Você está na página 1de 216

WIDENER

HN LCXC W
13498.583.4

Harvard College Library

In Memoryof

Aleixo de QueirozRibeiro

de Sotomayor d'Almeida
eVasconcellos

Count of Santa Eulalia

The Gift of

John B.Stetson Junior

of the Class of1906

AfDowney se LONDON 1997


d
n
e
B

WILLIAM SHAKESPEARE

OTHELLO

O MOURO DE VENEZA

TRAGEDIA EM CINCO ACTOS

TRADUZIDA PARA PORTUGUEZ

POR

D. LUIZ DE BRAGANÇA

PORTO
IMPRENSA PORTUGUEZA
Rua do Bomjardim, 181
1885
Zernando Pereira Pallher

OTHELLO
b

WILLIAM SHAKESPEARE

OTHELLO

O MOURO DE VENEZA

TRAGEDIA EM CINCO ACTOS

TRADUZIDA PARA PORTUGUEZ

POR

D. LUIZ DE BRAGANÇA

PORTO
IMPRENSA PORTUGUEZA
Rua do Bomjardim , 181
1885
8 4
1349 , 522.

HARVA 20 ГСГ ЦЕГАР


FROM THE LIBRARY OF
FERNANDO FALHA
DECEMBER 3, 1928
Publicando a traducção do OTHELLO, uma das

obras mais monumentaes de Shakespeare, entendi

que seria um crime mutilar esta tragedia por mal

cabido pudor, deixando de traduzir phrases que, em-

bora rudes, não me julguei auctorisado a eliminar.

Fiz uma traducção quasi litteral ; não quiz ter o in-

desculpavel orgulho de emendar e dar tardias lições

a Shakespeare, o grande genio britanico que, se essas

phrases empregou, teve, por certo, razões para o fa-


zer, as quaes me não é dado perscrutar. Segui-o ;

obedeci à linguagem do mestre e, como traductor,

devo estar isento, para o publico, da responsabilidade

da linguagem, que elle por certo hoje não emprega-

ria, mas que a fidelidade da traducção me obrigou a


conservar; d'outro modo, seria uma imitação que

nunca firmaria com o meu nome, apresentando-a como


traducção .
PESSOAS REPRESENTADAS

O DOGE DE VENEZA .
BRABANCIO, um senador.
OUTROS SENADORES .
GRACIANO , irmão de BRABANCIO.
LUDOVICO, primo de BRABANCIO.
OTHELLO, mouro nobre ao serviço do estado veneziano.
CASSIO, seu tenente .
IAGO, seu alferes.
RODRIGO, nobre veneziano.
MONTANO, predecessor de OTHELLO no governo de Chypre.
BOBO, ao serviço de оThello.
DESDEMONA, filha de BRABANCIO e mulher de OTHELlo .
EMILIA, mulher de IAGO .
BIANCA, barregã de CASSIO.

Marinheiros, mensageiros, arautos, officiaes, pessoas de distincção ,


musicos e sequitos

Scena- o primeiro acto em Veneza ; os outros n'um porto de mar


em Chypre
OTHELLO

O MOURO DE VENEZA

ACTO I

SCENA I

Veneza . Uma rua

Entram RODRIGO e IAGO

RODRIGO

Calla-te ! não me falles em tal . Enoja-me, que tu,


Iago, a quem confiei a minha bolsa, para que d'ella
te servisses, como se os cordões fossem teus , tomasses
conhecimento de cousas taes .

IAGO

Mas não me quer ouvir. Se jámais cousa semelhan-


te sonhei , aborreça-me .

RODRIGO

Disseste-me que o odiavas .


10 OTHELLO

IAGO

Despreze-me se não é a verdade . Tres grandes da


cidade foram pedir-lhe , pessoalmente , de cabeça des-
coberta, que me nomeasse seu tenente . Por minha fé,
sei o que valho, e que não mereço que me deem
graduação menor. Elle porém, entrincheirado no seu
orgulho e no seu proposito , trata de os desviar, com
phrases bombasticas, horrivelmente recheiadas de ter-
mos guerreiros ; em conclusão , despede os meus pro-
tectores , dizendo-lhes , a verdade é que já escolhi o
meu official ! E que é esse official ? um grande arithme-
tico , um certo Miguel Cassio, um florentino , um ho-
mem quasi damnado por uma mulher formosa ; que
nunca formou no campo um esquadrão , e que conhece
a tactica, tanto como uma donzella ; que possue as theo-
rias dos alfarrabios , sobre as quaes loquazes togados
podem dissertar com egual proficiencia á sua ; muita
palavra e nenhuma pratica, é no que consiste a sua
sciencia militar. Mas, senhor, foi elle o preferido : e eu
que na presença do Mouro provei o que valia , em Rho-
des , em Chypre , e n'outros paizes , quer christãos quer
pagãos , tenho forçosamente de tolerar que ne su-
plante um livro de caixa , um fiscal de contas : é quando
chegar a occasião , hade ser feito tenente e eu fico alfe-
res (Deus abençoe o titulo) de sua senhoria o Mouro !

RODRIGO

Por Deus , antes quereria ser o seu algoz .

IAGO

Não ha remedio; são os ossos do officio . A promo-


ção é por apostilla ou por favor, e não por antigui-
dade, que faz do segundo o successor do primeiro .
Agora julgue, se posso , com justiça , ser obrigado a es-
timar o Mouro !
PRIMEIRO ACTO 11

RODRIGO

Eu n'esse caso não o acompanhava.

IAGO

Não se afflija por isso , senhor ; sigo- o para servir os


meus projectos a seu respeito : não podemos todos man-
dar e nem todos os que mandam podem ser fielmente
servidos . Ha de ver muitos d'esses servis e bajuladores
sabujos, que encantados com a sua submissa escravi-
dão gastam a vida, quasi como o burro de seu amo , só
com a mira na ração ; e quando está velho , lançam-n'o
á margem : outros ha que mascarados com as fórmas e
apparencias do dever, o seu coração só a elles attende ;
e fingindo, apenas, serviços prestados aos seus senho-
res , fazem os lucros seus, e quando tem forrados os
casacos a si se respeitam ; estas creaturas teem alma ;
e uma d'essas tenho eu de confessar-me . Porque , tão
certo como o senhor ser Rodrigo , se eu fosse o Mouro
não era lago . Seguindo-o é só a mim que sigo ; não o
faço , tomo o ceu por testemunha , nem por affeição nem
por dever, mas represento assim para meu fim particu-
lar: porque , quando acto meu externo revele o senti-
mento natural e retrate o meu coração , não tarda que
eu o exponha sobre a manga para as gralhas o bica-
rem . Não sou o que sou .

RODRIGO

A continuar assim, é espantosa a fortuna d'este bei-


çudo !

IAGO

Chame o pae, acorde-o : - siga o outro , envenene a


sua alegria ; apregoc-o nas ruas, excite os parentes
d'ella, e posto que habite um clima favorecido , faça-lhe
12 OTHELLO

padecer o supplicio das moscas : ainda que a sua ven-


tura seja verdadeira ventura anteponha-lhe taes contra-
riedades que a faça desmaiar.

RODRIGO

Esta é a casa do pae ; chamal-o-hei em voz alta .

IAGO

Sim ; com voz assustada , mas bradando alto , como


quando, por noite velha e descuidada , o incendio é de-
nunciado em populosas cidades .

RODRIGO

Olá ! Brabancio ! senhor Brabancio , olá!

IAGO

Desperte ! Olá ! Brabancio ! Ladrões ! ladrões ! Olhe


para a sua casa, para a sua filha, para os seus saccos !
ladrões ! ladrões !

BRABANCIO (apparece em cima, a uma janella)

Que motivo ha para este alarido terrivel ? que é?

RODRIGO

Senhor, toda a sua familia está em casa ?

IAGO

As suas portas estão bem fechadas ?

BRABANCIO

Porqué? com que fim me fazem tal pergunta ?


PRIMEIRO ACTO 13

IAGO

Irra, senhor ! Irra ! o senhor está roubado ! Vista-se ,


por decencia ! despedaçaram-lhe o coração , perdeu me-
tade da sua alma ; agora mesmo, n'este mesmo ins-
tante, um velho carneiro negro está cobrindo a sua
ovelha branca . Levante- se , erga-se ! Acorde com o to-
que de rebate os cidadãos que resonam descuidados ,
quando não o diabo fal-o -ha avô ! erga-se : digo -lh'o eu .

BRABANCIO

O què? perderam o juizo?

RODRIGO

Muito reverendo senhor, conhece a minha voz?

BRABANCIO

Eu não ; quem é?

RODRIGO

Chamo-me Rodrigo !

BRABANCIO

Tanto mais mal vindo és. Prohibi-te que rondasses


a minha porta : disse-te com honrada franqueza : « mi-
nha filha, não é para ti ; » e eis que parecendo louco ,
(bem ceiado e ainda mais avinhado) , vens por maliciosa
bravata perturbar o meu repouso e sobresaltar-me .

RODRIGO

Senhor, senhor, senhor !


14 OTHELLO

BRABANCIO

Mas podes ficar certo de que a minha colera e o meu


cargo teem bastante poder para t'o fazer amargar.

RODRIGO

Paciencia, meu bom senhor!

BRABANCIO

Fallas-me de roubo ? Estamos em Veneza ; e a mi-


nha casa não é uma granja .

RODRIGO

Mui grave Brabancio , venho-o procurar com toda a


singeleza d'uma alma pura.

IAGO

Irra, o senhor é d'esses que recusam servir a Deus,


só porque o diabo o ordena . Porque vimos aqui pres-
tar-lhe um serviço , toma-nos por bandidos , e permitte
que sua filha seja castiçada por um cavallo da Bar-
baria. Terá pois netos que rinchem, corceis por primos
e ginetes por afins!

BRABANCIO

Mas que profano pagão és tu ?

IAGO

Sou aquelle que lhe vem annunciar que sua filha e o


Mouro , estão agora perfazendo o animal de duas costas .
PRIMEIRO ACTO 15

BRABANCIO

És um vilão !

IAGO

O senhor - um senador!

BRABANCIO

Responder-me-has pelas tuas palavras ; eu conhe-


ço-te, Rodrigo.

RODRIGO

Senhor, tomarei toda a responsabilidade . Mas di-


ga-me, foi com seu consentimento reflectido e por sua
vontade (como em parte quero crer) , que sua encanta-
dora filha, tão fóra de horas, em tão escura noite, sem
melhor nem peior guarda do que a d'um mercenario ,
d'um gondoleiro , se foi entregar aos grosseiros abraços
d'um lascivo Mouro ? -Se o sabe e o consente , então
molestamol-o atrevida e impudentemente ; mas se tudo
ignorava, a minha razão diz - me que mal cabido é o seu
reparo . Não pense que affastando-me das regras da ci-
vilidade , quiz zombar e chasquear com sua reverencia:
sua filha , - se não a auctorisou , - repito-o , revoltou-se
torpemente , ligando belleza , dever, graça e fortuna, a
um vagabundo, a um aventureiro , sem eira nem beira .
Vá desenganar-se : se ella está no seu quarto , em casa,
solte contra mim a justiça do estado, por assim o ter
illudido .

BRABANCIO

Façam lume , olá ! Dèem-me uma tocha ! - Chamem


todos os meus creados ! -Esta aventura condiz com o
meu sonho : a crença da realidade já me opprime.-
Luzes , ouvem ? luzes ! (Retira- se da janella .)
16 OTHELLO

IAGO (a Rodrigo)

Adeus . Forçoso é que o deixe . Não parece nem con-


veniente, nem salutar para a minha posição , ser ci-
tado como testemunha contra o Mouro , como o seria
se aqui ficasse: pois sei, que posto este facto lhe acar-
rete alguma reprehensão , o Estado não o póde despedir
sem perigo. Tão poderosas são as razões durante a
guerra com Chypre, que ora se peleja , que mesmo em
detrimento da salvação das suas almas , os nossos ho-
mens d'Estado , não encontrariam outro d'esta estatura
a quem confiar o commando. Portanto, posto que o
odeie tanto quanto odeio as penas do inferno , devo ,
obedecendo ás necessidades de momento , desfraldar a
bandeira da affeição , simples apparencia na realidade .
Se o querem encontrar com certeza , procurem -n'o no
Sagitario. Lá estarei tambem . Adeus , pois . (Sae.)

Entra BRABANCIO e CREADOS com tochas

BRABANCIO

É certa a minha desgraça ; ella partiu ! Que me resta


pois de uma vida desprezivel ? Nada senão amargura!
Agora dize-me Rodrigo : onde a viste ? Oh ! desgraça-
da filha ! -Com o Mouro, disseste ? -Ha quem deseje
ser pae ! ― Como a reconheceste ? - Enganou-me d'um
modo inconcebivel ! - Que te disse ella ? - Mais tochas !
acordem todos os meus parentes ! - Pensas tu que es-
tejam casados ?

RODRIGO

Deveras penso que estão .

BRABANCIO

O' ceus como sahiu ella? Oh! traição do sangue !


Paes , de hoje em diante , não confieis em vossas filhas ,
PRIMEIRO ACTO 17

senão pelo que lhes virdes praticar ! ...- Não existem


Sortilegios , que enganam a juventude e a virgindade ?
Nunca leste , Rodrigo , alguma cousa n'esse sentido ?

RODRIGO

Por certo que li.

BRABANCIO

-
Acordem meu irmão . Por que t'a não dei cu? -
Procurem uns por um lado , outros por outro . Sabes
tu onde os possamos encontrar, a ella e ao Mouro ?

RODRIGO

Creio podel-o descobrir ! Se lhe apraz mande vir


uma boa escolta e venha comigo .

BRABANCIO

Faça favor , guie-nos . — Vou bater ás portas de todas


as casas, na maior parte das quaes posso mandar.-
Armem-se, ofá ! e acordem alguns officiaes das rondas
nocturnas . -Vá diante , bom Rodrigo, saberei reconhe-
cer os seus serviços . (Saem. )

SCENA II

Veneza . Outra rua

Entram OTHELLO, IAGO e SEQUITO com tochas

IAGO

Apesar de ter morto homens no mister da guerra ,


tenho como caso de consciencia, commetter um as-
sassinato premeditado ; falto algumas vezes á iniquida-
2
18 OTHELLO

de, quando me póde convir. Nove ou dez vezes pensei


em feril-o aqui , abaixo das costellas .

OTHELLO

Antes assim .

IAGO

Elle, porém , fallava e conversava em termos tão in-


sultantes e provocadores, contra a sua honra, que, com
a pouca santidade que tenho, bastante me custou per-
doar-lhe . Mas peço-lhe , senhor, que me diga : está so-
lidamente casado? Tenha a certeza d'isto : esse magni-
fico é muito estimado , e a sua voz , para todos os effei-
tos, tem dobrado poder que a do Doge . Fal -o -ha divor-
ciar. Oppor-lhe-ha tantas restricções e aggravos, que a
lei reforçada pelo seu poder , lhe dará razão .

OTHELLO

Deixemol- o obrar consoante o seu despeito . Os ser-


viços que prestei á Senhoria, fallarão mais alto que as
suas queixas. Ainda não sabem tudo : quando vir que
ha honra para mim em vangloriar-me, declararei que
devo a vida e o ser a homens de sangue real , e que o
meu merito póde responder, de fronte descoberta , a
uma fortuna tão orgulhosa como esta que tenho con-
quistado . Porque affirmo-t'o , Iago : - se não amasse a
gentil Desdemona, não circumscreveria a minha aven-
turosa condição livre por todos os thesouros do mar.
Mas repara : que luzes são essas que veem ali ?

CASSIO e differentes OFFICIAES com tochas apparecem a distancia

IAGO

São o pae e os seus amigos , que foram despertar.


Fazia melhor se se recolhesse .
PRIMEIRO ACTO 19

OTHELLO

Eu não ; é preciso que me encontrem . O meu cara-


cter, o meu titulo e a minha consciencia integra, me
apresentarão tal qual sou . Mas serão elles ?

IAGO

Por Jano ! penso que não.

OTHELLO

Serviçaes do Doge e o meu tenente : -boas noites ,


amigos , que ha de novo ?

CASSIO

O Doge sauda-o , meu general ; e reclama a sua im-


mediata comparencia, n'este mesmo instante .

OTHELLO

Na sua opinião , de que se trata ?

CASSIO

Alguma noticia de Chypre , creio eu ; é negocio ur-


gente . As galeras expediram uma duzia de mensagei-
ros , consecutivamente , uns apoz outros , esta noite .
Muitos dos conselheiros já sé ergueram e estão reuni-
dos no palacio do Doge . Reclamam-n'o instantemente ;
e como não o acharam em casa , o senado enviou tres
escoltas differentes em sua procura .

OTHELLO

Folgo que me encontrassem . Tenho só que dar uma


palavra aqui, em casa , e acompanho-os . ( Sae . )
20 OTHELLO

CASSIO

Que faz elle aqui , Alferes ?

IAGO

Por minha fé, abordou esta noite uma carraca da


terra firme . Se a preza för julgada legal , tem a sua
fortuna certa.

CASSIO

Não percebo .

IAGO

Está casado .

CASSIO

Com quem?

Torna a entrar OTHELLO

JAGO

Casado com... Vamos meu capitão, quer vir ?

