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Um homem é um homem

A transformação do estivador Galy Gay,


no acamp.amento militar de Kilkoa,
no ano de mil novecentos e vinte e cinco.

COMÉDIA

(Versão de 1938)

Tradução de António Conde.


A primeira apresentação desta peça em Portugal ocorreu a 7 d • 1 ),
zembro de 1978 no Teatro da Comuna, em Lisboa, numa versão d J,111 ..
Mota por ele próprio dirigida e intitulada Homem morto, homem posto,
A tradução aqui apresentada e revista para esta edição estreou rcu11
o título Homem por homem a 6 de Novembro de 1992 no Teatro :11111
de Resende, em Évora, numa produção do CENDREV e com a segui111,
ficha técnica: Encenação, cenografia e figurinos: Luís Varela; Direcção 1111111
cal: Francisco D'Orey; Desenho de luzes: António Rebocho e João arl11•
Marques; Elenco: Vítor Zambujo (Uria Shelley), Rui Nuno (Jesse Mal111 11.KOA
ney), João Sérgio Palma (Polly Baker), Jorge Baião (Jeraiah Jip), Álvon,
Corte-Real (Charles Fairchild)_,José Russo (Galy Gay), Maria João Tosca1111 ,'t1!-y Gay e a Mulher.
(Mulher de Galy Gay e Mah Sing), João Azevedo (Sr. Wang), Isabel Bilo11
(Leokadja Begbick) e Vicente Sá, Joaquim Medina, Pedro Teixeira e Vi 101 ;ALY GAY está sentado uma manhã na sua cadeira, e diz para a
Fialho (Soldados). mulher: Minha querida mulher, acabei de tomar a deci­
são de hoje comprar um peixe a que a nossa bolsa possa
chegar. Não é nenhuma extravagância para um estivador
Primeiros esboços da peça entre 1918 e 1921 com o título Galg,c,. que não bebe, fuma só um ou outro cigarrito e que não
Escrita da peça com o título Um homem é um homem entre 1924 e 1926. tem quase vícios. Achas que devo comprar um peixe
Estreia absoluta simultânea, em 25 de Setembro de 1926, no Landesthe,i grande ou precisas de um pequeno?
ter em Darmstadt e no Schauspielhaus em Düsseldorf. Primeira publica­ MULHER De um pequeno.
ção, com um apêndice intitulado A cria de elefante ou Tudo se pode provar, 1ALY GAY E de que espécie de peixe é que tu precisas?
em 1927. Elaboração de novas versões em 1929, 1930/31, 1938 e 1953. MULHER Estou a pensar numa boa solha. Mas faz-me o favor
de te pores a pau com as peixeiras, olha que são muito
lascivas e atiram-se aos homens e tu deixas-te levar com
muita facilidade, Galy Gay.
Colaboradores: Slatan Dudow · H.Emmel · Elisabeth Hauptmann ·
GALY GAY Isso é verdade, mas espero que elas deixem em
R Kass · Bernhard Reich
paz um pobre estivador do porto sem dinheiro.
MULHER Tu és como um elefante, que é o animal mais corpu­
PERSONAGENS lento de todos, mas que, quando embala, dispara como
um comboio de mercadorias. E depois, lá na cidade estão
Uria Shelley, ]esse Mahoney, Polly Baker, Jeraiah Jip - quatro soldados aqueles soldados, que são as piores criaturas sobre a
de uma secção de metralhadora do exército britânico na Índia · Charles terra, e parece que vão chegando aos magotes à estação.
Fairchild, alcunhado o Cinco Sangrento, sargento · Galy Gay, um estiva­ Devem estar todos ali pelo mercado sem fazer nenhum,
dor irlandês · Mulher de Galy Gay · Senhor Wang, bonzo de um pagode podemos dar-nos por felizes se não desatarem para aí a
tibetano · Mah Sing, seu acólito · Leocádia Begbick, proprietária de uma roubar e a matar. E também são perigosos para um ho­
cantina · Soldados mem sozinho, porque andam sempre aos quatro.
146 Um homem é um homem
2. Rua junto ao pagode do Senhor Amarelo 147

GALY GAY A um pobre estivador do porto não hão-de 1·11 rnir aos bocados e cheio de cagadelas de moscas, mas
querer fazer mal.
t!LIC talvez esteja recheado de cobre, e por isso merece
MULHER Isso nunca se sabe.
que nos familiarizemos com esta coisa.
GALY GAY Podes ir pondo água ao lume para o peixe, p111
111• Pela parte que me toca, preciso de beber mais, Polly.
que já começo a sentir apetite e devo estar de volta daq111
11111A Acalma-te, meu querido, esta coisa asiática deve ter um
a dez minutos.
buraco por onde a gente se há-de poder enfiar.
111 1 Uria, Uria, a minha mãe costumava dizer-me muitas vezes:
faz tudo o que te der na gana, meu querido Jeraiah, mas
2 tenta precaver-te da má sorte, e aqui cheira a má sorte.
RUA JUNTO AO PAGODE DO SENHOR AMARELO 11 SSE A porta só está encostada. Tem cuidado, Uria! De cer-
teza que há coisa do demónio aí dentro.
Quatro soldados param em /rente ao pagode. Ouvem-se marchtl\ 1JtuA Por esta porta aberta não se entra.
militares, tropas a desfilar. /1.ssE Claro, para que foram feitas as janelas?
1JHIA Façam das vossas correias uma cana de pesca comprida
}ESSE Secção... alto! Kilkoa! Aqui tendes Kilkoa, cidade clt· e enganchem-na na caixa das esmolas. Vá! Precipitam-se
Sua Majestade, local onde o exército concentra homens para as janelas. Urza parte uma delas, espreita para dentro e
destinados a uma guerra que há muito se previa. Viemo:. começa a pescar.
para aqui com mais cem mil soldados e estamos desejosos I'0LLY Apanhaste alguma coisa?
de ir impor a ordem nas fronteiras do norte. lJRIA Não, mas deixei cair o capacete lá para dentro.
}IP Para isso é preciso cerveja. Cai. ./ ESSE Oh, diabo! Não podes apresentar-te no acampamento
POLLY Tal como os tanques devastadores da nossa Rainha sem capacete.
têm de ser atestados de combustível para que se possa vê- URIA Nem queiram saber o que estou a pescar! Isto é um
-los a rodar pelas malditas estradas deste Eldorado exces- lugar horrível! Venham cá ver! Ratoeiras, armadilhas.
sivamente grande, assim também a cerveja é indispensável ] ESSE Vamos embora! Isto não é um templo como os outros,
aos soldados! é uma armadilha.
}IP Quantas garrafas de cerveja ainda temos? ÜRIA Um templo é um templo. E tenho de tirar de lá o capa-
PoLLY Somos quatro homens. Ainda temos quinze garrafitas. cete.
Portanto, temos de arranjar vinte e cinco garrafitas. }ESSE Consegues chegar lá abaixo?
}ESSE Para isso é preciso dinheiro. ÜRIA Não.
ÜRIA Há pessoas que têm não sei o quê contra os soldados, }ESSE Deixa ver se consigo levantar aqui o ferrolho do por-
mas qualquer pagode como este contém mais cobre do tão.
que um regimento grande precisa para marchar de Calcu- POLLY Mas não façam estragos no templo.
tá até Londres. }ESSE Ai! Ai! Ai!
PoLLY Vale bem a pena seguir esta sugestão do nosso queri- ÜRIA O que é que te aconteceu?
do Uria relativamente a este pagode, que, de facto, está a ]ESSE A mão presa!
148 Um homem é um homem 2. Rua junto ao pagode do Senhor Amarelo 149

PoLLY Vamos acabar com isto! l l1UA Um homem? Depressa, saiam! Não ouviram? Gritos e
]ESSE zangado: Acabar! Tenho de tirar a mão cá para forn! pragas misturados. Tira-me o teu pé daqui! Vá, tira!
URIA E o meu capacete também está lá dentro. Agora sou eu que não posso mexer o pé! A bota também
P0LLY Então temos de entrar pela parede. se foi! Mas não desistas, Polly! Nunca! Agora é o blusão,
}ESSE Ai! Ai! Ai! Retira a mão a sangrar. Alguém tcrn d, Uria! Que se lixe o blusão! Este templo deve estar amal-
pagar por esta mão! Agora é que não me vou mesmo 1·111 diçoado. O que foi agora? Ó diabo, fiquei com as calças
hora! Tragam uma escada! presas! É no que dão as pressas! Jip, aquele palerma!
UruA Alto! Primeiro passem para cá os vossos passapo11n l l 1P Encontraram alguma coisa? Whisky? Rum? Gin? Brandy?
Os passaportes militares não podem ser danificados. l !111 Cerveja?
homem pode sempre ser substituído, mas não há n1ul.1 ll ~~SE O Uria rasgou as calças num gancho de bambu e a bota

mais sagrado do que um passaporte militar. do Polly, a do pé bom, ficou presa numa armadilha para
Entregam-lhe os passaportes. loõos.
1>oLLY E o J esse está pendurado num fio eléctrico.
P0LLY Polly Baker.
l 1P Foi o que pensei! Por que raios não entram numa casa
}ESSE Jesse Mahoney.
pela porta?
]IP aproximando-se a rastejar: Jeraiah Jip.
]ip entra no edifício pela porta. Os outros três saem por
URIA Uria Shelley. Todos do oitavo regimento, guarnição d1
âma, pálidos, esfarrapados e a sangrar.
Kankerdan, secção de metralhadora. Vamos evitar dispa
P0LLY Isto merece vingança!
rar, senão vê-se que o templo foi danificado. Em frente!
ÜRIA Não é nada leal a maneira como este templo se defen-
Uria, ]esse e Polly entram no pagode.
de! É uma brutalidade!
]IP gritando-lhes: Eu fico a vigiar! Olhem que eu não estive la PoLLY Quero ver sangue a correr!
dentro! Numa abertura na parte mais alta do pagode, surgi· } IP de dentro: Onde estão?
a cara amarela do banzo Wang. Bons dias! É o senhor o PoLLY sanguinário, sobe para o telhado e fica com uma bota
proprietário? Belo sítio! pendurada: Lá se foi agora a outra bota também!
URIA dentro do pagode: Passa-me aí o teu canivete, Jesse, para URIA Vou passar tudo à bala!
arrombar a caixa das esmolas. O senhor Wang sorri e ]ip Descem os três e apontam a metralhadora ao pagode.
sorri também. P0LLY Fogo!
]IP para o bonzo: É mesmo muito mau ter de fazer parte da- Fazem fogo.
quele grupo de hipopótamos. A cara desaparece. Vamos, ]IP lá dentro: Ai! O que é que vocês estão a fazer?
saiam daí! Está um homem lá em cima, no primeiro Os três levantam os olhos, horrorizados.
andar. P0LLY Onde é que tu estás?
Lá dentro ouvem-se, a intervalos regulares, toques de cam- ]IP lá dentro: Aqui! Acabaram de me varar um dedo com
painha eléctrica. uma bala!
URIA Vê lá onde pões os pés! O que foi,Jip? ]ESSE O que é que tu estás a fazer dentro dessa ratoeira, ó
JIP Um homem no primeiro andar! parvalhão!
150 Um homem é um homem 3. Estrada entre Kilkoa e o acampamento 151

]IP aparecendo à porta: Fui buscar o dinheiro. Aqui está ele. ]ip arrasta-se para dentro do palanquim. Os outros três
URIA contente: O mais bêbedo tinha de encontrá-lo à primeira. saem devagar, abanando a cabeça, desanimados. Assim que
Alto: Faz o favor de saíres imediatamente por essa porta! desaparecem, o_bonzo Wang surge à porta do pagode, pega
]IP pondo a cabeça do lado de fora da porta: Por onde dizes tu? nos cabelos que ficaram colados e fica a observá-los.
URIA Por essa porta!
}IP Oh, o que é isto?
P0LLY O que é que ele tem?
}IP Venham cá ver! 3
URIA O que foi agora? ESTRADA ENTRE KILKOA E O ACAMPAMENTO
}IP O meu cabelo! Oh, o meu cabelo! Não me consigo mexer,
nem para a frente nem para trás! Oh, o meu cabelo! Está O sargento Fairchild aparece por detrás de uma barraca e prega
preso numa coisa qualquer! Uria, vê lá o que tenho cola- nela uma ordem de serviço.
do ao cabelo! Oh, Uria, tira-me daqui! Estou preso pelo
cabelo! Polly vai ao encontro de ]ip, nas pontas dos pés, e FAIRCHILD A mim, ao Cinco Sangrento, também conhecido
observa-lhe a cabeça por cima. por Tigre de Kilkoa e Tufão Humano, sargento do exérci-
P0LLY Ficou com o cabelo preso à almofada da porta.
to britânico, há muito que não me acontecia uma coisa
URIA aos berros: O teu canivete, }esse, para lhe cortar o cabe-
tão extraordinária! Aponta para a ordem de serviço. Assal-
lo e tirá-lo dali! Urza corta-lhe o cabelo e liberta-o. ]ip
to ao Pagode do Senhor Amarelo! O telhado do Pagode
avança aos tropeções.
do Senhor Amarelo todo cheio de buracos de bala. Como
PoLLY divertido: Ficou com uma pelada!
única pista, encontraram-se, colados à almofada da porta,
Examinam a cabeça de ]ip.
}ESSE Também foi um bocadinho de couro cabeludo atrás. 125 gramas de cabelo. Ora, se o telhado está cheio de bu-
URIA olha para os dois, depois /riamente: Uma pelada denun- racos de bala, por detrás deste caso deve estar uma secção
cia-nos! de metralhadora; e se se encontraram 125 gramas de ca-
]ESSE com olhar duro: Um autêntico mandado de captura! belo no local do crime, então é forçoso que haja um
Uria, ]esse e Polly conferenciam. homem a quem faltem 125 gramas. E se, numa qualquer
URIA Vamos ao acampamento buscar uma tesoura e voltamos secção de metralhadora, se der com um homem com uma
à noite, damos-lhe uma carecada e a pelada deixa de se pelada reluzente, então estão encontrados os criminosos.
notar. Devolve os passaportes. ]esse Mahoney! É elementar. Quem vem ali?
]ESSE recebendo o passaporte: ]esse Mahoney! Vai para trás da barraca. Aproximam-se os três soldados e
URIA Polly Baker! lêem a ordem de serviço com um sobressalto. Depois, conti-
P0LLY recebendo o passaporte: Polly Baker! nuam a caminhar, abatidos. Nesse momento, Fairchild sai
URIA Jeraiah Jip! Jip tenta levantar-se. O teu fico eu com ele. detrás da barraca e sopra um apito. Os três param.
Aponta para um palanquim que está no pátio. Põe-te ali den- FAIRCHILD Não viram um homem com uma pelada?
tro daquele caixote de cabedal e espera que fique escuro! P0LLY Não.
152 Um homem é um homem 3. Estrada entre·Kilkoa e o acampamento 153

