uma história diaspórica.
O mapa na Figura 22 resume o modelo proposto por Mello e Kneip (2017)
Figura 22: Origem e dispersão Tupí-Guaraní segundo Mello e Kneip (2017)

5.1.4 Troncos, Macros, Famílias e a Léxico-Estatística


Desde seus primórdios, a Linguística Histórica e a Biologia Evolutiva estiveram em diálogo quanto
ao uso de métodos e modelos para explicar a evolução das línguas e da vida na Terra. A Biologia
agrupa os seres vivos em relações de parentesco hierárquica – desde o nível da espécie, passando pelo
gênero, família, ordem, classe, etc. Com essa sistemática, espécies que pertencem a um mesmo agru-
pamento possuem também um ancestral comum. Esse modelo inspirou alguns linguistas a criarem
propostas taxonômicas análogas para a evolução linguística. A proposta de Morris Swadesh (1955)
foi a que mais ganhou popularidade. Ela estabelece 7 níveis taxonômicos: Dialetos < Línguas < Fa-
mília < Tronco < Microfilo < Mesofilo < Macrofilo. Para se chegar a essa classificação, o linguista
deve usar a léxico-estatística, um método usado para medir a quantidade de palavras cognatas entre
línguas julgadas aparentadas a partir de uma lista de vocabulário básico (termos para partes do corpo;
fenômenos naturais; seres viventes como árvore e animais como pássaros, piolho, peixe; verbos como
beber, dormir, morrer; pronomes como eu, você, nós, etc.). Com isso, estabelecem-se os graus de
proximidade e distanciamento filogenético, sendo mais próximas as línguas que compartilharem uma
maior quantidade de palavras cognatas entre si, como mostrado na Tabela 43.
Tabela 43: Esquema Taxonômico de Morris Swadesh (1955)
Nível Taxonômico Percentual de palavras cognatas
Dialetos 81% ou mais

161
Línguas menos do que 81%
Família mais de 36%
Tronco de 36% a 12%
Microfilo de 12% a 4%
Mesofilo 4% a 1%
Macrofilo menos de 1%

O problema crucial com essa abordagem é que o agrupamento genético na léxico-estatística não dis-
tingue entre inovações e retenções, uma vez que agrupa as línguas simplesmente pela quantidade de
itens cognatos. Como vimos na seção 4.1.3, os subagrupamentos devem ser feitos com base apenas
em inovações. Um outro problema – sem dúvida menor – tem a ver com a lista de vocabulário básico
a ser usada. Primeiramente, obter subclassificações usando-se apenas de um critério – o léxico – não
é recomendado se temos como usar outros dados. Em segundo lugar, a ideia de um vocabulário básico
como um conjunto de itens lexicais compartilhados por todas as línguas e sociedades, representando
conceitos estáveis e que não variam entre culturas, não está livre de problemas. Em seus estudos,
Swadesh começou com uma lista com pouco mais de 300 itens e a reduziu sucessivamente para uma
lista final de 100 itens (ver apêndice online com a lista de Swadesh com 100 itens lexicais). Ainda
assim, há problemas com o vocabulário final. Por exemplo, “cachorro” é um item cultural que chegou
apenas nos últimos cinco séculos em boa parte do mundo, incluindo a América do Sul; algumas lín-
guas podem ter o mesmo termo para conceitos diferentes da lista, como “casca” e “pele”, “nuvem” e
“fumaça”, entre outros.
Quando as ideias de Swadesh estavam em expansão na linguística, grandes descobertas esta-
vam sendo feitas em torno das relações genéticas entre a família Tupí-Guaraní, por um lado (ver
Rodrigues 1964), e a família Jê, por outro (ver Davis 1968). Ao serem identificadas outras línguas
que estavam geneticamente relacionadas com essas famílias, porém claramente mais distantes das
demais, os novos agrupamentos mais amplos foram batizados com os termos “Tronco” e “Macro”,
dando origem aos termos “Tronco Tupi” e “Macro-Jê”. Algo similar se passou com a família Aruák,
porém com resultado reverso. Até meados do século XX, estava bem claro que existia um agrupa-
mento conhecido como família Maipure. Noble (1965) propôs que outras línguas estariam relaciona-
das de modo distante à família Maipure, como a família Arawá e Guahibo. Essa hipótese foi batizada
de Tronco Aruák (do inglês Arawakan stock). Apesar de hipótese não ter sido adotado pela maior
parte do linguistas, a antiga família Maipure ficou sendo chamada de Aruák, mas sem incluir Guahibo
e Arawá. De todas as formas, notemos que a família Aruák, conforme estabelecida na atualidade,
possui um padrão de diversificação linguística e distribuição geográfica comparável ao “Tronco
Tupi” e ao Macro-Jê.
Como se vê, não está claro porque usamos “Tronco” no caso Tupi, “Macro” no caso Macro-
Jê e família no caso Aruák. Isso reflete a falta de clareza nas bases objetivas que demarcam o limiar
entre “famílias”, “troncos” e “macros”. Na atualidade, a taxonomia de Swadesh tem uma aceitação
desigual entre os linguistas. Ainda que alguns recorram a ela como forma de diferenciar quão distan-
tes estão certas línguas e dialetos, não se tem adotado com rigor as diferenças quantitativas postuladas,
e poucos usam os termos taxonômicos hierarquicamente superiores a “família”. Podemos dizer que,
minimamente, a maior parte dos linguistas vai reconhecer três níveis taxonômicos: o nível da família
linguística, o nível dos ramos ou subgrupos dentro de uma família, e o nível das línguas e dialetos.

5.1.5 Cronologia e Datação em Linguística Histórica


As proto-línguas possuem diferentes idades, tendo sido faladas em tempos (pré-)históricos mais re-
centes ou remotos. O modelo arbóreo já organiza a história de uma família a partir de sucessivas
divisões que marcam o fim de uma proto-língua e o nascimento de novas línguas. Assim, sabemos
que o Proto-Romance precedeu o Proto-Ibérico na história das línguas Românicas, de modo que re-
flexo herdados desde o Proto-Romance serão mais antigos e terão maior distribuição na família lin-
guística como um todo se comparados aos reflexos do Proto-Ibérico.

162
Dentro de uma família linguística, podemos usar a cronologia relativa para organizar tempo-
ralmente os eventos de mudanças linguísticas de uma proto-língua a suas línguas filhas. Com apoio
de evidências externas, podemos periodizar algumas mudanças. Por exemplo, sabemos que o emprés-
timo da palavra Tupinambá kapi’i para o português capim correu em um momento em que o portu-
guês, o galego e outras línguas ibéricas já haviam se separado, uma vez que nessas outras línguas
temos apenas palavras de origem latina como hierba e pasto em espanhol. Além dessa datação rela-
tiva, nos casos de empréstimos do Tupinambá para o português podemos ainda datar em anos do
calendário este evento como tendo ocorrido após 1500 AD, ano da chegada dos portugueses ao litoral
do que viria ser o Brasil.
A datação de protolínguas mais remotas e/ou cujas línguas filhas possuam zero ou poucos
registros históricos é bem mais complexa. Há diferentes abordagens para se tentar fazer isso, mas
todas procuram relacionar o grau de diversificação ou divergência entre as línguas de uma família
com o tempo estimado para que mudanças linguísticas ocorram. Como uma primeira proposta, muitos
linguistas (este autor incluso) recorrem a um procedimento heurístico, pouco controlado, e que con-
siste em intuir o grau de diversificação dentro de uma família linguística para qual não temos datação
e compará-lo com o de uma família linguística com grau de diversificação análogo e para qual temos
informações históricas mais precisa. Por exemplo, Rodrigues (_) usou a analogia com a família Indo-
Europeia para estimar que a ideia do Proto-Tupi seria de aproximadamente 5 mil anos, e da família
Tupí-Guaraní seria de 2500 anos, o que a alinha temporalmente com a família Românica.
Um método que se tornou bastante influente foi a Glotocronologia, criada por Morris Swa-
desh, que consiste em estimar o tempo de diversificação de línguas relacionadas a partir da léxico-
estatística e um conjunto de palavras do vocabulário básico. Swadesh (1952) desenvolve a ideia de
uma taxa constante na qual as línguas substituiriam palavras em seu vocabulário básico. Ao calcular
quantas palavras não são cognatas entre um par de línguas, poder-se-ia estimar há quanto tempo essas
línguas se separaram desde uma proto-língua em comum. O coração da proposta está no valor esti-
mado da taxa constante de mudança. Ela tem variado de acordo com as diferentes modificações das
propostas elaboradas de Swadesh. Para a lista de 100 itens do vocabulário básico, Swadesh chegou à
constante de substituição de 14% do vocabulário a cada 1000 anos. O problema com esses procedi-
mentos é que eles assumem uma taxa constante de diversificação entre as línguas, e isso é complicado
porque há línguas que mudam mais do que outras, ou que passam um longo período com pouca ou
nenhuma mudança e subitamente passam por diversos processos de mudanças. Por exemplo, na di-
versificação do francês e do italiano com relação ao Latim, o francês passou por muito mais mudanças
fonológicas do que o italiano. No fundo, a taxa de diversificação depende de questões sociolinguísti-
cas, as quais são difíceis de serem previstas apenas por dados linguísticos e requerem modelos inter-
disciplinares.
Modelos interdisciplinares dependem de informações datáveis do campo da história, arqueolo-
gia e ecologia histórica para poder servir com uma referência temporal externa e independente, como
vimos no pequeno exemplo sobre capim acima. Uma abordagem bastante utilizada é comparar o
padrão de dispersão de famílias linguísticas com o de culturas arqueológicas (ver seção 1.4). A ex-
pansão da família Tupí-Guaraní está comumente associada a uma cultura material relativamente ho-
mogênea para os grupos descendentes do Proto-Tupí-Guaraní, e no registro arqueológico fica bas-
tante evidente a correlação entre a expansão da tradição cerâmica conhecida como “Tupiguaraní” e
as áreas que foram ocupadas por falantes de línguas da família. As datas mais antigas da cerâmica
Tupiguarani aparecem na Amazônia Oriental por volta de 2500 anos atrás; na bacia do rio Paraná,
associado aos povos Guaraní, as datas mais recuadas são de 2 mil anos atrás, e na costa Atlântica,
associada aos povos Tupinambá, Tupiniquim, etc., há cerca de 1700 anos atrás. Os modelos arqueo-
lógicos são uma feliz coincidência com as teorias linguísticas sobre a idade do Proto-Tupí-Guaraní e
o centro de origem da família (Brochado 1984; Noelli 1998; Almeida e Neves 2015).
Mais recentemente, muitos estudos têm usado métodos filogenéticos computacionais de Bioin-
formática que usam probabilidade bayesiana para estimar o tempo de diversificação de uma família
linguísticas. Com esses métodos, pode-se usar informações independentes da história, arqueologia,
etc., para localizar numa árvore de uma família linguística quando certas divisões e mudanças

163
ocorreram, e a partir delas estimar a relação entre quantidade de mudanças por tempo de modo inde-
pendente em diferentes ramos de uma família (ver, por exemplo, Gray e Atkinson 2003 para o Indo-
Europeu). Greenhill et al. (2023) aplicaram um método similar para família Uto-Azteca e inferiram
que a idade do Proto-Uto-Azteca seria de cerca de 4.100 anos atrás (3.258 ~ 5.025 anos). Para a
família Tupí-Guaraní, Michael et al. (__) e Gerardi et al. (2023) oferecem uma classificação da famí-
lia usando dados lexicais, enquanto o estudo de Gerardi e colegas explora hipóteses arqueológicas e
rotas de dispersão.

5.2 Panorama das famílias linguísticas nas Américas


Nesta seção apresentamos um panorama sobre as famílias linguísticas das Américas divididas con-
forme sua localização geográfica e seu tamanho. Contabilizamos cerca 171 famílias, sendo 102 fala-
das na América do Sul e 69 na América do Norte e Central,35 entre as quais estão 89 línguas isoladas,
sendo 60 na América do Sul e 29 na América do Norte e Central. Podemos dividir as famílias con-
forme seu número de línguas:
§ grandes: com mais de 20 línguas
§ médias: de 20 a 6 línguas
§ pequena: 5 a 2 línguas
§ isoladas: 1 língua.

A Tabela 44resume essa classificação, subdividindo as famílias nas diferentes macrorregiões das
Américas.
Tabela 44: classificação das famílias linguísticas segundo o número de línguas e sua localização
Famílias Famílias Famílias Pe- Línguas Iso- To-
Grandes Médias quenas ladas tais
América do Sul 8 10 24 60 102
México e América
2 3 6 6 17
Central
EUA e Canadá 4 11 14 23 52
Totais 14 24 44 89 171

Antes de lidarmos diretamente com as famílias linguística, convém fazer alguns comentários
sobre as classificações que iremos apresentar. Primeiramente, os números usados para classificar cada
família com relação a seu tamanho variam de acordo com a maneira que contamos e classificamos as
línguas indígenas. Por exemplo, se o Glottolog conta 181 línguas Otomangue, Campbell (2023) conta
83. Diante disso, vamos adotar uma postura mais relativista quanto ao número de línguas, reportando
seus valores mínimos e máximos conforme as principais fontes consultadas.
As classificações também dependem de certas disposições ou atitudes dos linguistas ao ava-
liarem as evidências existentes. Essas atitudes foram caricaturadas em duas abordagens contrastantes:
a atitude dos “aglutinadores” (do inglês “lumpers”) e a dos “separadores” (do inglês “splitters”). Os
aglutinadores buscam reduzir o número de famílias linguísticas (ou unidades genéticas) nas Améri-
cas, propondo relações mais inclusivas e remotas entre os grupos linguísticos. Para isso, focam mais
nas evidências positivas de similaridade. Os chamados divisores requerem evidências mais explícitas
e rigorosas para propostas de relacionamento genético, rejeitando aquelas propostas para as quais as
evidências não são consideradas suficientemente convincentes (Campbell 1997: 93). A história das
classificações das línguas indígenas nas Américas teve um período em que as atitudes eram mais
aglutinadoras do que divisoras, com hipóteses de grandiosos agrupamentos genéticos, dados esparsos
e pouco rigor metodológico, sem seguir o método Histórico-Comparativo. A hipótese mais icônica
nesse sentido foi a de Joseph Greenberg sobre a família Ameríndia que agrupava numa única família

35
A família Chibcha está tanto na América Central quanto no norte da América do Sul, mas devido à semelhança cultural
entre os povos Chibcha com povos sul-americanos (Pache 2018), incluímos como parte da América do Sul.

164
todas as línguas indígenas, exceto as línguas pertencentes às famílias Inuit-Yupik-Unangan (ou Es-
kimo-Aleuta ou ainda Eskaleuta), a família Na-Denê (ver seção 2.4.1 e 5.4.1). No entanto, foram
tantos apontamentos de inconsistências nos dados e análises que a hipótese Ameríndia caiu por terra
(ver Campbell _ para uma abordagem sobre os principais problemas dessa hipótese).36
Hoje, pode-se dizer, existem três tarefas principais para os linguistas que se dedicam à classi-
ficação genética das línguas indígenas das Américas:
§ desfazer alguns dos agrupamentos mal estabelecidos no passado;
§ produzir ou melhorar classificações internas das famílias linguísticas postuladas
§ expandir as classificações existentes para agrupamentos genéticos mais distantes usando o método
Histórico-Comparativo

Nas próximas seções, uma lista das famílias linguísticas, sua localização geográfica em mapas e um
pequeno resumo do estado da classificação genética das principais famílias (Glottolog (__), Ethnolo-
gue (2021) e Campbell (2023). Apresentaremos as famílias com base em seus números máximos e
mínimos de línguas conforme as fontes consultadas. Mapas mostram a dispersão espacial de cada
família. Veremos abaixo

5.2.1 Famílias Linguísticas da América do Sul


A América do Sul possui algo em torno de 590 a 500 línguas agrupadas em 102 famílias linguísticas.

Famílias Grandes
As 8 famílias com mais de 20 línguas chegam a somar entre 308 ~ 383 línguas ou cerca de 62% de
todas as línguas faladas no continente sul-americano:

§ Aruák 80 ~ 65 línguas
§ Tupi 70 ~ 55 línguas
§ Karib 50 ~ 40 línguas
§ Quechua 45 ~ 27 línguas
§ Pano-Ta- 45 ~ 39 línguas
kana
§ Macro-Jê 40 ~ 30 línguas
§ Tukano 30 ~ 29 línguas
§ Chibcha 27 ~ 23 línguas
Figura 23: Famílias Grandes da América do Sul

36
Recentemente foi publicada a tese de doutorado de Marcelo Jokelsky (2016) em que são postuladas uma série de hipó-
teses de relacionamentos entre o que aqui são tratadas como famílias distintas. Conforme foi aprovada pela banca exami-
nadora, a tese de Jokelsky se baseia numa visão que não diferencia propriamente entre agrupamento genético e relações
por contato. Em muitos casos, seus métodos se basearam no julgamento de similaridades superficiais, ancorada por con-
jecturas etno-arqueológicas que motivassem possíveis relações de contato ou descendência comum entre certas línguas e
famílias, mas seu trabalho não foi capaz de diferenciar esses dois tipos de relações para muitos dos agrupamentos pro-
postos.

165
A família Aruák é a família mais amplamente distribuída nas Américas, com línguas locali-
zadas desde as Bahamas (Taíno) à Argentina (Chané), do sopé dos Andes (Yanesha) ao Oceano
Atlântico (Palikur, Aruã, Lokono). Foi uma das primeiras grandes famílias de línguas descobertas,
antes mesmo do Indo-Europeu, foi a família Aruák. O missionário Filippo Salvadore Gilij foi o autor
desse feito em 1782, quando trabalhava na Venezuela e notou semelhança entre línguas geografica-
mente próximas, como Maipure, Piapoco, Achagua, Baniva, com línguas geograficamente distantes,
como Mojeño-Trinitario (falada na Bolívia) e Taíno (falada no Caribe) (Pache et al. 2017). Até pouco
tempo, o principal trabalho de classificação e reconstrução da família foi o de Payne (1991), mas
recentemente Ramirez (2020) publicou sua Enciclopédias das Línguas Arawak que em muito excede
em dados o trabalho de Payne, refina e amplia suas reconstruções, porém ainda mantem uma classi-
ficação interna da família baseada na Léxico Estatística. Um alto número de línguas da família é
reportado por Aikhenvald (1999), Ramirez (2020) e Michael (2023_), os quais incluem algo próximo
a 50% de línguas já extintas ou adormecidas. Uma grande questão mal resolvida é sobre a classifica-
ção interna da família, com proposta favorecendo uma divisão primária entre um ramo norte e um
ramo sul (Aikhenvald 1999), outras sugerindo uma divisão entre um ramo ocidental e oriental (Ra-
mirez 2001), ou ainda uma divisão em diversos sub-grupos regionais sem uma estrutura arbórea bem
definida. A família Aruák também já foi objeto de propostas mais “agregadoras”, como a ideia de um
Tronco Aruák por Noble (1965), que postulava a relação genética entre a família Aruák (chamada
então de “ramo” Maipure) com as famílias que hoje reconhecemos como independentes: Arawa, Uru-
Chipaya e Pukina (isolada). Essas hipóteses foram, até o momento, rejeitadas pela literatura.
A família Tupi está localizada predominantemente nos afluentes meridionais do rio Amazo-
nas, na bacio do alto Rio Madeira, na bacia do Rio da Prata, ao longo da costa Atlântica e no Nordeste
da Amazônia. A família compreende cerca de 55 a 70 línguas, faladas num vasto território que vai do
Rio da Prata na Argentina até o Guiana Francesa. Elas foram classificadas em 10 subfamílias, dividi-
das em um ramo Ocidental (Puruborá, Ramarama, Mondé, Tuparí, Arikém) e um ramo Oriental (Ju-
runa, Mundurukú, Mawé, Awetí, e Tupí-Guaraní). As línguas orientais são as que teriam permanecido
no centro de origem da família Tupí (ver seção 5.1.3, bem como Rodrigues e Cabral 2012 para mais
detalhes). A sub-família Tupí-Guaraní possui quase 70% de todas as línguas da família. Desde a
classificação de Rodrigues (1964), alguns agrupamentos maiorem abrangendo mais do que uma sub-
família, foram propostos. A hipótese de um subgrupo incluindo as línguas Mawé, Awetí e Tupí-

166
Guaraní é mais bem sucedida (Rodrigues 1985, Rodrigues e Dietrich 1997, Meira e Drude 2015).
Estudos com os de Galúcio et al. (2015) sugerem um subgrupo formado por Ramarama e Puruborá,
confirmam o subgrupo Mawetí-Guaraní, mas mostram resultados não muito promissores para outros
subagrupamentos mais inclusivos. Assim, apesar de ser uma das famílias mais estudadas e que foi
submetida ao método Histórico-Comparativo, a classificação interna Tupí e a reconstrução de suas
proto-línguas intermediárias permanece ainda uma questão em aberto. O mesmo vale para possíveis
afinidades genéticas com línguas Karib e Macro-Jê (ver seção 5.4.2). Ver seções _ para mais detalhes
sobre a subfamília Tupí-Guaraní.
A família Macro-Jê compreende a sub-família Jê – com cerca de 15 línguas – e um conjunto
de outras famílias pequenas ou isoladas. No entanto, a exata composição da família Macro-Jê, em
especial quais línguas devem ser incluídas ou excluídas da proposta, permanece com alguns pontos
de controvérsia. Davis (1968) demonstrou relações genéticas entre as línguas Jê, Maxakalí e Karajá;
incluídas posteriormente, temos a língua Ofayé (Gudschinsky 1971) e Rikbatsa (Boswood 1973).
Posteriormente, Rodrigues (1999) apresentou sua proposta do “Tronco Macro-Jê” com base em tra-
balhos desenvolvidos desde a década de 1970, em que incluía Jê, Maxakalí, Karajá, Ofayé, Rikbáktsa,
Kamakã, Krenák (ver também Seki 2002), Purí, Karirí, Yatê, Boróro e Guató. A sub-família Jabuti
foi proposta como parte da família Macro-Jê por van der Voort e Ribeiro (2010), que também sugerem
que a língua Guató seja excluída do tronco Macro-Jê e são favoráveis à inclusão do Chiquitano (ver
também Adelaar 2008). Nikulin (2020) escrutina criteriosamente as propostas existentes para recons-
truir elementos da fonologia, léxico e morfossintaxe e classificar como parte da família Macro-Jê as
sub-famílias Jê, Maxakalí, Karajá, Ofayé, Rikbáktsa, Kamakã, Krenák, Yaikó e Chiquitano. Ainda
que pairem dúvidas se o Chiquitano é um membro interno ou externo a à família Macro-Jê, essa
proposta ganhou bastante credibilidade entre os especialistas e nos permite buscar de forma mais
sólida relações genéticas distantes entre Macro-Jê e outras famílias (seção 4.3.1). Línguas da família
Karib são faladas no Brasil Central, na Colômbia, Guiana Francesa, Guiana, Suriname Ve-
nezuela, e em algumas ilhas menores do Caribe. Das cerca de 40-50 línguas identificadas, provavel-
mente 25 ainda são falados (Meira 2006, Gildea 2012). Possui uma ampla distribuição que vai da
Colômbia, passando pelas Guianas até o Brasil Central. O missionário Salvatore Gilij foi um dos
precursores do estabelecimento da família no século XVIII, mas pouco se avançou na reconstrução
do Proto-Karib e as classificações internas da família ainda permanecem incertas, bem como sua
filiação externa a outras famílias linguística, como a Tupí (seção 5.4.2). A família está classificada
em seis ramos principais, além de algumas línguas cuja subclassificação é incerta. Da região nordeste
do rio Amazonas até o norte da Colômbia, encontram-se quatro desses seis ramos. Apenas dois ramos
estão localizados ao sul do Amazonas.
A família Tukano encontra-se no Noroeste Amazônico. Ela possui cerca de 30 línguas distri-
buídas em dois subgrupos principais, Tukano Ocidental e Tukano Oriental. As línguas do ramo ori-
ental somam dois terços de todas as línguas da família e são faladas na região do Alto Rio Negro na
fronteira entre o Brasil e Colômbia, e as línguas ocidentais estão no oeste da Colômbia e fronteira
com Peru e Equador. Classificações internas à família foram propostas usando o método histórico-
comparativo e com base em inovações fonológicas (Malone 1989, Chacon 2014, Chacon e List 2016)
e Morfológicas (Chacon e Michael 2018). Outras classificações foram baseadas em retenções de cog-
natos (Waltz e Wheeler 1972, Ramirez 2019) ou em critérios geográficos ou mais gerais (Mason
1950, Barnes 1999). Algumas classificações sugeriram um ramo central para a família, mas foram
descartadas em estudos posteriores. Waltz e Wheeler (1972) sugeriram que o Kubeo poderia ser uma
língua do ramo Tukano Central. Malone e Barnes (1999) posteriormente incluíram também as línguas
Tanimuka e Retuarã. Pairam indefinições sobre a classificação da língua extinta Koretu: com base
em inovações fonológicas, Chacon (2014) a classificou como parte do subgrupo Ocidental; com base
na semelhança lexical Ramirez (2019) propôs classificá-la no ramo Oriental, sendo especialmente
mais próxima ao Tanimuka, com quem entreteve intensas relações de contato. Não há, atualmente,
uma proposta atrativa que postule uma relação genética de longa distância da família Tukano com
outra família, mas há bastante evidência de contatos com línguas vizinhas Aruák, Naduhup, Witoto,

167
Bora, etc. (ver discussão sobre o Uaupés e o Alto Rio Negro: do centro à periferia e além na seção
Amazônia).
A família Pano-Takana está localizada no oeste da Amazônia e sopé dos Andes. Pano-Ta-
kana fora antes reconhecido como duas famílias distintas, Pano (Oliveira 2014, Fleck 2013) e Takana
(Girard 1971). As línguas Pano totalizam algo entre 20 a 40 línguas, enquanto a família Takana é
bem menor, com 5 a 7 línguas. Ainda que permaneça certo ceticismo com relação à hipótese Pano-
Takana entre alguns linguistas, as evidências vêm se acumulando ao mesmo tempo em que os estudos
comparativos têm se tornado mais criteriosos metodologicamente, de modo que o trabalho recente de
Valenzuela e Zariquiey (2023) parece bastante convincente quanto à demonstração de parentesco
genético entre essas línguas.
Línguas Quechua são faladas da Colômbia à Argentina, ocupando sobretudo a área dos Andes
Centrais no Peru e Bolívia, mas também regiões do sopé Andino e floresta Amazônica. A família
Quechua muitas vezes é pensada como uma única língua, mas autores como Adelaar e Muysken
(2004) reconhecem até 45 variedades regionais, enquanto outras fontes sugerem um número menor,
como 27 (Campbell 2023) e 5 (Torero 2007). Em particular, essa questão é evidência do grau de
proximidade entre as línguas dessa família (ver seção 3.1 para uma discussão desse problema com
respeito à diferenciação entre línguas e dialetos). Permanece certa controvérsia sobre sua classifica-
ção interna (seção 3.1.1 e 6.3.6), bem como com relação à sua filiação externa com a família Aymara
(seção 5.4.3).
A família Chibcha se estende desde Honduras na América Central (Pech) até o sopé dos
Andes Setentrionais na Colômbia. Existem cerca de 23 línguas Chibchas, as quais se estendem desde
Honduras (com Pech [Paya]), até a fronteira da Colômbia com a Venezuela. Elas se encontram clas-
sificadas em 4 ramos principais: o ramo da línga Pech, o ramo das línguas Vóticas, Ístimicas e Ma-
dalênicas. A maior diversidade genética da família se concentra na América Central (Constenla-
Umaña 2012). O ramo Madalênico é único falado na América do Sul. Entre as línguas desse ramo,
destaca-se o Muisca – língua falada na região de Bogotá, capital atual da Colômbia e que se tornou
uma língua geral no período colonial. Algumas línguas da família permanecem com uma subclassi-
ficação interna. Constenla-Umaña (2012) sugere uma relação genética distante entre Chibcha, Lenca
e Misumalpa. Pache (2018) sugere possíveis relações genéticas distantes entre Chibcha e Macro-Jê.

Famílias Médias
As demais famílias da América do Sul são pequenas e concentradas em regiões específicas. Dez delas
possuem mais de 5 línguas e podem ser classificadas como médias. As famílias médias somam 67
línguas ou 12% do total das línguas sul-americanas.

§ Txapakura 12 ~ 10 línguas
§ Chocó 9 ~ 3 línguas
§ Záparo 8 ~ 3 línguas
§ Witoto 7 ~ 5 línguas
§ Mataco 7 ~ 4 línguas
§ Arawá 6 línguas
§ Barbacoa 6 ~ 5 línguas
§ Yanomami 6 ~ 5 línguas
§ Chon 6 ~ 5 línguas
§ Nam- 6 ~ 3 línguas
bikwára

Figura 24: Famílias Médias da América do Sul

168
As línguas Txapakura são faladas desde o norte da Bolívia, Rondônia e Amazonas, ao longo
da bacia do rio Madeira. Ela é composta por 10 a 12 línguas, divididas em três ramos Tapakura, Moré
e Wari’, cada com com um grupo de variedades muito próximas. Brichal et al. (2016) encontram
evidências para agrupar o ramo Moré e Wari’ e, com base em métodos de análise filogenética com-
putacional, sugerem que a diversificação inicial da família ocorreu não muito antes de mil anos atrás.
Nenhuma proposta de classificação das línguas Txapakura junto a outras famílias linguísticas ofere-
ceu até o momento promessas de sucesso.
A família Chocó possui línguas faladas no litoral do Pacífico colombiano e no Panamá (Wau-
nana ou Woun Meu). Essa última é a língua mais divergente, enquanto as demais podem ser vistas
como um continuum dialetal, com distintas variedades divididas pelos diferentes rios em que habitam
os falantes de língua Chocó.
Línguas da família Záparo estão concentradas na Floresta Amazônica e sopé andino no Peru
e Equador. Carvalho (2013) discute dados de 3 línguas ou conjuntos dialetais, Ethnologue (2021)
conta cinco línguas e Loukotka (1968) sugere até 12 variedades para a família. Entre as propostas de
relações genéticas distantes, temos a hipótese de filiação comum entre Záparo e Peba-Yagua (Payne
1984).
Falantes de línguas da família Witoto vivem no Noroeste Amazônico, entre os trechos médios
dos rios Caquetá e Putumayo na Colômbia. A classificação de Wojtylak (2017) lista apenas três idi-
omas distintos, Nonuya, Ocaina e “Witoto”, este último sendo um continuum de dialetos composto
por Murui, Mɨka, Mɨnɨka e Nɨpode. Aschmann (1993) agrupou a família Witoto a família Bora. No
entanto, Echeverrí e Seifart (2016) apontam que a maior parte das evidências usadas por Aschmann
é baseada em correspondências irregulars e empréstimos.
Línguas da familia Mataco, também conhecida como Mataco-Mataguaya, é falada na região
do Chacon argentino e paraguai. As línguas Mataco são divididas em dois subgrupos, cada um com
duas línguas, Chorote eWichí, por um lado, e Nivaclé-Maká, por outro (Campbell 2023).
Línguas Arawá, também ocasionalmente referidas como Madi, são faladas nas bacias dos rio
Purús e Juruá, no oeste do estado do Amazonas. Essa família foi proposta com parte de um suposto
Tronco Aruák, mas isso nunca foi comprovado.

169
A família Yanomami – como exploramos na seção 4.1 – é tradicionalmente conhecida por
quatro línguas principais: Ninam (Yanam), Sanoma (Sanöma), Yanomam e Yanomamɨ (Migliazza
1972). Mais recentemente, Helder Peri Ferreira e seus colegas do Instituto Socioambiental e da asso-
ciação Hutukara chegaram à proposta de que haveria 6 línguas nessa família, acrescentando as línguas
Ỹaroamë e Yãnoma, as quais estariam divididas em até 18 dialetos, formando enclaves bilíngues e
continuum dialetais em zonas de maior interação entre os falantes (Ferreira et. al. 2019: 31-33, 45,
57). Ernesto Migliazza (1982) cogitou uma possível relação genética entre a família Yanomami com
as famílias Pano e Chibcha.
A família Nambikwára está distribuída no sudeste de Rondônia e noroeste do Mato-Grosso,
somando em torno de 6 a 3 línguas. As classificações mais recentes trazem a familia dividida em três
ramos, com a língua Sabanê sendo a mais divergentes, e os ramos Nambikwara Norte (e.g. Latundê,
Lakondê, Mamaindê) e Sul (diversos dialetos) sendo mais próximos.

Famílias Pequenas e Isoladas


A maior parte das famílias linguísticas possui 5 ou menos línguas. São ao todo 24 famílias que pos-
suem entre 5 a 2 línguas, consideradas famílias pequenas, e 60 são línguas isoladas. As famílias pe-
quenas somam 79 línguas e representam 15% do total das línguas do continente.

§ Guaicurú 5 línguas § Bororo 3 línguas


§ Guahibo 5 ~ 4 línguas § Aymara 3 ~ 2 línguas
§ Naduhup 4 línguas § Uru-Chipaya 3 ~ 2 línguas
§ Enlhet-Enenlhet 4 línguas § Lule-Vilela 2 línguas
§ Hodi-Saliba 4 línguas § Kakua-Nukak 2 línguas
§ Harakmbut-Katukina 4 línguas § Huarpe 2 línguas
§ Chicham 4 línguas § Hibito-Cholon 2 línguas
§ Kariri 4 ~ 2 línguas § Charrua 3 ~ 2 línguas
§ Zamuco 3 línguas § Bora 3 ~ 2 línguas
§ Tikuna-Yuri 3 línguas § Mapudungun-Huilliche 2 ~ 1 línguas
§ Peba-Yagua 3 línguas § Puri-Coroado 2~1
§ Kawesqar 3 línguas
§ Cahuapana 3 línguas

Figura 25: Famílias Pequenas da América do Sul

170
Vejamos agora as 60 línguas isoladas que representam cerca de 11% do total de línguas indígenas
faladas na América do Sul
§ Guamo § Matanawí
§ Timote-Cuica § Yaathê
§ Otomaco-Taparita § Kwaza
§ Warao § Trumai
§ Jirajaran § Kanoê
§ Betoi-Jirara § Aikanã
§ Yaruro § Irántxe-Münkü
§ Sapé § Itonama
§ Arutani § Arara do Rio Branco
§ Puinave § Cayuvava
§ Yurumangui § Mure
§ Andaqui § Movima
§ Tinigua § Mosetén-Chimané
§ Nasa Yuwe (Páez) § Ramanos
§ Máku § Leco
§ Camsá § Puquina
§ Atacame § Yuracaré
§ Cofán § Guató
§ Andoque § Canichana
§ Aewa § Guachi
§ Taruma § Coroado-Puri
§ Waorani § Kunza
§ Taushiro § Oti
§ Candoshi-Shapra § Payagua
§ Urarina § Chono
§ Omurano § Yagan
§ Tallán
§ Sechura
§ Muniche
§ Pirahã
§ Culle
§ Mochica
§ Xukurú

171
Figura 26: Línguas Isoladas da América do Sul

Vemos que a maior parte das famílias pequenas e línguas isoladas estão localizadas no oeste
do continente sul-americano, especialmente no sudoeste amazônico e noroeste da América do Sul.
Ainda assim, o litoral Atlântico também se destaca como uma área de pequenas famílias e línguas
isoladas, assim como o cone sul do continente.
A família Guaicurú está dividida entre um ramo norte, hoje representado apenas pelo Kadi-
wéu, falado no Mato-Grosso do Sul, e um ramo sul com cerca de 4 línguas encontrados no Paraguai
e Argentina (Viegas-Barros 2013b; ver também Viegas Barros 2013a sobre uma relação genética
entre as famílias Mataco e Guaicurú.
As línguas Guahibo formam uma família de 4 ou talvez 5 línguas bastante próximas, faladas
ao norte da América do Sul. Christian e Matteson (1972) propõem uma reconstrução do sistema fo-
nêmico. Houve várias tentativas de agrupar as línguas Guahibo com Aruák, mas, como aponta Quei-
xalós (1993), não há relação genética, embora existam empréstimos e possivelmente algumas influên-
cias areais.
A família Naduhup é falada na região de interflúvios entre o rio Japurá e o Alto Rio Negro.
Seu nome advém da junção entre os nomes de suas quatro línguas Nadëb, Dêw, Hup e Yuhup, e foi
proposto como alternativa ao termo Makú, antigo nome da família que – além de ser depreciativo –
abrigava num só grupo genético a família Naduhup e a família Kakua-Nukak (Martins 2005) e quiçá
também a língua isolada Puinave, no que fora conhecido como hipótese Makú-Puinave. Mais re-
centemente, Epps e Bolaños (__) assumiram uma posição mais cautelosa ao revisarem as evidências
existentes à luz de novos dados e sugeriram que não haveria evidências convincentes para agrupar
qualquer uma dessas três unidades, embora as semelhanças entre Puinave e Kakua-Nukakan levantam
uma possibilidade de relacionamento genético distante.
A família Hodi-Sáliba é uma proposta de agrupamento genético entre o que são consideradas
por muitos especialistas como duas famílias distintas: a língua isolada Hodi (Jotí) e a família Sáliba
(com as línguas Sáliba, Piaroa e Máko [não confundir com a hipótese “Makú” nem com a língua
isolada Máko]). A língua Hodi foi objeto de hipóteses de relações genéticas com outras famílias,
como “Makú-Puinave”, Yanomami e Karib (Rosés Labrada 2019). Zamponi (2017) analisa uma
possível relação entre Sáliba, Hodi e a língua isolada Betoi-Jarajara. Enquanto ele encontra corres-
pondências sonoras e outras evidências para uma relação genética distante entre Sáliba e Betoi-

172
Jarajara, Zamponi argumenta que as similaridades entre Hodi e Sáliba se devem ao fato de que Hodi
esteve anteriormente em contato com as três línguas Sáliba e realizou diversos empréstimos lexicais
e gramaticadas de cada uma dessas línguas em separado. Já Rosés Labrada (2019) (que na verdade
publicou seu artigo antes de Zamponi) argumenta a favor do agrupamento genético entre Hodi e Sá-
liba, apresentando conjuntos de cognatos compartilhados por todas as quatro línguas, correspondên-
cias sonoras e um conjunto de semelhanças gramaticais, tornando essa hipótese mais promissora do
que implica a análise de Zamponi.
A família Chicham (ou Jivaroan) está localizada no sopé andino no norte do Peru e sul do
Equadro. Ela é composta de quatro línguas (Aguaruna, Huambisa, Achuar (ou Achual) e Jívaro ou
Shuar). Todas as quatro línguas estão intimamente relacionadas, enquanto Aguaruna é a mais diver-
gente. Kaufman (2007:69) sugeriu agrupar Chicham (“Hívaro”) e Cahuapana emu ma só família.
A família Mapudungun-Huilieche (também conhecida como família Araucânia) é formada
pelas duas línguas que lhe dão o nome: Huilliche (falado no centro do Chile) e falado em uma vasta
área desde o centro do Chile até a Argentina na Patagônia e Pampas, para onde migraram após o
século XVII. Historicamente, os falantes de Mapudungun-Huilieche serviram como uma barreira par-
cial à expansão do império Inca e à colonização espanhola no centro e sul do Chile (Adelaar e Muys-
ken 2004: 505).

5.2.2 Famílias Linguísticas do México e América Central


Na região que compreende o México (ao sul do Rio Grande na divisa com os EUA) e a América
Central, encontramos um total de 20 famílias linguísticas, das quais 3 ou 4 são línguas isoladas, so-
mando mais de 200 línguas. Todas as famílias parecem ser autóctones desta região, exceto as seguin-
tes famílias: a família Aruák, com a língua Garífuna falada em Honduras nos dias atuais, a família
Uto-Azteca com cerca de 16 línguas ou 48 variedades na região do México e América Central, mas
originalmente vinda do sudoeste dos EUA.
Podemos dividir as famílias do Méxcio e América Central de acordo com seu número de
línguas conforme o fizemos para as famílias da América do Sul.
Famílias Grandes
§ Otomangue 100 ~ 83 línguas (até 180 variedades)
§ Maia 34 ~ 31 línguas
(Uto-Azteca 67 ~ 32 línguas [48 ~ 16 línguas no México e América Central])

Famílias Médias
§ Mixe-Zoque 19 línguas
§ Totonaca 12 ~ 6 línguas
§ Cochimí 12 ~ 2 línguas

Famílias Pequenas e Línguas isoladas


§ Xinka 5 ~ 4 línguas
§ Misumalpa 5 ~ 3 línguas
§ Waikuri 4 ~ 2 línguas
§ Tequistlateca 3 línguas
§ Jicaque 2 línguas
§ Lenca 2 línguas
§ Huave 4 ~ 1 língua
§ Comecrudo 3 ~ 1 língua
§ Purépecha 2 ~ 1 língua
§ Cuitlatec 1 língua
§ Seri 1 língua
§ Cotoname 1 língua
Figura 27: Famílias da Mesoamérica

173
Muitas das famílias dessa região estão relacionadas na história profunda da área linguística e cultural
da Mesoamérica, uma área proeminente no desenvolvimento da agricultura, sociedades complexas e
sistemas de escritas nas Américas (Adams 2000, ver seção 3.3.2 sobre sistemas de escritas). As prin-
cipais famílias desde um ponto de vista da história cultural da Measoamérica seriam: Mixe-Zoque,
Maya, Otomangue e Uto-Azteca (ver seção 4.2.3). A família Otomangue é dividida entre um ramo
oriental e outro ocidental, sendo separadas por línguas Uto-Aztecas . É uma família suis generis no
contexto das Américas por não ser territorialmente muito dispersa, mas apresentar um número ex-
pressivo línguas e dialetos, sobretudo nos sub-grupos Mixteco e Zapoteco (Otomangue Oriental). A
classificação das línguas Maia reflete uma divisão inicial entre Huasteco (falado no Golfo do México)
e as demais línguas do ramo Maya-Nuclear faladas na Guatemala, no sul do México, em Belize e em
uma pequena área em Honduras. A família Mixe-Zoque é tradicionalmente classificada em dois sub-
grupos: as cerca de dez línguas Mixe faladas mais próximas à região de chiapas no sul do México e
as línguas Zoque faladas em Oaxaca.

5.2.3 Famílias Linguísticas da América do Norte


A região da América Norte acima do Rio Grande na divisa do México e os EUA possuem cerca de
300 línguas agrupadas em 52 famílias linguísticas, das quais 23 são línguas isoladas. Das 30 famílias
restantes, podemos classificá-las de acordo com seu tamanho e dispersão geográfica, como vemos
abaixo. Informações sobre as família fornecidos abaixo levam em consideração, adicionalmente às
fontes anteriores, Goddard (1999 :320-3) e Mithun 2001).
Começando pelas famílias grandes, encontramos quatro agrupamentos genéticos que ocupam
uma ampla área do território norte americano e somam quase a metade de todas as línguas faladas
essa região.

Famílias Grandes
§ Na-Denê 45 ~ 36 línguas
§ Álgica 44 ~ 28 línguas

174
§ Uto-Azteca 67 ~ 32 línguas (19 ~ 16 ao norte do Rio Grande nos EUA)
§ Salish 27 ~ 22 línguas

Figura 28: Famílias Grandes da América do Norte

O conjunto de famílias médias compreende 11 agrupamentos genéticos, que somam cerca de 90 lín-
guas ou quase 30% de todas as línguas da região da América do Norte:
Famílias Médias
§ Sioux-Catawba 17 ~ 11 línguas
§ Iroquês 13 línguas ~ 11 línguas
§ Uti (Miwok-Costano) 11 línguas
§ Cochimi 9 línguas
§ Kiowa-Tano 8 línguas
§ Pomo 7 línguas
§ Platô 7 línguas
§ Inuit–Yupik–Unan- 11 ~ 7 línguas
gan
§ Wakash 6 ~ 2 línguas
§ Muskogue 6 línguas
§ Chumash 6 línguas

Figura 29: Famílias Médias da América do Norte

175
As famílias grandes e médias na América do Norte são geralmente bastante dispersas geografica-
mente, sugerindo migrações de longas disâncias em muitos casos, apesar de encontrarmos famílias
com territórios mais circunscritos como Salish, Platô, Uti, Pomo, Wakash, todas localizadas a oeste
desta vasta região.
A família Na-Denê é falada desde do Alasca e Canadá à Califórnia e sudoeste dos EUA (Na-
vajo, Apache). Ela está dividida em três sub-grupos: a sub-família Atabaska da qual fazem parte a
imensa maioria das línguas, e as línguas Tlingit e Eyak. Apesar da demonstração de parentesco entre
as subfamílias Atabaska, Eyak e Tlingit, a família Na-Denê foi objeto de diferentes tentativas de
relacioná-la a outras línguas e famílias, como a língua isolada Haida, e a família Yeniseian da Sibéria
central. Essa última hipótese tem ganhado boa repercussão nos últimos anos a partir dos trabalho de
Edward Vaijda e colegas (Vajda e Fortescue 2022), o que tornaria Na-Denê a primeira família com
uma conexão genética demonstrável a um grupo de línguas localizados fora das Américas.
Próximo à família Na-Denê temos a família Inuit-Yupik-Unangan (também conhecida como
Eskimó-Aleuta). Essa família abriga o conjunto de línguas mais setentrional do planeta. São línguas
são faladas no círculo polar ártico, Alasca, Ilhas Aleutas e nordeste da Ásia. A língua Unangan é a
única língua do ramo “Aleuta” da família, e é falada em dois dialetos ao longo do arquipélago das
Ilhas Aleutas. O ramo Inuit-Yupik se estende de Kamchatka, no nordeste da Ásia, até a Groenlândia,
indo além da América do Norte nos dois lados. As línguas se diferenciam formando um grande con-
tinuum dialetal (ver seção 3.1.1).
Similar a Na-Dené, a família Álgica abrange uma notável extensão geográfica, desde a costa
norte da Califórnia até a costa atlântica, e do subártico ao norte do México. Ela está dividida entre as
línguas pertencentes à sub-família Algonquina e as línguas da Califórnia Wiyot e Yurok. Por sua
vez, a enorme subfamília Algonquina se divide em um ramo oriental e um ramo central.
A família Uto-Azteca se estende do Oregon no noroeste dos EUA (Paiute do Norte) até a
América Central no sul (Pipil na Guatemala e El Salvador, Nicarao na Nicarágua), e de Oklahoma no
leste (Comanche) até a costa da Califórnia (Luiseño) no oeste. A família é geralmente dividida em
dois ramos, o do norte também conhecido como Númico, localizado nos EUA, e o ramo sul, locali-
zado desde o norte do México à Nicarágua, entre as quais encontramos as línguas Nawa ou Aztecas.
Apesar de mais numerosas, as línguas do ramo sul são menos divergentes do que as do ramo norte.
Já as línguas Salish estão localizadas na costa noroeste dos EUA e sudoeste do Canadá (Co-
lúmbia Britânica) até áreas do interior do oeste dos EUA, como Idaho e Montana. Somam cerca de
22 línguas e possuem uma diversificação interna notável. Elas estão divididas em três a cinco ramos
principais: Nuxalk (Bella Colla), Salish Central, Salish do Interior e outros ramos compostos por
linguistas adormecidas ou extintas.

176
A família Soux-Catawba possui a maior parte das línguas faladas nas planícies norte-ameri-
canas, bem como línguas localizadas no golfo do México e no litoral Atlântico dos EUA. Sua classi-
ficação reflete uma primeira divisão entre o ramo Catawba com apenas duas línguas, e a sub-família
Sioux com até três subdivisões internas em algo em terno de 15 línguas distintas.
A família Iroquês é divida em dois ramos: a língua Cherokee pertence ao ramo sul e as demais
ao ramo norte. A família deve seu nome a um subgrupo conhecido como “Iroque das Cinco Nações”,
que abarca as línguas Seneca, Cayuga, Oneida, Mohawk, Onondaga e Susquehannock.
Famílias Pequenas
Como vimos para a América do Sul, o grupo de famílias pequenas é ligeiramente mais números o,
com 14 agrupamentos genéticos na América do Norte, representando cerca de 15% das línguas dessa
região.

§ Caddo 5 línguas
§ Maidu 4 línguas
§ Tsimshi 4 ~ 3 línguas
§ Yokuts 3 línguas
§ Shasta 3 línguas
§ Kalapuya 3 línguas
§ Chinook 3 línguas
§ Yuki- 2 línguas
Wappo
§ Wintu 2 línguas
§ Palaihniha 2 línguas
§ Keres 3 ~ 2 línguas
§ Haida 2 línguas
§ Coosa 2 línguas
§ Chimaku 2 línguas
Figura 30: Famílias Pequenas da América do Norte

As línguas isoladas somam ao todo 23, o que corresponde a menos de 10% das línguas dessa região:
Isolados da América do Norte
§ Kutenai § Siuslaw
§ Beothuk § Takelma
§ Cayuse § Karok
§ Alsea-Yaquina § Chimariko

177
§ Yana
§ Washo
§ Salina
§ Esselen
§ Yuchi
§ Zuni
§ Natchez
§ Adai
§ Tunica
§ Atakapa
§ Chitimacha
§ Timucua
§ Tonkawa
§ Karankawa
§ Coahuilteco

178
Figura 31: Línguas Isoladas da América do Norte

Como também vimos para a América do Sul, a distribuição de família pequenas e línguas isoladas é
predominantemente no leste do continente. O delta do grande rio Mississipi e o Golfo do Méxcio
também concentram um bom número de línguas isoladas. Algumas das línguas isoladas e famílias
médias e pequenas na América do Norte foram agrupadas em famílias maiores, como Penutian e
Hokan, como veremos na seção 5.4.5.

5.3 Línguas Isoladas, inclassificáveis e não-atestadas


Até este ponto, vimos que uma língua isolada é uma língua sem qualquer língua irmã, ou, dito de
outra forma, é uma família linguística composta por apenas um membro (Campbell 2010, 2018).
Sabemos também que as Américas possuem 89 línguas isoladas, sendo 60 na América do Sul, 6 na
Mesoamérica e 23 na América do Norte. Numa comparação global, as Américas abrigam mais da
metade das línguas isoladas do mundo. Como vimos na seção anterior, as línguas isoladas na América
do Sul e do Norte ocupam regiões mais ao oeste do continente, à exceção do litoral Atlântico e do
Golfo do México, o que corresponde, em geral, em zonas de alta diversidade linguística. Por que
teríamos tantas línguas isoladas nas Américas? Na seção Error! Reference source not found., dis-
cutimos algumas razões históricas para isso. Uma hipótese sugere que muitos grupos permaneceram
isolados de outros povos por um longo período após uma rápida diversificação inicial. Outra hipótese
reforça o papel das extinções linguísticas a partir do período colonial. Independentemente dessas hi-
póteses, algo que podemos ter certeza é de que o alto número de línguas isoladas nas Américas é
resultado de uma combinação entre a falta de documentação existente sobre as línguas indígenas,
sobretudo as extintas e as isoladas, bem como a falta de estudos histórico-comparativos. Com relação
a esse último ponto, vejamos que algumas famílias pequenas foram estabelecidas pela identificação
de um parentesco genético entre famílias analisadas previamente como línguas isoladas, como Lule-
Vilela e Tikuna-Yuri-Carabayo (ver seção 4.3 para uma discussão sobre relações genéticas de longa
distância).
Fora da contagem de línguas isoladas, as Américas também possuem um alto número de lín-
guas inclassificáveis. São ao todo 65 delas para um total mundial de 121 no mundo todo (Glottolog_).
Essas seriam línguas para as quais possuímos pouquíssimos dados, insuficientes para que de fato
possamos compará-las a outras línguas. Vejamos, por exemplo, como Campbell (2023) comenta a
classificação da língua extinta Culle (Culli), outrora falada no Peru:
As fontes primárias da língua são duas listas de palavras, uma com 19 palavras, a outra de 43 palavras
(…). Em algumas classificações, Culle é considerada relacionada à família Cholon (…). Em outras, é
considerada uma língua isolada, embora talvez seja tão pouco documentada que deva ser relocada como
uma língua não-classificada.

179
Além de línguas inclassificáveis, temos também as línguas não-atestadas. Elas somam 33
línguas nas Américas em um total de 68 no mundo todo (Glottolog ). São línguas para as quais temos
informações culturais ou sociolinguísticas de que existiram, como relatos históricos que reportam que
seriam línguas distintas das faladas por povos vizinhos. O Nordeste brasileiro concentra cinco línguas
classificadas como não-atestadas: Tremembé no Ceará; Truká e Pankararé no rio São Francisco na
Bahia e em Pernambuco; Wasu e Wakoná em Alagoas. Essas línguas são tratadas como não-atestadas,
e não como isoladas.
Tendo esclarecido essas diferenças, voltemos para as línguas isoladas propriamente. Devemos
notar que nem todas as línguas isoladas são iguais desde um ponto de vista comparativo, diferenci-
ando-se em duas variáveis básicas: quanto à sua diversidade interna e quanto à sua semelhança a
línguas vizinhas na mesma região onde se encontram. Vejamos três casos ilustrativos: Trumai, falada
no Alto Xingu; Huave, falada na Mesoamérica; e Mapudungun-Huilliche, falada no Chile e Argen-
tina.