OTHELLO

Vamos.

CASSIO

Aqui vem outra escolta que o vinha procurar.

IAGO

É Brabancio , meu general. Previna-se ; vem


ruins intentos .
PRIMEIRO АСГО 21

Entram BRABANCIO, RODRIGO e OFFICIAES com tochas

OTHELLO

Olá : parem !

RODRIGO

Senhor : é o Mouro .

BRABANCIO

Derrubem-o ! Ladrão ! (Arrancam das espadas uns


e outros. )

JAGO

Aqui, Rodrigo ? ás suas ordens ! .

OTHELLO

Embainhem essas brilhantes espadas; o orvalho po-


deria enferrujal-as . Bom senhor : mais poder teem os
seus annos , do que todas as suas armas .

BRABANCIO

Roubador torpe , onde occultaste minha filha ? Como


és um amaldiçoado , enfeitiçaste-a. Invoco o juizo de
todos os entes de bom senso : como a não ser acorren-
tada pela magia, teria uma donzella tão terna, bella e
feliz , tão opposta ao matrimonio , que tem recusado os
pretendentes mais brilhantes e casquilhos do nosso paiz ,
arriscando- se ao escarneo geral, fugido da tutella pa-
terna , para o cpfarruscado seio d'um ente como tu , para
se temer, não para deleitar? Julgue o mundo se não é
evidente, que a dominaste por meio de torpes sortile-
gios, que abusaste da sua delicada juventude com dro-
gas ou mineraes que despertam desejos ! Não ficará sem
726
22

OTHELLO
processo ; é facil de provar e de comprehender ! Portan-
to , assenhoreio-me de ti e prendo-te como a um corru-
ptor da humanidade , como a um cultor das artes prohi-
bidas , como a um homem fóra da lei . Prendam - n'o ; se
resistir subjuguem-n'o a todo o trance !

OTHELLO

Tenham mão , tanto os meus partidarios como os


outros . Se eu entendesse que devia brigar, tel-o -hia sa-
bido fazer sem precisar de advertencia . -Onde quer que
vá para responder á sua accusação ?

BRABANCIO

Para o carcere , até ao momento proprio em que a


lei , no curso da sua acção directa , te chame a responder.

OTHELLO

E se lhe obedecer, como poderei satisfazer o Doge,


cujos mensageiros formados a meu lado , devem condu-
zir-me á sua presença, por causa de algum negocio
urgente d'estado ?

UM OFFICIAL

É verdade, mui digno senhor ; o Doge está em con-


selho, e mesmo a sua nobre pessoa foi chamada, tenho
a certeza .

BRABANCIO

Como ! O Doge em conselho , a estas horas da noi-


te? Levem-n'o . A minha causa não é frivola; o Doge
mesmo e qualquer dos meus collegas do senado hão
de considerar este caso como uma affronta pessoal . Se
se desse livre curso a taes acções , os escravos e pagãos
seriam os nossos homens d'estado . (Saem .)
23
PRIMEIRO ACTO 23

SCENA III

Veneza. A sala do conselho

O DOGE e os SENADORES sentados . OFFICIAES de serviço

DOGE

Não ha n'estas noticias bastante harmonia, para que


lhes possamos dar credito .

PRIMEIRO SENADOR

Na verdade , são desacordes . As minhas cartas di-


zem cento e sete galeras .

DOGE

E as minhas , cento e quarenta.

SEGUNDO SENADOR

Duzentas, dizem as minhas . Posto que nem todas


concordem no numero exacto (sabem que noticias , fun-
dadas em conjecturas , variam muitas vezes ) todavia ,
todas confirmam, que uma esquadra turca se dirige a
Chypre.

DOGE

Basta isso para formarmos o nosso juizo . Não me


socegam as contradições, e vejo o facto principal pro-
vado d'um modo terrivel .

UM MARINHEIRO (de fóra)

Olá ! olá ! olá !


24 OTHELLO

PRIMEIRO OFFICIAL

Um mensageiro das galeras .

Entra o MARINHEIRO

DOGE

Então , que ha de novo?

MARINHEIRO

A expedição turca fez- se de véla para Rhodes . É o


que o senhor Angelo me ordena que annuncie ao
tado .

DOGE

Que dizem d'esta mudança ?

PRIMEIRO SENADOR

Não ha motivo rasoavel para tal . É uma phantasma-


goria para enganar a nossa vista. Quando considerarmos
a importancia de Chypre para os turcos , comprehende-
remos quanto os interessa mais do que Rhodes , e que
egualmente lhes é mais facil assenhorearem-se d'ella ,
por que não está em tanto pé de guerra e lhe faltam
completamente os meios de que Rhodes está provida .
Pensando assim não podemos crer que o turco seja tão
inhabil que deixe a primeira , que mais o interessa , des-
prezando uma tentativa de exito facil e de proveito cer-
to , para tentar uma aventura de risco sem proveito .

DOGE

Não, por certo , não é Rhodes .


115
PRIMEIRO ACTO 25

OFFICIAL

Mais noticias .

Entra um MENSAGEIRO

MENSAGEIRO

Reverendos e graciosos senhores : os ottomanos , de-


pois de se terem feito no rumo de Rhodes , foram refor-
çados ali, por uma esquadra de reserva.

PRIMEIRO SENADOR

É o que eu pensava . Quantos navios calcula ?

MENSAGEIRO

Trinta vélas . Agora mudaram de rumo , pondo a


pròa em Chypre, para onde manifestamente dirigem at
sua expedição . O senhor Montano, vosso fiel e valente
servidor, no cumprimento leal do seu dever, vos infor-
ma d'isto, e pede-vos que o acrediteis .

DOGE

É pois certo que é contra Chypre ! Marco Luccico


estará na cidade ?

PRIMEIRO SENADOR

Está agora em Florença .

DOGE

Escreva-lhe da nossa parte, com a maxima urgen-


cia.
25
26 OTHELLO

PRIMEIRO SENADOR

Eis Brabancio e o valente Mouro .

Entram BRABANCIO , OTHELLO, IAGO, RODRIGO e OFFICIAES

DOGE

Valoroso Othello : queremos empregal-o immediata-


mente contra o inimigo geral , o ottomano . (a Braban-
cio ) Não o via: bemvindo seja nobre senhor . Faltaram-
nos esta noite, o seu auxilio e conselhos .

BRABANCIO

A mim faltaram-me os seus . Perdoe-me vossa gra-


ça ! Não foram nem as funcções do meu cargo , nem
o chamamento official, que me arrancaram do meu leito .
O interesse geral, não me preoccupa , porque a minha
dor particular é de uma natureza tão violenta , que rom-
pendo diques , submerge e afoga todas as outras ma-
goas, e é sempre a mesma !

DOGE

De que se trata ?

BRABANCIO

Minha filha ! Oh ! minha filha !

DOGE E SENADORES

Morreu?

BRABANCIO

Sim , para mim . Enganaram -n'a , roubaram-m'a , cor-


romperam -n'a por meio de sortilegios e philtros com-
PRIMEIRO ACTO 27

prados a charlatães . Errar assim tão absurdamente a


natureza, não sendo nem defeituosa, nem cega, nem
falha de intelligencia, não é possivel sem o poder de
feitiços ...

DOGE

Quem quer que seja aquelle que , por tão odioso pro-
cedimento, roubou sua filha a si propria e a seu pae ,
eis o sangrento livro da lei : leia o texto rigoroso e in-
treprete-o a seu talante . Sim ; quando meu proprio filho
estivesse debaixo da sua acção ...

BRABANCIO

Agradeço humildemente a Vossa Graça . Eis o ho-


mem ! É este Mouro que , pelo que parece , o seu man-
dado especial chamou aqui para negocios do estado .

DOGE E SENADORES

Elle ? quanto nos peza !

DOGE (a Othello)

Que tem, para sua defeza , que dizer a isto ?

BRABANCIO

Nada ; a não ser que é assim.

OTHELLO

Mui poderosos , graves e reverendos senhores , meus


muito nobres legitimos e bons amos : tirei a filha a este
ancião; é inteira verdade ; assim como é verdade que
a despozei . Eis toda a essencia e fórma do meu delicto ;
nada mais . As minhas fallas são rudes e pouco feli-
zes nas doces phrases da paz . Desde que estes braços
28 OTHELLO

crearam energia aos sete annos , a não ser estas nove


luas desperdiçadas , empregaram nos acampamentos a
sua mais cara actividade ; pouco posso dizer d'este
vasto mundo, senão o que pertence a feitos d'armas e
batalhas . Assim, pouco advogarei a minha causa , sendo
eu proprio quem falle. Comtudo , pela vossa graciosa
paciencia, contarei completa e sem verniz a historia de
todo o curso do meu amor; com que drogas , com que
feitiços, com que esconjuros , com que poderosa magia
(porque são esses, creio , os maleficios de que me accu-
sam) seduzi a sua filha.

BRABANCIO

Uma donzella tão timida , de espirito tão tranquillo


e repousado , que ao menor movimento de si propria
corava ! Namorar-se , a despeito da natureza , da sua
idade , da sua patria, da sua reputação , de tudo emfim,
namorar-se d'aquillo para que receiava olhar! Só um es-
pirito defeituoso , muito defeituoso , é que poderá con-
fessar, que a perfeição possa errar por tal modo , con-
tra todas as leis da natureza. Devo , portanto , ser levado
a concluir, que só com praticas de arrojo infernal é que
isto podia ser . Affirmo , pois , que foi por meio de phil-
tros actuando poderosamente sobre o sangue , ou d'al-
guma droga adrede preparada , que elle a subjugou .

DOGE

Affirmar, não é provar; são precisos contra elle tes-


temunhos mais amplos e evidentes , do que essas frivo-
las apparencias e fracas verosimelhanças de primeira
impressão .

PRIMEIRO SENADOR

Mas falle , Othello . Foi por meios indirectos e violen-


tos , que subjugou e envenenou as affeições d'essa don-
I

PRIMEIRO ACTO 29

zella ? Ou conseguiu-o pela supplica e por essas hones-


tas perguntas que uma alma dirige a outra alma ?

OTHELLO

Peço que a mande chamar, ao Sagitario ; e ella falle


de mim diante de seu pae . Se pela sua narração me
achar criminoso , retire-me , não só a confiança e car-
gos que me concedeu, mas caia a sua sentença sobre
a minha propria vida.

DOGE

Tragam aqui Desdemona !

OTHELLO

Alferes : conduza-a ; conhece melhor o sitio . (Iago


e officiaes saem) Emquanto ella não chega , vou, tão ver-
dadeiramente como me confesso ao ceu das fraquezas
do meu sangue , com a mesma lealdade , relatar aos
vossos graves ouvidos, como cresci no amor d'essa for-
mosa senhora, como ella cresceu no meu .

DOGE

Falle , Othello .

OTHELLO

Seu pae estimava-me ; convidava-me a meudo ; per-


guntava-me a historia da minha vida, anno por anno ;
as batalhas, os cèrcos , os azares por que passei . Per-
corri tudo desde os dias de infancia, até ao momento
em que me pediu que lh'o referisse . Fallei então dos
acasos mais desastrosos , de commovedores accidentes,
tanto no mar como na terra ; da morte imminente a que
escapei, pela grossura de um cabello , na brecha morti-
fera ; de ter sido prisioneiro d'insolentes inimigos , e
30 OTHELLO

vendido como escravo ; do meu resgate então e do modo


por que me conduzi . Na historia das minhas viagens ,
tive que fallar de antros profundos , aridos desertos ,
rasgadas ravinas, rochedos e montanhas cujos pincaros
tocavam no ceu : tudo lhe relatei. Fallei tambem dos ca-
nibaes que se devoram uns aos outros, dos antropo-
phagos e dos homens , cujas cabeças crescem abaixo dos
hombros. Ao ouvir estas cousas , Desdemona mostra-
va-se seriamente interessada , e quando os negocios de
casa a chamavam, promptamente os aviava ; e , regres-
sando , com golosos ouvidos , devorava as minhas pa-
lavras . Observando isto , aproveitei uma hora propicia,
e achei meio de a obrigar a um pedido do seu ar-
dente coração ; que lhe contasse as minhas peregrina-
ções , de que ella pouco ouvira , apenas parcellas , sem
lhe poder prestar toda a attenção . Consenti, e muitas
vezes lhe arrancava lagrimas , quando referia alguma
catastrophe que me tivesse ferido na mocidade . Termi-
nada que foi a minha historia, retribuiu-me o meu tra-
balho com um mundo de suspiros ; e jurou-me que em
verdade, era extraordinario , mais que extraordinario ,
commovedor, prodigiosamente commovedor; queria não
ter ouvido , mas queria tambem que o ceu a tivesse fei-
to um tal homem! Agradeceu-me e pediu-me , que se
tivesse um amigo que a amasse, lhe ensinasse a con-
tar a minha historia, e isso bastaria para conquistar o
seu affecto . Ouvindo esta insinuação fallei ; - ella ama-
va-me pelos perigos por que passara; eu amava-a por
que se apiedara d'elles . Estes foram os feitiços que em-
preguei . Mas aqui vem a minha senhora, ella que o
ratifique .

Entram DESDEMONA, IAGO e OFFICIAES

DOGE

Creio que uma tal historia seduziria a minha pro-


pria filha. Bom Brabancio , aceite resignado esta causa
perdida. Os homens melhor se servem de armas que-
bradas , do que de braços desarmados !
re
PRIMEIRO ACTO 31

BRABANCIO

Por favor, peço-lhe que a escute . Se ella confessar


que por metade o incitou ao amor, caia sobre mim a
desgraça se dirigir a mais leve palavra de reprovação
ao homem ! Approxime- se , gentil senhora ! ... Vè em
toda esta companhia, aquelle a quem deve mais obe-
diencia ?

DESDEMONA

Meu nobre pae : vejo aqui para mim um duplo de-


ver . Estou-lhe ligada por vida e educação , e a minha
vida e a minha educação , ambas me ensinam quanto o
devo respeitar. Pelo dever lhe pertenço ; até esse ponto
chegam as obrigações de filha. Mas aqui está meu ma-
rido ! e quanta dedicação minha mãe, mostrou a meu
pae , antepondo-o ao seu proprio pac, tanta eu reconhe-
ço dever consagrar, como devida ao Mouro , meu se-
nhor.

BRABANCIO

Deus seja comtigo ; conclui . Queira Vossa Graça


passar aos negocios d'estado . Mais me valera adoptar
uma creança , do que ter uma verdadeira filha ! Appro-
xima-te, Mouro . Aqui te dou de todo o meu coração, o
que, se o não possuisses já , te haveria recusado tambem
de todo o meu coração , para o preservar de ti . Por tua
causa, joia, sinto a alma feliz por não ter outra filha ;
a tua fuga havia de ensinar-me a tyrannia , pondo-lhe
peias. Disse , meu senhor.

DOGE

Deixe-me fallar em seu logar , e proferir uma maxi-


ma que sirva a estes amantes de degrau, e os ajude
a obter o seu favor . Quando não ha remedio, á vista
32 OTHELLO

do peor, acabam as magoas que se apegavam a uma


tardia esperança. Lamentar uma desgraça passada e
já desapparecida, é o melhor meio de attrahir outra
nova desgraça. Quando a fortuna nos toma o que não
pode ser preservado, a paciencia torna a sua injuria
irrisoria. O roubado que sorri, tambem rouba algu-
ma cousa ao ladrão . E roubar-se a si mesmo gastar
uma dor inutil.

BRABANCIO

Assim, se o turco nos roubar Chypre, emquanto po-


dermos sorrir não a teremos perdido ! Recebe bem a
sentença aquelle que nada recebe senão o conforto
gratuito que escutou. Aquelle que recebe a magua
com a sentença , paga a dòr pedindo um emprestimo á
pobre paciencia . Essas sentenças , todas assucar ou to-
das fel, tendo egual força para ambos os lados , são
equivocas. Palavras são apenas palavras ; mas nunca
ouvi dizer que o coração despedaçado se deixasse mo-
ver pelo ouvido . Peço-lhe humildemente, que continue-
mos com os negocios d'estado .

DOGE

O turco dirige- se contra Chypre com poderosa expe-


dição . Othello : ninguem conhece melhor a força d'aquel-
la praça. Assim, posto que ali tenhamos um delegado
de reconhecida capacidade , a opinião , a mais sobera-
na senhora dos factos , o acclama como chefe de maior
confiança . Cumpre portanto que se resigne , a attenuar
o brilho da sua nova fortuna com esta rude e violenta
expedição!

OTHELLO

Mui graves senadores : o costume tyranno fez do leito.


de pedras e d'aço da guerra , para mim o mais fofo lei-
to de pennas. Reconheço que só encontro uma natural
PRIMEIRO ACTO 33

e prompta alegria nos trabalhos . Encarrego-me da pre-


sente guerra contra os ottomanos . Por isso, inclinan-
do-me humildemente perante o vosso Estado , peço que
se tomem para com minha mulher convenientes disposi-
ções relativamente á cathegoria e representação , bem
como sequito e morada á altura do seu nascimento .

DOGE

Se for do seu gosto, póde ir para casa de seu pae .

BRABANCIO

Não consinto !

OTHELLO

Nem eu!