FAmCHILD Então vamos lá ver o vosso aprumo ! Tirem o~ 1 1 1, ,1, GAY Eu não passo de um pobre estivador do porto.
pacetes! Onde pára o vosso quarto homem? 111 1 ,IIIC:K A formatura dos novos soldados vai ter lugar dentro
URIA Ora, meu sargento, foi fazer uma necessidade. de minutos. Como pode ouvir, os tambores já estão a
FAIRCHILD Nesse caso, vamos esperar por ele, quem snlu • rnfar. Agora é que mais ninguém passa por aqui.
não terá visto um homem com uma pelada. Esp1•1,1 11 e , \l ,Y GAY Se realmente é já assim tão tarde, o melhor é eu
É uma necessidade um pouco comprida, a dele. dar meia volta e voltar à cidade de Kilkoa, porque ainda
}ESSE Pois é. 1enho de ir comprar um peixe.
Continuam à espera. 111 <:mcK Responda-me só a uma pergunta, senhor ... se bem
PoLLY Será que foi por outro caminho? entendi o seu nome ... Galy Gay: na profissão de estiva-
FAffiCHILD Deixem que vos diga uma coisa: se hoje me ap:111 dor é imprescindível ter muita força?
cerem na formatura sem o vosso quarto homem, pod1·111 ( :ALY GAY Se mo tivessem dito, não teria acreditado que hoje
crer que era muito melhor terem-se fuzilado uns aos oi1 também haveria de ficar quase quatro horas retido por
tros ainda nas barrigas das vossas mães! Vai-se embora. motivos imprevistos, quando só vinha comprar um peixe
P0LLY Oxalá ele não seja o nosso novo sargento. Porqul' M e logo voltar para casa. Mas eu quando embalo sou como
for esta cobra cascavel a passar-nos revista esta noÍll\ um comboio de passageiros.
meus amigos, bem nos podemos ir encostando à parede. BEGBICK Sim, mas são coisas distintas: ir comprar um peixe
URIA Temos de arranjar um quarto homem, antes de os ta111 para comer ou ser prestável a uma senhora, carregando-
bares tocarem para a formatura. -lhe a cesta. E talvez essa senhora estivesse disposta a mos-
P0LLY Vem ali um homem. Vamo-nos esconder e observá-lo. trar-se reconhecida, e duma forma que compensasse o
Escondem-se atrás da barraca. Pela estrada, vem a Viúv,, prazer que se tem a comer um peixe.
Begbick. Galy Gay vem atrás dela, carrega uma cesta com G ALY GAY Para ser franco, eu gostava muito de ir comprar
pepinos. um peixe.
BEGBICK O que é que quer? É pago à hora! BEGBICK O senhor só pensa em coisas assim tão materiais?
GALY GAY Então já foram três horas. G ALY GAY Sabe, sou uma pessoa estranha. Às vezes, de ma-
BEGBICK Já recebe o seu dinheiro. Esta estrada tem muito nhã, ainda estou na cama e já sei: hoje quero peixe. Ou
pouco movimento! Uma mulher que se visse aqui con- quero arroz com carne. E então tem de aparecer um
frontada com um homem que quisesse abusar dela estaria peixe ou o tal arroz com carne, nem que o mundo tenha
em maus lençóis. de saltar dos eixos!
GALY GAY A senhora, que por causa da sua profissão de pro- BEGBICK Compreendo, meu caro senhor. Mas não lhe parece
prietária de uma cantina está sempre em contacto com os que agora já se fez tarde demais? As lojas já fecharam, os
soldados, as piores criaturas que há neste mundo, sabe peixes já foram todos vendidos.
com certeza desembaraçar-se bem. GALY GAY Veja a senhora: sou um homem dotado de uma
BEGBICK Ah, caro senhor, coisas dessas não se dizem a uma grande imaginação, até sou capaz, por exemplo, de me
mulher! Certas palavras põem as mulheres com o sangue sentir enfartado com um peixe, mesmo antes de o ver à
a ferver. minha frente! Uma outra pessoa vai comprar um peixe, e
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primeiro, compra esse peixe, segundo, leva-o para casa, URIA Aqui está o nosso homem.
esse tal peixe, terceiro, coze-o bem cozido, esse tal peixe, JESSE Um homem que não sabe dizer não.
e quarto, come-o, esse tal peixe, e à noite, quando está a P0LLY E ainda por cima tem o cabelo ruivo como o nosso
acabar de fazer a digestão, a pessoa ainda continua com o Jip.
infeliz do peixe às voltas, porque é uma pessoa nada dota- JESSE Que bela noite esta!
da de imaginação. GALY GAY É verdade, caro senhor.
BEGBICK Estou a ver, o senhor só sabe pensar em si. Pausa. J ESSE Veja o senhor que coisa mais espantosa: não consigo
Hum. Se o senhor só sabe pensar em si, faço-lhe uma tirar da cabeça a ideia de que o senhor deve vir dos lados
proposta: pelo dinheiro que tem destinado para comprar de Kilkoa.
o tal peixe, compre estes pepinos, que lhe vendo mais ba- GALY GAY Dos lados de Kilkoa? Justamente. É lá que tenho,
ratos só para lhe ser agradável. O valor que os pepinos por assim dizer, a minha casinha.
têm a mais fica por conta de ter carregado a cesta. JESSE É um enorme prazer, senhor...
GALY GAY Mas eu não preciso de pepinos nenhuns. GALY GAY Galy Gay.
BEGBICK Nunca esperei que o senhor me fizesse uma desfeita }ESSE Exacto, o senhor tem uma casinha para aqueles lados,
destas. não tem?
GALY GAY É só porque a água para cozer o peixe já está ao GALY GAY O senhor então conhece-me, para saber isso? Ou
lume. talvez à minha mulher?
BEGBICK Estou a ver. Faça como muito bem entender, faça o }ESSE O seu nome, sim, o seu nome é ... um momento ... Galy
que muito bem entender. Gay.
· GALY GAY Não, tem de acreditar em mim quando digo que GALY GAY Tal e qual, é assim que eu me chamo.
gostaria muito de lhe ser agradável. }ESSE Pois, bem me queria parecer. Espere, deixe-me falar.
BEGBICK Cale-se, quanto mais fala, pior.
Aposto, por exemplo, que o senhor é casado. Ora, mas
GALY GAY Não é minha intenção, de maneira nenhuma, de-
porque estamos para aqui os dois parados, senhor Galy
cepcioná-la. Se ainda me quiser vender os pepinos, tem
Gay? Estes são os meus amigos, o Polly e o Uria. Venha
aqui o dinheiro.
daí connosco até à cantina, fumar uma cachimbada.
URIA para Polly e ]esse: Aqui está um homem que não sabe
Pausa. Galy Gay observa-os, desconfiado.
dizer não.
GALY GAY Muito obrigado. Infelizmente tenho a minha mu-
GALY GAY Cuidado, há soldados por aqui.
BEGBICK Sabe Deus o que ainda andam a tramar aqui. Falta lher à espera em Kilkoa. Além disso, eu não tenho ca-
pouco para a hora da formatura. Passe para cá a minha chimbo, o que talvez vos pareça ridículo.
cesta, não me parece que faça sentido continuar aqui a per- }ESSE Então um charuto! Diga lá, se é coisa que se possa re-
der o meu tempo a falar consigo. Mesmo assim, teria muito cusar, com uma noite tão bonita como esta!
prazer em vê-lo, como cliente, mais tarde, no meu vagão da GALY GAY Bem, realmente, como posso dizer que não?
cerveja, no acampamento dos soldados, eu sou a Viúva P0LLY E vai fumar o seu charuto.
Begbick e o meu vagão da cerveja é famoso de Haidarabad Saem os quatro.
até Rangoon! Pega nas coisas e sai. Os três avançam.
156 Um homem é um homem 4. cantina da Viúva Begbick 157

4
CANTINA DA VIÚVA LE0CÁDIA BEGBICK I •: quando no Panjabe a guerra rebenta
Néls estamos no bar da Begbick a encher
Os soldados cantam "A Canção da Taberna da Viúva Begbick". S:to cigarros e copos, o corpo aguenta
No ataque aos monhés não há que temer
1
A Viúva Begbick tem uma taberna Refrão:
Onde se fuma, dorme e bebe sem parar l~ntre Deli e Kamatkura
Neste vagão é que ninguém hiberna Se falta alguém e vais à procura
De Singapura até Cooch Behar. Está no bar da Begbick a encher
C:om o Toddy, o Gum e ai, ai, ai

Refrão: Do céu ao inferno, é sempre a descer.


Entre Deli e Kamatkura Cala a boca, Tommy! Agarra o chapéu!
Se falta alguém e vais à procura Nas curvas do whisky derrapa-se sem querer!
Está no bar da Begbick a encher
Com o Toddy, o Gum e ai, ai, ai BEGBICK entra: Muito boas noites, meus caros senhores sol-
Do céu ao inferno, é sempre a descer. dados. Eu sou a Viúva Begbick e este é o meu vagão da
Cala a boca, Tommy! Agarra o chapéu! cerveja que, sempre atrelado aos grandes comboios mili-
Nas curvas do whisky derrapa-se sem querer! tares, vai rolando por todos os carris da Índia, e como
nele se pode beber cerveja e, ao mesmo tempo, viajar e
A Viúva Begbick tem uma taberna dormir, chama-se o Vagão da Cerveja da Viúva Begbick e
Onde te servem tudo o que desejas de Haidarabad até Rangoon todos sabem que é o refúgio
Já ela andava por esta Índia eterna de muitos soldados maltratados.
E tu bebias leite materno em vez de cervejas. À porta estacam os três soldados com Galy Gay. Os solda-
dos empurram Galy Gay para trás deles.
Refrão: URIA É aqui a cantina do oitavo regimento?
Entre Deli e Kamatkura PoLLY Estamos a falar com a proprietária da cantina do acam-
Se falta alguém e vais à procura pamento, a mundialmente famosa Viúva Begbick? Nós
Está no bar da Begbick a encher somos a secção de metralhadora do oitavo regimento.
Com o Toddy, o Gum e ai, ai, ai BEGBICK A própria. Vocês são só três? Onde está o vosso
Do céu ao inferno, é sempre a descer. quarto homem?
Cala a boca, Tommy! Agarra o chapéu! Eles entram sem responder, pegam em duas mesas e levam-
Nas curvas do whisky derrapa-se sem querer! -nas para a esquerda, onde constroem uma espécie de tabi-
que. Os outros clientes observam-nos, admirados.
}ESSE Que tipo de homem é o sargento?
158 Um homem é um homem
4. cantina da Viúva Begbick 159

BEGBICK Nada simpático! l'OLLY Um charuto a mais ou a menos que o senhor desejasse
POLLY É uma chatice que o sargento não seja simpático. fumar por nossa conta, não teria evidentemente a menor
BEGBICK Chama-se o Cinco Sangrento, mas também lhe cha- importância.
mam o Tigre de Kilkoa, o Tufão Humano. Tem um olfac- ( ;i\LY GAY Não é que não gostasse de vos ser agradável, mas
to sobrenatural, tem faro para os crimes. infelizmente tenho de voltar depressa para casa. Comprei
]esse, Urza e Polly entreolham-se. uns pepinos para o jantar e por isso ... bem gostava mas
UruA Bem. não posso.
BEGBICK para os clientes: Esta é a famosa secção de metralha- J1:SSE Agradeço-lhe. Confesso que não esperava outra atitude
dora que decidiu a batalha de Haidarabad e à qual cha- da sua parte. É assim: não pode fazer aquilo que gostaria
mam A Escumalha. de fazer. Gostaria de ir para casa e não pode. Agradeço-
SOLDADOS A partir de agora fazem parte do nosso regimento. -lhe, meu caro senhor, por corresponder à confiança que
Os vossos crimes hão-de perseguir-vos como as vossas em si depositámos assim que o vimos. A sua mão, meu
sombras. Um soldado traz o cartaz com a ordem de serviço caro senhor! Agarra na mão de Galy Gay. Urza indica-lhe,
e afixa-a. E mal chegam afixam logo uma ordem de servi- com veemência, que avance para o canto onde estão coloca-
ço destas! ... Os clientes levantam-se. Deixam lentamente a das as mesas. Assim que lá chega, os três precipitam-se
cantina. Urza assobia. sobre ele e despem-no, deixando-lhe só a camisa.
GALY GAY entrando: Eu conheço este tipo de estabelecimen- UruA Permita que, para o referido objectivo, lhe vistamos
to! Música a acompanhar a refeição. Ementa. No Hotel agora a honrada farda do glorioso exército britânico. Toca
Sião há uma enorme, dourado sobre branco. Uma vez a campainha. A Begbick aparece. Viúva Begbick, permite-
comprei lá uma. Com conhecimentos, tudo se arranja. -me que seja franco consigo? Precisamos de uma farda
Têm entre outras coisas molho Chikauka. E esse até é um completa. A Begbick procura uma caixa de cartão e atira-a
dos pratos mais insignificantes. Molho Chikauka! a Uria. Este atira-a a Polly.
]ESSE empurrando Galy Gay até ao tabique: Meu caro senhor, POLLY para Galy Gay: Ora aqui tem esta farda que comprá-
o senhor está em boas condições de fazer um pequeno mos para si!
favor a três pobres soldados metidos num aperto, sem ]ESSE apresentando-lhe as calças: Veste-a, irmão Galy Gay.
que isso represente para si grande incómodo. PoLLY para Begbick: Sabe, ele perdeu a farda.
PoLLY O nosso quarto homem atrasou-se um bocado a des-
Os três vestem Galy Gay.
BEGBICK Ah, perdeu a farda.
pedir-se da mulher e se na formatura não nos apresentar-
POLLY Sim, nos balneários, um chinês arranjou maneira de o
mos os quatro, atiram-nos para dentro dos escuros cala-
nosso camarada Jip ficar sem a farda.
bouços de Kilkoa.
BEGBICK Ah, nos balneários?
URIA Ajudar-nos-ia muito se vestisse uma das nossas fardas e,
}ESSE Para ser sincero, Viúva Begbick, trata-se de uma brin-
quando se procedesse à revista dos soldados recém-che-
cadeira.
gados, dissesse o nome dele. Só por uma questão de
BEGBICK Ah, de uma brincadeira?
ordem.
POLLY Não é verdade, caro senhor? Não se trata de uma
}ESSE Seria tudo. brincadeira?
160 Um homem é um homem 4. cantina da Viúva Begbick 161

GALY GAY Sim, trata-se, digamos, de ... um charuto! Ri-se. isso que a farda só custa cinco xelins, senão ainda pode
Os outros três riem-se também. ser que todo o regimento se veja envolvido neste crime ...
BEGBICK Que pode uma fraca mulher contra quatro homens POLLY Quatro xelins é muito!
tão fortes! Que ninguém diga da Viúva Begbick que ela ÜRIA vem de novo para a frente: Cala-te, Polly. Dez xelins.
não deixou um homem trocar de calças. BEGBICK De uma maneira geral, na taberna da Viúva Beg-
Ela vai ao fundo da cena e escreve numa ardósia: 1 par de bick lava-se tudo o que possa manchar a honra do regi-
calças, 1 blusão, 1 par de polainas, etc. mento.
]ESSE Parece-lhe que vai chover, Viúva Begbick?
GALY GAY Agora a sério, o que é que se passa?
BEGBICK Vai pois, e por isso tenho de ficar de olho no sar-
]ESSE Na verdade, absolutamente nada.
gento Cinco Sangrento. Toda a gente no exército sabe
GALY GAY Não será perigoso se for descoberto?
que, quando cai uma boa chuvada, ele entra num terrível
PoLLY Absolutamente nada. E, no seu caso, uma vez não são
estado de volúpia e se altera por dentro e por fora.
vezes!
] ESSE Então, para a nossa brincadeira é bom que não chova,
GALY GAY Lá isso é verdade. Uma vez não são vezes. É o que
de maneira nenhuma!
se costuma dizer.
BEGBICK Pelo contrário! Se começar a chover, o Cinco San-
BEGBICK A farda custa cinco xelins à hora.
grento, o homem mais perigoso do exército britânico,
PoLLY Isso é uma sangria, no máximo três. torna-se tão inofensivo como um dente de leite. Quando
]ESSE à janela: O céu está a ficar com nuvens de chuva. Seco- tem um dos seus acessos de volúpia, fica cego para tudo
meça a chover, o palanquim fica molhado, e se o palan- o que se passa à volta dele.
quim fica molhado, levam-no para dentro do pagode, e se SOLDADO gritando para dentro da taberna: Venham daí para a
o levam para dentro do pagode, vão dar com o Jip, e se formatura; por causa da história do pagode, consta que
descobrem o Jip, estamos tramados. falta um soldado. Vão chamar os nomes um a um e ins-
GALY GAY Muito pequena. Não caibo nela. peccionar os passaportes.
POLLY Oiça, ele não cabe nela. URIA O passaporte!
GALY GAY E as botas apertam muito! GALY GAY de joelhos, faz uma trouxa com as suas velhas roupas:
POLLY Tudo muito pequeno. Não serve! Dois xelins! É que eu tomo conta das minhas coisas.
URIA Cala-te, Polly: quatro xelins, porque é tudo muito pe- ÜRIA para Galy Gay: Aqui tem o seu passaporte. Só precisa
queno e principalmente porque as botas estão muito de dizer o nome do nosso camarada, o mais alto que con-
apertadas. Não é assim? seguir e de forma bem clara. Não custa nada.
GALY GAY Imenso. Apertam cá de uma maneira! POLLY O nome do nosso camarada que se perdeu é: Jeraiah
ÜRIA O senhor não é tão mariquinhas como tu, Polly! Jip! JeraiahJip!
BEGBICK aproxima-se de Uria, leva-o para o fundo de cena e GALY GAY JeraiahJip!
aponta o cartaz com a ordem de serviço: Há uma hora ÜRIA saindo: É um prazer encontrar pessoas instruídas, que se sa-
que, por todo o acampamento, está afixado este cartaz, bem comportar em qualquer situação que a vida apresente.
dizendo que foi cometido um crime militar na cidade. GALY GAY parando por um momento junto à porta: E a minha
Ainda não se sabe quem foram os responsáveis. E é por gorjeta?
162 Um homem é um homem 4. cantina da Viúva Begbick 163