5.3.1 Diversidade Interna de línguas isoladas


Algumas línguas isoladas compostas por apenas um dialeto, enquanto outras possuem mais de um
dialeto, sendo por vezes difícil determinar se estamos diante de uma língua isolada ou de uma pequena
família composta por línguas muito próximas. A língua Trumai é falada por uma população pequena
e boa parte dos adultos e mais jovens já não mais falam a língua. Dessa forma, ela possui poucos
falantes, os quais estão localizados numa área restrita, e não apresenta variação dialeta à parte de uma
variação entre as gerações, que pode ter a ver com um processo de obsolescência linguística. O Tru-
mai é, portanto, uma língua isolada com pouca diversidade interna. Isso a contrasta com o Huave e o
Mapudungun-Huilliche.
A língua isolada Huave tem quatro dialetos principais falados na costa do Pacífico de Oaxaca,
México. Há inteligibilidade mútua entre os dialetos, embora falantes do dialeto de “San Francisco del
Mar” relatem que a inteligibilidade mútua com o dialeto de “San Mateo del Mar” requer exposição
significativa. Yuni Kim (2008:3) vê que a diferença entre San Mateo del Mar e as outras variedades
é talvez comparável àquela entre o sueco falado e o dinamarquês falado. Logo, ainda que se reconhe-
çam diferentes variedades, o Huave é considerado uma única língua. Estamos num terreno onde o
que é língua ou dialeto é muito tênue.
Muitas fontes tratam a língua Mapudungun como uma língua isolada, composta por vários
dialetos; outras fontes dividem esse contínuo dialetal em duas línguas, Mapudungun e Huilliche, cada
uma dessas línguas sendo compostas por subdialetos, muitos já extintos durante o período colonial.
Adelaar e Pache (2022) destacam que ainda é necessário avaliar sistematicamente a questão da inte-
ligibilidade mútua entre os letos em questão, e que por razões práticas para estudos comparativos não
haveria problema em se referir ao Mapudungun-Huilliche como uma única língua. Logo, vemos aqui
uma situações limítrofe entre língua vs. dialeto, e uma família pequena vs. uma língua isolada.

5.3.2 Perfil areal de línguas isoladas


Uma outra perspectiva comparativa importante sobre as línguas isoladas é seu perfil tipológico com
relação às línguas vizinhas. Muitas línguas isoladas são similares a outras línguas de sua região, mos-
trando que, apesar de serem línguas isoladas geneticamente, há nítida evidência de contatos e con-
vergência com línguas vizinhas. Esse é o caso da língua isolada Huave, especialmente semelhante
estruturalmente a línguas Maya, e perfeitamente integrada às características tipológicas que definem
a Mesoamérica como uma área linguística (Campbell et al. 1986; ver seção 6.3.2).
Outras já são mais diferentes das línguas vizinhas, o que pode implicar em pouco contato ou
uma interação linguística mais fraca e/ou recente. Os Trumai chegaram há poco tempo no Alto Xingu,
precedidos pelos grupos Aruák, Tupí e Karib. Apesar de terem se adaptado à cultura local e terem
adquiridos empréstimos de línguas da região, sua gramática apresenta um padrão sufixante e de mar-
cação do dependente em construções possessivas e de argumentos verbais. Isso seria diferente das
línguas Aruák, Karib e Tupí do Alto Xingu, e ilustra como o Trumai é uma língua isolada e tipologi-
camente mais distinta das suas línguas vizinhas.

180
Isso também vale para Mapudungun-Huilliche, que não apresenta uma relação particular-
mente estreita com as línguas do seu entorno imediato, mas possui ligações estruturais e lexicais com
línguas situadas em locais distantes do território Mapuche. Um caso relativamente claro é a presença
de formas lexicais com origem Aruák. Existem também várias semelhanças lexicais e paralelos es-
truturais entre o Mapudungun e as línguas andinas centrais, Quechua e Aymara, especialmente no
que diz respeito à maneira mais característica como os afixos são selecionados e usados nas flexões
verbais para a expressão dos argumentos do agente e do paciente do verbo. Adelaar e Pache (2022)
interpretam que houve uma migração recente dos falantes de Proto-Mapudungun-Huilliche, vindos
do norte, provavelmente do sopé Andino, e durante seu trajeto teriam adquirido diferentes camadas
de empréstimos e convergência estrutural com as línguas dos povos vizinhos de regiões onde passa-
ram.

5.4 Relações genéticas distantes


Como abordamos na seção 4.2, há algumas propostas que procuram relacionar geneticamente as fa-
mílias linguísticas grandes com outras médias ou pequenas. De certa forma, em retrospecto, as famí-
lias Tupi, Macro-Jê, Álgica, Otomangue, Pano-Takana, entre outras, são um caso de sucesso de de-
monstração de parentesco genético entre o que outrora foram consideradas diferentes famílias. Muitas
das famílias menores já foram objeto de hipóteses de agrupamentos genéticos com outras famílias,
como, por exemplo: Pukina, Guahibo, Txapakura com a família Aruák; a família Bororo, Kariri, Puri-
Coroado, Guató com a família Macro-Jê; a família Bora e Witoto (hipótese Bora-Witoto); Guaicurú
e Mataco; as famílias Kakua-Nukak e Naduhup (hipótese “Maku”). Vamos tratar nesta seção de al-
guns casos que, em particular, sugerem relações linguísticas temporalmente ainda mais profundas.
Começaremos por revisar a proposta da família Ameríndia de Joseph Greenberg, que não goza de
muita credibilidade entre os especialistas. Em seguida, focaremos em propostas mais criteriosas e que
têm ganhado credibilidade, podendo ser vistas como “promissoras”.

5.4.1 Família Ameríndia


A família Ameríndia agrupa numa única unidade filogenética todas as línguas indígenas (à exceção
das línguas Na-Denê e Inuit-Yupik-Unangan). Ela foi proposta por Joseph Greenberg em 1987 no
seu livro Language in the Americas e estudos subsequentes foram conduzidos por seu principal cola-
borador Merritt Ruhlen. Juntos, eles publicaram um dicionário etimológico da família Ameríndia. A
família Ameríndia seria dividida em duas grandes sub-famílias, uma abrigando todas as línguas da
América do Norte e Mesoamérica, outra abrangendo todas as línguas da América do Sul e a família
Chibcha na América Central. As famílias atuais, como Aruák, Tupí, Tukano, etc., aparecem como
ramos dentro de subgrupos das subfamílias. Greenberg adotou o chamado método de comparação
massiva que consiste numa comparação superficial de palavras de várias línguas ao mesmo tempo,
buscando semelhanças fonéticas e sendo bastante permissivo na variação semântica das palavras.
Esse método pode ser visto como etapa prévia antes da aplicação mais cautelosa do método Histórico-
Comparativo. Apesar de o méotodo utilizado ter obtido alguns resultados no mínimo intrigantes, os
dados nunca foram submetidos ao escrutínio do método Histórico-Comparativo, o que os inviabiliza
como provas de relações genéticas e os torna muito imprecisos para identificar se algumas das seme-
lhanças seriam resultados de contato ou uma eventual relação genética. No entanto, foram tantos
apontamentos de inconsistências nos dados e análises que a hipótese Ameríndia caiu por terra (ver
Campbell _ para uma abordagem sobre os principais problemas dessa hipótese).
Vejamos um caso de uma etimologia lexical Ameríndia. Trata-se de um conjunto de cognatos
restritos à subfamília Ameríndia do Sul. A palavra foi reconstruída com duas variantes *aq’wa ou
*uq’wa e se refere a ‘água’ (parece curioso que a reconstrução de uma das variantes é quase idêntica
ao Latim aqua, exceto que no Proto-Ameríndia seria uma consoante uvular ejetiva). Vejamos as for-
mas que seriam reflexos deste étimo na Tabela 45:
Tabela 45: Reflexos de *aq’wa / *uq’wa ‘água/beber’ do Proto-Ameríndio (Greenberg e Ruhlen
2013_)

181
Palavra Glosa Língua Palavra Glosa Língua
waka ‘água’ Yawanawa mapa-kuma ‘mel’ Yawalapiti
yako ‘água’ Quechua de Ayacucho kam-an ‘beber’ Tehuelche
ya ‘água’ Otomaco koa ‘beber’ Yanomam
oko ‘água’ Tukano ku ‘beber’ Bororo
oqo ‘engolir’ Aymara uk ‘beber’ Lule
kuna ‘beber’ Yukpa ɨ ‘água’ Guarani
kweri ‘rio’ Takana aʔi ‘chuva’ Muniche

Podemos ver como as palavras variam muito em seu conjunto, ainda que vagamente pode-se perceber
elos entre uma e outra forma. Porém, sem o rigor do método Histórico-Comparativo, a avaliação do
que é semelhante é muito subjetiva e pode ser enganosa ao proceder buscando semelhanças pontuais
de língua a língua, palavra a palavra. Um tanto de liberdade semântica permite também uma busca
mais livre pelo léxico das línguas. Vejamos que, neste caso, temos água, rio, mel, beber, engolir; em
outras etimologias, encontramos padrões mais dispersos como amargo, azedo, doce, apodrecer, ama-
durecer, baço, fel. Pode-se argumentar que há certa coerência semântica em alguns conjuntos de
supostos cognatos, mas o problema é a falta de rigor na análise fonética, que, somada a um tanto de
liberdade semântica, faze com que seja extremamente produtiva, mas quase aleatória a busca por
semelhanças superficiais. Se não considerarmos a correlação sistemática entre forma e sentido, se não
embasarmos os conjuntos de cognatos em correspondências sonoras, quase tudo é possível, mas nada
serve para demonstrar algo positivamente, pois o acaso tem mais chance de ser responsável pelas
semelhanças. Além da questão da latitude semântica e superficialidade das comparações fonéticas,
muitas das reconstruções que foram apresentadas ao Proto-Ameríndio são prováveis onomatopeias,
o que justificaria sua semelhança através de várias línguas, enquanto outras são empréstimos, algumas
delas tendo sido identificadas como “wanderwörten” ou palavras andarilhas.
A família Ameríndia é também supostamente apoiada pelo que seriam características gramati-
cais que para ele resistem a qualquer uma das críticas já apresentadas a seu trabalho e que não pode-
riam ter se difundido por relações de contato simplesmente. O caso em mente são os padrões conso-
nantais que marcariam os morfemas pronominais de várias línguas alegadamente “Ameríndias”. Es-
ses padrões seriam (Greenberg 1987, 1996: 143-147):
(5.1) Marcas Pessoais do suposto Proto-Ameríndio (Greenberg 1987, 1996)
§ n- ‘primeira pessoa’
§ m ‘segunda pessoa’
§ t- e/ou i- ‘terceira pessoa’

Muitas línguas indígenas americanas não têm a primeira pessoa n ou a segunda pessoa m, ou ambas.
O próprio Greenberg analisa que as línguas sul-americanas são caracterizadas por possuírem i ‘pri-
meira pessoa’, a ‘segunda pessoa’ e novamente i ‘terceira pessoa’. Além disso, muitas línguas indí-
genas não americanas possuem um ou ambos. Além disso, a proposta é frágil por consistir unicamente
de apenas um segmento para cada morfema, e todos são segmentos bastante frequentes nas línguas
do mundo. Certos sons, especialmente nasais, são esperados em morfemas gramaticais, particular-
mente em marcadores pronominais. As nasais, em particular, são encontradas em morfemas grama-
ticais precisamente porque são as consoantes mais perceptivelmente salientes. de todas as consoan-
tes.
Como vemos, a hipótese Ameríndia não pode ser defendida da maneira como foi demonstrada.
Apesar disso, como concede Adelaar (1989), algumas análises de Greenberg ainda precisam ser rea-
valiadas desde um ponto de vista do que elas poderiam representar em termos de contato ou até
mesmo de relações genéticas entre certas famílias menores e línguas isoladas.

182
5.4.2 Tupi–Karib e Tupi-Karib-Macro-Jê
Tupí, Karíb e Macro-Jê são três das quatro maiores famílias de línguas indígenas faladas no território
brasileiro. Há um bom tempo, aventam-se diferentes hipóteses sobre se e como estariam genetica-
mente relacionadas essas famílias. As mais duradouras e promissoras delas sendo a hipótese Tupi,
Macro-Jê e Karb (Davis 1968, Rodrigues 1985, 2000, 2009, 2010). Conhecidas como hipóteses Tupí-
Karíb e TuKajê, respectivamente, vamos analisá-las separadamente. Se comprovadas, estaríamos di-
ante de um agrupamento gigantesco, correspondendo a um terço das línguas da América do Sul e
ocupando metade de seu território.
Em seu trabalho de 1985, intitulado Evidence for Tupí-Carib relationships, Rodrigues fala de
relações por contato e por descendência comum desde uma mesma proto-língua. Rodrigues (1985)
compara as línguas Tupí Mundurukú, Tupinambá, Tuparí com as língus Karib Bakairí, Galibí
(Kariña), Hixkariana, Makuxí, Nahukwa, Taulipang, Wayana e Waiwai. Ele presenta 121 conjunto
de cognatos, incluindo 14 morfemas gramaticais, e extrai correspondências sonoras. Vejamos os
exemplos abaixo do Tupinambá e Taurepang (Rodrigues 1985 380-3).
Tabela 46: Palavras ilustrativos de um suposto Proto-Tupi-Karib (Rodrigues 1985 380-3)
Tupinambá Glosa Taurepang Glosa
amoy ‘avô’ amo-ko ‘avô’
tamoy ‘avô de alguém’ u-tamoy ‘meu avô’
para ‘rio grande’ paru ‘água, rio’
posɨy ‘pesado’ pɨsi ‘pesado’

Rodrigues também identifica diversos casos de contatos recentes e antigos entre línguas Karíb e Tupí,
o que dá maior peso às similaridades atribuídas a relações de contato, uma vez que as formas herdadas
desde a proto-língua são encontradas em diversas línguas de cada família, e não apenas entre línguas
geograficamente próximas o que seria mais o caso se as similaridades fossem decorrentes do contato.
Neste mesmo trabalho, Rodrigues (1985) ainda menciona similaridades lexicais e gramaticais
entre Tupí, Karíb e Macro-Jê. As semelhanças gramaticais se dão, sobretudo, sobre um jogo de pre-
fixos que marcam se o sujeito ou possuidor estão ou não no mesmo constituinte sintático do núcleo
verbal ou nominal. As similaridades entre Tupí e Macro-Jê são posteriormente apresentadas por Ro-
drigues (2009) – focando nos prefixos pessoais – e Cabral e Rodrigues (2010). Recentemente foram
revisitadas por Nikulin (2023), que propõe uma classificação mais enxuta das línguas Macro-Jê (_),
e apresenta novas reconstruções para Proto-Tupi e para o Proto-Macro-Jê. Vejamos os exemplos
abaixo extraídos do trabalho e Nikulin (2023):
(5.2) Palavras do Proto-Tupi e Proto-Macro-Jê que sustentariam a hipótese de relacionamento dis-
tante entre a família Tupí e Macro-Jê (Nikulin 2023)
carne
Proto-Macro-Jê *ĩt ~ *ñit : *ẽT ~ jẽT Proto-Tupi
Maxakali -yĩn : ẽn Mundurukú

fumaça
Proto-Macro-Jê *-ñĩjə̂k : *-jĩːK Proto-Tupi
Kaingáng nĩja : ȷĩ̃ ng Karitiana

pai
Proto-Macro-Jê *-jom : *-joP Proto-Tupi
Canela-Krahô -xũm ‘macho’: syp Karitiana

Como vemos, o trabalho de Nikulin parte da reconstrução de formas do Proto-Macro-Jê e Proto-Tupi,


para depois submeter as proto-formas à comparação. É o procedimento metodologicamente correto
sempre que possível. Nessa mesma linha, ainda que pareçam convincentes os dados até aqui

183
apresentados, a confirmação das hipóteses Tupí-Karíb e TuKaJê deverá esperar reconstruções lexicais
do Proto-Karib.

5.4.3 Quechumara
As famílias Quechua e Aymara dominam, hoje, a região dos Andes Central desde um ponto de vista
demográfico. Há muito se pensa que essas famílias podem estar relacionadas geneticamente numa
família que se chamou de Quechumara. Esse termo composto foi criado por Alden Mason (1950:196)
“para designar o subfilo ainda não comprovado, mas altamente provável, que consiste em Quechua e
Aymara”. Não há dúvida de que essas duas famílias linguísticas vizinhas são tipologicamente muito
semelhantes e compartilham um grande número de itens do vocabulário e padrões na fonologia, mor-
fologia e sintaxe. Também não há dúvida de que muito do que é compartilhado se deve a empréstimos,
particularmente intensos e de longa duração dada a proximidade goegráfica das duas famílias desde
os tempos de suas respectivas proto-línguas (Adelaar e Muysken 2004: 35). A questão que ainda se
coloca é se elas compartilham elementos que sejam evidência de uma origem comum ou não. Os
exemplos na _ ilustram algumas dessas similaridades no vocabulário básico. A opinião corrente de
muitos Andeanistas é que a grande quantidade de itens lexicais praticamente idênticos entre as duas
famílias seriam empréstimos em vez de cognatos (Cerrón-Palomino 1987, Adelaar e Muysken 2004,
Heggarty 2011, Emlen _). O fato de esses itens serem reconstruídos para as duas proto-línguas poderia
ser interpretado como emprástimos antes da diversificação das famílias.
Tabela 47: algumas formas semelhantes entre o Proto-Quechua e Proto-Aymara (Emlen a sair _)
Glosa Proto-Quechua Proto-Aymara
‘peixe’ *challwa *challwa
‘macio, suave’ *llampu *llamp’u
‘cem’ *paćhak *paćhaka
‘três’ *kimsa *kimsa

5.4.4 Maya–Mixe–Zoque
Desde o século XIX, linguistas têm investigado possíveis relações genéticas entre as famílias Maia e
Mixe-Zoque. São duas família proeminentes na conformação cultural e linguística da região Mesoa-
mérica. Como no caso Quechumara, essas duas famílias são faladas numa mesma região há milênios,
o que dificulta a diferenciação de similiraridades devidas a empréstimos ou herança em comum. Em
um artigo recente, David Mora-Marín (2016) usou o método Histórico-Comparativo para identificar
um conjunto de correspondências sonoras que ajudam a amadurecer tal hipótese. Mora-Marín foi
bastante criterioso com a seleção dos dados utilizados para evitar que as similaridades encontradas
pudessem ter sido resultado de contatos recentes ou mero acaso. Entre esses critérios, detacam-se:
§ ampla distribuição das formas dentro de cada uma das famílias linguísticas
§ isomorfismo semântico
§ correspondências biconsonantais.
§ palavras emprestadas foram usadas como controle no processo de identificação de correspondências
sonoras entre os cognatos potenciais.

Mora-Marín mostra que muitas correspondências consonantais exibem recorrência suficiente e pa-
drões distintos das correspondências em palavras emprestadas.
(5.3) Cognatos de uma suposta família Maya-Mixe-Zoque
Proto-Maia *meq’ ‘segurar nos braços’ *tʃiim ‘saco, ensacar’ *yuk ‘agitar’
Proto-Mixe-Zoque *meʔk ‘agarrar’ *sum ‘rede, coletar’ *yɨʔk ‘agitar’

Os métodos e resultados deste trabalho tornam a hipótese Maia–Mixe-Zoque bastante encorajadora,


mas Mora-Marín é cauteloso ao afirmar que, alternativamente, os dados podem ser interpretados

184
como evidência de um cenário de significativa difusão entre Proto-Maia e Proto-Mixe-Zoke, um re-
sultado que seria altamente significativo por si só.

5.4.5 Hokan
A hipótese da família Hokan foi inicialmente proposta por Dixon e Kroeber’s (1913a, 1913b) e agru-
pava seis famílias linguísticas da Califórnia: Karok, Shasta, Chimariko, Palaihniha, Pomo e Yana.
Outros linguistas estado-unidenses se engajaram com essa proposta, desde Edward Sapir e Mary Haas
a Terrence Kaufman, e ao longo do processo novos potenciais membros dessa família foram sendo
acrescentados, como Washo, Esselen, Salina, Yuman, Cochimí, Seri, Coahuilteco, Comecrudo, Te-
quistlateca, Jicaque. Em seu conjunto, a suposta família Hoka juntaria uma série de famílias médias,
pequenas e línguas isoladas num agrupamento genético com pouco mais de 30 línguas. A palavra
Hokan é inspirada em palavras semelhantes a hok ‘dois’ em algumas dessas línguas, como vemos nos
dados de Sapir (1920: 286):
Tabela 48: Cognatos da suposta família Hokan (Sapir 1920)
Glosa Chontal Seri Yuman Esselen Pomo Chimariko
dois oko (ka)xku-(m) havi-k xawo-k ko xoku
água aha ax aha asa-nax xa aka

Campbell (2023) analisa o estado atual da hipótese Hokan e identifica algumas evidências como frá-
geis uma vez que estariam baseadas em palavras bastante curtas, com distribuição limitada e irregular
entre as diferentes famílias, onomatopeias e empréstimos. Levando em consideração outras evidên-
cias, Campbell conclui que certamente algumas famílias devem ser descartadas dentro da hipótese
Hokan, mas há boas razões para se continuar investindo na investigação da relação genética entre as
possíveis línguas Hokan.

185
6 Contato Linguístico e as Línguas Indígenas

Neste capítulo focaremos no contato entre línguas e nos contextos multilíngues nas Américas. En-
quanto o Método Histórico-Comparativo fora especialmente desenvolvido para analisar informações
relativas à transmissão vertical ou descendência entre uma língua ancestral e suas línguas filhas, va-
mos agora tratar do fenômeno de transmissão horizontal ou difusão entre línguas e dialetos que estão
em contato. Começamos pelos processos de mudanças linguísticas que ocorrem devido ao contato –
como os empréstimos, interferência e divergências. Em seguida, vamos conhecer casos em que novas
línguas surgem das dinâmicas de contato, como pidgins, línguas mistas, etc. Passaremos então a uma
discussão sobre os diferentes tipos de regiões multilíngues, como as chamadas áreas etnográficas,
áreas linguísticas, entre outras. Concluímos com um resumo sobre os estudos de contato linguístico
em 11 regiões das Américas.

6.1 Mudanças pelo contato entre línguas


Toda mudança linguística envolve contato entre pessoas que falam idioletos, dialetos ou línguas dis-
tintas. A variação existente na fala individual e coletiva faz com que surjam novas formas de se “falar”
e essas passam a ser adotadas por outras pessoas a ponto de substituir formas anteriores. Há três tipos
principais de mudanças por contato: empréstimos, interferência e divergência. Numa situação de em-
préstimo, os falantes da língua recipiente são agentes e introduzem variantes de uma língua fonte,
adaptando-as à estrutura da língua recipiente. Numa situação de interferência, os falantes de uma
língua fonte são os agentes e transferem para a língua recipiente a nova variante. Na divergência, os
falantes de línguas em contato atuam para manter suas línguas diferentes a ponto de ocasionar mu-
danças que as tornam mais divergentes. Vejamos essas questões nas próximas seções.

6.1.1 Empréstimos linguísticos


Tipos de Empréstimos
Há dois tipos principais de empréstimos linguísticos: diretos e indiretos. Os empréstimos diretos se
referem à introdução de variantes lexicais, morfológicas, e fonéticas, enquanto os indiretos introdu-
zem estruturas e categorias semânticas, gramaticais e discursivas mais abstratas. Vejamos primeira-
mente o que são casos de empréstimos diretos. Boa parte dos empréstimos que conhecemos são lexi-
cais, tendo como objetos palavras inteiras com seus fonemas e morfemas. Sendo o léxico algo extre-
mamente sensível à cultura, é sempre possível compreender as motivações dos empréstimos lexicais
como resultado da necessidade de se nomear um novo conceito. Em geral, isso ocorre com conceitos
referentes a itens culturais novos, como vemos abaixo nos exemplos de empréstimos do português ao
Yanomae (família Yanomami; Gomez 2009):
(6.1) Empréstimos lexicais do português ao Yanomae (Gomez 2009)
Português Yanomae
bola > porá a
lata > rata a
colher > korea a
dinheiro > tiyẽyru a
agulha > aguya a
sandália > satarya kɨkɨ
perfume > serosi upë
estudar > esituta-mu

Nos exemplos acima, vemos como as palavras do português foram adaptadas fonológica e morfolo-
gicamente à língua Yanomae. Muitos sons foram substituídos para se adequarem à fonologia do Ya-
nomae, por exemplo b > r, l > r, lh > r, d > t. A terminação das palavras também se adequou à
morfologia Yanomae: os nomes recebem o clítico de número singular, sandália possui o clítico de
dual kɨkɨ (“par de sandálias”), perfume o clítico classificador para líquidos upë, e o verbod estudador

186
é acompanhado por um verbalizador. Como vemos, nesses processos, também conhecidos como na-
tivização ou acomodação, palavras são moldadas dentro dos padrões da língua recipiente.
No português, a introdução de diversos itens lexicais com sons previamente inexistentes na
nossa língua foi seguida geralmente de adaptação fonológica. Vejamos, por exemplo, as palavras de
origem Tupinambá que continham a vogal /ɨ/, grafada como < y > na literatura Tupi. Em alguns casos,
essa vogal foi adaptada a /i/, como em cipó de ysypó ‘cipó’; em outros, foi adaptada a /u/, como em
suçuarana (mesmo que onça-parda ou puma) de sywaçu-a-rana (veado-pêlo-parecido) ‘parecido à
pele de veado’. O melhor exemplo talvez seja buriti do Tupinambá mbyryti, em que temos as mudan-
ças y > u e y > i na mesma palavra (Dietrich e Noll 2010: 91-92).
Os empréstimos diretos podem também introduzir novos elementos fonológicos e morfossin-
táticos. Junto aos novos itens lexicais, podem ser interoduzidos novos sons ou padrões fonológicos.
Por exemplo, em Baniwa (família Arauák), o fonema /g/ apenas ocorre em poucos empréstimos, como
garapha [gaʐapʰa] ‘garrafa’ e Gile [giˈɽɛ] ‘Guilherme’ (Ramirez 2001: 89). Os empréstimos diretos
também podem se dar sobre elementos funcionais, como pronomes, conjunções, adposições, bem
como clíticos e afixos derivacionais ou mesmo flexionais. A língua Mawayana – como em geral as
línguas Aruák – possui formas para 1a, 2a e 3a pessoas no singular e plural, enquanto as línguas Karib
Waiwai e Tiriyó, como típico dessa família, possuem uma categoria adicional de 1a pessoa exclusivo
amna. Os falantes de Mawayana são bilíngues em Mawayana e numa língua Karib vizinha, usando
frequentemente Tiriyó e/ou Waiwai. Foi possivelmente nas conversas com interlocutores de línguas
Karib que os Mawayan passaram a usar a forma pronominal amna ‘1a pessoa exclusiva’, quando
então a importaram a sua língua, contrastando com o padrão de 1a pessoa plural anterior que então
passou a funcionar como 1a pessoa inclusiva (Carlin 2007: 320-2). Além dessa forma pronominal,
Carlin lista outras características gramaticais adquiridas pelo Mawayana em contato com seus vizi-
nhos Karib, como um morfema verba de modalidade frustrativa, tempo nominal, entre outros.
(6.2) Empréstimo pronominal em Mawayana (Carlin 2007)
amna saruuka
1.EXCL armadilha
‘nossa (exclusiva) armadilha’

wa-saruuka
1.PL.INC-armadilha
‘nossa (inclusiva) armadilha’

No português, há alguns exemplos de empréstimos de elementos funcionais de línguas indígenas.


Fala-se, por exemplo, de um formativo -açu ‘grande, aumentativo’ do Tupinambá -gwasú, -wasú
‘grande, importante’. Mas em português, os dicionários em geral registram palavras cujas bases são
Tupi, como em tamanduá-açu ‘espécie grande de tamanduá’. No entanto, também encontramos pa-
lavras como gato-açu variante regional para o felino conhecido como jaguatirica (Leopardus parda-
lis). Essas formas híbridas ocorrem também com o formativo mirim ‘pequeno’, como em abelha-
mirim para espécies de abelhas nativas do Brasil do gênero Trigona, ou o formativo rana ‘parecido
a’, como algodão-rana ‘planta amazônica da qual se extraem fibras têxteis” (Dietrich e Noll 2010:
94) e neta-rana ‘pessoa considerada como neta’ (Freire 2011).
Vejamos agora alguns exemplos de empréstimos indiretos. Os chamados decalques lexicais
são empréstimos indiretos na medida em que os falantes de uma língua recipiente copiam apenas a
estrutura semântica de palavras compostas ou morfologicamente complexas, traduzindo-as para lín-
gua recipiente. Vemos isso na palavra arranha-céu que tem como origem a palavra em inglês skys-
craper (sky ‘céu’, scraper ‘arranhador’). Em váris línguas essa mesma palavra foi emprestada indi-
retamente, ocasionando uma sério de traduções como rascacielos em Espanhol (rascar ‘arranhar’ e
cielos ‘céus’), gratte-ciel em Francês (gratter ‘arranhar’ e ciel ‘céu’). Esse tipo de empréstimo é típico
de relações de trocas linguísticas e culturais mais intensas, como a área linguística da Mesoamérica,
em que encontramos um conjunto de decalques de conceitos representativos da cultura da região,

187
compartilhados por línguas de diferentes famílias, como Maia, Mixe-Zoque, Otomangue, Uto-
Azteca, etc. Vejamos alguns exemplos abaixo:
(6.3) Decalques lexicais nas línguas da Mesoamérica (Campbell, Kaufman e Smith-Stark 1986)
jiboia = cobra-veado
porta = boca da casa
ovo = pedra-pássaro
joelho = cabeça-da-perna
cal = pedra-cinzas
pulso = mão-pescoço

Além da estrutura semântica das palavras, a estrutura morfossintática de sintagmas e orações também
são objetos de empréstimos indiretos. Um exemplo na família Românica tem a ver com o reposicio-
namento do artigo em Romeno, que deixou de ser pré-nominal (como em português o irmão) e passou
a ser pós nominal como em fratele ‘o irmão’. A ordem adotada pelo Romeno foi influenciada pela
ordem adotada nas demais línguas dos Balcãs (Albanês, Búlgaro, Croata, etc.).
No ramo Oriental da família Tukano, desenvolveu-se uma distinção entre posse inalienável e
alienável que parece ter sido devido a influências de línguas Aruák. Notemos inicialmente que a posse
inalienável e alienável parece ser algo quase universal a todas as línguas da família Aruák. Nas línguas
da família Tukano, no ramo que compreende as línguas Tukano Ocidentais não há uma distinção
entre posse alienável e posse inalienável, e a estratégia de justaposição é usada em todos os casos,
como vemos nos exemplos (4.74) para a língua Maih‹k̃ i. Porém, nas línguas Tukano Orientais existe
uma distinção entre posse alienável e inalienável, como mostrado em (4.84). Diante disso, Stenzel
sugere (_) que a evolução do sistema de posse nas línguas Tukano Oriental passou pelo empréstimo
indireto da categoria de posse alienável. Além disso, foi posteriormente ressaltado que morfemas que
marcam a posse alienável em línguas Tukano são etimologicamente relacionados a morfemas usados
em construções possessivas em línguas Aruák vizinhas às línguas Tukano Oriental (Chacon 2017).
Isso nos indicaria que o empréstimo direto e indireto de morfemas e categorias aconteceram de modo
conjunto.
Empréstimos diretos e indiretos podem também ocorrer no nível discursivo, em que as trocas
culturais entre diferentes povos influenciam gêneros discursivos e suas performances, comom vere-
mos na discussão sobre o O Alto Xingu e as Áreas Discursivas nas Terras Baixas da América do Sul
na seção 6.3.4.

Motivações Culturais para os Empréstimos Linguísticos


Os mecanismos de empréstimos linguísticos que vimos acima são motivados por razões sociais e
culturais que levam os falantes de uma língua A a adotar construções da língua B. Mas o que leva as
pessoas a realizarem esse tipo de mudança? Algumas teorias tradicionais procuram explicar os em-
préstimos por duas motivações básicas: necessidade ou prestígio. Por necessidade, entende-se situa-
ções em que haveria um item cultural novo ou diferente para o qual a língua não teria uma palavra,
de modo que teria a necessidade de adotar uma palavra da língua do povo de onde vem esse item
cultural. Os exemplos de empréstimos do português para o Yanomae são um exemplo disso. Em
tempos mais antigos, na Mesoamérica, e por outras motivações culturais, vemos empréstimos de uma
proto-língua da família Maia ao Proto-Xinka, cujo conteúdo semântico das palavras emprestadas re-
vela que a maior parte dos termos para agricultura em línguas Xinka vem de uma língua Maya. Isso
sugere que antes do contato com os Maya, os Xinka não tinham agricultura, e a adoção da agricultura
teria motivado os empréstimos linguísticos.
Em outros casos, sugere-se que os empréstimos ocorrem pelo prestígio que o uso de uma
palavra emprestada adquire frente ao uso da forma original. Uma forma emprestada por prestígio vai
criar variação e competição com a forma nativa, eventualmente a substituindo, ou convivendo lado a
lado. Por exemplo, é comum em línguas Amazônicas um sistema numeral de um a cinco. No entanto,
um número considerável de línguas da família Pano substituiu seus numerais de três a cinco pelos

188
numerais Quechua: kimisha “três”, chosko “quatro”, picha ‘cinco’ em Shipibo-Konibo, Kapanawa do
Tapiche, e Pano. Vejamos um caso mais familiar. Em português brasileiro temos as palavras tigela
(de origem latina), cumbuca (de origem Tupinambá) e bowl (de origem inglesa). É possível que as
três palavras tenham em algum momento entrado para nomear coisas percebidas como levemente
diferentes, mas agora elas são basicamente sinônimas. Elas revelam três camadas sobre a história e
cultura dos falantes de português: desde a origem latina, passando pelos contatos com o Tupi há cerca
de 500 anos e mais recentemente com o inglês.
Tabela 49: palavras emprestadas ao português pelo Tupinambá e que tinham formas alternativas de
origem românica
Tupinambá Empréstimo ao Português Palavra alternativa de origem românica
kuimbuka cumbuca tigela
ycypo cipó liana
kapi’i capim erva, relva, grama, pasto

Um problema com a teoria da necessidade é que os falantes de uma língua podem evitar os
empréstimos diretos ao criar vocábulos com morfemas de sua própria língua ou realizar empréstimos
indiretos. Por exemplo, se os portugueses realizaram muitos empréstimos diretos para itens da fauna,
flora e culinária Tupi (exemplos de empréstimos por necessidade, dado que os portugueses não co-
nheciam esses referentes), os espanhóis optaram muitas vezes por criar uma palavra nova em sua
língua: por exemplo, se os portugueses emprestaram a palavra tamanduá, em espanhol o mesmo bicho
foi nomeado como oso hormiguero, literalmente ‘urso formigueiro’. É, logo, possível que os emprés-
timos linguísticos assimilados ao espanhol e ao português falados na Europa seja diferentes seguindo
os diferentes perfis de colonização da América portuguesa e espanhola (ver, por exemplo, Sérgio
Buarque de Hoalanda _ e sua metáfora do semeador e o ladrilhado). Como vemos, não é apenas uma
questão de necessidade que determina como um novo item cultural será nomeado. Outros exemplo
deixará isso mais claro. Os Tupinambá nomearam o item cultural novo ‘chapéu’ por akangaoba que
quer dizer literalmente ‘vestimenta (aoba) da cabeça (akanga)’; séculos depois essa palavra caiu em
desuso e foi substituída pelo empréstimo direto xapewa. Isso segue mudanças históricas que trouxe-
ram maior prestígio e aumentaram os usos do português na colônia, ao mesmo tempo que as línguas
indígenas caíam em maior desprestígio e aumentava a coibição de seus usos (ver seção 2.2 e 6.2).

Direcionalidade e encadeamento de empréstimos


A direcionalidade dos empréstimos também pode nos informar sobre os tipos de relações sociais e
culturais por trás das relações de contatos linguísticos. Por exemplo, ao notarmos que não há emprés-
timos das línguas Xinka às línguas Maya, apenas o contrário, estamos diante de uma situação de
empréstimos unilaterais (A > B) Maya > Xinka. Isso revela que as línguas Maia, sendo as fontes dos
empréstimos, eram também social e culturalmente dominantes na relação com povos de língua Xinka
(Campbell _). Nem sempre a língua doadora de empréstimos, no entanto, está numa posição de maior
poder ou prestígio. Por exemplo, o Taíno emprestou diversas palavras ao espanhol nas poucas décadas
em que ainda foi falado depois da conquista (ver seção 1.4.3).
Em outras situações de contato, encontramos empréstimos bilaterais (A < > B) entre duas
línguas, o que não necessariamente quer dizer que a relação entre as línguas seja simétrica ou iguali-
tária. Por exemplo, Tupinambá e português emprestaram-se bilateralmente diversas palavras referen-
tes a novos elementos culturais para cada sociedade. A língua Tupinambá, ou mais especificamente
a Língua Geral Amazônica (ver seção 6.2.3), adotou uma série de palavras de vários domínios se-
mânticos, sobretudo elementos novos que os portugueses traziam da europa, como rimao ‘limão’,
aratara ‘altar’, papera ‘papel’, panéra ‘panela’, camixá ‘camisa’, pereiro ‘ferreiro’, surara ‘sol-
dado’, etc. (Santos e Cruz 2021). Assim, apesar de ter havido empréstimos entre ambas as línguas,
eles se deram por motivações e por regimes de relações sociais distintos dentro do Brasil colônia.
Algumas palavras do português foram retransmitidas para outros povos indígenas através da
Língua Geral Amazônia. Por exemplo, a palavra awi ‘agulha’ foi repassada para o Kariri awi no

189
Nordeste brasileiro, para outras línguas Tupi como Mundurukú awi e Juruna awi no rio Tapajós e
Xingu, línguas no Noroeste Amazônico como Baré ahui, Baniva awi e Puinave ahawi. Nesses em-
préstimos encontramos um padrão unilateral no formato um para muitos (A > B, C, D...), em que a
língua Tupinambá (e Língua Geral Amazônica) foi a única fonte de empréstimos para diversas outras
línguas.
Muitos itens que hoje fazem parte da cultura ocidental foram desenvolvidos inicialmente por
povos indígenas e difundidos no mundo após o início da colonização pelos europeus. A forma como
esses itens foram difundidos foi de um povo indígena para um povo colonizador que, então, difundiu
para outros povos no comércio mundial. Esse processo é conhecido como empréstimos encadeados
(A > B > C). Vejamos os exemplos a seguir com palavras originais do Nahuatl que foram difundidas
ao português e inglês por intermédio do espanhol.
(6.4) Empréstimos encadeados do Nahuatl ao espanhol e além
Nahuatl Espanhol Português Inglês
āwaka-tl37 > aguacate > abacate : avocado
tʃokolā-tl > chocolate > chocolate : chocolate
kakawa-tl > cacao > cacao : cacao, cocoa
toma-tl > tomate > tomate : tomato
xicalli > jícara > xícara : (não emprestou)
Quadro 16: Empréstimo em cadeia da palavra "chiclete" desde o Nahuatl
Um caso especial é a palavra chiclete que mostra umo encadeamento em que o inglês é uma fonte interme-
diária para o português, perfazendo a rota Nahuatl tzictli ‘goma da árvore de sapoti’ > Espanhol chicle >
Inglês chicle, chiclets > Português chiclete. A famosa marca estado-unidense cunhou o termo chiclets e foi
essa forma que nos deu o português chiclete (também chamado de ‘goma de mascar’).

Um caso emblemático que em tese combina empréstimos encadeados e de um para muitos


tem a ver com a história das galinhas nas Américas. Quando os espanhóis chegaram no território do
Império Inca em 1533 d.C, eles encontraram as galinhas como animais domésticos sendo criadas
pelos povos do Império Inca. A palavra atahuallpa [ataˈwalʲpa] ‘galinha’ em Quechua ilustra a ampla
esfera de influência Inca, em que formas derivadas de atahuallpa se encontram em uma vasta área,
desde a língua Mapudungun (achawall) no Chile, até a língua Nasa Yuwe (Páez) (atalʸuʔi) nos Andes
colombianos, bem como por toda área Amazônica ao longo do sopé andino – como em Yine (Aruák)
watawah, Kashibo-Kakataibo (Pano) atawali – até áreas do Noroeste Amazônico (como em Witoto
atáβa) (Nordensköld 1922: 32-46). Se a hipótese de que as galinhas foram introduzidas pelos euro-
peus estiver correta, então antes que os espanhóis alcançassem o Peru, elas foram difundidas pelas
redes de comércios dos povos ligando o Caribe (colonizado a partir 1492 AD) ou a costa brasileira
(colonizada a partir 1500 AD), até Cuzco, capital Inca. Nordensköld especula que as galinhas teriam
chegado a Cuzco pelo famoso caminho de Peabiru que ligaria o litoral Sudeste do Brasil com os
Andes Centrais, e que a palavra atahuallpa poderia ser um decalque de uma palavra de origem Gua-
raní uruguaçu ‘uru-grande’ (uru é o nome para o Odontophorus capueira do tamanho de uma codorna)

Palavras Andarilhas (Wanderwörten)


Empréstimos encadeados ou multilaterais mostram a extensão das redes de contatos indígenas e, no
caso especial de galinha, a manutenção dessas redes mesmo depois do início do período colonial.
Redes ou esferas de relações ainda mais amplas geograficamente, e profundas temporalmente, podem
ser inferidas também pelos étimos conhecidos como wanderwörten ou palavras andarilhas, que pos-
suem uma ampla extensão espacial, cruzando as fronteiras de grupos sociais, regiões multilíngues e
famílias linguísticas. Haynie et al. (2014) realizam um estudo desses tipos de empréstimos entre lín-
guas amazônicas, californianas e australianas. Na América do Norte, um dos étimos analisados por
Haynie e colegas é %pahmo ‘tabaco’, com uma origem em Yokuts e difundido para várias línguas do

37
O sufixo -tl correspondia ao artigo do sintagma nominal na língua Nahuatl.

190
oeste dos EUA como Mono, Shoshone (Uto-Azteca), Maidu, Miwok (Miwok-Costano) e Washo (iso-
lada). Na América do Sul, um dos étimos com maior extensão é %kumana ‘feijão’, que tem origem
em Proto-Tupí-Guaraní e se difundiu em para diversas línguas como Baniwa (Aruák) komána, Wai
Wai (Karib) kumasa, Puinave (isolada) kumana, Hodï (isolada) ka’nawa, Karapana (Tukano)
kũmãnã, Nadëb (Naduhup) kamaan.
Zamponi (2020) identifica duas grandes áreas nas Terras Baixas da América do Sul para as
quais corresponderiam dois étimos distintos para ‘onça’ %yawi e %yawar. O primeiro teria como
base geográfica o Noroeste do continente, seria reconstruível para o Proto-Japurá-Colômbia da famí-
lia Aruák, cujas línguas serviram como fontes para empréstimos a línguas vizinhas. O segundo teria
como base geográfica a ampla extensão da sub-família Tupí-Guaraní na Amazônia, seria reconstruí-
vel ao Proto-Tupí-Guaraní e difundido por empréstimos a línguas dentro da esfera de influências
Tupí. Vejamos o mapa da Figura 32.
Figura 32: distribuição de étimos de palavras andarilhas referentes a 'onça' segundo Zamponi (2017)

Há casos em que desconhecemos a origem etimológica de uma palavra andarilha, não conse-
guindo identificar uma língua ou proto-língua da qual teria se originado o empréstimo. Isso se deve,
muitas vezes, ao compartilhamento de certos elementos por proto-línguas faladas em épocas muito
antigas. A situação entre Proto-Quechua e Proto-Aymara que apresentamos na seção 5.4.3 é um
exemplo. Outro exemplo concerne a relação entre Proto-Tukano e uma proto-língua Aruák interme-
diária (ver discussão sobre a área do Uaupés na seção 6.3.4; bem como Chacon 2017, Cayón e Chacon
2022 para mais detalhes). Na Amazônia, Haynie et al. (2014) e depois Chacon 2017, Cayón e Chacon
2022 identificam algumas palavras andarilhas com uma fonte etimológica numa proto-língua incerta.
É o caso dos étimos para ‘milho’ que podem ser agrupados em dois conjuntos: um que ocorre numa
vasta área do Noroeste da América do Sul, incluindo línguas da família Chocó, Barbacoa, Chibcha,
Guahibo, Tukano, Witoto, Bora, Aruák – e outro compartilhado por línguas Aruák, Karib e Puinave
(isolada). Veja as formas reconstruídas abaixo:
(6.5) Étimos para milho sugerindo uma palavra andarilha com fonte independente de línguas Aruák
e Karib no Noroeste Amazônico (Cayón e Chacon 2022)
Étimo 1
*weeka Aruák (línguas Resígaro e Wainuma; Ramirez 2020: 87)
*weʔa Proto-TOc & Kubeo

191
*bedʒa Proto-Witoto
*peta Proto-Choco
*pia Awa-Pit (Barbacoa)
*hetsa Proto-Guahibo

Étimo 2
*kaʔnatʃi Proto-Karib (baseado em Meira e Franchetto _, Meira __)38
*kaanaSi Proto-Aruák (ramo Japurá-Colômbia; Ramirez 2020: 38)

Uma questão problemática que as palavras andarilhas e outros tipos de empréstimos para os quais
não temos evidência de sua origem etimológica trazem tem a ver com sua interpretação se seriam
evidências de um relacionamento genético entre as línguas ou se seriam características difundidas em
longas redes de contatos interétnicos ao longo dos tempos.

Tipos de empréstimos, grau de contato e bilinguismo


Os estudos tipológicos sobre empréstimos sugerem que há uma “hierarquia de emprestabilidade” na
qual itens lexicais são mais facilmente emprestáveis do que itens fonéticos e gramaticais. A partir
dessa noção, Thomason e Kaufman (_) propõem correlações entre os tipos de mudanças por contato
e um continuum relativo ao grau ou intensidade das relações sociais e culturais por trás do contato,
conforme ilustrado na Tabela 50.
Tabela 50: tipos de mudanças e grau de contato Thomason e Kaufman (_)

Por exemplo, se os empréstimos na língua Yanomae que vimos em _ se restringem apenas ao léxico
é, eles seguem ao modelo proposto em que haveria um baixo grau de bilinguismo em português dos
falantes de Yanomae, o que é verdadeiro. Já o empréstimo estrutural do pronome amna ‘nós (exclu-
sivo)’ em Mawayana teria ocorrido num tipo de contato mais frequente. Uma série de outros emprés-
timos gramaticais diretos e indiretos, como o desenvolvimento de marcação de tempo nominal e de
um marcador de modalidade frustrativa em verbos, no sugerem contato intenso, onde os Mawayana
seriam fluentes e usariam com frequência a língua doadora (Carlin 2007). No meio termo entre os
casos Yanomae e Mawayana, temos a situação do português e os empréstimos lexicais e morfológicos
Tupi, os quais também revelam algum grau de bilinguismo Tupi-Português por parte da sociedade
brasileira nos momentos iniciais de formação do país, porém menos intenso do que no caso dos Ma-
wayana.
Uma situação de contato mais intenso pode ser vista no caso da língua Kubeo (família
Tukáno), que adquiriu uma série de empréstimos lexicais e gramaticais, diretos e indiretos, de uma
língua Aruák (provavelmente de algum socioleto Baniwa-Koripako). Os empréstimos lexicais, em
particular, são marcados por itens de vários domínios semânticos do vocabulário cultural (como ter-
mos para a flora, fauna, parentesco, partículas discursivas, etc., como os ilustrados na Tabela 51 (ver
Chacon 2013). Eles são itens que normalmente esperaríamos equivalentes em Kubeo, o que sugere
que as formas nativas foram substituídas.

38
aːnai Tiriyó, nasɨnasɨ Hykariana, aʔnai Makuxi, keʔɲai Panaré, ana Kuikuro, *anaʒi Proto-Baikairi

192
Tabela 51: empréstimos Aruák em Kubeo (família Tukano) (Chacon 2013)
Glosa Kubeo Baniwa-Koripako
Inajá eçidi wetsiri
Chili sp. katutu katutu
Jibóia yurema dzoɺéema
Cunhado do mesmo sexo çima tsima
Demiurgo da Agricultura Kári Kaali

Além dos empréstimos lexicais, o Kubeo também realizou uma série de empréstimos gramaticais,
como um demonstrativo, reestruturação de seu sistema de classificação nominal e a marcação de
posse, cuja construção é homóloga à do Baniwa-Koripako, mas distinta das demais línguas Tukano,
como ilustrado abaixo (compare com os exemplo _)
6.6) Sintagma de Posse em Baniwa-Koripako Kubeo e Tukano (Chacon 2017)
Baniwa-Koripako Maria i-káapi
Kubeo Maria-i pɨrɨ
Tukano Maria amuka
Glosa ‘mão do Pedro’

Como podemos ver, o Kubeo possui um morfema de posse genérica de 3ª pessoa -i que possivelmente
é um empréstimo de um morfema como o do Baniwa-Koripako i-. A diferença entre ambos é que o
do Kubeo é um sufixo do possuidor e o do Baniwa-Koripako é um prefixo no nome possuído. Isso
parece ter sido parte de um processo de adaptação do empréstimo à gramática Kubeo, que tem um
perfil morfossintático de marcação de dependente, mais do que marcação de núcleo, como as línguas
Aruák (ver seção 4.6.1).
Podemos considerar as relações de contato como a do Kubeo como um caso de contato fre-
quente e intenso na escala de Thomason e Kaufman. Um tipo de situação mais intensa de empréstimos
é a convergência. Nesse tipo de situação, há um processo bi ou multilateral de empréstimos entre
duas ou mais línguas que resulta numa maior semelhança estrutural entre elas. Esse processo é típico
de áreas linguísticas (seção 6.3). Situações ainda mais intensas de contato, a ponto de haver uma forte
pressão cultural de um povo sobre o outro, ocasionando deslocamento linguísticos e mudanças por
interferência mais intensas estão na gênese de processos de línguas criouloulas, pidgnis e línguas
mistas (seção 6.2).

Empréstimo e Code-switching
Em certos contextos sociolinguísticos, falantes bilíngues podem usar as duas línguas de forma con-
junta numa dinâmica que ficou conhecida como code-switching ou alternância de códigoem que ele-
mentos de duas línguas coexistem dentro de uma mesma construção linguística, como uma frase ou
um sintagma. Tal situação é muito comum ao redor do globo e talvez seja mais famosa nos dias atuais
pelo que se veio a chamar de Spanglish, uma forma de se comunicar por falantes de origem Latina
nos EUA que são bilíngues em Espanhol e Inglês.
Vejamos agora um exemplo de code-switching envolvendo uma língua indígena. Na frase
abaixo, uma pessoa – cuja primeira língua é o Kubeo e o português é sua segunda língua – estava
participando em uma reunião comunitária com outros falantes de Kubeo. Em certo momento, ele diz
uma frase que começa em português e termina em Kubeo (os elementos da frase em português estão
em negrito).
(6.7) Code-switching e empréstimo em um discurso Kubeo
[para ele fica difícil] [kuinakɨ ‹̃ aula hí-du maha, mahina]?
para ele fica difícil um-MSC 3MSC aula dar-COND 1.PL.INC saber-NMZ.AN.PL
‘para ele fica difícil se for dar aula sozinho, sabem?’