DESDEMONA

Nem eu. Não quereria ali residir, para não inspirar


a meu pae sentimentos de impaciencia, tendo -me diante.
dos olhos . Mui gracioso Doge : preste ás minhas expli-
cações ouvidos propicios , e encontre eu nas suas pa-
lavras protecção para mim .

DOGE

Que deseja pois , Desdemona?

DESDEMONA

Amei bastante o Mouro para viver com elle . O ar-


rojo do meu procedimento e as tempestades da fortuna
podem-n'o proclamar ao mundo . O meu coração sub-
metteu-se mesmo, á posição de meu marido . Foi no
genio d'Othello que vi o seu rosto ; e foi ás suas honradas
e valentes qualidades que consagrei alma e destino .
Tambem, caros senhores, so aqui me deixassem chrysa-
3
34 OTHELLO

lida de paz , em quanto elle parte para a guerra , rouba-


vam-me as provas pelas quaes o amo, e padeceria uma
fastidiosa interinidade pela sua saudosa ausencia. Con-
sintam que eu parta com elle .

OTHELLO

Dae-lhe o consentimento . Affirma comigo, ó ceu ! que


vol-o não peço para lisongear o paladar do meu ape-
tite, ou para obedecer ás ardencias do amor (os affectos
juvenis estão mortos em mim ! ) ou para satisfação de
amor proprio, mas para acceder franca e plenamente
ao seu desejo . Livre o ceu as vossas boas almas de
pensarem que eu podesse desprezar os vossos serios e
importantes negocios , tendo-a comigo ! Se alguma vez
os jogos voluveis do alado Cupido vendassem, com uma
lasciva estulticia, as minhas faculdades de pensamento
e de acção; se os divertimentos corrompessem e vicias-
sem os meus deveres , fizessem as donas de casa do
nieu elmo uma escudella , e oppuzessem-se á minha re-
putação todas as adversidades indignas e vis .

DOGE

Decidam, entre si , se deve partir ou ficar. O negocio.


reclama pressa , e é preciso responder de prompto .

PRIMEIRO SENADOR

Deve partir esta noite .

OTHELLO

Com mil vontades .

DOGE

Ás nove da manhã reunir-nos-hemos outra vez aqui.


Othello: deixe um official ; levar-lhe-ha a sua nomeação
PRIMEIRO ACTO 35

e todas as concessões de titulos e honras que lhe são


inherentes .

OTHELLO

Se apraz a Vossa Graça , será o meu alferes : é ho-


mem de honestidade e de confiança . É elle que eu en-
carrego de acompanhar minha mulher, e de me entre-
gar tudo quanto Vossa Graciosa Senhoria julgar con-
veniente mandar-me .

DOGE

Seja assim. Boas noites a todos . (a Brabancio ) E ,


nobre senhor : se é certo que á virtude , não falta o en-
canto da belleza, tem um genro que é mais bello do
que negro .

PRIMEIRO SENADOR

Adeus, valente Mouro . Trate bem Desdemona!

BRABANCIO

Vigia-a bem , Mouro , se tens olhos para vêr. Enga-


nou seu pae, poderia enganar-te tambem a ti. (O Doge
e os Senadores e officiaes saem. )

OTHELLO

A minha vida pela sua fé ! -Honesto Iago : deixo-te a


minha Desdemona ; peço-te que tua mulher a acom-
panhe ; e tral-as , apenas tenhas occasião propicia. Vem,
Desdemona; apenas uma hora de amor , para conversar-
mos e fazer-te as minhas recommendações , posso gas-
tar comtigo . Somos escravos do tempo . (Othello e Des-
demona saem. )

RODRIGO

Iago ?
36 OTHELLO

IAGO

Que dizes tu, nobre coração ?

RODRIGO

Que pensas que vou fazer?

IAGO

Deitar-te na cama e dormir.

RODRIGO

Vou-me afogar sem detença .

IAGO

Se o fizeres, como poderei depois ser teu amigo ?


Mas porque, imbecil ?

RODRIGO

Imbecilidade é viver , quando a vida é um tormento .


Temos por prescripção morrer, quando a morte é o
nosso medico .

IAGO

Covarde. Ha quatro vezes sete annos que observo o


mundo ; e desde que pude differençar um beneficio d'uma
injuria, nunca achei homem que se soubesse estimar a
si mesmo . Antes do que afogar-me por amor d'uma
gança, quereria trocar a minha humanidade com um
macaco .

RODRIGO

Que heide eu fazer ? Confesso que é vergonha amar


tanto , mas a minha virtude não o póde remediar .
PRIMEIRO ACTO 317

IAGO

Virtude ? uma figa ! Depende da nossa vontade , ser


d'um ou d'outro feitio . Os nossos corpos são nossos
jardins de que as nossas vontades são os jardineiros .
Assim, se plantarmos ortigas ou semearmos alfaces ,
plantarmos hysopes, ou mondarmos tomilho ; se culti-
varmos uma só especie de hervas ou confundirmos mui-
tas ; se ficarem estereis pela preguiça , ou pingues pelo
trabalho , é porque o poder e a auctoridade correctiva es-
tão na nossa vontade. Se a balança das nossas vidas ,
não tivesse a concha da razão para contrapór á da sen-
sualidade , o sangue e a baixeza dos nossos instinctos.
levar-nos -hiam ás mais absurdas conclusões . Mas nós
temos a razão para acalmar as nossas paixões furiosas ,
os nossos apetites carnaes e a nossa concupiscencia in-
saciavel . D'onde concluo que aquillo que chamas amor
é uma estaca ou um rebento .

RODRIGO

Não pode ser assim .

IAGO

O amor não é mais do que a luxuria do sangue e


uma concessão da vontade. Vamos , sè homem. Queres
afogar-te ? Tu ! afoga os gatos e os cachorrinhos ce-
gos . Fiz profissão de ser teu amigo , e confesso-me li-
gado ao teu serviço com amarras de tenacidade dura-
doura . Nunca te poderei ajudar mais do que n'este mo-
mento . Mette dinheiro na bolsa ; acompanha a guerra ;
disfarça a tua physionomia com uma barba postiça ; repi-
to -te , mette dinheiro na bolsa ! É impossivel que Des-
demona teime por muito tempo no seu amor pelo Mou-
ro. Põe dinheiro na bolsa ; e elle no seu amor por ella .
A estreia foi violenta, a retirada será correspondente ,
vèl-o-has . Mas mette dinheiro na bolsa . Estes mouros
38 OTHELLO

teem vontade mudavel . Enche a bolsa de dinheiro . O


sustento que ora é para elle mais doce do que a alfar-
roba, tornar-se-ha mais amargo do que a coloquintida .
Em quanto a ella, sendo tão joven, forçoso é que mu-
de. Logo que se tenha saciado do seu corpo , reconhe-
cerá o erro da sua escolha. Forçoso é que mude ; as-
sim deve ser. Por isso , mette dinheiro na bolsa. Se te
queres condemnar, descobre um meio mais delicado do
que o de te afogares ; junta quanto dinheiro poderes . Se
um falso escrupulo e um fragil juramento trocado en-
tre um barbaro errante e uma astutissima veneziana ,
não forem barreira demasiado difficil para o meu genio
e para toda a tribu do inferno , has-de gosar essa mu-
Ther ; portanto , ajunta dinheiro . Para longe a peste de
te afogares ! Nem fallar mais n'isso . Procura antes ser
inforcado, conseguindo a tua ventura, do que afoga-
res-te sem a conseguir .

RODRIGO

E tu favorecerás resolutamente as minhas esperan-


ças, se me decidir a emprehender a sua realisação ?

IAGO

Conta comigo . Agora vae procurar dinheiro . Disse-


te muitas vezes , e outra e mais outra vez te repito :
odeio o Mouro. A minha causa é do coração ; a tua
não é somenos . Liguemo-nos , para a vingança , contra
elle . Se lhe poderes lograr a esposa , será para ti um
prazer e para mim um divertimento. Bem prenhe está
o tempo de notaveis acontecimentos, que tem de pa-
rir. Ávante, pois ! arranja dinheiro. Ámanhã tornaremos
a fallar do assumpto . Adeus .

RODRIGO

Aonde nos encontraremos ámanhã ?


PRIMEIRO ACTO 39

!
IAGO

Em minha casa !

RODRIGO

Lá estarei cédo .

IAGO

Vac-te. Adeus . Ouve , Rodrigo !

RODRIGO

Que dizes?

IAGO

Nada de te afogares , ouviste ?

RODRIGO

Estou completamente mudado ; vou vender todas as


minhas terras .

IAGO

Então , adeus . Mette bastante dinheiro na bolsa. (Ro-


drigo sae) Assim , faço d'este meu tolo a minha bolsa .
Seria profanar o thesouro da minha experiencia gastar
o meu tempo com um tal imbecil , sem colher proveito
e prazer. Odeio o Mouro . E ha quem diga que entre os
meus lençoes exercera o meu logar . Ignoro se é verda-
de ; mas uma simples suspeita a este respeito me fará
obrar como se fosse certo . Elle tem-me em boa conta .
Melhor trabalhará n'elle o meu proposito . Cassio é o
homem proprio ... Vejamos , pois : obter o seu logar e
mascarar a minha vontade , por dupla fraude . Como ?
40 OTHELLO

como ? vejamos sempre. No fim d'algum tempo , engano


os ouvidos d'Othello , insinuando que Cassio é demasiado
familiar com sua mulher . Cassio tem boa presença , mo-

dos agradaveis , que se prestam a uma suspeita e , sobre


tudo , de molde para tornar as mulheres infieis . O Mou-
ro é franco e leal por natureza ; crè os homens honra-
dos por pouco que o pareçam; será tão facil guial-o
pelo nariz , como se guia um burro pelo cabresto . O
meu plano já o concebi ! Cumpre que o inferno e a noite
produzam á luz do mundo esse monstruoso embrião .
(Sae.)

FIM DO PRIMEIRO ACTO


ACTO II

SCENA I

Uma cidade, porto de mar em Chypre

Entram MONTANO e dois HABITANTES


dos principaes de Chypre

ΜΟΝΤΑΝΟ

Podem descobrir do cabo alguma cousa no mar?

PRIMEIRO HABITANTE

Absolutamente nada . Estão as ondas tão encapella-


das , que entre o mar e o ceu, me é impossivel desco-
brir uma vela .

ΜΟΝΤΑΝΟ

Parece-me que o vento tem fallado alto em terra .


Nunca mais rijo vendaval açoitou as nossas muralhas .
Se tem sido tão insolente rufião no mar, quaes as ca-
vernas de carvalho , que poderiam resistir nas escarvas
ao embate d'estas montanhas em fusão ? Que resultará
d'isto ?

SEGUNDO HABITANTE

A dispersão da esquadra turca. Basta observar da


praia espumosa ! Parece que as ondas convulsionadas
42 OTHELLO

açoitam as nuvens ; a vaga sacudindo ao vento a sua


alta e monstruosa juba parece arremessar agoa sobre a
Ursa ardente e apagar as guardas do polo immutavel !
Eu nunca vi agitação tão extraordinaria em mar em-
bravecido !

ΜΟΝΤΑΝΟ

Se a esquadra turca se não refugiou e acoitou em


bahia segura , sossobrou . É-lhe impossivel resistir.

Entra um terceiro HABITANTE

TERCEIRO HABITANTE

Novidades, rapazes ! As nossas guerras estão aca-


badas . Esta desesperada tempestade de tal modo des-
troçou os turcos , que os seus projectos se mallogra-
ram : um pujante navio vindo de Veneza presenciou o
afflictivo naufragio e a ruina da maior parte da sua es-
quadra.

ΜΟΝΤΑΝΟ

Como? será verdade ?

TERCEIRO HABITANTE

O navio já aqui fundeou ; é veronez . Miguel Cassio ,


tenente do bellicoso Mouro , Othello , acaba de desem-
barcar. O proprio Mouro está no mar, e vem a Chy-
pre com plenos poderes .

ΜΟΝΤΑΝΟ

Muito folgo ; é um digno governador.

TERCEIRO HABITANTE

Mas este mesmo Cassio , posto falle com satisfação


do destroço dos turcos, mostra-se comtudo afflicto e
SEGUNDO ACTO 43

faz votos pela salvação do Mouro ; porque foram sepa-


rados pela horrivel e tremenda tempestade .

ΜΟΝΤΑΝΟ

Peçam aos ceus que venha a salvamento ; porque


servi debaixo das suas ordens , e o homem sabe com-
mandar como um perfeito soldado - Olá ! - desçamos
á praia, tanto para vermos o navio que entrou , como
para procurarmos com a vista o bravo Othello até onde
confundamos o mar com o ceu azul .

TERCEIRO HABITANTE

Vamos , vamos ! cada minuto é a expectativa de no-


vas chegadas .

Entra CASSIO

CASSIO

Ao valente d'esta ilha guerreira agradeço o con-


ceito que faz do Mouro ! Oh ! que os ceus o protejam
contra os elementos , que eu perdi-o de vista em bem
perigoso mar!

ΜΟΝΤΑΝΟ

Está elle bem embarcado ?

CASSIO

O seu navio é solidamente construido , e o piloto ex-


perimentado e de reconhecida competencia . Por isso as
minhas esperanças não estão mortas ; vão em rapida
convalescença .

(Fóra) Uma vela , uma vela, uma vela !!


44 OTHELLO

Entra quarto HABITANTE

CASSIO

Que rumor é este ?

QUARTO HABITANTE

A cidade está deserta ; na praia vèem-se linhas de


povo gritando uma vela !

CASSIO

Ás minhas esperanças afigura-se que é o governa-


dor.

SEGUNDO HABITANTE

É salva de cumprimento ; em todo o caso são ami-


gos. (Ouvem-se tiros. )

CASSIO

Vá, peço-lhe , senhor ; vá depressa e volte com a no-


ticia exacta de quem chegou .

SEGUNDO HABITANTE

Lá vou ! (Sae. )

MONTANO

Ora diga-me, meu bom tenente : o seu general ca-


sou?

CASSIO

E muito bem. Conquistou uma donzella que póde


desafiar todos os confrontos e vencer os encarecimen-
SEGUNDO ACTO 45

tos da mais encomiastica fama ; que, ao formar o con-


juncto das suas perfeições naturaes, se cançou o Crea-
dor.

Torna a entrar o segundo HABITANTE

Então quem chegou ?

SEGUNDO HABITANTE

Um Iago , alferes do general !

CASSIO

Teve elle uma feliz e rapida viagem. As proprias


tormentas, as ondas elevadas, e ventos bramidores ,
os rochedos carcomidos e os bancos de areia , traido-
res sumidos para prenderem a quilha inoffensiva, como
se tivessem o instincto do bello , escondem as suas in-
doles mortiferas , deixando passar să e salva a divina
Desdemona.

ΜΟΝΤΑΝΟ

Quem é essa mulher ?

CASSIO

Aquella de quem fallava. O capitão do nosso grande


capitão. A que foi confiada aos cuidados do destemido
.
Iago, cuja chegada aqui se antecipou sete dias aos
nossos calculos . Grande Jove ! protege Othello e infuna
a sua vela com o teu sopro potente ! Possa elle honrar
esta bahia com o seu altivo navio ; faze que os crebros
anhelitos do amor nos braços de Desdemona renovem
o fogo dos nossos extinctos brios e tragam conforto a
toda a Chypre . Oh ! vejam !
46 OTHELLO

Entram DESDEMONA, EMILIA, IAGO, RODRIGO e COMITIVA

As riquezas do navio já são desembarcadas . Habi-


tantes de Chypre : de joelhos diante d'ella . Saudamos- te,
Senhora ; e a graça do ceu , acompanhando-te sempre,
te abrace por todos os lados .

DESDEMONA

Obrigada, valente Cassio ; que novas me póde dar


do meu Senhor ?

CASSIO

Ainda não chegou e nada sei, a não ser que está


bem e que em breve aqui será.

DESDEMONA

Ai ! mas eu tenho receio ! Como se separaram ?

CASSIO

Separou-nos a grande lucta d'entre o mar e os ceus!


Mas escute : - Uma vela !!

(Gritos de fóra)

Uma vela ! Uma vela !! ( Ouvem-se tiros de peça. )

SEGUNDO HABITANTE

Salvam a cidadella ; este é tambem amigo .

CASSIO

Vão saber noticias . (Sae o segundo habitante .)


Bom alferes : bemvindo seja; bemvinda, Senhora , ( a
Emilia) Não se azede a sua paciencia, bom Iago , com
SEGUNDO ACTO 47

o exagero das minhas maneiras ; é a minha educação


que me consente esta ousada amostra de cortezia. (Bei-
jando-a.)

IAGO

Se para o Senhor ella fosse tão prodiga dos seus


labios , como da sua lingua , ás vezes , é para mim , de-
pressa se daria por satisfeito .

DESDEMONA

Ah ! ella nem lingua tem .

IAGO

Até de mais , por minha fé ; conheço-o até quando


tenho vontade de dormir ! Concedo que diante de Vossa
Senhoria ella recolha a lingua e se resigne a ralhar
mentalmente .

EMILIA

Poucos motivos tem para fallar assim.

IAGO

Vamos , vamos ! as mulheres são umas pinturas a


fóra de portas , campainhas nos salões, gatos bravos
nas cozinhas , santas nas injurias que proferem, demo-
nios sendo offendidas , brincalhonas nos trabalhos do-
mesticos, e trabalhadoras na cama.