URJA Uma garrafa de cerveja. Venha daí. FAIRCHILD Não te ponhas a olhar para mim como se me qui-
GALY GAY Meus senhores, a minha profissão de estivador sesses devorar, ó Babilónia caiada de novo! Já tenho cha-
obriga-me, seja qual for a situação que a vida apresente, a tices que me cheguem. Há três noites que estendi á cama
arranjar maneira de me safar. Estava cá a pensar, duas cai- de rede e comecei com os banhos frios. Na quinta-feira,
xas de charutos e quatro ou cinco garrafas de cerveja. vi-me obrigado a decretar o estado de sítio à minha pes-
]ESSE Mas temos de o levar para a formatura!
soa, por causa de um ataque desenfreado de volúpia.
GALY GAY Precisamente. E este estado de espírito tem-me sido particularmente in-
PoLLY Bem. Duas caixas de charutos e três ou quatro garra-
suportável porque nestes últimos dias tenho andado no
fas de cerveja.
encalce de um crime sem paralelo em toda a história do
GALY GAY Três caixas e cinco garrafas. exército.
}ESSE Então? Acabou de dizer duas caixas.
BEGBICK
GALY GAY Se se põe com essas coisas, então são cinco caixas
Então segue, Cinco Sangrento, a tua potente natureza
e oito garrafas... ·
Sem pensares! Pois quem viria a saber?
Um toque.
Na cova das minhas axilas, nos meus cabelos
URJA Temos de ir.
}ESSE Está bem. De acordo, mas tem de vir já connosco. Vem saber quem és. E na curva do meu joelho esquece
GALY GAY Está bem.
O nome que te deram.
URIA E como é que se chama? Raça miserável! Falta de aprumo!
GALY GAY Jip! Por isso te peço, Cinco Sangrento, vem
}ESSE Só faltava era chover! Ter comigo nesta noite de chuva tépida,
Saem os quatro. A Begbick começa a estender lonas por Exactamente como receias: como homem!
cima do vagão. Como contradição. Como tem-de-ser-mas-não-quero.
POLLY voltando atrás; para a Begbick: Viúva Begbick, ouvi- Vem agora, como homem! Tal qual a natureza te criou,
mos dizer que o sargento fica muito lascivo quando Sem esse capacete de ferro! Perturbado e selvagem,
chove. E agora vai chover. Veja se consegue que ele nas embrulhado em ti mesmo,
próximas horas fique cego em relação a tudo o que se Impotente face aos teus instintos
passa à volta dele, senão corremos o risco de ser desco- E escravo indefeso da tua própria força.
bertos. Sai. Vem, então: como homem!
BEGBICK vendo-o sair: Claro que o homem não se chama Jip. FAIRCHILD Jamais! A decadência da humanidade começou
É o estivador Galy Gay de Kilkoa e agora vai-se apresen- quando o primeiro desses cafres não abotoou os botões.
tar ao Cinco Sangrento um homem que não tem nada de O regulamento de disciplina militar é um livro cheio de
soldado. Pega num espelho e vai para o fundo da cena. pontos fracos, mas é o único a que uma pessoa se pode
Vou-me pôr apresentável para que o Cinco Sangrento me agarrar como ser humano, porque forma a espinha dorsal e
veja e eu o consiga atrair para aqui. Segundo toque. Fair- assume as responsabilidades perante Deus. Na realidade
child entra. A Begbick observa-o pelo espelho com modos devia-se era cavar um buraco na terra e enchê-lo de dina-
sedutores e senta-se numa cadeira. mite e fazer explodir o globo terrestre inteiro; assim talvez
164 Um homem é um homem 4. cantina da Viúva Begbick 165

vissem que as coisas são para ser levadas a sério. É muito l 1111A Por favor, uma tesoura, Viúva Begbick!
simples. Mas conseguirás tu, Cinco Sangrento, sobreviver a ( :ALY GAY para o público: Fazer assim um pequeno favor
esta noite chuvosa sem a carne da Viúva Begbick? entre homens é sempre bom. É viver e deixar viver. Vou
BEGBICK Se esta noite vieres ter comigo, tens de trazer vesti- já beber uma caneca de cerveja como se fosse um copo de
do um fato escuro e um chapéu-de-coco na cabeça. água, e dizer cá para mim: deu jeito a estes senhores. E às
Voz DE COMANDO Secção de metralhadora, apresente-se à vezes na vida também basta deixar subir no ar um balão-
chamada! zito e dizer "JeraiahJip", como outros dizem "boa noite",
FAIRCHILD Vou-me pôr aqui à porta para ver bem aquela e é assim que as pessoas querem que a gente seja, porque
escumalha que agora se vai inspeccionar. Coloca-se à é tão fácil.
porta. A Begbick traz uma tesoura.
SOLDADOS nos bastidores: Polly Baker. Uria Shelley. Jesse Ma-
lJ RIA E agora, ao Jip !
honey.
.1 ESSE O vento e a chuva estão perigosos.
FAIRCHILD Muito bem e agora segue-se um pequeno silêncio.
Os três dirigem-se a Galy Gay.
Voz DE GALY GAY JeraiahJip.
URIA Temos muita pena, caro senhor, mas estamos com
BEGBICK Certo.
muita pressa.
FAIRCHILD Ah, arranjaram outra vez um expediente. Insubor-
dinação fora. Insubordinação dentro. Levanta-se e faz ten- JESSE Ainda temos de ir rapar o cabelo de um outro senhor.
ção de se ir embora. Dirigem-se para a porta. Galy Gay vai atrás deles.
BEGBICK chamando-o: Digo-te eu, sargento, que antes de a GALY GAY Não querem que eu vos dê uma ajuda nisso tam-
negra chuva do Nepal cair três noites seguidas, hás-de tor- bém?
nar-te mais brando para com os delitos dos homens, até URIA Não.Já não precisamos de si, caro senhor. Para a Begbick:
porque deves ser o homem mais obcecado por sexo que Cinco caixas de charutos Fehlfarbe e oito garrafas de cer-
existe debaixo do sol. Hás-de sentar-te à mesma mesa com veja preta para este homem. À saída. Há pessoas que têm
a insubordinação, e os profanadores do templo hão-de de meter o nariz em tudo. Dá-se-lhes um dedo e agarram-
olhar-te bem fundo nos olhos, pois os teus próprios crimes -se logo ao braço.
hão-de ser tantos quanto os grãos de areia de uma praia. Saem os três depressa.
FAIRCHILD Se assim for, vamos ter de tomar medidas drásti- G ALYGAY
cas, convença-se disso, vamos ter de tomar medidas drás- Agora podia-me ir embora, mas
ticas e radicais contra esse Cincozinho Sangrento tão pe- Será que uma pessoa se deve ir embora quando a
queno e traquinas. É simplicíssimo! Sai. mandam embora?
Voz DE FAIRCHILD nos bastzdores: Oito homens enfiados até E se assim que se for embora
ao umbigo em areia a escaldar, devido a cortes de cabelo Voltarem a precisar dela? Será que uma pessoa se pode ir
contrários à letra e ao espírito do regulamento militar! embora
Entram Uria, ]esse e Polly com Galy Gay. Galy Gay dirige- Quando precisam dela? Quando não é mesmo necessário
-se para a /rente. Uma pessoa não se deve ir embora.
166 Um homem é um homem 5. Interior do pagode 167

Galy Gay vai até ao fundo e senta-se numa cadeira junto à ao serviço da sua rainha, coberto de vomitado de tudo o
porta. A Begbick pega em garrafas de cerveja e caixas de cha- que bebeu, mais desamparado que um pintainho, tão bê-
rutos e coloca-as, em drculo, no chão, à /rente de Galy Gay. bedo que nem seria capaz de reconhecer a própria mãe!
BEGBICK Não nos encontrámos já? Galy Gay abana a cabeça. Pode-se entregá-lo à polícia, mas de que é que isso serve?
Você não é o homem que me carregou a cesta dos pepi- Depois de o dinheiro se ter ido, de que é que serve a justi-
nos? Galy Gay abana a cabeça. O senhor não se c~ama ça? E ele só sabe fazer grunhidos. Furioso. Tira-o do palan-
GalyGay? quim, ó buraco num queijo de cabra, e enfia-o no sacrário,
GALY GAY Não. mas põe-no com a cabeça para cima. O mais que podemos
A Begbick afasta-se, abanando a cabeça. Escurece. Galy fazer é transformá-lo numa divindade. O acólito coloca ]ip
Gay adormece sentado na cadeira de madeira. Chove. dentro do sacrário. Vai buscar papel! Temos de pendurar
Ouve-se a Begbick cantar ao som de uma melodia nocturna. imediatamente bandeiras de papel na fachada do templo.
BEGBICK Temos de pintar imediatamente cartazes com tudo o que
Bem podes olhar a corrente do rio a fluir com preguiça tivermos aqui à mão. Quero fazer a coisa em grande, sem
Nunca verás a mesma água duas vezes falsas economias, com cartazes que não passem despercebi-
Nem uma gota dela voltará dos a ninguém. De que é que serve ter uma divindade se
À nascente de onde saiu. ela não for assunto de conversa? Batem à porta. Quem vem
bater tão tarde à minha porta?
POLLY Três soldados.
WANG São os camaradas dele. Deixa-os entrar.
5 POLLY Andamos à procura de um cavalheiro, mais precisa-
INTERIOR DO PAGODE DO SENHOR AMARELO mente de um soldado que estava a dormir num palan-
quim em frente deste templo que é tão rico e tão distinto.
O bonzo Wang e o seu acólito chinês. WANG Que o despertar lhe seja agradável.
POLLY É que o tal caixote entretanto desapareceu.
AcóLITO Está a chover. WANG Percebo a vossa impaciência, que é fruto da incerteza.
WANG Traz o nosso palanquim de cabedal para um sítio seco! Eu próprio ando à procura de umas pessoas, mais preci-
Sai o acólito. Não bastou terem-nos roubado as últimas re- samente de uns soldados, ao todo são para aí uns três, e
ceitas, agora chove-me na cabeça pelos buracos das balas. também não os consigo encontrar.
O acólito arrasta o palanquim para dentro. Gemidos de den- URIA Vai ser muito difícil. Acho que pode desistir. Mas pen-
tro dele. O que é isto? Espreita para dentro. Percebi logo sámos que nos soubesse dizer alguma coisa acerca do tal
que havia por aqui um homem branco, assim que vi o palanquim.
palanquim todo sujo. Ah, e traz um blusão de soldado! WANG Infelizmente, nada. O problema é os senhores soldados
E tem uma pelada na cabeça, o ladrão! Cortaram-lhe oca- andarem todos vestidos da mesma maneira.
belo e pronto. O que é que vamos fazer com ele? Se é sol- }E.SSE Isso não é nada aborrecido. Dentro do tal palanquim en-
dado, não pode ter um pingo de inteligência. Um soldado contra-se neste momento um homem que está muito doente.
168 Um homem é um homem 6. A cantina 169

POLLY Como a doença, além do mais, lhe fez cair um punha- Um deles tem rosto, vê-se quem é, mas os outros três não
do de cabelo, ele precisa de ser imediatamente socorrido. têm rosto. É impossível reconhecê-los. Ora, o que tem
URIA Não terá visto um homem assim? rosto não tem o dinheiro, logo não é ladrão. Os que têm o
WANG Infelizmente, não. Encontrei foi esse punhado de ca- dinheiro, em contrapartida, não têm rosto, logo não são
belo. Mas um sargento do vosso exército levou-o. Queria conhecidos. Isto enquanto não estiverem juntos. Mas
devolvê-lo ao tal senhor soldado. quando estiverem todos juntos, os três sem cabeça vão ver-
]ip, no sacrário, geme. -se de repente com rosto e nos seus bolsos vai-se encontrar
POLLY O que é isto, senhor? dinheiro alheio. Nunca poderia acreditar que o homem
WANG É a minha vaca leiteira que está a dormir. que aqui pudesse estar fosse o vosso homem. Os três amea-
URIA Essa vaca leiteira parece ter mau dormir... çam-no com as armas, mas, a um gesto de Wang, surge o acó-
PoLLY É este o palanquim onde enfiámos o Jip. Dá-nos licen-
lito acompanhado de vários crentes chineses do templo.
ça que o inspeccionemos? .J ESSE Não queremos perturbar por mais tempo o seu sono
nocturno, caro senhor. Além de que o seu chá não nos cai
WANG O melhor é dizer-vos toda a verdade. É que este é
nada bem. Mas o seu desenho é muito artístico. Vamos!
outro palanquim.
WANG Dói-me ver-vos partir.
POLLY Está tão sujo como uma pia três dias depois da festa
ÜRIA Acha que o nosso camarada, acorde ele onde acordar,
de Natal. Jesse, é óbvio que o Jip esteve aqui dentro.
mesmo que tenha dez cavalos a barrarem-lhe o caminho,
WANG Não é verdade, ele não pode ter estado aí dentro.
deixará de ir ter connosco?
Ninguém se mete dentro de um palanquim tão sujo.
WANG Dez cavalos"talvez não o detenham, mas um pequeno
Jip, no sacrário, geme alto. naco de cavalo, quem sabe?
URIA Temos de encontrar o nosso quarto homem. Nem que URIA Quando lhe passar o efeito da cerveja, ele logo aparece.
para isso tenhamos de esquartejar a nossa própria avó. Saem os três com grandes vénias.
WANG Mas o homem que procuram não se encontra aqui. E ]IP no sacrário: Oiçam!
para que vejam que o homem que dizem estar aqui, e que Wang chama a atenção dos crentes para a divindade.
eu não sei se está aqui, não é o vosso homem, permitam-
-me que vos esclareça tudo por meio de um desenho. Au-
torizem este vosso humilde criado a desenhar-vos aqui, a
giz, quatro criminosos. Desenha na porta do sacrário. 6
A CANTINA

x:xxx
Noite alta. Galy Gay está sentado numa cadeira de madeira e
dorme. Os três soldados espreitam pela janela.

POLLY Ainda ali está. Não parece um mamute irlandês?


URIA Se calhar não se foi embora porque estava a chover.
170 Um homem é um homem 7. Interior do pagode 171

]ESSE Não se sabe. Mas vamos precisar dele outra vez. WANG Sai daí, senhor soldado, vem comer um pedaço de
POLLY Acham que o Jip já não volta? carne de vaca!
]ESSE Uria, tenho a certeza, o Jip já não volta. }IP lá dentro: Sim, dás-me um pedaço de carne, Polly? Dá en-
PoLLY É quase impossível irmos pedir mais uma vez ao esti- contrões dentro da caixa.
vador. WANG correndo para os fundos: Silêncio, miseráveis! A divin-
]ESSE Que te parece, Uria? dade que ouvis bater nas portas do sacrário exige cinco
URIA Parece-me que vou para a cama. moedas por cabeça. A graça ser-vos-á concedida. Mah
P0LLY Mas se o estivador se levantar da cadeira e sair porta Sing, faz a colecta !
fora, ficamos com a cabeça presa por um pedacinho de ]1P lá dentro: Uria, Uria. Onde é que eu estou metido?
pele. WANG Bate mais um bocadinho, senhor soldado, do outro
]ESSE Certo. Mas eu também me vou deitar. Não se pode exi- lado, senhor general, com os dois pés, com força!
gir demasiado de uma pessoa. ]1P lá dentro: Ei, o que é que se passa? Onde é que eu estou?
P0LLY Talvez seja melhor irmos todos para a cama. Isto Onde é que vocês estão? Uria,Jesse, Polly!
deita-nos muito abaixo e a culpa é toda da chuva. WANG Este teu humilde servidor deseja saber o que queres
comer e beber, senhor soldado.
]IP lá dentro: Ei, quem é que está aí? Que voz é essa de rata-
zana gorda?
7 WANG A ratazana moderadamente gorda é o teu amigo
INTERIOR DO PAGODE DO SENHOR AMARELO Wang, de Tientsin, meu coronel.
]IP lá dentro: Mas que cidade é esta onde vim parar?
Ao amanhecer. Por todo o lado, grandes cartazes. Ouve-se o som WANG Uma cidade miserável, excelso benfeitor, um buraco
de um velho gramofone e de um tambor. Nos fundos parecem rea- chamado Kilkoa.
lizar-se grandes cerimónias religiosas. ]IP lá dentro: Deixa-me sair daqui!
WANG para os fundos: Assim que acabares de fazer as bolas
WANG aproximando-se do sacrário; para Mah Sing: Despacha- de bosta de camelo, coloca-as num tabuleiro e fazes rufar
-te com as bolas de bosta de camelo, pedaço de esterco! o tambor, à medida que as vais acendendo. Para Jip: Já
Dirigindo-se ao sacrário. Ainda a dormir, senhor soldado? sais, basta prometeres que não foges, senhor soldado.
]IP lá dentro: Quando é que chegamos,Jesse? Esta carruagem ]IP lá dentro: Abre isto, voz de ratazana almiscarada, abre,
abana por todos os lados e é apertada como uma sentina! estás a ouvir?!
WANG Senhor soldado, não julgues que te encontras numa WANG Quietos! Quietos, vós, ó crentes! Ficai quietos só mais
carruagem do caminho-de-ferro. A única coisa que está um minuto! A divindade vai falar convosco com o baru-
a chocalhar é a cerveja na tua venerável cabeça, mais lho de três trovões. Contai bem. São quatro, não, cinco.
nada. Lamento. São só cinco moedas que tendes de ofertar.
]IP lá dentro: Disparate! E que voz é essa nesse gramofone? Bate com os dedos na porta do sacrário, amistoso. Senhor
Não podem parar com isso? soldado, tenho aqui um bife para os teus dentes.
172 Um homem é um homem 8. A cantina 173

]IP lá dentro: Oh, agora é que eu sinto, tenho os intestinos /lo som do tambor, o fumo das bolas de bosta de camelo sobe até
completamente virados do avesso. Devo tê-los encharca- ao tecto.
do de álcool puro. Oh, se calhar bebi demais e agora tam- WANG São as orações dos crentes que estão ali atrás ajoelhados.
bém tenho de comer demais. J1P A carne é duma parte dura da vaca! A quem é que eles
WANG Podes comer uma vaca inteira, senhor soldado, já tens estão a rezar?
um bife aqui à tua espera. Mas tenho medo que desates a WANG Isso é um mistério só deles.
fugir, senhor soldado. Prometes-me que não foges? ]IP comendo depressa: O bife é bom, mas não está certo que
]IP lá dentro: Primeiro quero ver. Wang deixa-o sair. Como é eu esteja aqui sentado. De certeza que o Polly e o Jesse
que eu vim aqui parar? esperaram por mim. Se calhar ainda estão à espera. Sabe
WANG Pelos ares, meu general, vieste pelos ares.
a manteiga. Não devia estar a comer. Até parece que os
}IP Onde é que eu estava quando me encontraste?
estou a ouvir, diz o Polly para o Jesse: o Jip aparece de
WANG Tinhas decidido pernoitar dentro de um velho palan-
certeza! Assim que estiver sóbrio, o Jip aparece. O Uria
quim, ó sublime.
]IP E onde estão os meus camaradas? Onde está o oitavo re- talvez não fique tanto tempo à espera, até porque o Uria é
gimento? Onde está a secção de metralhadora pesada? má pessoa, mas o Jesse e o Polly hão-de dizer: o Jip apa-
Onde estão os doze comboios e as quatro manadas de rece. Era mesmo disto que eu estava a precisar depois da-
elefantes? Onde está todo o exército inglês? Para onde quela bebida toda! E mesmo que o Jesse não acreditasse
foram todos, ó escarrador amarelo e de sorriso irritante? muito no seu camarada Jip, de certeza que ele dizia: o Jip
WANG Foram-se embora, atravessaram as montanhas do Pan- não nos denuncia, e claro que isso me custa. Não está
jabe no mês passado. Mas tens aqui um bife. nada certo que eu esteja aqui sentado, mas a carne é boa.
]IP O quê? E eu? Onde é que eu estava? O que é que eu esta-
va a fazer quando eles se puseram em marcha?
WANG Cerveja, muita cerveja, milhares de garrafas e também
ganhaste dinheiro. 8
}IP Não veio ninguém à minha procura? A CANTINA
WANG Infelizmente, não.·
JrP É uma maçada.
Ao alvorecer. Galy Gay está a dormir, sentado na cadeira de
WANG Mas se aparecer alguém à procura de um homem com
pau. Os outros três tomam o pequeno almoço.
a farda dos soldados brancos, devo trazê-lo à tua presen-
ça, senhor ministro da guerra?
JIP Não é necessário. PoLLY O Jip aparece.
WANG Se não quiseres ser incomodado, mete-te dentro desta J ESSE O Jip não nos denuncia.
caixa, Johnny, mal apareçam as pessoas que aos teus P0LLY Quando o Jip estiver sóbrio, aparece.
olhos desagradam. URIA Isso não se sabe. De qualquer maneira, enquanto o Jip
}IP Onde está o bife? Senta-se e come. É muito pequeno! não aparecer, o melhor é não largarmos da mão o esti-
E que barulheira horrível é esta? vador.
174 Um homem é um homem 8. A cantina 175