193
A alternância de código ocorre dentro de uma mesma “linha de pensamento”, e de fato o trecho inicial
em português é a oração principal e a parte em Kubeo consiste na oração subordinada (seguida da
tag-question mahina ‘sabem?’). Vejamos que em grande medida conseguimos separar as línguas que
estão sendo alternadas em partes diferentes da sintaxe do período. No entanto, qual seria nossa inter-
pretação para a palavra aula que se encontra entre duas palavras Kubeo na oração subordinada? Es-
taríamos diante de um novo episódio de code-switching ou de um empréstimo? Nossa visão é de que
neste caso estamos diante de um empréstimo, pois a palavra aula vem encaixada numa posição pré-
nuclear típica da posição do objeto no sintagma verbal da língua Kubeo, e não do português. Vejamos
um caso em que isso fica mais claro:
(6.8) Empréstimo, mas não code-switching em um discurso Kubeo
apis-kakɨ ye bahu-re preocupa-be-bi escola-re
APIS-ORIGEM-MSC INDEF mesmo-NNOM preocupar-NEG-3MSC escola-NNOM
‘o APIS (agente indígena de saúde) não se preocupa com a escola’

Nesse caso, apesar de todas os itens lexicais serem do português, os itens funcionais são do Kubeo, o
que se manifesta na morfologia nominal e verbal, bem como na sintaxe da construção negativa refor-
çativa com o pronome indefinido e o sufixo verbal. Podemos interpretar esses casos como emprésti-
mos de itens lexicais inseridos nos moldes gramaticais Kubeo. O fato de essas frases terem sido pro-
feridas por uma mesma pessoa mostra que tanto empréstimos quanto code-switching podem ser vistos
como resultados de mudanças devido ao contato entre línguas. Porém, o code-switching implica um
nível mais alto de bilinguismo do que os empréstimos em geral.

6.1.2 Interferência
O processo de interferência se difere do empréstimo, primeiramente, por uma questão sociolinguís-
tica. Na interferência são os falantes da língua alvo que transferem propriedades para a língua fonte
e não o contrário. Isso ocorre, sobretudo, quando adultos aprendem uma segunda língua; ao usar essa
outra língua, os falantes da língua fonte transferem elementos de sua primeira língua para a língua
alvo. Um exemplo de interferência pode ser visto nas variedades vernáculas do português falado por
pessoas indígenas. Chacon (2007) documenta a seguinte frase proferida por uma senhora idosa cuja
primeira língua é o Tukano:
6.9) Interferência em português de falantes de Tukano como L1 (Chacon 2007)
Peduru matou dois paca: um homem e uma mulher
‘Pedro matou duas pacas: uma macho e uma fêmea’

Os elementos que estão sendo transferidos na frase em português da senhora Tukano são:
§ A restruturação do encontro consonantal dr, o que ocasionou a mudança de Pedro para Peduro
§ A falta de concordância de gênero no numeral dois paca, uma vez que em Tukano o plural não
distingue masculino e feminino, além de que semé paca é masculino em Tukano
§ A diferenciação do sexo de um substantivo epiceno usando as homem e mulher, um decalque Tu-
kano em que as palavras para macho e fêmea são as mesmas que para homem e mulher: ɨm`́ ‘homem,
macho’ e numió ‘mulher, fêmea’.

A depender de situações sociais, culturais e históricas, os elementos transferidos na fala dos adultos
aprendizes podem ser selecionados como norma e transmitidos para as novas gerações. Em geral, isso
é acompanhado por uma perda da transmissão da língua original, o que pode se dar de forma rápida
ou gradual, ocasionando em deslocamentos linguísticos. Nem todos os casos de deslocamentos im-
plicam em interferência linguística, especialmente se o grupo que estiver deslocando sua língua for
pequeno comparavelmente ao restante da população de falantes da língua alvo, ou se o processo de
deslocamento for lento e gradual, permitindo que gerações subsequentes aprendam língua alvo como
sua primeira língua e a partir de outros falantes nativos.

194
Nem toda interferência linguística implica em deslocamento. Vemos isso na relação de con-
tato em que falantes da língua Dâw (Naduhup) como primeira língua falam o Nheengatu (Tupí-Gua-
raní) como segundo língua. Finbow (2020) destaca alguns pontos gramaticais e diversos fonológicos
que diferenciam a forma como os Dâw falam o Nheengatu de como outros povos da região o utilizam.
Por exemplo, num ponto de vista fonológico, o Nheengatu Dâw não distingue sistematicamente entre
/s/ e /ʃ/, já que Dâw conhece apenas /ʃ/. Outro exemplo é a marcação de caso obrigatório de um objeto
direto que tenha um ser humano ou animal como seu referente, como ilustrado em _. O uso da marca
-rã corresponde a um padrão obrigatório em Dâw, enquanto seu uso não é obrigatório no Nheengatu
e historicamente as línguas Tupi-Guarani não exibem marcação diferencial do objeto.
6.10) Marcação Diferencial de Objeto no Nheengatu falado por pessoas que tem o Dâw como sua
L1 (Finbow 2020)
uarasu yandé-rã
levava nós-OBJETO
‘(ele) nos levava’

Em certos casos, a interferência de elementos inovadores da língua fonte coexiste com a con-
servação de elementos arcaicos da língua recipiente. Por exemplo, o povo Chané no norte da Argen-
tina falava uma língua Aruák antes de passar a falar Chiriguano (Tupí-Guaraní). Ao adotarem o Chi-
riguano, os Chané, por um lado, trouxeram muitos itens lexicais de origem Aruák, mas, por outro
lado, o Chiriguano por eles falado ainda mantem a oposição entre /gʷ/ e /w/, algo que foi perdido nas
demais variedades do Chiriguano não faladas pelos Chané (Dietrich 1986: 199-200).
Além disso, alguns linguistas vão argumentar que muitos elementos característicos das formas
vernaculares das línguas europeias nas Américas se devem a interferência de línguas indígenas e
línguas africanas. No Brasil, uma dessas hipóteses ficou conhecida como crioulização ou aprendiza-
gem irregular do português brasileiro (ver, por exemplo, Lucchesi 2015). Um caso intrigante é a
realização do fonema /r/ em final de sílaba como uma consoante retroflexa [ɻ] ou aproximante [ɹ], há
muito notada na zona do chamado “português caipira” em regiões de São Paulo, Paraná, Minas Gerais
e Centro Oeste, o qual teria se desenvolvido no contexto de contato com o Tupí Antigo e a Língua
Geral Paulista. Coincidência ou não, a mesma mudança afetou o espanhol paraguaio que se desen-
volveu em contato com o Guarani, outra língua Tupi.
Abordagens tradicionais da linguística histórica vão chamar de empréstimos por substrato e
por superstrato o que aqui chamamos de interferência associada a um deslocamento linguística. Es-
sas noções se baseiam na ideia de um povo deslocando-se no território para uma região já habitada
por um outro povo. A língua do povo autóctone pode ser referida como língua de substrato quando
ela influenciar por interferência a língua do povo dominante. Já a noção de superstrato se aplica à
língua do povo autóctone quando esse aprende a língua do povo alóctone e transfere para essa ele-
mentos de sua própria língua. Na história da língua portuguesa, sabemos que o Latim encontrou entre
os povos ibéricos um de seus substratos; já as línguas dos povos germânicos que dominaram a penín-
sula ibérica no final do Império Romano são referidas como língua de superstrato. Em todos os casos,
tanto as línguas dos povos ibéricos quanto germânicos, foram extintas nesse processo. Por outro lado,
a noção de adstrato não implica em deslocamento linguístico e se aproxima mais da nossa definição
de empréstimo.

6.1.3 Divergência e Manutenção (estabilidade)


O que ocorre mais comumente numa situação de contato linguístico são resultados como empréstimos
e interferências. No entanto, há diversos casos em que os falantes evitam os empréstimos ou o deslo-
camento linguístico, o que chamamos de uma estratégia de manutenção. A manutenção ou resistên-
cia a empréstimos se dá, sobretudo, com relação a empréstimos diretos. Uma das estratégias para se
resistir aos empréstimos é a criação de novas palavras com os elementos da própria língua. Assim,
em Tukano, tũrũ-pɨh•́ é o termo para ‘carro’, formado a partir da raiz tũrũ ‘rodar’ e o classificador

195
pɨh•́ usado para se referir a objetos ocos e tubulares. Outra forma se dá pela tradução de um termo,
como vimos para os decalques.
Outras duas estratégias são vistas nas línguas do Chaco que usam de metáforas e analogias
para seus neologismos. Primeiramente, elas contam com um sufixo derivacional que significa ‘seme-
lhante a’, usado para nomear seres e coisas de outras culturas, mas que possui um símile na cultura
indígena. Por exemplo, em Nivaclé (Mataco) taʃinʃ-tax é usado para a palavra para ‘cabra’, tendo
como base a palavra taʃinʃa referente ao animal nativo aoChaco, o ‘veado-catingueiro’ mais o sufixo
-tax ‘semelhante a’. Em outra estratégia, conceitos são trazidos pela extensão metafórica do signifi-
cado das palavras existentes, com em Nivaclé siwȏklȏk ‘aranha’ que foi estendido para significar
também ‘bicicleta’ e tukus ‘formiga’ para ‘soldado’.
Algo que vai diretamente contra o esperado normalmente de situações de contato é a diver-
gência. Isso é um processo normal para línguas que se separaram desde uma proto-língua e nunca
mais estiveram em contato. Porém, divergência como resultado do contato entre línguas é algo mais
raro de ser notado. Um padrão comumente encontrado é a situação em que os falantes consciente-
mente divergem ou evitam a convergência de características linguísticas que são social e cognitiva-
mente mais salientes (vocabulário e fonologia), mas “permitem” empréstimos ou convergência em
outros níveis menos conscientes (por exemplo, morfossintaxe) (cf. Silverstain 1981). Veremos três
casos a seguir: divergência em situação de empréstimo lexical, divergência em situação de conver-
gência estrutural e divergência após deslocamento linguístico.
Lyle Campbell e Verónica Grondona (_) reportam um caso extremo de divergência linguís-
tica mesmo sob intensa relação de contato entre três línguas indígenas, Nivaclé, Chorote e Wichí, na
localidade de Misión La Paz do Chaco argentino. Nesse local, os grupos praticam exogamia linguís-
tica, resultando em casais e famílias bilíngues. Nessas famílias, uma interação típica consiste em
cônjuges falando cada uma sua própria língua e ambos compreendendo a língua do outro. No entanto,
essas línguas passaram por mudanças que as tornaram estruturalmente mais diferentes umas das ou-
tras, ao invés de mais semelhantes como seria de se esperar em uma situação de contato tão intensa.
Por exemplo, enquanto todas as três possuem uma lateral alveolar desvozeada [ɬ] (um “l” em que não
vibramos as pregas vocais), o dialeto Iyo’wuhwa da língua Chorote está inovando de modo indepen-
dente ao pronunciar /ɬ/ como a sequência [xl] (em que a fase desvozeada e lateral se separam) ou
apenas [l] (sem o desvozeamento), como em xlop ou lop ‘ninho’.
A divergência tipicamente ocorre também depois de um deslocamento linguístico em que o
grupo que o grupo que adota a nova língua cria ou mantém certas propriedades que servem para
diferenciar seu jeito de falar do jeito que os falantes originais da língua falam. Vemos isso numa
relação que também envolve exogamia linguística entre os Taiwano e Barasana do rio Pirá-Paraná no
Noroeste Amazônico. Em tempos recentes, os Tawaiano passaram a falar a língua do povo com os
qual possuem fortes trocas matrimonias: o Barasano. As fronteiras linguísticas entre esses dois grupos
exogâmicas foram mantidas como diferenças socioletais, manifestadas, sobretudo, por diferenças le-
xicais e fonéticas. Desde um ponto de vista lexical, certas palavras do Taiwano não são encontradas
em todo os socioletos Barasano, como bohare ‘querer’ que tem como correspondente semântico
ãmore ‘querer’ no dialeto Hanerã dos Barasano (BLC 2013: 4). Desde um ponto de vista fonético,
encontramos um super interessante sistema de polaridade tonal que torna a melodia de cada palavra
categoricamente diferente e inconfundível para os falantes desses letos (Gomez-Imbert 1999). Veja-
mos os dados na Tabela 52:
Tabela 52: polaridade tonal entre Taiwano e Barasano (BLC 2013)
Taiwano Barasano
Glosa
Palavra Tom Subjacente Palavra Tom Subjacente
[ˈékàɾè] AB [ˈékáɾé] H ‘alimentar’
[ˈtíh‹]́ A [ˈtíh‹]̀ HL ‘neste momento’

Esses processos de divergência linguística podem ser encarados como parte de processos mais amplos
de manutenção e diferenciação cultural que discutimos na seção 2.4.7.

196
6.2 Línguas e letos de contatos
Nessa seção, vamos conhecer línguas que foram especialmente usadas nas relações de contatos inte-
rétnicos (ver capítulo 3 para outros tipos de letos especiais usados nos contatos entre povos). Elas
podem ser o resultado do surgimento de novas línguas ou da expansão dos usos sociais de uma língua
pré-existente. Com relação a esse segundo caso, vamos analisar na seção 6.2.3 as línguas francas
indígenas, como elas se expandem como uma segunda língua em contatos interétnicos assimétricos
– inclusive no período pré-colonial – e como se estabelecem como primeiras línguas e/ou são usadas
como instrumento da empresa colonial com status de línguas gerais.
Com relação ao surgimento de uma nova língua, desde um ponto de vista sociolinguístico,
esse processo está, em geral, atrelado à criação de novas situações comunicativas e/ou de novos gru-
pos sociais emergentes de relações interétnicas. Desde um ponto de vista linguístico, vemos a cons-
trução de um novo código com base em elementos das línguas que estão em contato. Como se trata
do surgimento de uma nova língua, não está claro para muitos autores se estamos diante de emprés-
timos ou interferências, nem se essas novas línguas poderiam ser classificadas geneticamente em uma
família linguística, uma vez que em tese não teriam não só uma, mas duas línguas mães (ver Thoma-
son and Kaufman __, Mufwene 199_).
Podemos separar dois grandes grupos de línguas e letos que surgem do contato: por um lado,
temos as línguas pidgin (ver seção 6.2.1), que se desenvolvem quando falantes de línguas em contato
têm um nível muito baixo de intercompreensão por não falarem um a língua do outro. Pidgins são
usados apenas como segunda língua pelas pessoas e possuem propriedades linguísticas resumidas a
elementos básicos cuja função comunicativa se limita a poucas formas de interações sociais, princi-
palmente o comércio. Por outro lado, no outro grupo, temos novas línguas de contato que se tornaram
a primeira língua de um grupo social, como as línguas mistas, koinés, crioulas e outras línguas
profundamente alteradas pelo contato (ver seção 6.2.3). Elas se assemelham desde um ponto de vista
linguístico ao mesclarem elementos das diferentes línguas. Elas se diferenciam, no entanto, em di-
versos parâmetros, como o número e o grau de proximidade estrutural das línguas envolvidas, o grau
de bilinguismo das pessoas de cada grupo social e, sobretudo, os tipos de relações sociais e identitárias
que estão em jogo. O mapa da Figura 33 localiza as principais situações de línguas e letos de contato
que serão apresentadas nesta seção.
Figura 33: Línguas de Contato Indígenas nas Américas

197
6.2.1 Pidgins e os letos mistos de contatos incipientes
Os primeiros contatos entre povos que não falam uma língua em comum são baseados, naturalmente,
no uso de diversos recursos não verbais, como expressões faciais, gestuais e uso de objetos. Vejamos
um relato diretamente da carta de Pero Vaz de Caminha, escrita como testemunha ocular da chegada
de Pedro Álvares Cabral na costa do Brasil. O trecho a seguir se refere a quando dois indígenas
subiram pela primeira vez à nau de Cabral:

“[U]m deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o
colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo
acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata. [...] Viu um deles
umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem [...]. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e
acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro
por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas
e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar.”

A ironia no trecho mostra como são frágeis essas formas de comunicação, às quais devem evoluir
rapidamente para o uso de uma língua em comum se melhores relações interétnicas deverão ser de-
senvolvidas.
Pedro Alvares Cabral trazia intérpretes (ou línguas como eram chamados) a bordo para usar
em regiões que os portugueses já haviam estado antes, como África e Índia, mas nenhum poderia lhe
ajudar com a língua Tupinambá dos indígenas que vieram a bordo. No entanto, Cabral deixou um
grupo de quatro portugueses na costa antes de partir. Esses viriam a se tornar os primeiros línguas da
costa brasileira ao aprender a língua e a cultura Tupinambá e intermediar as primeiras relações de
escambo. Houve também na história das Américas línguas que eram indígenas, indivíduos que pas-
saram a conviver com os colonizadores, aprenderam seus costumes e suas línguas. A personagem
mais famosa é certamente Malinche (ou Malitzin ou Doña Maria). Ela foi língua de Hernán Cortês,

198
bem como sua companheira e mãe de um de seus filhos. Ela aprendeu o espanhol quando então es-
crava das tropas de Cortês; além do espanhol, falava uma língua Maia e Nahuatl, tendo exercido um
papel fundamental na conquista do México pelos espanhóis.
A presença de alguns poucos indivíduos bilíngues nem sempre é possível ou suficiente para
intermediar as diferentes relações interétnicas, pois essas pessoas não podem estar em todos os mo-
mentos e lugares em que se darão as relações sociais. Por isso, em certas situações, tivemos o desen-
volvimento de pidgins como estratégias para comunicação entre indígenas e europeus. Um pidgin é
tradicionalmente visto como uma língua mínima de contato, usada, por exemplo, para facilitar o co-
mércio e contatos mais pontuais ou esporádicos, embora não seja a língua nativa de nenhum dos
grupos envolvidos. Em vez disso, um pidgin geralmente é baseado em uma versão simplificada de
uma das línguas, muitas vezes misturada com elementos da outra língua ou línguas numa situação de
contato. Uma questão que se coloca sobre os pidgins e outras línguas de contato é se estamos diante
de uma nova língua ou uma solução comunicativa emergente. Um pidgin enquanto uma língua de
contato possui um código verbal mais ou menos estável e replicável por diferentes pessoas e em
diferentes atos comunicativos. Já uma solução comunicativa emergente depende do momento, do
contexto, dos indivíduos, apresentando grande variação de seus códigos.
A formação de pidgins parece ter sido mais comum na América Norte do que na América
Latina. Os pidgins da América do Norte têm como línguas lexificadoras as línguas indígenas e tive-
ram origem, em geral, em situações de maior autonomia de sociedades indígenas em relações de
comércio marítimo ou terrestre com os europeus. Em certos casos, evoluíram como forma de comu-
nicação de comunidades formadas em torno de postos comerciais (Silverstein 1996: 136). O chamado
Pidgin Delaware foi um dos primeiros a surgirem no Novo Mundo, a partir 1620, devido aos inter-
câmbios entre indígenas Unami do rio Delaware (costa leste dos EUA) com comerciantes e colonos
holandeses, quando a população europeia era ainda bastante pequena. Posteriormente, o pidgin foi
expandido para comunicação com os ingleses e suecos. Quase todos os itens lexicais são do Unami
(Algonquina). A gramática simplificada não exibe influência europeia. Por exemplo, a ordem básica
de palavras OV (objeto-verbo) e construção negativa baseada em Delaware. Já não era mais falado
no século XIX (Goddard 1997).
Grande parte dos pidgins norte-americanos estava concentrada nas regiões comerciais e caíram
em desuso à medida que a população europeia aumentou. Poucos desses pidgins remontam a um uso
pré-colonial. Vejamos alguns dos principais no Quadro 17.
Quadro 17: Pidgins Indígenas na América do Norte (Campbell 2023)
Pidgins Inuit e Yupik: diversos pidgins foram formados ao longo da costa norte do Canadá e Groenlândia
com base nas línguas Inuit-Yupik (Eskimó) (ver van der Voort 1997, 2013).
Pidgin Basco-Algonquino: surgiu do contato entre baleeiros bascos e os povos algonquinos no Golfo de
São Lourenço e Estreito de Belle Isle na costa leste do Canadá.
Broken Oghibbeway (Broken Ojibwe): Durante a era do comércio de peles, uma forma pidgin da língua
Ojibwe (Álgica) foi usada como língua comercial nos vales dos rios Wisconsin e Mississippi ao norte do
meio-oeste dos EUA.
Jargão Mobiliano (também conhecido como Chickasaw–Choctaw língua de comércio, Yamá) foi um pid-
gin usado por grupos nativos americanos que viviam ao longo do Golfo do México e no atual estado de
Louisiana na época da colonização europeia da região. Era a principal língua usada entre Choctaw, Chi-
ckasaw, Apalachee, Alabama, Koasati (todos da família Muskogue); Atakapa, Chitimacha, Natchez, and
Tunica (todas línguas isoladas); Ofo and Biloxi (línguas Siouz); Caddo (família Caddo); falantes de algumas
línguas Algonquinas languages também de Inglês, Francês e Espanhol.
Broken Slavey: era um pidgin comercial usado por povos indígenas falantes de línguas Atabaska e europeus
na área do rio Yukon no Canadá durante o século XIX.
Jargão Loucheux (Jargon Loucheux): foi uma língua pidgin surgida do contato entre os Gwich'in (ante-
riormente chamados de "Loucheaux", falantes de línguas Atabaska) e franceses, usada historicamente em
Gwich'in Nành, Denendeh, no Canadá.
Chinook Wawa (ou Chinook Jargon): Chinook Wawa foi uma língua pidgin usada no noroeste do Pacífico
com base na língua Chinook. Ela se espalhou durante o século XIX a partir do baixo rio Columbia, primeiro

199
para outras áreas no estado de Oregon e Washington, depois na Colúmbia Britânica até partes do Alasca,
bem como norte da Califórnia, Idaho e Montana.
Jargão Haida: Em meados do século XIX, uma língua pidgin baseada na língua Haida foi usada nas ilhas
por falantes de Inglês, Haida, Tsimshi da Costa e Heiltsuk (Wakash).
Jargão Nootka: Nootka Jargon ou Nootka Lingo era uma forma pidginizada da língua Nuučaan̓uł (Nootka,
família Wakash), usada para fins comerciais pelos povos indígenas da costa noroeste do Pacífico.

Notemos que os nomes tradicionais desses pidgins às vezes trazem a palavra “jargão”. Usualmente,
usamos esse termo para nomear um estilo de fala típico de algumas profissões. No contexto de uma
língua de contato, podemos entender o termo jargão como sinônimo de pidgin. Como vemos, todos
parecem estar relacionados a atividades de comércio entre indígenas e europeus.
Nesse ponto, o Jargão Mobiliano pode ser uma exceção. Drechsel (1997) propõe que o Jar-
gão Mobiliano foi originalmente falado em situações de contato pré-coloniais. Ele observou que os
locais onde o Jargão Mobiliano era falado historicamente coincidiam com sítios arqueológicos da
civilização de Cahokia, os famosos construtores de terraços do Meio-Oeste norte-americano. Isso
sugere que o Jargão Mobiliano era uma língua comercial em Cahokia (1997: 292). Ele também ob-
servou que as línguas algonquianas centrais provavelmente tiveram um papel mais significativo no
léxico dessa língua comercial.
Na América do Sul, a política colonial e pós-colonial, pautadas pela cristianização e “integra-
ção” via dominação da mão de obra e dos territórios indígenas, não foram tão propícias à emergência
de línguas pidgins como na América do Norte, tendo sido mais relevante na ecologia linguística da
colonização o surgimento de línguas francas e gerais (seção 6.2). Não obstante, temos alguns casos
de pidgins sul-americanos reportados pela literatura.
A região das Guianas é marcada por diferentes línguas de contato formadas a partir da língua
Galibi (ou Kariña/Carib, família Karib). As línguas de contato que surgiram a partir do Galibi foram
a língua mista Kaliphuna, nas Pequenas Antilhas (Hoff 1995), e o pidgin Tiriyó-Ndyuka, usado para
a comunicação entre indígenas Karib, europeus e quilombolas na Guiana Francesa e Amapá. No Bra-
sil, esse pidgin é primariamente usado pelos falantes de Palikur (Nimuendaju 1926). Sua sintaxe é
essencialmente Karib (Tiriyó), enquanto seu léxico, pronomes, verbos e advérbios vêm também de
Ndyuka (uma variedade de Sranan Tongo) (cf. Huttar e Velantie 1997, Carlin e van Boven 2002: 24-
27, Meira e Muysken 2017). Com funções similares e também nas Guianas, o pidgin Wayana-Aluku
é reportado para um outro conjunto de populações também Karib (Wayana) e quilombola (Aluku).
No contexto brasileiro, os postos indígenas da FUNAI e polos bases de atendimento à saúde
indígena são contextos propícios para a emergência de novas línguas de contato. Se as primeiras
formas de comunicação com um povo indígena recém contactado são eminentemente gestuais
(quando não podem se dar pela língua de um outro grupo indígena, suficientemente próxima à do
grupo sendo contactado), com o tempo, as relações frequentes entre funcionários dos postos e/ou da
assistência à saúde passam a ser feitas por códigos verbais que representam formas muito rudimenta-
res do português e/ou de uma língua indígena, gerando uma simplificação da gramática de ambas as
línguas e empréstimos de itens do vocabulário da língua do outro. A simplificação da gramática de
ambas as línguas é feita tanto pelos falantes que a estão aprendendo como uma segunda língua quanto
pelos que são falantes falantes nativos de cada língua. Vejamos um exemplo de uma frase dita por
um indígena de recente contato Awá-Guajá (Tupí-Guaraní) para um servidor da saúde na Terra Indí-
gena _ no Maranhão (Marina Magalhães, comunicação pessoal 2023):
(6.11) Leto de contato Awá-Guajá e Português
Mimira tá cansado, cabeça doente.
‘meu filho está respirando com dificuldade e está com dor de cabeça’

Nessa frase, como explica Magalhães, um Awá se dirige ao servidor da saúde explicando que seu
filho está com dificuldade para respirar e com dor de cabeça. Em Guajá, ‘meu filho’ é ha=mɨmɨra,
mas na frase ele aparece simplificado gramaticalmente, sem o clítico que expressa o possuidor e com
o [ɨ] sendo substituído por [i], uma vez que [ɨ] não existe em português. Além disso, ‘estar cansado’

200
corresponde ao verbo Guajá ikarahə̃, que é polissêmico e significa ‘estar cansado’ depois de uma
atividade física, mas também é usado para se referir à dificuldade de respiração causada por asma ou
alguma doença respiratória. Já ‘cabeça doente’ é um decalque para o termo para dor de cabeça na
língua, que é resultante da incorporação do nome cabeça ao verbo ‘estar doente’. Os servidores da
saúde, apesar de não falarem a língua Guajá, aprenderam a falar rudimentos de Guajá a partir de
frases como essas, e utilizam esse leto na comunicação com os Guajá, reproduzindo o que aprende-
ram.
Na Terra Indígena Yanomami, outra região de indígenas de recente contato, interações entre
os Yanomami, funcionários da Funai, assistentes de saúde e garimpeiros fizeram surgir um leto de
contato que traz palavras de uma língua Yanomami com ampla utilização (como o Yanomamɨ), do
Nheengatu, formas vernaculares do português, bem como itens lexicais novos. Esses termos tendem
a ser aprendidos e reempregados por indígenas e não indígenas em suas relações inter-étnicas, e in-
cluem palavras como patamona ‘mulher idosa’ (do Yanomami pata ‘velho’ mo ‘causativo’ patamo
‘ficar velho’), xori ‘cunhado, amigo, camarada’, xap xap ‘caminhar’ (onomatopeia do barulho da
sandalha batendo nos pés ao caminhar), chinoca ‘garota’ (com origem no português gaucho para se
referir a esposas de vaqueiros), curumim ‘garoto’ (com origem em Nheengatu).
Em um contexto menos comum, encontramos um leto de contato surgido no contexto de posto
indígena entre duas línguas indígenas Akuntsu (Tupí) e Kanoê (isolado) em Rondônia. O chamado
pidgin Akuntsu-Kanoê (Crevels e Voort 2008: 156) é uma língua de contato usada pelos falantes
sobreviventes de Akuntsu e Kanoê depois que ambos foram quase dizimados e forçados a viver dentro
do mesmo território indígena no rio Omeré durante a década de 1980 (Aragon 2014:1-11). Akuntsú
é um exônimo que significa “estrangeiro”, usado pelos Kanoê e emprestado de Kwaza, outro isolado
linguístico da região (Aragon 2014: 8). Por estarem reduzidos a menos de 10 indivíduos, os falantes
de Akuntsu são os que mais procuram a comunicação com os Kanoê e para isso utilizam a gramática
da sua língua nativa com uma mistura de vocabulário que Kanoê e Akuntsu (Aragon comunicação
pessoal 2018).
Essas formas de comunicação que observamos nos postos e polos bases de saúde indígena
mostram a olhos nus os processos que estão na gênese de línguas como pidgins, o que procuramos
chamar de letos mistos em relações de contatos incipientes. É difícil precisar quando de fato temos
um código estável e compartilhado por diferentes indivíduos como se esperaria de uma língua pidgin,
ou se temos elementos menos estáveis, criados e recriados pelos falantes em cada ato comunicativo.
Talvez isso seja verdade para algumas das outras línguas listadas como pidgins na América do Norte
e alhures. Mithun (1999) nos fala que muitos dos chamados pidgins da América do Norte eram ver-
sões de línguas indígenas que os próprios indígenas se esforçavam para simplificar com esperança de
ajudar a intercompreensão. Isso é reminiscente à situação dos Awá-Guajá que vimos acima. No fundo,
o que vemos em todos esses casos, são formas de comunicação criadas como um terceiro tipo de
código linguístico, nunca usado internamente por um grupo social, mas usado para conectar diferentes
povos em relações interétnicas específicas, podendo ser vistos como uma espécie de acomodação
mútua diante do fato de que nenhum dos grupos sociais fala plenamente a língua do outro.

6.2.2 Mistas, Koinés, Crioulas e outras profundamente alteradas pelo contato


As línguas que vamos apresentar nessa seção são novas línguas que emergiram como parte de um
processo de etnogêneses – ou criação de novos grupos sociais – e como parte de um repertório lin-
guístico de comunidades que se relacionam na fronteira de diferentes grupos sociais. Diferentemente
dos pidgins, elas são línguas completas desde um ponto de vista estrutural e são usadas para diversas
formas de interações sociais. Elas se caracterizam por uma morfossintaxe e um léxico que mesclam
morfemas e construções inidentificáveis como originais de línguas distintas e incluem línguas que se
tornaram a primeira língua para vários indivíduos, bem como outras que são emergentes em intera-
ções entre indivíduos relativamente bilíngues. Nem sempre é fácil ou às vezes é impossível discernir
se temos o surgimento de uma nova língua ou uma profunda alteração por causa do contato de uma
língua pré-existente. Também não é fácil precisar se estamos diante de uma “língua” – enquanto um
código estável e replicável regularmente por diferentes indivíduos no espaço e no tempo – ou se

201
estamos diante de um código emergente em interações entre indivíduos relativamente bilíngues. Ve-
jamos alguns casos a seguir.
As línguas mistas se colocam num ponto extremo do continuum de línguas que abordamos
nessa seção por terem sido criadas por indivíduos com um alto grau de bilinguismo nas línguas em
contato. Como resultado, não temos necessariamente uma simplificação do léxico e gramática de uma
das línguas, mas sua fusão em um novo sistema linguístico que, em certa medida, pode ser mais
complexo do que o das línguas fontes. A maneira como esta fusão se manifesta varia de caso para
caso; são comuns línguas cuja maior parte do vocabulário venha de uma fonte e de outra fonte venha
a sua gramática, o que lhes dá o nome de línguas entrelaçadas. Por estar baseado num alto grau de
bilinguismo e resultar na criação de uma nova língua, acredita-se que o processo de formação de
línguas mistas seja raro e, também, dependente da construção de uma nova identidade social para
uma comunidade de fala bilíngue e que viva na interconexão entre dois polos socioculturais distintos.
Não obstante sua raridade, temos bons exemplos no contexto indígena das Américas.
Na América do Norte, dois exemplos bem conhecidos são o do Mednyj-Aleuta (ou Aleuta
de Copper Island) e Mitchif. Mednyj-Aleuta se desenvolveu na aldeia de Preobrazhenskoye na Ilha
de Cobre (Mednyj), Província de Kamchatka, Rússia. Os primeiros colonos da ilha no início do século
19 foram russos, logo seguidos pelos Aleutas trazidos da Ilha de Attu. Seu léxico, flexão nominal e
morfologia derivacional são derivados em grande parte da língua Aleuta, enquanto sua flexão verbal
e sintaxe são basicamente originárias do Russo. Em um vocabulário de cerca de 500 palavras, 94%
das raízes verbais são Aleutas e 61,5% dos nomes são Aleuta, o restante Russo, enquanto 68,5% dos
morfemas gramaticais eram russo, e o restante Aleuta (Mithun 2021a: 520-521). A língua tornou-se
recentemente adormecida nas últimas décadas (Campbell 2023).
Já o Mitchif teve origem a partir do final do séc. XVIII nas Planícies do Canadá e norte dos
EUA (Montana e Dakota) quando fora formada uma nova comunidade por mulheres indígenas e ho-
mens de origem francesa trabalhado para as grandes companhias europeias no comércio de peles.
Torna-se a primeira língua dos chamados Métis (“mestiços” em Francês, pessoas com origens mistas
entre indígena e europeia) e, em 1870, chega a ter 6.000 falantes entre os 12.000 habitantes de Mani-
toba, no Canadá. Os verbos da língua são, em geral, de origem Cree (família Álgica), enquanto os
nomes vêm do francês. Os morfemas gramaticais são de ambas as línguas. Vejamos os exemplos a
seguir, onde as palavras de origem francesa estão sublinhadas (Baker e Papen 1997).
(6.12) Orações em Mitchif mostrando as influências Cree (em itálico) e francesas (em negrito) (Baker
e Papen 1997).
a. ni-pakʷât-ên ʃi-le-caner-yân dans le temps pesant
1SG-odiar-3SGO COMP-o-enlatar-1SG.INF em o clima pesado
‘não gosto de enlatar num clima úmido’
b. ni-nitawêyiht-ânân une batterie kâ-le-charger-t
1SG-precisar-1PL.EXCL uma bateria REL-o-dar.carga-3SG.AN
‘precisamos de um carregador de bateria’

Nos Andes, Muysken (1980, 2013) analisa a Media Lengua que, como já diz o nome, é uma “língua
do meio” ou, mais propriamente, uma língua mista, formada a partir de uma variedade do Quechua e
Espanhol. Segundo Muysken, sua origem está numa comunidade que não se identificava completa-
mente com a cultura tradicional Quechua nem com a cultura urbana e ocidental associada à língua
espanhola. Devido à sua localização geográfica e ao acesso regular de seus falantes a Quito (capital
do Equador), a comunidade se diferenciou das áreas Quechua vizinhas, levando Muysken a concluir
que não eram as necessidades comunicativas que suscitaram o desenvolvimento de uma nova língua,
mas sim “necessidades expressivas” ou identitárias (Muysken 2013: 143-145). A Media Lengua não
é uma “gíria” ou “jargão” aprendido na fase adolescente ou adulta, mas é geralmente aprendida como
primeira língua antes mesmo do Quechua. Muysken (1980: 75) define a Media Lengua como “uma
forma de Quechua” com um vocabulário quase completamente derivado do espanhol, mas que em
grande medida preserva as estruturas sintáticas e semânticas do Quechua. Todas as palavras Quechua,

202
incluindo todo o vocabulário básico, foram substituídas pelo espanhol, mas adaptadas à fonologia e
morfologia Quechua. Vejamos o abaixo que mostra uma construção na Media Lengua em que a sin-
taxe os elementos gramaticais são em Quechua e os itens lexicais são em espanhol.
(6.13) Oração em Media Lengua mostrando as influências Quechua (em itálico) e espanhola (em
negrito) (Muysken 1980)
unu fabur-ta pidi-nga-bu bini-xu-ni
um favor-ACUSATIVO pedir-FN-BN vir-PR-1
‘venho para pedir um favor’

Também na região Andina da Bolívia, conforme discutimos na seção 3.2, a língua Callahuaya é um
leto secreto de pajés andinos com vocabulário principalmente vindo de Pukina, com morfossintaxe
Quechua e fonologia com elementos das duas línguas (Muysken 1997; Campbell 1997; Adelaar &
Muysken 2004). Stark (1972) nota que 70% das palavras de Callahuaya na lista de 200 palavras de
Swadesh são de Puquina, 14% de Quechua, 14% de Aymara e 2% de Uru-Chipaya. A razão para
essas diversas camadas de mesclas lexicais é que os pajés viajam muito para praticar sua profissão e,
no seu cotidiano, também falam Quechua, Aymara e Espanhol. No entanto, o Callahuaya não é apren-
dido como uma primeira língua; antes é um leto secreto, usado apenas para cerimônias de curas. Isso
a torna um leto bem diferente desde um ponto de vista sociolinguístico das línguas mistas que vimos
até aqui, pois todas são aprendidas como primeira língua.
Nas terras baixas da América do Sul, a região que vai desde o Caribe até as Guianas (hoje
compreendendo os países Suriname, Guiana, Guiana Francesa, bem como os estados do Amapá e
Roraima) teve o surgimento de muitas línguas de contato. Diferentemente de outras áreas, aí tivemos
um grande desenvolvimento de línguas crioulas, que são um tipo bem particular de línguas de con-
tato, surgidas nesse tipo de contexto colonial, onde uma grande população africana escravizada, fa-
lantes de diversas línguas da África, eram submetidas a um tipo de vida em que tinham de aprender
muito rapidamente e com poucos recursos a língua dominante de origem europeia no local onde vi-
viam e trabalhavam, enquanto, ao mesmo tempo, faziam parte de um grupo social segregado e com
identidades distintas da sociedade livre. Nesse sentido, nenhuma língua crioula se desenvolveu nos
contextos dos povos indígenas e sua relação com os colonizadores, nem mesmo as línguas gerais,
como discutiremos na seção 6.2.3. Isso não quer dizer que os povos indígenas não usem essas línguas,
nem que possa ter havido empréstimos de línguas indígenas a línguas crioulas. De fato, línguas cri-
oulas foram posteriormente aprendidas e usadas pelos povos indígenas como línguas francas em sua
comunicação com os não indígenas, como os Lokono (Aruák) que vêm utilizando mais a língua Sra-
nan Tongo, língua crioula surgida com base no Inglês no Suriname, do que sua língua Aruák original.
No lado brasileiro, os Galibi-Marworno tem como primeira língua o Kheuol do Uaçá, que é sua
forma nativizada do Kheuol – o crioulo de base francesa falado na Guiana Francesa e que funciona
como língua franca no Baixo Oiapoque. Os Galibi-Marworno formam uma população concentrada
no rio Uaçá e possuem uma origem étnica heterogênea, incluindo descendentes de povos falantes de
línguas Karib e Aruák, tais como Galibi, Maruane e Aruã, dentre outros povos não locais (ver Silva
2021; https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Galibi_Marworno).
Uma outra língua mista surgida na região do Caribe durante período colonial foi a língua
conhecida como “Caribe Insular” ou Iñeri, falada pelo povo Kalíphuna na ilha de Dominica e São
Vicente nas Pequenas Antilhas. Apesar do nome fazer associação à família Karib, ela é, na verdade,
pertencente à família Aruák. O que explica essa aparente contradição é que a língua Iñeri possui em
seu léxico um conjunto de palavras de origem Karib que identifica a fala masculina, enquanto o léxico
da fala feminina é de origem Aruák (Hoff 1994, Granberry e Vescelius 2004: 62 ). Iñeri é também a
língua ancestral do Garífuna, cujos fenômenos gênero-letais foram apresentados na seção3.2.2. A
formação do Iñeri ocorreu antes da chegada dos europeus, quando houve uma migração de povos
Karib falantes de Galibi (Kariña ou Caribe)39 para as Pequenas Antilhas, onde encontraram com

39
O nome da região do Caribe vem do etnônimo “Caribe” dado o entendimento dos espanhóis que os Caribe eram os
povos dominantes daquela área que ficaria conhecida como Mar do Caribe.

203
povos de língua Aruák, como os Taíno e falantes da língua ancestral ao Iñeri. Nas ilhas de Dominica
e São Vicente, mais precisamente, houve a formação de uma sociedade mista e segmentada por gê-
nero e etnia: os homens sendo Karib e as mulheres, Aruák. Isso levou à etnogênese dos chamados
Kalíphuna. Hoff (1994) especula que os elementos Karib na fala masculina tiveram origem quando
os homens Aruák fisicamente aptos da comunidade foram mortos ou expulsos, enquanto os homens
Karib tomavam seu lugar. Nesse processo, os Karib adotaram a língua Aruák, mas transferiram certos
elementos gramaticais e um léxico Karib. Apesar de falarem uma língua Aruák, sua organização so-
cial e suas práticas culturais foram analisadas como mais próximas das do povo Galibi de língua
Karib, do que dos Taíno ou Lokono, falantes de língua Aruák (Santos-Grandero 2002:40).
Algo similar ocorreu também com a chegada de falantes de Proto-Omagua-Kokama, uma
língua Tupí-Guaraní hipotética, ao Alto Solimões e rio Napo, uma região previamente não ocupada
por povos Tupí e que tinha uma posição geográfica privilegiada para controlar importantes rotas co-
merciais entre os Andes e a Amazônia nos tempos pré-colombianos (Torero 2002:104). Segundo
Cabral (1996, 2007, 2011), o léxico das línguas filhas Omagua e Kokama é em grande parte de
origem Tupí-Guaraní, mas há uma quase total ausência de características morfológicas e gramaticais
Tupí, havendo ainda uma série de mudanças fonológicas que são atípicas para línguas Tupí. A língua
também tem fenômenos gênero-letais, como aparente em seu sistema pronominal __; por exemplo,
os pronomes de primeira pessoa têm formas diferentes de acordo com a indexação de gênero do
falante: na fala masculina, a forma ta- ‘primeira pessoa singular (ego masculino)’ tem etimologia
incerta (quiçá reminiscente de uma língua Arawak Caribenha?), enquanto a forma da fala feminina é
tsa/etse ‘primeira pessoa singular (ego feminino)’ com origem Tupi-Guaraní (Rodrigues 1985b). Es-
ses fatos indicariam que o Proto-Omagua-Kokama teria sido profundamente modificado pelo contato
com as línguas locais, sobretudo línguas Aruák. Para Cabral, esses eventos foram rápidos e ocorreram
durante os primeiros séculos de colonização nos aldeamentos jesuítas na Amazônia peruana, onde
povos de diferentes línguas teriam sido submetidos a um aprendizado abrupto de Proto-Omagua-
Kokama, numa situação semelhante ao processo de crioulização (ou surgimento de línguas crioulas).
O’Hagan (2011) e Michael (2014) endossam a hipótese de Cabral em muitos pontos, mas também
revisam importantes documentos coloniais e argumentam que os falantes de Proto-Omagua-Kokama
não chegaram na região durante o período colonial, mas no período pré-colombiano. Além disso,
O’Hagan (2011) analisa novos dados advindos da morfologia verbal e argumenta que não houve um
processo de simplificação estrutural tão forte com aludido pela ideia de “crioulização” de Cabral.
Ainda que não conclusivas, essas novas perspectivas levantam a possibilidade de pensarmos em ce-
nários pré-coloniais que teriam levado à migração de grupos Tupí-Guaraní até ao Alto Solimões e
quais teriam sido o tipo de relações sociais criadas localmente que deram origem a línguas profunda-
mente alteradas pelo contato.
No Paraguai, o histórico dos contatos interétnicos por meio das línguas Guaraní e espanhol
forjaram um leto de contato conhecido como Jopará ou Guarañol. O uso da língua Guaraní por dife-
rentes povos indígenas, por uma ampla população mestiça e pelos criollos – i.e. os filhos de colonos
espanhóis nascidos na região – deu origem a uma nova língua que se caracteriza por ter um grau de
mistura de elementos gramaticais e lexicais tanto do Guaraní Paraguaio quanto do Espanhol, sendo
vulgarmente interpretado como um Guaraní “espanholizado” ou Espanhol “guaranizado” (Melià
1984). Essa realidade já havia sido observada no final do período colonial, como nota Bartolomeu
Melià na obra do jesuíta austríaco Martín Dobrizhoffer:
“Depois que os primeiros espanhóis tomaram posse desta província [...] eles se casaram com as filhas dos
habitantes [indígenas] [...] e como ocorrem quando as línguas são aprendidas sobretudo na maturidade
de uma pessoa, o espanhol corrompeu miseravelmente a língua indígena e o indígena, o espanhol. Assim
nasceu um terceiro, isto é, o que eles usam hoje” (Dobrizhoffer 1967: 149-50; original de 1784; citado por
Melià 2013).
A terceira língua de que fala o missionário Dobrizhoffer já em 1784 é o que hoje conhecemos por
Jopará (uma tradução da palavra “mescla, mistura” do Guaraní) ou Guarañol. Essa língua se situa
num ponto sociolinguístico intermediário entre o Guaraní Paraguaio associado com o ambiente rural
e tradicional, e o Espanhol Paraguaio associado com o ambiente urbano e moderno. Como análise

204
Melià (2013), o Jopará é o Guarani que historicamente foi hispanizado de forma assimétrica, paulatina
e setorialmente, até constituir um continuum bastante heterogêneo de padrões de misturas. Dessa
forma, ele é visto por Melià como um novo sistema, em que há fusão gramatical e nova estruturação
de repertórios linguísticos, com contribuições de uma língua e de outra, mas cuja quantidade de ter-
mos espanhóis ou Guarani está relacionada em proporção direta com o tema e outras questões prag-
máticas sobre o quê se está falando. Lustig (1996) fornece valiosos exemplos de como se fala o Jo-
pará, conforme ilustramos e comentamos abaixo.
(6.14) Oração em Jopará mostrando itens lexicais em espanhol (negrito) e Guarani (itálico) (Lustig
1996)
a. lavo gente rica ao
lavo gente rica roupa
‘lavo roupa de gente rica’

b. che výr-a inorant-a


eu tonta-F ignorante-F
‘eu sou uma tonta ignorante’

c. Che ofendé grati ete


eu ofendi grátis verdadeiro
‘me ofende por absolutamente nada’ p. 32

A sintaxe da oração do exemplo (6.14a) tem o verbo lavo seguido do objeto, o que se dá conforme o
espanhol. Porém, a sintaxe do sintagma nominal gente rica ao se dá em Guaraní, e o núcleo do sin-
tagma é um item lexical em Guaraní. No exemplo (6.14b), a oração consiste em um predicado atri-
butivo, sem cópula, como a sintaxe do Guaraní. O pronome che ‘eu’ e o adjetivo výra ‘tonta’ são
Guaraní; mas o adjetivo ingoranta ‘ingnorante’ é espanhol, bem como a marca de gênero feminino
que ocorre nos adjetivos, tanto o de origem Guaraní quanto o de origem espanhola. No exemplo
(6.14c), o pronome Guaraní che em função de objeto é o mesmo da função de sujeito na oração
anterior, o que não é o caso na gramátia do espanhol que segue um padrão Nominativo-Acusativo; o
verbo e o advérbio são de origem espanhola, mas o intensificador do advérbio ete é Guaraní.
A análise do Jopará enquanto uma nova língua, no entanto, não vem se controvérsias. Para
Wolf Dietrich, o Jopará é uma variante do Guaraní falado, um estilo de falar com baixo prestígio
social. Ele é usado por pessoas bilíngues em espanhol e Guaraní, e sua estrutura é mais próxima da
realidade do code-switching do que de uma nova língua mista (Dietrich 2010:40-41).
Algumas línguas são criadas a partir da contribuição de línguas bastante próximas ou mesmo
dialetos de uma mesma língua. Esse tipo de língua é chamado de koiné, definida como o resultado
da reestruturação de um novo leto a partir do contato de línguas e dialetos geneticamente e estrutu-
ralmente muito semelhantes (Mufwene 2001: 6). Quanto mais as línguas são próximas em seu léxico,
fonologia e gramática, mais facilmente seus falantes podem se compreender e manipular elementos
das diferentes línguas ou dialetos. Por exemplo, enquanto as línguas de contato que vimos na América
do Norte e do Sul vêm de famílias linguísticas diferentes, na Mesoamérica, as únicas duas línguas
mistas que são reportadas na literatura pertencem a subgrupos muito próximos na família Maya. A
língua conhecida como Kaqchikel–Kʼicheʼ ou Cauqué é falada na comunidade Santa María Cauqué,
na Guatemala. Ela é resultado da mistura entre duas línguas Maya muito próximas geneticamente:
Kaqchikel e Kʼicheʼ (Stevenson 1990). A outra língua Maya hipotetizada como língua mista é Tojo-
labal, falada no estado de Chiapas, México. Segundo Law (2014), essa língua combinaria elementos
de outra língua relativamente próxima, o Tsetal.
A koinetização pode resultar em mistura ou nivelamento de características linguísticas de cer-
tas variantes pertencentes a dialetos diferentes. Michael (2008: 230) menciona um leto usado por
jovens Nanti e Matsigenka (Aruák) ao se comunicarem via rádio amador que envolve a supressão de
grande parte dos aspectos fonéticos relativos à pronúncia de [k], [ts] e [tʃ] que na fala ordinária serve

205
para diferenciar os dialetos. Na formação de algumas línguas gerais sul-americanas, alguns autores
fazem referência a um processo que poderia ser interpretado como koinetização. Isso teria sido o
resultado dos aldeamentos religiosos que juntavam em certas regiões pessoas falantes de diferentes
variedades de uma língua indígena. Esse processo de koinetização, no entanto, se ocorreu de fato,
teria sido algo breve e/ou inicial, pois muito cedo as línguas gerais passaram a ser usadas como lín-
guas francas em aldeamentos contendo povos indígenas falantes de outras línguas, bem como por
populações fora das missões religiosas. Falaremos mais sobre esses processos na seguinte seção.

6.2.3 Francas e Gerais


As chamadas línguas francas são línguas usadas na comunicação entre grupos sociais cuja primeira
língua não é a mesma. Alguns linguistas empregam o termo língua franca para situações em que um
dos grupos aprende a língua de outro grupo para usá-la na comunicação entre ambos. Porém, uma
definição mais específica trata a língua franca como uma segunda língua para ambos os grupos soci-
ais, a qual é aprendida por ambos como uma segunda língua. Em geral, a língua usada como franca
está associada ao maior prestígio, poder, tamanho demográfico e origem geográfica de seus falantes.
Vejamos o caso da região do Alto Xingu, onde são faladas mais de dez línguas pertencentes
a cinco famílias linguísticas. Poucos especialistas acreditam que no passado existiu uma língua franca
para a comunicação interétnica. Porém, hoje, o português vem sendo crescentemente usado como
veículo de comunicação entre povos indígenas distintos e entre os povos indígenas e os “brancos”,
assumindo o papel de uma língua franca. Porém os grupos locais não fazem uso do Português na
comunicação entre seus membros, exceção feita ao Trumai, grupo em que as crianças já aprendem o
Português como primeira língua, de forma que o português coexiste com as línguas indígenas e com
as formas ritualísticas tradicionais de comunicação (Seki 2000: 43-44). O Português Xinguano, isto
é, a variedade de português usada pelos povos do Alto Xingu, traz marcas de interferência das línguas
nativas, desde itens lexicais à fonologia, gramática e semântica (_: 65). Vejamos um exemplo abaixo
a partir da fala de um indígena Kamayurá, seguida de uma paráfrase com elementos que são diferentes
da norma padrão destacados em negrito (_: 67):
(6.15) Português de contato Kamayurá no Alto Xingu
Quando nós casa otro tribo, tão eu convessa meu língua, né?
‘Quando nós nos casamos com uma pessoa de outra tribo, então eu converso com minha língua, não
é?’

Além disso, esse exemplo ilustra como as línguas francas se estabelecem com base numa
relação cultural e/ou política assimétrica. São os indígenas que aprendem português para poder falar
com não-indígenas e não o contrário, pois a língua usada na comunicação interétnica é, em geral, a
primeira língua falada pelo grupo social dominante. No caso do uso do português na comunicação
entre povos indígenas distintos, pode-se argumentar que as sociedades indígenas estariam evitando
uma assimetria entre si caso uma tivesse de escolher a primeira língua do outro povo. Porém, tal
prática parece não ter sido usada no passado. Logo, ela reforça, ao mesmo tempo, a assimetria geral
na relação entre povos indígenas e a sociedade brasileira falante de português.
Se as línguas europeias são usadas como línguas francas na comunicação com e entre dife-
rentes povos indígenas, isso nem sempre é ou foi o caso. Houve também o desenvolvimento de lín-
guas indígenas com estatuto de línguas francas, mesmo durante o período pré-colonial. Por exemplo,
na América do Norte, os primeiros exploradores encontram algumas línguas francas sendo usadas na
comunicação entre os diferentes povos indígenas, mas não está claro se seriam pré-coloniais, como
Creek (Muskogue), Catawba (Sioux), Hupa (Atabaska) e a língua de Sinais das Planícies (Mithun
1999: 322; ver também seção 3.3.4). Algumas delas foram usadas no período colonial pelo lucrativo
comércio de peles. Por exemplo, ainda no século XIX, línguas Algonquinas eram usadas como lín-
guas francas ao longo de 4 rotas comerciais que também abrangiam grupos indígenas falantes de
línguas da família Sioux e Atabaska (Mithun 1999: 322).