DESDEMONA

Tem vergonha, calumniador !

IAGO

Se isto não é verdade, turco seja eu ! Levantaes-vos


para brincar, e deitaes-vos para trabalhar .
48 OTHELLO

EMILIA

Não ha de escrever o meu elogio .

IAGO

Não ! não me encarreguem d'isso .

DESDEMONA

Que escreverias tu de mim se tivesses que fazer o


meu elogio ?

IAGO

Oh! gentil dama ; não me obrigue a isso , porque eu


nada sou, a não ser critico .

DESDEMONA

Vamos , experimenta ! - Já foi alguem ao posto ?

IAGO

Já , senhora .

DESDEMONA

Eu não estou alegre , mas illudo o que sinto , pare-


cendo o que não sou . Vamos , como farias o meu elogio ?

IAGO

Estou pensando n'isso ; mas na verdade a minha


inspiração apega-se-me á cabeça , como grude a um
panno crespo e arranca miolos e tudo ; porém a minha
muza está em gestação e eis que o vae dar á luz : Se é
bella e sisuda , belleza e juizo , uma para nosso uso, ou-
tro para uso d'ella .
SEGUNDO ACTO 4961

DESDEMONA

Bonito elogio ! E se for negra e graciosa ?

IAGO

Se for preta e tiver graça achará um branco a quem


a sua negrura convenha.

DESDEMONA

De mal a peor !

EMILIA

E se for formosa e pobre de espirito ?

IAGO

Nunca houve mulher formosa que fosse estupida ,


porque até a sua tolice a ajuda a arranjar herdeiro .

DESDEMONA

Isso são velhos e festejados paradoxos para fazer


rir os tolos nos botequins . Que miseravel elogio reser-
vas tu para a que for torpe e nescia?

IAGO

Nenhuma ha tão torpe e nescia ao mesmo tempo ,


que não pratique as mesmas torpes extravagancias que
praticam as bellas e prudentes .

DESDEMONA

O' crassa ignorancia ! tu elogias a peor como se


fosse a melhor. E que louvor poderias tu consagrar a
5
50 OTHELLO

uma mulher verdadeiramente digna? mulher que forte


na auctoridade do seu merito , o fizesse confessar á pro-
pria malignidade ?

IAGO

A que sendo sempre bella, nunca foi altiva ; que


tendo a palavra facil, nunca foi tagarella; que nadando
em ouro, nunca foi ostentosa ; que resiste ás tentações
dizendo comtudo eu podia; -que estando encolerisa-
da, e tendo á mão a vingança, manda á sua affronta de-
ter-se e ao seu descontentamento fugir ; aquella cujo
criterio nunca foi tão fraco que trocasse a cabeça do
bacalhau pelo rabo do salmão ; a que sendo susceptivel
de pensar nunca patenteasse o pensamento; a que ven-
do -se seguida por algum pretendente nunca olhasse
para traz : -esta era uma mulher, se taes mulheres hou-
vesse .

DESDEMONA

Para fazer o què ?

IAGO

Para amamentar tolos , e fazer os roes d'uma ta-


berna.

DESDEMONA

O' coxissima e inepta conclusão ! Não aprendas nada


d'elle , Emilia, com quanto seja teu marido . Que diz,
Cassio? não é elle um profanissimo e licencioso censor ?

CASSIO

Falla sem ceremonia , senhora. Mais ha de aprecial-o


como soldado de que como academico .
15
SEGUNDO ACTO 51

IAGO (á parte)

Pega-lhe na mão ! Bravo ! boa linguagem ! -segre-


dos ! Com uma tão pequena teia de aranha como esta
envolverei uma mosca do tamanho de Cassio . Ah ! sor-
ri-lhe ! continúa ! eu te agrilhoarei com os teus proprios
galanteios . Dizes bem, assim é na verdade ! Se por
estes manejos te tirarem o posto de tenente , melhor
fora que não tivesses beijado os teus tres dedos , tão a
miudo , o que estás agora muito disposto a repetir para
representar de galanteador. Muito bem, gentilmente
beijado, excellente cortezia ! Assim é na verdade . Ainda
outra vez os teus dedos aos labios ? mais te valera que
fossem pipos de seringa ! (Ouve-se um clarim.)
O Mouro ! conheço o seu clarim .

CASSIO

É com effeito .

DESDEMONA

Vamos ao seu encontro, vamos recebel-o .

CASSIO

Eil-o que chega .

Entram OTHELLO e COMITIVA

OTHELLO

O' minha formosa guerreira !

DESDEMONA

Meu querido Othello .


74
52

OTHELLO
OTHELLO

Causa-me admiração egual ao meu contentamento


vêl-a diante de mim, ó alegria da minha alma ! Se a to-
das as tempestades succedem calmas como esta , podem
os ventos soprar até acordarem a morte , e a açoitada
barca trepar serras de mar, altas como o Olympo e
mergulhar de novo tão fundo quanta é a distancia do
inferno ao ceu ! Se me coubesse agora morrer, quão
feliz seria se fosse n'este momento ; porque receio que
possuindo a minha alma uma satisfação tão completa ,
nenhuma ventura egual lhe succeda , no futuro desco-
nhecido .

DESDEMONA

Os ceus não permittam que os nossos amores e


venturas deixem de augmentar como augmenta a nossa
idade .

OTHELLO

Amen a vossa prece, ó suave poder ! Não posso ex-


primir bastante este contentamento ; detem- se-me aqui ;
é demasiada alegria ; e este e este (beija-a) sejam as
maiores desharmonias , agora e sempre , que os nossos
corações levantem!

IAGO

Oh ! está bem afinado agora ; mas eu desandarei as


caravelhas do instrumento que dá esta musica , ou não
sou honesto .

OTHELLO

Vamos , dirijamo-nos para o castello . Novidades ,


amigos : as nossas guerras são findas ; os turcos afoga-
3333
SEGUNDO ACTO 53

ram -se ; que será feito dos meus antigos conhecidos


d'esta ilha? Doce amiga : has de ser muito festejada em
Chypre. Encontrei muita affeição nos seus habitantes , ó
meu doce amor ! Fallo sem nexo , deliro no meu conten-
tamento . Peço -te, bom Iago , que vás á bahia e faças
desembarcar os meus cofres : traze o piloto á cidadella ;
é um bom marinheiro e o seu merito impõe muito res-
peito . Vamos , Desdemona . Ainda uma vez , que feliz
fui em já te encontrar em Chypre ! (Saem Othello, Des-
demona e comitiva .)

IAGO

Vem d'aqui a pouco ter comigo á bahia . - Anda cá :


-Se és valente, e dizem que homens baixos , estando
namorados , adquirem maior galhardia, do que a que
lhes é natural , escuta-me . O tenente está esta noite
de serviço no corpo da guarda ; mas primeiro preciso
dizer- te isto : Desdemona está positivamente namorada
d'elle .

RODRIGO

D'elle? Como?! não é possivel .

IAGO

Põe o teu dedo assim , e deixa que a tua alma seja


instruida . Repara com que violencia , ella primeiro amou
o Mouro, sómente pela sua jactancia e phantasiosas
mentiras . Amal-o-ha ella ainda pelo seu palavriado?
Não deixes que o pense o teu discreto coração . Os seus
' olhos precisam de alimento ; e que deleite poderá ella
ter em olhar para o diabo ? - Quando o sangue está en-
torpecido pela acção dos deleites , deveria haver - para
outra vez o inflammar e saciar, - um novo appetite , —
belleza que ajudasse , harmonia d'idade , maneiras e en-
cantos ; tudo isto falta ao Mouro . Á mingoa d'estes re-
quisitos essenciaes, a sua delicada ternura se achará
54 OTHELLO

illudida ; começará a sentir nauseas, a enjoar- se e a


aborrecer o Mouro. A propria natureza a instruirá no
assumpto e a compellirá a uma segunda escolha . Agora ,
posto isto , (e é uma supposição a mais fecunda e natu-
ral) , quem está tão imminente nos degraus d'esta for-
tuna como Cassio ? -um biltre extremamente voluvel, -
com tanta capacidade quanta basta para se envolver
nas formas polidas e decentes , com que melhor possa
encobrir o seu obsceno e libertino affecto ? Ninguem,
com certeza ninguem , um subtil e insinuante patife ,
um farejador de occasiões , que tem olhos capazes de
publicar e simular quando mesmo taes fortunas nunca
se deram ; um indiabrado velhaco ! Além d'isso , o patife
é bonito , novo e tem todos os requisitos que a doudice
e a imaginação inexperiente procuram. Um biltre com-
pleto , pestilento ; e a mulher já está eivada.

RODRIGO

Não posso crer isso d'ella ; é dotada das mais aben-


çoadas qualidades .

IAGO

Abençoadas ? figas ! o vinho que bebe é feito d'uvas .


Se ella fosse abençoada nunca teria amado o Mouro .
Abençoado podim ! Não a viste affagar a palma da mão .
de Cassio ? Não o notaste ?

RODRIGO

Sim , notei ; mas isso não era senão cortezia .

IAGO

Luxuria ! por esta mão ! - Um indice e o obscuro


prologo para a historia da concupiscencia e dos pensa-
mentos obscenos . Os seus labios aproximaram- se tanto ,
que os seus halitos se abraçaram. Pensamentos vilões ,
SEGUNDO ACTO 55

Rodrigo ! Quando estas reciprocidades rompem a mar-


cha, vem-lhe no encalço o grande e positivo commetti-
mento e a conclusão carnal. Ah ! (com desprezo ) -Mas
Senhor, deixe-se guiar por mim. Trouxe-o de Veneza .
Entre de guarda esta noite , eu lhe confiarei o comman-
do . Cassio não o conhece e eu estarei perto . Procure
occasião de impacientar Cassio , ou fallando alto de
mais, ou desdenhando da sua disciplina, ou por qual-
quer outro meio que lhe pareça melhor e as circums-
tancias de momento lhe suggerirem .

RODRIGO

Bem .

IAGO

Elle é arrebatado , muito depressa se encolerisa , e


talvez que lhe bata ; provoque-o para que o faça , por-
que d'isso tirarei motivo para amotinar Chypre , cuja ir-
ritação não se applacará senão com a demissão de Cas-
sio. Assim, encurtará a jornada aos seus desejos , pelos
meios que hei de ter então para os secundar, afastado
felizmente o estorvo , sem o que não haveria esperança
de victoria.

RODRIGO

Fal-o -hei, se me favorecer a opportunidade.

IAGO

Affianço-t'a eu . Vem ter comigo d'aqui a pouco á ci-


dadella . Agora, preciso ir buscar a sua bagagem para
terra. Adeus !

RODRIGO

Adeus . (Sae. )
56 OTHELLO

IAGO

Que Miguel Cassio a ama, positivamente o creio ;


que ella ame Cassio é possivel e muito para acreditar.
O Mouro, posto que eu o não possa tragar, é dotado
d'uma constancia affectiva e de indole nobre ; e atrevo-
me a pensar que, para Desdemona, um mui terno es-
poso . Agora, eu amo-a tambem, não absolutamente por
lascivia (ainda que eu talvez seja responsavel por um
não menos grande peccado ) , mas em parte com o in-
tento de alimentar a minha vingança, porque suspeito
que o libidinoso Mouro occupou o meu logar, e este só
pensamento me roe as entranhas como um veneno mi-
neral , e nada póde nem poderá contentar a minha alma,
emquanto não estiver de egual a egual com elle, mulher
por mulher ; ou , falhando isto, que incuta ao Mouro , ao
menos , ciumes tão violentos , que o bom senso os não
possa curar. Para o conseguir, se este idiota de Veneza,
que desprézo , se deixar embair pela soffreguidão e es-
tiver pelos autos , terei o nosso Miguel Cassio em meu
poder, e infamal-o-hei perante o Mouro pelo seu proce-
dimento , porque imagino que Cassio já usou o meu bar-
rete de dormir . Quero que o Mouro me agradeça , me
estime e me recompense por fazel-o egregiamente um
asno, e ter perturbado a sua paz e socego , até o ensan-
decer. É este o meu plano, mas ainda confuso . Nunca
se vè descoberta a cara á velhacaria, senão quando já
a obra está consummada . (Sae. )

SCENA II

Uma rua

Entra um ARAUTO com uma proclamação. - Povo seguindo-o

ARAUTO

É do agrado d'Othello , nosso nobre e valente gene-


ral , que em consequencia de noticias certas chegadas
SEGUNDO ACTO 57

agora, referindo a completa destruição da esquadra


turca, todos triumphalmente as festejem, uns com dan-
ças, outros com fogueiras , cada qual com aquelles di-
vertimentos e folgares que a sua inclinação lhe indicar ;
porque além d'estas beneficas novas é a celebração das
suas nupcias : o que foi da sua vontade vos fosse pro-
clamado . Todas as casas de venda estarão francas e ha
inteira licença de folgarem desde este momento , cinco
horas , até que o sino dè as onze . O ceu abençoe a ilha
de Chypre e o nosso nobre general Othello .

SCENA III

Uma sala do castello

Entram OTHELLO, DESDEMONA, CASSIO e SEQUITO

OTHELLO

Bom, Miguel: vigie pela guarda esta noite, e ensine-


mo-nos a nós mesmos onde decorosamente devemos
parar, para não ultrapassar a prudencia .

CASSIO

Iago tem instrucções sobre o que ha de fazer ; eu


porém , apezar d'isso , vigiarei o serviço pelos meus pro-
prios olhos .

OTHELLO

Iago é muito honesto . Boas noites, Miguel. Áma-


nhã, o mais cedo que puder, venha fallar-me. (áparte
a Desdemona) Vamos , querido amor ; feita a acquisição ,
devem seguir-se os fructos, e esse provento ainda se
não deu entre ti e mim. Boas noites . (Saem Othello,
Desdemona e sequito . )
6
58 OTHELLO

Entra IAGO

CASSIO

Bem vindo , Iago , temos que entrar de serviço .

IAGO

Por ora não , tenente , ainda não são dez horas . O


nosso general despediu-nos tão cedo por amor da sua
Desdemona, a quem não accusamos, ainda assim ; elle
ainda não gosou uma noite com ella, e ella é uma peça
de caça digna de Jupiter.

CASSIO

É uma deliciosa mulher.

IAGO

Eu afianço -a cheia de attractivos .

CASSIO

É, na verdade , uma creatura muito mimosa e deli-


cada.

IAGO

Que olhos que tem ! afiguram-se-me uns parlamenta-


rios da provocação .

CASSIO

Olhos tentadores , e comtudo julgo-a verdadeiramen-


te modesta .

IAGO

E quando falla, não é um rebate de amor ?


69
SEGUNDO ACTO 59

CASSIO

É na verdade a perfeição .

IAGO

Felizes os seus lençoes ! ... Vamos , tenente , tenho


um pichel de vinho e aqui fóra está um par de rapazes
de Chypre, que de boa vontade beberiam um trago á
saude do negro Othello ..

CASSIO

Não esta noite , bom Iago ; tenho uma cabeça fraca


e desgraçada, para beber ; desejaria bem que a cortezia
inventasse alguma outra maneira de entreter- se .

IAGO

São nossos amigos ; só uma taça ; eu beberei por si .

CASSIO

Só uma taça bebi esta noite e essa mesma cautelo-


samente baptisada , e veja que alteração me produziu !
Tenho a desgraça d'essa enfermidade , e não me atrevo
a pôr á prova a minha fraqueza , bebendo mais .

IAGO

Que homem ! esta é uma noite de festa ; os rapazes


estão desejosos .

CASSIO .

Onde estão elles ?

IAGO

Aqui á porta. Peço-lhe que os faça entrar.


08
60 OTHELLO

CASSIO

Vá lá , mas faço-o com repugnancia. (Sae.)

IAGO

Se consigo impingir-lhe uma só taça, com aquella


que bebeu já esta noite , ficará tão offensivo e brigão
como o cão da minha joven amante. Agora, o meu en-
joado tonto , Rodrigo , que o amor quasi virou do avesso ,
tem visto o fundo aos picheis, emborcando-os á saude
de Desdemona ; tem que entrar de serviço : tres rapazes
de Chypre, d'espiritos nobres e altanados, que manteem
a sua dignidade a circumspecta distancia, elementos
proprios d'esta ilha guerreira, e que tenho aquecido esta
noite com taças successivas, tambem entram de guar-
da. Entre este rebanho de ebrios , tenho que levar Cas-
sio a algum acto que possa escandalisar a ilha : eil- os ;
se o resultado coroa o meu sonho , a minha barca nave-
gará á vontade com vento e maré.

Tornam a entrar CASSIO seguido de MONTANO, SENHORES


e CREADOS com vinho

CASSIO

Por Deus, que já me deram um copo cheio !

ΜΟΝΤΑΝΟ

Por minha fé , bem pequeno ; não passou d'um quar-


tilho , tão verdade como eu ser soldado !

IAGO

Mais vinho , ó lá ! (Canta.)

Deixem-me o copo bater ;


Deixem-me o copo bater ;
Homens somos, os soldados ;
A vida, instantes contados ;
Soldados , eia ! a beber.

Vinho, rapazes !
SEGUNDO ACTO 61

CASSIO

Por Deus , uma excellente cantiga.