}ESSE Ele não se foi embora. PoLLY Mas o que é que ele vai dizer quando o transformar-
POLLY Deve estar todo enregelado. Passou a noite naquela mos no soldado Jeraiah Jip?
cadeira de pau. URIA Um tipo destes transforma-se só por si. Se o atirarem
URIA Mas nós dormimos bem esta noite e estamos outra vez para dentro de um charco, em dois dias crescem-lhe bar-
em forma. batanas. E tudo porque ele não tem nada a perder.
POLLY E o Jip vai aparecer. Com o meu raciocínio militar, }ESSE Seja como for, temos de arranjar um quarto homem.
saudável e bem dormido, as coisas para mim são muito Acordem-no lá!
claras. Assim que o Jip acordar, vai querer beber a sua POLLY acordando Galy Gay: Meu caro senhor, ainda bem que
cerveja, e então aparece. não se foi embora. Surgiram uns imprevistos que impedi-
Entra o senhor Wang. Dirige-se ao balcão e toca a campai- ram o nosso cam_a rada Jip de chegar aqui a horas.
nha. Surge a Viúva Begbick. URIA O senhor é de ascendência irlandesa?
BEGBICK Não sirvo bebidas a indígenas malcheirosos, e a GALY GAY Creio que sim.
amarelos também não. URIA Vem mesmo a calhar. Espero que não tenha mais de
WANG É para um branco: dez garrafas de boa cerveja branca. quarenta anos, pois não, senhor Galy Gay?
BEGBICK Para um branco, dez garrafas de cerveja branca? GALY GAY Ainda não sou assim tão velho.
Dá-lhe as dez garra/as. URIA Esplêndido! E por acaso tem o pé chato?
WANG Sim, para um branco. Wang sai fazendo uma vénia aos GALY GAY Um bocadinho.
quatro. URIA O que é decisivo. A sua felicidade está garantida. Por
]esse, Polly e Urt'a entreolham-se. enquanto, deixe-se ficar por aqui.
URIA Agora é que o Jip já não volta. Vamos ter de nos encher GALY GAY Infelizmente a minha mulher está à minha espera
de cerveja. Viúva Begbick, a partir de agora tenha sempre por causa de um peixe.
vinte cervejas e dez whiskys preparados para nós. POLLY Compreendemos os seus escrúpulos, que são louvá-
A Begbick serve as cerve;'as e afasta-se. Bebem os três e vão veis e dignos de um homem irlandês. Mas a sua presença
observando Galy Gay adormecido. dá-nos prazer.
PoLLY O que é que fazemos agora, Uria? A única coisa que }ESSE Mais do que isso, vem a calhar. Talvez se dê a possibili-
temos é o passaporte do Jip. dade de o senhor se tornar soldado.
URIA Chega e sobra. Temos de arranjar um novo Jip. Dá-se Galy Gay fica calado. · .
importância a mais às pessoas. Uma pessoa não é nin- URIA A vida do soldado é muito agradável. Todas as semanas
guém. Se não forem mais de 200 pessoas, nem vale a pena recebemos uma mão cheia de dinheiro, apenas e só para
falar. Claro que qualquer um pode ter uma opinião dife- que possamos marchar por toda a Índia e nos deslumbre-
rente. Uma opinião não faz mossa a ninguém. Um mos com estas ruas e estes pagodes. E faça o favor de ob-
homem calmo pode assumir mais duas ou três opiniões servar estes confortáveis sacos-cama de cabedal, que são
diferentes nas calmas. distribuídos de graça aos soldados, e dê uma olhadela a
}ESSE Eu estou-me a borrifar para essa gente que tem a mania esta metralhadora com o selo de garantia da firma Everett
que sabe. e Companhia. O nosso principal passatempo é ir à pesca
176 Um homem é um homem 8. A cantina 177

e a Mamã, que é o nome com que, por brincadeira, bapti- JESSE Seja qual for o seu nome, senhor, pelo favor que nos
zámos o exército, compra-nos o material de pesca, e en- prestar receberá algo em troca.
quanto pescamos há umas bandas militares que se vão re- URIA Trata-se - deixe estar a mão na maçaneta da porta -
vezando a tocar. O resto dos dias são passados a fumar no simplesmente de um negócio.
bangalô ou a olhar tranquilamente para o palácio dourado Galy Gay pára.
dum desses rajás que o senhor, se lhe apetecer, também JESSE É o melhor negócio que se pode fazer em Kilkoa, não
pode matar a tiro. As damas esperam muita coisa de nós, é, Polly? Sabes que se fôssemos apanhados lá fora ...
soldados, mas nunca dinheiro, e o senhor não deixará de ÜRIA É nosso dever propor-lhe que participe neste tremendo
concordar que isso é mais um aliciante. negócio.
Galy Gay mantém-se calado. GALY GAY Negócio? Disseram negócio?
PoLLY Em tempo de guerra, a vida do soldado torna-se parti- URJA É provável. Mas o senhor não tem tempo.
cularmente agradável. Só na batalha é que um homem GALY GAY Ter tempo e ter tempo não é sempre a mesma coisa.
consegue atingir a sua plena grandeza! O senhor já repa- P0LLY Ah, o senhor até teria tempo, se soubesse que negócio
rou que vive numa época extraordinária? Antes de cada é que é. O Lord Kitchener também teve tempo para con-
ataque, cada soldado recebe, de borla, um copo de álcool quistar o Egipto.
deste tamanho, e com ele a coragem cresce até ao inco- G ALY GAY Acredito que teve. Quer então dizer que o tal ne-
mensurável, sim, até ao incomensurável. gócio é grande?
GALY GAY Estou a ver que a vida dos soldados é agradável.
P0LLY Para o Marajá de Petchavar talvez fosse. Para um ho-
URIA É verdade. O senhor pode ficar, sem mais, com o seu
mem tão grande como o senhor talvez seja pequeno.
blusão militar, com os bonitos botões de latão e tem direi-
GALY GAY E para entrar nesse negócio, o que é que seria ne-
to a que o tratem sempre por senhor, senhor Jip !
cessário da minha parte?
· GALY GAY Os senhores não vão querer desgraçar a vida de
}ESSE Nada.
um pobre estivador.
}ESSE E porque não?
P0LLY Quando muito, ter de sacrificar as barbas que lhe dão
URJA Então quer ir-se embora? um aspecto muito inconveniente.
GALY GAY Sim, parece-me que agora me vou embora. GALY GAY Ah sim?
}ESSE Polly, vai-lhe buscar a roupa! Pega nas suas coisas e dirige-se para a porta.
PoLLY com a roupa: Porque é que o senhor não quer ser o P0LLY É casmurro que nem um elefante.
Jip? GALY GAY Elefante? Um elefante, mas isso é uma mina de
Fairchild aparece na janela. ouro. Quem tem um elefante não morre num asilo de ve-
GALY GAY Porque sou o Galy Gay. Dirige-se para a porta. lhos. Está tão excitado que vai buscar uma cadeira e se
Os três entreolham-se. senta no meio dos três.
URJA Espere mais um bocado. URJA Elefante?! Se temos um elefante!
P0LLY Não conhece o ditado "devagar que tenho pressa"? GALY GAY E o elefante estaria assim logo aqui à mão?
URIA O senhor está aqui a lidar com homens que não gostam P0LLY Um elefante! Parece que o deixou completamente vi-
de receber favores de gente estranha. drado.
178 Um homem é um homem 8. A cantina 179

GALY GAY Quer dizer que têm o elefante por aqui, à mão? IJinA Lume!
P0LLY Já alguma vez se ouviu falar de um negócio com um ( ;ALY GAY dando-lhes lume e falando ao mesmo tempo: Per-
elefante, em que ele não estivesse à mão? mitam, meus caros senhores, que vos demonstre que não
GALY GAY Bem, se assim é, senhor Polly, então eu gostava arranjaram um mau sócio para o vosso negócio. Por acaso
também de ficar com o meu naco de carne. não têm aqui uns objectos pesados?
UF.IAfurioso: E tudo por causa do Diabo de Kilkoa! ,1 ESSE aponta para uns volumes pesados e umas traves que estão
GALY GAY O que é isso, o Diabo de Kilkoa? junto à parede, perto da porta: Ali.
POLLY Fale mais baixo! É uma das alcunhas do Tufão Huma- GALY GAY pega no objecto mais pesado e ergue-o nos braços, ao
no, do Cinco Sangrento, do nosso sargento. alto: Pertenço ao clube de luta-livre de Kilkoa.
GALY GAY Que faz ele para merecer essas alcunhas? URIApassando-lhe uma cerveja: Vê-se logo pela maneira como
PoLLY Oh, nada. É capaz de pegar num soldado que se enga- o senhor se comporta.
na a dizer o nome na formatura, enrolá-lo em dois metros GALY GAY bebendo: Oh, nós, os lutadores, temos uma maneira
quadrados de lona e metê-lo debaixo dos elefantes. muito própria de nos comportarmos. Até temos regras es-
GALY GAY Portanto seria preciso um homem que tivesse uma peciais. Por exemplo, quando um lutador entra num local
boa cabeça. onde estão muitas pessoas, quando chega à porta, estica os
UF.IA O senhor teria essa cabeça, senhor Galy Gay! ombros, ergue os braços à altura dos ombros, depois deixa
P0LLY Dentro de uma cabeça dessas há muita coisa! cair os braços à vontade, e entra assim de maneira descon-
GALY GAY Nem vale a pena falar disso, mas sei uma adivinha traída na sala. Bebe. Comigo, até cavalos podem roubar!
que os senhores, por serem homens instruídos, talvez FAIRCHILD entrando: Está lá fora uma mulher à procura de
achem interessante. um homem chamado Galy Gray.
}ESSE O senhor tem aqui três imbatíveis solucionadores de GALY GAY Galy Gay! O homem que ela procura chama-se
charadas. Galy Gay! Fairchild observa-o por um instante e depois vai
GALY GAY Então é assim: é branco, mamífero e vê tão bem buscar a Mulher de Galy Gay.
atrás como à frente. GALY GAY para os três soldados: Confiem em mim. O Galy
}ESSE É muito difícil. Gay acabou de lhe tomar o gosto.
GALY GAY Esta adivinha, não a conseguem resolver. Eu pró- FAIRCHILD Entre, senhora Gray. Está aqui um homem que
prio não consegui resolver esta adivinha. Um mamífero, conhece o seu marido. Entra, de novo, com a Mulher de
branco, vê tão bem atrás como à frente. Um cavalo bran- Galy Gay.
co e cego! MULHER DE GALY GAY Queiram desculpar esta mulher hu-
URIA A adivinha é incrível! milde, meus senhores, e também a minha roupa, mas saí à
P0LLY o senhor guarda essas coisas todas assim na cabeça? pressa. Ah, estás aí, Galy Gay, mas será que és mesmo tu,
GALY GAY Quase sempre, porque sei escrever muito mal. Mas metido nessa farda de soldado?
acho que sou o homem certo para quase todqs os negócios. GALY GAY Não.
Os três dirigem-se para uma mesa da cantina. Galy Gay pega MULHER DE GALY GAY Não te estou a entender. Como é que
numa das suas caixas de charutos e oferece charutos aos três. tens vestida uma farda de soldado? Não te fica nada bem,
- 180 Um homem é um homem 8. A cantina 181

toda a gente te diria o mesmo. És mesmo um homem es- MULHER DE GALY GAY Isto é incrível! Se bem que, quando
tranho, Galy Gay. me ponho a olhar para ele, sargento, quase me convenço
GALY GAY A mulher não está boa da cabeça. de que é um bocado diferente do meu marido Galy Gay,
MULHER DE GALY GAY Não é fácil ter um homem assim, que o estivador, é um bocado diferente embora não saiba
não sabe dizer não. dizer em quê.
GALY GAY Gostava de saber com quem é que ela está a falar. FAJRCHILD Mas em breve saberemos dizer o que é.
URIA São de certeza insultos. Sai com a Mulher de Galy Gay.
FAIRCHJLD Pois eu acho que a senhora Gray até tem as ideias G ALY GAY dança no centro do palco e canta:
muito claras na cabeça. Por favor, continue, senhora Gray. Ó lua de Alabama
Gosto mais de ouvir a sua voz que a de uma cantora. Tens de te esconder!
MULHER DE GALY GAY Não sei o que é que andas outra vez a Que a mãe velha e humana
tramar com essa tua mania de te armares em importante, Quer novas luas ver.
mas ainda vais acabar mal. Anda já daí comigo! Não dizes Aproxima-se, radiante, de ]esse. Por toda a Irlanda os
Galy Gays têm fama de saber levar sempre a água ao seu
nada? Estás rouco?
moinho.
GALY GAY Tenho a impressão de que essa conversa é comigo.
ÜRIA para Polly: Antes que o sol se tenha posto sete vezes,
Mas olha que me confundiste com outro qualquer, e o
este homem vai ter de ser outro homem.
que estás para aí a dizer é estúpido e inconveniente.
P 0LLY Achas que vai dar certo, Uria? Transformar um
MULHER DE GALY GAY O que é que estás a dizer? Eu a con-
homem noutro?
fundir-te com outro? Estiveste a beber? Ele não aguenta
ÜRIA Sim, um homem é igual a qualquer outro homem. Um
a bebida.
homem é um homem.
· GALY GAY Sou tanto o teu Galy Gay como sou o comandante PoLLY Mas o exército · pode partir a qualquer momento,
supremo do exército. Uria!
MULHER DE GALY GAY Ontem, por estas horas, pus a panela ÜRIA Claro que pode partir a qualquer momento! Mas não
com água ao lume, mas tu não trouxeste o peixe. vês que a cantina ainda aqui está? Não sabes que a arti-
GALY GAY Que história vem a ser essa do peixe? Falas como lharia ainda vai realizar corridas de cavalos? Digo-to eu,
se não tivesses muito juízo, e à frente destes senhores Deus não deixa cair em desgraça gente como nós, pondo
todos! já hoje o exército em marcha. Ele ainda vai pensar.
FAIRCHILD É um caso curioso. Vêm-me à cabeça ideias tão te- P0LLY Oiçam!
nebrosas, que quase me transformo em gelo. Conhecem Ouve-se o toque de marchar e os tambores. Os três soldados
esta mulher? Os três soldados abanam a cabeça. E o senhor? perfilam-se.
GALY GAY Eu já vi muita coisa na minha vida, da Irlanda a FAIRCHILD gritando, nos bastidores: O exército vai partir em
Kilkoa, mas nunca me deparei com esta mulher. direcção à fronteira do Norte. Sai esta noite às duas e dez!
FAIRCHILD Diga à senhora como se chama.
GALY GAY Jeraiah Jip.
182 Um homem é um homem 9. A cantina 183

ENTREFALA seus soldados que se metam com os elefantes e os canhões


nos comboios, e aos comboios que se dirijam para afrontei-
Dito pela Viúva Begbick. ra do norte. Em conformidade, o nosso general ordena que
todos se instalem nos comboios antes que a lua suba. A Beg-
Um homem é um homem, vem Brecht afirmar bick está sentada atrás da mesa da cantina a fumar.
E com isto, meus senhores, é fácil concordar.
Só que o senhor Brecht também vai querer provar BEGBICK
Que um homem serve para mais do que se pode imaginar. Em Jehoo, a cidade que está sempre cheia, e
Onde ninguém fica, costuma-se cantar
Vão ver esta noite aqui um homem ser desmontado A Cantiga do Rio das Coisas,
Peça a peça como um carro sem sair prejudicado. Que começa assim:
Vai-se abordar o homem com humana simpatia Canta:
E insistir muito com ele, se preciso noite e dia, Não te fixes na onda
Que te vem rebentar aos pés
Para que ao fluir das coisas se procure adaptar Enquanto tiveres os pés na água
E atire o peixe que tem dentro de si ao fundo do mar. Muitas mais hão-de rebentar.
Levanta-se, pega numa vara e, enquanto recita os versos que
Não se sabe o que será depois de transformado se seguem, empurra os oleados para trás.
Mas uma coisa é certa: ninguém se terá enganado. Sete anos vivi eu numa terra, tinha um tecto sobre
A cabeça
E não vivia sozinha.
Se não o vigiarmos bem, mesmo enquanto dorme,
Mas o homem que me sustentava, e não havia outro igual,
Podemos dar com um carniceiro mal ele acorde.
Um dia
Apareceu irreconhecível debaixo de uma mortalha.
Bertolt Brecht pretende que os senhores possam ver
E, no entanto, nessa noite comi a minha ceia.
O chão a fugir-vos dos pés como neve a derreter
E pouco depois aluguei o quarto onde nos
E perceber no exemplo de Galy Gay, o estivador
Tínhamos abraçado.
Que a vida na terra é um perigo ameaçador E o quarto deu-me então de comer.
E agora que já não me dá de comer
Ora, eu continuo a comer.
Por isso digo:
9 Canta:
A CANTINA Não te fixes na onda
Que te vem rebentar aos pés
Barulhos de um exército a partir. Voz alta ao fundo. Enquanto tiveres os pés na água
Muitas mais hão-de rebentar.
A Voz Rebentou a guerra que estava prevista. O exército vai Senta-se novamente à mesa da cantina. Entram os três sol-
partir em direcção à fronteira do norte. A rainha ordena aos dados, acompanhados por outros.
184 Um homem é um homem 9. A cantina 185