206
Nos Andes, a língua Quechua serviu como língua franca para a intercomunicação de grupos
etnolinguísticos distintos antes, durante e depois do império Inca (que durou de 1438 dC a 1531 dC)
(Torero 2002). Ao mesmo tempo, no sopé Andino, antes do período Inca, é possível que as línguas
Chicham pudessem ter funcionado como língua franca no comércio entre os Andes e a Amazônia
(Whitten 1975). Na Mesoamérica, temos evidência para o Nahuatl ter sido usado como língua franca
dentro e fora dos domínios do Império Azteca (Dakin 2003).
Na Amazônia, foi-se hipotetizado por diferentes autores que a expansão da família Aruák
poderia ter se dado em alguma medida pelo uso do Proto-Aruák como uma língua franca dentro de
extensas redes de comércios e alianças regionais e suprarregionais (_). Após o período colonial, sur-
giram algumas línguas francas locais. Em Rondônia, a língua Makurap (Tupí) se tornou uma língua
franca na região do Rio Branco durante o período da borracha (de 1870 dC a 1945 dC), quando então
era usada por vários outros grupos indígenas; hoje é falada como uma segunda língua apenas pelos
idosos Tupari e Aruá, enquanto o português é a atual língua franca da região (Lüpke et al. _;
https://pib.socioambiental.org/en/Popular:Tupari). Outro exemplo de língua franca pós-colonial na
Amazônia pode ser visto na região do rio Uaupés, em que observamos o desenvolvimento de três
línguas francas regionais: Makuna, Kubeo e Tukano. Por exemplo, já no final do século XIX, a língua
Tukano se tornava uma língua franca para a comunicação entre Tariano (Aruák) e seus aliados Tu-
kano (Koch-Grünberg 2005 [1909]). Durante o século XX, nas novas configurações territoriais em
grandes comunidades, internatos escolares e missões religiosas, o uso do Tukano se expandiu ainda
mais. Com o tempo, de língua franca passou a ser a primeira língua para outros grupos, como é o caso
de certos clãs Desano, Wa’ikhana (Pira-Tapuya), Arapaço, Tariano, entre outros que hoje falam ape-
nas Tukano. Hoje, ela segue sendo uma importante língua franca no rio Uaupés, ainda que em atrito
com o português.
No entanto, foi especialmente durante os primeiros séculos da colonização (XVI a XVIII) que
floresceram as grandes línguas francas indígenas na América Latina. As coroas de Portugal e Espanha
(unificadas de 1580 a 1640 a partir da coroação de Filipe II) não só eram favoráveis, mas impulsio-
naram a partir de políticas públicos o uso de certas línguas gerais para facilitar a administração po-
lítica e religiosa das coloniais. Por exemplo, já em 1580, Felipe II ordenou a criação de cátedras
universitárias de “línguas gerais” nas universidades já instaladas em Bogotá, Lima, Cidade do México
e Santo Domingo. As línguas gerais eram escolhidas por já terem uma grande população de falantes
nativos e, em alguns casos, por já servirem como línguas francas nas relações entre os povos indíge-
nas. Elas começam como primeira língua de um povo indígena, mas que, por força dos agentes colo-
niais, sobretudo missionários, foi expandida como a segunda língua de diferentes povos, passando,
inclusive, a ser usada em povoamentos coloniais fora dos domínios dos aldeamentos jesuíticos. Isso
não quer dizer que os missionários tenham criado essas línguas. Apesar de terem sido importantes
agentes para sua documentação em gramáticas e dicionários, seu ensino e sua expansão como língua
franca, as línguas gerais sempre foram línguas naturais regularmente transmitidas para novas gera-
ções de falantes nativos. De fato, para muitos povos, a língua geral passou a ser a sua primeira língua,
causando deslocamento linguístico. Ao mesmo tempo, fatalmente, nenhuma língua geral chegou a
adquirir o prestígio das línguas europeias. Essas, gradualmente, se expandiram à medida que aumen-
tava a migração europeia e africana, entrando em atrito com as línguas gerais.
Das dez principais línguas gerais do período colonial, três estão hoje extintas ou dormentes:
Pukina (extinta muito cedo no período colonial), Muisca (extinta durante o período colonial) e a Lín-
gua Geral Paulista (extinta em meados do século XIX). Outras duas estão gravemente ameaçadas: o
Chiquitano e o Nheengatu ou Língua Geral Amazônica. Outras quatro seguem ainda com um alto
número de falantes: o Nahuatl, o Quechua, o Guaraní, Mapudungun.
Na Mesoamérica, o Nahuatl (no México) era a primeira língua usada pelos Mexica, por seus
aliados que formavam a tríplice aliança que governava o que veio a ser chamado de Império Azteca,
por uma série de outros povos que pagavam tributos aos Aztecas. O Império Azteca cobria uma po-
pulação bastante multilíngue para quem o Nahuatl passou a ser usado como língua franca. Os espa-
nhóis aproveitaram-se desse status do Nahuatl e o usaram como uma língua geral. Sua principal obra
de referência – o dicionário Vocabulario en lengua castellana y mexicana y mexicana y castellana –

207
foi publicada em 1571 pelo Frei Alonso de Molina. Braarvig (2018) nos mostra como o Nahuatl se
expandiu como língua franca para regiões que os Aztecas nunca dominaram, tendo o Nahuatl chegado
originalmente uma língua comercial e, posteriormente, usada como língua geral pela administração
colonial espanhola e pelos missionários. Isso ocorreu, por exemplo, em Villa Alta, Oaxaca, onde se
falavam línguas Zapotec, Mixe e Chinantec como primeiras línguas e Nahuatl como segunda língua.
Zapotec e Nahuatl gozavam de maior prestígio e foram empregadas na escrita alfabética, traduzidos
em testemunhos orais e escritos, em negócios, registros legais e na evangelização. A elite Mixe usou
o Nahuatl como uma língua de prestígio para falar e escrever, já que não sabiam escrever sua própria
língua ou o espanhol. Hoje, depois de mais de 300 anos, Nahua (ou Nawa) é o descendente moderno
de Nahuatl. Embora tenha perdido seu status oficial e esteja cada vez mais restrito a comunidades
pequenas localizadas em áreas rurais e mais periféricas, ainda é passado para as gerações mais jovens
em muitos lugares e é uma das línguas indígenas com maior número de falantes nas Américas (cerca
de 1,5 milhão de pessoas somente no México, INEGI 2000).
Nos Andes, tivemos o Quechua como a principal língua geral. Suas primeiras obras de refe-
rência foram a gramática “Grammatica o Arte de la Lengua General de los Indios de los Reynos del
Peru” e o dicionário “Vocabulario de la lengua general de los Indios del Perú, llamada Quichua”
escritas pelo Frei Domingo de Santo Tomás em 1560. Supõe-se que a difusão inicial das línguas
Quechua pré-datem a chegada dos espanhóis. Ela estaria relacionada ao papel especial que o comércio
de longa distância adquiriu para muitos grupos locais na costa do Pacífico, nas terras altas e no sopé
dos Andes orientais, muito com base no papel proeminente de áreas como Pachacámac e Ica-Chincha
onde se falava Quechua originalmente (Torero 2002: 94-103). Os incas usavam uma variedade de
Quechua da cidade de Cuzco (seu centro de administração) como língua dominante de seu império,
mas tinham uma política linguística bastante flexível (Mannheim 2011), dominando sociedades que
falavam vários idiomas, como Mochica (isolado), Pukina (isolado) e Aru (Aymara), etc. Há também
fortes indícios de que os próprios Incas, ou seja, a elite da nobreza imperial, adotaram o Quechua
como uma língua franca e falavam uma língua “privada” entre si (Torero 2002: 141; Adelaar e Muys-
ken 2004: 178). Os espanhóis aproveitaram o uso da variedade Quechua de Cuzco como língua franca
no Império Inca, tendo ajudado a expandir ainda mais essa língua para lugares nunca dominados pelos
Incas. Durante o período colonial, o Quechua teve prestígio e atuou como língua oficial, continuando
a avançar como língua de contato em novas áreas. No entanto, o espanhol gradualmente suplantou os
usos sociais mais gerais do quíchua (Adelaar e Muysken 2004: 183). Hoje em dia, embora ainda
ganhe território nas áreas Aymara e amazônicas, as línguas Quechua sofrem cada vez mais com a
disseminação do espanhol.
A política de línguas gerais era flexível, no entanto, a ponto de adotar outras línguas gerais
em lugares onde havia outras línguas demograficamente dominantes. Por exemplo, em certas regiões
dos Andes onde o Quechua nunca chegou a ser dominante, foi incentivado o uso de outras línguas
gerais locais. No norte dos Andes, na Colômbia, o Muisca (Chibcha) era a língua geral. Nos Andes
Bolivianos, era o Aymara a principal língua geral, mas também o Pukina gozou temporariamente
desse status. No sul dos Andes, Mapundungun serviu de língua geral, uma vez que nem Quechua nem
Aymara eram falados nessa região (Adelaar e Muysken 2004: 3).
Nas Terras Baixas da América do Sul, as línguas gerais mais conhecidas são da família Tupí-
Guaraní, mas tivemos o uso do Chiquitano no leste da Bolívia. Seu caso é um exemplo paradigmático
de como seu uso como uma língua franca foi promovido por missionários jesuítas na região da Chi-
quitania, onde estabeleceram vários assentamentos missionários ou reducciones desde 1559 até sua
expulsão em 1767. A política jesuíta permitia que fossem criados assentamentos somente onde se
falava Chiquitano; com isso, grupos menores foram encorajados a se integrar ao grupo étnico Chi-
quitano, enquanto grupos maiores deveriam adotar o Chiquitano como uma segunda língua. Embora
deva ter havido um extenso multilinguismo nas reducciones da Chiquitania até o século XVIII, ne-
nhum vestígio das outras línguas sobreviveu no século XIX (Adelaar e Muysken 2004: 477). Hoje a
língua Chiquitano está gravemente em perigo.
No que hoje é o Brasil e o Paraguai, tivemos o desenvolvimento de pelo menos três línguas
gerais de base Tupí-Guaraní, formadas a partir das seguintes línguas em contato: o Tupi Austral e o

208
Português na capitania de São Vicente para a Língua Geral Paulista; o Tupinambá e o Português no
Grão-Pará e Maranhão para a Língua Geral Amazônica; e o Guaraní e Espanhol no Paraguai para o
Guaraní Paraguaio.40 Em seu trabalho clássico sobre o tema, Rodrigues (1996) discute a origem
sócio-histórica e as mudanças estruturais pelas quais passaram essas línguas gerais. Rodrigues argu-
menta que suas origens têm uma base comum nos intercasamentos entre homens europeus e mulheres
indígenas durante o tempo de formação dos primeiros núcleos populacionais coloniais nessas dife-
rentes localidades durante o século XVI e XVII. Esses núcleos tinham inicialmente uma estreita re-
lação com as comunidades indígenas locais, de modo que as línguas indígenas eram a primeira língua
das populações indígenas e mestiças, enquanto o português e espanhol tinham uma circulação extre-
mamente restrita entre os poucos colonos europeus. Apenas em um momento posterior, quando então
a expansão da sociedade colonial usa das línguas gerais como veículos de comunicação com outros
povos indígenas e africanos escravizados, é que vamos ter em alguns lugares uma maior massa de
pessoas que aprendem e usam a língua geral como uma segunda língua. Ao espanhol e português
sempre foram preservadas as situações de maior poder e prestígio nos principais centro coloniais,
sendo as línguas comumente escritas e usadas pela elite administrativa das colônias.
Em meados do século XVIII, teríamos uma ecologia linguística colonial semelhante através
das sociedades do Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, Paraguai, Grão-Pará e Maranhão. Essa ecologia
estava baseada na existência de três tipos de línguas que eram nativas a diferentes segmentos popu-
lacionais. No centro das sociedades coloniais, estavam as línguas gerais, cujos falantes eram a maio-
ria, e que era usada como língua franca entre os falantes de outras línguas. Na extremidade mais
dominante da sociedade, tínhamos as línguas europeias, com uma crescente, porém ainda reduzida
população de falantes. No outro extremo, estavam as línguas indígenas, tanto as que deram origem
às línguas gerais, quanto outras cujos falantes já viviam dentro do sistema de aldeamentos coloniais.
Nesses contextos, eles usavam uma língua geral como segunda língua, enquanto muitos passaram a
aprendê-las como sua primeira língua.
Ecologia Linguística Colonial
Línguas Indígenas Línguas Gerais Línguas Europeias
Guarani Guaraní Paraguaio Espanhol
Tupi Austral Língua Geral Paulista Português
Tupinambá
Demais línguas demo-
graficamente minoritá- Língua Geral Amazônica Português
rias nos assentamentos
coloniais

Essa configuração evoluiu no sentido de criar uma separação crescente entre a sociedade colonial e
as sociedades indígenas, por um lado, e um crescimento paulatino de falantes de línguas europeias,
por outro lado. Isso fez com que as línguas gerais se distanciassem cada vez mais das línguas indíge-
nas originais, apresentassem certos elementos de substrato de outras línguas indígenas e realizassem
inúmeros empréstimos ao português e ao espanhol. Rodrigues (1996) aponta um rol de mudanças nas
línguas gerais que atestariam como essas se tornaram paulatinamente mais semelhantes às línguas
europeias, entre elas podemos destacar:
§ Mudanças de ordem de palavras SOV para SVO
§ Redução do sistema de casos morfológicos nos nomes e pronomes
§ Desenvolvimento de um verbo “ter” em substituição à construção sem verbo possessivo, como no
Tupinambá sje r-uʔuβ mõkõj (eu duas flechas) ‘eu tenho duas flechas’

Os empréstimos lexicais do português à Língua Geral Amazônica documentados a longo dos séculos
sugerem que foi durante e após o século XVIII que se deu uma maior assimilação ao português,

40
Argolo (2016) argumenta que uma terceira língua geral no Brasil teria se desenvolvido no Sudoeste da Bahia ao longo
das capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, mas essa teria sido substituída pelo português no primeiro século da colonização.

209
vejamos alguns exemplos na Tabela 53 que compara o Tupinambá do século XVII com a Língua
Geral Amazônica nos séculos XVIII e XX.
Tabela 53: Mudanças Lexicais do Tupinambá ao Nheengatu (séculos XVII ao XX) (Rodrigues 1986:
104)c
Tupinambá Língua Geral Amazônica Nheengatu
século XVII século XVIII século XX
xirúra
aóba óba
do Port. ‘ceroula’
akangaóba akangaóba xapéwa
[literalmente ‘veste da cabeça’] do Port. ‘chapéu’
máia
sy mãia
do Port. ‘mãe’

6.16) Orações retiradas de catecismos que representam três fases da Língua Geral Amazônia através
dos séculos XVII, XVIII e XX (Rodrigues 2010: 41)
Século XVII
abá pe erima’é Tupã o-i-monháng-ypý ybý-pór-amo?
quem INT antigamente Deus 3PSUJ-3POBJ-fazer-primeiro terra-morador-como

Século XVIII
abá pe erima’ e Tupána o-monháng-ypý ybý-pór-a ráma?
quem INT antigamente Deus 3P-fazer-primeiro terra-morador para

Século XX
awá ta’á Tupána u-munhã kuxi’ íma iwí púra aráma?
quem INT Deus 3P-fazer antigamente terra morador para
‘Quem antigamente Deus criou primeiro como morador da terra?’

As principais diferenças notadas entre o século XVII e XVIII é a queda do prefixo de objeto i- na
morfologia verbal (o-i-monháng-ypý > o-monháng-ypý ‘ele o fez primeiro’) e a mudança na morfo-
logia nominal em que o caso “predicativo” deu lugar à posposição de finalidade rama, a qual requer
o caso nominativa -a no tema nominal ybý-pór ‘morador da terra’ (Rodrigues 2010: 42).
Como concluem Rodrigues e Cabral (2011), as mudanças sofridas pelas línguas gerais, como ilus-
trado pelos exemplos acima, ou mesmo pelo caso extremo do Jopará como leto derivado do Guaraní
Paraguaio (seção 6.2.2), foram graduais e ocorreram ao longo de pelo menos 300 anos. Embora tenha
sofrido interferências externas da língua portuguesa e de várias línguas indígenas, esse processo se
deu sem interrupção de sua transmissão enquanto primeira língua de uma grande população, o que
vai contra a afirmação de que as línguas gerais seriam línguas crioulas ou língua desenvolvidas pelos
missionários jesuítas do século XVII. Antes, são línguas francas que se estenderam por um amplo
território a serviço da empresa colonial, tornando-se a primeira língua para vários povos vivendo nos
aldeamentos e vilas coloniais.
Apesar de gozarem de situações análogas até meados do século XVIII, as três línguas gerais
de base Tupí-Guaraní tiveram destinos bem diferentes. No Brasil, se o século XVIII marca o apogeu
das línguas gerais, ao mesmo tempo, marca o início de seu declínio. Certamente o primeiro grande
impacto à vitalidade das línguas gerais brasileiras foi a queda da população indígena (ver capítulo 2),
especialmente os falantes de Tupí e Tupinambá. Junto a isso houve introdução de uma nova popula-
ção que não falava língua geral, sobretudo durante o ciclo do ouro em Minas Gerais (a partir de 1690)
que trouxe falantes de português do nordeste brasileiro e de Portugal, bem como um grande número
de africanos escravizados. Também significativo foi o Diretório Geral dos Índios de 1757, emitido
pelo Marquês de Pombal, que, entre outras coisas, determinava o uso do português em substituição

210
às línguas gerais na instrução e administração dos povos indígenas. Também tivemos a expulsão dos
jesuítas, que em muito contribuíam para o ensino das línguas gerais e sua difusão para outros povos
aldeados. Como resultado, a Língua Geral Paulista, se antes falada desde o estado de São Paulo a
Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná, deixou de ser falada já na primeira
metade do século XIX (__Holanda).
O declínio da Língua Geral Amazônica ocorre mais tarde, a partir da metade do século XIX.
Um dos principais fatores seria a diminuição drástica da população falante de Língua Geral em mea-
dos do século XIX devido à repressão da revolta da Cabanagem (1837 a 1838) e o recrutamento à
Guerra do Paraguai (1864 a 1870). Ambos tiveram como alvos principais os falantes de Língua Geral,
associados como a camada mais pobre da população neste tempo. Em cima disso, teve impacto deci-
sivo o primeiro grande desenvolvimento econômico regional representado pelo Ciclo da Borracha
(1870 a 1912), que trouxe muitos migrantes nordestinos e portugueses, que não falavam Língua Ge-
ral, para trabalhar na extração da seringa em áreas antes ocupadas por pessoas falantes de Língua
Geral (Freire _).
Com esses processos, a Língua Geral Amazônica deixou de ser falada gradualmente nos prin-
cipais centros urbanos da Amazônia, mas continuou uma inércia expansiva até meados do século XX
em regiões mais periféricas. No Alto Rio Negro, o Nheengatu chegou como Língua Geral durante o
período colonial na segunda metade do século XVIII. Mesmo após o fim da colonização, já conhecida
como Nheengatu, a língua seguiu sendo falada como língua franca. No período da borracha, e com a
renovação das missões religiosas coordenadas pelos Salesianos, seguiu sua tendência expansiva avan-
çando como língua franca em regiões e povos onde antes nunca houve povos Tupi. No Rio Negro,
Baixo Içana e no rio Xié, o Nheengatu passou de língua franca a primeira língua de povos falantes
originais de línguas Aruák, como os Baré, Baniwa-Koripako e Warekana. Para outros povos, no en-
tanto, ela permaneceu como língua franca e, nesse sentido, foi substituída pelo português nas gerações
mais recentes, como é o caso do povo Dâw (Finbow _; ver também seção 6.1.2).
Já o Guaraní Paraguaio (também conhecido como Avañe’e) teve uma trajetória um pouco dife-
rente. Ele se tornou língua cooficial no Paraguai, falada por cerca de 4,5 milhões de pessoas ou 77%
da população do Paraguai (Ethnologue _). O Guaraní Paraguaio se desenvolve no período colonial
tendo com área a bacia do Rio Paraguai e Uruguai, região que compreendia uma extensa diversidade
de grupos e dialetos Guaraní, bem como a “guaranização” ou assimilação de outras etnias. Nos alde-
amentos coloniais, muitos grupos Guaraní foram obrigados a se deslocar, realocar-se e formar novas
concentrações, o que contribuiu para criar uma língua mais uniforme e generalizada, na qual as par-
ticularidades tendiam a desaparecer (Melià 1983: 46), o que parece remontar a um processo de koi-
netização inicial. O processo colonial gerou duas realidades sociolinguísticas de modo que Meliá fala
de duas variedades do Guaraní Paraguaio: uma usada nas missões jesuíticas e outra nas vilas e alde-
amentos não religiosos. Ambas as variedades foram afetadas pelo contato com o espanhol e com
outras línguas indígenas, porém isso foi mais acentuado fora das missões. Apesar de nas missões o
Guaraní ter sido escrito e teve um status de língua quase padrão, o Guaraní nunca ganhou status oficial
nesse período, o que era reservado apenas ao espanhol, e não saiu do nível estritamente coloquial
(Meliá 1983). A independência trouxe esse status que faltava e, apesar de a Guerra do Paraguai (1864
a 1870) ter trazido uma grande perda populacional, os paraguaios mantiveram a língua Guarani como
símbolo de nacionalismo que os diferenciava de outras repúblicas vizinhas oficialmente monolingues
em espanhol ou português. O processo de urbanização no século XX marcou a história do Guaraní
Paraguaio com a acentuação dos hispanismos que já haviam começado nos contextos coloniais. Como
resultado, podemos argumentar que a realidade, hoje, do Guaraní no Paraguai corresponde a um con-
tinuum de diferentes letos que vão de um polo onde teríamos o Guaraní Paraguaio mais conservador
com relação àquele praticado no período das missões, tal como ele se manifesta na fala conservadora
de certas áreas rurais e na escrita; no outro polo, teríamos o Jopará como o leto mais profundamente
alterado pelo contato (ver seção 6.2.2).

6.3 Regiões Multilíngues e Linguística Areal

211
Nossa atenção agora se volta mais diretamente para as relações de contatos linguísticos em regiões
que concentram uma grande diversidade de línguas, famílias linguísticas e povos indígenas. Existem
diferentes maneiras para se descrever e explicar os fenômenos da diversidade micro e macrolinguís-
tica desde uma dimensão geolingüística ou “linguístico-areal”, triangulando com aspectos sociais,
culturais e históricos.
Um recorte a partir das áreas culturais se mostrou valiosos para que os linguistas desenvol-
vessem o conceito de área linguística, um tipo especial de região multilíngue onde ocorre difusão
multilateral de elementos estruturais da linguagem entre línguas geneticamente não aparentadas. São
comumente analisadas como áreas linguísticas nas Américas a região da Mesoamérica, a área do rio
Uaupés no Noroeste Amazônico, a região do Golfo ou Sudeste dos EUA, o norte da Califórnia e a
Costa Noroeste do Pacífico. As áreas linguísticas estão dentro de uma área cultural, mas nem toda
área cultural é ou contém uma área linguística. Isso ocorre porque para se formar uma área linguística,
precisamos não só de uma quantidade considerável de tempo e/ou intensidade nas trocas sociais e
culturais, mas formas específicas de bi ou multilinguismo nas sociedades. Logo, além de ser um tipo
de região multilíngue específica, é também um tipo de área etnográfica específica, onde as trocas
linguísticas fazem parte das trocas culturais de um modo mais intenso e coeso do que em outras áreas.
Existem várias propostas de “áreas linguísticas” com base na difusão linguística e cultural, mas nem
todas elas conformam a uma definição estrita deste conceito (ver Quadro 18). Isso não as torna menos
interessantes, apenas requerem um outro modelo de linguística areal.
Quadro 18: Definição de uma área linguística ideal
§ Difusão de elementos estruturais e não apenas lexicais ou discursivos
§ Difusão multilateral através de pelo menos 3 línguas
§ As línguas não podem ser filogeneticamente relacionadas (ou devem relacionadas em ramos dis-
tantes de suas famílias linguísticas)
§ A difusão deve formar um núcleo duro de características tipológicas compartilhadas por todas ou
quase todas as línguas
§ As línguas fora da área não devem compartilhar as mesmas características, ou compartilhar em
menor grau do que as línguas dentro da área
(Campbell 2017; Aikhenvald 2022)

Campbell (2017) nota que uma área linguística é definida com base na difusão de elementos
estruturais, ou seja, empréstimos de morfemas gramaticais, de construções morfossintáticas e padrões
semânticos mais abstratos. Normalmente as áreas linguísticas apresentam um alto grau de difusão
lexical, uma vez que empréstimo estrutural e lexical andam juntos nas relações de contato, mas exis-
tem certas regiões que apresentam empréstimos estruturais com baixas taxas de empréstimos lexicais.
Nesse sentido, regiões multilíngues caracterizadas apenas pela difusão lexical (como áreas das cha-
madas palavras andarilhas), ou discursivas (como no Alto Xingu) não são propriamente áreas linguís-
ticas.
O segundo e terceiro pontos indicam que a área linguística precisa ser diversa em número de
línguas e famílias linguísticas, o que em geral caracteriza as zonas de acreação de Nichols (ver seção
6.3.1). As características linguísticas difundidas precisam ser multilaterais, abarcando ao menos três
línguas, tendo diferentes línguas doadoras e receptoras. Por isso, contatos bilaterais ou regiões mul-
tilíngues marcadas por empréstimos com direcionalidade de uma língua para várias outras, em que
uma língua é a grande doadora, não são consideradas uma área linguística propriamente. Além disso,
as características precisam ter se difundido por contato e não por herança genética. Nesse sentido, as
línguas não podem ser geneticamente relacionadas, ou ao menos devem ser parentes distantes. Logo,
regiões identificadas com o predomínio de uma família linguística em particular não são áreas lin-
guísticas estritamente, sendo mais como zonas de dispersão (Nichols _). É nesse sentido que para a
ecologia linguística dos Andes, marcada por áreas e períodos de predomínio de uma língua extensa
como o Quechua, é que Adelaar and Muysken (2004) falam de “esferas culturais” como “zonas que
em diferentes momentos funcionaram como unidades” (ver 6.3.6).

212
O quarto e quinto pontos lidam com a caracterização interna e a delimitação externa das áreas
linguísticas. Os elementos compartilhados não devem ser demasiadamente restritos a poucas línguas
e subáreas, ou demasiadamente difundidos para fora da área. Algumas áreas possuem considerável
difusão, mas as características parecem estar distribuídas de forma menos coesa entre as línguas in-
ternas, e dispersas para outras línguas externas à área. Devemos também notar que não há consenso
sobre a quantidade de empréstimos necessários para se definir uma área linguística. Não é necessário
que todas as características areais sejam compartilhadas por todas as línguas da área linguística. Por
isso, os linguistas diferenciam as áreas linguísticas como fracas e fortes com base na quantidade e
complexidade dos empréstimos, sua distribuição em todas ou apenas algumas línguas, o número de
línguas e famílias linguísticas envolvidas, o grau de bi ou plurilinguismo dos indivíduos, e a antigui-
dade relativa de uma área.
Sem fronteiras claras, não podemos delimitar uma área linguística. Por isso, Campbell (2017)
propõe o conceito de área de traços difusos para dar conta de regiões em que se atesta a difusão de
empréstimos que não estão coesos dentro de uma área geográfica, mas mostram vínculos variados
com línguas e regiões fora e dentro de uma área. Regiões que se enquadram neste tipo de perspectiva
areal são: a região do Chaco, a região do Guaporé-Mamoré na Amazônia Meridional, e o Sudoeste
da América do Norte. Aikhenvald propõe o conceito de language area ou “área de língua” para dar
conta de difusão linguística na Amazônia como um todo. A linguística areal avançou no sentido de
nos permitir uma abordagem mais flexível, onde o foco não está mais na delimitação das fronteiras
de uma área, mas, sim, nos fenômenos linguísticos e culturais em si e os sistemas de trocas que per-
mitem sua difusão. A delimitação da área nessa abordagem é secundária e emerge como resultado do
método de linguística areal utilizado. Nesse sentido, a investigação da tipologia areal (Dahl 2001)
em amplas áreas das Américas têm nos ajudado a expandir nossos horizontes temporais e espaciais
na pesquisa sobre a história das línguas indígenas (ver 6.3.7).
A seguir, exploraremos as regiões multilíngues das Américas a partir de diferentes recortes
espaciais. Começaremos como panorama das regiões ao explorar as grandes áreas etnográficas como
regiões multilíngues e com alta diversidade de famílias linguísticas. Em seguida, exploraremos áreas
mais específicas, começando pelas áreas linguísticas e ampliando o escopo para áreas de difusão mais
amplas.

6.3.1 Áreas Etnográficas como Regiões Multilíngues


Conforme ilustramos no mapa da Figura 34, quase todas as grandes áreas etnográficas das Américas
são regiões com diversas línguas e famílias linguísticas.41 Elas podem ser definidas como regiões
multilíngues na medida em que possuem diversidade linguística, estão baseadas em relações de trocas
sociais e culturais entre povos falantes das diferentes línguas, e há diferentes formas de mudanças
linguísticas resultantes do contato entre as línguas, ainda que nem sempre na mesma quantidade.
Figura 34: grandes áreas etnográficas e distribuição das línguas indígenas nas Américas

41
Existem diferentes tipos de recortes geográficos e etnológicos como forma de se classificarem as áreas culturais. As
áreas que apresentamos na seção 1.3 são uma síntese (bem abrangente) dessas diferentes propostas, tendo como fontes
principais Kroeber (_), Murdock (__), Steward __, Galvão (1962), Campbell (1997), Melatti __, Erikesn 2011.

213
O que torna as áreas etnográficas um recorte geográfico interessante para discutirmos as regi-
ões multilíngues é que para que haja difusão de elementos culturais em áreas linguisticamente tão
diversas, pressupõe-se que as sociedades dessa área entretenham relações sociais que envolvam o bi
ou multilinguismo em alguma medida. Porém, como colocam Muysken e O’Connor (2014), se não
há contato linguístico sem contato social e cultural, pode haver contatos sociais e culturais sem muitos
efeitos significativos de contato linguístico. As análises que discutiremos a seguir mostram que as
áreas etnográficas – ainda que estejam baseadas na difusão de elementos culturais comuns – estão
ancoradas na diversidade linguística e filogenética. Essas estão correlacionadas, de modo que áreas
com maior concentração de línguas tendem a apresentar um maior número de famílias linguísticas.
Isso sugere que em maior ou menor escala, as áreas etnográficas das Américas apresentam um “cír-
culo virtuoso” em que diversidade gera mais diversidade.

Diversidade e Densidade Linguística


Tomando as áreas etnográficas do mapa da Figura 34 como referência, temos em média 44 línguas
para cada área. As áreas com o maior número de línguas são: Mesoamérica (c. 200); três zonas for-
mando um grande arco na Amazônia que totaliza 270 línguas: Amazônia Meridional (c. 100 línguas),
Amazônia Ocidental (100), Noroeste Amazônico (70); e, na América do Norte, a Califórnia (65).
Uma vez que as áreas variam de tamanho, podemos calcular a densidade linguística de cada área, ou
seja, o número de línguas por quilômetro quadrado em cada área. Assim, temos com as áreas com
maior densidade linguística: MesoAmérica (1 língua a cada 5 mil km2), Califórnia (1 língua a cada
6,5 mil km2), Andes Setentrionais (1 língua a cada 11,5 mil km2), Noroeste Amazônico (1 língua a
cada 11,7 mil km2), Amazônia Meridional (1 língua a cada 14 mil km2). Reunindo os dois tipos,
podemos reconhecer como áreas “super-diversas” aquelas em que encontramos tanto uma alta diver-
sidade de línguas quanto uma alta densidade linguística, conforme listado abaixo:
Áreas etnográficas super-diversas linguisticamente
• Mesoamérica

214
1. Amazônia Meridional
2. Califórnia
3. Noroeste Amazônico

Algumas regiões hoje aparecem como baixa diversidade linguística, mas essa condição pode ter sido
resultado do contato linguístico. Por exemplo, Amazônia Central possuis poucas línguas indígenas
após séculos de colonização e imposição do Nheengatu e do Português. O quadro atual contrasta com
os relatos históricos anteriores, que destacam o elevado número de línguas, muitas delas ininteligíveis
(o que levou o padre Antônio Vieira a chamar a Amazônia de “nova Babel”), faladas por populações
que viviam em assentamentos grandes e densamente povoados no curso principal do rio Amazonas
(ver Carvajal 1934 [1541], Vieira 1662). Outras regiões foram ocupadas mais recentemente e muito
por causa do contato, tendo tido uma diversidade linguística menor no passado, como é o caso da
região das Planícies dos EUA.

Diversidade e Densidade Filogenética


Todas as áreas possuem mais de uma família linguística. Na média temos 9 famílias por área. As
áreas com maior número de famílias linguísticas são: Amazônia Meridional (23 famílias linguísticas),
Golfo do México (20 famílias linguísticas), Califórnia (18 famílias linguísticas), Amazônia Ocidental
(12 famílias linguísticas), Noroeste do Pacífico (11 famílias linguísticas), Noroeste Amazônico (11
famílias linguísticas). As áreas com maior densidade filogenética por km2 são praticamente as mes-
mas: Califórnia (1 família para cada 25 mil km2), Andes Setentrionais (1 família para cada 28 mil
km2), Amazônia Meridional (1 família para cada 63 mil km2), Orinoquia (1 família para cada 67 mil
km2), Noroeste Amazônico (1 família para cada 75 mil km2). As áreas que mais apresentam línguas
isoladas são também praticamente aquelas com maior diversidade filogenética: Amazônia Meridional
(16), Golfo (12), Califórnia (8), Orinoquia (7), Amazônia Ocidental (6) e Andes Centrais (6). Nem
todas as áreas possuem línguas isoladas, enquanto outras possuem mais de 50% de suas famílias
linguísticas como línguas isoladas: Andes Setentrionais, Sudeste América do Norte, Cone Sul,
Amazônia Meridional, Andes Centrais, Orinoquia. Podemos classificar como áreas etnográficas com
uma super-diversidade filogenética aquelas que aparecem em ao menos dois dos três critérios apre-
sentados acima: número de famílias linguísticas, número de línguas isoladas e/ou densidade filoge-
nética. Como resultado temos a lista abaixo:

Lista das áreas etnográficas super-diversas filogeneticamente


• Califórnia
1. Amazônia Meridional
• Amazônia Ocidental
1 Noroeste Amazônico
1. Orinoquia
1. Golfo do México

Ao compararmos as duas listas com as línguas mais super-diversas, vemos que quatro regiões
aparecem em ambas: Califórnia, Noroeste Amazônico, Amazônia Meridional e Amazônia Ocidental.
Podemos nos referir a essas regiões como hiperdiversas. Chama a atenção o fato de a Mesoamérica
não figurar entre as áreas filogeneticamente hiperdiversas. Do mesmo modo, regiões como Golfo do
México e Orinoquia, que são super-diversas filogeneticamente, não estão entre as áreas com maior
diversidade ou densidade linguística.
As áreas com menor número de línguas também são aquelas com menor número de famílias
linguísticas: o Caribe (5 línguas, 3 famílias) e o Ártico (8 línguas, 2 famílias), seguidas de áreas pouco
mais diversas com algo em torno de 15 línguas: Sudeste América do Sul (16 línguas, 4 famílias),
Amazônia Oriental (16 línguas, 5 famílias), Brasil Central (línguas, 5 famílias), Cone Sul (14 línguas,
3 famílias). Da mesma forma, áreas linguisticamente menos densas são: o Ártico, Sub-ártico, Cone
Sul, Nordeste da América do Norte, o Brasil Central e o Sudeste da América do Sul.

215
Podemos tentar explicar essa baixa diversidade, em parte, pela geografia: primeiramente, es-
tamos falando de zonas nos extremos dos hemisférios onde temos uma menor concentração popula-
cional, como o Ártico, Subártico e Cone Sul. Em segundo lugar, algumas áreas a colonização se deu
de forma mais longa e/ou intensa, o que pode ter sido responsável por diminuir sua diversidade, como
é o caso do Caribe, Sudeste da América do Sul, Nordeste da América do Norte. Outro fator que
poderia explicar essa menor diversidade é a história indígena pré-colonial. Em algumas áreas, encon-
tramos o predomínio de uma ou duas famílias linguísticas grandes. São áreas em que essas famílias
se expandiram e suas línguas se diversificaram; algumas são bastante antigas, enquanto outras são o
resultado de expansões mais recentes que causou a substituição ou assimilação linguística de popu-
lações eventualmente anteriores. Esse seria o caso do Nordeste da América do Norte – onde predo-
mina a subfamília Atabaska (família Álgica) – do Brasil Central, Amazônia Oriental e Sudeste da
América do Sul, como zonas de expansão de línguas Jê e Tupí-Guaraní. É interessante notar que a
área etnográfica do Sudeste do Brasil tem sido interpretada como uma zona de expansão inicial Jê,
seguida de uma dupla expansão Tupí-Guaraní (ver capítulo 5), o que ilustra duas camadas temporais
de processos expansivos sobre essas zonas com diversidade linguística e filogenética relativamente
mais baixa do que as demais.
A composição filogenética das áreas etnográficas tende a seguir um padrão no qual sempre
há uma família pequena ou língua isolada convivendo lado a lado com famílias maiores, com ampla
distribuição geográfica e alto número de línguas. Apenas as áreas do Golfo do México, Área-Inter-
média e o Cone Sol são zonas em que não encontramos a presença de uma grande família linguística.
Vejamos alguns exemplos representativos na Tabela 54:
Tabela 54: padrão de composição filogenética das grandes áreas etnográficas das Américas
Área Etnográfica Isolada/pequena família Família média Família grande
Califórnia Wintu, Maidu, Esselen Uti, Pomo Na-Dené, Álgica
Nordeste da América
Beothuk Iroquês, Muskogue Álgica
do Norte
Cotchimi-Yuma,
Golfo do México Keres, Zuni Na-Dené, Uto-Azteca
Kaiowa-Tano
Cuitlatec, Purépecha, Mixe-Zoque, Toto- Otomangue, Maya, Uto-
Mesoamérica
Xinka naca Azteca
Andes Setentrionais Cofán, Nasa Yuwe (Páez) Barbacoa Quechua
Amazônia Meridional Kwaza, Trumai Txapakura, Arawá Aruak, Tupi, Karib
Aruák, Karib, Tupí-Guaraní,
Noroeste Amazônico Andoke, Kakua-Nukak Witoto
Tukano
Nordeste Amazônico Arutani, Sapé, Máko Yanomami Aruák, Karib

A Tabela 54 sugere que as áreas possuem uma estrutura semelhante de como se reproduzem as regiões
multilíngues nas Américas desde um ponto de vista macro-linguístico, ao combinar processos in situ
de diversificação linguística com processos de migrações e difusão de elementos linguísticos e cultu-
rais entre diferentes regiões. A presença de línguas de uma mesma família através de diferentes regi-
ões é um tipo de evidência que temos para notar que as áreas etnográficas não estão isoladas, mas
apresentam diferentes pontos de conexões entre si.

Áreas de acreação e dispersão


A distinção entre zonas de acreação e zonas de dispersão tornou-se proeminente no trabalho seminal
de Nichols (1992, 1997). Em uma zona de acreação, temos uma alta diversidade lingística, filogené-
tica e tipológica. Línguas autóctones tendem a permanecer no mesmo local por longos períodos, e a
imigração de outros grupos faz como que as línguas movam para dentro dessas áreas com mais fre-
quência do que para fora delas. Por isso, uma zona de acreação possui representantes das principais
famílias linguísticas presentes em outras regiões, ao mesmo tempo que famílias autóctones. Nichols
(1997: 369) menciona três zonas principais de acreação nas Américas: a Costa Noroeste do Pacífico,
a Califórnia e a Amazônia. Ela ainda nota que existem várias zonas de acreação na Amazônia,

216
enquanto a Amazônia como um todo provavelmente pode ser descrita como uma única zona de acre-
ção. A Tabela 54 mostra outras regiões como zonas de acreação desde um ponto de vista macro-
linguístico.
Já uma zona de dispersão é uma área de baixa densidade de línguas, onde uma única língua
ou família linguística domina uma grande proporção do território. A língua dominante pode ser au-
tóctone ou ter chegado por migrações, e seu predomínio é resultado de processos de deslocamentos
linguísticos de outras populações. Por outro lado, na periferia de uma zona de dispersão, encontramos
línguas remanescentes, de modo que temos um padrão centro e periferia, com maior diversidade nas
bordas e menor diversidade no núcleo, algo similar às áreas dialetais. Como zona de dispersão, Ni-
chols oferece o exemplo da região conhecida como “Great Basin”, parte da área etnográfica que iden-
tificamos como Sudoeste da América do Norte, onde o ramo Númico da família Uto-Azteca se espa-
lhou das encostas da Sierra no sudoeste da cordilheira nos últimos dois milênios. São também exem-
plos de zonas de dispersão: o Ártico para a família Inuit-Yupik-Unagan, o Sub-Ártico para a família
Na-Denê, o Nordeste da América do Norte para a família Álgica, o Sudoeste da América do Norte
para a família Uto-Azteca, o Caribe para a família Aruák, o Nordeste Amazônico para a família Karib,
os Andes para a família Quechua, o Brasil Central e o Sudeste para a família Jê, o litoral Atlântico
(Leste e Sudeste do Brasil) e a Amazônia Oriental para as línguas Tupí-Guaraní.

6.3.2 Mesoamérica: uma área linguística forte


Mesoamérica é uma região multilíngue bem conhecida e coesa, criando um bom exemplo de área
cultural e linguística. Ela se estende por boa parte do sul do México a El Salvador na América Central,
compreendendo mais de 200 línguas classificadas em mais de 10 famílias linguísticas: Uto-Azteca,
Mixe-Zoque, Maya e Otomangue são as maiores famílias; Totonaca, Tequistatleca e Xinka são os
menores; enquanto Tarascan, Cuitlatec e Huave são isolados linguísticos (Campbell 2016; ver seção
5.2.2 para a distribuição das famílias linguísticas na Mesoamérica). Todas as famílias parecem ser
autóctones a esta região, exceto Uto-Azteca. A distribuição das línguas mesoamericanas sugere que
a maioria seja falada em áreas próximas à região de origem de suas protolínguas, com apenas alguns
casos de migrações de longa distância, como as línguas Uto-Azteca e o Huasteca (família Maya). A
alta proporção de línguas em certas famílias e sua distribuição geográfica sugerem que muita diver-
sificação ocorreu não tanto por migrações, mas por comunidades sedentarizadas que conheciam a
agricultura e por meio de uma complexa teia de trocas sociais. Essas trocas generalizadas têm sido
usadas como uma explicação fundamental para o desenvolvimento regional na Mesoamérica. Muitos
traços culturais compartilhados por tais redes se refletiram em calques, empréstimos lexicais e difusão
areal (Campbell e Kaufman 1976: 84-7).
Campbell, Kaufman e Smith-Stark (1986) analisaram cerca de 31 características fonológicas e
gramaticais selecionadas com base em seus conhecimentos sobre as línguas da região e áreas adja-
centes. Entre essas eles identificaram 20 características como recorrentes em línguas da Mesoamérica.
Entre essas 20, apenas cinco características que atendiam aos critérios mais rígidos usados para se
definir uma área linguística forte, ou seja, serem características que dificilmente poderiam ter se de-
senvolvido independentemente em cada língua; serem peculiares e, ao mesmo tempo, gerais por toda
a área, mas não sendo encontrada em línguas adjacentes além da Mesoamérica. A lista das cinco
principais características vai abaixo:

Características Areais da Mesoamérica


§ Construção possessiva com sintaxe do tipo “seu cachorro, o homem” = o cachorro do homem.
§ Substantivos relacionais – em vez de afixos, pré ou pós-posições – expressando noções locativas
§ Sistema numérico vigesimal
§ Ordem básica de palavras: línguas com verbos não finais: VSO, VOS ou SVO – mas nunca SOV,
apesar de MA estar rodeada por línguas SOV.
§ Calques peculiares: joelho = ‘cabeça da perna’; anaconda = ‘cobra veado’; pulso = ‘pescoço da
mão’; ovo = ‘pedra de pássaro’; borda = ‘boca’; polegar = ‘mãe da mão’; ouro ou prata = ‘excre-
mento de Deus, excremento do sol’.

217
O que comprova a tese de que esses traços teriam se difundido apenas internamente à Mesoamérica
é o fato de eles não ocorrerem nas línguas vizinhas à área, bem como sua ausência em proto-línguas
que remontariam a um período anterior à formação da área linguística. Por exemplo, línguas do ramo
Azteca chegaram à área em um momento posterior, quando certos traços característicos já estavam
em jogo. Línguas Aztecas como o Nahuatl adquiriram por contato essas características, e as mesmas
estão ausentes nas línguas Uto-Aztecas fora da área. A análise das proto-línguas das famílias autóc-
tones à Mesoamérica também confirma difusão por contato (Campbell et al. 1986: 555). Se é verdade
que muitos elementos areais têm origem na família Mixe-Zoque, outros tiveram fontes diferentes. A
existência de categorias gramaticais e semânticas entre diferentes línguas ilustra um processo de con-
vergência estrutural em línguas passam a ter uma estrutura mais similar não por empréstimos unila-
terais, mas por empréstimos multilaterais ou mesmo pela gramaticalização de novas categorias para-
lelamente nas diferentes línguas (Thomason & Kaufman 1988).
As outras características da Mesoamérica têm uma distribuição mais limitada dentro da área
ou estão dispersas em línguas adjacentes. Aquelas que estão mais dispersas são descartadas pelos
autores. Esse é o caso da categoria pronominal que distingue primeira pessoa plural “exclusivo” vs.
“inclusivo”, como em Huave (isolado) ikora ‘nós exclusivo (caso subjetivo)’ e ikoːtsa ‘nós inclusivo
(caso subjetivo)’. Como os autores comentam: essa categoria é facilmente adquirida independente-
mente; ela tem distribuição limitada dentro da Mesoamérica e é bastante comum for a dela; logo, não
seria um traço areal característico. Os autores analisam de outra forma os traços limitados à Mesoa-
mérica mas com distribuição restrita entre as línguas. Como os autores argumentam “numa visão
menos restrita das características de área, é claro, algumas dessas semelhanças podem se qualificar
[como características da área da Mesoamérica], dado que a difusão restrita a certos locais também
pode entrar na definição do que são Áreas Linguísticas” (Campbell et al. 1986: 544).

6.3.3 Áreas linguísticas na América do Norte


Existem pelos menos três regiões multilíngues na América do Norte que costumam ser classificadas
como uma área linguística: uma região que compreende as áreas culturais do Noroeste e Platô, uma
outra região no Norte da Califórnia, semelhante em muitos aspectos com a primeira, e, do outro lado
do continente, a área do Sudeste ou Golfo. Como comenta Mithun (2017), surgiram de contatos in-
tensos e de longo prazo entre pequenas comunidades, em áreas relativamente densamente povoadas,
com práticas de casamentos mistos de longa data entre grupos que falavam uma variedade de línguas
geneticamente não relacionadas, o que conduzia ao multilinguismo. Em alguns casos, a língua era
vista como um sinal de identidade, enquanto noutros era simplesmente socialmente apropriado falar
a língua da comunidade em que se estava. Vejamos um resumo dessas áreas a seguir.
(Sherzer 1976; Campbell 1997; Mithun 2017).

Costa Noroeste do Pacífico


A área linguística do Noroeste se estende do Subártico à Califórnia e é formada por línguas de três
famílias principais – Wakash, Chimakua e Salish – além de línguas de mais oito famílias – Na-Denê,
Haida, Tsimshi, Alsea, Coosa, Kalapuya, Takelma (Isolado) e Chinook. Algumas famílias se esten-
dem para outras áreas, como Na-Denê e Salish. O contato intensivo por meio de casamentos mistos,
visitas entre as comunidades, acesso compartilhado a recursos naturais, atividades rituais conjuntas e
comércio remonta a milênios. Suas línguas partilham um conjunto complexo de características que
não é encontrado em nenhum outra área da América do Norte. Se há relativamente poucos emprésti-
mos lexicais, mas muitos traços estruturais compartilhados, alguns bastante raros entre outras as lín-
guas. Isso a torna geralmente considerada uma das áreas mais fortes do mundo. As línguas da área
possuem 3 ou 4 vogais que contrastam entre longas e breves, combinadas a grandes inventários con-
sonantais, com várias consoantes ejetivas, uvulares, muitos tipos de laterais múltiplas. Os encontros
consonantais podem ser complexos, às vezes com quatro ou mais consoantes; palavras em algumas
línguas podem consistir exclusivamente em consoantes. Muitas línguas têm classificadores numerais
e muitos sistemas dêiticos distinguem referentes visíveis e invisíveis. As línguas são geralmente po-
lissintéticas e principalmente sufixantes. A ordem de palavras predominante em muitas línguas é

218
basicamente VSO ou não possuem uma ordem dominante. A distinção morfológica entre substantivo
e verbo é fraca.

Califórnia
O norte da Califórnia é o lar de um grande número de línguas filogeneticamente e tipologicamente
diversas, incluindo línguas Álgica (Yurok e Wiyot distantemente relacionados); Atabaska (Hupa,
Mattole e Kato); Yuki (Yuki e Wappo); Miwok (Lago Miwok e Serra Sul Miwok); Wintu; Maidu;
Pomo; Chimariko; Achomawi, Atsugewi; Karok; Shasta; Yana. Os povos estiveram envolvidos por
comércio, casamentos mistos e multilinguismo por mais de pelo menos um milênio. Assim como no
Uaupés, não havia uma língua franca nem code-switching, e era norma de etiqueta saber falar a língua
da comunidade em que uma pessoa estivesse. Os bilíngues exerciam, portanto, esforços conscientes
para manter suas línguas separadas. Existem vários recursos compartilhados entre as línguas do Norte
e Centro da Califórnia, como: sons oclusivos uvulares, laterais surdas, sons retroflexos, uma série de
oclusivas sonoras distintas, distinção de número dual e clusividade nos pronomes, posse aliená-
vel/inalienável, evidenciais e classificadores numerais. Existe uma diversidade tipológica considerá-
vel na Califórnia e nas suas subáreas. Algumas línguas são bastante polissindéticas, muitas são leve-
mente sintéticas e algumas mais analíticas. Algumas possuem ordem de palavras com ordem inicial
e outras com verbo em posição final da frase. Algumas usam marcações de núcleo e outras marcam
o dependente. Existem tanto padrões de alinhamento nominativo-acusativo quanto ativo-estativo e
hierárquico. Além de traços compartilhados e grande diversidade tipológico a, a área da Califórnia
parece ser mais porosa e conecta a outras áreas. Muitos dos traços compartilhados se restringem a
apenas uma pequena subárea, outros se estendem para além da Califórnia, até o Platô e a Costa No-
roeste do Pacífico, ou até a região do Sudoeste. Isso torna sua unidade e suas fronteiras menos claras.

Sudeste dos EUA (Golfo)


A área do Sudeste reúne línguas Muskogue (Choctaw, Chickasaw, Alabama, Koasati, Hitchiti, Mi-
kasuki, Creek, Apalachee), algumas línguas Sioux (Dhegiha, Biloxi, Ofo), línguas isoladas Natchez,
Tunika, Chitimacha e Atakapa, e mais perifericamente Cherokee (Iroquês), Shawnee (Algonquina)
Yuchi, Tutelo (Sioux), Catawba, Timucua e Caddo. As redes comerciais de longa distância amplia-
ram grupos locais autônomos em estruturas políticamente intrincadas. Os Creek eram particularmente
numerosos e poderosos; eles formaram uma confederação com várias tribos (como Alabama, Koasati,
Apalachee, Natchez, Yuchi, Shawnee), onde Creek era usado como língua franca. Os Cherokee tam-
bém incorporaram falantes de outras línguas nas suas comunidades através de captura e casamentos
mistos, e o multilinguismo era comum e valorizado. As línguas do Sudeste são tipologicamente mais
semelhantes entre si do que as da Califórnia. A maioria é levemente sintética, possui ordem básicas
SOV, afixos pronominais em verbos marcando um alinhamento ativo-estativo; elas possuem fricati-
vas labiais, laterais surdas, sibilantes retroflexas, marcam a distinção de posse alienável vs. inaliená-
vel, possuem número dual e distinção inclusivo-exclusiva nos pronomes, possuem prefixos verbais
locativos e direcionais e sufixos verbais de tempo-aspecto, e um sistema de contagem quinaria. Uma
dificuldade em lidar com a Área Linguística do Sudeste é que algumas características são comparti-
lhadas não apenas por todo o Sudeste, mas também geralmente por todo o leste da América do Norte
e na área das planícies (particularmente com línguas Algonquinas, Iroquesas e Sioux), o que sugere
uma grande área de difusão no meio-oeste e leste dos EUA. A contribuição de sistemas de trocas de
longa distância na área do rio Mississipi em tempos coloniais pode ter contribuído para esse cenário
(ver seção 1.4.2). Outra consideração é a proposta de relação genética distante do Golfo, que agruparia
várias dessas línguas do sudeste (Natchez, Muskogue, Atakapa, Chitimacha e Tunica).