IAGO

Aprendi-a em Inglaterra , onde na verdade ha valen-


tes bebedores . O dinamarquez , o allemão , o bojudo hol-
landez , nada são , - vamos , bebam, - á vista do inglez .

CASSIO

É pois o inglez mestre em beber ?

IAGO

Pois então ? Elle, bebendo , põe com facilidade o di-


namarquez a cahir de bebedo ; não súa para prostrar o
allemão ; faz vomitar o hollandez antes de encher um
segundo pichel !

CASSIO

Á saude do general .

MONTANO

Acompanho esse brinde , tenente , e applaudo -o .

IAGO

O' doce Inglaterra !!

O Rei Estevam era um bom parceiro ;


Custavam-lhe uma c'roa os seus calções !
Inda assim não pagava, sem primeiro
Tratar os alfaiates de- ladrões.

Gosou de grande fama essa existencia ;


E tu és d'uma baixa condição .
Perde o orgulho as nações. Por consequencia
Na velha capa embuça-te, vilão.

Mais vinho, rapazes !


62 OTHELLO

CASSIO

Mas esta é uma canção ainda mais exquisita do que


a outra !

IAGO

Quer ouvil-a outra vez ?

CASSIO

Não, porque considero indigno do seu logar aquelle


que taes cousas faz . Bem ! - Deus está acima de tudo
-e ha almas que precisam de ser salvas, e ha almas
que não precisam de ser salvas .

IAGO

É verdade , bom tenente.

CASSIO

Pela minha parte, sem offensa do general, nem de


nenhum homem de qualidade , espero ser salvo .

IAGO

E eu tambem, tenente .

CASSIO

Sim, mas, se me dá licença, não antes de mim. O


tenente deve salvar-se primeiro que o alferes . Acabemos
com isto ; vamos ás nossas obrigações . - Perdoae-nos ,
Senhor, os nossos peccados . - Senhores ! Vamos ás
nossas obrigações . Não pensem , senhores , que estou
bebedo ; este é o meu alferes , esta a minha mão direita
e esta a minha mão esquerda . - Eu não estou bebedo
SEGUNDO ACTO 63

agora, sustento -me em pé soffrivelmente, e fallo tam-


bem menos mal.

(Todos) Muitissimo bem !

CASSIO

Pois n'esse caso muito bem! - Não pensem então


os senhores que estou bebedo . ( Sae.)

ΜΟΝΤΑΝΟ

Para a plataforma, senhores , vamos collocar as sen-


tinellas .

IAGO

Viu este camarada que sahiu primeiro ? é um sol-


dado capaz de estar ao lado de Cesar, e de mandar ;
mas repare no seu vicio ; é o equinoxio da sua virtude ,
uma é tão grande como o outro ; que lastima para elle !
Eu receio que a confiança que Othello n'elle deposita ,
n'alguma crise peor da sua enfermidade, abale esta ilha .

ΜΟΝΤΑΝΟ

Mas está assim a miudo ?

IAGO

Este é o eterno prologo do seu somno . É capaz de


velar duas voltas de ponteiro d'um relogio , se a bebida
o não embalar.

ΜΟΝΤΑΝΟ

Seria bom que o general fosse d'isso avisado ; talvez


que o não veja, ou que a sua boa indole prese a virtude
que se manifesta em Cassio e não attente nos seus de-
feitos . Não é isso verdade ?
399
64 OTHELLO

Entra RODRIGO

IAGO (áparte a Rodrigo)

Como, Rodrigo ! aqui ? peço -lhe que siga o tenente ;


vá ! (Rodrigo sae.)

MONTANO

É grande lastima que o nobre Mouro arrisque um


logar tal como é o de seu segundo , confiando-o a quem
padece d'um vicio tão inveterado . Seria uma acção ho-
nesta referir isto ao Mouro .

IAGO

Eu não o faço , por esta formosa ilha ; quero bem a


Cassio, e faria muito para o curar d'este vicio . Mas es-
cute ! que barulho é este ?

(Gritos de föra) Soccorro ! soccorro!

Entra CASSIO perseguindo RODRIGO

CASSIO

Patife ! canalha !

MONTANO

Que é, tenente ?

CASSIO

Um biltre ensinar-me o meu dever ! Hei de encaixar


este maroto dentro d'um garrafão empalhado .

RODRIGO

Bater-me ?!
SEGUNDO ACTO 65

CASSIO

Tu respingas , maroto ? (Batendo em Rodrigo .)

MONTANO

Alto ! bom tenente ! (detendo-o) peço -lhe , senhor ,


que refreie os seus impetos .

CASSIO

Largue-me , senhor, ou lhe faço voar os queixos .

ΜΟΝΤΑΝΟ

Vamos , vamos, está bebedo .

CASSIO

Bebedo ?! (Brigam . )

IAGO

Depressa ! ouves ? sae e grita . - Uma desordem ! --


(Aponta a Rodrigo que sae.)
Isso não , bom tenente ; que lastima , senhores -Acu-
dam , olá ! Tenente ! - senhor, - Montano, - acudam to-
dos , boa guarda , na verdade ! ( toca o sino a rebate)
Quem é que toca o sino ? Com os diabos ! a cidade vae
amotinar-se ! Olhe que se perde , tenente ! Pare , olhe que
fica deshonrado para sempre .

Torna a entrar OTHELLO e COMITIVA

OTHELLO

Que succedeu aqui !


7
OTHELLO
69
MONTANO

Oh Ceus ! o sangue não pára, estou mortalmente fe-


rido. (Desmaia.)

OTHELLO

Suspendam, se teem amor á vida .

IAGO

Parem! ó tenente ! Senhor, - Montano : os senhores


esqueceram todo o sentimento do dever e do logar em
que estão ! Parem, falla-lhes o general. Parem, por ver-
gonha.

OTHELLO

Porqué, como, quando e d'onde nasceu isto ? torna-


mo-nos turcos , e fazemos a nós mesmos o que o ceu
prohibiu aos ottomanos ? Por honra da christandade aca-
bem com este barbaro tumulto . Aquelle que se mover
para saciar a sua raiva, présa pouco a sua alma , e mor-
re ao primeiro movimento. Calem aquelle terrivel sino ;
assusta a ilha , perturba a sua quietação . Que é isto , se-
nhores ? Honesto lago , pareces morto de afflicção . Falla :
como principiou isto ? -pelo affecto que me consagras ,
eu t'o ordeno .

IAGO

-
Não sei . Amigos todos , ainda ha bem pouco na
casa da guarda , pareciam noivo e noiva quando se des-
pem para entrar na cama . De repente , (como se algum
planeta tivesse desvairado os homens ! ) desembainham
as espadas , dirigindo-as ao peito , uns dos outros , em
sangrenta lucta. Não posso explicar qual fosse o come-
SEGUNDO ACTO 67

ço d'esta encarniçada rixa ; quereria ter perdido n'uma


acção gloriosa as pernas que me trouxeram a presen-
cear isto !

OTHELLO

Como pôde Miguel esquecer os seus deveres ?

CASSIO

Peço-lhe que me perdoe ! - não posso fallar.

OTHELLO

Honrado Montano, costumava ser bem educado ; o


mundo tinha notado a gravidade e o assento da sua
mocidade e o seu nome é respeitado nas bocas dos mais
austeros censores : porque motivo desfaz a este ponto a
sua reputação , e malbarata a valiosa estima em que é
tido , pela alcunha de esquinador nocturno ? Responda-
me a isto .

MONTANO

Mui digno Othello : estou perigosamente ferido . Iago ,


o seu official , póde informal-o (abstendo -me eu de fallar,
porque muito mal me faz) de tudo o que eu sei ; nem
me lembro de cousa má , feita ou dita por mim, esta
noite ; a não ser que a caridade para comnosco seja
algumas vezes vicio , e defendermo-nos seja peccado ,
quando a violencia nos ataca .

OTHELLO

Por Deus ! que o meu sangue começa a reger o meu


mais seguro guia ; e a paixão tendo obscurecido o meu 1
melhor juizo, procura guiar as minhas acções ! Se faço
um movimento ou se quer levanto este braço , o me-
lhor de vós todos cahirá ao meu impulso . Digam-me :
GX OTHELLO

como começou este vergonhoso tumulto? quem o provo-


cou ? e aquelle a quem se provar a culpa d'esta offensa ,
ainda que fossemos irmãos nascidos em parto gemeo ,
está perdido para mim ! -Pois que ! n'uma praça de
guerra, ainda sobresaltada, os corações dos habitantes
ainda cheios de terror, armar uma rixa domestica e
particular, á noite , n'uma casa de guarda e de segu-
rança, é monstruoso . Iago ! quem começou ?

ΜΟΝΤΑΝΟ

Se por espirito de parcialidade , ou ligação de cama-


radagem , dizes mais ou menos do que a verdade , não
és soldado .

IAGO

Não me apertem tanto.- Eu antes queria que me


cortassem a lingua da boca , do que dizer alguma cousa
que offendesse Miguel Cassio ; comtudo persuado -me
que com fallar verdade nenhum damno lhe advirá. Foi
assim, general : Estavamos a conversar, Montano e
eu ; entrou um individuo gritando por soccorro , e Cas-
sio seguindo-o com a espada erguida, prompto a feril-o .
Montano chegou-se a Cassio , intimando-o a que paras-
se ; eu corri atraz do homem que gritava , receando que
o seu clamor (como de facto aconteceu ) assustasse a
cidade : elle , leve de pé , correu mais que os meus dese-
jos ; e eu muito mais depressa , porque ouvi o tinir e
bater de espadas e Cassio praguejando alto , o que eu ,
até esta noite , nunca poderia ter dito . Quando cheguei,
(porque isto foi breve ) , achei-os travados em renhida
lucta, ameaçando-se de ponta e gume, como ainda esta-
vam quando o general os apartou . Mais não sei dizer
sobre este ponto : porém homens são homens ; e os me-
lhores algumas vezes se descuidam . - Comquanto Cas-
sio algum tanto o maltratasse , -como os homens enco-
lerisados batem n'aquelles a quem mais estimam, — es-
SEGUNDO ACTO 69

tou certo de que elle recebeu , do que fugiu , algum es-


tranho aggravo, dos que a paciencia não póde sup-
portar.

OTHELLO

Conheço a tua honestidade , Iago , e a tua affeição


attenua este facto , desculpando Cassio . - Estimo-te , Cas-
sio, mas deixaste, para sempre, de ser meu official.-
(entra Desdemona com a comitiva) Vejam , até o meu
gentil amor se levantou ! -Hei de dar em ti um exemplo .

DESDEMONA

Que aconteceu, querido Othello ?

OTHELLO

Tudo está em ordem. Vem-te deitar, meu amor - Se-


nhor : para as suas feridas eu proprio serei o cirurgião ;
levem-n'o d'aqui . (para Montano que é tirado d'ali)
Iago : olha com cuidado pela cidade e socega aquelles
a quem esta vergonhosa rixa tiver sobresaltado . - Vem ,
Desdemona. Assim é a vida do soldado ; ser acordado
por alarmes, no seu mais placido somno . (Saem todos
menos Iago e Cassio .)

IAGO

Qué está ferido , tenente ?

CASSIO

Sim, sem remedio possivel .

IAGO

Arreda ! não o permitta o ceu.


OTHELLO
70
70
CASSIO

Reputação , reputação , reputação ! Oh ! eu perdi a


minha reputação ! perdi a parte immortal de mim mes-
mo, e a que resta é bestial . - A minha reputação , Iago ,
a minha reputação !

IAGO

Como homem honesto , que sou, pensei que tinha re-


cebido alguma ferida no corpo ; ha mais sensibilidade
ali do que na reputação . A reputação é uma frivola e
falsissima phantasmagoria ; muita vez se adquire sem
merito e se perde sem culpa . Não perdeu reputação al-
guma a não ser que se considere a si mesmo como um
perdedor. Qual , homem ! ha meios de reconquistar ainda
o general ; demittiu-o n'um momento de colera , mais
por politica do que por mal querer ; exactamente como
se qualquer batesse no seu cão inoffensivo para assus-
tar um leão imperioso . Peça-lhe de novo , e o homem
é seu .

CASSIO

Preferia pedir-lhe que me desprezasse , a enganar


um tão bom commandante inculcando-lhe um tão le-
viano bebedo e tão indiscreto official . Embriagar-me !
fallar como um papagaio ! armar rixas ! basofiar ! pra-
guejar ! discutir necedades com a propria sombra ! O'
tu espirito invisivel do vinho ! se não tens nome, por
que sejas conhecido , deixa que te chamemos diabo !

IAGO

Quem era aquelle que ia perseguindo de espada em


punho ? Que lhe tinha elle feito ?

CASSIO

Não sei.
SEGUNDO ACTO 71

IAGO

É possivel ?

CASSIO

Lembro-me de uma multidão de cousas ; mas de


nada distinctamente . Uma rixa ... mas não o porqué .
-Oh, Deus ! que os homens mettam na boca um inimi-
go para lhes roubar os miolos ! e que com alegria, pra-
zer, com applauso e turbulentamente, nos transforme-
mos em bestas !

IAGO

Seja; mas agora está rasoavelmente : como se reco-


brou ?

CASSIO

Aprouve ao diabo-Bebedeira dar logar ao diabo-


Desespero. Uma imperfeição descobre outra, para fazer
com que a mim mesmo me despreze .

IAGO

Vamos , está um moralista demasiado severo : atten-


dendo ao tempo , ao logar e ás condições em que está
esta terra, do coração desejaria que isto não tivesse
acontecido ; mas aconteceu ; emende-o em seu proveito .

CASSIO

Pedir-lhe-hei outra vez o meu logar. Ha de me dizer


que sou um bebedo ! Ainda que tivesse tantas bocas
como a hydra, uma tal resposta immudecia-as a todas !
Ser agora um homem sensato, logo um tolo , immedia-
mente depois uma besta ! oh ! extraordinario ! Cada taça
a mais é amaldiçoada e o conteúdo é o demonio !
72 OTHELLO

IAGO

Vamos , vamos , o bom vinho é um bom camarada , se


d'elle se usar bem ; não diga mal d'elle . E , bom tenente ,
creio que não duvida de que sou seu amigo.

CASSIO

Bem m'o tem provado, Senhor.- Eu bebedo !!

IAGO

O senhor, ou qualquer vivente, póde alguma vez es-


tar bebedo, homem ! Eu lhe direi o que ha de fazer. A
mulher do nosso general é agora o general : -posso fal-
lar assim a este respeito , porque elle se dedicou e en-
tregou exclusivamente á contemplação , admiração e
culto das suas perfeições e graças : --confesse-se franca-
mente a ella ; solicite a sua intervenção para elle o res-
tituir ao seu posto . Ella é d'uma tão franca, tão bene-
vola, tão propicia e tão abençoada indole que, na sua
bondade , considera um peccado não fazer ainda mais
do que lhe pedem. A este rompimento entre o senhor e
o marido supplique-lhe , que ponha um termo ; e arrisco
quanto tenho contra qualquer aposta que mereça men-
cionar-se, em como esta quebra na sua amizade, se sol-
dará , ficando mais forte do que era d'antes .

CASSIO

Dá-me um bom conselho .

IAGO

Dou-lh'o unicamente por honesta e sincera amizade,


afianço-lh'o .
SEGUNDO ACTO 73

CASSIO

Crei-o , francamente ; e ámanhã de manhã rogarei á


virtuosa Desdemona , que interceda por mim se d'esta
vez nada alcanço , desespero da fortuna.

IAGO

Está no bom caminho . Boas noites, tenente ; tenho


de ir para a guarda .

CASSIO

Boas noites , honesto Iago . (Sac.)

IAGO

Quem dirá que represento o papel de vilão , quando


este conselho que dou é franco e honesto , de provavel
realisação e na verdade o meio de ganhar o Mouro ou-
tra vez ? Porque é facillimo inclinar Desdemona a qual-
quer honesta solicitação ; ella tem qualidades tão gene-
rosas , como os livres elementos ; e então para levar o
Mouro mesmo que fosse a renegar do baptismo e de
todos os symbolos do peccado remido , -a sua alma está
tão enleada no amor de Desdemona , que ella póde fa-
zer, desfazer e realisar o que lhe aprouver, e mesmo a
seu bel-prazer representar de Deus, attendendo á sub-
missão das suas faculdades . Como posso pois ser ta-
xado de vilão , em aconselhar a Cassio um tal caminho ,
que o conduz directamente ao seu bem ? -Divindade do
inferno ! quando os diabos suggerem os mais negros
peccados , tentam-nos primeiro com apparencias celes-
tiaes, como eu faço agora ; porque emquanto este ho-
nesto imbecil pede a Desdemona , que repare a sua for-
tuna, e ella intercede por elle junto do Mouro, eu derra-
marei esta peçonha no seu ouvido : -Que ella o protege
por motivo da luxuria do seu corpo ; -e quanto mais
8
74 OTHELLO

ella tratar de fazer bem, mais destruirá o proprio cre-


dito no conceito do Mouro . Assim transformarei a sua
virtude em pez ; e da sua propria bondade farci a rede
que os colherá a todos . (entra Rodrigo) Olá, Rodrigo ?