URIA no centro: Camaradas, rebentou a guerra. O tempo da ( ;ALY GAY entrando: O elefante já aí está?
desordem terminou. Já não podemos atender a desejos 1iRIA Senhor Galy Gay, o negócio está em pleno andamento.
pessoais. E sendo assim o estivador Galy Gay de Kilkoa Trata-se de um elefante do exército excedentário e não
tem de se transformar a toda a pressa no soldado Jeraiah registado, o Billy Humph. O negócio em si consiste em,
Jip. Para essa finalidade, vamos envolvê-lo num negócio, sem dar muito nas vistas, leiloá-lo - a particulares, claro.
como é próprio dos nossos tempos, e para tal vamos CALY GAY Parece-me perfeitamente claro. E quem é que o
construir um elefante artificial. Polly, pega nessa vara e na vai leiloar?
cabeça de elefante que está ali pendurada na parede, e tu, URJA Alguém que assine como sendo o seu proprietário.
]esse, pega nessa garrafa e sempre que o Galy Gay olhar GALY GAY Mas quem é que vai assinar como sendo seu pro-
para o elefante, despeja-a para que pareça que o elefante prietário?
está a verter águas. E eu cubro-vos com este mapa. Cons- URIA Quer assinar como seu proprietário, senhor Gay?
troem um elefante artificial. Vamos oferecer-lhe este ele- GALY GAY Há comprador?
fante e trazemos-lhe um comprador e mal ele o tenha U lUA Há.
vendido prendemo-lo e dizemos-lhe: com que então a GALY GAY O meu nome não pode, naturalmente, ser men-
venderes um elefante do exército? Nessa altura, ele vai cionado.
sem dúvida preferir ser o Jeraiah Jip, o soldado a cami- URIA Não. Não quer fumar um charuto?
nho da fronteira do norte, em vez de Galy Gay, o crimi- GALY GAY desconfiado: Porquê?
noso que até pode vir a ser fuzilado. URIA Só para manter a serenidade, porque o elefante está um
SOLDADO Mas acham que ele vai acreditar que isto é um ele- bocado constipado.
fante? GALY GAY Onde é que está o comprador?
]ESSE Está assim tão mau? BEGBICK avançando: Ah, senhor Galy Gay, ando à procura de
URIA Digo-vos que ele vai acreditar que é um elefante. Até um elefante para comprar, por acaso não tem um?
era capaz de acreditar que esta garrafa de cerveja é um GALY GAY Viúva Begbick, talvez tenha um para si.
· elefante, se alguém apontasse para ela e dissesse: quero BEGBICK Levem primeiro este taipal, os canhões daqui a nada
comprar este elefante. estão aí.
SOLDADO Então precisam de um comprador. SOLDADOS Às suas ordens, Viúva Begbick!
URIA gritando: Viúva Begbick! Os soldados desmontam um taipal da cantina. O elefante
A Begbick aparece. permanece imperceptível.
URIA Não se importa de fazer de comprador? ]ESSE para Begbick: Digo-lhe eu, Viúva Begbick, numa perspec-
BEGBICK Não, o meu vagão da cerveja fica aqui, se ninguém tiva mais ampla, o que se está a passar aqui é um aconte-
me ajudar a embalar as coisas. cimento histórico. Pois o que é que se está a passar aqui?
URIA Diga ao homem que aí vem que está interessada em Examina-se a personalidade à lupa, estuda-se o perfil mo-
comprar este elefante e nós ajudamo-la a embalar as coi- ral. Vão ser tomadas medidas eficazes. Há uma interven-
sas da cantina. E em dois, três tempos. ção. A técnica intervém. No torno ou no tapete rolante, o !
BEGBICK Muito bem. Volta para o seu lugar. homem grande e o homem pequeno são considerados
1
186 Um homem é um homem 9. A cantina 187

como tendo exactamente o mesmo estatuto. A personali- < :ALY GAY A senhora quer mesmo comprar este elefante?
dade! Já os antigos assírios, Viúva Begbick, representa- BE(;BICK Não me importa se é grande ou pequeno, desde
vam a personalidade como uma árvore que se desenvolve. criança que eu quero comprar um elefante.
Que se desenvolve muito! Até chegar o momento em que ( ;ALY GAY E ele corresponde mesmo ao que tinha imaginado?
pára, Viúva Begbick. O que diz Copérnico? O que é que BEGBICK Quando era criança eu queria um elefante que fosse
gira? A Terra. A Terra e, logo, o homem. Segundo Copér- tão grande como o Monte Hindukuch, mas agora este
nico. Ou seja, o homem não está no centro. Olhe lá para serve perfeitamente.
isto. Acha que isto está no centro? A coisa já passou à his- CALY GAY Está bem, Viúva Begbick, se realmente quer com-
tória. O homem não é nada de nada! A ciência moderna prar este elefante, eu sou o proprietário.
demonstrou que tudo é relativo. O que é que quer isto SOLDADO vem a correr dos fundos: Psst... psst ... O Cinco San-
dizer? A mesa, o banco, a água, a calçadeira, tudo relati- grento anda pelo campo a inspeccionar os vagões.
vo. A senhora, Viúva Begbick, eu... relativo. Olhe-me SOLDADOS O Tufão Humano!
bem nos olhos, Viúva Begbick, um momento histórico. 8EGBICK Esperem aqui, não vou perder a oportunidade de
O homem está no centro, mas é apenas relativo. comprar este elefante.
Saem os dois. A Begbick e os soldados saem à pressa.
URIA para Galy Gay: Tome conta do elefante por uns instan-
tes. Põe-lhe a corda na mão.
G ALY GAY E eu, senhor Uria, onde é que eu me meto?
NúMERO 1 URIA Deixa-te ficar aí quieto.
Corre atrás dos outros soldados.
URIA gritando: Número um: o negócio do elefante. A secção Galy Gay segura na ponta da corda, o mais afastado possí-
de metralhadora entrega ao homem, que não quer que o vel do ele/ante.
seu nome seja mencionado, um elefante. G ALY GAY sozinho: A minha mãe dizia-me muitas vezes que
GALY GAY Mais um gole nesta garrafa de brandy-xerês, mais certezas ninguém as tem. Mas tu então não tens mesmo
uma passa neste charuto Felix Brasil e vamos à vida. nenhuma. Hoje de manhã, Galy Gay, saíste de casa para
VRIA apresentando-lhe o ele/ante: Billy Humph, Campeão de comprares um peixe pequeno e agora já tens aqui um ele-
Bengala, elefante ao serviço do Grande Exército. fante enorme, e ninguém sabe o que vai ser o dia de ama-
GALY GAY vê o ele/ante e assusta-se: Isto é que é o elefante do nhã. Não tens nada com isso, desde que recebas o teu
exército? cheque.
SOLDADO Vê-se pelos abafos que tem em cima que está bas- VRIA espreitando: De facto, nem sequer olhou para ele. Afasta-
tante constipado. -se tanto quanto é possível. Vê-se Fairchild a passar nos fun-
GALY GAY preocupado, andando à volta do ele/ante: Os abafos dos do palco. Era o Tigre de Kilk.oa só a passar e pronto.
nem são o pior. Urza, a Begbick e os outros soldados voltam a entrar.
BEGBICK Quero comprar este elefante. Aponta para o
elefante. Venda-me o elefante.
188 Um homem é um homem 9. A cantina 189

NúMERO 2 BEGBICK Está bem. Mas será que o elefante é saudável? Billy
Humph verte águas. Para mim é o suficiente. Vejo que é
URIA gritando: E agora vem o número dois: o leilão do ele- um elefante saudável. Quinhentas rúpias.
fante. O homem, que não quer que o seu nome seja men- GALY GAY Quinhentas rupias, uma, quinhentas rupias duas,
cionado, vai vender o elefante. quinhentas rupias três! Viúva Begbick, entrego-lhe, como
Galy Gay pega numa sineta, a Begbick coloca uma celha de ma- proprietário cessante, o elefante e a senhora paga-me com
deira virada para baixo no meio do palco. um cheque.
UM SOLDADO Ainda tens alguma dúvida em relação ao ele- BEGBICK O seu nome?
fante? GALY GAY Não deve ser mencionado.
GALY GAY Como vai ser comprado, não tenho dúvida nenhuma. BEGBICK Por favor, senhor Uria, dê-me um lápis para passar o
URIA Pois é, se vai ser comprado, é porque está como deve ser. cheque a este senhor cujo nome não deve ser mencionado.
GALY GAY Não posso dizer que não. Um elefante é um ele- URIA à parte para os soldados: Assim que ele pegar no cheque,
fante, sobretudo quando vai ser comprado. deitem-lhe a mão.
Galy Gay sobe para a celha e leiloa o elefante, que está BEGBICK Aqui está o teu cheque, homem cujo nome não deve
perto dele, no meio do grupo. ser mencionado.
Vamos ao leilão! Vou leiloar, pela melhor oferta, o Billy GALY GAY E aqui está, Viúva Begbick, o seu elefante.
Humph, Campeão de Bengala. Nasceu, aqui como o UM SOLDADO assentando a mão sobre o ombro de Galy Gay: Em
vêem, no sul do Panjabe. À volta do seu berço estiveram nome do exército inglês, o que é que o senhor está a fazer?
sete rajás. A mãe era branca. Tem sessenta e cinco anos, GALY GAY Eu? Oh, nada. Ri-se ingenuamente.
para um elefante não é nada. Pesa quarenta e três arrobas O SOLDADO Que elefante é esse que o senhor aí tem?
e desbasta uma floresta como o vento leva a palha. O Billy GALY GAY A qual elefante é que se está a referir?
Humph representa, tal como é, uma pequena fortuna O SOLDADO Esse aí mesmo atrás de si! Não se ponha com
para quem o possuir. subterfúgios, senhor!
URIA E ali está a Viúva Begbick com o cheque. GALY GAY Nunca vi elefante mais gordo.
BEGBICK o elefante é seu? SOLDADOS Olha, olha!
GALY GAY Como os meus próprios pés ! UM SOLDADO Podemos testemunhar que este senhor afirmou
SOLDADO O Billy já deve ser bastante velho pois tem um que o elefante era dele.
modo de estar estranhamente rígido. BEGBICK Disse que o elefante era tanto dele como os pró-
BEGBICK Nesse caso, o senhor tem de fazer um abatimento prios pés.
no preço. GALY GAY faz tenção de se ir embora: Tenho muita pena, mas
GALY GAY O preço de custo do animal são duzentas rupias e tenho de ir para casa, a minha mulher espera-me ansiosa-
há-de valê-las até cair na cova. mente! Abre caminho por entre o grupo. Volto mais tarde
BEGBICK inspecciona-o: Duzentas rupias com esta barriga des- . para discutirmos o assunto. Boas tardes! Para Billy, que
caída? vai atrás dele. Fica aí, Billy, não sejas tão teimoso. Olha
GALY GAY Mas parece-me o adequado para uma viúva. ali, ali há canas de açúcar.
190 Um homem é um homem 9. A cantina 191

URIA Alto! Apontem os revólveres a este criminoso pois é E pode voltar a ser branca se a lavares
isso que ele é! Mas segura-a contra a luz e vê: não é
Polly, debaixo da pele de Billy, começa a rir. Urza bate-lhe. A mesma lona.
URJA Cala a boca, Polly! Não digas o teu nome com todas as letras. Para quê?
A lona superior caz: Polly fica visível. É sempre outra a pessoa a que te referes.
P0LLY Ora porra! E para quê dizeres tão alto a tua opinião? Esquece-a mas é.
Galy Gay, cada vez mais perplexo, olha para Polly e depois Como é que era? Não te lembres
para cada um dos presentes. O elefante sai a correr. De uma coisa mais tempo do que ela dura.
BEGBICK Mas o que é que vem a ser isto? Não é um elefante Canta:
coisa nenhuma, são lonas das tendas e homens. Isto é Não te fixes na onda
tudo uma intrujice! Um elefante falso em troca do meu Que te vem rebentar aos pés
dinheiro verdadeirQ ! Enquanto tiveres os pés na água
URIA Viúva Begbick, o criminoso vai ser já amarrado com Muitas mais hão-de rebentar
cordas e atirado para dentro da latrina. Sai. Uria e os soldados aparecem, vindos do fundo.
Os soldados amarram Galy Gay e metem-no num buraco,
ficando só a cabeça à vista. Ouve-se o barulho da artilharia
a passar.
BEGBICK Já estão a carregar a artilharia, quando é que emba- NúMER0 3
lam a minha cantina? Não é só o nosso homem ali a
' URJA gritando: E agora vem o número três: o processo contra
minha cantina também tem de ser desmontada.
Todos os soldados começam a embalar a cantina. Antes de o homem que não queria que o seu nome fosse menciona-
acabarem o trabalho, Urza manda-os embora. A Begbick do. Façam um círculo à volta do criminoso, interroguem-
volta com uma cesta com fanas sujas, ajoelha-se em frente a -no e não desistam até que saibam a verdade nua e crua.
um alguidar e começa a lavar. Galy Gay ouve a cantiga. GALY GAY Peço licença para dizer uma coisa.
BEGBICK URJA Já disseste muito esta noite, homem. Quem sabe o
Eu também já tive um nome nome do homem que leiloou o elefante em público?
E quem o ouvia na cidade dizia: Ora aí está um bom UM SOLDADO Chamava-se Galy Gay.
Nome. URJA Quem o pode testemunhar?
Mas uma noite eu bebi quatro aguardentes SOLDADOS Nós podemos testemunhá-lo.
E na manhã seguinte, estava na minha porta, a giz, URJA O que é que o réu tem a dizer quanto a isto?
Um palavrão. GALY GAY Foi alguém que não queria que o seu nome fosse
O leiteiro voltou para trás com o leite mencionado.
Acabou-se-me o bom nome. Os soldados insurgem-se.
Mostra as lonas. UM SOLDADO Eu ouvi-o dizer que se chamava Galy Gay.
Como lona que era branca e se sujou URIA E esse não és tu?
192 Um homem é um homem 9. A cantina 193

GALY GAY astuto: Bom, se eu fosse esse tal Galy Gay, era pro- na venda do elefante não queria que o seu nome fosse
vável que fosse o homem que procuram. mencionado? E continuas sem abrir a boca? Isso é terri-
URIA Então tu não és o tal Galy Gay? velmente suspeito, é quase um reconhecimento de culpa.
GALY GAY murmurando: Não, não sou. Disse-se que o criminoso que vendeu o elefante era um
URIA E se calhar nem estiveste presente quando o Billy homem com barba, e tu tens barba. Venham, vamos deli-
Humph foi leiloado? berar sobre o caso. Vai com os soldados para o fundo do
GALY GAY Não, não estive presente. palco. Dois soldados ficam com Galy Gay.
URIA No entanto, viste alguém, cujo nome era Galy Gay, a URIA ao sair: Agora afirma que não é o Galy Gay.
proceder à venda do elefante? GALY GAY após uma pausa: Conseguem ouvir o que eles estão
GALY GAY Sim, posso testemunhá-lo. a dizer?
URIA Então, deves ter lá estado! UMSOLDADO Não.
GALY GAY Posso testemunhá-lo. GALY GAY Estão a dizer que eu sou o tal Galy Gay?
URIA Ouviram-no? Estão a ver a lua? A lua já vai alta e ele OUTRO SOLDADO Dizem que já não se pode ter a certeza.
está embrulhado neste negócio sujo do elefante. No que G ALY GAY Lembra-te disto, homem: uma pessoa não é nin-
diz respeito ao Billy Humph, a verdade é que ele não es- guém.
tava lá grande coisa. SEGUNDO SOLDADO Já se sabe contra quem é a guerra?
}ESSE Não, realmente não estava. PRIMEIRO SOLDADO Se precisam de algodão, é contra o Tibe-
UM SOLDADO O homem disse que era um elefante, mas não te, e se precisam de lã de ovelha, é contra Pamir.
era, era de papelão. SEGUNDO SOLDADO Mas dizem que é só uma guerra defensiva.
URIA Portanto, ele vendeu um elefante falso. Um caso destes, PRIMEIRO SOLDADO Vai ser a doer.
claro que é punido com a pena de morte. O que tens a SEGUNDO SOLDADO Não sei se não nos deveríamos defender
dizer? do Belutchistão.
GALY GAY Um elefante talvez não tomasse o Billy Humph ]ESSE aproxima-se: Não é o Galy Gay que está aqui metido e
por elefante. É muito difícil distinguir estas coisas todas, amarrado?
digníssimo tribunal. SOLDADO Eh, homem, responde!
URIA Realmente, é muito complexo, no entanto acho que GALY GAY Acho que me estás a confundir com outra pessoa,
deves ser fuzilado porque te revelaste extremamente sus- Jesse. Olha lá bem para mim.
peito. Galy Gay cala-se. Sabes, ouvi falar de um soldado }ESSE Sim, então não és o Galy Gay? Galy Gay abana a
que se chama Jip e que, em mais de uma formatura, quis
cabeça. Afastem-se, tenho de falar com ele, que o acaba-
ram de condenar à morte.
fazer crer que se chamava Galy Gay. Serás, por acaso,
Os dois soldados afastam-se para o fundo.
esseJip?
GALY GAY Já decidiram? Oh, Jesse, ajuda-me, tu és um gran-
GALY GAY Não, de maneira nenhuma.
de soldado.
URIA Portanto não te chamas Jip? Então como é que te cha-
}ESSE Como foi que isto aconteceu?
mas? Não sabes responder? És então alguém que não
GALY GAY Pois, estás a ver, Jesse, estávamos a fumar e a
quer que o seu nome seja mencionado? Serás aquele que
beber e eu falei demais.
194 Um homem é um homem 9. A cantina 195