6.3.4 Amazônia
A Amazônia como uma grande área de difusão
A Amazônia pode ser pensada como uma macrorregião multilíngue, compreendendo geografica-
mente as áreas drenadas pelas bacias do rio Amazonas e Orinoco. Nela, são atualmente faladas pouco
mais de 300 línguas, pertencentes a quase 70 famílias linguísticas, e distribuídas em diferentes sub-

219
regiões. Atualmente, existem quatro grandes áreas de alta diversidade linguística na Amazônia, o
Alto Xingu, o Sudoeste da Amazônia, a Amazônia Ocidental, o Noroeste e o Nordeste Amazônico.
A famílias linguísticas com maior distribuição geográfica na Amazônia são a Aruák, seguida pela
Tupí e depois pelos Karib. Outras duas grandes famílias linguísticas com representantes linguísticos
na região são Macro-Jê e Quechua.
Para além das semelhanças encontradas entre línguas da mesma família e em regiões menores,
existem características tipológicas encontradas através de diversas áreas da Amazônia. Essas carac-
terísticas estão distribuídas de forma aquém do que seria esperado de uma área linguística (ver dis-
cussão no caput da seção 6.3). Nesse sentido, Aikhenvald (2012: 68-71) propõe o termo região lin-
guística (do inglês language region) para se referir à Amazônia como uma área de difusão de carac-
terísticas mais esporádicas e descontínuas onde existem diversos fenômenos difundidos a muitas lín-
guas que não estão relacionadas geneticamente. Para muitas dessas línguas, não temos evidência de
contato na atualidade, e para muitos dos fenômenos difusos não sabemos as fontes de onde teriam se
originado. Alguns desses fenômenos são listados no Quadro 19.
Quadro 19: Características Areais da Amazônia (Aikhenvald 2012)
§ um sistema de cinco ou seis vogais que incluem a vogal [ɨ] (e.g. a, e, i, o, u, ɨ em Tukano)
§ ausência de oposição entre líquidas, como [l] vs. [ɾ]
§ nasalização a nível da palavra
§ segmentos complexos naso-orais [ᵐb]
§ acento tônico oxítona
§ tons lexicais
§ prefixos pessoais nos verbos e nos nomes
§ duas ou mais classes de verbos divididos em ativos vs. estativos
§ nominalizações como forma de subordinação
§ categorias gramaticais como frustrativos, evidenciais e sistemas de classificadores nominais
§ Palavras andarilhas como kanawa ‘canoa’ e kuna ‘timbó (veneno para peixe)’

A proposta do conceito de “região linguística” vem para revisar a hipótese de que a Amazônia
seria uma área linguística (Dixon e Aikhenvald 1999). Apesar de esses exemplos impressionarem por
terem, de fato, uma ampla distribuição, eles foram selecionados de modo subjetivo e muitos foram
escolhidos de forma específica para contrastar com propriedades atestadas nas línguas Quechua e
Aymara nos Andes (seção 6.3.6). Dessa forma, o consenso emergente é que a Amazônia em si não
constitui uma área linguística, ainda que algumas características sejam bastante difundidas pela re-
gião. De qualquer forma, podemos nos perguntar. Quais seriam as forças por trás da distribuição
desses elementos por vastas regiões na Amazônia? E como explicar sua difusão tendo como pano de
fundo uma alta diversidade de povos, línguas e famílias linguísticas?
Como temos visto ao longo deste livro, os processos de difusão de larga-escala nas Américas
– a Amazônia sendo o caso mais notável – precisam ser vistos tomando em consideração três fatores
principais: alta diversidade linguística e cultural distribuída em diferentes regiões, trocas comerciais
e culturais entre regiões, e migrações de povos entre as regiões. Aikhenvald (2013) destaca que todas
as principais famílias da Amazônia têm distribuição descontínua, o que pode ser indicativo de exten-
sas migrações, em diferentes épocas e sob diferentes condições, a partir de seus centros históricos de
origem: para os Arawak, o Alto Rio Negro e Orinoco; para a família Tupi, a Bacia do Alto Madeira;
para a família Karib, o Nordeste da Amazônia; para a família Macro-Jê no Nordeste brasileiro (Urban
1992) ou o Brasil Central (Ribeiro e van der Voort 2010). Embora a migração seja uma importante
explicação para o povoamento e contato de línguas na Amazônia, as trocas comerciais e culturais na
região foram bastante intensas e de longo-alcance. Ao mesmo tempo, famílias linguísticas médias e
pequenas estão, em geral, concentradas em regiões geográficas específicas, lado a lado com línguas
das grandes famílias. Logo, a dispersão das grandes famílias e a manutenção ou ampliação da diver-
sidade foram dois processos coexistentes ou mesmo correlacionados. Isso foi possível devido a siste-
mas próprios de organização social, política e econômica dos povos amazônicos baseados numa
grande a autonomia das sociedades. Essas se articulavam por um modelo de alianças que ao mesmo

220
tempo que reunia os grupos tambémv reforçava as necessidades de exaltar suas diferenças. Como
resultando, a história dos contatos é marcada por equilíbrio entre tendências expansivas de certos
grupos etnolinguísticos e de difusão de elementos linguísticos e culturais com processos de manuten-
ção, divergência e diversificação. (Essas teses foram exploradas de modo mais específico na seção
1.3 e no capítulo 2 (ver especialmente a seção 2.3.7).

Uaupés e o Alto Rio Negro: do centro à periferia e além


A área linguística do Uaupés está inserida dentro da área cultural do Alto Rio Negro, no Noroeste da
Amazônia. Os grupos sociais de toda essa grande zona são em geral patrilineares, apresentam orga-
nização social hierárquica, praticam intercasamentos sistematicamente por meio da exogamia entre
clãs e grupos étnicos, e participam de um sistema de trocas e especialização comercial e ritualística.
Existem cerca de 30 línguas pertencentes a três famílias linguísticas principais – Tukano Oriental,
Naduhup e Aruák – além da família Karib (língua Karihona) e Tupí-Guaraní (língua Nheengatu). A
Tabela 55 resume dados das famílias linguísticas por número de falantes, número de línguas e povos.
Tabela 55: Famílias linguísticas, população, línguas e povos no Alto Rio Negro
Família Linguística População Línguas Povos Falantes
Baré, Warekena, Baniwa-Koripako, Tariana, Yukuna,
Aruák 44.490 6
Kabiyari
Arapaso, Bará, Barasana, Desano, Karapanã, Kotiria, Kubeo,
Makuna, Mirití-Tapuyo, Letuama, Pisamira, Taiwano, Ta-
Tukano 49.720 16 nimuka, Tatuyo, Tukano, Tuyuka, Siriano, Wa’ikhana, Ya-
huna, Yurutí
Kakwa-Nukak 891 2 Kakua, Nukak
Naduhup 2.504 4 Yuhup, Hupda, Dâw, Nadëb
Karib 525 1 Hianákoto, Umaua, Carijona
Tupi-Guarani 10.000 1 Baré, Baniwa, Warekena, Dâw
Total 89.130 30 36

Podemos distinguir diferentes subregiões no Alto Rio Negro tendo em vista a intensidade e
diferentes formas das trocas sociais e culturais entre os povos de cada sub-região, o que também
implica em diferentes tipos de mudanças por contato linguístico (Chacon e Cayón 2022). Duas sub-
regiões – o Uaupés Central e o Pirá-Paraná-Cananari – formam o que se convencionou chamar de
Área Linguística do Uaupés. Ao centrarmos nosso olhar sobre o Alto Rio Negro a partir da Área
Linguística do Uaupés, podemos identificar regiões periféricas e regiões externas, como representado
pelo mapa da Figura 35)

221
Figura 35: Línguas do Alto Rio Negro encontradas pela área linguística do Uaupés, regiões perifé-
ricas e externas (línguas Baré [Aruák], Miriti-Tapuya [Tukano] e Arapaso [Tukano] estão silencia-
das )

Os principais estudos que definem a área linguística do Uaupés estiveram concentrados no que
Sorensen (1969) chamou de “zona central do Noroeste Amazônico”, onde vivem dois grupos linguís-
ticos Aruák – os Kabiyarí no Oeste, e os Tariana no Leste – e, entre eles, um subgrupo coeso de
línguas Tukano Orientais: Tukano, Desano, Kotiria (Wanano), Wa’ikhana (Pira-Tapuya), Makuna,
Barasano, Tatuyo, Karapanã, Yuruti, Bará, Pisamira e Tuyuka. A exogamia social e os pequenos
grupos sociais patrilineares dessa área criaram as condições para que surgisse um sistema de exoga-
mia linguística, em que os casamentos ocorrem entre grupos sociais falantes de línguas diferentes, de
modo que os cônjuges não devem falar a mesma língua. Isso criou sociedade multilíngues, onde existe
uma forte ideologia que procura alinhar língua, identidade étnica e exogamia social, e reflete em um
multilinguismo igualitário (em que não há não há uma hierarquia de importância entre as línguas),
em que os falantes evitam misturar as línguas por meio de empréstimos diretos ou code-switching,
ainda que haja muitos calques lexicais e a empréstimos indiretos gramaticias.
Na periferia dessa zona central, encontramos outros grupos Aruák, Tukano, bem como Kakwa-
Nukak e Naduhup, bem como os recém-chegados Nheengatu (Tupí-Guaraní) e Karihona (família
Karib). Grupos Aruák e Tukano estão ao norte (Kubeo e Banikwa-Koripako) e ao sul da zona central
(Tanimuka, Letuama e Yukuna). Esses grupos possuem uma estrutura social diferente, em que uni-
dades patrilineares exogâmicas distintas falam a mesma língua, o que reflete numa exogamia linguís-
tica mais fraca ou mesmo uma preferência pela endogamia linguística. Entremeados aos grupos Tu-
kano e Aruák, estão os grupos de línguas Naduhup – Hup e Yuhup – bem como os Kakwa (família
Kakwa-Nukak). Esses grupos preferem viver mais dentro da floresta do que na beira dos rios, como
os Tukano e Aruák. Em alguns contextos sociais, são tidos como grupos de menor hierarquia cultural
na região. Eles têm menos acesso a produtos que vêm de fora da região, não costumam participar do
sistema de intercasamentos existentes entre os grupos Tukano e Aruák, e preferem a endogamia lin-
guística entre as diferentes unidades exogâmicas de sua sociedade. Mesmo assim, fazem parte de um
sistema de trocas culturais e comerciais da região. Costumam falar uma língua Tukano ou Aruák
como segunda língua, mas o contrário não ocorre, i.e. suas línguas raramente são faladas pelos “povos
dos rios” Aruák e Tukano.

222
Segundo Aikhenvald (2002, 2012), a área linguística do Uaupés se caracteriza pelas proprieda-
des fonológicas e gramaticais listadas no Quadro 20. A Tabela 56 mostra distribuição dessas carac-
terísticas em diferentes línguas do Noroeste Amazônico, diferenciando entre aquelas que são centrais,
periféricas ou externas à área linguística do Uaupés. Os dados revelam que enquanto na área central
temos o compartilhamento total dos traços propostos por Aikhenvald, na periferia alguns poucos tra-
ços estão ausentes ou pouco desenvolvidos, enquanto nas áreas externas temos a ausência de um
maior número de traços.
Quadro 20: Características Areais do Uaupés (Aikhenvald 2012)
§ Sistemas de evidenciais obrigatórios com quatro a seis categorias;
§ Complexos sistemas de classificadores usados com demonstrativos, com numerais e em constru-
ções possessivas, referindo-se a propriedades físicas de entidades;
§ Pequenos sistemas de gêneros em pronomes e na concordância verbal categorizando substantivos
animados;
§ Marcação de caso: perfil nominativo-acusativo e marcação de objeto diferencial, em que um ob-
jeto definido ou tópico recebe marcação de caso;
§ Um caso locativo abrangendo direção (‘para’), localização (‘em’) e fonte (‘de’);
§ Serialização verbal (também conhecida como composição verbal) expressando aspecto e modo;
§ Harmonia Nasal: nasalização como característica prosódica da palavra;
§ Características lexicais, como ter um único termo para ‘sol’ e ‘lua’, e calques semânticos com-
partilhados, por exemplos, um homem rico se diz ‘pai dos bens’.
Tabela 56: distribuição dos traços tipológicos da área linguística do Uaupés entre diferentes línguas
do Noroeste Amazônico
Local Língua Família 1 2 3 4 5 6 7 8
Tukano Tukano sim sim sim sim sim sim sim sim
Centrais
Tariano Aruák sim sim sim sim sim sim sim sim
Hup Naduhup sim incipiente não sim sim sim limitado sim
Periféricas Kubeo Tukano sim sim sim sim não não sim sim
Tanimuka Tukano opcional sim sim sim não sim sim sim
Siona Tukano não sim sim sim não sim sim não
Baniwa-
Externas Aruák não sim sim não não sim não não
Koripako
Dâw Naduhup não não não sim não sim limitado sim

Como se vê, a área linguística do Uaupés não possui fronteiras nítidas com seu entorno, como é o
caso da Mesoamérica. Antes, o Uaupés apresenta uma espécie de gradação desde um suposto centro
à periferia e seu entorno no Alto Rio Negro. Esse centro teria sido construído em grande parte pela
influência de línguas Tukano no Tariana e nas línguas Naduhup. Isso está plenamente demonstrado
pela análise contrastiva de Aikhenvald (2002) sobre o Tariano (central) em relação ao Baniwa (ex-
terno) e pela análise de Epps (2007) sobre Hup (periférica) e o Dâw (externa), respectivamente. Ainda
não está demonstrado qual teria sido a influência de línguas Aruák nas línguas Tukano na área central
do Uaupés, mas nas periferias e nas áreas externas isso fica mais evidente.
É difícil traçar as bordas do Uaupés frente às demais regiões, pois as trocas sociais e linguís-
ticas entre os grupos começaram em tempos anteriores e em lugares fora do Uaupés. Pesquisas re-
centes vêm confirmando a hipótese de Curt Nimuendajú de que essa região teria como povos originais
os falantes de línguas das famílias Naduhup e Kakwa-Nukak. Posteriormente, teria havido a chegada
de povos Aruák e, em seguida, de povos de língua Tukáno. A área do Uaupés teria sua atual configu-
ração com a chegada dos falantes de Tariana por volta do século XIV, vindos do rio Içana, onde estão
os Baniwa-Koripako, mas contatos Tukano e Aruák mais antigos remontam há cerca de dois mil anos
(Cayón e Chacon 2022), quando havia maior influência de línguas Aruák em línguas Tukano, espe-
cialmente no Proto-Tukano-Oriental (Chacon 2014, Chacon 2017). Um exemplo disso é a evolução
de formas para contrastar posse alienável e inalienável nas línguas Orientais, mas não nas Ocidentais
(ver discussão sobre Tipos de empréstimos, grau de contato e bilinguismo na seção 6.1.1). É provável

223
que num passado antigo, os falantes de Proto-Tukano habitassem uma região entre o Médio e Alto
Japurá, próximo à comunidade de Araracuara, onde existem registros de ocupação humana ininter-
ruptas desde há pelo menos 2800 anos, ao sudoeste da área do Uaupés. Esse teria sido o local provável
onde línguas Tukano e Aruák se encontram num passado longínquo, provavelmente há cerca de 1000
a 1500 anos atrás (Cayón e Chacon 2022). A migração de povos Tukano para a região do Alto Rio
Negro foi marcada por um aprofundamento das relações Tukano e Aruák, causando o que foi cha-
mado de Arawakização dos Tukano e Tukanização dos Aruák. Os povos de língua Naduhup e Kakwa-
Nukak, por outro lado, teriam permanecido mais à margem do sistema de trocas Tukano e Aruák,
ainda que participando por meio de outras trocas com esses grupos.
Mesmo entre essas oito características cuidadosamente selecionados por Aikhenvald, há muitas
que extrapolam os próprios limites do Alto Rio Negro. Entre elas, destacamos o item 2 e 3 da lista
das características do Uaupés de Aikhenvald. Eles aparecem relacionados num complexo sistema de
classificação nominal encontrados em várias línguas da região, muito além do Uaupés. Esses sistemas
apresentam em geral dois níveis, um mais gramaticalizado comumente chamado de gênero ou classes
nominais gerais, que distingue categorias como animado vs. inanimado, masculino vs. feminino. O
outro nível é formado por classificadores ou marcadores de classes nominais, os quais descrevem as
propriedades físicas de seus referentes nominais, em geral inanimados. Tal sistema é encontrado em
línguas da família Aruák, Tukano, Guahibo, Bora, entre outras (ver seção 4.5.3). Há também muitos
empréstimos lexicais que cruzam diferentes línguas e famílias linguísticas, como as palavras andari-
lhas (seção 6.1.1).
Logo, desde um ponto de vista histórico dos contatos Tukano e Aruák, o Uaupés já foi peri-
feria, mas hoje aparece como “centro” de uma área linguística. Isso talvez decorra do método de
delimitação de áreas linguísticas que utilizamos. Ao olharmos para essa região a partir da ótica do
contato Tariana e Tukano e selecionarmos um conjunto de variáveis, o resultado certamente terá a
relação Tariana e Tukano como central. Mas ela não foi a primeira nem o única situação de contato
Tukano-Aruák, como ilustram os casos contemporâneos a ela entre Kubeo e Baniwa, Yukuna e Ta-
nimuka, Kabiyari e Barasano, etc., e os casos que inferimos sobre o passado pré-colonial. Cada uma
dessas situações nos mostra tipos diferentes de relações sociolinguísticas e efeitos do contato entre
línguas. Por isso, faz mais sentido ver a área do Uaupés como um tipo de configuração específica
entre outras dentro de uma história de longa duração das relações entre povos Tukano, Aruák e Na-
duhup.

Sudoeste Amazônico: uma área de difusão multi-cêntrica


A região do Sudoeste Amazônico compreende os formadores dos rios Tapajós (a Leste), Madre de
Dios (a Oeste), Alto Madeira (ao Norte) e o Guaporé (ao Sul). Ela está dividida em diferentes sub-
regiões e se conecta com outras regiões vizinhas, como o Gran Chaco, Amazônia Central, Ocidental
e o Alto Xingu. As propostas de autores como Lévis-Strauss, Eduardo Galvão e Denise Maldi, entre
outros, identificam certas zonas focais e fronteiras entre áreas que vão desde a Bolívia (Mojo-Chi-
quito); a áreas na margem direita do Guaporé-Mamoré, já no lado brasileiro da fronteira; e, mais a
leste, áreas que ligam o Alto Madeira com o rio Tapajós e os formadores do Xingu. Embora essas
áreas possam apresentar características bastante distintas, há evidências arqueológicas e históricas de
conexões entre essas regiões. O mapa da Figura 36 mostra a distribuição das mais de 50 línguas dessa
região e as regiões aproximadas das áreas culturais que dividem a zona.
Figura 36: línguas, famílias linguísticas e divisões culturais aproximadas no Sudoeste Amazônico

224
Crevels e van der Voort (2008) propõem que haveria uma extensa área de difusão linguística, cha-
mada de Guaporé-Mamoré, cujas fronteiras geográficas não se limitam a uma área cultural específica
nem à bacia dos rios Guaporé e Mamoré, mas atravessam pelo menos dez famílias linguísticas e três
áreas culturais (Mojos, Guaporé e Tapajós-Madeira) entre Brasil e Bolívia. Apesar de haver poucos
itens lexicais difundidos pela zona como um todo, há um conjunto de itens que parecem ter se difun-
dido em sub-áreas locais. Vejamos, por exemplo, as palavras referentes a ‘flecha’ e ‘milho’ difundi-
das na área cultural do Marico.
(6.17) Palavras Andarilhas no Sudoeste Amazônico
Flecha
mambi Akuntsú
mbu Arikapú
kubi Djeoromitxi
mapi Kanoê
mãɓi Kwazá
mampi Mekéns

Milho
atiti Akuntsu, Kanoe, Makuráp, Tuparí, Wayuru
tʃitʃi Arikapú e Djeoromitxi
atʃitʃi Kwaza
atsitsi Mekéns
atsɨ Itonama

Juntamente com a difusão de características morfossintáticas e fonológicas, Crevels e Muysken men-


cionam diversos morfemas gramaticais que foram difundidos entre várias línguas da região, como
morfema de caso locativo, um pronome expletivo com a forma e- ou i-, bem como morfemas classi-
ficadores (ver também van der Voort 2005, 2014).
Partindo de uma amostragem de 24 línguas de diferentes famílias linguísticas da região, in-
cluindo línguas andinas como Quechua, Aymara e Uru como casos de controle, Crevels e van der
Voort listam uma série de propriedades gramaticais ou estruturais que seriam recorrentes à área Gua-
poré-Mamoré. Primeiramente, os resultados indicam que nenhuma das características ocorreram na
totalidade das línguas amazônicas observadas. As características mais recorrentes são: nominalização
como estratégia de subordinação oracional (85,7% das línguas), marcação argumental no verbo
(81%), número verbal (80%), evidencialidade (76%), harmonia vocálica (76%), marcação no núcleo

225
(71%), distinção entre posse alienável e inalienável (71%), morfologia mais sintética (66%), pós-
posições (61%), distinção entre formas pronominais de 1ª pessoa inclusiva vs. exclusiva (61%), har-
monia nasal (61%), morfemas direcionais (61%), ordem sintática núcleo – modificador (57%) (to-
mando com base os dados de Crevels e van der Voort 2008: 171).
Algumas características são mais salientes no lado brasileiro da fronteira e outras do lado
boliviano. A marcação de número nominal, por exemplo, parece ser uma característica boliviana tí-
pica, ocorrendo em 12 (85,9%) das 14 línguas bolivianas da amostra e em apenas uma (10%) das dez
línguas do lado brasileiro. Por outro lado, os sistemas de classificadores (que ocorrem em 33,3% das
línguas da amostra), parecem ser mais comuns nas línguas do lado brasieliro (50%: Lakondê, Kwaza,
Aikanã, Kanoê e Karo) do que nas línguas bolivianas (21,4%: Baure, Itonama e Movima). Outras
características estão ausentes ou são raras entre as línguas na região, apesar de serem recorrentes em
línguas da Amazônia. Por exemplo, apenas três línguas (12,5%) das 24 línguas da amostra têm um
sistema de gênero gramaticalizado: Wari’ (Txapakura), Movima e Mosetén (ambas isoladas). Note-
mos ainda que, se em línguas do Noroeste Amazônico é comum vermos sistemas de classificação
nominal combinando gênero e classificadores, na região do Sudoeste Amazônico apenas o Movima
apresenta ambos os sistemas, enquanto as demais línguas possuem ou um sistema de classificadores
ou gênero (ver também van der Voort 2014).
As evidências de difusão areal no Sudoeste Amazônico são de fato bem claras, mas precisam
ser investigadas mais afundo em alguns sentidos. Primeiramente, com relação a seu escopo: alguma
são restritas a subáreas, outras mais amplamente difundidas. Em segundo lugar, sua direcionalidade:
quais são as principais línguas doadoras e receptoras? Qual o papel das famílias maiores nesse pro-
cesso? Além disso, o fato de tantas línguas do Guaporé-Mamoré serem membros de famílias peque-
nas ou línguas isoladas, localizadas apenas dentro dessa região, possa ser resultado não tanto de di-
fusão mas de possíveis relações genéticas ainda não identificadas.
É importante notar que o rio Guaporé marca uma fronteira cultural e também linguística muita
antiga. No lado brasileiro, a chamada “Área do Guaporé” é marcada como centro de alta diversidade
da família linguística Tupí e seu provável centro de dispersão original (Rodrigues 1964). Maldi (1991)
define uma seção específica da área Tupí como parte do complexo cultural Marico, o qual inclui,
além de falantes de línguas Tupi, os falantes de línguas Macro-Jê e de línguas isoladas. Há um século,
os povos indígenas do lado brasileiro de Rondônia ainda viviam em aldeias separadas formando so-
ciedades multiétnicas e multilíngues. Casamentos interétnicos generalizados e contatos frequentes
alimentavam o multilinguismo localizado entre indivíduos de aldeias vizinhas. A mudança desse pa-
drão ocorreu com o boom da borracha no início do século XX. Reflexo disso pode ser visto na Terra
Indígena Rio Guaporé apresenta a situação multiétnica mais dramática de Rondônia. Essa T.I briga
integrantes de onze povos indígenas: Arikapu e Djeoromitxi (família Macro-Jê, ramo Jabuti), Maku-
rap, Tupari, Wayoró (família Tupi, ramo Tupari), Salamãy, Aruá (família Tupi, ramo Mondé), Kanoé
e Aikanã (isolados), Cojubim e Wari' (família Chapacura). Vários desses grupos foram levados para
este local porque suas terras originárias foram tomadas por fazendeiros brasileiros. Rondônia segue
sendo um estado marcado por uma grande diversidade de povos com vários graus de contato: há ainda
povos não contactados, de recente contato; povos que moram em aldeias e outros que moram em
periferias de cidades; povos com seu território tradicional demarcado e outros sem território, ou vi-
vendo em território de outros povos.
No lado Boliviano, há uma área cultural bastante diferente, conhecida como o complexo cul-
tural Mojo-Chiquito (ou Llanos de Mojos). Para Heckenberger (2006:328), esta parte da Amazônia
meridional em tempos pré-colombianos era dominada por grandes populações falantes de línguas
Aruák e outros grupos culturalmente relacionados a eles que ocupavam as cabeceiras dos principais
rios. Ao longo desta região foram construídos milhares de montes artificiais que, junto com centenas
de lagoas e canais retangulares, formavam parte de um complexo sistema de irrigação e controle das
águas pluviais. Muitas das sociedades são estratificadas, divididas em grandes aldeias. Segundo Er-
kisen (2011: 70-77), os grupos Aruák estavam no centro de uma extensa esfera de interação baseada
em trocas comerciais e rituais em larga escala, com duração milenar e conexões com o Alto Xingu, a
leste, e os Andes, a oeste. É também uma área que representa um elo importante nas relações entre

226
culturas amazônicas e andinas. Por exemplo, os Piro (Yine), mediavam o comércio entre os falantes
de Quechua e Aymara do Altiplano e os grupos das terras baixas. Certos grupos Aruák de Mojo-
Chiquito também faziam expedições a Cuzco, onde negociavam sal, pedras, metais e participavam
das celebrações Incas, um costume também compartilhado com os Piro e com os grupos Shipibo e
Conibo (Pano) da Amazônia Ocidental. Os contatos iniciais com os europeus ocorreram bastante
cedo, já no século XVI quando os espanhóis chegaram em Mojo-Chiquito atrás de ouro e mão de
obra escrava.
Logo, é provável que houvesse uma relativa independência entre essas regiões, ao mesmo
tempo em que a diferença entre as áreas, a sua antiguidade e o fato de estarem densamente povoadas
no período pré-colonial criou condições suficientes para que se difundissem empréstimos diretos e
indiretos entre as línguas, mas nunca houve condições suficientes para se criar uma relativa unifor-
midade e delinear fronteiras em torno de um padrão linguístico areal.

O Alto Xingu e as Áreas Discursivas nas Terras Baixas da América do Sul


As trocas linguísticas dentro de uma dada área etnográfica requerem em alguma medida o comparti-
lhamento de características da linguagem verbal. Muitas vezes, juntamente com o léxico e os elemen-
tos estruturais, são transmitidos elementos que tem a ver com as formas e as temáticas dos gêneros
de discursos nas sociedades. Por exemplo, a área do Uaupés e do Alto Rio Negro podem ser vistas
como uma área discursiva, com um sistema cosmológico, narrativas, cânticos, benzimentos e rituais
compartilhados por vários povos distintos, tanto nos povos que vivem mais próximos hoje em dia no
Uaupés, quanto em povos mais distantes (Silva 1961, Chernela 1988, 2001, 2013, Piedade 1997, Epps
2021). De um modo mais amplo, Beier et al. (2002) propõem que a Amazônia poderia ser vista como
uma área discursiva, em que diversos grupos sociais chegaram historicamente a práticas discursivas
compartilhadas, que atravessam famílias lingüísticas e se cruzam, se sobrepõem e coocorrem uns com
os outros em gêneros discursivos particulares. Um conjunto de propriedades tipológicas discursivas
recorrentes que provavelmente evoluíram a partir de diferentes formas de contatos entre os povos da
região são diálogos cerimoniais e prantos rituais (ver seção 3.2), paralelismo como forma de estrutu-
ração textual, e uso de evidenciais ou marcadores de fontes de informação (ver seção 4.5.5).
De forma ainda mais abrangente, Urban (1988) sugere que haveria uma divisão geográfica
entre os grupos da América do Sul com relação a duas grandes formas de performances verbais usadas
na recepção de pessoas vindo de fora de uma comunidade: os diálogos cerimoniais e as lamentações
rituais (ver seção 3.2). Para Urban, apesar da possibilidade de sobreposições entre os dois tipos de
discursos, há uma tendência geral de distribuição complementar: no Brasil Central, encontramos mais
salientemente as lamentações rituais, enquanto o diálogo cerimonial parece não ocorrer. Ao norte e
oeste do rio Amazonas, no entanto, o diálogo cerimonial é tipicamente encontrado como uma forma
de saudação, e a lamentação ritual é raramente, ou nunca encontrada. Urban oferece uma explicação
para essa divisão com base numa teoria que opõe, por um lado, os gêneros discursivos enquanto um
como monólogo versus o outro enquanto um diálogo, e sua correlação com a permeabilidade ou im-
permeabilidade das fronteiras entre os grupos sociais. Em comunidades cuja organização social reflita
endogamia, autossuficiência econômica, com pouco ou nenhum comércio, e hostilidade mútua, terí-
amos a prevalência das lamentações rituais, enquanto em sociedades com maiores interações entre
grupos locais, como intercasamentos e comércio, teríamos uma maior permeabilidade entre as fron-
teiras dos grupos sociais e o uso de diálogos cerimoniais. A análise de Urban (1988) mostra como
padrões distintos de organização social refletem em práticas discursivas diferentes, especialmente
aquelas destinadas às relações entre povos diferentes.
O exemplo talvez mais claro de uma área discursiva que não é uma área linguística é o Alto
Xingu, uma região multilíngue fortemente marcada por práticas discursivas e visões de mundo com-
partilhadas, mas, ao mesmo tempo, com pouca difusão de elementos lexicais e gramaticais, não sendo,
portanto, uma área linguística propriamente (Seki __, Franchetto __). Existe um contraste interessante
entre a região do Alto Rio Negro e do Alto Xingu, na medida em que o Alto Xingu configura uma
área cultural e discursiva, mas não uma área linguística, enquanto o Alto Rio Negro é tanto uma área
cultural quanto linguística e discursiva. A seguir, faremos um panorama sobre a região multilíngue

227
do Alto Xingu. Para mais exemplos sobre aspectos discursivos das sociedades xinguanas e outras
sociedades indígenas, ver capítulo 3.
O Alto Xingu é uma área ocupada por falantes de língus das famílias Aruák (Mehinaku,
Wauja, Yawalapiti), Karib (Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Nahukua, and Angaguhütü), Tupí
(Kamayurá, Aweti), Trumai (língua isolada), e Jê (Kisêdjê)). Trata-se de uma área etnográfica mar-
cada por formas compartilhadas de cerimônias, dietas, estética corporal, padrão de organização das
aldeias e casas comunais, comércio, mitologia e cosmologia, e semelhanças nos sistemas de paren-
tesco. Chama atenção o fato de que, apesar de haver cinco famílias linguísticas na região, elas pos-
suem considerável diversidade interna, sendo representadas por línguas de ramos diferentes e que
chegaram à região em diferentes levas migratórias. Há uma forte tendência à valorização da identi-
dade étnica e linguística, de modo que deslocamentos linguísticos não são processos comuns, ainda
que grupos como os Yawalapiti tenham sofrido mais duramente os efeitos do contato antes da década
de 1940 e, como consequência, sua língua tem sido deixada de ser transmitida. Hoje, o Yawalapiti é
a língua menos falada pelos 262 habitantes de suas aldeias, compostas principalmente por casais não
falantes Yawalapiti que usam outras línguas xinguanas, como Kuikuro, Kamayurá, Kalapalo e Mehi-
naku (Lüpke _).

O povoamento inicial dessa região começou por volta de 800 d.C como resultado dos movimentos
expansivos de grupos Arawak na periferia sul da Amazônia. Entre 1250 d.C e o século XVII, ocorre
um rápido processo de crescimento populacional, intensificação da agricultura e complexificação das
trocas socioculturais entre diversas aldeias densamente povoadas e urbanizadas. Depois dos grupos
Arawak, chegaram os primeiros grupos Karib (entre os séculos XV e XVII), seguidos pelos Kamai-
yurá e Awetí (grupos Tupí de ramos diferentes da família) e posteriormente os Trumai. Apesar das
relações violentas iniciais, a incorporação de outros grupos envolveu a transformação das novas so-
ciedades e sua contribuição para um “sistema xinguano” geral de comportamentos sociais e culturais,
com ênfase no ritual e na troca comercial Como resultado da criação do Parque Indígena do Xingu
(hoje Terra Indígena do Xingu), outros povos vieram a morar na região, como os Juruna ( família
Tupí), Kaiabi (também da família Tupí), Ikpeng (Karib, de ramo distinto da primeira migração) e
Kisêdjê (Suyá, família Jê) (ver Heckenberger et al. 2003, Heckenberger 2005, Fausto 2000, Fausto et
al. 2008). Apesar de sua longa história, contatos entre povos Aruák, Karib e Tupi (para focarmos nos

228
mais antigos) começaram há cerca de 500 anos. Ainda que os contatos tenham sido intensos em certo
plano cultural, Seki (1999, 2012) considera o Alto Xingu uma “área linguística incipiente” e com
difusão multilateral de traços linguísticos. Os elementos que elencados como resultantes do contato
linguístico no Alto Xingua estão resumidas no Quadro 21.
Quadro 21: Influências areais no Alto Xingu Seki (1999, 2012)
Influências em línguas Aruak
§ perda de uma distinção de gênero masculino-feminino, ausente nas línguas Karib e Tupí
§ difusão de /ɨ/ para línguas Aruák por inlfuência das línguas Karib e Tupí
§ difusão de vogais nasais nas línguas Aruák e Karib por influência Tupí
Influências de línguas Aruák
§ mudança *p > h em Karib e Tupí-Guaraní
§ mudança na estrutura da sílaba para CV em língua Karib
§ difusão de ts nas línguas Karib

Apesar da pouca evidência de difusão de elementos linguísticos por contato, temos uma clara cons-
trução de uma região multilíngue que funciona como uma área cultural e discursiva. Nesse sentido,
nota-se mais claramente difusão entre as línguas no que tange a composição dos cantos cerimoniais,
que contêm palavras e expressões de origem Tupi, Karib, e Arawak, o que revela um amalgama lin-
guístico que remonta à história milenar da composição multi-étnica alto-xinguana. (Franchetto 2011:
17). Essa construção de um complexo cultural compartilhado passa por uma dinâmica de três níveis
sociais nas relações para dentro e para for a do grupos social e linguístico, como evidenciam as cate-
gorias sociais do Kuikuro: ótomo ‘um ser singular no seu grupo local’; ótohongo ‘um ser que é um
outro equivalente numa aldeia onde se fala dialeto de mesma língua; telo ‘diferente dos demais’
(Franchetto 2011)
Logo, o multilinguismo xinguano é baseado em um forte elo entre língua e identidade étnica.
Há uma preferência pela endogamia local e/ou linguística: os casamentos ideais ocorrem dentro da
aldeia; se for a da aldeia, dá-se preferência por alguém que fale a mesma língua, o que revela uma
espécie de ideologia monolíngue. Isso explicaria, talvez, a resistência a mais empréstimos. Antes da
chegada do português na década de 1950, não havia língua franca na região. No entanto, existem
diferentes matizes de bi ou multilinguismo, especialmente por parte de indivíduos especializados nas
complexas trocas rituais e interétnicas, o que se evidencia pela estratégia de calque de conceitos co-
muns mais cruciais e pouquíssimos empréstimos, bem como pela expressão pública e valorizada do
multilinguismo em contextos rituais, onde muitos cantos são compostos por palavras vindas de dife-
rentes línguas e diálogos multilíngues ritualizados (Franchetto 1993, 2000, 2011, Mutua Mehinaku
& Bruna Franchetto 2014__). Todos os encontros interétnicos são mediados por chefes hereditários
que se cumprimentam com elaborados discursos cerimoniais, resultando em diálogos multilíngues
ritualizados (Franchetto 1993, 2000; Basso 2009; Guerreiro 2015)

6.3.5 Gran Chaco: centro-periferia ou área de traços difusos?


O Gran Chaco é uma vasta área de planície no centro-oeste da América do Sul. Consiste em um
ambiente ecologicamente diversificado, com áreas de mata, savana e áreas alagadas sazonalmente,
delimitado a oeste pelos Andes; a leste pelo rio Paraguai e Paraná; ao nortepelas zonas de selva Ama-
zônica na Bolívia e o planalto Mato-Grossense. Mais de vinte línguas pertencentes a sete famílias
linguísticas são ou foram faladas na região. As famílias com distribuição exclusiva no Gran Chaco
são: Enlhet-Enenlhet, Guaicuru, Lule-Vilela, Mataco, Zamuco, bem como as línguas isoladas Paya-
guá, Guachí e Guató. Em contato com essas famílias temos a presença de várias línguas Tupí-Guaraní,
Quechua, ao sul (Quichua de Santiago del Estero) Aruák (Terena, Kinikinao, Chané, Guaná).

229
Como vemos, a região possui representantes das grandes famílias linguísticas sul-americanas, as
quais se diversificaram e entraram em contato com as línguas autóctones. Com exceção dos falantes
de línguas Aruák, Quechua e Tupí-Guaraní que mantiveram uma cultura mais diferente dos demais
povos da região (ainda que em alguns casos com contatos intensos), os demais povos do Gran Chaco
foram considerados como parte de uma mesma área cultural. Segundo Murdock (1951), as sociedades
locais praticam uma agricultura de pequena escala (e.g. milho, mandioca-doce, feijão, abóbora), tendo
vivido historicamente principalmente da caça, pesca e coleta de vagens e outros produtos silvestres.
Desde um ponto de vista da difusão de elementos linguísticos, algumas características encontradas
em diferentes línguas do Gran Chaco estão resumidas no Quadro 22.
Quadro 22: Características areais do Gran Chaco (Comrie et al. 2010; Campbell et al. __)
§ ordem das palavras SVO
§ gênero gramatical
§ extenso conjunto de afixos verbais direcionais
§ classificadores possessivos, especialmente para animais
§ alinhamento argumental ativo-estativo
§ presença de tempo nominal e ausência de tempo verbal
§ conjunto complexo de demonstrativos
§ presença de segmentos tipicamente andinos, como [p’], [q] e [ɬ]

Comrie et al. (2010) analisam o Chaco como uma área linguística a partir de sua análise sobre a
difusão de elementos linguísticos entre as línguas Pilagá (Guaicurú), Wichi (Mataco), Vilela (Lule-
Vilela) e Tapieté (Tupí-Guaraní). Segundo os autores, o padrão de difusão areal sugere um arranjo
do tipo centro-periferia, em que no centro teríamos línguas Mataco e Guaicurú, de onde emanariam
as principais inovações ou traços areais, enquanto nas periferias teríamos grupos como Vilela e Ta-
piete. O problema com a definição do Chaco como uma área linguística é que os traços estruturais
compartilhados nas línguas da região são bastante comuns e recorrentes nas línguas em geral ou são
encontrados em línguas para além do Chaco. Entre eles, temos ordem de palavras SVO, gênero gra-
matical e os extensos conjuntos de afixos direcionais verbais. Certas características são típicas de
línguas Tupí-Guaraní, como classificadores possessivos (especialmente para animais), alinhamento
argumental ativo-estativo, tempo nominal, bem como os demonstrativos.
Quanto aos traços fonológicos, Michael et al. (2014:49) afirmam que “a Patagônia e o Chaco
constituem uma área fonológica essencialmente contígua com os Andes Meridionais”. Essa afirmação
se sustenta por uma estudo de tipologia areal em larga escala na América do Sul em que os autores
notaram que a ocorrência numa mesma língua de segmentos como [q], [p’] e/ou [ɬ] seria uma

230
propriedade proto-tipicamente andina, mas também recorrente às línguas do Chaco e outras áreas no
Cone Sul. Outros autores oferecem duas possibilidade para explicar tal fenômeno: comércio entre
Tiwanaku entre 100 d.C e 1100 d.C ou processos muito mais antigos de empréstimos fonológicos
possivelmente multilaterais. No lado brasileiro, a região do Pantanal serviu de ponto de encontro para
diferentes grupos indígenas. Os Guarani percorreram a região de leste a oeste a caminho dos Andes,
enquanto vários grupos utilizavam a bacia do rio Paraguai como rota comercial e de comunicação de
norte a sul. Estas encruzilhadas persistiram ao longo do tempo, mesmo após a chegada dos coloniza-
dores europeus (Godoy e Balykova 2023.
Essa teia de traços compartilhados entre as línguas do Chaco e as línguas além do Chaco
complica as tentativas de definir a região como uma área linguística. Não existe um único traço en-
contrado exclusivamente no Chaco, tampouco um traço que seja recorrente a todas as línguas da
região. Nesse sentido, Campbell (2017) considera o Chaco como um bom exemplo de uma área de
traços difusos, e não de uma área linguística.
Os processos históricos por trás dessa teia de relações são complexos. Por um lado, eles re-
montam a uma diversidade autóctone e dinâmicas locais; por outro, pela presença de povos Tupí-
Guaraní e Aruák, bem como redes de relações de trocas com os Andes e a Amazônia. A isso se cruza
dois tipos de relações sociais: as mais simétricas e as mais assimétricas. As relações mais simétricas
podem ser observadas em três línguas da família Mataco – Chorote, Nivaclé e Wichí – que estão
numa situação de contato intensa em Misión de La Paz, uma comunidade no norte da Argentina.
Nessa localidade, a maioria das interações é multilíngue – cada participante em uma conversa nor-
malmente fala sua própria língua. As pessoas se comunicam regularmente com falantes de línguas
diferentes, mas geralmente não na mesma língua que lhes é dirigida. A língua que uma pessoa se
identifica e usa poder se a que o pai ou a mãe fala, a depender de escolhas pessoas. O sistema de
parentesco a corresidência, faz com que haja muitos casamentos linguisticamente exogâmicos,
quando os cônjuges não falam a mesma língua ou ao menos não possuem a mesma língua de identi-
ficação. De modo irônico, as línguas nessa situação parecem estar se desenvolvendo não no sentido
da convergência, mas da resistência e divergência (ver seção 5.1.5).
Por outro lado, há padrões de relações assimétricas, que eventualmente causam processos de
deslocamento linguísticos e mudanças linguísticas por interferência. Eles ilustram como a diversifi-
cação pode ocorrer mesmo em contextos de forte assimilação. Um caso em particular é o dos Chané
que falavam uma língua Aruák no passado. Tendo vindo do Norte, os grupos Aruák se estabeleceram
em diferentes regiões do Gran Chaco, provavelmente durante o primeiro milênio depois de Cristo, e
empreenderam diferentes atividades relacionadas à agricultura e ao comércio (Eriksen 2011). Os
Chané mediavam o comércio entre os grupos das terras altas dos Andes meridionais e vários grupos
das terras baixas do Gran Chaco, que falavam as línguas Mataco, Guaicurú, Enlhet e Tupi-Guaraní
(Métraux 1946:211). Os Chané e seus vizinhos Tupí-Guaraní do leste, os Chiriguano, trocavam milho
por peixe seco ou defumado com os grupos Toba, Mataco e Chorote do Chaco, falantes de Mataco-
Guaicurú (Métraux 1946:301), e essa rede comercial se estendia mais ao sul e leste no Gran Chaco.
Os Chiriguano embarcaram em várias migrações através do Chaco durante o final do período pré-
colonial e ainda que os Chané superassem demograficamente, foram eventualmente subjugados e
adotaram a língua Chiriguano. Sua língua original Aruák teria sobrevivido como uma segunda língua
usada apenas em cerimônias religiosas. Um dos efeitos do deslocamento linguístico Chané foi o sur-
gimento de interferências ou reminiscências Aruák na fala Chiriguano dos Chané (ver exemplos na
seção 6.1.2). Alguns outros dialetos Chiriguano também são socioletos de outros povos outrora sub-
jugados. Por exemplo, “Tapieté” é o nome de um grupo social e de sua língua; ele vem da forma
superlative da palavra tapɨi ‘servidor’ e se refere a um povo do Chaco que fora também “chiriguani-
zado”, mas que não podia ser totalmente subjugado, ainda que dependiam dos Chiriguano e, de tem-
pos em tempos, trabalhavam para eles (Dietrich 1986: 21).

6.3.6 Os Andes e a “Esfera Inca”


Os Andes compreendem o que se convencionou chamar de Terras Altas da América do Sul, que vão
desde a Terra do Fogo, no extremo sul do continente, até o extremo oeste da Venezuela, no norte. Os

231
rios formados pelo degelo andino descem em direção ao Pacífico (encosta ocidental) ou para as Terras
Baixas (encosta oriental). A região andina compreende _ línguas, pertencentes a __ famílias linguís-
ticas, sendo _ isoladas. As famílias linguísticas mais extensas da região são a família Quechua, Chi-
bcha, Mapundungun. Os Andes foram divididos por Adelaar e Muysken (2004) em cinco regiões
gerais multilíngues. Entre elas, três foram analisadas como “esferas culturais”: as esferas Chibcha,
Inca, Araucânia, assim denominadas segundo a presença dominante de línguas Chibcha, Quechua e
Araucânia nessas zonas historicamente. Segundo os autores
[…] A história dos Andes é caracterizada por uma alternância entre períodos de maior comunicação e
integração de diferentes povos e línguas, e períodos de fragmentação e desenvolvimento individual. Por
esta razão, devemos encontrar, ocasionalmente, uma perspectiva intermediária entre a região andina como
um todo e as línguas individuais. Tentamos estabelecer isso descrevendo as línguas andinas agrupadas em
diferentes “esferas”, zonas que em diferentes momentos funcionaram como unidades. Dentro dessas esfe-
ras culturais, as línguas se influenciaram, às vezes profundamente. Daí nossa repetida insistência no fe-
nômeno do contato linguístico [...]. (Adelaar e Muysken 2004: 4)

A “Esfera Inca” é delimitada pelas zonas de controle do Império Inca no momento de sua maior
extensão sob o governante Huayna Capac (c. 1520), incluindo as regiões andinas e pacíficas do Equa-
dor, Peru, Bolívia, norte do Chile e norte da Argentina. É uma zona política onde línguas Quechua se
tornaram gradualmente mais dominante. Outra língua regionalmente importantes é o Aymara, mas
ainda que falada por uma grande população, ficou territorialmente mais restrita. Barbacoa, no Andes
Setentrionais. Historicamente, a língua Pukina teve também grande prestígio. Para além de Quechua
e Aymara, a Esfera Inca compreenda as famílias Barbacoa, Uru-Chipaya e cerca de 7 línguas isoladas.
Entre elas, destacam-se o Pukina, língua que teve também grande prestígio até o início do período
colonial, e o Mochica, língua do povo que criou o primeiro estado nos Andes cera de 100 d.C.

Quechua e Aymara compartilham um grande número de semelhanças estruturais, fonológicas e lexi-


cais. Isso é frequentemente tratado como um produto de convergência de longo data, como resultado
de um intenso período de entrelaçamento social e cultural (Adelaar e Muysken 2004; ver também
discussão sobre a hipótese Quechumara na seção 4.3.2). Ao mesmo tempo, os efeitos do contato
linguístico entre Quechua e Aymara com outras línguas remonta há mais de seis séculos. Como

232
resultado desse longo e intenso processo de contato – sobretudo com as línguas Quechua sendo do-
minantes sobre outras línguas indígenas locais – a linguística areal tem apresentado algumas caracte-
rísticas que foram analisadas como tipicamente “andinas”, conforme resumido no Quadro 23.
Quadro 23: Características areais dos Andes (Adelaar 2008, Aikhenvald 2007, Torero 2002)
§ Fonologia: poucas vogais, sílabas fechadas (CVC), oclusiva uvular, duas ou três consoantes lí-
quidas, sem tons lexicais, sem harmonia nasal
§ Numerais decimais
§ Morfologia aglutinante e sufixante
§ Modificadores nominais precedendo os núcleos do sintagma
§ Ausência de gênero e classificadores
§ Sistemas de alinhamento acusativo-nominativo
§ Contraste entre primeira pessoa inclusivo e exclusivo

Quechua e Aymara tendem a dominar as visões de como é a Área Linguística dos Andes Centrais.
No entanto, a imagem da diversidade linguística andina antes da conquista espanhola e do império
inca parece sugerir maior diversidade. Matthias Urban (2019) examinou detalhadamente cada um dos
supostos traços areais andinos e descobriu que muitos deles não são encontrados em muitas das lín-
guas não-Quechuas e não-Aymaras da região. Por exemplo, Chipaya e Cholón têm sistemas de gênero
e Mochica e Cholón têm um conjunto de classificadores numerais; várias línguas possuem prefixos.
Urban (2019: 217) concluiu que as evidências não apoiam uma área linguística bem definida com-
preendendo todos os Andes Centrais estritamente definidos, e que a homogeneidade percebida é par-
cialmente devida a uma ênfase exagerada nas famílias linguísticas sobreviventes e eventualmente
maiores dos Andes Centrais, ou seja Quechua e Aymara.
A região do Sopé Oriental dos Andes, a partir dos rios que descem para o Oeste da Amazônia,
tem sido uma área de encontro entre influências das Terras Altas e Baixas. Por um lado, apesar de
não haver muita assimilação cultural, há uma farta evidência de influências das línguas Quechua na
região. Adelaar e Muysken (2004: 499-500) mencionam a existência de diversos empréstimos lexi-
cais com origem em Quechua, como Shuar (Chicham) ʃaja e Muniche (Isolada) saʔa do Quechua saɾa
‘milho’, e a difusão dos numerais Quechua para diversas línguas como o Conibo, Shipibo e Takana
(Pano-Takana), Yanesha (Aruák), Yameo (Peba-Yagua) e Uariana (isolada) (ver seção 5.1.2 para
empréstimos em cadeia envolvendo palavras para ‘galinha’). Influências mais gramaticais envolvem
a adoção de sufixos derivacionais e marcadores de caso em línguas como Yanesha, Shuar e Cholón.
Por outro lado, uma análise de tipologia areal com traços morfossintáticos por Van Gijn (2014) sugere
que as línguas do Sopé Oriental pertencem a dois tipos areais: aquelas com um perfil tipológico menos
típico de outras línguas amazônicas e que apresentam maiores semelhanças com as línguas dos Andes
Centrais (possivelmente devido a uma ocupação mais antiga da região e contatos comerciais e sociais
mais intensos com grupos serranos) e aqueles mais próximos de um perfil tipológico amazônico,
especialmente as línguas Aruák, que podem ter chegado mais tarde à área. De fato, a situação de
contato linguístico reflete um continuum de características distintivas e semelhantes que fazem parte
da diversidade linguística cultivada na região por antigas ocupações e relações sociais locais e, pos-
teriormente, por diferentes ondas migratórias trazendo línguas de regiões mais distantes da Amazônia.
Hoje as línguas das famílias Aymara e Quechua dominam o Altiplano, mas segundo Wilhelm
Adelaar, elas não têm uma longa história ali. Em vez disso, sua “origem está mais ao norte, no centro
do Peru, de onde devem ter se espalhado para o sudeste em algum momento entre o Período Interme-
diário Final e a Era da Independência (c. 1300 a 1800 d.C). De fato, a área de influência da língua
Quechua, hoje, ultrapassa os limites do antigo Império Inca. Isso mostra que ela se expandiu durante
o período colonial (ver 6.2.3). Mas, considerando que os Incas adotaram uma língua Quechua devido
ao fato de que ela já era usada como uma língua franca na região, como ela teria chegado até ali antes
dos Incas?
A diversificação inicial do Proto-Quechua teria ocorrdio por volta de 500 d.C, separando as
variedades costeiras (descendentes do Proto-Quechua II) e as variedades das Terras Altas (Quechua
I), com provável origem nos Andes Centrais, especificamente nos vales dos rios que correm para a

233
costa do Pacífico no atual departamento de Lima, onde se encontra a maior diversidade de línguas e
dialetos antes da chegada dos espanhóis (Torero 2002: 48, 88). Supõe-se que a difusão inicial das
línguas Quechua esteja relacionada ao papel especial que o comércio de longa distância adquiriu para
muitos grupos locais na costa Pacífica, Terras Altas e no Sopé Oriental em tempos pré-coloniais, o
que teria como impulsão o papel proeminente nesse comércio de cidades de Pachacámac e Ica-Chin-
cha, ambas áreas de língua Quechua (Torero 2002: 94-103). Inicialmente uma língua de comércio e
de prestígio, o Quechua gradualmente teria se tornado a primeira língua de várias populações nativas
de áreas do Peru, Equador e Colômbia onde antes não se falavam línguas dessa família. Evidências
de substrato linguístico e genética populacional sugerem que muitos falantes de Quechua de hoje em
dia eram falantes de outras línguas no passado (Torero 2000, Muysken 2009, Reich 2011, Moreno-
Estrada et al. 2013, Sandoval 2016, Barbieri 2017). Alguns autores, no entanto, são mais cautelosos
com hipóteses de uma expansão da língua Quechua e seu uso generalizado como língua franca antes
do Império Inca. Eles veem nas ações do Império (o qual, no entanto, teve duração de apenas 60 anos)
e do período colonial a grande impulsão do que levou as línguas Quechua a seus mais variados luga-
res, tanto nas Terras Altas quanto nas Terras Baixas, onde em muitos casos se tornou a primeira língua
das populações locais. Os Incas parecem ter exercido o controle e restringido muito do comércio de
longa distância que caracterizava os vários estados pré-incaicos independentes; em seu lugar, promo-
veram a autossuficiência de regiões e causaram deslocamentos demográficos de longa distância de
militares e colônias (ou mitimas) vindos principalmente do sul do Peru para se estabelecerem em
diferentes lugares do império (Adelaar e Muysken 2004: 167). No entanto, a extensão dos territórios
que foram realmente “quechuanizados” como resultado de formas de migração coagidas pelos incas
é altamente discutível. Heggarty (2014) afirma que os incas foram os principais responsáveis apenas
por difundir sua própria forma local de Quechua de Cuzco mais ao sul, no sul da Bolívia. Além disso,
muitas pessoas no exército e mitimas podem não ter sido realmente falantes de Quechua como pri-
meira língua (Adelaar e Muysken 2004: 261, 319).