RODRIGO

Continúo aqui a seguir a caçada , não como um


mastim que caça , mas que faz coro com os latidos dos
outros . O meu dinheiro está quasi gasto ; -levei esta
noite uma sova monumental , e creio que o resultado
será adquirir tanta experiencia quanta isto póde dar ; e
assim sem dinheiro nenhum e com um pouco mais de
juizo , voltar para Veneza .

IAGO

Quão pobres são aquelles que não teem paciencia !


Que ferida sarou jámais sem ser gradualmente ? Tu sa-
bes que operamos com calculo e não com bruxaria, of
que requer dilatado tempo . Não caminha isto bem?
Cassio bateu-te e tu, por esse leve incommodo , demi-
tiste-o : ainda que outras cousas cresçam bellas á luz
do sol, incontestavelmente fructos que primeiro flores-
cem primeiro hão de amadurecer . Contenta-te por em-
quanto . Pela missa ! que já é manhã ! Prazer e acti-
vidade fazem parecer as horas curtas . Retira- te . Vae
para onde estás aboletado , anda ! depois saberás mais .
Nada ; vae-te embora. (sae Rodrigo) Ha duas cousas a
fazer ; -minha mulher deve mover a sua senhora em fa-
vor de Cassio ; eu a levarei a isso ; no entanto devo cha-
mar o Mouro de parte e fazer que elle appareça de im-
proviso , quando possa encontrar Cassio supplicando a
sua mulher . —Ah ! é este o caminho ; que não se mal-
logre o plano por tibieza e demora .

FIM DO SEGUNDO ACTO


ACTO III

SCENA I

Diante do castello

Entram CASSIO e alguns MUSICOS

CASSIO

Mestres, toquem aqui ; eu recompensarei o seu tra-


balho . Alguma cousa breve ; e dèem os bons dias ao
general.
(Musica.)

Entra o BOBO

BOBO

Como é isto ? mestres ! os seus instrumentos estive-


ram em Napoles, que assim fallam pelo nariz ?

PRIMEIRO MUSICO

Como? Senhor, como ?

BOBO

Fazei favor de dizer-me : estes são instrumentos de


vento ?
76 OTHELLO

PRIMEIRO MUSICO

Ora essa ! pois de que hão de ser ?

BOBO

Mestres , aqui está dinheiro para os senhores , e


general tanto a vossa musica aprecia que lhes pede por
favor que não façam mais bulha.

PRIMEIRO MUSICO

Pois bem, não faremos.

BOBO

Se teem qualquer musica por ahi que se não possa


ouvir, vamos a ella : mas é como quem diz - o general
pouco se importa de ouvir musica .

PRIMEIRO MUSICO

D'essa não temos .

BOBO

Em tal caso , metam as gaitas nos saccos , que me


-
you embora. Vamos , desappareçam . — Ála !
(Os musicos saem. )

CASSIO

Ouves, meu honrado amigo ?

BOBO

Não , não ouço o seu honrado amigo , ouço o senhor .


TERCEIRO ACTO 77

CASSIO

Peço-te , que guardes as tuas facecias . Ahi tens uma


triste peça d'ouro para ti . Se a dama que serve a es-
posa do general estiver levantada , dize-lhe que um certo
Cassio lhe supplica o favor de lhe prestar um momento
.
de attenção : fazes-me isto ?

BOBO

Ella mexe-se lá dentro , senhor ; e se ella quizer me-


xer-se até aqui , farei a diligencia por lhe dar o recado .

CASSIO

Faze-me isto , bom amigo . (Sae o Bobo .)

Entra IAGO

Chegou em boa occasião , Iago .

IAGO

Então não se deitou esta noite ?

CASSIO

É verdade que não . Antes de nos separarmos já ti-


nha amanhecido . Tive a ousadia, Iago , de mandar um
recado a sua mulher. O que d'ella pretendo é que me
proporcione accesso junto da virtuosa Desdemona.

IAGO

Eu lh'a enviarei d'aqui a nada e indicarei o meio de


afastar o Mouro para que converse e trate com ella ,
mais em liberdade .
78 OTHELLO

CASSIO

Humildemente lh'o agradeço . (Iago sae ) Não co-


nheci nunca um florentino mais bondoso e honesto!

Entra EMILIA

EMILIA

Bons dias , meu bom tenente. Peza-me o seu des-


gosto , mas tudo com certeza ha de acabar em bem. O
general e a mulher estão fallando a seu respeito , e ella
advoga calorosamente a sua causa . O Mouro responde
que o homem que maltratou tem grande nomeada em
Chypre e é poderosamente aparentado ; e que não podia
sem imprudencia deixar de o exonerar, Cassio ; mas
protesta que o estima e que não precisa d'outro advo-
gado, senão a sua sympathia, para agarrar pelos cabel-
los a occasião mais propicia de o reintegrar.

CASSIO

Rogo-lhe comtudo que, se lhe parecer proprio ou


possivel, me procure ensejo de dizer a sós duas pala-
vras a Desdemona.

EMILIA

Queira entrar. Eu o levarei onde tenha occasião de


desabafar livremente .

CASSIO

Estou ás suas ordens . (Saem. )


1

TERCEIRO ACTO 796E

SCENA II

Um quarto no castello

Entram OTHELLO , IAGO e PESSOAS DE DISTINCÇÃO

OTHELLO

Iago , dá estas cartas ao piloto e envia por elle os


meus respeitos ao senado . Feito isto , -eu andarei pas-
seando nas obras , -vem ter lá comigo.

IAGO

Bem, meu bom senhor ; cumprirei as suas ordens .

OTHELLO

Vamos ver estas fortificações senhores ?

PESSOAS DE DISTINCÇÃO

Acompanhal-o-hemos , senhor. (Saem.)

SCENA HII

O jardim do castello

Entram DESDEMONA, CASSIO e EMILIA

DESDEMONA

Descança , bom Cassio; empregarei toda a minha ha-


bilidade em teu favor.
80 OTHELLO

EMILIA

Boa senhora, faça-o . Asseguro-lhe que isto penalisa


meu marido , como se d'elle fosse a causa .

DESDEMONA

Oh, que é um homem honesto . Não duvide , Cassio ,


que hei de conseguir vèl-o com meu marido tão amigos
como d'antes .

CASSIO

Generosa senhora, aconteça o que acontecer a Mi-


guel Cassio , elle nunca será outra cousa senão um
servo fiel .

DESDEMONA

Sei e agradeço . Quer muito ao meu senhor ; conhe-


ce-o ha longo tempo e tenha a certeza de que elle o
não conservará afastado senão em quanto a politica
exigir.

CASSIO

Sim , senhora; porém a tal politica póde durar tanto


ou alimentar-se de uma dieta tão delicada e aguada, ou
nutrir-se de circumstancias taes , que estando eu au-
sente e o meu logar preenchido , o meu general se es-
queça da minha affeição e dos meus serviços .

DESDEMONA

Não duvides ; diante de Emilia , aqui , te afianço o


teu logar. Fica certo , de que quando faço um voto de
amizade, o cumpro até ao ultimo artigo . Não deixarei
TERCEIRO ACTO 81

descançar o meu senhor ; tel-o-hei desperto até que o


dome, e fallarei tanto que o impaciente . A sua casa
será uma escóla, a sua meza um confessionario , mes-
clarci todas as suas occupações com a pretenção de
Cassio . Eia pois , alegra-te , Cassio , porque o teu soli-
citador antes morrerá do que abandonará a tua causa.

Entram OTHELLO e IAGO a distancia

EMILIA

Senhora, aqui vem o meu senhor .

CASSIO

Retiro-me, minha senhora.

DESDEMONA

Porque ? fica e ouve-me fallar.

CASSIO

Minha senhora, agora não ; sinto-me pouco á von-


tade e incapaz de advogar a minha propria causa.

DESDEMONA

Bem ; faze o que quizeres . (Sae Cassio .)

Entram OTHELLO e IAGO

IAGO

Ah! Não gosto d'isto !

OTHELLO

Que dizes tu ?
9
82 OTHELLO

IAGO

Nada meu senhor : ou se ... não sei o quê.

OTHELLO

Não era Cassio, aquelle que se afastou de minha


mulher?

IAGO

Cassio, meu senhor?! não ; seguramente não posso


acreditar, que elle se furtasse, como um criminoso ,
vendo - o chegar.

OTHELLO

Pois creio que era elle .

DESDEMONA

Como assim meu senhor ? estive fallando com um


pretendente , um homem que esmorece por causa do seu
desagrado .

OTHELLO

A quem se refere ?

DESDEMONA

Ao seu tenente Cassio . Meu bom senhor, se para


movel-o ha em mim virtude ou poder aceite a sua re-
conciliação , por que se elle não é um homem que sin-
ceramente o estima, e que errou só por ignorancia e
não por malicia, então não sei eu conhecer um rosto
honrado. Peço-te que o chames ; que volte.
TERCEIRO ACTO 83

OTHELLO

Foi elle quem agora d'aqui sahiu ?

DESDEMONA

Sim, certamente , foi elle , e tão humilde estava que


me communicou parte das suas magoas, as quaes en
compartilho . Meu bom amor, chama-o !

OTHELLO

Agora não , doce Desdemona , n'outra occasião .

DESDEMONA

Mas será brevemente ?

OTHELLO

O mais brevemente possivel, meu amor, em atten-


ção a ti .

DESDEMONA

Será esta noite , á ceia ?

OTHELLO

Não , esta noite não .

DESDEMONA

Então amanhã ao jantar ?

OTHELLO

Não janto em casa . Reuno os capitães na cidadella.


81 OTHELLO

DESDEMONA

Pois então amanhã á noite , ou terça-feira de manhã ,


ou terça-feira á tarde ou á noite , ou quarta-feira de
manhã; peço-te , dize-me quando, mas não deixes que
exceda tres dias ; afianço -te que está arrependido e
comtudo a sua culpa, perante o censo commum (a não
ser que, segundo se diz, em tempo de guerra se de-
vem dar exemplos nos melhores ) quasi não é uma
falta que mereça uma reprehensão particular. Quando
volta elle ? dize-m'o Othello ! Indago na minha alma o
que me poderia pedir que eu lhe negasse ou fizesse , he-
sitando assim. Pois que ? Miguel Cassio , que era o con-
fidente dos seus amores comigo, e tanta vez , quando eu
fallava com pouco louvor a seu respeito , o defendia ,
custar-me tanto a fazel-o reintegrar ! Creia que podia
fazer muito ...

OTHELLO

Basta , peço -te ! que venha quando quizer ; nada te


posso negar.

DESDEMONA

Ainda assim não é um favor . É como se eu lhe pe-


disse que calçasse as suas luvas , ou que se alimen-
tasse de manjares succolentos , ou que andasse agasa-
lhado, ou que lhe rogasse que fizesse algum obsequio
especial a si proprio ! Não ; quando eu fizer um pedido ,
no qual tenha que interessar o seu amor, ha de ser
cheia de difficuldades e até de perigos a sua conces-
são.

OTHELLO

Nada te recusarei : agora, peço-te , faze-me este fa-


vor : deixa-me a sós comigo.
TERCEIRO ACTO 85

DESDEMONA

Devo negal-o ? não ! Adeus meu senhor.

OTHELLO

Adeus, minha Desdemona, you já ter comtigo .

DESDEMONA

Vem, Emilia ! Faça o que entender ; seja como för ,


serei obediente . (Sae com Emilia.)

OTHELLO

Excellente misera ! Seja a minha alma condemnada


se te não amo ; e quando deixe de te amar que volte
de novo o chaos!

IAGO

Meu nobre senhor .

OTHELLO

Que dizes tu , Iago ?

IAGO

Quando namorava a minha senhora, Miguel Cassio


sabia do seu amor?

OTHELLO

Sabia do começo ao fim; porque o perguntas ?

IAGO

Só para satisfação do meu pensar, não com ruim


intento .
86 OTHELLO

OTHELLO

Porqué, do teu pensar, Iago ?

IAGO

Não imaginava que elle o soubesse .

OTHELLO

Oh, sim; muitas vezes foi nosso intermediario.

IAGO

Deveras ?

OTHELLO

Deveras, sim deveras ; vès n'isso alguma consa ?


não é elle honesto ?

IAGO

Honesto, meu senhor ?

OTHELLO

Honesto , sim ; -honesto .

IAGO

Meu senhor, que eu saiba ...

OTHELLO

Qual é o teu pensamento ?

IAGO

Pensamento , senhor?
TERCEIRO ACTO 87

OTHELLO

Pensamento , senhor ! -Pelo ceu ! -- elle é o meu echo!


é como se tivesses no teu pensamento algum monstro
demasiado horrendo , que quizesses occultar. —Tu pen-
sas alguma cousa . - Ouvi-te dizer ainda agora — não
gosto d'isto , quando Cassio deixou minha mulher ; de
que não gostaste? E quando te disse que elle era da
minha intimidade no decurso dos meus amores, excla-
maste -- Devéras ? - fransiste e cerraste os teus sobre-
olhos como se fechasses no teu cerebro algum terrivel
conceito. Se és meu amigo patenteia-me o teu pensa-
mento .

IAGO

Meu senhor, bem sabe que sou seu amigo .

OTHELLO

Penso que sim ; e porque te conheço cheio de affei-


ção e de probidade, e pézas as tuas palavras antes de
as proferires , é que estas tuas reticencias mais me as-
sustam ; porque estes modos , n'um biltre falso e desleal ,
são ardis usados , mas n'um homem que é justo são
revelações veladas, partindo d'um coração que a paixão
não rege .

IAGO

Quanto a Miguel Cassio atrevo -me a jurar que o te-


nho por honesto .

OTHELLO

Eu tambem o penso.

LAGO

Os homens devem ser o que parecem; ou então ,


88 OTHELLO

aquelles que o não são , oxalá que não parecessem cou-


sa alguma .

OTHELLO

Certamente : os homens devem ser o que parecem.

IAGO

Por isso eu julgo Cassio um homem honesto .

OTHELLO

Nada ! ha n'isto mais alguma cousa . Peço-te que me


falles, como ao teu pensamento , quando ruminas ; e ex-
prime a tua peor ideia com as tuas peores palavras .

IAGO

Meu bom senhor, perdoe-me ; ainda que é um dever


para mim a obediencia, não sou obrigado áquillo em
que todos os escravos são livres . Pronunciar os meus
pensamentos !? quem sabe se vís , e falsos ? -Onde exis-
te aquelle palacio, dentro do qual não se introduzem ,
de vez em quando, cousas torpes? Quem tem o seio
tão puro que n'elle jámais algumas impuras apprehen-
sões se assentem em audiencia e em sessão com me-
ditações legitimas ?

OTHELLO

Iago, tu conspiras contra o teu amigo, se o julgas


offendido , e fazes o seu ouvido estranho aos teus pen-
samentos .

IAGO

Supplico-lhe senhor, pois a minha supposição póde


ser errada , (visto que eu confesso que é praga da minha
TERCEIRO ACTO 89

natureza espionar abusos , e muitas vezes os meus zelos


moldam faltas que não existem) , que a sua prudencia
não faça caso de quem tão imperfeitamente concebe os
seus pensamentos , nem se moleste com tão desconexas
e incertas observações . Não conviria nem ao seu soce-
go, nem ao seu bem, nem á minha hombridade, hones-
tidade e prudencia, deixar-lhe conhecer os meus pensa-
mentos .

OTHELLO

Que queres tu dizer ?

IAGO

O bom nome em homem e em mulher, querido se-


nhor meu, é a joia mais preciosa das suas almas :
quem rouba a minha bolsa , rouba um rebutalho ; quasi
nada ; foi minha , é d'outro e tem sido escrava de milha-
res ; mas aquelle que me rouba o meu bom nome ,
rouba-me aquillo que o não enriquece, e me faz real-
mente pobre.

OTHELLO

Pelo ceu hei de saber os teus pensamentos .

IAGO

Não o conseguiria nunca; mesmo que o meu coração


estivesse nas suas mãos ! menos ainda estando sob a
minha guarda .

OTHELLO

Ah!

IAGO

Oh ! acautele-se , senhor , do ciume . É um monstro


de olhos verdes que zomba da carne de que se ali-
10
OG
90 OTHELLO

menta. Vive feliz o coitado que , certo da sua deshonra


odeia o seu offensor ; mas oh ! que damnados minutos
passa aquelle que adora e duvida e suspeita , e comtudo
ama profundamente !

OTHELLO

O' miseria!

IAGO

Pobreza e alegria são riqueza e riqueza bastante ;


mas riqueza , immensa que ella seja, é tão pobre como
o inverno, para aquelle que receia ser pobre. Ceu cle-
mente! livra do ciume a alma de todos os da minha
especie .

OTHELLO

Porqué ? por que é isto ? Pensas tu que eu arrasta-


ria uma vida de ciumes , surgindo a cada phase da lua
suspeitas novas ? não ! Conceber uma duvida , e decidir-
se. Troca-me por um cabro , se eu encaminhar a atten-
ção da minha alma para tão extravagantes e forçadas
.
suspeitas, como tu me suggeres . Não me faz ciumento ,
dizerem que minha mulher é bella , aprecia a boa meza ,
gosta de sociedade , falla com facilidade, canta, toca e
dança ; onde ha virtude , são mais outras tantas virtu-
des : nem pela falta de merecimentos proprios me advi-
rá o mais leve receio de revolta sua ; por que ella tinha
olhos e escolheu-me. Não , Iago ! hei de ver antes de du-
vidar; quando duvidar quero provas ; obtidas as provas ,
expulso d'uma vez amor e ciume .