]ESSE Ouvi, lá atrás, que é um tal Galy Gay que vai ser execu- BEGBICK Porquê?
tado. GALY GAY Eu cá sei porquê.
GALY GAY Não pode ser. A Begbick corta-lhe a barba, recolhe os pêlos num lencinho
]ESSE Sim, então tu não és o Galy Gay? e leva as coisas todas para o vagão. Os soldados regressam.
GALY GAY Limpa-me o suor,Jesse.
]ESSE limpando: Olha-me bem nos olhos, sou eu, o Jesse, o
teu amigo. Não és o Galy Gay de Kilkoa?
GALY GAY Não, deves estar enganado. NúMERO 4
]ESSE Chegámos os quatro de Kankerdan. Tu não estavas
connosco? URIA gritando: Agora vem o número quatro: o fuzilamento
GALY GAY Estava em Kankerdan, estava convosco. de Galy Gay no acampamento militar de Kilkoa.
]ESSE dirigindo-se para o fundo, para os soldados: A lua ainda BEGBICK indo ao encontro dele: Senhor U ria, tenho aqui uma
não nasceu e ele já afÍrma que é o Jip. coisa para si. Ela diz-lhe algo ao ouvido e dá-lhe o lenço
URIA Seja como for, acho que temos de o ameaçar mais um com os pêlos da barba.
pouco com a morte. Ouve-se os canhões a passar. VRIA aproxima-se da latrina e diz a Galy Gay: Réu, que tens
BEGBICK surgindo: O canhão, Uria! Ajuda-me a dobrar os tol- ainda a dizer?
dos. E vocês continuem a desmontar! GALY GAY Digníssimo tribunal, ouvi dizer que o criminoso
Os soldados metem mais materiais da cantina no vagão. que vendeu o elefante era um homem com barba, e eu
Fica apenas um taipal. Uria e Begbick dobram os toldos. não tenho barba.
BEGBICK
VRIA sem palavra, abre-lhe o lenço com os pê/os da barba. Os
Falei também com muitas pessoas e ouvi-as
outros riem-se: E o que é isto aqui? Homem, agora é que
Com atenção, e ouvi muitas opiniões,
te condenaste mesmo, pois teres cortado a barba só revela
E ouvi muitas a dizer de muitas coisas: é certo e sabido!
como a consciência te pesa. Vem daí, homem sem nome,
Mas passado um tempo, e voltando ao mesmo assunto,
vem ouvir que o tribunal militar de Kilkoa te condenou à
Não diziam o mesmo que antes tinham dito.
morte na ponta de cinco espingardas.
E dessas outras coisas diziam: é certo e sabido.
Então disse para comigo: de todas as coisas certas Os soldados tiram Galy Gay da latrina.
A mais certa e sabida é a dúvida. GALY GAY aos gritos: Isso não pode ser!
Uria sai pelo fundo. A Begbick também sai com o cesto da URIA Mas é o que te vai acontecer! Ouve-me com atenção,
roupa, passando perto de Galy Gay. E canta: homem, primeiro, porque roubaste e vendeste um elefan-
Não te fixes na onda te do exército, o que é um roubo; segundo, porque ven-
Que te vem rebentar aos pés deste um elefante que não era um elefante, o que é uma
Enquanto tiveres os pés na água fraude; e terceiro, porque não tens nome nem passaporte
Muitas mais hão-de rebentar para apresentar e até és capaz de ser um espião, o que é
GALY GAY Viúva Begbick, peço-lhe, vá buscar uma tesoura e um crime de traição à pátria.
corte-me a barba. GALY GAY Oh, Uria, porque é que me tratas assim?
196 Um homem é um homem
9. A cantina 197

URIA Vamos agora e comporta-te como um soldado valente, GALY GAY Quero.
como aprendeste no exército. Marche!! Anda daí para URIA Vigiem-no.
seres fuzilado. GALY GAY Ouvi dizer que, quando os elefantes chegarem,
GALY GAY Oh, não se precipitem! Não sou o homem que eles têm de se ir embora, portanto tenho de fazer tudo
vocês procuram. Nem sequer o conheço. O meu nome é devagar, a ver se os elefantes vêm.
Jip, posso jurá-lo. O que vale um elefante comparado SOLDADOS Despacha-te!
com uma vida humana? Não vi o elefante, só peguei G ALY GAY Não consigo. Aquilo é a lua?
numa corda. Por favor, não me virem as costas! Sou um SOLDADOS É. Já é tarde.
outro, completamente diferente. G ALY GAY Aquilo ali não é a taberna da Viúva Begbick, onde
Não sou o Galy Gay. Não sou. costumávamos beber?
]ESSE És, tu és o Galy Gay, tu e mais ninguém. Sob as árvores URIA Não, meu rapaz, aquilo é a carreira de tiro e isto aqui é
da borracha de Kilkoa, Galy Gay vai ver escorrer o seu a parede onde se encostam os espertinhos. Atenção! For-
próprio sangue. Toca a andar, Galy Gay! mem já, ali! E carreguem espingardas! Têm de ser cinco.
GALY GAY Oh, meu Deus! Alto, tem de ser lavrada uma acta. SOLDADOS Vê-se tão mal, a esta luz.
As razões têm que ser registadas e que não fui eu quem co- URIA Sim, vê-se muito mal.
meteu o crime e que nem sequer me chamo Galy Gay. Tem GALY GAY Ouçam, assim não dá. Vocês têm de ver quando
de ser tudo bem ponderado. Um caso destes não se resolve disparam.
do pé para a mão, quando se trata de abater uma pessoa. URIA para ]esse: Pega naquela lanterna de papel e coloca-a ao
J ESSE Marche! pé dele. Uria venda os olhos a Galy Gay. Em voz alta: Car-
GALY GAY Qual marche nem meio marche! Não sou o ho- reguem as armas! Em voz baixa: Mas o que é que estás a
mem que procuram. O que eu queria era comprar um fazer, Polly? Estás mesmo a meter uma bala na câmara?
peixe, mas onde é que há peixes aqui? E que canhões são Tira a bala.
aqueles que vão ali? E que música de batalha é a daquelas POLLY Ah, desculpa, quase que ia carregando a espingarda a
cornetas? Não, não saio daqui. Agarro-me às ervas. Exijo sério. Era quase uma desgraça a sério.
que isto tudo acabe! Mas porque é que nunca há nin- Ouve-se passar os elefantes ao fundo. Os soldados ficam pe-
guém por perto quando vão matar uma pessoa? trificados por instantes.
BEGBICK Se quando os elefantes estiverem carregados vocês BEGBICK gritando dos bastidores: Os elefantes!
não tiverem despachado isto, estão tramados! Sai. URIA Não há nada a fazer. Ele tem de ser fuzilado. Vou con-
Galy Gay é levado para trás e outra vez para a frente, anda tar até três. Um!
como se fosse a personagem principal de um drama trágico. GALY GAY Pronto, agora já chega, Uria! Os elefantes já che-
]ESSE Abram caminho ao delinquente que o tribunal militar garam. Queres que eu continue aqui especado, Uria? Por-
condenou à morte. que é que vocês estão todos tão calados?
SOLDADOS Vejam, ali vai um homem que vão fuzilar. Coitado, URIA Dois!
é pena, nem sequer é velho. E nem sabe como se meteu GALY GAY ri: Saíste-me cá um pândego, Uria. Não te consigo
numa destas. ver porque vocês me vendaram os olhos. Mas a tua voz
URIA Alto! Queres mijar pela última vez? soa como se estivesses a levar isto tudo muito a sério.
198 Um homem é um homem 9. A cantina 199

URIA E um são ... NúMER0 4 a


G ALY GAY Alto! Não digas três ou ainda te arrependes! Se se
põem a disparar, ainda me acertam. Alto! Não, ainda não. ;l /rente do vagão já carregado, sentados a uma mesa com cinco
Oiçam! Eu confesso! Confesso que não sei o que me cadeiras, encontram-se a Begbick e os três soldados. Ao lado.1 no
aconteceu. Acreditem em mim e não se riam, sou um chão, está Galy Gay, coberto por uma saca.
homem que não sabe quem é. Mas esse Galy Gay não
sou, isso eu sei. O que deve ser fuzilado não sou eu. Mas .1 ESSE É o sargento que ali vem. Vai conseguir evitar que ele
quem é que eu sou? Não me consigo lembrar; ontem à meta o nariz nos nossos assuntos, Viúva Begbick?
noite, quando começou a chover, ainda sabia. Ontem à Vê-se Fairchild, à civil, que entra.
noite choveu, não choveu? Imploro-vos, olhem para aqui, BEGBICK Vou, porque é um civil que ali vem!. .. Para Fair-
ou para ali, para o sítio de onde vem esta voz, isso sou eu, child, que ficou à porta: Entra e senta-te aqui ao pé de nós,
imploro-vos. Chamem o sítio pelo nome, chamem-lhe Charles.
Galy Gay ou outra coisa qualquer, tenham piedade, fAIRCHILD Aí estás tu, ó Gomorra! Que é que fizeste de
dêem-me um pedaço de carne! O sítio por onde ele desa- mim? Que roupa é esta que tenho vestida? É apropriada
parece, isso é o Galy Gay, e também o sítio de onde ele para a minha pessoa? Begbick ri-se. E a cabeça com que
aparece. Ao menos isto: quando encontrarem um homem eu estou? É agradável? Tudo só para me deitar contigo, ó
que esqueceu quem era, esse sou eu! E a esse, imploro- Sodoma?!
vos, deixem-no ir em paz! BEGBICK Quando quiseres, vamos.
FAIRCHILD Não quero, afasta-te! Os olhos deste país estão
Urza disse qualquer coisa ao ouvido de Polly e Polly corre
cravados em mim. Eu sou um grande canhão. O meu
agora atrás de Galy Gay e ergue uma grande moca por cima
nome está bem inscrito nas páginas da História, três
da cabeça dele.
vezes, uma a seguir à outra. Ao pé de Galy Gay. Quem é
URJA Uma vez não são vezes! Três!
este cadáver cheio de cerveja? Silêncio. Prega um murro
Galy Gay dá um grito.
na mesa. Sentido!
URIA Fogo!!
URIA dá-lhe uma palmada por trás, no chapéu que ele tem na ca-
Galy Gay cai desmaiado.
beça: Cala mas é a boca, ó civil!
P0LLY Alto! Foi-se abaixo sozinho!
Riem-se.
URIA gritando: Façam fogo! Para que ainda ouça que está FAIRCHILD Que vergonha me cobriu? Que será do meu
morto. nome, que era grande de Calcutá a Cooch Behar? Onde
Os soldados disparam para o ar. está o ontem que passou? Até o meu blusão se foi, aquele
URIA Deixem-no aí e preparem-se para partir. que eu trazia. Na minha cabeça assenta um chapéu cifilís-
Galy Gay fica por terra, saem todos os outros. tico e por todo o exército se dirá que já não sou o Cinco
Sangrento. Dêem-me de beber! Bebe. Vou-vos esmagar a
todos como bichos, tão certo como eu me chamar Cinco
Sangrento.
200 Um homem é um homem 9. A cantina 201

URIA Dê um exemplo, caro Fairchild, da boa pontaria que o 1:AIRCHILD Estamos, portanto, na margem do Rio Tchadse.
senhor tem. Estão lá cinco hindus. Têm as mãos amarradas atrás das
FAIRCHILD Não. costas. Chego-me ao pé deles com uma pistola de guerra
BEGBICK Nove em cada dez mulheres não resistem a um ho- vulgar e ponho-a a baloiçar um bocado à frente das caras
mem com talento para o tiro. deles e digo: esta pistola já encravou uma data de vezes.
P0LLY Dispara lá, Fairchild! Tem de se estar sempre a experimentá-la. Assim. Depois
BEGBICK Devia fazer isso por mim. puxei o gatilho - tu aí, bum!, tomba! E mais quatro
vezes assim. E é tudo, meus senhores. Senta-se.
FAIRCHILD Aqui, vou pôr um ovo aqui. A quantos passos
querem?
JESSE Então foi assim que ganhou o grande nome que faz
desta viúva aqui a sua escrava? De um ponto de vista hu-
P0LLY A quatro.
mano, podia-se mesmo considerar o seu comportamento
FAIRCHILD dá dez passos, a Begbick conta em voz alta: Vejam,
como indecente e dizer-lhe que o senhor não passa de um
uma pistola de guerra perfeitamente vulgar. Dispara.
javardo!
}ESSE aproxima-se do ovo: O ovo está inteiro. BEGBICK O senhor é mesmo desumano?
P0LLY Nem um arranhão. FAIRCHILD Teria muita pena se a senhora me visse dessa
URIA Até ficou maior. forma. A sua opinião é muito importante para mim.
FAIRCHILD É estranho. Pensei que lhe conseguia acertar. BEGBICK Mas será que também é decisiva?
Grande galhofa. Dêem-me de beber! Bebe. FAIRCHILD olha-a bem nos olhos: Absolutamente.
BEGBICK a fumar um charuto: Onde andam aqueles grandes BEGBICK Então, a minha opinião, meu querido, é que tenho
soldados que antigamente tornavam o exército tão assus- de acabar de embalar a minha cantina e não tenho tempo
tador? Bastavam cinco para pôr a vida de uma mulher em para assuntos íntimos porque já estou a ouvir os lanceiros
perigo. Tenho provas de que na Batalha do Rio Tchadse a passar com os cavalos para os meter dentro dos vagões.
não foram os piores da companhia que pensaram nos Ouve-se o trotar dos cavalos dos lanceiros.
meus beijos. Por uma noite com a Leokadja Begbick os PoLLY O senhor insiste nos seus apetites viciosos, apesar de
homens desistiam do whisky e poupavam os xelins de os lanceiros estarem a meter os cavalos nos vagões e de
dois soldos. Tinham nomes como Dejinxiscão, famoso de ouvir que esta cantina tem de ser embalada por razões de
Calcutá a Cooch Behar. Um abraço da adorável irlandesa ordem militar?
punha-lhes o sangue a correr. Leiam no Times a serenida- FAIRCHILD gritando: Sim senhor, insisto! Dêem-me de beber!
de com que combateram nas batalhas de Bourabay, Ka- P0LLY Então vamos tratar de ti em processo sumário, meu
mathura e Daguth. rapaz!
URIA Como foi que ganhou a alcunha de Cinco Sangrento? }ESSE Senhor, não muito longe de nós está um homem, debai-
]ESSE de novo sentado no seu lugar: Mostre! xo de uma lona áspera, enfiado numa farda de campanha
FAIRCHILD Quer que conte, senhora Begbick? do exército britânico. Está a descansar de um árduo dia
BEGBICK Em sete mulheres, qual delas é que não se apaixona- de trabalho. Há apenas vinte e quatro horas, esse homem
andava - de um ponto de vista militar - ainda a quatro
ria por um homem selvagem e sanguinário?
202 Um homem é um homem 9. A cantina 203

patas. A voz da mulher dele assustava-o. Sem comando, NIIMERO 5


não estava sequer em condições de comprar um peixe.
Por um charuto, estava disposto a esquecer o nome do 1 /3egbicke os três soldados observam Galy Gay que continua
próprio pai. Algumas pessoas tomaram conta dele, por ,MJaixo da saca de lona.
que, por mero acaso, tinham sabido de um lugar para ele.
Neste momento, não sem se ter submetido a um processo 1/JuA Viúva Begbick, estamos no fim da nossa montagem. Pa-
doloroso, tornou-se num homem que vai saber tomar o rece-nos que agora o nosso homem está reconstruído.
seu lugar na batalha que se avizinha. Tu, pelo contrário, 1
1 1>LLY Do que ele precisava agora era de uma voz humana.
retrocedeste e voltaste a ser um civil. Num momento em l 11.'iSE Tem uma voz humana para casos destes, Viúva Begbick?
que o exército está de partida para ir impor a ordem nas B12BGBICK Tenho, e também qualquer coisa para ele comer.
fronteiras do norte, necessitando para isso de cerveja, tu, Peguem neste caixote e escrevam por cima com carvão:
monte de esterco, reténs conscientemente a proprietária "Galy Gay" e façam uma cruz atrás. Eles executam. De-
de uma cantina de campanha e não a deixas atrelar o pois organizem-lhe um cortejo fúnebre e enterrem-no.
vagão ao comboio. Tudo junto não pode demorar mais de nove minutos, que
POLLY Como vais exigir os nossos nomes na última formatu- já são duas horas e um minuto.
ra, como vais escrevê-los, aos quatro, na tua caderneta de UIUA gritando: Número cinco: funeral e elogio fúnebre de
sargento, onde têm de constar sem falta? Galy Gay, o último dos homens de carácter bem vincado,
URIA Como queres tu, ainda nesse estado, aparecer à frente no ano de mil novecentos e vinte e cinco.
da companhia, quando ela está ansiosa por investir de ca- Os soldados surgem já com as mochilas às costas.
beça contra os seus incontáveis inimigos? Põe-te de pé! URIA Peguem naquele caixote e vamos lá fazer um funeral
Fairchild levanta-se, vacilante. bem bonito.
POLLY Chamas a isso estar de pé? Dá-lhe um pontapé no tra- Os soldados colocam-se com o caixote ao fundo.
seiro, que faz Fairchild estatelar-se. ]ESSE E eu chego-me ao pé dele e digo: faz tu o elogio fúne-
URIA E chamou-se isto outrora o Tufão Humano! Atirem bre de Galy Gay. Para Begbick. Ele não vai comer nada.
com esse destroço para o mato para que a companhia não BEGBICK Ele é daqueles que até come quando deixar de existir.
desmoralize. Pega numa cesta e aproxima-se de Galy Gay, tira-lhe a saca
Os três começam a puxá-lo, a arrastá-lo para o fundo.
de cima e dá-lhe de comer.
UM SOLDADO entra a correr e fica parado ao fundo: Está aqui o
GALY GAY Mais!
sargento Fairchild? O general ordena que ele se despache
Ela dá-lhe mais comida. A seguir, faz sinal a Urza e o cortejo
e vá colocar a sua companhia na estação dos comboios de
fúnebre avança.
mercadorias.
GALY GAY Quem é que eles levam?
FAIRCHILD Não digam que sou eu.
BEGBICK Um homem que foi fuzilado ainda não há uma hora.
]ESSE Não há aqui nenhum sargento com esse nome.
GALY GAY Como é que ele se chama?
BEGBICK Espera um momento. Se não me engano, chamava-
-se Galy Gay.
204 Um homem é um homem
9. A cantina 205