6.3.7 Contatos linguísticos entre as macrorregiões da América do Sul


As elevadas altitudes e ambiente rochoso dos Andes contrastam com as florestas, savanas e planaltos
da Amazônia e outras áreas das Terras Baixas da América do Sul. Esse contraste passa por transições
graduais ao longo do curso dos afluentes dos grandes rios que correm para leste nas Terras Baixas.
Quiçá pensavam nessa mesma metáfora ecológica Dixon e Aikhenvald quando, apesar de definirem
os Andes e a Amazônia como áreas linguísticas diferentes, notaram que “não há uma fronteira nítida
entre as áreas linguísticas amazônica e andina: elas tendem a fluir uma para a outra” (1999: 10). Ainda
que os estudos mais recentes não confirmem os Andes e a Amazônia como áreas linguísticas propri-
amente, como vimos, elas se distinguem e se conectam enquanto macrorregiões multilíngues da Amé-
rica do Sul.
Estudos de tipologia areal em grande escala na América do Sul têm contribuído para esse
debate ao mostrar que há de fato uma diferença entre áreas mais Ocidentais e Orientais, mas que essa
divisão se dá, precisamente, entre o Sopé Oriental e o oeste das Terras Baixas. Muysken e Crevels
(_) notam uma correlação entre a divisão genética das populações indígenas e padrões tipológicos das
línguas da América do Sul, o que parece refletir duas grandes macro-áreas: o Ocidente do continente,
incluindo o litoral Pacífico, Cone Sul, os Andes, Orinoquia e uma grande parte da Amazônia Ociden-
tal e Meridional; e o Oriente, incluindo o restando do continente até o litoral Atlântico. No geral, as
línguas da parte ocidental do continente mostram menos diversidade do que as da parte oriental
(Muysken, Hammarström, Krasnoukhov et al. 2014).
O estudo tipológico de Krasnoukhova (2012) sobre o Sintagma Nominal nas línguas indígenas
da América do Sul ilustra bem esse padrão. A Tabela 57 resume os dados encontrados pela autora
que reforçam a divisão Ocidental e Oriental na América do Sul, enquanto o mapa da Figura 37 ilustra
a distribuição de dois traços tipológicos: presença e ausência da distinção alienável e inalienável e a
ordem do nome e o modificador atributivo (“adjetivo”). Para melhor visualizar como sua distribuição
reflete numa divisão do continente em seções Ocidental e outra Oriental, traçamos linhas de isoglos-
sas para cada traço tipológico (ignoramos o mínimo possível de casos mais discrepantes).

234
Tabela 57: distribuição de traços tipológicos que diferenciam as macro-áreas Ocidental e Oriental
na América do Sul (Krasnoukhova 2012)
Macro-área Ocidental Macro-área Oriental
Modificadores pré-nominais Modificadores atributivos pós-nominais
Ausência de gênero e classificadores Presença de gênero e classificadores
Conceitos adjetivais expressos como nomes Conceitos adjetivais expressos como verbos
Ausência de distinção alienável vs. Inalienável Presença de distinção alienável vs. Inalienável

Figura 37: distribuição tipológica de ‘ordem sintática entre adjetivo e nome’ e ‘presença ou asuência
de distinção entre posse alienável vs. inalienável' em línguas da América do Sul (a partir de dados
de Krasnoukhova 2012)

Notemos como as linhas se aproximam e se distanciam em certas regiões. Muito importante notar
que os limites que separam o que é Oriental ou Ocidental não se alinham totalmente no que seriam
Terras Altas ou Terras Baixas. Ambas as linhas cortam por áreas como o Noroeste Amazônico, a
Amazônia Ocidental, Meridional e a Bacia do Rio Paraguai. De fato, alguns padrões orientais se
encontram profundamente no ocidente e vice-versa.
Joshua Birchall (2014) realizou um estudo semelhante focando nos padrões de marcação ar-
gumental nos verbos. Ele encontrou correlações entre padrões tipológicos e áreas etnográficas espe-
cíficas, bem como como macrorregiões da América do Sul. Há uma clara região Ocidental que
abrange áreas amazônicas e andinas, e que tipologicamente mostram um padrão alinhado com as
línguas Quechua e Aymara. Já a região Oriental contém todas as línguas Karib, Macro-Jê, bem como
a maioria das línguas Tupí, o que obviamente nos lembra que essas famílias estão em contato por um
longo período e em lugares diferentes, e há ainda uma boa chance de estarem geneticamente relacio-
nadas (ver seção 5.4.2). Além dessas grandes famílias, há várias línguas isolados e pequenas famílias
que também compartilham muitas dessas características. Algo notável em seu estudo é que não há
uma única característica tipicamente amazônica. Por exemplo, Birchall (ibid: 203) constata que o
alinhamento ergativo, sugerido por Dixon e Aikhenvald (1999) como uma característica geral da
Amazônia, tem uma associação estatisticamente significativa apenas com a região Sul da Amazônia
e o Oriental na América do Sul.

235
Em outro estudo, evidências foram encontradas para uma área de difusão de características
fonológica centrada no Altiplano Andino, com extensões a regiões do Sopé dos Andes Central e
Setentrional, região do Gran Chaco e Patagônia. Por exemplo, Michael et al. (2015) realizaram um
levantamento em larga escala dos inventários fonológicos das línguas da América do Sul e concluem
que os segmentos uvulares (como [q]) e glotalizados (como [p’], [t’], [k’]) são características das
línguas Andinas e também do Gran Chaco.
A explicação para como essas características teriam se difundido em regiões multilíngue tão
vastas e ao mesmo tempo traçarem isoglossas de macro-áreas é naturalmente complexa. Ela envolve
desde o povoamento inicial América do Sul e a separação entre populações da rota Pacífica e Atlân-
tica (ver ), a processos de difusão mais recentemente. Apesar de terem marcadas diferenças genéticas
desde há pelo menos uns 9 mil anos, uma clara separação entre elas teria ocorrido não antes do que
há cinco mil anos (ver seção 1.4.1). Por exemplo, é possível que cada área tenha configuração tipo-
lógico devido à maior influência de diferentes línguas ou família linguística mais dominantes. Nota-
mos que as propriedades do sintagma nominal elencadas por Krasnoukhova (ver Tabela 57) são ca-
racterística típicas de línguas Quechua e Aruák, como perfis de línguas ocidentais e orientais, respec-
tivamente. Para Birchall, o perfil de sua região ocidental é tipicamente Quechua e Aymara, enquanto
na região oriental é, sobretudo, Tupí, Karib e Macro-Jê. Evidências mais claras de interação mais
intensa entre as duas populações são de um período mais recente. Como notado por estudos de gené-
tica e de arqueologia, houve uma maior influência de populações andinas nas áreas do Sopé Oriental,
um cenário da extensão da influência de sociedades com a de Tiwanaku e Inca das Terras Altas nos
últimos milênios (Santos 2020, Barbieri 2020, Wilkinson 2020).
Desde um ponto de vista sociolinguístico, os contatos entre línguas amazônicas são frequen-
temente associados a relações sociais relativamente igualitárias, simétricas e baseadas em relações de
parentesco, como intercasamentos. Por outro lado, domínio militar, econômico, religioso e político
recebem maior importância nas análises das ecologias linguísticas andinas. Segundo Emlen (2016),
isso obscureceu a importância de relações linguísticas mais localizadas, não hierarquizadas, e relati-
vamente simétricas que também ocorre entre povos vizinhos nos Andes, particularmente antes do
período Inca e durante os tempos de desintegração política. Com base na investigação em como
Quechua, Matsigenga (Aruák) e espanhol são falados por uma rede ininterrupta de pessoas com dife-
rentes elos de parentesco, ligando as comunidades Matsigenka do Vale do Urubamba a ao Altiplano
no Sul do Peru, Emlen sugere que a divisão entre Andes e Amazônia pode ser melhor pensada se
olhamos para o oeste da Amazônia e o Sopé Oriental dos Andes como uma grande rede de contatos,
interligando áreas mais ao leste e mais ao oeste no continente.
Nessa linha, existem certas evidências que sugerem uma relação mais estreita entre as Terras
Altas e Baixas em períodos históricos pré-Incaicos, inclusive com maior influência das Terras Baixas
sobre as Terras Altas. Adelaar (2020) analisa evidência de uma suposta influência de línguas amazô-
nicas e do Sopé Oriental em línguas faladas nas Terras Altas, em particular o Pukina, que parece ter
desempenhado um papel importante na área dominada pela civilização de Tiwanaku. Michael et al.
(2015) sugerem antigas rotas comerciais envolvendo plantas medicinais usadas em rituais como dos
pajés Callahuaya para explicar uma difusão de características fonológicas andinas para o Gran Chaco.
Desde um ponto de vista cultural, Hornborg (2020) menciona que as práticas medicinais dos Calla-
huaya requerem o uso de várias ervas das Terras Baixas. Essa tradição xamânica, que está na origem
do surgimento da língua mista Callahuaya (ver seções 3.2 e 6.2.2), parece remontar ao século VIII,
época do apogeu de Tiwanaku – a grande civilização do Altiplano Boliviano que muito influenciou
as culturais das Terras Altas. Wilkinson (2018) sugere que a formação de redes de comércio com a
diáspora Aruák nas Terras Baixas criou as condições para o fornecimento em alta escala de penas de
arara como artigos de luxo da nobreza Inca. Hornborg (2020) oferece outros exemplos de conexões
culturais de longa distância entre sociedades pré-históricas nos Andes e na Amazônia com evidências
arqueológicas datadas em 2 mil anos ou mais. Entre eles, destacam-se o caso de Chavín de Huantar
e San Agustín – localizadas, respectivamente, nos Andes Centrais, nas cabeceiras do rio Marañon, e
nos Andes Setentrionais, nas cabeceiras do rio Japurá-Caquetá. A iconografia de esculturas em pedra

236
de ambas as regiões milenares representa espécies de animais encontradas nas planícies amazônicas,
como onças, sucuris e jacarés (ver cerâmica Chavín na Figura do Apêndice Online 3).

237
7 As línguas indígenas hoje

Neste último capítulo, vamos nos aprofundar sobre a situação das línguas indígenas hoje. Vamos
aprender a analisar os fatores que determinam se uma língua está forte, ameaçada ou mesmo extinta,
e traçaremos um panorama da situação de vitalidade das línguas indígenas das Américas. Mergu-
lhando em alguns cenários e temáticas mais específicas, vamos terminar por ressaltar a importância
da vitalidade linguística, os riscos que ela ocorre, o quê se perde quando a diversidade linguística está
em crise e as tarefas que cabem à linguística neste cenário.

7.1 Vitalidade linguística


7.1.1 Bases existenciais das línguas
A noção de vitalidade linguística propõe uma visão das línguas como um ser orgânico. Em um para-
lelo com as espécies biológicas e com os ecossistemas, podemos compreender que a vitalidade das
línguas passa pela avaliação do que aqui chamamos de bases existenciais das línguas, conforme re-
presentado no diagrama da Figura 38.42 Ao colocar a língua no centro, ressaltamos que a língua en-
quanto um código oral, escrito e/ou sinalizado depende e abrange dimensões em dois eixos. No eixo
superior, temos sua relação com os indivíduos enquanto falantes, com o grupo social enquanto uma
comunidade de fala, e com o espaço ou meio ambiente enquanto o território de uma comunidade. No
eixo inferior, temos a dimensão do saber que materializa a língua como um código linguístico e cul-
tural que seus falantes dominam para produção e percepção da linguagem, a dimensão do usar que
projeta a língua dentro de funções comunicativas nos mais variados contextos sociais, enquanto a
dimensão do identificar-se coloca as línguas como um valor simbólico para a identidade e a memória
de indivíduos e grupos sociais.
Figura 38: Bases existenciais das línguas

É a partir dessas dimensões que podemos dizer quão “viva” está uma língua. Uma língua está viva
enquanto ela pode tomar como base pelo menos uma única dimensão em cada eixo, mas estará extinta
quando perder por completo um de seus eixos. Exploremos isso um pouco, enfocando inicialmente
nas dimensões do eixo superior. Uma língua possui uma grande vitalidade se ela conta com diversos
falantes que a saibam, a usem e se identifiquem como ela no contexto de uma comunidade de fala
que possui um território próprio onde possa transmitir sua língua e cultura para diferentes gerações.
Existem línguas de comunidades sem um território próprio, como é o caso de muitos grupos ciganos,

42
A figura toma como base a teoria da Ecolinguística (Couto _) e uma visão das línguas enquanto um patrimônio cultural
e objeto de política pública, conforme proposto pelo Levantamento Nacional de Línguas Indígenas da Austrália (NILS
2005: 27) e o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) (Chacon et al. 2014).

238
ou povos indígenas que vivem acampados à espera da demarcação de suas terras. Desse modo, o
território em si não é uma dimensão necessária para a existência de uma língua. Porém, é uma dimen-
são importante, como prova o fato apresentado pelo Censo do IBGE 2010 de que quase 80% de
pessoas indígenas no Brasil que falam apenas o português (e não mais suas línguas originais) vivem
fora de Terras Indígenas. Por outro lado, uma língua também pode continuar existindo mesmo se já
não há mais uma comunidade de fala coesa. Isso ocorre quando temos a dissolução de um grupo
social devido, por exemplo, à expulsão de suas terras. A língua vai continuar existindo na mente de
seus últimos falantes, mas estará fadada a desaparecer se não for transmitida a novas gerações.
Agora, voltemo-nos para o eixo inferior. Se um falante ideal é alguém que conhece, usa e se
identifica com uma língua, podemos pensar num tipo de falante que sabe e usa, mas não se identifica.
A noção de “identificação” se baseia no campo íntimo e ao mesmo tempo cultural, no fato de um
grupo social ter uma determinada língua como uma referência cultural comum, como uma marca de
identidade das pessoas que pertencem àquele grupo, ou, no nível individual, como um signo afetivo,
diferenciado de outras línguas que a pessoa possa conhecer. Por exemplo, podemos no Brasil usar o
inglês apenas para fins profissionais, sem necessariamente desenvolvermos uma identidade angló-
fona. O reverso também existe, especialmente em situações de línguas ameaçadas, pois uma pessoa
pode se identificar com uma língua por ser um elemento definidor de sua identidade, e, no entanto,
não a utilizar por não conhecê-la de modo satisfatório. Há pessoas que sabem e se identificam com
uma língua, mas não a usam, pois talvez seu uso tenha sido proibido pelas autoridades, talvez tenha
vergonha de usá-la, ou mesmo não tenha ninguém com quem falar.
O uso de uma língua é algo essencialmente social; usamos uma língua para falar com pessoas
de nosso convívio que também conhecem a mesma língua, ou também usamos com quem ainda esteja
aprendendo. Por isso, o uso de uma língua é essencial para sua transmissão de pessoa a pessoa, gera-
ção a geração. Os usos de uma língua podem ser amplos e abarcarem toda a vida social dos indivíduos
ou podem ter sido restringidos a poucos contextos. Quanto mais amplos forem os usos de uma língua,
maior vitalidade ela terá. Quanto mais estiverem se reduzindo os espaços de usos de uma língua,
menor vitalidade ela demonstra. É possível “usar” uma língua com a qual nos identificamos, sem
necessariamente saber ou ser fluente nessa língua. Os rituais religiosos, as canções, e outras formas
de viências linguísticas e culturais nos mostram isso. Algumas pessoas sabem muito bem uma língua,
enquanto outras pessoas podem conhecê-la em menor grau ou mesmo não saber nada sobre a língua.
Se ninguém mais sabe a língua, ela estará extremamente ameaçada. Se ninguém mais sabe uma lín-
gua, mas ainda há pessoas que se identificam com essa língua, a experiência nos mostra que a comu-
nidade poderá revitalizar sua língua no futuro.

7.1.2 O que torna uma língua indígena forte, ameaçada ou extinta?


Entre o que seria a vida e a morte das línguas, podemos reconhecer diferentes sinais sobre sua vitali-
dade. Uma língua ameaçada é aquela que está em risco de deixar de ser transmitida e usada por
membros de sua comunidade. Uma língua forte, por conseguinte, seria aquela que possui um bom
número de falantes que participam de uma comunidade que possui um espaço em que pode usar essa
língua nos seus vários contextos comunicativos, seja na criação e educação das novas gerações, seja
nos espaços familiares e nos espaços públicos, seja nos contextos de usos tradicionais e nos novos
contextos criados ao longo do tempo, seja pelo uso da língua na comunicação face à face ou por meio
de textos escritos. Existem diferentes escalas, no entanto, que caracterizam quão forte ou quão ame-
açada está uma língua, e a extinção seria o ponto final nessa escala. Antes de analisarmos os principais
pontos que determinam variações nessa escala, vejamos o que causa alterações nas bases existenciais
das línguas e as colocam em situação de ameaça ou extinção:
§ Fatores que põem em risco os falantes e a existência da comunidade: alguns fatores podem fazer
com que a comunidade de fala em que se usa uma determinada língua se dissolva, tais como:
§ Guerras, disputas internas, epidemias ou desastres naturais podem reduzir ou até eliminar com-
pletamente os falantes de uma língua. Neste último caso a língua estaria extinta, pois simplesmente
não haverá mais pessoas que possam falar, usar e transmitir a língua, tampouco existem pessoas
remanescentes dessas comunidades que poderiam revitalizá-la. Com uma redução drástica da popu-
lação, os falantes remanescentes podem estar reduzidos a uma população extremamente pequena de

239
modo que a existência do grupo social de falantes se encontra também ameaçada. Esses fatores
também podem forçar a migração e dissolução da comunidade, enquanto o uso e a transmissão da
língua em um novo contexto social poderia ser inviável.
§ Desterritorialização: a viabilidade de ocupar um território que garanta a coesão e autonomia de
uma comunidade pode estar em risco. Isso ocorre devido a invasões de grupos mais poderosos (como
garimpeiros, madeireiros, fazendeiros) ou à exaustão dos recursos naturais decorrente de sua explo-
ração desordenada. Sem a garantia de um território, membros de uma comunidade são forçados a se
realocar e/ou podem perder a autonomia e os laços sociais que favoreciam o uso de sua língua, sendo
obrigados a aprender e usar a língua de grupos dominantes que ocuparam seu território ou dos es-
paços para os quais tiveram de migrar.
§ Pressões demográficas e econômicas: a falta de condições ideais de vida para uma população den-
tro do território, como, por exemplo, a falta de assistência à saúde, acesso à educação, e acesso a
recursos econômicos básicos, pode fazer com que os falantes tenham de migrar e ou se integrar de
forma assimétrica a áreas dominadas por outras línguas e outros grupos sociais.
§ Fatores que desfavorecem o uso e a transmissão de uma língua:
§ Políticas linguísticas: políticas linguísticas de países onde estão localizadas as línguas indígenas
podem ter um efeito negativo no uso e na transmissão de línguas minorizadas, atuando como uma
pressão de fora para dentro da comunidade. Por exemplo, políticas de educação que ignoram ou
excluam as línguas locais desfavorecem o uso da língua por crianças e ainda deixa de preparar as
pessoas para usar a língua indígena em contextos letrados. Além da educação, políticas linguísticas
negativas podem não reconhecer ou até proibir o uso das línguas indígenas em certos espaços pú-
blicos mais amplos, como em hospitais, igrejas, mídia, forças armadas, serviços públicos à popula-
ção, entre outros.
§ Ideologias negativas: alguns fatores inferiorizam uma língua enquanto um elemento de valor para
a identidade da comunidade. A falta de políticas linguísticas positivas para a valorização das línguas
indígenas, aliadas ao preconceito, discriminação e inferiorização econômica e cultural das comuni-
dades indígenas podem incitar ideologias negativas entre os próprios falantes dessas línguas. Nesses
casos, as línguas indígenas ficam associadas à “pobreza”, ao “atraso”, ao “analfabetismo”, enquanto
as línguas nacionais dominantes ficam associadas ao “progresso” e ao “futuro”. Isso gera muitas
vezes uma situação de interdição, vergonha e insegurança no uso da língua original de sua comuni-
dade, e essa passa a ter um estatuto secundário e minorizado, ficando restrita a situações de uso cada
vez mais limitadas, fazendo com que os membros de uma comunidade se sintam inibidos para usar
e transmitir suas línguas para as próximas gerações.
§ Desaparelhamento da língua para diferentes canais comunicativos: se as línguas são desde sua
origem apropriadas para a comunicação direta ou face a face entre os falantes, à medida que as
formas de interação social se complexificam ao longo da história são necessárias novas tecnologias
para adequar o uso da língua a novos canais de comunicação. Por exemplo, o desenvolvimento de
grafias é um requisito básico para o uso da língua em contextos escritos, como na escola, na litera-
tura, em jornais, entre outros. Além disso, para o uso da língua escrita em telefones celulares, com-
putadores e na internet faz-se necessário o desenvolvimento de sistemas especializados para repre-
sentar os sistemas de escrita que divergem do alfabeto latino básico.

Em conjunto, os fatores que acabamos de revisar podem criar uma situação de deslocamento
linguístico, ou seja, as pessoas deixam de falar a língua de sua comunidade em favor de uma outra
língua. O deslocamento pode afetar indivíduos ou toda a comunidade em um tempo curto, de uma ou
duas gerações, ou ser mais longo levando várias gerações, mas sempre passa por uma situação de
bilinguismo assimétrico em que a língua de uma comunidade se vê minorizada pela força de uma
língua dominante externa a essa comunidade. No fundo, isso gera uma crise em que a língua indígena
vai deixando de ser usada paulatinamente, de modo que as pessoas de gerações mais novas terão
menos oportunidades e um menor estímulo para aprender e usar a língua de sua comunidade. Isso
caracteriza uma situação de atrito entre uma língua minorizada e uma língua dominante, criando uma
situação de obsolescência linguística para a língua minorizada. Os reflexos desse processo podem ser
notados como sinais de ameaça a uma dada língua e se revelam em quatro indicadores principais,
conforme resumidos no Quadro 24.
Quadro 24: principais sinais de vulnerabilidade de uma língua

240
§ na diminuição no número de falantes ao longo do tempo
§ na diminuição da proficiência dos falantes
§ na crise da transmissão intergeracional de uma língua
§ na diminuição da frequência, espaços e situações de uso de uma língua
§ em disposições políticas e ideológicas que desvalorizam a língua como símbolo de identidade
para membros da comunidade

Mas o que torna uma língua extinta? Conforme introduzimos o tema no capítulo 1_, apenas
podemos falar que uma língua está extinta quando não existem mais falantes e quando não há mais
uma comunidade que vê em uma dada língua um valor para sua identidade e sua história coletiva.
Mesmo que o processo de deslocamento linguístico tenha sido total, não havendo mais pessoas que
saibam falar ou que lembram aspectos de uma dada língua, vamos evitar classificar que essa língua
está extinta sempre que ainda houver meios para que ela possa voltar a se falada. Falar que uma língua
está extinta quando ainda há pessoas que se identificam com ela e tenham vontade de revitalizá-la é
ofensivo, autoritário e um contrassenso. Nesses casos, vamos preferir nos referir a tal língua como
silenciada ou adormercida. Ela poderá ter novamente “voz” ou ser “despertada” se tiver ainda al-
gumas pessoas que sabe algo dessa língua, se tiver sido documenta e/uu houver recursos escritos e
audiovisuais que poderão ser usados para o ensino da língua em processos de reclamação e revitali-
zação linguística. Porém, sem uma comunidade, sem indivíduos que se identifiquem com a língua, a
documentação apenas serve para o registro histórico e para o interesse científico. Ao mesmo tempo,
uma língua que não foi propriamente documentada, escrita ou gravada em registros de áudio e vídeo
é uma língua que estará extinta caso faleçam seus últimos falantes e lembrantes, pois a comunidade
remanescente não terá meios pelos quais possa revitalizá-la.

7.1.3 As escalas e indicadores vitalidade


Tendo compreendido o que é e como podemos avaliar a vitalidade linguística, veremos agora como
podemos ter uma forma global para mensurar e comparar a vitalidade das diferentes línguas nas Amé-
ricas. Uma vez que a vitalidade é uma questão complexa e depende de muitas variáveis, os linguistas
desenvolveram escalas que classificam as línguas em diferentes graus de vitalidade. Para representar
a vitalidade linguística das línguas indígenas no continente americano, vamos apresentar as escalas
com maior cobertura global e depois elaboraremos uma combinação delas focando apenas nas línguas
de nosso continente.43
Fishman (1991), na obra Reversing Language Shift, desenvolveu a primeira ferramenta conce-
bida com o propósito de medir graus de vitalidade linguística. Ele tomou o deslocamento linguístico
como base para definir a perda de vitalidade e ilustrou como a transmissão intergeracional pode ser
um indicador-chave desse deslocamento, abrindo caminho para avaliar os graus de ameaça e permitir
que os pesquisadores abordem essa questão de forma sistemática. A suposição de que a transmissão
intergeracional e o uso contínuo da língua em vários domínios sociais são necessários para a viabili-
dade de qualquer língua agora está subjacente a todos os métodos mais recentes de avaliação da vita-
lidade linguística, como os que veremos a seguir.
Uma das propostas de escala de vitalidade mais amplamente usadas foi elaborada por um grupo
de especialistas reunidos pela Unesco entre 2002 e 2003.44 Esta escala classifica as língiuas em 6
43
As avaliações de vitalidade de uma língua não são meramente uma tarefa descritiva. Pensando no futuro, em como as
culturas e as sociedades são entidades dinâmicas, os diagnósticos de vitalidade são também prognósticos, pois devem
servir para basear políticas e planos de ações para revitalizar línguas que não estão mais sendo faladas, reverter situações
de deslocamentos linguísticos ou ainda promover ações que possam fortalecer certas línguas em certos contextos comu-
nicativos.
44
Essa convenção foi estabelecida durante a notória ECO-92 – a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992, mesmo ano em que foram publicados
um conjunto de artigos na revista Language chamando a atenção dos linguistas sobre a gravidade do tema, em especial o
trabalho de Michael Krauss World’s Language in Crisis. A reunião tinha dois objetivos principais: a construção do Atlas
Unesco das Línguas em Perigo (http://www.unesco.org/languages-atlas/) e desenvolver uma metodologia para um “Indi-
cador sobre a Situação e Tendências da Diversidade Linguística e Número de Falantes de Línguas Indígenas”, conforme
solicitado pelos Estados Partes na Convenção sobre Diversidade Biológica

241
níveis de vitalidade: 5- Segura; 4- Em risco; 3- Definitivamente em Perigo; 2- Criticamente em
Perigo; 1- Severamente em Perigo; 0- Extinta. Para estabelecer a escala, a Unesco propõe um
questionário com cerca de 24 perguntas sobre diversos aspectos sociolinguísticos. Pode-se realizar
uma avaliação holística da vitalidade de uma língua a partir das respostas a cada uma das questões,
e, em especial, a sete critérios principais destacados abaixo.
1) Transmissão Intergeracional: se uma língua não está sendo aprendida pelas crianças, passada de
geração em geração, ela está essencialmente fadada à extinção, a menos que os esforços de revitalização
sejam bem-sucedidos. Quanto maior a transmissão intergeracional, maior a probabilidade de sobrevi-
vência da língua.
2) Número Absoluto de Falantes: quanto menor o número absoluto de falantes, menor a probabilidade
de sobrevivência da língua a longo prazo.
3) Proporção de Falantes na População Total: Quanto menor for a proporção de falantes dentro de
uma comunidade de fala, menor será a vitalidade da língua.
4) Tendências do uso da língua em domínios linguísticos tradicionais: quanto mais forem reduzidos
os domínios tradicionais em que a língua é usada, maior seu grau de ameaça.
5) Resposta a Novos Domínios e Mídias: se a línguas não está sendo usada em novos domínios sociais,
como a internet ou a escola, menor será sua vitalidade.
6) Materiais para Ensino de Línguas e Alfabetização: quanto menos uma língua for documentada e
contar com recursos para seu ensino, menor será sua vitalidade
7) Atitudes ideológicas e políticas linguísticas existentes: uma língua estará mais ameaçada se seus
falantes se sintam inibidos para usá-la e se não há apoio de políticas públicas que garantam espaços e
estímulos para o uso dessa língua.

Observe que nenhum desses critérios deve ser usado sozinho. Uma língua que possui uma pontuação
alta de acordo com um critério pode merecer atenção imediata e urgente devido a outros fatores. As
perguntas esperam respostas que julgam a condição da língua e da comunidade linguística numa es-
cala de 0 a 5 pontos. Vejamos um exemplo abaixo sobre a questão da transmissão intergeracional de
uma língua:

Transmissão Intergeracional da Língua (Unesco)


5. Segura: A língua é falada por todas as gerações. Não há sinal de ameaça linguística de qualquer outra
língua, e a transmissão intergeracional da língua parece ininterrupta.
4. Em risco: A maioria, mas nem todas as crianças ou famílias de uma determinada comunidade, fala a
língua como sua primeira língua, mas seu uso pode estar restrito a domínios sociais específicos (como
em casa, onde as crianças interagem com seus pais e avós).
3. Definitivamente em perigo: A língua não é mais aprendida como língua materna pelas crianças em
casa. Os falantes mais jovens são, portanto, da geração dos pais, os quais ainda podem falar sua língua
com seus filhos, mas seus filhos normalmente não respondem na mesma língua de seus pais.
2. Severamente em perigo: A língua é falada apenas pelos avós e gerações mais velhas; embora a
geração dos pais ainda possa entendê-la, eles normalmente não falam nessa língua com seus filhos.
1. Criticamente em perigo: Os falantes restantes estão na geração dos bisavós e o idioma não é usado
para interações cotidianas. Esses idosos geralmente lembram apenas parte da língua, mas não a usam,
pois pode não haver ninguém com quem falar.
0. Extinta: Não há ninguém que possa falar ou lembrar o idioma.

O Catalogue of Endangered Languages45 (ELCat, “Catálogo de Línguas em Perigo”) é o re-


curso central do Endangered Languages Project (ELP, “Projeto Línguas Ameaçadas”) desenvolvido
pelo Google, que consiste em uma plataforma digital colaborativa para compartilhar informações e
recursos sobre os idiomas ameaçados do mundo. O ELCat reporta o grau de vitalidade baseado num
índice que leva em conta quatro fatores separados: transmissão intergeracional, número absoluto de
falantes, tendências no número de falantes (se estão crescendo ou aumentando) e domínios de uso da
língua. De modo similar ao Atlas da Unesco, cada fator terá uma pontuação de 0 (segura) a 5 (criti-
camente em perigo), como ilustramos abaixo para o critério domínios de uso da língua:

45
www.endangeredlanguages.com

242
Domínios de usos (ELCat)
0-Segura: Uso na maioria dos domínios, incluindo os órgãos oficiais, mídia de massa, educação, etc.
1-Vulnerável: Uso na maioria dos domínios, exceto nos governamentais, na mídia de massa, educação,
etc.
2-Ameaçada: Uso em alguns domínios públicos não oficiais junto com outros idiomas, além de conti-
nuar sendo o idioma principal usado em casa para muitos membros da comunidade
3-Em perigo: Uso principalmente em casa e/ou com a família, sendo o idioma principal desses domínios
para muitos membros da comunidade
4-Severamente em perigo: Uso principalmente em casa e/ou com a família, podendo não ser o idioma
principal mesmo nesses domínios para a maioria das pessoas
5-Criticamente em perigo: Uso apenas em alguns domínios muito específicos, como em cerimônias,
canções, orações, provérbios ou certas atividades domésticas limitadas

Para se chegar à classificação de uma língua em sua escala, mesmo quando as informações forem
parciais, o ELCat propõe uma fórmula baseada no somatório dos 4 principais fatores, sendo que a
transmissão intergeracional possui peso dobrado. Essa soma é dividida pela pontuação máxima total,
que pode chegar a 25 quando todos os fatores são utilizados. Depois esse resultado é multiplicado por
100 para se chegar a uma porcentagem.
Nível de Vitalidade = [{2x(transmissão intergeracional) + número absoluto de falantes + tendências no
número de falantes + domínios de uso da língua}/100] x 100
Com base no valor final, o ELCAT define os seguintes níveis de vitalidade:
§ Segura: 0%
§ Vulnerável: 1% a 20%
§ Em risco: 21% a 40%
§ Em perigo: 41% a 60%
§ Severamente em perigo: 61% a 80%
§ Criticamente em perigo: 81% a 100%

Notemos que o ELCat não inclui em seu catálogo línguas consideradas “seguras” (como, por exem-
plo, o Português ou Guarani Paraguaio), tampouco línguas consideradas completamente extintas. As
línguas que não se classificam sequer como “criticamente em perigo” são então analisadas como
“adormecidas” ou “em revitalização”. Outro diferencial da escala do ELCat é que ela gera um nível
de certeza, baseado em quantos dos quatro fatores foram usados na avaliação, o que permite que ela
seja usada e interpretada mesmo quando pouco se sabe sobre a situação de uma língua.
Outra proposta bastante influente é a do Ethnologue, que propõe uma classificação das línguas
em até 13 níveis da escala EGIDS (Expanded Graded Intergenerational Disruption Scale “Escala
Gradual Expandida de Ruptura Intergeracional”), destinada a fornecer uma avaliação geral tanto do
desenvolvimento quanto do grau de ameaça de qualquer idioma. Os níveis de 0 a 5 consideram línguas
que possuem uma transmissão intergeracional estável e que são usadas em contextos comunicativos
para além da comunicação face a face. Nos níveis 6a a 8b, temos línguas que estariam de fato amea-
çadas, pois estão limitadas ao uso social face a face e apresentam diferentes graus de transmissão
intergeracional. Por último, estão os níveis 9 e 10, que refletem línguas silenciadas ou adormecidas
(em que a língua é usada apenas como meio de identificação sociocultural) e línguas extintas (em que
sequer ainda existe essa função) (ver Tabela 58)46.
Tabela 58: escala de vitalidade linguística usada pelo Ethnologue
0 Internacional: A língua é amplamente usada 6a Vigorosa: A língua é usada para comunica-
entre as nações no comércio, intercâmbio de co- ção face a face por todas as gerações e a situ-
nhecimento e política internacional. ação é sustentável.
6b

46
https://www.ethnologue.com/about/language-status

243
Ameaçada: O idioma é usado para comuni-
cação face a face em todas as gerações, mas
está perdendo usuários.
1 Nacional: A língua é usada na educação esco- 7 Em deslocamento: A geração dos pais pode
lar, no trabalho, na comunicação de massa e no usar a língua entre si, mas ela não está sendo
governo em nível nacional. transmitida às crianças.
2 Provincial: A língua é usada na educação esco- 8a Moribundos: Os únicos usuários ativos re-
lar, no trabalho, na comunicação de massa e em manescentes da língua são os membros da
subdivisões administrativas de uma nação. geração dos avós e mais velhos.
3 Ampla Comunicação: A língua é usada no tra- 8b Quase Extinta: Os únicos usuários restantes
balho e na comunicação de massa, porém não são membros da geração dos avós ou mais
conta com status oficial. velhos com poucas oportunidades de usá-la
4 Educacional: A língua possui uso vigoroso, 9 Dormente: A língua serve como um em-
com padronização, literatura, um amplo sistema blema de identidade para um grupo social,
de educação apoiado oficialmente. mas ninguém apresenta algo além de uma
“proficiência simbólica”.
5 Desenvolvimento: A língua possui uso vigo- 10 Extinta :A língua não é mais usada e nin-
roso, com padronização, literatura sendo usada guém mantém um senso de identidade étnica
por alguns, embora isso ainda não seja difun- associado à língua.
dido ou sustentável.

7.1.4 Graus de vitalidade das línguas indígenas das Américas


Para produzir um quadro o mais completo e atualizado possível da vitalidade das línguas indígenas
das Américas, combinamos e revisamos as três bases de dados globais que discutimos na seção ante-
rior. Elaboramos uma escala pelo cruzamento dos graus de vitalidade da Unesco, ELCat e Ethnolo-
gue, conforme representado na Tabela 59. Os 9 níveis em que chegamos simplificam a escala do
Ethnologue ou expandem em parte os níveis adotados pela Unesco e ELCat.
Tabela 59: Graus de vitalidade e sua correspondência com diferentes escalas de vitalidade
Graus deste livro Unesco ELCat Ethnologue
0-Forte - 1, 2, 3
5
1-Vulnerável 1 4, 5, 6a
2-Em Risco 4 2 6b
3-Ameaçada 3 3 7
4-Em Perigo 2 4 8a
5-Em Grave Perigo 1 5 8b
6-Em Retomada 6 -
7-Silenciada 0 7 9
8-Extinta - 10

Para compilar os dados das línguas das Américas, partimos inicialmente do ELCat, pois ele parece
ser o mais bem atualizado, com colaboração de pesquisadores que melhor entendem a situação das
línguas das Américas, e triangulamos seus dados com as informações do Ethnologue e do Atlas da
Unesco. Sempre que havia um desacordo entre as bases, utilizamos as informações que estivessem
em acordo em pelo menos duas das bases ou checávamos informações secundárias. Ainda, reinseri-
mos línguas que faltavam ao ELCat, seja por essas terem sido consideradas “seguras”, seja por esta-
rem “extintas”. Adotamos o termo “silenciada” devido ao uso corrente que essa palavra vem adqui-
rindo no ativismo linguístico de muitos povos indígenas no Brasil (ver seção 7.3). Os resultados estão
resumidos no Quadro 25, na Figura 39 e na Tabela 60.
Quadro 25: Graus de Vitalidade nas línguas indígenas das Américas
§ Apenas 40 línguas (4%) não estão iminentemente ameaçadas de extinção (graus 0 e 1)
§ Línguas ameaçadas (graus 2 a 5) totalizam cerca de 639 línguas (65%)
§ Línguas em retomada somam 36 línguas (3,5%) (grau 6)

244
§ Línguas extintas ou silenciadas totalizam pouco mais de 260 (26%) (graus 7 e 8)
Figura 39: Distribuição do grau de vitalidade entre as macrorregiões das Américas

Tabela 60: Números absolutos e proporcionais dos graus de vitalidade das línguas das Américas e
suas macrorregiões
Graus de México e EUA e América do
Américas
Vitalidade América Central Canadá Sul
0: Forte 1 0 7 8
1: Vulnerável 29 0 3 32
2: Em risco 62 7 56 125
3: Ameaçada 59 19 99 177
4: Em perigo 17 23 78 118
5: Em grave perigo 17 113 89 219
6: Em retomada 2 29 5 36
7: Silenciada 11 58 61 130
8: Extinta 17 27 87 131
Totais 215 276 485 976

A região do México e América Central possui a maior parte de suas línguas num ponto mais alto da
escala de graus de vitalidade do que outras regiões. São 60% de língua ameaçadas ou em rsico (graus
2 e 3) e 14% fortes ou vulneráveis (graus 1 e 2). A América do Norte possui a situação mais grave
com uma alta concentração de línguas em situação de grave perigo (41%) (grau 5). A América do Sul
possui a maioria de suas línguas em situações de ameaça, perigo ou grave perigo (54%). Ambas essas
regiões contam com cerca de 30% de suas línguas silenciadas ou já extintas. É interessante notar que
a América do Norte lidera o processo de línguas indígenas em situação de retomada com 29 línguas.
Os critérios e graus que servem pata agregar situações distintas tem sua validade ao produzir
um quadro padronizado que nos permite comparar realidades muito diversas para as cerca de 7000
línguas do mundo. Ainda assim, é importante deixar claro que comparações globais e as bases de
dados que utilizamos nessa seção tendem a simplificar a complexidade das situações de cada língua.
Há também muitas assimetrias, inconsistências e discordância entre eles. Isso decorre não tanto pela
metodologia que utilizam para definir os graus de vitalidade (que, como vimos, tende a ser seme-
lhante), mas pela forma como adquirem seus dados. Por um lado, eles dependem de informações
censitárias e do conhecimento in loco de diferentes especialistas, o que nem sempre reflete estudos
detalhado feitos de baixo para cima com cada comunidade de fala. Por outro lado, a fonte de infor-
mações que utilizam cada uma das bases de dados que aqui revisamos não é a mesma. Por isso, na
seção seguinte exploraremos alguns estudos de caso em particular que ilustram com maiores detalhes
situações plasmadas pela os níveis de vitalidade que discutimos até aqui.

245
7.2 Sinais de ameaça: línguas em risco, ameaçadas e em perigo
As situações que vamos discutir nessa seção dizem respeito à maioria das línguas indígenas hoje,
cerca de 66% delas. Como denominador comum, essas línguas estão passando por um processo de
atrito e obsolescência (seção 7.1.2). Podemos perceber essas situações de diferentes maneiras, e aqui
vamos analisar indicadores que mostram quando as línguas passam a perder falantes, quando deixam
de ser transmitidas para as novas gerações, quando deixam de ser usadas em espaços sociais cruciais,
e quando pessoas da comunidade passam a ter atitudes negativas ao se sentirem diminuídos, inibidos
ou envergonhados para usar e transmitir sua própria língua.

7.2.1 Tendências demográficas


O indicador mais acessível para possamos estimar que uma língua esteja ameaçada são aqueles que
apontam para a distribuição de falantes da língua numa população. A quantificação do número de
falantes pode ser feita de modo mais detalhado e informativo se usamos algumas variáveis para ana-
lisar os dados, como diferentes períodos da história e o perfil demográfico dos falantes, como, por
exemplo, a idade, o gênero e a localidade onde vivem. Um ponto crucial é definir a escala e o escopo
que delimita a noção de população: estamos nos referindo somente à população étnica que tradicio-
nalmente fala(va) uma dada língua ou a uma população mais ampla que abrange pessoas indígenas e
não indígenas? Neste último caso, censo nacionais são uma boa base de informação para revelar
tendências demográficas que devem embasar macro políticas públicas.
É fato notório que a imensa maioria das línguas é falada por populações extramemente redu-
zidas se comparadas com a população das grandes línguas. A nível global, a Unesco (2006) chama
atenção para o fato de que 90% das línguas são faladas por apenas 4% da população mundial. No
Brasil, 50% das línguas indígenas são falados por menos de 100 pessoas, e 27% são faladas por menos
de 20 pessoas segundo dados do IBGE (2010_). Além de pequenas, há uma tendência de envelheci-
mento nessa população, como mostram os dados do IBGE que apontam que apenas 45,9% dos jovens
indígenas (5 a 14 anos) falam suas línguas. Outra tendência é a diminuição da fatia populacional
global que fala uma língua minorizada. Para ilustrar isso, vejamos os dados da Figura 40 que trazem
a proporção de falantes de línguas indígenas com relação ao total da população do México, um país
onde mais de 7 milhões de pessoas ainda falam uma língua indígena atualmente.
Figura 40: Porcentagem da população de cinco anos ou mais que falava uma língua indígena no
México entre 1930 e 2020 (Fonte INEGI, 2020 www.inegi.org.mx)

Em 1930, o México tinha 16,6 milhões de habitantes e cerca de 2,6 milhões de pessoas eram falantes
de línguas indígenas; já em 2020, a população total do país era próxima a 126 milhões, enquanto a
população total de falantes de línguas indígenas era de 7,8 milhões de pessoas. Vemos que, mesmo
se a população indígena e não indígena tenha crescido em números absolutos ao longo desse período,
a taxa de falantes cai de 16% para 6,2% entre 1930 a 2020. Em outras palavras, se a população total
cresceu cerca de 7,8 vezes de 1930 a 2015, a população de falantes de línguas indígenas cresceu
proporcionalmente menos, cerca de 3 vezes ao longo dos anos. Isso significa que o fosso social entre

246
os que falam e não falam uma língua indígena está aumentando, mostrando que aumentam cada vez
mais os casos de deslocamento linguístico e que as línguas indígenas estão perdendo espaço dentro
da sociedade mexicana.
Além da dimensão temporal, o uso de variáveis espaciais que categorizam os tipos de territó-
rios e a localidade em que habitam os povos indígenas podem nos ajudar a perceber outros tipos de
tendência na população de falantes.
Tabela 61: Número de pessoas indígenas maior do que 5 anos que reportaram falar uma língua
indígena e/ou o português conforme a localização do domicílio (se está dentro ou fora de Terra
Indígena) (dados IBGE 2010)
Línguas faladas Geral Nas Terras Indígenas Fora das Terras Indígenas
língua indígena e o português 165.420 21% 127.948 29% 37.472 11%
apenas língua indígena 128.429 16% 121.312 28% 71.17 2%
apenas o português 449.345 57% 137.512 32% 302.270 86%
outras línguas 43.480 6% 47.892 11% 5.061 1%
Total 786.674 100% 434.664 100% 352.010 100%
Figura 41: Número de pessoas indígenas maior do 5 anos que reportaram falar uma língua indígena
e/ou o português conforme a localização do domicílio (se está dentro ou fora de Terra Indígena)
(dados IBGE 2010)

Os dados resumidos na Tabela 61 e Figura 41 mostram que a localização do domicílio do falante é


um fator que está por trás do monolinguismo em português e manutenção das línguas indígenas. Por
um lado, ele é determinante para prever os casos de monolinguismo em português, uma vez que 86%
das pessoas indígenas que moram fora de uma terra demarcada não falam a língua de sua etnia. Por
outro lado, a residência dentro de um território próprio, as Terras Indígenas, é claramente um fator
que fortalece o uso e a transmissão de uma língua indígena, pois vemos que 57% dos habitantes de
Terras Indígenas falam suas línguas, enquanto fora das Terras são apenas 13%. O monolinguismo em
português dentro de Terras Indígenas parece mais equilibrado, mas ainda assim atinge 32% da popu-
lação. Em conjunto, esses dados revelam que o monolinguismo em português é uma ameaça às lín-
guas indígenas e que o fator de uma comunidade ter um território que ela controla impacta em aspec-
tos políticos, sociais, culturais e econômicos que refletem numa maior proporção de falantes dentro
das Terras Indígenas.
A quantificação dos falantes pode se dar por números absolutos e por números proporcionais
com relação ao total da população. Estimar o número absoluto é importante pois uma língua com um
baixo número de falantes está inerentemente fragilizada, pois a língua será levada mais facilmente à
obsolescências, dormência ou extinção se essa população for acometida situações súbitas e/ou catas-
tróficas, como guerras, doenças, fome, desastres naturais, etc. Por outro lado, o número de falantes
proporcional pode ser mais informativo do que o número de falantes absolutos, pois pode revelar
tendências de atritos entre uma língua dominante e uma língua minorizada. Iss se baseia na presunção

247
de que línguas faladas por toda ou grande parte da população nos levam a supor que elas estão sendo
usadas e transmitidas satisfatoriamente, enquanto línguas faladas por um grupo proporcionalmente
pequeno nos levam a supor que elas possuem pouco espaço na população e podem estar passando por
uma situação de atrito com uma língua dominante. Uma redução gradual no número de falantes acon-
tece por meio de situações de atritos linguísticos que culminam no deslocamento linguístico de toda
ou uma parte da comunidade. A redução ocorre devido a pressões sociais, culturais, políticas e eco-
nômicas que fazem com que a língua tradicional de uma comunidade seja cada vez menos usada e
transmitida para novas gerações, perdendo lugar para uma língua dominante. Nas situações das lín-
guas indígenas, a língua dominante tende a ser hoje em dia as grandes línguas nacionais faladas nas
Américas, como português, espanhol, inglês, francês e holandês, mas também encontramos casos em
que uma língua indígena assume o papel de uma língua dominante numa região, sendo usada como
língua franca e depois substituindo outras línguas como a primeira língua de diferentes comunidades,
como vimos na seção 6.2.3. Vejamos a Tabela 62, em que comparamos dados de número de falantes
absolutos e proporcional entre diferentes povos indígenas, contrastando as quantidades de falantes da
língua indígena própria de sua comunidade com e de falantes de uma língua dominante.
Tabela 62: Números de falantes absolutos e proporcionais para os povos Navajo (Na-Dené, EUA),
Kicwha (Quechua, Equador), Záparo (Equador), Angaité (Lengua-Mascoy, Paraguai), Guató (lín-
gua isolada, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e Akuntsú (Tupi, Rondônia 47
Língua Própria Língua Dominante
População
Povo Número de falantes Número de falantes
Étnica
absolutos e proporcional absolutos e proporcional
Navajo 266.000 171.000 64% Inglês 258.400 97%
Kichwa 30.000 30.000 100% Espanhol 27.600 92%
14%
Espanhol 14
Záparo 100 29 29%
Kichwa 100 100%
Espanhol 353 9%
Angaité 3.694 1030 28%
Guarani 2996 81%
Akuntsú 3 3 100% - 0 0%
Guató 419 2 0,004% Português 419 100%

Com base na Tabela 62, podemos dizer que o Kichwa é a língua que conta com maior vitalidade com
base no número de falantes absolutos e proporcionais. Ela é seguida pelo Navajo, Angaité e Záparo.
Por último temos Guató e Akuntús. Apesar de a população de falantes absolutos do Navajo ser uma
das mais altas nas Américas, sua proporção de falantes é baixa. Além disso, existem mais pessoas na
comunidade que são falantes bilíngües ou que falam unicamente o inglês. Isso revela uma situação
de deslocamento linguístico de um terço da população Navajo, sugerindo que exista um bilinguismo
assimétrico em que o inglês está substituindo o Navajo como primeira língua em boa parte de sua
comunidade. Já com relação ao Kicwha a situação é diferente, pois o alto número de falantes de
espanhol em si não apresenta um declínio imediato no número de falantes de Kichwa, o que sugere
que exista uma situação de bilinguismo estável nessa comunidade. Como veremos, no entanto, esses
dados não são suficientes para fazer uma análise completa, pois há outros sinais importantes que
revelam que o espanhol tem ampliado seu espaço dentro da comunidade Kichwa.
Por outro lado, as comunidades falantes de Záparo no Equador e Angaité no Paraguai possuem
uma baixa proporção de falantes de suas línguas tradicionais, e um quadro de deslocamento linguís-
tico não para o espanhol, mas para uma língua indígena que se expandiu como língua franca e depois
como primeira língua de muitas comunidades indígenas menores. Na comunidade de falantes de
Záparo, além de uma população pequena, a baixa proporção de falantes na língua tradicional de sua
comunidade e a baixa proporção de falantes de espanhol contrastam com o fato de o Kichwa, uma
47
A fonte de dados para o Kichwa, Záparo e Angaité foi Sichra (2009); para os Akuntsú foi PIB (2021); para os Guató
usamos o PIB (2021), bem como Godoy e Balykova (2022) e Balykova e Godoy (2021); para o Navajo foi o Ethnologue
(2017).