IAGO

Folgo de o ouvir, por que posso mostrar-lhe agora


mais francamente a amizade e respeito que lhe consa-
gro : por isso em cumprimento do que acabo de lhe
TERCEIRO ACTO 91

afiançar, receba de mim este aviso . Não fallo ainda


de provas.- Vigie sua mulher ; observe-a bem junto de
Cassio ; empregue os seus olhos assim, sem ciume
nem confiança . Não quereria que a sua nobre e franca
natureza fosse illudida pela sua demasiada bondade ;
observe : conheço bem o caracter do nosso paiz ; em
Veneza, as mulheres deixam ver ao ceu as loucuras ,
que não se atrevem a mostrar a seus maridos ; a sua
melhor consciencia consiste em não deixarem de fazer,
mas em occultarem o que fazem.

OTHELLO

Tu dizes-me isso ?

IAGO

Ella enganou seu pae casando com o general ; e


quando ella fingia repellir os seus olhares é quando
mais os amava .

OTHELLO

E assim era.

IAGO

Pois então se ella , tão nova , sabía dissimular, a ponto


de vendar os olhos do pae, tornando-os tão fechados
como madeira de carvalho , que elle julgou que era bru-
xaria ! ... Mas eu sou muito culpado ; imploro-lhe humil-
demente perdão d'este excesso d'amizade .

OTHELLO

Fico-te eternamente reconhecido .

IAGO

Vejo que isto perturbou um pouco o seu espirito .


92 OTHELLO

OTHELLO

Nem por sombras, nem por sombras .

IAGO

E eu receio , que sim ! -Espero que considere o que


eu disse como filho do meu affecto ; -mas vejo que
está commovido : peço-lhe , porém, que não dè ás mi-
nhas palavras maior importancia ou maior alcance do
que o d'uma suspeita.

OTHELLO

Não darei .

IAGO

Porque a não ser assim, meu senhor, as minhas pa-


lavras dariam um torpe resultado a que eu nunca pode-
ria mirar. Cassio é meu digno amigo . Vejo , senhor, que
está commovido .

OTHELLO

Não, muito commovido não ; não posso deixar de


crer Desdemona honesta .

IAGO

Longo tempo ella viva tal ! e longo tempo viva o ge-


neral para assim pensar.

OTHELLO

E no entanto quando a natureza se desvaira ...

LAGO

Ahi é que bate o ponto . Que quer dizer- (consinta a


confiança que tomo) o não ter ella aceitado nenhum de
36
TERCEIRO ACTO 93

tantos casamentos propostos , do seu proprio clima, da


sua cor e condição , concordancias para que tende a na-
tureza ? - hum ! revela uma vontade estragada, torpe
extravagancia , e pensamentos desnaturados.- Mas per-
doe-me ; não fallo d'ella especificadamente ; comtudo
receio que a sua vontade , retrocedendo a mais naturaes
reflexões , chegue a comparal-o com as feições do seu
paiz e talvez se arrependa .

OTHELLO

Vae-te , vae-te ! se mais alguma cousa perceberes ,


mais desejo saber ; que tua mulher observe tambem .
Deixa-me, Iago .

IAGO

Retiro-me pois, senhor . (Saindo.)

OTHELLO

Por que me casei eu ? Esta honesta creatura, viu e


sabe mais , muito mais do que revella .

IAGO (voltando)

Meu senhor, queria supplicar a vossa honra , que


não perscrutasse mais este negocio. Dè tempo ao tem-
po : ainda que justo seja que reassuma Cassio o seu
logar, por que elle certamente o exerce com grande ha-
bilidade , - comtudo , se lhe apraz , tenha-o por algum
tempo afastado ; com isso o conhecerá a elle e aos seus
designios . Repare se sua mulher insta pela sua reinte-
gração com forte ou vehemente importunidade ; muito
poderá descobrir n'isto . No entanto creia-me profunda-
mente preoccupado com os meus receios , (como sobejos
motivos tenho para recear que tambem o esteja) , e te-
nha-a por innocente ; supplico-o á vossa honra .
94 OTHELLO

OTHELLO

Sei reger-me ; nada receies .

IAGO

Mais outra vez me despeço . (Sae.)

OTHELLO

Este homem é de excessiva honestidade e conhece


com espirito atilado todas as qualidades das acções hu-
manas . Se eu tivesse a prova de que ella é um falcão
rebelde, ainda que as suas piozes fossem as queridas
fibras do meu coração , dava-lhe o assobio da partida,
largando-a a favor do vento para aferrar a preza a seu
bel-prazer. Talvez por que sou negro e não tenho es-
sas doces phrases dos adamados , ou já vou no decli-
nar da idade , todavia não muito, perdi-a ; estou tra-
hido ; e a minha unica consolação possivel é odeal-a . - O'
praga do casamento ! podemos chamar nossas essas
delicadas creaturas , nunca os seus apetites ! Antes que-
reria ser um sapo e viver nos vapores d'uma enxovia
do que guardar para mim uma só particula do objecto
que amo e de que os outros teem o usofructo . Comtudo
é a maldição dos grandes ; elles teem menos prerogati-
vas que os vilões ; é um destino fatal como a morte .
Esta cornea praga é-nos destinada á nascença . Ahi
vem Desdemona, se ella é perfida , oh ! então zomba o
ceu de si mesmo . -- Não o quero acreditar .

Tornam a entrar DESDEMONA e EMILIA

DESDEMONA

Meu querido Othello, o jantar e os generosos insu-


lanos , que convidou , aguardam a sua presença .
TERCEIRO ACTO 95

OTHELLO
Sou culpado .

DESDEMONA

Por que falla com voz tão fraca ? não está bem ?

OTHELLO

Tenho uma dor sobre a testa , aqui .

DESDEMONA

É de muito velar ; isso passa , deixe -me só amarrar-


lhe a cabeça com força e d'aqui a uma hora estará
bem .

OTHELLO

O seu lenço é demasiado pequeno . (afasta o lenço


que cae) Deixemo'-nos d'isso ; vamos , eu acompanho-a.

DESDEMONA

Sinto deveras que não esteja bem. ( Saem Othello e


Desdemona .)

EMILIA

Estimo ter encontrado este lenço; foi elle o primeiro


presente do Mouro . O meu teimoso marido tem-me pe-
dido centos de vezes que o furte ; ella porém quer
tanto a esta prenda (por que elle pediu-lhe que a con-
servasse sempre) que a traz constantemente comsigo
para a beijar e conversar com ella . Farei copiar o bor-
dado e dou-o depois a Iago ; o que d'elle fará sabe-o o
ceu, que eu não ; eu nada mais quero senão satisfazer o
seu capricho . (Torna a entrar Iago . )
96 OTHELLO

IAGO

Então que faz aqui só ?

EMILIA

Não ralhe ; tenho uma cousa para si .

IAGO

Uma cousa para mim ?! É uma cousa vulgar ...

EMILIA

Hein ?

IAGO

Ter uma mulher tola.

EMILIA

Oh ! mais nada ? quanto me dá agora por aquelle


mesmo lenço ... ?

IAGO

Que lenço ?

EMILIA

Que lenço? ora essa ! o primeiro que o Mouro deu a


Desdemona ; aquelle mesmo que tão a miudo me tem
recommendado que furte .

IAGO

Furtaste-lh'o ?
36
TERCEIRO ACTO 97

EMILIA

Não ; ella deixou-o cahir por descuido ; e , por fortu-


na, estando eu ali, apanhei- o . Olhe, aqui está.

IAGO

Boa rapariga ; dá -m'o .

EMILIA

Que vae fazer com elle , visto estar tão interessado


em que o furtasse?

IAGO (arrancando- lhe o lenço)

Que tens com isso ?

EMILIA

Se não for para cousa de muita importancia dê-m'o


outra vez ; pobre senhora ! é capaz de endoudecer quan-
do dér pela falta d'elle .

IAGO

Não te dès por achada sobre isto ; tenho destino.


para lhe dar . Vae , deixa-me . (Emilia sae . ) Hei de per-
der este lenço em casa de Cassio , e deixar que elle o
encontre . Bagatellas leves como o ar, são para os zelo-
sos confirmações tão fortes como as provas da Sagrada
Escriptura . Isto póde dar de si alguma cousa . O Mouro
já começa a resentir-se do meu veneno : conceitos pe-
rigosos são , na sua essencia, venenos a que no começo
mal se conhece o mau sabor, mas que, com uma pe-
quena acção sobre o sangue , queimam como minas de
enxofre.Eu bem o dizia ! elle ahi vem ! nem papoula
nem mandragora nem todos os soporificos do mundo
11
98 OTHELLO

poderão restituir-te o suave somno que hontem dor-


miste.

Torna a entrar OTHELLO

OTHELLO

Ah ! ah ! Falsa para mim ! falsa para mim !!

IAGO

O que ! como assim, general ? não pense mais n'isso .

OTHELLO

Arreda ! vae-te ! estendeste-me no cavalete da tor-


tura. Juro que é melhor ser muito atraiçoado , do que
sabel-o apenas um pouco.

IAGO

Que é isso , meu senhor?

OTHELLO

Que ideia tinha eu das suas furtivas horas de luxu-


ria ? eu não o via, não o pensava, não me fazia mal .
Dormia bem a noite seguinte ; era despreoccupado e
alegre ; não encontrava os beijos de Cassio nos seus la-
bios : aquelle que é roubado, não lhe fazendo falta of
que lhe roubam, se o não sabe , não está roubado .

IAGO

Penalisam-me as suas palavras .

OTHELLO

Eu era feliz , mesmo quando todo um acampamento ,


incluindo os artifices , tivesse gosado o seu doce corpo ,
TERCEIRO ACTO 99

comtanto que eu o não soubesse . Oh ! agora adeus para


sempre, tranquillidade de espirito ! adeus , alegria ! adeus ,
implumados guerreiros e grandes guerras , que fazem da
ambição uma virtude ! adeus ! adeus , corcel relinchante ,
clarim sonoro, bellico tambor e agudo pifano ; pendão
real ; adeus , toda a casta de orgulho ; pompas e tro-
pheus de gloriosas guerras ; e vós, machinas mortiferas
cujas rudes gargantas simulam os temidos clamores de
Jove immortal , adeus ! a carreira d'Othello findou .

IAGO

Será possivel, meu senhor ?

OTHELLO

Assegura-me , vilão , com provas , que o meu amor é


uma prostituta ; assegura-m'o ! dá-me uma prova de
vista , ou aliás , (agarrando -o pela garganta) juro -t'o pelo
que vale a minha alma immortal ! mais te valera ter
nascido pèrro , que teres que responder á minha colera
acordada .

IAGO

Pois já chegou a tanto ?

OTHELLO

Faze que eu veja , ou pelo menos prova-m'o de modo


tal que não possa haver gancho ou nó em que se pren-
da uma duvida ; ou ai da tua vida !

IAGO

Meu nobre senhor!

OTHELLO

Se a calumnias a ella e me torturas a mim, nunca


mais rézes ; abandona todo o remorso ; sobre a fronte
100 OTHELLO

dos maiores horrores accumula ainda mais horrores ;


pratica acções que façam chorar o ceu e pasmar a
terra, porque nada peor que isto pódes accrescentar á
tua condemnação eterna .

IAGO

O' graça divina ! ó ceus , perdoae-me ! É honiem ? tem


alma , ou sentimento ? Deus seja comsigo . Exonere-me
do meu cargo . - O' miseravel nescio , que folgas de fa-
zer da tua honestidade um vicio! O' mundo monstruo-
so ! aprende , aprende , ó mundo , como é perigoso ser
honesto e leal . Agradeço-lhe a paga que me dá ; e de
hoje em diante não me afeiçoarei a nenhum amigo , vis-
to que o affecto produz offensas taes.

OTHELLO

-
Não ; fica . Tu deverias ser honesto .

IAGO

Deveria ser prudente, por que a honestidade é uma


tola que estraga tudo aquillo em que se empenha .

OTHELLO

Pelo universo ! eu penso que minha mulher é ho-


nesta e penso que o não é ; penso que és verdadeiro e
penso que o não és ! hei de obter alguma prova . O meu
nome, que era tão puro como o rosto de Diana , está
agora tão conspurcado e negro como o meu proprio
rosto . Se ha cordas ou facas , veneno ou fogo , ou tor-
rentes que afoguem , eu não supporto isto . Prouvera a
Deus que eu me desenganasse !

IAGO

Vejo senhor, que está devorado pela paixão . Arre-


TERCEIRO ACTO 101

pendo-me de o ter levado a tanto . Queria pois obter um


desengano ?

OTHELLO

Queria ! não ; por que hei de obtel-o .

IAGO

E ha de ! como , porém ? como satisfazel-o , meu se-


nhor ? quereria estupidamente e de boca aberta ser tes-
temunha da copula?

OTHELLO

Morte e condemnação eterna ! oh!

IAGO

Seria uma fastidiosa difficuldade, penso eu, trazel-os


a tal espectaculo. Condemnados sejam elles , se outros
olhos , além dos seus , os virem deitados sobre o mesmo
travesseiro ! Que se ha de então fazer ? que posso eu di-
zer? como colher o desengano ? É impossivel que o
presenceie ; mesmo quando tivessem o cio das cabras ,
o ardor dos macacos , a ousadia dos lobos esfaimados ,
e fossem parvos tão rematados , como só a ignorancia
ebria poderia produzir . Comtudo , digo , se aproxima-
ções e fortes indicios, que conduzem directamente ás
portas da verdade, podem proporcionar-lhe um des-
engano, tel-o-ha.

OTHELLO

Apresenta-me uma prova viva , de que ella é infiel .

IAGO

Não gosto do officio ; mas visto que tanto me adian-


tei, n'este negocio , instigado por estulta honestidade e
102 OTHELLO

affeição , proseguirei . Ha pouco tempo , estava eu dei-


tado com Cassio , e incommodado com uma dor de den-
tes não podia dormir. Ha uma casta de homens de
alma tão desabusada , que , mesmo a dormir, referem os
seus negocios . - Cassio é d'estes ; - ouvi-o dizer dor-
mindo: -doce Desdemona, sejamos cautos , escondamos
-
os nossos amores . E então , senhor , apertando e afa-
gando a minha mão, exclamava : -O' doce creatura ! -e
beijava-me com soffreguidão , como se arrancasse dos
meus labios osculos pela raiz ; depois passou a perna
sobre a minha coxa, e em meio de entrecortados sus-
piros e beijos exclamou : - maldito destino que te den
ao Mouro !

OTHELLO

Oh, monstruoso ! monstruoso !

IAGO

Isto era apenas um sonho .

OTHELLO

Mas que denota facto consumado . É um indicio elo-


quente , embora não seja mais do que um sonho .

IAGO

Mas póde ajudar a avolumar outros indicios que se-


jam fracos.

OTHELLO

Hei de fazel-a em pedaços .

IAGO

Mas seja, por emquanto, prudente ; ainda nada ve-


mos feito ; ella ainda póde estar honesta . Diga- me só
TERCEIRO ACTO 103

isto : viu alguma vez na mão de sua mulher um lenço


com morangos bordados ?

OTHELLO

Dei-lhe eu um assim ; foi o meu primeiro presente .

IAGO

Isso não sei eu : mas vi hoje Cassio limpar a barba


com um lenço egual, que estou certo era de sua mu-
lher.

OTHELLO

Se fosse aquelle ...

IAGO

Se fosse aquelle , ou qualquer outro que lhe perten-


cesse , este facto deporia contra ella junto com as ou-
tras provas .

OTHELLO

Ah ! se o miseravel tivesse quarenta mil vidas ... uma


só é muito pouco ; é nada para a minha vingança ! Agora
conheço que é verdade . Vè , Iago : exhalo assim para o
ceu todo o meu apaixonado amor ! ... Foi-se ! Surge, negra
vingança, dos antros do inferno ! Cede , ó amor , a tua
coroa e o throno erguido no meu coração á tyrannia
do rancor ! incha , peito meu, com a tua carga, por que
é de lingoas de viboras .

IAGO

Contenha-se !

OTHELLO

Oh ! sangue ! sangue ! sangue !


104 OTHELLO

IAGO

Tenha paciencia, peço-lhe eu ! póde ainda mudar de


parecer.

OTHELLO

-
Nunca, Iago . Como o pontico mar, cuja corrente
gelida e curso compulsivo , não conhecem refluxo , mas
seguem direitos ao propontico e ao hellesponto , do
mesmo modo os meus sauguinarios projectos , com
passo violento , nunca olharão para traz e nunca reflui-
rão para o humilde amor, até que uma condigna e am-
pla vingança os absorva. - Agora, por aquelle marmo-
reo ceu e com a reverencia devida a um juramento sa-
grado , (ajoelha) aqui empenho a minha palavra .

IAGO

Não se levante ainda. (ajoelha) Testemunhae vós ,


sempre ardentes luzeiros do firmamento , vós , elementos
que nos involveis por todos os lados , sede testemunhas
de que n'este logar, Iago , põe ao serviço do ultrajado
Othello a sua intelligencia, o seu braço e o seu cora-
ção . Ordene elle, e sem cuidar de remorsos obedecer-
lhe-hei, por mais sanguinario que seja o seu mandato .