GALY GAY E o que é que vão fazer com ele agora? Doenças que o óleo de rícino não cure, os soldados não
BEGBICK Com quem? apanham. Queres óleo de rícino?
GALY GAY Com esse tal Galy Gay. ( ;i\LY GAY abana a cabeça:
BEGBICK Agora vão enterrá-lo. A minha mãe assinalou no calendário
GALY GAY Era boa ou má pessoa? O dia em que nasci, aquele que berrava era eu.
BEGBICK Oh, era uma pessoa perigosa. Esta trouxa de carne, unhas e cabelo,
GALY GAY Pois, tanto que até o fuzilaram, eu assisti. Sou eu, este sou eu.
O cortejo fúnebre continua. ]esse pára e dirige-se a Galy .J ESSE Sim, J eraiah Jip, J eraiah Jip de Tipperary !
Gay. GALY GAY Aquele que carregou pepinos em troca de uma
}ESSE Não é o Jip? Jip, levanta-te já daí e vem fazer o elogio gorjeta, que foi enganado por um elefante, aquele que
fúnebre deste Galy Gay, porque tu conhecia-lo talvez até teve de dormir à pressa numa cadeira de pau por falta de
melhor do que riós. tempo, porque na sua barraca a água para o peixe já esta-
GALY GAY Ei! Estão-me a ver daí? Onde é que eu estou? va ao lume. Para além disso, a metralhadora ainda não
]esse aponta para ele. Exacto, aqui! E o que é que estou a tinha sido limpa, porque lhe ofereceram um charuto e
fazer agora? Dobra o braço. cinco espingardas, das quais uma faltava. Como é que ele
}ESSE Estás a dobrar o braço. se chamava?
GALY GAY Sim, dobrei duas vezes o braço. E agora? URJA Jip. Jeraiah Jip.
}ESSE Estás a marchar como um soldado. Ouve-se os apitos dos comboios.
GALY GAY Vocês também marcham assim? Os SOLDADOS Os comboios já apitam, agora desenrasquem-se
}ESSE Tal e qual. sozinhos. Atiram com o caixote e saem a correr.
GALY GAY Como é que vocês me chamam, quando precisam }ESSE Os transportes partem dentro de seis minutos. Temos
de mim? de o levar assim como está.
}ESSE Jip. URJA Escuta, Polly, e tu também, }esse. Camaradas! Resta-
GALY GAY Digam lá assim: Jip, dá aí uma volta. mos só nós os três e, no momento em que o cabelo que
}ESSE Jip, dá aí uma volta! Vai até àquelas duas árvores da nos suspende sobre o abismo está prestes a dar de si, es-
borracha, dá aí uma volta e vai fazer o elogio fúnebre do cutem bem o que vos digo, às duas horas da manhã, pe-
GalyGay. rante as últimas muralhas de Kilkoa: ao homem de que
GALY GAY aproxima-se lentamente do caixote: É neste caixote precisamos, temos de lhe dar um tempinho, porque ele
que ele está? vai-se transformar para toda a eternidade. E para que isso
Anda em volta do cortejo fúnebre que traz o caixote aos aconteça eu, Uria Shelley, saco da minha pistola de guerra
ombros. Galy Gay começa a andar cada vez mais depressa e e ameaço-vos com morte imediata, caso vocês vacilem.
tenta fugir dali. A Begbick impede-o. P0LLY Assim que ele olhar para dentro do caixote, está tudo
BEGBICK Ias à procura de alguma coisa? Para qualquer tipo de perdido.
doença, até para a cólera, o exército só tem óleo de rícino. Galy Gay senta-se junto do caixote.
206 Um homem é um homem 9. A cantina 207

GALYGAY Entre um sim e um não.


Não poderia ver, sem morrer de imediato, E se o Galy Gay não fosse o Galy Gay
Dentro dum caixote o rosto esvaziado Seria o filho que bebe de uma mãe que
Duma certa pessoa, que eu antes conhecia do reflexo da água Seria a mãe de outro se
Em que se mirava, e que sei que morreu. Não fosse sua, e portanto ele beberia na mesma.
Por isso não posso abrir este caixote. E se tivesse sido gerado em Março, não em Setembro,
Porque este temor está lá, nos dois que eu sou, pois talvez Exceptuando apenas o caso de ele ter sido gerado, não em
Eu seja ambos, alguém que acabou de surgir
Março
À superfície em mutação da Terra
Mas só em Setembro desse ano, ou já
Uma coisa, um morcego de cordão umbilical cortado, pen-
Em Setembro do ano anterior,
durado Que importa a diferença de um curto ano
Entre as árvores da borracha e a barraca, à noite
Que faz de um homem um outro homem.
Uma coisa que gostaria de ser alegre.
E eu, este eu e o outro eu
Alguém não é ninguém. É preciso que o chamem pelo
Somos utilizados e por isso somos úteis.
nome.
Por isso E tal como não prestei atenção ao elefante
Gostaria de ter olhado para dentro desse caixote Fecho os olhos ao que me diz respeito, e
Pois o coração está preso aos seus pais. Ponho de lado o que não gostam em mim, e sou
Agradável.
Uma floresta, por exemplo, existiria ela Ouvem-se os comboios passar.
Se ninguém a atravessasse? E a própria pessoa GALY GAY E que comboios são estes? Para onde vão?
Que atravessa o que antes era uma floresta, B EGBICK Este exército vai enfrentar as armas de fogo das ba-
Como se reconhecem uma à outra? talhas planeadas para as regiões do norte. Esta noite mar-
Àquele que vê as p róprias pegadas no canavial cham cem mil na mesma direcção. Do sul em direcção ao
Encherem-se de água, diz-lhe alguma coisa o pântano? norte. Quando um homem se vê no meio duma corrente
Qual é a vossa opinião? destas, tenta encontrar dois que marchem ao seu lado,
um à direita, outro à esquerda. Tenta arranjar uma espin-
Como pode o Galy Gay reconhecer que ele próprio garda e um saco para o pão, e uma chapa de lata pendu-
É o Galy Gay? rada ao pescoço e um número gravado na chapa de lata
Se lhe cortassem um braço para que se saiba a quem é que ele pertenceu quando o
E ele o encontrasse no buraco dum muro encontrarem, para se lhe conceder o lugar a que tem di-
O olho de Galy Gay reconheceria o braço de Galy Gay? reito numa vala comum. Tens uma chapa de lata?
E diria o pé de Galy Gay: é este? GALY GAY Tenho.
Por isso não vou olhar para dentro deste caixote. BEGBICK O que é que está gravado nela?
Também não vejo grande diferença GALY GAY Jeraíah Jip.
208 Um homem é um homem 9. A cantina 209

BEGBICK Então, Jeraiah Jip, vai-te lavar porque pareces um colmo nos arredores da cidade e mais algumas coisas, de
monte de esterco. que aliás é melhor não falar. O crime que cometeu não foi
GALY GAY lavando-se: E quantos são os que partem para o grande, pois era um bom homem. E cada um pode dizer o
norte? que lhe apetecer e na verdade tratou-se de um pequeno
BEGBICK Cem mil. Alguém não é ninguém. equívoco e eu tinha bebido demais, meus senhores, mas
GALY GAY A sério? Cem mil? E o que é que eles comem? um homem é um homem e por isso ele teve de ser fuzilado.
BEGBICK Peixe seco e arroz. Neste momento o vento arrefeceu bastante, como acontece
GALY GAY Todos o mesmo? sempre de madrugada, e eu acho que nos vamos embora
BEGBICK Todos o mesmo. daqui, está a ficar muito desagradável. Afasta-se do caixão.
GALY GAY A sério? Todos o mesmo. Por que razão é que vocês estão todos com o equipamento
BEGBICK Todos têm redes para dormir, cada um a sua, e far- às costas?
das de ganga para o Verão. PoLLY Temos de nos enfiar nos vagões que vão em direcção
GALY GAY E no Inverno? às fronteiras do norte.
BEBGBICK Caqui no Inverno. GALY GAY E por que razão é que eu não tenho também o
GALY GAY Mulheres? equipamento às costas?
BEGBICK A mesma. ]ESSE Um equipamento completo para o nosso quarto ho-
GALY GAY Mulheres a mesma. Sabe uma coisa, Viúva Begbick, mem!
alguém não é ninguém, é preciso que o chamem pelo nome. Os soldados trazem as coisas, formam um círculo em volta
Os soldados vêm com mochilas e uma esteira de palha enro- de Galy Gay, de forma a escondê-lo do público. Durante
lada. este tempo, ouve-se a melodia de uma marcha marcial e a
Os SOLDADOS Embarcar! Todos nos vagões! Também traze- Begbick coloca-se no centro do palco e fala.
mos aqui o Tufão Humano. Estão todos? BEGBICK O exército está de partida para as fronteiras do
URIA Já vai. O teu elogio fúnebre, camarada Jip, o teu elogio norte. As armas de fogo das batalhas do norte estão à sua
fúnebre! espera. O exército está sedento por ir impor a ordem nas
GALY GAY aproximando-se do caixão: Ergam então o caixote da populosas cidades do norte.
Viúva Begbick que contém um misteriosíssimo cadáver, Os soldados abrem o círculo. Galy Gay, Uria, ]esse e Polly
ergam-no dois palmos acima das cabeças e deponham-no formam uma fila, com Galy Gay no meio, de armas em
seis palmos abaixo, nesta terra de Kilkoa, e ouçam o elogio riste, uma faca nos dentes, atrás deles os outros soldados.
fúnebre feito por Jeraiah Jip, de Tipperary, elogio que vai Ficam a marchar no mesmo sítio ao ritmo da música.
ser muito difícil de fazer porque não me preparei para isso. GALY GAY em voz alta: Quem é o inimigo?
Mesmo assim: aqui jaz Galy Gay, um homem que foi fuzi- URIA em voz alta: Até agora ainda não nos foi comunicado
lado. Saiu uma manhã para ir comprar um pequeno peixe, que país é que vamos cobrir com guerra.
à tarde já tinha um grande elefante e nessa mesma noite foi POLLY em voz alta: Parece, cada vez mais, que é o Tibete.
fuzilado. Não creiam, meus caros, que enquanto viveu ele ]ESSE em voz alta Mas foi-nos comunicado que não passará
tenha sido o melhor dos homens. Tinha uma barraca de de uma guerra de defesa.
210 Um homem é um homem

GALYGAY Anexo
E já sinto em mim [A cria de elefante
O desejo de enterrar os dentes ou Tudo se pode provar1']
No pescoço do inimigo
Impulso primitivo: às famílias
Matar quem as sustenta
Levar a cabo a sangrenta missão Teatro
Um carniceiro feroz!
JESSE Um homem é um homem! Por baixo de umas quantas árvores da borracha, um estra-
BEGBICK avançando até à boca de cena: O que estava por do. Em /rente, cadeiras.
demonstrar! PoLLY à frente da cortina: Para que a arte dramática maior
efeito exerça sobre o público, pedimos que fumem muito.
Os artistas são os melhores do mundo, as bebidas de enor-
me qualidade, as cadeiras confortáveis, aceitam-se apostas
ao balcão do bar sobre o desfecho da peça e a cortina cai
no final dos actos para quem quiser apostar. Pedimos tam-
bém que não dêem tiros no pianista, ele faz o seu melhor.
Quem não for capaz de perceber logo a história não deve
perder muito tempo com isso, ela é mesmo incompreensí-
vel. Se querem ver qualquer coisa que faça sentido, então
vão à retrete. Em nenhuma circunstância o dinheiro do bi-
lhete será devolvido. Aqui, temos o nosso camarada Jip,
que terá a honra de representar o papel da Cria de Elefan-
te. Se acham que é demasiado difícil, respondo-vos que um
artista do palco tem de ser capaz de tudo.
SOLDADO em baixo: Bravo!
POLLY Aqui, temos J esse Mahoney, que fará de Mãe da Cria
de Elefante Jackie Pall, e Uria Shelley, o maior conhece-
dor de hipismo internacional, e que vai fazer de Lua.
Além destes, terão o prazer de ver eu próprio representar
o importante papel da Bananeira.
SOLDADO Comecem lá e fiquem a saber que dez centavos é
um preço vergonhoso para uma palhaçada destas!

~ Na edição ele 1953, Brecht mudará o subtítulo para: Um entremezpara o/oyer.


Tradução de José Maria Vieira Mendes.
212 Um homem é um homem Anexo: A cria de elefante 213

PoLLY Deixem-me que vos diga que acusações dessas assim fante matou, não foi?
grosseiras em nada nos afectam. A peça trata essencial- ÜRIA Exactamente.
mente de um crime cometido pela Cria de Elefante. Digo POLLY Pois é, é horrível.
isto que é para não termos de estar sempre a interromper. ÜRIA É assustador.
URIA atrás da cortina: Supostamente cometido. POLLY Se eu não tivesse perdido os meus óculos de tartaruga...
Polly Toda a razão. Isto acontece porque eu só li o meu ÜRIA Olha, por acaso até tenho aqui comigo uns óculos, vê lá
papel. A Cria está, de facto, inocente. se te servem.
SOLDADOS compassadamente: Comecem! Comecem! Come- PoLLY Se tivessem lentes até eram capazes de servir. Mas não
têm lentes.
cem!
ÜRIA Sempre é melhor que nada.
POLLY Com certeza. Vai para trás da cortina. Se calhar puse-
PoLLY Ninguém se ri!
mos o bilhete caro demais, o que é que acham?
ÜRIA É estranho, é. E portanto eu denuncio a Lua, quer
URIA Já não faz sentido pensar nisso, agora é atirarmo-nos de
dizer, a Cria de Elefante.
cabeça.
A Cria de Elefante entra lentamente.
PoLLY A peça é tão fraca .. . De certeza que não te lembravas lá
POLLY Olha, cá está o simpático elefante. Então, de onde é
muito bem,Jesse, de como é que são as coisas num teatro a
que tu vens, hã?
sério, e sabes que eu acho que foi dos pontos principais que
GALY GAY Eu sou a Cria de Elefante, à volta do meu berço
tu te esqueceste, Jesse. Esperem, esperem aí, calma, tenho
estiveram sete Rajás. Do que é que te estás a rir, Lua?
de ir à casa-de-banho. Sobe a cortina. Eu sou a Bananeira.
URIA Continua, elefante!
SOLDADO Até que enfim! GALY GAY Chamo-me J ackie Pall. Ando a passear.
PoLLY O juiz da selva. Estou para aqui numa estepe seca no POLLY Ouvi dizer que assassinaste a tua mãe.
Sul do Panjabe e isto desde o tempo em que se inventa- GALY GAY Não, só lhe parti o fervedor do leite.
ram os elefantes. Às vezes, sobretudo à noite, aparece por URIA Na cabeça, na cabeça!
aí a Lua e denuncia, por exemplo, uma cria de elefante. GALY GAY Não, Lua, numa pedra, numa pedra!
URIA Mais devagar! Já contaste metade! Pagaram dez centavos! PoLLY Pois enquanto eu for a Bananeira digo-te que foi isso
Entra em cena. que tu fizeste!
POLLY O lá, Lua, de onde vens tu a estas horas da noite? URIA E enquanto eu for a Lua vou provar-te isso mesmo e a
URIA Ouvi uma coisa bem bonita a propósito de uma cria de minha primeira prova é aquela senhora ali.
elefante ... ]esse entra fazendo o papel de Mãe do Elefante.
POLLY E vais denunciá-la? POLLY Quem é este?
URIA Claro que sim. URIA É a Mãe.
POLLY A cria cometeu então um crime? POLLY Engraçado, não é curioso?
URIA Sucedeu precisamente aquilo que acabas de supor, o URIA Não, nada.
que não deixa de ser uma prova da tua perspicácia que POLLY Eu cá não consigo deixar de achar estranho que ela
nada deixa escapar. aqui esteja!
PoLLY Oh, ainda não viste nada. Foi a mãe que a cria de ele- URIA Eu não.
214 Um homem é um homem Anexo: A cria de elefante 215