248
língua indígena e também uma língua franca, ser falado por toda sua população. Já na língua Angaité,
vemos uma população étnica que está na média do tamanho populacional de outros povos indígenas,
com apenas um terço dessa população falante da língua de sua comunidade. Por si só, uma baixa
proporção de falantes é revelador de um forte deslocamento linguístico para uma língua dominante:
81% das pessoas falam o Guarani Paraguaio como língua dominante, que é língua cooficial junta-
mente como espanhol. Já o espanhol está longe de ser a principal língua falada pelos Angaité.
Com relação aos Guató, vemos uma população étnica bem menor e com um número absoluto
e proporcional de falantes da própria língua extremamente reduzidos, o que mostra que é uma língua
em grave perigo. Já a língua Akuntsú, se olhássemos somente para a proporção de falantes, teríamos
a ideia de uma língua que não está sendo ameaçada por atrito com uma língua dominante. Porém, o
número absoluto de apenas 3 falantes nos mostra claramente que é o povo Akuntsú como um todo
que está sob ameaça. Guató e Akunstú contrastam pelas razões do porquê contam com tão poucos
falantes. A situação dos Akunstú é um caso de evento catastrófico, um massacre nos 1980 que quase
aniquilou a população total do grupo a mando pessoas interessadas em suas terras em Rondônia. Os
remanescentes foram apenas 7 pessoas que pertenciam à mesma família e não poderiam aumentar o
grupo, pois também não havia povos vizinhos com que eles intercambiassem casamentos. De lá para
cá, a situação piorou com o falecimento gradual dos últimos Akunstú, restando apenas 3 pessoas. Já
com relação aos Guató, vemos um caso de obsolescência gradual e um longo atrito com o português.
Há 40-50 anos, na Terra Indígena Guató, ainda havia um número considerável de Guató proficientes
na língua nativa. Além de causas mais gerais também compartidas com a situação de outros povos
indígenas, Balykova e Godoy (2021) apresentam três processos que levaram à desestruturação da
sociedade Guató, sua redução populacional e o crescente aumento de pessoas falantes de português:
§ O celibato de grande parte da população masculina, em que os homens Guató não encontravam
mulheres em número suficiente para se casar, devido tanto a uma epidemia de varíola quanto à
preferência das mulheres por se casarem com pessoas não indígenas. Como resultado, os homens
Guató não tinha filhos, diminuindo assim a população do grupo.
§ O casamento feminino com não indígenas, que fazia com que as mulheres Guató aprendessem e
usassem o português como a principal língua em suas vidas, além de que seus filhos cresceriam
falando o português por já estarem vivendo fora do contexto social e territorial do povo Guató.
§ O apadrinhamento/apropriação de crianças por fazendeiros, que sem viver com seus pais indíge-
nas, aprendiam a falar e usar apenas o português.

Podemos analisar a taxa de transmissão intergeracional pela quantificação de falantes através de di-
ferentes faixas etárias ou gerações numa população atual. Na Figura 42, vemos um gráfico para a
comunidade linguística Zapoteca (família Otomangue) na cidade de Juchitán de Zaragoza medindo a
proporção de falantes de Zapoteco e de espanhol entre 5 grupos de idades no ano de 2010. Compere-
mos os dados do Zapoteco com o da língua Máko (família Sáliba-Hodɨ).
Figura 42: Taxa de transmissão intergeracional do Zapoteco e Espanhol na cidade de Juchitán de
Zaragoza (Oaxaca, México) (Guerra-Mejía 2020)

Tabela 63: Falantes monolíngues e bilíngues em Máko e Espanhol com números abosolutos e pro-
porcionais com relação à população total por faixa etária (adaptada de Labrada 2017)

249
Falantes bilíngues: Falantes mono- Falantes monolín-
Idade População
Mako e Espanhol língues: Mako gues: Espanhol
5 a 19 anos 137 35 (26%) 101 (74%) 0
20 a 39 anos 87 41 (47%) 36 (42%) 1 (1%)
40 a 54 anos 27 10 (37%) 17 (63%) 0
+55 anos 16 1 (6%) 15 (94%) 0
Total 267 97 169 1

Fica claro pela análise da Tabela 63 e do gráfico da Figura 42 que o Máko possui uma maior vitalidade
do que o Zapoteco. Com relação ao Zapoteco, vemos que há uma tendência bem clara de falha de
transmissão da língua para as gerações abaixo de 60 anos, enquanto o Espanhol se consolida como a
única língua para a maior parte das pessoas nesses grupos de idade. Em outras palavras, o quadro
mostra que as pessoas que nasceram após 1950 estão aprendendo cada vez menos o Zapoteco e, se
nada for feito para reverter essa tendência, quando a geração que hoje tem de 3 a 11 chegar à fase
adulta, quase a totalidade de seus filhos poderão já não mais aprender a língua Zapoteca na cidade de
Juchitán de Zaragoza. A situação do Máko contrasta com a do Zapoteco essencialmente pelo fato de
que o bilinguismo com o espanhol parece estar estável no sentido de não ter afetado a transmissão do
Máko na comunidade. A língua Máko está sendo transmitida regularmente e é falada por todos exceto
um individuo. Além disso, o bilinguismo com espanhol é uma realidade para pouco mais de um terço
da população apenas, sendo mais acentuado na geração de jovens adultos, e discreto na população de
crianças e adolescentes.
Podemos notar como o número de falantes varia entre diferentes localidades onde se fala uma
mesma língua ou línguas muito próximas. Na língua Zapoteca de San Lucas Quiaviní, temos um
quadro um pouco diferente do que vimos acima para o Zapoteco de Juchitán de Zaragoza. As duas
cidades estão há apenas 240 km de distância, mas enquanto em Juchitán de Zaragoza apenas 20% das
crianças estavam aprendendo a língua Zapoteca, em San Lucas Quiaviní todas as crianças aprendem
apenas o Zapoteco até a idade que entram na escola (Pé rez Bá ez 2021: 170). Além disso, na comunidade de
Zapotecos de San Lucas Quiaviní que migrou e vive em Los Angeles, praticamente não há transmissão
da língua para crianças.
De modo geral, a migração é considerada a maior ameaça à vitalidade de Zapotecos de San
Lucas Quiaviní e de muitas outras cujas comunidades estão passando por um intenso êxodo migrató-
rio para as cidades. O primeiro efeito da migração é reduzir o número de falantes dentro dos territórios
tradicionais. Em San Lucas, ela resultou em uma redução de cerca de metade dos falantes, incluindo
uma redução de 45% no número de crianças menores de 10 anos (Pérez Báez 2021). Por outro lado,
quando uma família migra, em geral, seus descendentes, crescendo em maio a uma outra sociedade,
vão deixar de falar a língua de seus pais e avôs. O deslocamento linguístico é um fenômeno recorrente
com as populações migrantes e tende a ocorrer num intervalo de três gerações, como resumido no
Quadro 26.
Quadro 26: Deslocamento linguístico em três gerações em populações migrantes
1. Pessoas da geração 0 (mais antiga) formada por falantes fluentes migram; alguns aprendem como se-
gunda língua a língua dominante do local para onde migraram
2. A primeira geração nascida fora do território tradicional cresce totalmente bilíngüe na língua de herança
de sua família e na língua dominante do local para onde migraram
3. A segunda geração usa principalmente a língua dominante e possui um bilinguismo passivo na língua
de herança
4. A terceira geração se torna monolíngue na língua dominante

7.2.2 Competência comunicativa e usos linguísticos


Tratemos agora do “saber” e do “usar”, os pontos que amplamente definem o que são os falantes fala
e definem o universo de falantes. A análise da proficiência linguística avalia quão fluente é uma
pessoa numa dada língua. É, na verdade, uma abstração dentro de um quadro mais complexo de com-
petências e habilidades comunicativas em que o “saber” a língua está, na verdade, vinculado com a

250
capacidade e as oportunidades de se aprender e usar uma língua. As línguas ameaçadas mostram
sinais de que estão perdendo espaço na sua comunidade mesmo quando há muitos falantes, o que é
notável se percebemos, por exemplo, um declínio nos contextos tradicionais de usos linguísticos e
uma maior limitação das habilidades e competência comunicativa dos falantes ao tentarem se comu-
nicar em algumas funções básicas ou específicas das línguas. Para uma avaliação satisfatória das
competências, habilidades e usos linguísticos, precisamos levar em consideração não só as diferentes
línguas e contextos ou situações comunicativas existentes, mas também os atores e os assuntos, ou
seja: “quem fala o quê, em qual língua, com quem, e em qual contexto”.
Na seção 8.1.1 sugerimos que o falante idealizado é aquele que sabe, usa e se identifica com
uma língua, mas haveria tipos de falantes diferentes, como aqueles que sabem, mas não usam a língua
por não terem ao seu redor pessoas com quem possam falar essa língua, como os chamados últimos
falantes da seção 8.2 (também conhecidos como falantes terminais). Na seção 8.3.1, mencionamos o
termo bilíngues passivos, ou seja, pessoas que compreendem duas línguas, mas que apenas falam em
uma delas. Há também pessoas que podemos identificar como falantes em potencial, que são aqueles
que se identificam com uma língua, mas não a aprenderem de modo suficiente para que possam usá-
la de modo frequente e ostensivo. Fala-se muito também em semi-falantes ou falantes com compe-
tências parciais, como pessoas que conseguem compreender muito bem uma língua, mas possuem
dificuldades para dialogar ou expressar tudo que querem. Temos também os chamados lembrantes,
que adquiriram a língua de modo parcial na infância ou fase adulta, ou que até chegaram a adquiri-la
como sua primeira língua, mas que depois deixaram de usá-la e que, por isso, são capazes de lembrar
palavras e frases, mas não produzir diálogos, contar histórias. Falantes de primeira língua são enten-
didos como aqueles que aprenderam a língua indígena no seu lar e desde sua infância, e que ainda
hoje conseguem falar nessa língua. Os falantes de segunda língua apresentam capacidade de falar
uma língua indígena, mas não a aprenderam como sua primeira língua, o que quer dizer que apren-
deram fora do lar e após a infância.
Existem diversas maneiras de se categorizar os tipos de competências dos falantes (para um
resumo ver o Guia do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), Chacon et al. 2014:
59-64). Uma das mais simples e eficientes maneiras é mensurar as habilidades de fala e compreensão
por auto-avaliação, como feito por Guerra-Mejía (2020: 16) para o Zapoteco de Juchitán de Zaragoza,
como ilustrado na Figura 43. Nesse estudo do Zapoteco, as competências foram avaliadas a partir da
auto-declaração dos falantes para as seguintes perguntas: “a) Como você avalia a sua fala em espa-
nhol? b) como você acha que fala Zapoteca?”. As opções de resposta foram: “1) Falo bem, 2) Falo
pouco, 3) Só entendo e 4) Não falo nem entendo”. Os resultados mostram que todas as pessoas pos-
suem um mínimo de competência em espanhol, sendo 96% delas falantes fluentes. 20% não falam
nem entendem o Zapoteco, enquanto apenas 46% das pessoas são fluentes nessa língua. Outros 34%
possuem uma competência parcial, sendo 13% semi-falantes e 21% bilíngues passivos.
Figura 43: Proficiência em Zapoteco e espanhol

Em contextos de atrito e obsolescência linguística, como também é o caso do Zapoteco, passa


a ser ainda mais importante aferir a quantidade de pessoas que estão aprendendo a língua indígena

251
como uma segunda língua, pois é na expansão do número de falantes que está o futuro dessa língua.
Um estudo sobre as línguas indígenas faladas no Canadá (Norris 2007) classificou os falantes com
relação à sua habilidade de falarem uma língua indígena como primeira língua ou segunda língua.
Como se vê pela Tabela 64, as pessoas que falam Mohawk e Tlingit são na sua maioria falantes de
segunda língua. Um quinto dos falantes de Cree é formado por falantes de segunda língua, enquanto
a língua Inuktikut possui 90% de falantes como primeira língua. Notamos ainda que para todas as
línguas, e em especial para o Mohawk, há um aumento entre a proporção de falantes de segunda
língua na geração abaixo dos 25 anos. Apesar de indicar que certos os jovens não estão aprendendo
a língua indígena como sua primeira língua, isso pode até significar algo positivo, como o fato de
jovens e adultos estarem buscando aulas e outros recursos para aprender sua língua ancestral como
segunda língua. Com base na análise desses dados, podemos dizer que Inkuktikut é a língua com
maior vitalidade, ainda que alguns jovens e adultos não a falem como primeira língua. Em seguido
temos: Cree, Mohawk e Tlingit.
Tabela 64: Número de falantes como L1 e L2 por faixas etárias para as línguas Cree, Inuktikut,
Mohawk e Tlingit
Proporção de falantes como L2
Línguas Número Total de Falantes
Todas as idades Entre 25-44 anos Abaixo de 25 anos
Cree 97.230 21% 20% 25%
Inuktikut 32.775 11% 10% 11%
Mohawk 755 54% 48% 80%
Tlingit 230 57% 77% 83%

Em contextos multilíngues, é comum que cada língua tenha um papel social específico. As-
sim, por exemplo, há pessoas indígenas que preferem usar sua língua tradicional em contextos fami-
liares, privados ou apenas dentro de suas comunidades, mas usar o português, espanhol ou inglês em
contextos públicos, em instituições não indígenas com a escola ou quando vão para fora de seu terri-
tório. Esse tipo de situação, conhecida como diglossia, pode se dar de uma maneira sustentável – em
que ambas as línguas possuem seus papeis convencionais e não interferem nos espaços uma das outras
– ou pode se transformar numa situação assimétrica em que a língua dominante passa a tomar o espaço
da língua de uma comunidade. Na seção 8.3.1 vimos que a língua Kichwa no Equador fora apresen-
tada como tendo uma alta taxa populacional e, ainda, como língua franca e primeira língua de muitas
comunidades indígenas. Isso sugerira um quadro de boa vitalidade, porém quando olhamos para os
padrões de usos da língua em certas comunidades, podemos perceber que ela se encontra em risco.
Segundo o estudo e Rindstedt e Aronsson (2002) realizado na comunidade de Santo Antônio nos
Andes do Equador, até pouco tempo o espanhol somente era usado em contextos de interação com
pessoas que não falassem Kichwa. Hoje em dia, para os adultos e idosos, o Kicwha é usado como a
principal língua de comunidação e é visto como parte essencial de sua herança cultural indígena.
Porém, quando as pessoas da comunidade falam com as crianças, sejam os pais ou os irmãos mais
velhos, usam o espanhol e não o Kichwa. Isso fez com que as pessoas menores de 10 anos se tornas-
sem mais ou menos monolíngues em espanhol.
Em estudos sobre a população indígena da cidade de São Gabriel da Cachoeira, município
onde está localizada a Terra Indígena do Alto Rio Negro, a qual os Kubeo e os Kotiria compartilham
com 23 outros povos, Stenzel e Cabalzar (2012) realizaram um levantamento com os jovens em idade
escolar habitantes da área urbana da cidade. Entre 1207 entrevistados, 52% responderam que prefe-
rem usar o português quando conversam com seus pais, e quase 80% disseram preferir usar o portu-
guês no seu dia a dia ou na escola quando interagem com amigos e outras pessoas. Entre aqueles que
dizem preferir usar uma língua indígena com parentes (48%), as principais pessoas com quem falam
no contexto familiar são pais, mães, avôs e avós. Já os poucos (21%) que disseram usar uma língua
indígena em outros contextos do seu cotidiano, as situações mais propícias para o uso da língua indí-
gena são: feiras alimentícias, colegas e vizinhos fora da escola. Entre outras coisas, as autoras revelam
um quadro de usos linguísticos bem diferentes dos que vemos dentro da Terra Indígena, mostrando
que o contexto urbano tem atuado para inibir os usos das línguas indígenas mesmo em contextos

252
familiares. Por outro lado, a manutenção de uso das línguas indígenas em certos contextos sugere
caminhos para onde políticas linguísticas poderiam buscar fortalecer as línguas indígenas.
A auto-avaliação da com é um método rápido e em grande medida eficiente, utilizado sobre-
tudo em censos populacionais. Porém, ela corre o risco de esbarrar em certas ideologias linguísticas,
como sociedades ou indivíduos em que a modéstia é uma norma de comportamento constante, ou o
seu oposto, i.e., em que a soberba seria a norma mais recorrente. No primeiro caso, a avaliação teria
o risco de sub-valorizar os resultados da competência, enquanto no segundo, de supra-valorizá-los.
Há, por isso, instrumentos de pesquisa mais refinados. As melhores formas de avaliação de compe-
tência devem ser feitas usando entrevistas e/ou instrumentos de avaliação com base no idioma cuja
competência está sendo testada, o que exige que os avaliadores sejam pessoas que dominem esse
idioma suficientemente. Leanne Hinton (2001: 222) descreve a forma em que se avaliam as compe-
tências e habilidades de indivíduos que estão aprendendo uma língua indígena como sua segunda
língua a partir do método Mestre-Aprendiz. As avaliações são feitas em duas etapas. Na primeira, há
uma série de perguntas feitas pelo mestre (o falante fluente que está ensinando para o aprendiz) co-
meçando com questões simples como “como você está?”, “qual o seu nome?” e “onde você mora?”
e terminando com perguntas mais complexas como “conte-me algo que aconteceu com você quando
era criança” ou “O que você gostaria de estar fazendo daqui a 10 anos?”. As respostas são avaliadas
com base na fluidez, escolha vocabular e adequação gramatical. A segunda etapa consiste em uma
série de fotografias culturalmente representativas do povo indígena em questão, em que se espera que
o aprendiz possa descrever e discorrer sobre o que está vendo.
O Projeto “Perfil Sociolinguístico das Comunidades Mapuche da VIII, IX e X Região” aplicou
um instrumento de medição direta a uma amostra de 2007 pessoas com mais de 8 anos de idade.
Foram 44 questões que mediam capacidades de produção e compreensão, aplicadas por pesquisadores
cujo Mapudungun era sua primeira língua. As questões foram organizadas de acordo com níveis de
competência, como, por exemplo, para testar a produção no idioma, para o nível 1 (ou inferior) foi
solicitado que os entrevistados descrevessem um animal, enquanto para o nível 2 foi solicitado que
eles falassem sobre o local onde estavam e moravam ou uma cerimônia tradicional, e no nível 3
esperava-se que o entrevistado pudesse fazer uma narrativa de no mínimo 3 minutos. De acordo com
esta pesquisa, todos os Mapudungun, falantes e não falantes, podem se comunicar em espanhol. Uns
61,7% da população Mapudungun é monolíngue em espanhol e não tem competência em seu idioma
ancestral. Eles podem conhecer algumas saudações e algum vocabulário, mas não podem se comuni-
car nem mesmo de maneira básica em Mapudungun. Por outro lado, 38,3% apresentam alguma com-
petência. Uma alta competência é possuída por 24,7% do povo Mapudungun. Se compararmos esta
proporção com a declarada através de auto-declarações, verificamos que nessa última a percentagem
de falantes presumivelmente competentes é claramente superior, com uma diferença de 8,3%. Os
entrevistados que foram avaliados com competências básica (4,0%) e intermediária (9,6%) têm em
comum que apesar de terem conseguido ao longo de suas vidas obter algum vocabulário, algumas
frases e expressões, são incapazes de ter uma boa comunicação na língua Mapudungun. Sua primeira
língua foi seguramente o espanhol, usado em praticamente todos os eventos de comunicação verbal
em suas vidas. A avaliação da competência pode ainda tomar variáveis demográficas, como a idade,
para perceber tendências populacionais da aprendizagem e dos usos linguísticas. Por exemplo, entre
os jovens Mapudungun, existe uma proporção bem maior de monolingües em espanhol: 63,5% contra
42% entre os adultos. Mesmo para aqueles jovens que chegam a ter uma uma competência alt a na
língua Maudungun, 28,1% (contra 22,2% entre os adultos) aprenderam o espanhol com sua primeira
língua. São também muito poucos os jovens que aprenden la lengua indígena como primera lengua:
4,5% contra 28,0% dos adultos.
Uma forma mais holística de se classificar as habilidades comunicativas dos falantes é no-
tando as relações entre fala, tipo de variedade falada, grau de conhecimento do vocabulário, compre-
ensão oral e domínio de aspectos da cultura tradicional, como o fez Letícia Aquino (2010) para a
língua Asuriní do Trocará (família Tupi-Guarani). A avaliação se baseou em entrevistas semiestrutu-
radas de 492 pessoas, em que os entrevistadores avaliaram as competências linguísticas em português

253
e Asuriní dos entrevistados. Os critérios de avaliação e os resultados estão resumidos no Quadro 27
e na Tabela 65respectivamente.
Quadro 27: Critério de avaliação de Proficiência em Asuriní do Trocará e Português (Aquino 2009)
Proficiência em Asuriní do Trocará
• Fala fluentemente a variedade mais conservadora da língua, e possui forte conhecimento da cultura
tradicional
• Fala uma variante menos conservadora, mas com conhecimento da cultura tradicional e também grande
conhecimento do léxico
• Fala uma variante menos conservadora e possui conhecimento relativamente mais restrito da cultura
tradicional
• Entende, mas fala muito pouco. Tem conhecimento limitado de aspectos da cultura tradicional e do
léxico.
• Entende, mas não fala, apenas faz uso itens lexicais e de expressões
• Não entende e não fala a língua, exceto alguns itens lexicais presentes inclusive na fala em português
• Crianças de 1 a 2 anos que podem até 7 entender algumas palavras da língua, mas não fazem uso da
língua.
Proficiência em português
• Fala fluentemente o português regional
• Fala uma variedade bastante marcada do português
• Ente pouco e fala pouco o português
• Não entende e não fala o português
Tabela 65: níveis de proficiência em Asuriní e português (Aquino 2010: 90)
em Português
Níveis de Proficiência Total Asuriní
1 2 3 4
1 19 3 6 3 31 (6%)
2 9 0 0 0 9 (2%)
3 55 6 0 3 64 (13%)
em Assuriní 4 59 3 2 0 64 (13%)
5 213 1 6 5 225 (46%)
6 32 0 2 16 50 (10%)
7 3 0 0 46 49 (10%)
Total Português 390 (79%) 13 (3%) 16 (3%) 73 (15%) 492 (100%)

A questão da cultura tradicional abordada por Aquino pode ser vista como um elemento que reforça
a aferição da competência comunicativa, pois esse tipo de conhecimento requer não só fluência na
língua indígena como também usos dessa língua em um domínio cultural específico, de modo que a
vitalidade da língua e da cultura tradicional caminham juntas. Muitos sistemas de conhecimentos que
englobamos como parte da cultura tradicional, como pajelança, botânica, calendários astrológicos,
narrativas míticas, cânticos, etc., são largamente dependentes em categorias linguísticas das línguas
usadas para a transmissão e elaboração desses conhecimentos. Além disso, uma crise na transmissão
dos conhecimentos tradicionais pode ser um bom indicativo de que a transmissão linguística também
esteja em risco. Por exemplo, Zent (2009) mediu o conhecimento etnobotânico desde um ponto de
vista taxonômico (nomes de espécies) e funcional (habilidades para usar uma dada planta) entre pes-
soas de diferentes idades falantes da língua Piaroa e Hotí (família Sáliba-Piaroa) na Venezuela. Se-
gundo sua análise, o intervalo que separa a competência de adultos e jovens é maior entre os falantes
de Piaroa, presumivelmente devido a mudanças sociais e culturais mais profundas pelas quais passou
a comunidade de falantes de Piaroa em que o estudo foi feito. Nessa comunidade, havia 30 anos que
fora criado o município de Gavilán, o que alterou profundamente a vida ecológica, econômica, social
e cultural das pessoas, trazendo conhecimentos e práticas que entraram em conflito com os conheci-
mentos tradicionais, e mudando as rotinas das pessoas a ponto de interromperem processos tradicio-
nais de transmissão de conhecimentos. Como corolário dessa diferença entre Hotí e Piaroa, Zent

254
(2009) também menciona que os falantes de Piaroa tendem a ser mais bilíngües em espanhol e Piaroa
do que os Hotí.

§ Usos linguísticos e culturais


§ Tradicional
§ Cotidiano
§ Em contexto especiais

Com o passar do tempo, novos domínios culturais e contextos de usos linguísticos vão se desenvol-
vendo na comunidade, especialmente devido ao contato com outras sociedades. Isso faz com que a
análise do conhecimento e dos usos linguísticos dos falantes deve abranger domínios sociais novos e
tradicionais. Um dos primeiros domínios novos para muitos povos indígenas são aqueles que reque-
rem a escrita, para a qual a escola é a instituição principal tanto para o uso quanto para a transmissão
da língua nessa modalidade. Vejamos um exemplo. As línguas Yanomami estão sendo transmitida
regularmente para as crianças e são usadas cotidianamente nos mais variados contextos comunicati-
vos em suas comunidades. Porém, há certos contextos tradicionais de usos em que estão deixando de
ser praticados por uma parcela de sua população, como ilustrado com relação à prática dos diálogos
cerimoniais na Tabela 66. Já com relação a contextos inovadores, a língua indígena nem sempre está
sendo usada, como vemos na escola, sobretudo com a ausência de materiais didáticos escritos nas
línguas indígenas, bem como ausência de páginas da internet escritas nas línguas indígenas, mesmo
que o uso de celulares e acesso à rede mundial de computadores seja já comum para uma parte das
comunidades Yanomami. Isso mostra que há ainda um bom trabalho pela frente para o fortalecimento
dessas línguas nos mais variados contextos em que os povos Yanomami desejam usá-las.
Tabela 66: Usos da língua em contextos tradicionais e inovadores entre os Yanomami (Ferreira et
al 2019)
Línguas Sanöma Ninam Yanomamɨ Yanomam
Comunidade Awaris Alto Mucajaí Kataroa Maiá
Língua é a primeira e principal usada
sim sim sim nem sempre
na escola
Cartilhas de alfabetização sim sim não sim
Livros para ensino da leitura e escrita sim sim não sim
Livros de mitos e histórias na língua não não não
Páginas na interna na língua não não não não
DJovens praticam diálogos cerimoniais quase todos não sim sim

A língua Guaraní Mbya traz um outro quadro interessante, em que ela dá sinais de ser uma língua
com grande vitalidade, mas que também parece estar em atrito com o português em certos domínios.
Em uma pesquisa realizada pelo IPOL que entrevistou cerca de 600 indivíduos, os resultados mostram
que o Guarani Mbya é a língua predominante em praticamente todos os lares dos entrevistados
(98,3%). Cerca de 90% das pessoas disseram falar bem essa língua, enquanto uns 35% e 15% disse-
ram saber escrever bem ou razoavelmente, respectivamente, na língua Guaraní. Por outro lado, o
português é falado por cerca de 64% das pessoas e há 40% e 20% disseram saber escrever bem ou
razoavelmente, respectivamente, na língua portuguesa. Isso sugere duas coisas: há mais pessoas que
escrevem em português do que em Guaraní, e que a proporção dos falantes de português que escrevem
em português é maior do que a proporção de falantes de Guaraní que escrevem em Guaraní. Em
outras palavras, a alfabetização e os usos da língua escrita são mais frequentes em português do que
em Guaraní. A pesquisa também abordou outros âmbitos de circulação da língua no cotidiano da
sociedade. Nas escolas comunitárias (41 das 64 comunidades pesquisadas possuíam escolas), a língua
Guarani Mbya divide espaço em 85% dos casos com o português. O português é língua exclusiva de
ensino em 12% das escolas, enquanto há apenas uma escola em que o Guarani é língua única de
ensino. No atendimento à saúde, prevalece o uso do português em 55% das comunidades, enquanto
o uso bilíngue Guarani Mbya e português foi registrado em 43% das situações. A chamada Opy, ou

255
“casa de reza”, é um espaço de suma importância para a identidade e cultura tradicional do povo
Guaraní, e nesse ambiente faz-se uso exclusivo da língua Guaraní. Como comentam os aturores do
estudo, a Opy funciona como uma instituição de contraponto ao que ocorre nos espaços de instrução
escolar e de atendimento à saúde, âmbitos em que a Língua Guarani Mbya divide o espaço com a
Língua Portuguesa. Por isso, a importância sociolinguística da Opy é inegável.

7.2.3 Ideologias linguísticas e seus efeitos


Os membros de uma sociedade negociam visões sobre o valor e a importância sobre determinados
fatos sociolinguísticos. Essas visões podem ter como alvo uma variável estrutural de uma dada língua,
como, por exemplo, os valores projetados por nossa sociedade sobre as variantes [ˈbɾuzɐ] ou [ˈbluzɐ]
para a palavra blusa: na primeira, temos uma variante estigmatizada socialmente, enquanto na se-
gunda temos uma variante culta. Em contextos multilíngues, a variável pode ser a escolha de uma
determinada língua para ser usada em dado contexto, como, por exemplo, se devemos usar o portu-
guês ou uma língua indígena no ensino escolar.
De fato, as ideologias linguísticas são projeções das esferas sociais, culturais e políticas para
a avaliação de fatos pertencentes mais propriamente à esfera linguística. Ademais, como argumenta
Albury (2020), o que um coletivo afirma ser verdade sobre o mundo linguístico orienta discursos,
ideias e decisões políticas. As escolhas linguísticas estão, portanto, relacionadas com as circunstân-
cias sociais, culturais, políticas e econômicas que formam os contextos em que são faladas. Ao mesmo
tempo, como reforça Kroskrity (2000), as sociedades em qualquer escala são heterogêneas, de modo
que as ideologias linguísticas são múltiplas, uma vez que são diversas as perspectivas associadas a
cada grupo que forma essa sociedade. Por isso, os membros de determinada sociedade detêm dife-
rentes graus de consciência sobre as ideologias linguísticas e é preciso uma atenção especial ao con-
flito em potencial entre essas diversas perspectivas.
Entre ideologias e ações, escolhas e práticas linguísticas, as pesquisas em sociolinguística falam de
uma dimensão avaliativa que chamamos de atitudes. Incorporado da Sociopsicologia, o conceito de
atitude sociolinguística foi cunhado por Lambert & Lambert (1975: 100) da seguinte maneira:
Uma atitude é uma maneira organizada e coerente de pensar, sentir e reagir a grupos, problemas sociais
ou, de modo mais geral, a qualquer acontecimento no ambiente. Os componentes essenciais das atitudes
são pensamentos e crenças, sentimentos e emoções, bem como tendências para reagir. Podemos dizer que
uma atitude se forma quando tais componentes estão de tal modo inter-rela cionados, que as tendências
de reação e os sentimentos específicos se tornam coerentemente associados ao objeto da atitude.
As atitudes são, portanto, subjetivas e representam uma disposição para reagir favoravelmente ou
desfavoravelmente a uma classe de objetos. Ou seja, enquanto as ideologias linguísticas são um ponto
de referência socialmente construído de como as coisas devem funcionar na sociedade, as atitudes
linguísticas são uma avaliação “se, de que maneira e em que medida uma língua específica, uma
prática linguística, ou outra questão linguística, é favorável” (Albury 2020: 368).
Em um estudo realizado em escolas de comunidades Navajo nos EUA, McCarty et al. (2006)
analisam diversos discursos de estudantes, professores e gestores escolares sobre a situação de ma-
nutenção versus deslocamento linguístico da língua Navajo. Como veremos, esses discursos sobre-
põem considerações que ressaltam a relação entre língua, identidade étnica e ameaça à vitalidade
linguística, bem como orgulho e vergonha com relação à herança, competência e uso do Navajo.
Um pai de aluno, falante de Navajo, realçou em seu discurso a relação entre ancestralidade,
identidade e bem-viver: “Meus pais transmitiram os valores da cultura e tradição Navajo para nós e
foi isso que nos trouxe até hoje... Desejo que não percamos a língua pelo bem de nossos filhos...
Somos feitos pela nossa língua... Quem seremos quando perdermos nossa língua?”. Um jovem de
nome Samuel, com 17 anos, também fluente em Navajo, ao mesmo tempo que realça a relação entre
língua e identidade étnica, mostra contradições subjacentes a essa associação, cada vez mais frágil
nos dias de hoje em que menos pessoas Navajo falam sua língua: “não importa se você fala ou não,
você é Navajo... Mas tradicionalmente, se você não fala Navajo, você não é Navajo”. Para quem
observa de fora, fica uma questão aparente: o que é ser Navajo e ao mesmo tempo não ser Navajo
tradicionalmente se alguém não fala a língua? Sobre as razões do porquê a língua estaria ameaçada,

256
Samuel é taxativo “Há muitas [crianças] que nem estão sendo ensinadas. Seus pais podem falar Na-
vajo, mas não o fazem dentro de casa. E isso, de certa forma, me deixa com raiva, porque ... supõe-
se que o navajo seja falado o tempo todo na casa...”.
Há, no entanto, algo ainda mas profundo por trás das pessoas não falarem Navajo. Em uma
entrevista com uma mãe de alunos da escola, cuja língua principal era o Navajo, ela relatou que seu
filho de 22 anos se recusava a falar Navajo, usando argumentos como “Por que eu tenho que falar
navajo? É um mundo novo. Gostamos mais de tecnologia, gostamos do mundo bilagáana [branco,
falante de inglês]. Eu não tenho que falar minha língua. Queremos avançar, não retroceder.” Curio-
samente, a filha de 17 anos dessa mesma mãe disse a ela: “Quero seguir em frente. Também quero
manter meu idioma.” Além de estar aparente nessa família as ideologias conflitantes, destaca-se a
ideologia negativa atribuída ao Navajo como uma língua do passado do filho mais velho. Em outra
entrevista com um jovem de nome Jonathan, 16 anos, ele disse ter tido dificuldades de aprender inglês
durante vários anos. Sua primeira professora, que era Navajo, o menosprezou pela maneira que falava
inglês com sotaque e gramática não-padrão. Vemos com esse relato a insegurança de muitos afirma-
rem que falam Navajo e a pressão que se impõe aos Navajo para aprender o inglês, uma atitude que
às vezes pode vir dos próprios professores da comunidade. A insegurança se mistura com vergonha,
como podemos ver no relato de um gestor escolar: “Muitos dos alunos fingem não querer falar Na-
vajo. Eu sabia. Eles têm vergonha [...] alguns alunos afirmam que só falam inglês [mas] existem
centenas [deles] que são falantes fluentes de navajo.” Como comentou um outro aluno: “temos medo
de ser punidos, temos medo de que alguém nos dê uma surra nas costas... você abandona quem você
é, você desiste de aprender Navajo... [Você] desiste de tudo isso, a fim de se acomodar à vida con-
vencional... isso já foi colonizado na mente.”
Bionda e Rocha (2020) realizaram um estudo na cidade de Miranda (MS), fundada em 1778,
que conta com uma população de quase 7 mil indígenas, perfazendo 25% da população total do mu-
nicípio. Os autores aplicaram 877 questionários nas escolas urbanas para alunos entre 10 e 18 anos.
Ao serem perguntados sobre quais línguas eles “tinham vontade de aprender”, 534 estudantes mani-
festaram que gostariam de aprender o idioma inglês, enquanto 493 gostariam de aprender o espanhol.
Já quando perguntados que línguas eles “acham mais feias”, as línguas indígenas da região (como o
Terena, Guarani e o Kadiwéu) somaram 1022 respostas com as mais feias, enquanto português, inglês
e espanhol somaram apenas 155 respostas. Isso mostra que a nível local, onde se constroem e se
dissolvem as fronteiras entre indígenas e não-indígenas, as línguas indígenas e seus falantes sofrem
do maior preconceito, enquanto as línguas alóctones, inclusive as estrangeiras e o português, gozam
de maior prestígio.
Alguns autores vão argumentar que atitudes e ideologias são questões secundárias, mas que
fatores sociais e econômicos são os fatores centrais que impactam na coexistência e competição das
línguas pelo espaço comunicativo numa comunidade. Como comenta Mufwene sobre a situação nos
Estados Unidos (1998)
Podemos argumentar que o inglês se espalhou entre os nativos americanos e colocou em perigo suas lín-
guas ancestrais não necessariamente por causa de sistemas escolares que exigiam conhecimento em inglês,
mas por causa de um sistema socioeconômico no qual tem sido cada vez mais necessário dominar o inglês
para o local de trabalho e para a interação com a população em geral. Assim, tornou-se cada vez mais
prático falar inglês para aqueles que desejam encontrar empregos não disponíveis nas reservas indígenas.
O que parece ser o caso é que ideologias e atitudes negativas para como uma língua indígena são, por
um lado, resultado dos processos de colonização e construção dos estados americanos que invaria-
velmente atuou pela marginalização e minorização das populações indígenas desde um ponto de vista
econômico, social, cultural e política. Isso teria gerado certos estigmas associados ao uso de línguas
indígenas, com sua vinculação com ideias como, por exemplo, atraso, pobreza e ignorância. Por outro
lado, e por isso mesmo, se esperamos reverter esse quadro, um trabalho de valorização da língua
dentro dentro da comunidade e dentro da sociedade mais ampla desde um ponto de vista ideológico
deve estar como uma das primeiras ações a serem realizadas.

257
7.2.4 Existem Línguas Indígenas Fortes nas Américas?
Muitas línguas poderiam ser consideradas fortes a julgar por alguns indicadores centrais, como a taxa
de transmissão intergeracional e os domínios de usos linguísticos. Porém, ampliando o contexto de
observação, olhando para outros indicadores e, sobretudo, fazendo uma análise crítica e qualitativa
dos processos de atrito linguístico, vamos perceber que mesmo as línguas fortes enfrentam dificul-
dade.
O Ethnologue lista 5 línguas como as mais fortes das Américas: duas línguas da família Inuit
(Inuktitut e Inuvialuktun), duas línguas Quechua (Quechua de Cusco e o Quechua de Ayacuho) e o
Guarani Paraguaio. Podemos ainda acrescentar nessa lista duas outras línguas que aparecem como
mais vigorosas quando agregamos os dados de fontes com o ELCat e da Unesco: o Chatino de Zen-
zontepec e o Aymara. Segundo os critérios discutidos na seção 7.1.4, essas línguas teriam em comum
uma grande população de falantes, transmissão intergeracional regular, usos linguísticos em domínios
tradicionais e respostas a novos domínios de usos, etc. Porém, o uso desses critérios numa avaliação
global da língua não reflete a realidade de diferentes localidades e contextos em que se falam as
línguas. Pode haver assimetrias internas, como algumas localidades se apresentarem com menor vi-
talidade que outras. Pode haver também outras dimensões mais sutis que revelam assimetrias não
diretamente apreendidas pelos critérios advindos de testes e diagnósticos padronizados.
Para explorarmos isso, vamos analisar com mais atenção a situação das línguas Quechua e Guarani
Paraguaio. Ambas foram línguas colônias que caíram de prestígio e que estão numa relação de atrito
e assimetria com o espanhol. As relações que marcam essas línguas é, portanto, de assimetria com
relação ao espanhol e ambiguidade, ora como uma língua dominante quando se trata de outras línguas
indígenas locais, ora como língua dominada quando se trata de certos contextos urbanos, formais e
de poder nas sociedades sul-americanas.
Começando pelo Quechua, no início do período colonial, línguas Quechua serviram como língua
gerais entre os povos indígenas e os espanhóis. Seu uso se expandiu tanto que ainda hoje muitos
povos indígenas deixam de falar suas línguas próprias para falar Quechua entre si. Apesar disso, o
espanhol começou a substituir o Quechua como língua dominante já durante o século XVII. No final
do período colonial, o Quechua já estava desaparecendo dos centros metropolitanos. Ao longo dos
Andes, a migração aumentou constantemente das terras altas rurais para as principais áreas urbana,
como Lima, Quito, La Paz e Santiago do Chile. Nas cidades, as comunidades de língua Quechua
experimentam mudanças na dinâmica de suas redes sociais, como casamentos mistos entre falantes
de Quechua e de espanhol. Hoje em dia, há línguas Quechuas oficiais no Equador, Peru e Bolívia,
mas, apesar do apoio de governos e do grande número de iniciativas não governamentais para forta-
lecer essas línguas, a proporção de falantes continua a diminuir em relação à população geral. Isso
acontece a despeito de que o número de falantes de Quechua esteja aumentando em território de
grupos como os Aymara e na Amazônia (Hornberger & Coronel-Molina 2004).
Já a língua Guarani do Paraguai é falada principalmente na república do Paraguai (e algumas áreas
da Argentina e fronteira do Brasil trazida por populações migrantes). No Paraguai, ela é língua co-
oficial, juntamente com o espanhol. Sob um ponto de vista demográfico, a população de falantes
monolíngues em Guaraní ou de Guarani & Espanhol sempre foi alta historicamente48. Em 1962, numa
população de 1.6 milhões de pessoas recenseadas no país, 45% da população eram monolíngues em
Guaraní e 48% eram bilíngues em Espanhol e Guarani. Apenas 4% eram monolíngues em espanhol.
Em 2012, o número de falantes monolíngues Guarani caiu para 34% da população, os bilíngues se
mantiveram próximos ao patamar anterior com 46%, enquanto os falantes monolíngues de Espanhol
saltaram para 15%. Os falantes de línguas indígenas com a exceção do Guarani oficial somam apenas
1% no censo de 2012, os quais, em geral, mantêm suas línguas próprias e utilizam o Guarani Para-
guaio principalmente para se comunicar com a sociedade envolvente. Entre os bilíngues em Guarani
Paraguaio e Espanhol, temos ainda uma variedade conhecida como Jopará, i.e., um leto misto entre
Guaraní e Espanhol, como discutimos na seção 6.

48
Dados extraídos de Instituto Nacional de Estadística do Paraguai (https://www.ine.gov.py/microdatos/indica-
dor.php?ind=64 acessado em Maio de 2022)

258
Há certos estereótipos negativos associados ao uso do Guarani, ainda que muito se fale do Guarani
como língua da identidade nacional. Há aqueles que veem no Jopará uma ameaça pois ela vem to-
mando conta das funções sociais básicas do Guarani e introduzindo ainda mais elementos do espanhol
(Corvalán _). Há também um crescimento na proporção de falantes monolíngues em espanhol desde
1962. Muitos esforços modernos estão tentando corrigir essas assimetrias. Nesse sentido, a realidade
sociolinguística do Paraguai pode ser assim resumida: uma pequena minoria indígena da população
fala suas próprias línguas, a maior parte da população fala o Guarani Paraguaio e ou é bilíngue em
Espanhol, mas a proporção de falantes monolíngues em Espanhol vem crescendo, enquanto o de mo-
nolíngues em Guarani vem diminuindo.
Por outro lado, as iniciativas para ampliar os usos, prestígio e presença em espaços de poder
do Guarani Paraguaio tem crescido. A partir de 1992, a Constituição Nacional eleva-o à categoria de
língua oficial juntamente com o espanhol; e em 1994 a Reforma Educacional a incluiu no programa
de Educação Bilíngue (Guaraní-Espanhol). Em 2007 os presidentes do Mercosul reconheceram o
Guarani como a língua do bloco. Ainda assim, esses domínios oficiais, como o sistema educativo, a
administração pública e os governos centrais e locais. permanecem um dos principais desafios para
expansão e fortalecimento do Guarani frente ao espanhol (Corvalán 2005). Nos meios de comunica-
ção, o Guarani tem boa difusão em programas de rádio, enquanto a televisão é a que menos oferece
espaço para a língua (Corvalán 2005). Uma área que o guaraní se desenvolveu sobremaneira foi a
internet. Em muito pouco tempo o Guarani começou a marcar presença na internet, principalmente
em redes sociais comunidades e por meio de sites ou blogs. Em 2005, Google apresenta uma versão
de seu buscador na intern em Guaraní. Um outro passo de grande importância foi dado em 2007 com
a Vikipetã, a versão em Guaraní da Wikipedia.
O Guaraní Paraguaio é, por tanto, uma língua vernácula de uma grande população que não se consi-
dera necessariamente indígena, porém essa língua não tem ainda o prestígio, nem o estatuto, tam-
pouco os usos de uma língua oficial, pois essa posição está ocupada pelo Espanhol. Como analisa
Meliá (1983: 50), a situação do Guarani Paraguaio é marcada pela ambiguidade, perceptível no fato
dessa língua ser utilizada como variedade baixa em uma relação diglóssica com o espanhol. Nessa
situação, usos linguísticos de maior prestígio e poder são reservados ao espanhol, enquanto outros se
fazem em Guarani. Falando ainda na década de 1980, Meliá resume os principais domínios de usos
do Guarani Paraguaio da seguinte maneira:
Excluída quase inteiramente das instituições de ensino, como as escolas, da expressão tecnológica e cien-
tífica, da história escrita, incluindo ensaios e romances, aparece quase exclusivamente ligada à oralidade,
nos sermões religiosos e nos discursos políticos, especialmente dirigidos às populações rurais, no teatro
popular e sobretudo na poesia bucólica e erótica (Meliá 1983: 50).

Como vemos, o Guarani Paraguaio parece forte em muitos sentidos, porém há áreas de assimetrias
no uso dos meios de comunicação e no estado, em certos lugares de poder, como a administração
pública e a cidade de Assunção. Isso tudo mostra que o Guarani Paraguaio não é uma língua amea-
çada, mas reflete uma assimetria estrutural que posiciona uma língua autóctone, de origem indígena,
mais próxima à esfera da intimidade e mais afastada da esfera pública e das posições de poder do que
o espanhol como uma língua alóctone que representa os elementos da sociedade europeia.

7.3 Línguas extintas, silenciadas e em retomada


Muitos autores discutem como a extinção linguística sempre acompanhou a humanidade. Esse fato
teria variado de tempos em tempos e de lugares a lugares, mas haveria certos períodos chave de
extinção de línguas na história. Um desses períodos teria sido ainda na “pré-história”, quando povos
com agricultura teriam suplantado ou assimilado povos sem agricultura; um outro período importante
foi a fase de expansão de grandes impérios da antiguidade, como o Império Romano e o Império da
dinastia Qin na China. Mais recentemente, a colonização de terras nas Américas, África e Oceania
juntamente com a consolidação dos estados nacionais na Europa teriam criado condições para a ex-
tinção de diversas línguas. Atualmente, enquanto ainda vivemos consequências do período colonial,

259
novos desafios impostos pela economia global e pelas políticas em países pós-coloniais fez com que
a extinção das línguas tenha se tornado algo ainda mais acentuado durante o século passado e o atual.
Numa escala global, entre 1950 e 2010, cerca de 230 línguas deixaram de ser faladas, sendo cerca de
80 delas apenas nas Américas. Estimativas atuais calculam que cerca de 45% das quase 7 mil línguas
do mundo podem estar extintas em 2100, sendo 20% ou 670 delas faladas exclusivamente nas Amé-
ricas (Campbell e Rehg 2018), o que representaria cerca de 70% de todas as línguas do continente.
Como vimos no capítulo 1 e 2, estima-se que a extinção de línguas no Brasil tenha atingido cerca de
85% desde o período pré-colonial até os dias atuais (Rodrigues 1993, D’Angelis 2019). Nos EUA,
das 314 línguas faladas quando da chegada dos europeus, 48% delas ou 152 línguas não mais são
faladas; apenas na Califórnia, das cerca de 100 línguas faladas ainda em 1850, apenas 18 seguem
vivas hoje em dia (Campbell e Rehg 2018).
A extinção de uma língua ocorre, tecnicamente, como o ponto terminal de um processo de
deslocamento linguístico quando a língua deixa de ser transmitida para novas gerações ou com a
eliminação física de uma comunidade que fale essa língua. Em ambos os casos, deixam de existir
pessoas que falem, saibam ou se identifiquem com esta língua. O deslocamento linguístico e a con-
sequente extinção de uma língua é um processo que se dá junto com etnocídio, i.e., a destruição
deliberada e sistemática da cultura de um povo. Já a eliminação física de um povo e a extinção de
uma língua juntam processos de glotocídio e genocídio, pois a língua se extingue junto com morte de
pessoas de uma comunidade de fala. Como vimos na seção 1.4, a história das Américas está repleta
de casos de etnocídio, genocídio e glotocídio. Um deles é a da língua Taíno, cujos falantes foram o
primeiro a se deparar com Cristóvão Colombo e sofrer as mazelas da colonização. Outro exemplo de
extinção súbita ou quase súbita causada por genocídio é o caso da língua Yahi, cujo último falante,
conhecido como Ishi, era o último sobrevivente dos índios Yahi, os quais foram assassinados e exi-
lados por colonos brancos na Califórnia.
É importante deixar claro, no entanto, que não estão extintas as línguas que ainda resistem
como uma forma de identificação cultural para um povo, mesmo que não haja mais falantes vivos
dessas línguas. São línguas silenciadas e que pode ser retomadas.Uma língua silenciada também não
é uma língua extinta como o Latim (que deu origem às línguas Românicas), o Grego Antigo (que deu
origema ao Grego Moderno), o Guarani Antigo (que deu origem ao Guaraní Paraguaio), o Tupi An-
tigo (que deru origem ao Nheengatu), o Quechua do império Inca (que deu origem a várias, mas não
todas, línguas Quechua) ou o Nahuatl Clássico (que deu origem a certas variedades do Nahua mo-
derno), pois essas se transformaram em novas línguas por um processo de transmissão a novas gera-
ções.
Quando falamos de línguas em processo de retomada, estamos nos referindo a um estágio pro-
cesso que trata sobretudo de manter uma língua como bem cultural, de referência para a história,
memória e de identificação de uma comunidade, mas que não possui mais falantes vivos. Como co-
menta Luís Amaral (2020)
Existem vários termos usados para descrever o processo de resgate de uma língua que já não é mais falada.
Além da palavra “resgate”, muitos usam termos como “retomada”, “ressurgimento”, “despertar” e até
“ressuscitar”, apesar desse último ter uma conotação negativa, por sugerir que a língua estava morta, e
por isso tem sido abandonado recentemente
A retomada faz parte de um conjunto de intervenções mais amplas que tem como objetivos reverter
o processo de perda de falantes ao procurar maneiras de formar novos falantes, bem como estimular
o uso e as atitudes para com uma língua. O conjunto desses processos tem sido muitas vezes referido
como “revitalização linguística (do inglês language revitalization).

7.3.1 Sobre os últimos falantes e os que vêm depois


O falecimento de uma pessoa considerada como último falante de uma língua é um evento trágico
que marca a passagem de uma língua que estava já em grave perigo para uma situação de língua
silenciada ou extinta. Uma página da Wikipédia49, que lista informações sobre esses eventos, mostra

49
https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_languages_by_time_of_extinction

260
que, apenas no século XXI, foi reportado o falecimento do último falante de cerca de 80 línguas,
sendo 37 delas faladas exclusivamente nas Américas. Um último falante de uma língua é em geral
uma pessoa no mínimo bilíngue, falando cotidianamente a mesma língua que outras pessoas de sua
comunidade falam, mas guardando em sua memória a língua que outrora aprendera e que agora so-
mente ela ou ele sabe, não tendo com quem usá-la. Notemos, no entanto, que a morte do último falante
não representa um ponto terminal, pois ela poderá ser revitalizada sempre que houver condições mí-
nimas favoráveis, como um grupo social determinado e organizado para esse processo, bem como
materiais de documentação da língua suficientes para seu ensino.
A última língua reportada ter sido silenciada no mundo (no momento que escrevo essas palavras) foi
a língua Yagan (ou Yámana), uma língua isolada falada na Terra do Fogo, extremo sul do Chile. Isso
ocorreu com o falecimento de Cristina Calderón aos 93 anos de idade em 16 de fevereiro de 2022.
Fazia dezessete anos que sua cunhada, Emelinda Acuña, havia falecido, deixando Cristina com o
triste título de última falante de sua língua. O povo Yagan hoje vive em algumas comunidades entre
o Chile e a Argentina. Tradicionalmente, viviam de recursos naturais do oceano, remando pelas águas
da Terra do Fogo em canoas e morando em casas de pele de foca. Quando os governos chileno e
argentino começaram a explorar a Terra do Fogo no final do século XIX, a população Yagan era de
cerca de 2900 pessoas. Cinquenta anos depois, devido a doenças, deslocamentos e super-exploração
de suas fontes tradicionais de alimentos, apenas 50 indígenas permaneceram (Adelaar e Muysken
2004: 555). Quando faleceu Cristina Calderón, algumas matérias de jornais reportaram que ela era a
última pessoa viva Yagan.50 Isso não é verdade. Hoje os Yagan somam mais de 1600 pessoas51. Pelo
Twitter, a filha de Critina, Lídia Gonzalez Calderón, representante do Povo Yagan e Vice-Presidente
Adjunta da Convenção Constitucional, publicou no dia 20 de fevereiro de 2022 a seguinte mensa-
gem:52
Lidia González Calderón @lidiayagan (pelo Twitter, acessado em 20 de fevereiro de 2022)
Aparecen notas de prensa donde hablan de mi madre, Cristina Calderón, como “la última yagán”. Esti-
mados periodistas: mi pueblo existe y perdurará Tampoco nos preguntan a nosotros sobre qué significa su
partida. El respeto a su memoria pasa también por dar voz a los yagán

É importante também notar que existe um perigo no discurso que afirma que “morreu o último falante
de uma língua X”. Isso porque não somente podem haver outras pessoas que talvez saibam a língua
mas a sociedade envolvente ainda não as (re)conhece, como também pode trazer a ideia de um “se-
pultamento” definitivo de uma língua, coisa que não é verdade sempre que há condições para seu
despertar. Um caso em particular é o da neta de Cristina Calderón, Cristina Zárraga, que aprendeu a
língua Yagan vivendo ao lado de sua avó, um exemplo da metodologia conhecida como programa
de mestre-aprendiz (Larraín __). Além desse exemplo que reforça a noção de que Yagan se encontra
em processo de retomada, é verdade também que essa língua possui outras pessoas que, como Cristina
Zárraga, aprenderam o Yagan, ao menos em parte, numa idade avançada.
Isso nos leva também a questionar o que é um falante. Por um lado, Cristina Calderón adquiriu a
língua Yagan como língua materna e a falou exclusivamente até os 9 anos, quando aprendeu o espa-
nhol chileno e se tornou cada vez mais envolvida a uma comunidade de fala em que quase não se
usava mais o Yagan. Nesse sentido, a aquisição da língua Yagan está completa, mas devido ao desuso
do Yagan em favor do espanhol ao longo de sua vida, ela não tinha a mesma fluência e apresentava
o “mesmo” código que seus ancestrais na geração anterior à dela. Por outro lado, seus netos, como
Cristina Zárraga, que estão hoje aprendendo o Yagan, não terão a mesma fluência que Cristina Cal-
derón, mas ainda sim possuem conhecimento suficiente da língua para que ela siga existindo em
palavras, expressões e no espírito coletivo de seu povo.

50
Ver, por exemplo, https://www.adnradio.cl/regional/2022/02/16/cristina-calderon-la-ultima-hablante-yagan-fallecio-
este-miercoles.html
51
https://www.censo2017.cl/
52
Tradução: Aparecem comunicados na imprensa que falam de minha mãe, Cristina Calderón, como “a última Yagán”.
Caros jornalistas: meu povo existe e vai perdurar. Também não nos perguntam o que significa sua partida. O respeito à
sua memória inclui também dar voz aos Yagán

261
Cristina Calderón, Emelinda Acuña, entre outros antepassados, trabalharam com linguistas e deixa-
ram um corpus que está sendo usado por seus descendentes na retomada de sua língua. Esse é um
trabalho difícil. Muitas das publicações existentes, que remontam a meados do século XIX até os
últimos trabalhos com Cristina e Emelinda, são de natureza bastante técnica e escritas em inglês. Não
obstante, alguns recursos importantes estão em espanhol e estão sendo produzidos materiais didáticos
que procuram adaptar as informações existentes para o contexto de ensino do Yagan como segunda
língua para crianças e adultos. Um desses materiais é o livro infantil “Hen larnanauti intien usi: apren-
damos, escutemos o mundo Yagan” (Zárraga, Massardo e Rozzi (2006). Este é o primeiro dicionário
Yagán-Espanhol-Inglês para crianças publicado até hoje, e vem acompanhado com áudios para se
aprender a pronúncia da língua Yagan a partir da voz de Cristina Calderón, bem como ilustrações que
acompanham as palavras, e que foram feitas por meninas e meninos descendentes do povo Yagán.

7.3.2 Quando uma língua “extinta não está extinta”


A situação de vulnerabilidade que vivem diversas línguas indígenas gera reações de alarme que de-
vem servir para mobilizar diversos atores para criar condições para a sustentabilidade da diversidade
linguística atual e para desenvolver programas de revitalização linguística. No entanto, essa situação
gera também muitas vezes diagnósticos ou prognósticos que tendem a sepultar línguas antes da hora,
ou seja, declaram como extintas ou quase extintas certas línguas que, devido à resistência e resiliência
de muitos povos indígenas, resistem a serem extintas. Nos círculos intelectuais brasileiros, desde o
século XIX previa-se que, mais cedo ou mais tarde, ocorreria o desparecimento total dos povos indí-
genas. No entanto, sendo os primeiros, eles ainda estão e estarão aqui.
Um estudo do Ministério da Cultura da Colômbia em 2011 havia listado como quase extintas
5 línguas faladas nesse país que tinham menos de 60 falantes. Entre elas, encontra-se a língua Pisa-
mira (família Tukano). Hoje, o Pisamira conta com cerca de 30 falantes, numa população total de 58
pessoas que se identificam como parte do povo Pisamira (Rodríguez __ano_?). As pessoas que falam
a língua pertencem a duas principais famílias, enquanto o resto da população fala normalmente outras
línguas da região, como o Kubeo, Piratapuyo ou Tukano. De fato, a população total dos Pisamira é
bem reduzida, porém ela tem sido assim há bastante tempo. O prognóstico do governo colombiano,
em 2011, é ironicamente o mesmo do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, quem encontrou os
Pisamira em 1903 e estimou que provavelmente desapareceriam em cerca de 100 anos. Como nos
reporta Iveth Rodríguez que trabalha há dez anos com os Pisamira, essa declaração de Koch-Grünberg
é muitas vezes questionada pelos Pisamira, que não aceitam a ideia difundida sobre a extinção do
grupo; como eles afirmam “todos os pesquisadores vão desaparecer primeiro e então nós ainda esta-
remos vivos”. Mesmo assim, apesar de seu forte senso de identidade, eles também temem a possibi-
lidade de que todo o seu conhecimento ancestral possa ser perdido quando eles se forem, pois dizem
que os jovens em geral não estão mais interessados em aprender os conhecimentos tradicionais.
Um exemplo de língua dada como extinta, mas que hoje é considerada em reavivamento é a
língua Miami-Illinois (família Algonquina) que, ainda em 2005, havia sido listada como extinta pelo
Ethnologue (Leonard 2008). Após uma divisão forçada da comunidade Miami em 1846 e o estabele-
cimento de internatos escolares monolíngues em inglês que proibiam o uso do Miami, o falecimento
do “último” falante fluente no início dos anos 1960 fez com que a língua estivesse realmente silenci-
ada por cerca de trinta anos. No início de 1990, as crianças já não sabiam sequer uma palavra da
língua e restava somente um pequeno grupo de idosos “lembrantes” – pessoas que não falam a língua
e que não podem compreender frases nunca antes ouvidas, mas que foram expostos à língua ainda
jovens e se recordavam de algumas palavras e nomes, frases fixas e canções, aspectos gerais sobre
como a língua soava e os contextos sociais de seu uso. Por outro lado, a língua havia sido bem docu-
mentada desde o século XVII; apesar de haver pouquíssimas gravações em áudio, a documentação
escrita era vasta e incluía dicionários, textos, informações gramaticais e sociolinguísticas sistemáti-
cas. A partir dos anos de 1980, cresceu o sentimento entre os Miami de que eles deveriam “reclamar”
sua língua e sua cultura. Após uma expansão econômica facilitada pelas receitas advindas de cassinos
explorados pelos Miami no final dos anos 1990 e o apoio de linguistas no início dos anos 2000, a
situação atual é muito diferente. As ações para retomada de sua língua se basearam na criação de um

262
programa formal de ensino da língua para formar professores de Miami. Esse programa foi expandido
para outros membros da comunidade para que a língua pudesse ser ensinada pelos pais a seus filhos
dentro de casa, e foram complementados por programas de imersão linguística em Miami para os
jovens. Com base na documentação existente, no conhecimento de lembrantes e das primeiras pessoas
que melhor aprenderam a língua, criaram-se diversos materiais didáticos. Outros programas se con-
centraram mais em ensinar e propiciar experiências de modo que aprender a língua e aprender sobre
a cultura estavam de modo entrelaçados e complementares. Mais importante a ser ressaltado, esses
esforços passaram a ser financiados principalmente pelo governo tribal e, portanto, são guiados por
prioridades tribais e não por agências externas. Após anos desses esforços, existem agora centenas de
pessoas Miami com algum conhecimento do idioma e mais de quinze pessoas com proficiência de
conversação. Muitas famílias de Miami incorporaram o idioma em sua comunicação diária. A trans-
missão intergeracional recomeçou, embora em pequena escala. É claro que a recuperação do idioma
é um processo multigeracional e que, provavelmente, muitos Miami não chegarão a ter níveis “flu-
entes” de proficiência, mas podemos pelo menos dizer que a língua não está extinta e que as previsões
de muitos especialistas estavam erradas.

7.3.3 Retomada: a revitalização muito além do código linguístico


Quando a transmissão de uma língua foi interrompida e o seu futuro depende da formação de uma
nova geração de falantes que cresceu sem aprendê-la como primeira língua, os esforços de revitaliza-
ção esbarram em dois problemas. Primeiro, sobre a escassez de modelos linguísticos e fontes de in-
formações existentes para os novos aprendizes. Segundo, o nível e o tipo de competência comunica-
tiva que alcançarão esses novos falantes. É quase certo que os novos falantes jamais terão a “mesma”
fluência na “mesma” variedade falada pela última geração de pessoas que a aprendeu como primeira
língua. Nesse sentido, é muito importante relativizar nosso conceito de competência comunicativa e
nosso purismo ideológico com relação à manutenção do código linguístico em processos de revitali-
zação.
Por um lado, a ideia de manutenção de um código é uma falácia mesmo para as línguas trans-
mitidas regularmente: o código sempre vai mudar de geração a geração, pois as línguas sempre mu-
dam. Às vezes, o purismo do código está na própria comunidade, como quando os falantes mais
idosos dizem que os novos falantes não falam de modo correto. Em outros casos, o purismo vem de
fora, quando especialistas acadêmicos insistem em dizer que uma dada língua está de fato extinta pois
pessoas que aprenderam essa língua já na fase adulta não conseguem falar como a última geração de
falantes de primeira língua. Quando nos referimos, então, a línguas sendo retomadas por processos
de revitalização, como argumenta Dorian (1994), ideologias puristas podem prejudicar a nova gera-
ção de falantes ao deslegitimar sua fala e trazer inseguranças, de modo que, em muitos casos, o afas-
tamento de normas conservadoras pode ser um bom preço a ser pago em troca da formação de novos
falantes. Por outro lado, devemos questionar o que é “falar” uma língua, o que nos leva a questionar
quem são de fato “falantes” de uma língua. Uma língua cujo último falante fluente faleceu e que agora
está sendo usada em situações e formas muito especiais será ainda usada e falada, não como antes,
mas em novos formatos, meios, contextos e propósitos comunicativos. Ou seja, retomar uma língua
não precisa necessariamente revitalizar o código da língua tal como ela existiu; também não precisa
recriar a língua dentro de suas mesmas funções comunicativas que ela desempenhava no passado.
Logo, é possível que a língua de um povo exista, subsista e resista, mesmo que ela seja falada como
um leto modificado, e mesmo que ela seja usada em contextos comunicativos diferentes.
No Leste e Nordeste do Brasil, encontramos uma grande diversidade de povos indígenas para
os quais, com exceção dos Maxakali e Fulni-ô, o português é a principal língua falada no dia-a-dia.
Apesar disso, como comentam Bonfim, Durazzo e Aguiar (2021), muitos povos reforçam sua identi-
dade indígena a partir de diferentes estratégias discursivas, como ao adotar línguas indígenas faladas
por outros povos, ou por reforçarem sua herança linguística em palavras e expressões na sua forma
de falar o português, um “português indígena” como muitos o reconhecem. Para além disso, cada
povo possui pontos de vista e estratégias diferentes de fortalecimento, revitalização ou retomada lin-
guística de sua língua original, o que nos traz excelentes exemplos de como as línguas continuam

263
existindo para suas comunidades mesmo sendo necessário recriar ou transpor as barreiras de seus
códigos linguísticos ancestrais.
Um dos casos mais bem sucedidos que vemos hoje no Nordeste é do povo Pataxó, cuja língua
ancestral foi dada como “extinta” por volta da década de 1980 (Urban 1985). Diferentemente do
Miami que possui uma ampla descrição, a documentação histórica disponível da língua dos Pataxó
não passava de 500 termos espalhados em sete listas de palavras de diversas variedades da língua.
Desde 1998, o coletivo de pesquisa Atxohã, formado por lideranças, professores e pesquisadores,
vem recuperando sua língua, processo que culminou no desenvolvimento de um leto emergente que
os jovens Pataxó fazem questão de marcar como uma nova variedade chamada de Patxôhã (Bomfim
2017). Esse grupo estabeleceu um programa que combinou metodologias de documentação linguís-
tica, linguística histórica e ensino comunitário e escolar. A documentação linguística foi fundamental
na medida em que engajou pesquisadores locais em entrevistar anciãos de diferentes aldeias, registrar
os idioletos desses “lembrantes” e fornecer novos e melhores registros da língua e cultura Pataxó. A
linguística histórica foi fundamental para interpretar a documentação dos registros históricos dispo-
níveis e identificar etimologias entre os distintos vocabulários que foram registrados ao longo da
história, e para avaliar como informações da língua Maxakali (a língua geneticamente relacionada
mais próxima ao Patxohã, falado por antigos aliados dos Pataxó) pode contribuir para o despertar do
Patxôhã, bem como para a criação de neologismos para termos previamente não documentados, como
ipakâié ‘professor’ formado a partir de ipamakã ‘pai’ e akâiéko ‘líder’ (Bomfim 2017, Campos 2011).
As metodologias de ensino combinaram períodos de imersão linguística dos Pataxó com os falantes
de Maxakali, a organização de espaços e momentos de convivência social para o ensino da língua e
cultura, bem como o uso da escola para o ensino do Patxôhã para crianças, jovens e adultos (Oliveira
e Costa 2021). Para conhecer mais sobre esse processo dos Pataxó, sugerimos ao leitor assistir ao
documentário Patxohã – Língua Retomada produzido pelo coletivo Atxohã.53
O exemplo de revitalização Patxôhã mostra que a organização e o esforço comunitário são
fundamentais. Oliveira e Costa (2021) mencionam como exemplo desse processo o trabalho volun-
tário da Dona Zabelê (Luciana Maria Ferreira), já falecida e tida como um dos “troncos da língua”,
i.e., uma das bases para a resistência e difusão da língua em sua comunidade. Dona Zabelê tinha a
ideia de todas as sextas-feiras fazer uma grande fogueira, preparar alimentos da culinária Pataxó (as-
sava peixe na patioba, fazia cauim, fazia beiju, farinha de coco e outros), e numa grande roda co-
meçava a “cortar língua” com as crianças (falar na língua Pataxó, como dizia ela). Todos tinham que
prestar muita atenção, pois teriam de responder a palavra certa na língua Pataxó sem pronunciar o
português, e se falassem errado não participariam do banquete (Oliveira e Costa 2021: 474-5). No
ambiente escolar, diversas metodologias estão sendo empregadas, como o uso de músicas, feiras te-
máticas, pesquisas, etc., ainda que o tempo oficialmente permitido para aulas de línguas indígenas
seja exíguo para um trabalho mais sistemático. Um dos resultados alcançados, em conexão coma
metodologia de Dona Zabelê, foi a produção de um livro didático com receitas culinárias do povos
Pataxó Fappet Mãgute Pataxó “Caderno de Receitas da Cultura Alimentar Pataxó”.
Povos cujas línguas originais pertencem à família Kariri estão experienciando diferentes for-
mas de revitalização linguística. As línguas dessa família são talvez as línguas Nordeste que tiveram
um corpus descritivo mais consistente produzido durante o período colonial. Com base nesse corpus
e práticas contemporâneas, muitos povos tem realizado ações de revitalização linguística. Os Kariri-
Xocó de Alagoas possuem um grupo bastante ativo tanto no contexto escolar quanto na criação de
recursos digitais para o ensino de sua língua, como podemos aprender a partir do site do coletivo
Okax – Origenas Kariri Xocó.54 Os Xucuru-Kariri de Minas Gerais elaboram uma língua própria com
a presença de vocábulos Yaathe e de línguas da família Kariri, criando uma língua interdita a não
indígenas e outros povos indígenas que não sejam parentes próximos, incluindo um processo de trans-
formação e fusão do alfabeto português com suas tradições gráficas (Bort 2021). Já o povo Kiriri do
norte da Bahia tem experienciado o processo de revitalização linguística a partir de diferentes fontes
de acesso à língua de seus ancestrais e usado diferentes meios de transmissão desse saber, como
53
https://www.youtube.com/watch?v=aN9JhkkuMpw
54
http://thydewa.org/okax/kariri-xoco/

264
analise Moraes (2021). Sua língua, o Kipeá, é uma das mais bem documentadas historicamente do
Nordeste, contando com catecismo e uma gramática escritas pelo padre jesuíta Vicencia Mamiani.
Além disso, na década de 1990, os Kiriri começam a documentar o léxico que os sabedores mais
velhos ainda guardavam na memória. Juntamente a essas fontes documentais, os Kiriri possuem di-
versas práticas rituais e oníricas que usam como domínios para aprender, ensinar e usar sua língua. O
principal ritual nesse contexto é o Toré, em que seres encantados (ou espíritos) falam na “língua dos
antigos”, às vezes usando palavras no meio de uma frase em português ou até mesmo frases inteiras
na língua ancestral. Algumas pessoas anotam esses dados e incorporam ao léxico que estão elabo-
rando sobre a sua língua. De fato, para os Kiriri, como analisa Moraes (2021: 504), os encantados são
os principais falantes da língua, os quais aparecem em incorporação de algumas mulheres, promo-
vendo o aprendizado linguístico.
Um caso emblemático de revitalização linguística tem sido experimentado pelo povo Tupi-
nambá que hoje vive nas aldeias de Olivença, Belmonte e Itapebi no sul e extremo sul da Bahia. Esse
povo tem passado por uma grande luta em busca de seu reconhecimento depois de séculos em que
foram forçados a viveram espalhados e miscigenados a outros povos indígenas e não indígenas. Sendo
previamente reconhecidos genericamente como “índios” ou “caboclos”, como descreve Costa (2013),
após se organizarem em torno de um território e explicitarem seu auto-reconhecimento como Tupi-
nambá, termo que sempre existiu como auto-identificação para diferentes famílias da comunidade, o
povo tem usado a revitalização da língua Tupi como um meio para se conectar à sua ancestralidade,
fortalecer a união do grupo e criar uma perspectiva de futuro. A revitalização da língua traz muitos
desafios, pois apesar de usarem determinadas palavras que estavam sendo encaradas como perten-
centes à língua Tupi, palavras diferentes das usadas por muitos outros moradores da região, não há
falantes do Tupi entre os Tupinambá. O processo de revitalização descrito por Costa (2013) procura
juntar o conhecimento existente na comunidade, com saberes rituais, informações das gramáticas e
dicionários do Tupi Antigo, e práticas pedagógicas. Alguns professores estão a ensinando nas escolas
língua e propondo materiais didáticos, e já há elementos culturais sendo ampliados ou reforçados nas
comunidades. Por exemplo, nas aulas de cultura, os professores ofertam uma lista para que os alunos
escolham seu nome de origem Tupi, tendo muitas pessoas registrado seus novos nomes em cartórios.
Como analisa Costa (2013), não se deve esperar que a língua Tupi, em pleno século XXI, seja falada
da mesma forma que o Tupi do período colonial. Deve-se pensar que a língua falada pelos mais velhos
deve ter o mesmo espaço no processo de revitalização que os dados coletados nos livros e gramáticas
do Tupi Antigo. A língua catalogada junto aos mais velhos, principalmente, carrega outra signifi-
cação, menos sistematizada, menos formalizada, mas mais contextualizada com a real situação do
grupo, enquanto a língua registrada historicamente dará um enorme suporte para a revitalização, pois
trazem palavras, orações, textos, dentre outras informações relevantes para construir a gramática, o
discurso, a fala desta língua no século XXI.
De forma mais ampla, os exemplos dos povos indígenas do Leste e Nordeste mostram que a
revitalização está relacionada a um movimento mais abrangente em que a língua é uma encarnação
dos movimentos reiniciados nos anos de 1970 e 1980 em busca de direitos para controlar seu territó-
rio, para ter uma educação autônoma e para usar e valorizar sua língua e cultura. A língua não é
apenas uma forma de comunicação para os povos indígenas, é um traço da sua luta e todo seu processo
de sobrevivência e resistência contra todas as tentativas de apagamento de suas identidades. Ela existe
no código corporificado em palavras, expressões, documentos históricos e rituais, mas também em
dimensões que transpassam os limites desse mesmo código, estruturando de forma profunda suas
maneiras de ver, estar e construir o mundo em que vivemos.

7.4 O que está em jogo com a vulnerabilidade das línguas indígenas


Sabemos que muitas línguas estão ameaçadas e que muitas já deixaram ou deixarão de ser faladas
muito em breve. Mas quem deve se importar com isso e por que deveria? A princípio, “uma pessoa
qualquer”, ao ser perguntada sobre o que ela pensa sobre a extinção de línguas indígenas, poderia nos
dar respostas como “ué, as pessoas estão passando a falar uma outra língua por que elas precisam e
porque elas querem”, ou “no mundo globalizado, é melhor que todos falem logo uma só língua para

265
facilitar a comunicação” ou ainda “tudo bem se uma língua morrer, pois a mesma cultura e conheci-
mentos podem ser preservados ao serem traduzidos para uma outra língua”. Como discutimos nessa
seção, é consenso entre os especialistas que há perdas irreparáveis para todos com a crise da diversi-
dade linguística, desde os falantes e povos detentores dessas línguas, aos pesquisadores e à ciência,
bem como para a humanidade como um todo.

7.4.1 Saúde e Bem-Viver


Para comunidades e indivíduos indígenas, a obsolescência de uma língua pode criar problemas na
forma como as gerações mais velhas passam sua cultura para os mais jovens. Elementos importantes
que compõem as identidades coletivas, que atuam como força coesiva e indexadora de um povo e a
relação histórica que um indivíduo estabelece entre si e seus ancestrais, sejam eles vivos ou mortos,
são direta e indiretamente transmitidos e construídos a partir do uso de uma língua em comum. Como
comenta Walsh (2018), muitas outras coisas estão em jogo quando as comunidades passam por um
processo de obsolescência linguística:
Se uma pessoa conhece uma palavra em sua língua ela está mantendo um vínculo que durou milhares de
anos, mantendo vivas palavras que foram usadas por seus ancestrais – a língua é um direito ancestral e
distingue algo especial entre os aborígenes de pessoas não aborígenes. A língua é uma parte da cultura, e
o conhecimento sobre a cultura é um meio de empoderar as pessoas. A língua […] fortalece os laços entre
os mais velhos e os jovens e melhora a educação em geral para os indígenas de todas as idades.
Dada a elação entre língua, identidade, coletividade, ancestralidade e o bem-estar dos indivíduos, a
perda ou enfraquecimento dos usos e transmissão de uma língua podem ter um impacto mais amplo
na saúde física e mental das pessoas. Estudos realizados no Canadá apontam que, apesar da diabetes
ser uma doença crônica para vários povos indígenas da América do Norte, níveis mais reduzidos de
diabetes se correlacionam com comunidades onde se verifica um maior uso de línguas indígenas.
Também apontam para uma forte correlação entre o conhecimento das línguas indígenas e uma menor
incidência de suicídio entre jovens indígenas (Walsh 2018).
A questão da saúde e sua relação com a vitalidade das línguas indígenas é importante pois revela
uma relação sistêmica e complexa entre as duas coisas. Talvez a melhor forma de capturar isso é pelo
conceito indígena de “Bem-Viver”, cunhado em Quechua como Sumak Kawsay ou Allin Kawsay, e
que possui uma concepção holística do ser humano, sua cultura, ancestralidade, a organização social,
política e econômica, bem como nossa relação com o meio-ambiente. Nesse todo complexo, línguas
e saúde aparecem direta e indiretamente vinculadas. As línguas possuem um papel fundamental para
concepções e práticas de desenvolvimento de uma boa saúde, são instrumentos para nomeação e o
discurso sobre patologias, sintomas e curas. Como analisam Jara Dio e Santis-Piras (2019)

para diagnosticar y proceder a la curación se requiere de mucho conocimiento sobre el poder curativo de
las plantas medicinales, terapias, ritos y ceremonias especiales o mágicas. Lo señalado representa un
cúmulo de conocimientos que […] tiene las siguientes características: proviene de la naturaleza, se trans-
mite de generación en generación mediante lenguaje oral, basado en creencias y expe-riencias de las co-
munidades indígenas llevadas a la práctica, carece de sustento científico pero previene o cura ciertas
enfermedades físicas, emocionales o espirituales que también provienen de la tierra.” (106-107)
Na perspectiva da relação entre povos indígenas e os Estados, as línguas estão também diretamente
relacionadas à atenção à saúde. Flood e Rohloff (2018) realizaram estudos que apontam que há uma
correlação positiva entre sucessos nos tratamentos à saúde quando os atendimentos por médicos, en-
fermeiros e outros agentes priorizam intencionalmente o uso de uma língua indígena. Isso se refere,
sobretudo, quando os próprios agentes de saúde conseguem usar a língua indígena em suas interações
com pacientes, o que é diferente de uma interação por meio de intérpretes ou tradutores. Além disso,
como lembram os autores, a atenção à saúde na forma como ele é genericamente oferecida pode afetar
negativamente a vitalidade das línguas indígenas devido à incapacidade do setor de saúde de fornecer
assistência médica em línguas indígenas, o que as coloca diretamente em atrito com as línguas domi-
nantes usadas pelos agentes e serviços de saúde.

266
7.4.2 Educação
Outro setor importante a ser considerado é o da educação escolar. A Unesco chama atenção para que,
em situações multilíngues, a política relativa à língua de alfabetização deve ser cuidadosamente for-
mulada, especialmente quando a língua nacional ou oficial for diferente das línguas locais. Nesses
casos o uso da língua materna como língua de instrução é o recomendado, ao menos nos anos iniciais,
uma vez que se a língua de instrução é diferente da língua materna do aluno, é provável que o apren-
dizado inicial seja mais lento e o desempenho mais baixo. O RCNEI discute, no entanto, como histo-
ricamente a educação escolar no Brasil serviu como instrumentos tanto para a difusão do português
e o enfraquecimento das línguas indígenas, seja num modelo escolar que introduzia o português como
única língua de instrução desde os anos iniciais, seja no modelo de transição língua indígena > por-
tuguês sugerido como solução mínima pela Unesco. Por isso, o RCNEI recomenda um modelo de
escola que adote uma postura multilíngue e trabalhe as línguas indígenas ao longo de todo o currículo,
tanto como língua de instrução de diferentes matérias, quanto como disciplina específica. A maneira
como a língua indígena e portuguesa serão trabalhadas na escola vai variar de acordo com as habili-
dades e competências linguística dos alunos nessas línguas, levando-se em consideração questões
como se as falam como primeira ou segunda língua, os tipos de usos escritos e orais de cada língua,
etc. Esses tipos de ações fazem com que não só o aprendizado escolar seja facilitado pelo uso ade-
quado das línguas faladas numa comunidade, como também fazem com que a escola cumpra objeti-
vos mais amplos, como
possibilitar que os alunos indígenas usufruam dos direitos lingüísticos que lhes são assegurados, como
cidadãos brasileiros, pela Constituição [e] atribuir prestígio à línguas indígenas o que contribui para que
seus falantes desenvolvam atitudes positivas em relação a elas, di- minuindo, assim, os riscos de perdas
lingüísticas e garantindo a manutenção da rica diversidade lingüística do país (RCNEI 1998 117-1121)
7.4.3 Territórios, Meio-Ambiente e Conhecimentos Ecológicos Tradicionais
Outra dimensão de direitos e conhecimentos importante é a relação entre línguas e territórios. Já
vimos como a língua se coloca como um instrumento de retomada de questões identitárias, culturais
e políticas para diversos povos indígenas, como os do Nordeste e Sudeste do Brasil (seção 7.3). No
contexto brasileiro, pela Constituição de 1988, os povos indígenas têm direito a seus territórios tradi-
cionais, porém o estatuto de um grupo social como indígena e seu vínculo com o território precisam
ser comprovados. As línguas indígenas têm uma grande importância para esse duplo objetivo. Basta
observar que até recentemente, as terras indígenas na Bolívia não podiam ser reconhecidas se povos
ali vivendo já não mais falassem suas línguas indígenas originais. Dessa forma, foram punidos duas
vezes: na época colonial, por falarem uma língua indígena, e na época moderna, por não falarem mais
a língua indígena. Felizmente, essa injustiça já foi abolida no país andino (Voort 2019: 372).
Por servir como forma de se falar e pensar sobre o espaço, as línguas constituem um tecido
simbólico que nomeia e interconecta discursivamente lugares, trajetórias, pessoas, outros animais,
espíritos e recursos necessários para a vida, como a alimentação, remédios, matérias primas etc. De
fato, não é difícil imaginar a importância da língua como instrumento comunicativo necessário para
nomear as coisas que existem em um território e para podermos nos guiar e locomover sobre ele.
Porém, além disso, as línguas constroem uma relação necessária entre pessoas, povos e lugares. Para
mostrar isso de forma mais clara, vejamos duas declarações de pessoas Apache registradas por Keith
Basso (1996: 38-9)
I think of that mountain called Tséé Ligai Dah Sidilé (White Rocks Lie Above In A Compact Cluster) as if
it were my maternal grandmother. I recall stories of how it once was at that mountain. The stories told to
me were like arrows. Elsewhere, hearing that mountain's name, I see it. Its name is like a picture. Stories
go to work on you like arrows. Stories make you live right. Stories make you replace yourself. (Benson
Lewis, age 64, 1979)
One time I went to L.A., training for mechanic. It was no good, sure no good. I start drinking, hang around
bars all the time. I start getting into trouble with my wife, fight sometimes with her. It was bad. I forget
about this country here around Cibecue. I forget all the names and stories. I don't hear them in my mind
anymore. I forget how to live right, forget how to be strong. (Wilson Lavender, age 52, 1975)

267
Como comenta Basso (1996: 40-1), com palavras transformamos algo de uma grandiosa presença
física (o espaço) em algo significativo para o universo humano, em que nomes e narrativas sobre
lugares constroem uma relação entre a vida atual das pessoas e de seus ancestrais com lugares espe-
cíficos no território, o que serve para construir um modelo sobre personalidade, estética e moral sobre
a vida.
As línguas também estão intimamente ligadas à concepção, conhecimento e práticas de manejo
e governança dos territórios indígenas. A relação entre povos indígenas e seus territórios está baseada
no manejo e reprodução da biodiversidade (Ballée_), o que faz com que os territórios indígenas sejam
bem mais biodiversos e ambientalmente preservados do que aqueles nas mãos de grandes pecuaristas
e agricultores. Para se averiguar isso, basta olhar para fotos aéreas de Terras Indígenas e propriedades
rurais vizinhas, sobretudo em Terras localizadas ao longo do “arco do desmatamento da Amazônia”.
Num contexto global, segundo a FAO 80% da biodiversidade do mundo hoje está sendo administrada
por povos indígenas. Muitas foram as contribuições das culturas ameríndias para as novas populações
chegadas ao continente americano bem como para a humanidade como todo. Como exemplo, pode-
mos citar: instrumentos como a rede para dormir, o caiaque, óculos de neve, as pontes suspensas por
cabos, a agricultura de canteiros, seringas, a borracha; ou alimentos como batata, feijão, milho, man-
dioca, cacau e chocolate, amendoim, tomate, abóbora, pimenta, nozes, melão e girassol, bem como
uma infinidade de remédios, sobretudo relativos a anestésicos, analgésicos tópicos e contraceptivos.
Não só suas culturas contribuíram para a história da humanidade, como a continuidade de suas práti-
cas agrícolas e alimentos, por exemplo, são importantes ativos para um mundo com graves crises
climáticas.
Tendo sido gradualmente construídos ao longo de infindas gerações, e hoje ameaçados junta-
mente com as línguas, os chamados Conhecimentos Ecológicos Tradicionais (CET), vistos em seu
conjunto, são uma verdadeira enciclopédia sobre a relação entre pessoas, técnicas e a natureza. Por
isso, guardam não somente conhecimentos específicos, como identificação de doenças e produção de
remédios ou técnicas de manejo e produção de alimentos, mas também formas alternativas de orga-
nização social e visões de mundo. Nesse sentido, esses conhecimentos transmitidos pelas línguas dos
povos tradicionais são verdadeiras bibliotecas vivas para a humanidade. A documentação das línguas
e culturas indígenas, seu estudo comparativo, bem como o desenvolvimento de ações que visem for-
talecer e reelaborar suas formas de transmissão são passos necessários para se fazer frente à vulnera-
bilidade das línguas indígenas e assegurar que conhecimentos dessa natureza continuem como ele-
mentos ativos para as populações locais e para a humanidade como um todo.

7.5 As tarefas atuais da linguística para com as línguas indígenas


Aryon Rodrigues (1966), em seu trabalho Tarefas da linguística no Brasil, elegeu como principal
tarefa da linguística de então no país a investigação das línguas indígenas, uma vez que “cada nova
estrutura linguística que se descobre pode levar-nos a alterar conceitos antes firmados e pode abrir-
nos horizontes novos para a visualização geral do fenômeno da linguagem humana”. Segundo Rodri-
gues, já havia urgência nessa tarefa: “o esforço tem de ser redobrado, para que se alcancem todas as
línguas ainda em tempo e não se deixe que nenhuma passe a contribuir nova ‘página em branco’ na
história dos povos indígenas do Brasil”. Como vemos, o sentido dessa tarefa tinha como ponto central
expandir o conhecimento científico, mas também ia além ao tocar também com a representatividade
dos povos indígenas na história do Brasil. Ruth Monseratt, em seu prefácio ao livro de Rodrigues
(1985), quando então ainda vivíamos uma ditadura militar, coloca corajosamente os povos indígenas
e o conhecimento sobre suas línguas como “uma questão política que interessa à formulação e viabi-
lização de um projeto democrático global para o Brasil”. Tendo passado 40 ou 60 anos, é justo dizer
que temos avançado numa direção positiva, mas, ao mesmo tempo, a ameaça à diversidade linguística
é – mais agora do que antes – um problema central para a linguística e para um projeto democrático
de país. Como podemos responder a isso?
A primeira tarefa básica da linguística enquanto uma ciência “pura” segue sendo a de ampliar
e aprofundar os estudos descritivos e sociolinguísticos sobre línguas e sociedades indígenas. Essa é a
base para estudos comparativos, tipológicos, históricos ou de qualquer natureza teórica. É também a

268
base para investigações em áreas mais aplicadas, como políticas linguísticas, o ensino e aprendizagem
de línguas, etc. É também a partir dessa base que podemos desenvolver estudos interdisciplinares
com repercussões em outras áreas da sociedade, como saúde e proteção do meio-ambiente. Esse livro
ilustrou um pouco das áreas de pesquisa sobre as línguas indígenas. Há incontáveis outras coisas que
não abordamos, e infinitas outras que serão desenvolvidas. O importante é haver liberdade e financi-
amento para as pesquisas.
O que parece ser de fato uma nova tarefa para a pesquisa é revisar nossos paradigmas tradici-
onais ainda ancorados numa visão arcaica, colonial, baseada no trabalho de um pesquisador-observa-
dor distanciado, que trata pessoas apenas como objetos de pesquisa, os quais devem permanecer ig-
norantes sobre as reais intenções do pesquisador e sem direitos sobre produtos da pesquisa, uma vez
que ela seria fruto do conhecimento, engenho e labor do pesquisador. Esse paradigma vem mudando
em vários sentidos. Podemos dizer que a ciência tem tentado se realizar dentro de um paradigma ético
mínimo, em que se respeitam as pessoas e se lhes pede anuência informada sobre o que é a pesquisa.
Outros tipos de pesquisas vão além do paradigma ético e desenvolvem estratégias participativas, em
que a pesquisa é feita para e com os povos indígenas. Conforme se expandem os cursos de formação
em linguística no país e aumentamos o número de indígenas linguistas, realizaremos algo apenas
sonhado 40 ou 60 anos atrás, que é uma pesquisa linguística feita sobre, para, com e pelos povos
indígenas (Czaykowska-Higgins 2009). Como resultado disso, as pesquisas se tornam mais ricas em
termos de dados, mais perspicazes em termos de análises e mais coerentes com a realidade dos povos
indígenas.
Uma área que tem sido especialmente sensível a essas questões é a da descrição e documen-
tação linguística. Desenvolvida a partir da tradição Boasiana, que combinava trabalho de campo e
descrição linguística para se produzir uma gramática, um dicionário e uma coleção de textos de uma
língua, o campo da documentação linguística passou por uma redefinição na década de 1990 quando
se atentou para a grande vulnerabilidade da diversidade linguística mundial. Em seu ímpeto do início
do século XXI, a documentação linguística se pautou por registrar uma ampla gama de fenômenos
linguísticos em situações comunicativas genuínas, espontâneas e diversificadas, utilizando-se de
equipamentos de alta tecnologia para se fazer registros audiovisuais de alta qualidade, fornecer um
conjunto e anotações básicas (minimamente transcrição e tradução) e garantir um registro duradouro
e multifuncional de uma língua. Cada vez mais, no entanto, os projetos de documentação linguística
estão escolhendo temas específicos de documentação, sejam com uma temática pré-definida por um
interesse intercultural (e.g. registros de artes verbais que não mais estão sendo transmitidas), ou com
um objetivo prático para o uso dos dados (e.g. o desenvolvimento de um site com uma enciclopédia
multimídia de artes verbais). A ideia é tornar os produtos e o processo de documentar mais próximos
dos membros da comunidade, criando também uma oportunidade para oferecer formação para pes-
quisadores da comunidade nas técnicas e fundamentos da documentação linguística (Himmelmann
2006; Stenzel 2008; Moore et al. 2008).
Os estudos sociolinguísticos e de linguística aplicada têm também sido muito importantes
nessas transformações e no estabelecimento de agendas para as tarefas da linguística atual. A socio-
linguística – além de todo seu aporte teórico e metodológico para o estudo das relações entre língua,
sociedade e cultura – a partir de estudos de caso, levantamentos, diagnósticos e censos nos traz aná-
lises fundamentais para desenvolvermos planejamentos, intervenções sociais e políticas linguísticas.
Fica, portanto, claro que uma das tarefas para a sociolinguística é fornecer subsídios para pensarmos
as línguas e as sociedades indígenas na sua contemporaneidade, e para que possamos, a partir daí,
desenvolver políticas públicas efetivas. Já a linguística aplicada às línguas indígenas tem um longo
histórico de interface com a área da educação escolar intercultural e bilíngue, bem como com as
estratégias de ensino de línguas indígenas como língua materna ou segunda língua. Com isso, essa
área tem sido instrumental para a transformação das escolas em um ambiente que valoriza o ensino e
uso das línguas indígenas, para a formação de professores indígenas que ensinam suas línguas nas
escolas de suas comunidades e para o desenvolvimento de materiais didáticos a serem usados nessas
escolas. Os acadêmicos indígenas que hoje possuem mestrado e doutorado em linguística são, na sua
quase totalidade, egressos de cursos interculturais de formação de professores.

269
Muito pode ser feito para se construir uma ponte entre o conhecimento sobre as línguas indí-
genas e ações para seu fortalecimento efetivo, indo além da sala de aula. Nesse aspecto, o uso de
novas tecnologias tem assumido um papel fundamental. O passo mais básico para isso é criarmos
bancos de dados e corpora digitais para todas as línguas que pudermos. Arquivos digitais para as
línguas indígenas existem em poucas instituições de pesquisa no Brasil, como o Museu do Índio e o
Museu Paraense Emílio Goeldi; a nível internacional, os que possuem mais dados de línguas indíge-
nas das Américas são o AILLA (Archive for the Indigenous Languages of Latin America) no Texas
(EUA), e o ELAR (Endangered Language Archive) na Inglaterra.55 O Brasil precisa investir mais
nessa área, com uma política de democratização de criação de arquivos digitais, formação de redes
entre suas instituições de pesquisa e maior acesso das comunidades indígenas e o público em geral.
Juntamente com os arquivos, precisamos de mais projetos de inovação de modo a transformar dados
brutos em recursos digitais mais tangíveis para as comunidades que falam as línguas indígenas. Um
exemplo nessa linha é a Plataforma Japiim, apoiada pelo Museu do Índio/FUNAI e Unesco, ela reúne
dicionários multimídias de várias línguas indígenas, disponibilizá-os para download, como aplicati-
vos de celulares e ainda fornece um teclado para a escrita das línguas em celulares e computadores.
Outro exemplo interessante é o Web Indígena que promove a inclusão das línguas indígenas e res-
pectivas comunidades no mundo digital, realizando ações que vão desde curso de produção textual
em línguas indígenas ao desenvolvimento e hospedagem de sites, e à formação de gestores indígenas
para esses sites (D’Angelis e Costa 2010).
O desenvolvimento de ações e políticas linguísticas efetivas em prol das línguas indígenas é
a tarefa mais urgente do século. Precisamos reverter de forma definitiva um conjunto de legislações,
práticas e ideologias sob controle de estados e sociedades monolíngues. No contexto brasileiro, o
lugar que essas políticas têm historicamente avançado mais é a educação intercultural e bilíngue, uma
vez que desde a Constituição Federal de 1988 está assegurado às comunidades indígenas a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Há, inegavelmente, uma necessidade
constante de melhorar os contextos educativos, mas, ao mesmo tempo, temos de ampliar as políticas
linguísticas para além das escolas. Nesse sentido, em 2010, foi instaurado o Inventário Nacional da
Diversidade Linguística (INDL), que tem como meta mapear, caracterizar e diagnosticar as diferentes
situações relacionadas à pluralidade linguística brasileira, sistematizando esses dados em formulário
específico” e com a promessa de que “as línguas inventariadas farão jus a ações de valorização e
promoção por parte do poder público” (ver Decreto presidencial n.º 7387, de 9 de dezembro de 2010).
Outro instrumento que tem se mostrado importante é a cooficilização de línguas indígenas a nível
municipal e estadual, tendo já atingido 13 línguas indígenas em 10 municípios. Muitas expectativas
se voltam agora para o Projeto de Lei 3074/19 do Congresso Nacional que propõe a cooficialização
das línguas indígenas nos municípios brasileiros que possuam comunidades indígenas. Como a expe-
riência de outros países nos mostra, essas leis podem colaborar de forma efetiva para o fortalecimento
das línguas indígenas ao apoiar o seu uso em diferentes esferas públicas, como, por exemplo, ao
estabelecer uma cota de tempo semanal para programas de rádio nas línguas, bem como a contratação
de intérpretes comunitários para o atendimento público em hospitais, centros de assistência social,
entre outros. Um exemplo recente disso no Brasil foi o trabalho da Defensoria Pública do Estado do
Amazonas (DPAM) que desde 2021 tem usado intérpretes de línguas indígenas como parte funda-
mental do protocolo de seu atendimento. (Para mais informações sobre legislações linguísticas no
Brasil, ver _ IPOL56).
Para que de fato as políticas linguísticas sejam mais efetivas é fundamental que elas articulem
diferentes ações, desde aquelas criadas de baixo para cima a partir da experiência das comunidades
de falantes (políticas in vivo), até as formas de leis, programas, normas e ações que norteiam as ações
do estado e da sociedade de cima para baixo (políticas in vitro, Calvet 2007). Como vimos, existem
muitas maneiras em que o conhecimento técnico e científico pode e deve contribuir para o fortaleci-
mento dos povos e das línguas indígenas. Porém, a tarefa de mantê-las vivas e dinâmicas ou de revi-
talizá-las é algo que passa por uma transformação política mais profunda sobre quem detém, produz
55
AILLA: https://ailla.utexas.org/; ELAR: https://www.elararchive.org/
56
http://ipol.org.br/lista-de-linguas-cooficiais-em-municipios-brasileiros/

270
e direciona conhecimentos e recursos financeiros. Para tanto, é fundamental que o protagonismo na
tomada de decisões e articulação entre esses níveis de políticas esteja com os povos indígenas. Isso
tem sido pauta dos movimentos políticos indígenas da América como um todo. Um marco recente
nessa trajetória foi a criação da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) pela Orga-
nização das Nações Unidas (ONU). Com o lema Nada por nós sem nós, a Década tem como meta
valorizar o protagonismo indígena nos processos já em curso de fortalecimento e retomada de suas
línguas, bem como elaboração de políticas linguísticas em prol das línguas indígenas no âmbito de
cada país membro da ONU. Para a linguística, isso mostra os limites de sua atuação enquanto uma
ciência: há uma dimensão em que somente os atores políticos indígenas e não-indígenas, comunida-
des e governos, podem atuar. Por outro lado, essa perspectiva mostra o lugar que uma ciência humana
e socialmente comprometida (e em geral financiada com dinheiro público) pode ocupar enquanto uma
área do conhecimento aliada à sustentabilidade da diversidade linguística e ao fortalecimento dos
povos indígenas.

271
8 Para saber mais

#@?!%$

Por ser um livro de ensino e de divulgação científica, aqui apresentamos tanto questões teóricas e
metodológicas mais gerais, quanto resultados de análises específicas, sínteses do principais fatos e
das grandes questões que impulsionaram ou que continuam a suscitar a produção de novos conheci-
mentos. Seria impossível fazer uma obra com os presentes objetivos que pudesse fazer jus à enorme
literatura com análises e dados primários que subjaz ao presente trabalho. Em grande medida, fontes
de dados primários não citados nesta obra estão citadas nas principais obras que utilizamos como
fontes de informação, como enciclopédias, catálogos, compêndios, mapas e revisões de literatura so-
bre as línguas indígenas, os quais trazem informações sobre a classificação genética das línguas, sua
distribuição geográfica, breves informações demográficas, históricas, onomásticas, com panoramas
descritivos e o estado atual dos estudos sobre as línguas. O leitor deve tomá-los como referências
iniciais para se orientar onde poderia ir em busca de informações primárias.

Em língua portuguesa, a principal obra dessa natureza é ainda Línguas Brasileiras: para o conheci-
mento das línguas indígenas, do professor Aryon Rodrigues, publicado em 1986. Em sua linguagem
clara e sua organização didática, Línguas Brasileiras segue sendo a principal referência sobre as
línguas indígenas do Brasil. No entanto, os estudos comparativos sobre línguas ameríndias avançaram
bastante nos mais de 35 anos que nos separam da publicação do professor Aryon, de modo que atua-
lizações de conteúdo fazem-se necessárias. Também é oportuno abordar as línguas indígenas a partir
de outros recortes geográficos, que não se limitam às fronteiras dos estados nacionais, impostos de
fora para dentro aos territórios indígenas. Isso agora pode ser feito graças a uma série de publicações
mais recentes que atualizam, sistematizam e sintetizam informações sincrônicas e diacrônicas sobre
um amplo conjunto de línguas e regiões das Américas. Citamos alguns em especial:
§ Adelaar e Muysken (2004) The languages of the Andes
§ Aikhenvald (2012) The languages of the Amazon
§ Campbell (2000) American Indian Languages
§ Dixon e Aikhenvald (1999) Amazonian languages
§ Goddard (2006) Handbook of North American Indians volume 17: Languages
§ Inge Sichra (ed.) (2009) Atlas sociolingüístico de pueblos indígenas en América Latina
§ Mithun (2001) The Languages of Native North America
§ Queixalos e Lescure Línguas Amazônicas hoje
§ Campbell (1997, 2023), Glottolog (www.glottolog.org), Ethnologue (www.ethnologue.com) e EL-
CAT (www.endangeredlanguages.com).

Também serviram como fontes fundamentais de informações as bases de dados Glottolog (www.glo-
ttolog.org), ELCat (http://www.endangeredlanguages.com/) e Ethnologue (www.ethnologue.com).
Essas bases reunem um conjunto de informações sumárias, como localização geográficas, nomes,
população de falantes, referências bibliográficas e graus de vitalidade de línguas em todo o mundo.
Outros recursos digitais ou materiais bibliográficos que foram utilizados como material de consulta
para esta obra serão citados oportunamente.

§ PANORAMA POR FAMILIAS, COMO O LIVRO DE ARYON, E DOIS CAPITULOS COM SIN-
TESES DAS POLITICAS EDUCACIONAIS, LINGUISTICAS E INDIGENISTAS. Introdução às
Línguas Indígenas do Brasil: Agrupamentos e Famílias Linguísticas Maiores, Política e Educação
Escolar Indígena

272
§ DIFERENTES RETRATOS DE LINGUS ESPECIFICAS. Índio Não Fala só Tupi: uma Viagem
Pelas Línguas dos Povos Originários no Brasil
§ APRESENTA aspectos da gramática de cinco línguas, filiadas às quatro famílias linguísticas do
Brasil: Guarani Mbya e Tupinambá (Tupi-Guarani), Karajá (Macro-Jê), Kuikuro (Carib) e Paumarí
(Arawa). A partir dos principais postulados da Gramática Universal, os autores apresentam caracte-
rísticas dessas línguas, como a recursividade e a sintaxe. Línguas indígenas e gramática universal

Plataformas
Etnolinguistica
PIB
Léxico Japiim
Canal da Abralin

Ergatividade: Ergatividade e Sistemas de Alinhamentos em Línguas Indígenas

Línguas de Sinais Indígenas: As línguas de sinais Indígenas em contextos interculturais Shirley

Português e o tupi no Brasil

Sintaxe e Semântica do Verbo em Línguas Indígenas no Brasil

Franchetto: Língua(s): cosmopolíticas, micropolíticas, macropolíticas

http://bit.ly/webindio
Do Índio na Web à Web Indígena Wilmar da Rocha D’Angelis

ESTRATÉGIAS PARA A REVITALIZAÇÃO DE LÍNGUAS AMEAÇADAS E A REALIDADE


BRASILEIRA Luiz AMARAL
https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/251

SOBRE UMA METODOLOGIA DE DOCUMENTAÇÃO BASEADA NAS ATIVIDADES DE


(RE)VITALIZAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO Wilson de Lima SILVA Joseph DUPRIS
https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/243

KANHGÁG VĨ MRÉ ẼG JYKRE PẼ JAGFE - NINHO DE LÍNGUA E CULTURA KAINGANG


Márcia NASCIMENTO
https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/247
A VITALIZAÇÃO DA LÍNGUA KOKAMA ALÉM DAS FRONTEIRAS ENTRE O BRASIL E
PERU Altaci RUBIM
https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/268

OS RITUAIS APYÃWA MANTÊM E PRESERVAM A LÍNGUA E SUAS HISTÓRIAS Nivaldo


Korira’i TAPIRAPÉ
https://cadernos.abralin.org/index.php/cadernos/article/view/229

Botando a lenha na fogueira do guató Gustavo Godoy, University of Texas at AustinFollow Kristina
Balykova, University of Texas at Austin https://scholarworks.umass.edu/livinglangua-
ges/vol1/iss1/11/

ninho de língua e cultura kaingang na terra indígena Nonoai


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Co-oficialização
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https://www.oxfordhandbooks.com/view/10.1093/oxfordhb/9780190610029.001.0001/oxfordhb-
9780190610029-e-32
https://www.oxfordhandbooks.com/view/10.1093/oxfordhb/9780190610029.001.0001/oxfordhb-
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Hopi
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London & New York: Continuum, pp. 1434. http://goo.gl/XytBE

274
9 Notações Fonéticas

Os quadros a seguir mostram os símbolos utilizados pelo Alfabeto da IPA (Associação Internacional
de Fonética) e aqueles utilizados pela tradição americanista, sobretudo norte-americana, que se con-
vencionou chamar de NAPA (Alfabeto Fonético Norte-Americano). Resumimos as principais dife-
renças entre o sistema do IPA (__) e NAPA, este último baseado nos trabalhos de Ives Goddard
(1996) e Marianne Mithun (1999). A seguir veremos os quadros separados para consoantes e depois
vogais. O leitor pode consultar o site do IPA para ouvir as pronúncias de cada som nas tabelas abaixo,
bem como de outros sons do alfabeto.57
Quadro 28: Consoantes do IPA e NAPA. Os símbolos em negrito são empregados em ambos os alfa-
betos, enquanto os em itálico são usados exclusivamente no NAPA.

Quadro 29: Vogais do IPA e NAPA. Os símbolos em negrito são empregados em ambos os alfabetos,
enquanto os em itálico são usados exclusivamente no NAPA.

57
https://www.internationalphoneticassociation.org/IPAcharts/inter_chart_2018/IPA_2018.html

275
10 Abreviações

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