PoLLY Então pode ficar. O importante é que se consiga pro l 11 >LLY Então, quem aposta na Mãe venha para aqui! Nin-
var, claro. guém se adianta. Na Lua, aqui! Ninguém se adianta.
URIA Pois, tu és o juiz. 11<>LLY sai preocupado.
POLLY Pois. Então, Cria de Elefante, prova-nos lá que não l JRIApor trás da cortina: Apostaram?
mataste a tua mãe. l'OLLY Nada. Acham que o melhor está para vir, o que aliás
SOLDADO em baixo: Oh, então se ela está aí! me preocupa bastante.
URIA para baixo: Precisamente! JESSE Bebem tanto que até parece que acham impossível con-
SOLDADO Começa bem. Com a mãe a aparecer! Agora é que tinuar a ver isto.
a peça já não me interessa para nada. URIA Temos de entrar com música, ajuda a animá-los.
}ESSE Eu sou a Mãe da Cria de Elefante e aposto que o meu PoLLY aparecendo: A partir de agora, gramofone! Volta para
J ackiezinho é capaz de provar brilhantemente que não é dentro. Abrem-se as cortinas. Lua, Mãe e Cria de Elefante,
nenhum assassino. Não és, Jackie? aproximem-se para assistirem ao esclarecimento deste
URIA E eu aposto que ele nunca nem jamais será capaz de o crime enigmático, e vocês aí em baixo também. Como é
provar. que achas que podes ocultar o facto de tu, J ackie Pall,
POLLY gritando: Cortina! teres apunhalado a tua respeitável mãe?
Os espectadores dirigem-se silenciosamente até ao balcão GALY GAY Como é que podia ter feito uma coisa dessas, se
do bar e pedem, ruidosa e veementemente, cocktails. sou uma rapariga frágil?
POLLY por trás da cortina: Correu bem, não assobiaram uma POLLY O quê? Pois se assim é, eu afirmo que tu, Jackie Pall,
única vez. não és nenhuma rapariga como dizes que és. Oiçam agora
GALY GAY Não percebo é porque é que ninguém bate pal- a minha primeira grande demonstração. Lembro-me de
_mas. uma história muito curiosa da minha infância em White-
}ESSE Se calhar foi porque ficaram muito impressionados. chapel...
POLLY É tão interessante! SOLDADO No Sul do Panjabe!
URIA Se tivéssemos umas coxas de umas meninas coristas para Gargalhadas.
lhes mostrar, então é que era vê-los aos saltos em cima das POLLY .. . no Sul do Panjabe, de um homem que vestiu uma
cadeiras. Vai lá fora, temos de tentar aquilo das apostas. saia para não ter de ir para a guerra. Veio então o sargen-
POLLY aparecendo: Meus senhores ... to com uma bala de canhão e atirou-lha para o regaço, e
SOLDADOS Alto aí! Isso é um intervalo muito curto! Deixem não tendo ele, como fazem as raparigas, afastado logo as
a gente beber! Um espectáculo destes só bebendo! pernas para a apanhar com a saia, o sargento ficou a saber
PoLLY Queríamos apenas talvez sugerir se por acaso não que se tratava de um homem, e aqui faz-se o mesmo.
estão interessados em apostar, quer dizer, apostar numa Fazem-no. E assim acabaram de verificar que a Cria de
das facções, a Mãe contra a Lua. Elefante é um homem. Cortina!
SOLDADOS Uma vergonha! Ainda querem ganhar dinheiro Cortina. Poucas palmas.
por fora! Dêem-lhes tempo que isto já aquece! O princí- PoLLY Um sucesso estrondoso, estão a ouvir? Subam a corti-
pio nunca presta! na! Agradecer!
216 Um homem é um homem • Anexo: A cria de elefante 217

Cortina. Acabaram-se as palmas. SOLDADO Não é assim, está mal! Quem tem de provar é a Ba-
URIA São declaradamente hostis. E também não parece haver naneira!
grandes perspectivas. POLLY Por isso mesmo! Prestem atenção! Este é um momen-
JESSE O melhor é acabar já e devolver-lhes o dinheiro do bi- to particularmente emocionante da peça! Estava eu então
lhete. Começa a ser uma questão de ser ou não ser lincha- a dizer que tens de provar que nunca serias capaz de
do, isto chegou a um ponto complicado. Olhem lá para matar, por exemplo, a Lua. Agarra-te então a esta minha
fora! liana e começa a trepar e traz uma faca.
URIA Então querem devolver o dinheiro? Nunca! Assim não Galy Gay obedece. A Lua, de cima, segura a escada de corda.
há nenhum teatro do mundo que sobreviva! SOLDADOS mandam calar os que continuam a cantar: Silêncio!
SOLDADOS Então amanhã lá se vai lá para cima para o Tibete, Olha que subir lá acima não é fácil, a cabeça de elefante
não é, Georgie? estas devem ser as últimas árvores da não o deixa ver nada.
borracha sob as quais .vais beber cocktails a quatro centa- ]ESSE Espero que isto agora resulte. Isso bem alto, Uria.
vos. O tempo é que não está suficientemente bom para Uria dá um berro.
uma guerra, porque se estivesse havia de ser bonito se URIA Ai, ai, ai!
aqueles ali em cima não quisessem representar! Po LLY O que é que tens, Lua, porque é que gritas?
SOLDADO Desafio-vos a cantarem uma cançãozita para a URIA Porque me dói muito. De certeza que é um assassino
gente se divertir, que tal: "Johnny, limpa-me essas botas." que se aproxima!
SOLDADOS Bravo! Cantam: 'Johnny, limpa-me... " GALY GAY Prende a escada a um ramo, Uria, que eu sou
URIA Já cantam. Temos de continuar. muito pesado.
POLLY Quem me dera estar ali sentado, a canção do "Johnny" URIA Ai, está a rasgar-me a mão! A minha mão! A mão! Está
é tão bonita. Podíamos ter-nos lembrado de fazer uma a rasgar-me a mão!
coisa assim! Vá, embora! Cortina. Depois da .. . Luta contra POLLY Estão a ver?! Estão a ver?!
as vozes que cantam. Depois da Cria de Elefante ... Galy Gay tem a mão artificial de Urza nas mãos e mostra-a.
SOLDADO Outra vez a Cria de Elefante! JESSE Isto é mau, Jackie, nunca pensei que fosses capaz. Não
PoLLY Eu disse, depois da ... és meu filho.
SOLDADO A Cria do Soldado! URIA ergue o pedaço de mão: Aqui está a prova de que ele é
POLLY ... do animal, graças à minha primeira grande demons- um assassino.
tração, ter sido desmascarado e assim se ter provado que POLLY Reparem naquele coto em sangue, prova da acusação,
é um gatuno, segue-se agora a segunda demonstração, e tu, Cria de Elefante, não provaste que és incapaz de co-
melhor ainda que a anterior. meter um assassínio, porque agora trataste a Lua de tal
SOLDADO Não podes contar essa, Polly? forma que ela de certeza se vai esvair em sangue antes da
URIA Impõe-te, Polly! aurora chegar. Cortina! Cortina. Volta de imediato a mos-
PoLLY Eu afirmo que tu és um assassino, Cria de Elefante! trar-se. Quem quiser apostar, é ao balcão do bar.
Prova então agora que não és capaz de matar, por exem- SOLDADOS vão apostar: Um centavo na Lua, meio centavo na
plo, a Lua. Cria de Elefante.
218 Um homem é um homem Anexo: A cria de elefante 219

URIA Estão a ver como eles agora mordem o isco! Tens isto sua própria mãe numa terra governada pela Velha Ingla-
na mão, Jesse, então agora com o monólogo da mãe sofre terra. Bravo. Rule Britannia! Todos cantam "Rule Britan-
dora ... nia". Muito obrigado, meus senhores. Enquanto sair esta
Sobe a cortina. canção comovente das gargantas roucas dos homens, é
]ESSE sinal de que tudo está bem na Velha Inglaterra. Mas con-
Sabem vocês o que uma mãe é? tinuemos! Visto que tu, ó Cria de Elefante, assassinaste
Tem coração mole, é de manteiga, é. esta mulher por todos amada, esta grande artista Bravo,
Um coração assim em tempos vos embalou também então não é possível que tu, Jackie Pall, sejas filho ou filha
de tão celebrada mulher Bravo, e aquilo que a Bananeira
E já vos deu comida uma mão de mãe
afirma a Bananeira prova! Ovação. Assim sendo, Lua de
E um olho de mãe já p'ra vós olhou
Cooch-Behar, pega tu num pedaço de giz do bilhar e de-
E um pé de mãe da estrada as pedras vos arredou.
senha um círculo firme no centro do palco. Agarra depois
Gargalhadas.
numa corda e espera que esta mãe, que foi ferida naquilo
Mas o coração de mãe agora a terra o cobre.
que tem de mais profundo, se coloque no centro deste
Gargalhadas.
círculo que, por acaso, não ficou nada bem desenhado.
Pró céu o leva uma alma nobre. Coloca-lhe cuidadosamente a corda à volta do pescoço
Gargalhadas. branco.
Oiçam a mãe, como se queixa ela: SOLDADOS À volta do bonito pescoço branco de mãe, do bo-
Gargalhadas. nito pescoço branco de mãe.
Andei eu, mãe, com esta cria à trela. POLLY Exactamente. Mas tu, que supostamente dás pelo
Muitas e prolongadas gargalhadas. nome de Jackie Pall, segura na outra ponta desta corda da
SOLDADOS Outra vez! Só isso já vale dez centavos! Bravo! justiça e coloca-te em frente à Lua, do lado de fora do cír-
Viva! Três vivas para a mãe! Viva! Viva! Viva! culo. Pronto. E agora pergunto-te, mulher: deste à luz um
Desce a cortina. assassino? Ficas calada? Cá está. Só vos queria mostrar,
URIA Continuem! É um sucesso! Para o palco! meus senhores, que a própria mãe, que aqui vêem repre-
Sobe a cortina. sentada, abandona o filho desgraçado. Mas em breve vos
POLLY Provei que tu és um homem capaz de cometer um darei mais a ver, pois em breve o terrível sol da justiça irá
crime. Agora pergunto-te, Cria de Elefante: estás em con- iluminar as mais escusas profundezas.
dições de afirmar que esta é a tua mãe? SOLDADO Não exageres, Polly! Cht!
SOLDADO É injusto como um raio, o que eles estão a mostrar, POLLY Pela última vez, Jackie Pall: continuas a afirmar que és
dá para um tipo se irritar! Mas é muito filosófico, está filho desta infeliz?
bem! Devem ter preparado um final feliz qualquer, este- GALY GAY Continuo.
jam descansados! Silêncio! PoLLY Muito bem. És então o filho? Antes, querias ser a
PoLLY Claro que eu nunca iria afirmar que uma criança, seja filha, mas já percebi que não fazes questão em ser muito
ela qual for, é capaz de fazer mal sequer a um cabelo da preciso nas tuas afirmações. Passamos, meus senhores, à
220 Um homem é um homem Anexo: A cria de elefante 221

demonstração original e principal, a última e a mais im como provei, e filho também não, como acabaram de pre-
portante, e aquela que supera todas as anteriores e vrn, senciar, aliás é que nem sequer filho é desta matrona que
convencerá por completo. Se tu, Jackie Pall, és filho desta ele aliás assassinou, apesar de vocês a verem com os vos-
mãe, então também te foi dada força para puxares para sos olhos e de ela aqui estar como se nada fosse, o que é
fora do círculo a tua suposta mãe. Isto é claro. bastante natural e no entanto nunca antes sucedeu, o que
SOLDADO Claro como a água! Claro como o leite! Espera! aliás posso provar porque eu agora sou capaz de provar
Está a enganar-nos! Jackie, diz a verdade! tudo e sou capaz de provar muito mais e não me deixo
POLLY Aos três, puxa! Todos contam. Força! dissuadir, aliás mantenho o meu papel e provo-o também
Galy Gay puxa Jesse para fora do círculo. porque vos pergunto: o que seria do mundo sem provas?
}ESSE Pára! Já chega! Goddam! O que é que vocês pensam?! A ovação vai-se tornando cada vez mais arrasadora. Sem
O meu pescoço! provas o homem nem homem é, é um orangotango,
SOLDADO O que é que interessa o pescoço? Puxa, Jackie! Já como o Darwin aliás já provou, e no meio disto onde é
chega! Está azul que nem um badejo! que fica o progresso? E se tu, pequeno e miserável nada
}ESSE Socorro!! de Cria de Elefante encharcado em mentiras, até aos
GALY GAY Anda cá! Anda cá! ossos só mentiras, se tu ainda pestanejas, então eu provo,
POLLY E então? O que é que têm agora a dizer? Já alguma e é aliás isso mesmo que não vou deixar de fazer, ah pois,
vez tinham visto uma brutalidade destas? Pois é, é o que trata-se aliás da coisa mais importante no meio disto tudo,
se ganha com não saber fingir. Parece-me que te enganas- meus senhores, vou provar-vos que esta Cria de Elefante
te redondamente. Não provaste aquilo que querias quan- não é elefante nenhum mas, quanto muito, Jeraiah Jip de
do te puseste a puxar tão brutamente, tirando que nunca Tipperary.
foste nem filho nem filha desta mãe infeliz e martirizada. SOLDADOS Viva!
Jackie Pall, tu iluminaste a verdade! GALY GAY Isso não vale!
SOLDADOS Aha! Bravo! Atroz! Rica família! Põe-te a an- Polly Então porquê? Porque é que não vale?
dar, J ackie, já te foste! Batota! A verdade é que interessa, GALY GAY Porque vai contra as regras. Retira isso.
Jackie! POLLY Mas tu és um assassino.
POLLY Bom, meus senhores, parece-me que já chega. A de- GALY GAY Não é verdade!
monstração original e principal encontra-se então, pare- PoLLY Mas sou capaz de prová-lo. Eu provo, eu provo, eu
ce-me, encerrada. Oiçam com atenção, meus senhores, provo.
e peço tanto àqueles que, a princípio, acharam que ti- Galy Gay atira-se gemendo para cima da Bananeira, cuja
nham de fazer barulho, tal como àqueles que apostaram o base, com o embate violento de Galy Gay, dá de si.
seu dinheirinho nesta pobre Cria de Elefante estropiada POLLY caindo: Vêem, vêem?
pelas provas, afirmando que não era ela um assassino, ÜRIA Pronto, agora és um assassino.
peço a todos que oiçam com atenção: esta Cria de Elefan- PoLLY queixando-se: E fui eu que o provei.
te é um assassino! Esta Cria de Elefante que não é filha Cortina.
desta mãe respeitável, tal como afirmou, mas seu filho, ÜRIA Depressa, a canção!
222 Um homem é um homem Anexo: A cria de elefante 223

Os QUATRO AcTORES colocam-se rapidamente à frente da corti ( ;ALY GAY Eu não quero, e percebam isto por favor, não
na e cantam: quero que vocês achem que eu não defendo aquilo que
Ah, que divertido foi no Uganda acabaram de ver.
Sete centavos por um lugar na varanda. i>OLLY Boa, capitão!
Ah, o póquer com este velho Tigre de fel. GALY GAY Mas vamos resolver já aqui a coisa: eu gostava de
Ah, que bem que a gente jogou convidar aquele de vós que com maior fervor exige que
Do Pai Krüger vestimos a pele lhe seja devolvido o dinheiro do bilhete, quer dizer, gosta-
E o Tigre só o chapéu enfiou. va de convidar esse mesmo senhor para um pequeno
A luz da lua tão pacífica no Uganda! combate de boxe em oito rounds com luvas de quatro
Ainda jogávamos quando a manhã chegou onças.
Soprava fresco o ar SOLDADOS Força, Townley! Arranca a trombinha à Cria de
Um comboio pa_ssou. Elefante!
A nem todos chega o dinheiro GALY GAY E assim acho que ficamos já a saber se representá-
Para um jogo de póquer inteiro mos ou não a verdade e se representámos bom teatro ou
Com um tigre rafeiro. mau teatro, meus caros.
(Sete centavos por um lugar na varanda.) Vão todos para o combate de boxe.
SOLDADOS Já acabou? Isso é uma porra duma injustiça. Isto é
que é um bom final? Não se pode acabar assim. Não bai-
xem a cortina! Continuem a peça!
POLLY O que é isto? Não temos mais texto ! Sejam razoáveis.
A peça acabou.
SOLDADO Nunca tinha visto uma vergonha destas. É uma
porcaria de primeira água, não faz sentido nenhum! Um
grupo cerrado de soldados sobe ao palco e diz em tom sério:
Queremos o dinheiro dos nossos bilhetes. Lua de Cooch-
-Behar: ou arranjas um fim como deve ser para a Cria de
Elefante ou então, dentro de dois segundos, queremos
todas as nossas moedas em cima do balcão da casa!
POLLY Por favor, acreditem em nós, representámos a pura 1

verdade. 1,

SOLDADO Acho que vocês vão ter de prestar contas por causa
dessa pura verdade.
POLLY Isso é porque vocês não percebem nada de arte e não
1

têm qualquer tipo de sensibilidade para com os artistas.


SOLDADO Essa conversa não serve para nada! 1

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