OTHELLO

Agradeço o teu affecto , não com palavras banaes ,


mas com aceitação sincera ; e quero immediatamente
confiar-te um serviço . Dentro dos tres dias proximos ,
quero ouvir dizer que já não existe Cassio .

IAGO

O meu amigo é um homem morto , e morto á sua or-


dem: mas deixe-a viver a ella .
TERCEIRO ACTO 105

OTHELLO

Amaldiçoada seja a vil prostituta ! oh ! maldita seja !


Vamos , vem fallar comigo a sós ; retiro-me para exco-
gitar algum meio prompto de dar a morte áquelle for-
moso demonio . Nomeio-te meu tenente .

IAGO

Sou seu para todo sempre . (Saem.)

SCENA IV

Defronte do castello

Entram DESDEMONA, EMILIA e o BOBO

DESDEMONA

Sabes, biltre , onde o tenente Cassio pousa actual-


mente ?

BOBO

Não me atrevo a dizer que elle pouse em parte al-


guma, actualmente .

DESDEMONA

Por quê homem ?

BOBO

É soldado ; e , para mim, dizer que um soldado men-


te , equivale a uma punhalada .
12
106 OTHELLO

DESDEMONA

Vamos d'ahi ; onde mora elle ?

BOBO

Dizer onde elle mora , é dizer onde eu minto .

DESDEMONA

Que se ha de fazer a isto ?

BOBO

Não sei onde elle mora ; e para engenhar uma mo-


rada, e dizer que elle pousa aqui ou acolá, seria mentir
pela gorja.

DESDEMONA

Pódes procural-o e informares-te a este respeito .

BOBO

Eu cathequisarei o mundo por elle ; isto é farei per-


guntas , e responderei por ellas .

DESDEMONA

Procura-o , convida-o a que venha aqui ; dize-lhe que


já dispuz o meu senhor em favor d'elle , e que espero
que tudo terminará em bem.
907
TERCEIRO ACTO 107

BOBO

Fazer isto está dentro da esphera das faculdades hu-


manas ; tentarei portanto fazel-o . (Sae. )

DESDEMONA

Onde perderia eu o lenço , Emilia ?

EMILIA

Não sei, minha senhora.

DESDEMONA

Acredita-me, antes queria ter perdido a minha bolsa


cheia de moedas . Se o meu nobre Mouro não fosse
incapaz de desconfianças e izento das baixezas que só
tem as creaturas ciosas , seria isto sufficiente para o le-
var a fazer ruins juizos .

EMILIA

Não é ciumento ?

DESDEMONA

Quem, elle ? Creio que o sol onde nasceu, o depurou


de todos esses humores .

EMILIA

Olhe ! elle ahi vem .


108 OTHELLO

DESDEMONA

Não o deixarei , emquanto não tornar a chamar Cas-


sio a si . (entra Othello) Como está meu senhor ?

OTHELLO

Estou bem, minha boa senhora (a parte) ah! quanto


custa dissimular ! -e como está, Desdemona ?

DESDEMONA

Bem, meu bom senhor.

OTHELLO

Dé-me a sua mão ! Esta mão está humida, senhora .

DESDEMONA

Ainda não sentiu a idade , nem conheceu pezares .

OTHELLO

Isto denota fecundidade e coração liberal ; quente ,


quente e lenta ! Esta sua mão requer um sequestro á
liberdade , jejum e orações , muita penitencia e exerci-
cios devotos ; por que ha aqui um demonio joven que
referve e que frequentemente costuma rebellar- se . É
uma boa e generosa mão !

DESDEMONA

Póde dizel-o com verdade, porque foi ella que lhe


entregou o meu coração .
TERCEIRO ACTO 109

OTHELLO

Mão liberal ; outr'ora os corações davam as mãos ,


porém a nossa moderna heraldica é , -- mãos , e não cora-
ções .

DESDEMONA

Não sei fallar d'isso ; vamos, a sua promessa ?

OTHELLO

Que promessa, querida ?

DESDEMONA

Mandei chamar Cassio, para lhe vir fallar.

OTHELLO

Tenho um importuno e quisilento defluxo que muito


me incommoda ; empresta-me o teu lenço .

DESDEMONA

Eil-o , meu senhor.

OTHELLO

O que eu lhe dei.

DESDEMONA

Não o tenho comigo.


110 OTHELLO

OTHELLO

Não ?!

DESDEMONA

Não , em minha verdade, senhor.

OTHELLO

É uma falta . Esse lenço deu-o uma egypcia a minha


mãe ; era feiticeira e podia ler os pensamentos das pes-
soas. Disse-lhe que, emquanto o conservasse , seria
amavel e teria meu pae inteiramente rendido ao seu
amor : -mas que , se o perdesse ou désse , os olhos de
meu pae a contemplariam com repugnancia, e os seus
desejos correriam atraz de novas phantasias . Deu-m'o á
hora da morte , ordenando-me que quando a sorte me
destinasse esposa cu lh'o désse . Assim o fiz : conser-
ve-o com todo o cuidado ; queira-lhe como ás meninas
dos seus lindos olhos ; dal-o ou perdel-o seria uma des-
graça que nenhuma outra poderia egualar .

DESDEMONA

Será possivel ?

OTHELLO

É verdade. Ha magia no seu tecido . Uma sybilla ,


que tinha contado no mundo duzentas rotações do sol ,
fez esta obra na sua excitação inspirada ; os bichos que
produziram a seda eram sagrados , e o lenço foi tinto
em mumia, que sabios peritos conservavam , de cora-
ções de virgens.
TERCEIRO ACTO 111

DESDEMONA

Pois isso é verdade ?

OTHELLO

Muito verdade , por isso olhe bem por elle .

DESDEMONA

Então prouvera a Deus que nunca o tivesse visto .

OTHELLO

Ah ! porqué ?

DESDEMONA

Por que me falla tão aspera e sacudidamente ?

OTHELLO

Está perdido ? foi-se ? falle ! desencaminhou-se ?

DESDEMONA

O ceu nos acuda!

OTHELLO

Que diz?

DESDEMONA

Não está perdido ; mas se estivesse ?


112 OTHELLO

OTHELLO

Como?

DESDEMONA

Digo que não está perdido .

OTHELLO

Vá-o buscar ; deixe-m'o vèr.

DESDEMONA

Poderia fazel-o senhor, agora não . Isto é um gracejo


para me desviar do meu pedido . Rogo -lhe que de novo
receba Cassio .

OTHELLO

Traga-me o lenço ! a minha cabeça desvaira-se.

DESDEMONA

Vamos, vamos, nunca encontraria um homem mais


capaz.

OTHELLO

O lenço !

DESDEMONA

Peço -lhe falle-me de Cassio .


TERCEIRO ACTO 113

OTHELLO

O lenço !

DESDEMONA

Um homem que toda a sua vida tem fundado na sua


amizade a esperança da propria fortuna , e comparti-
lhado os perigos ...

OTHELLO

O lenço !!

DESDEMONA

Na verdade é digno de censura .

OTHELLO

Arréda. (Sae .)

EMILIA

Não é então um homem ciumento ?

DESDEMONA

Nunca o vi assim. Ha certamente algum feitiço


n'esse lenço ; estou infelicissima pela perda d'elle .

EMILIA

Não basta um anno ou dous para se conhecer um


homem. Elles não são senão estomagos e nós o seu
alimento ; comem-nos com soffreguidão e quando estão
fartos , vomitam-nos . Olhe , Cassio e meu marido .
13
114 OTHELLO

Entram CASSIO e IAGO

IAGO

Não ha outro caminho ; ella é que ha de fazel-o ; e


veja que ventura ! vá e importune- a .

DESDEMONA

Como está, bom Cassio ? que novas me dá a seu res-


peito ?

CASSIO

Sempre as mesmas . Supplico- lhe minha senhora ,


que pelos seus virtuosos meios, me faça reviver e recu-
perar a amizade d'Othello , a quem venero com todas as
forças do meu coração . Quereria não ficar esperando :
se a minha offensa é de tão mortal qualidade que nem
os meus serviços antigos nem as magoas presentes
nem o proposito de muito merecer no futuro, podem
restituir-me a sua affeição , é para mim ao menos um
beneficio sabel-o ; assim revestir-me-hei de um conten-
tamento forçado e procurarei , por qualquer outro cami-
nho, a esmola da fortuna .

DESDEMONA

Ah! tres vezes gentil Cassio , a minha intercessão


pouco lhe póde servir agora : o meu senhor já não é o
meu senhor ; nem cu o conhecia se estivesse tão mu-
dado nas feições como está no genio . Tanto me ajudem
as almas santas como eu empenhei por si a minha me-
lhor eloquencia e me expuz a ser o alvo do seu des-
agrado, pela franqueza com que fallei . Precisa pois de
ter paciencia por algum tempo . O que eu puder fazer ,
farci , e mais ainda do que ousaria fazer por mim : que
isto lhe baste.
TERCEIRO ACTO 115

IAGO

Está encolerisado o meu senhor ?

EMILIA

Sahiu d'aqui mesmo agora, e na verdade em estado


de extranha excitação .

IAGO

É possivel que esteja encolerisado ? Tenho visto o


canhão varrer as columnas dos seus soldados , e como
o demonio , roubar-lhe dos braços seu proprio irmão ...
e póde elle estar encolerisado ? Deve ser cousa muito
grave ; vou procural- o ; deve ser muito grave , para elle
se encolerisar.

DESDEMONA

Vae, peço-t'o eu. (Iago sae) Negocio de estado cer-


tamente , ou de Veneza, ou algum trama urdido em Chy-
pre, de que elle foi sabedor , perturbou o seu espirito lu-
cido , e em taes casos a natureza dos homens implica
com cousas insignificantes , ainda que as grandes sejam
a sua preoccupação . Tudo assim é na nutureza : basta
doer um dedo para aos outros membros sãos se com-
municar a sensação de dor. Nada; é preciso pensar que
os homens não são Deuses , nem se podem esperar d'el-
les taes demonstrações de cortezia como é proprio de
noivado . Ralha-me muito , Emilia ! Eu estava, (triste
guerreira que sou ! ) acusando a sua dureza perante a
minha alma ; agora porém acho que tinha subornado a
testemunha e que elle é falsamente acusado .

EMILIA

Praza ao ceu que seja negocio de estado , como jul-


116 OTHELLO

ga, e não suspeita ou loucura de ciumes que lhe diga


respeito.

DESDEMONA

Ai de mim ! até ao dia de hoje, nunca lhe dei mo-


tivo .

EMILIA

Mas as almas ciosas não querem que se lhes res-


ponda assim ; ellas nunca são ciumentas por que se
lhes de motivo ; são ciumentas porque são ciumentas .
É um monstro gerado em si mesmo e nascido de si
mesmo.

DESDEMONA

O ceu afaste aquelle monstro do espirito d'Othello .

EMILIA

Amen, senhora !

DESDEMONA

Vou procural-o . Cassio passcie por aqui ; se o en-


contrar propicio, fallo-lhe na sua pretenção e farei
mais que puder por lh'a realisar .

CASSIO

Humildemente agradeço a vossa graça . (Saem Des-


demona e Emilia. )
TERCEIRO ACTO 117

Entra BIANCA

BIANCA

Salve-o Deus, amigo Cassio .

CASSIO

Que faz, fóra de casa ? como vae, minha formosa


Bianca? por minha fé , querido amor, ia a sua casa.

BIANCA

E eu ia ao seu aposento, Cassio . Como assim ? an-


dar por fóra uma semana ! sete dias e sete noites ! oito
vintenas e oito horas ! e as horas da ausencia do aman-
te , são mais aborrecidas que oito vezes vinte vezes a
fastidiosa contagem do quadrante .

CASSIO

Perdoa-me , Bianca ; tenho andado este tempo opri-


mido com plumbeos pensamentos ; mas , em tempo mais
opportuno, eu te indemnisarei d'esta divida de ausencia.
Doce Bianca (dando- lhe o lenço de Desdemona) copia-
me este trabalho .

BIANCA

O' Cassio , d'onde veio isto ? é por acaso dadiva de


outra amante mais moderna? sinto agora a causa da
sentida ausencia. Já chegamos a isto ? Bem, bem!

CASSIO

Va-se d'ahi , mulher ! atire com as suas vis suspei-


tas aos dentes do diabo , d'onde as tomou . Está ciosa
agora, suppondo que seja uma lembrança de qualquer
amante ! não é , em boa verdade , Bianca .
118 OTHELLO

BIANCA

Então , de quem é ?

CASSIO

Eu tambem não sei ; achei-o no meu quarto . Gosto


do trabalho ; antes de ser reclamado, (como natural-
mente ha de ser) queria-o copiado . Tome ! faça-o , e dei-
xe-me agora .

BIANCA

Deixal-o ? porqué ?

CASSIO

Espero aqui o general e não me parece conveniente ,


nem desejo que elle me veja com uma mulher.

BIANCA

Porqué, se faz favor?

CASSIO

Não que a não ame !

BIANCA

Mas por que me não tem amor a mim. Peço -lhe que
me acompanhe um pouco e diga-me se o verei esta
noite , cedo .
TERCEIRO ACTO 119

CASSIO

É só um momento que a posso acompanhar aqui :


mas vel-a-hei cedo .

BIANCA

Pois muito bem, é forçoso obedecer ás circumstan-


cias. (Saem.)

FIM DO TERCEIRO ACTO


ACTO IV

SCENA I

Defronte do castello

Entram OTHELLO e IAGO

IAGO

Pois póde pensar assim ?

OTHELLO

Pensar assim, Iago !

IAGO

O quê ? por que se dá um beijo ás escondidas ?

OTHELLO

Um beijo illicito !

IAGO

Ou se está nua com o amigo na cama uma hora ou


mais, sem má tenção ?
14
122 OTHELLO

OTHELLO

Nua na cama , Iago , e sem má tenção ? é ser hypo-


crita com o demonio ! Áquelles mesmos que fossem vir-
tuosos e o fizessem, o demonio tentaria a sua virtude e
elles tentavam o ceu .

LAGO

Se elles nada fazem, é uma escorregadella venial :


mas se eu désse um lenço a minha mulher ...

OTHELLO

Então ?

IAGO

Então , era d'ella; meu senhor, e sendo d'ella , póde ,


creio eu, dal-o a qualquer homem.

OTHELLO

Tambem é dona da sua honra ; poderá dal- a por


ventura?

IAGO

A sua honra é uma essencia que se não vè ; muitas


vezes a teem aquelles que a não teem; emquanto porém
ao lenço ...

OTHELLO

Pelo ceu, tel-o -hia de boa vontade esquecido ! - Tu


dizias ? Oh ! volta sempre à minha memoria, como (
corvo á casa infecta, a todos predizendo desgraça ! elle
tinha o meu lenço .
QUARTO ACTO 123

IAGO

Sim ; e que significa isso ?

OTHELLO

Mas não era bonito .

IAGO

Que faria se eu lhe dissesse que tinha visto offen-


del-o - ou que lhe ouvira dizer (por que ha por ahi
taes biltres que tendo logrado o favor de qualquer
amante , pela insistencia das suas importunas solicità-
ções ou por extravagancias d'ella , não podem deixar de
o assoalhar) .

OTHELLO

Disse elle alguma cousa ?

LAGO

Disse , meu senhor ; mas tenha a certeza de que tudo


negará.

OTHELLO

Que disse elle ?

IAGO

Que tinha ... Nem eu sei o que elle fez .

OTHELLO

O quê ? o quê ?
124 OTHELLO

IAGO

Fallado ...

OTHELLO

Com ella?

IAGO

Com ella... sobre ella... como quizer.

OTHELLO

Fallado com ella ! fallado sobre ella ! Nós dizemos


fallado sobre ella, quando a calumniam ; fallado com
ella é asqueroso ! Lenço , confissões ! lenço ! Fazel-o con-
fessar e enforcal-o pela sua obra . Primeiro ser enfor-
cado e depois confessal-o . Tremo de o pensar ! A natu-
reza não se revestiria de tão sombria paixão sem al-
gum forte indicio . Não são palavras que assim me aba-
lariam. Ah ! Narizes , ouvidos e labios : - será possi-
vel ?... Confissão , lenço . O' demonio ! (Cae desmaiado . )

IAGO

Opéra, remedio meu , opéra ! Assim se apanham os


credulos imbecis , e muitas damas dignas e castas tam-
bem assim são condemnadas sem culpa . Então ! Meu
senhor! meu senhor ! Othello !? Olá Cassio ?

Entra CASSIO

CASSIO

O que aconteceu ?

IAGO

O meu senhor cahiu com um ataque de epilepsia ;


este é o segundo, hontem teve o primeiro .
QUARTO ACTO 125

CASSIO

Esfregue-lhe as fontes .

IAGO

Deus me livre : o lethargo precisa seguir tranquilla-


mente o seu curso ; senão lança espuma pela bòcà e
rompe em loucura selvagem. Repare, mexe- se ! retire-
se por um momento ; vae já tornar a si ; em elle sa-
hindo , desejo fallar comsigo em negocio de grande im-
portancia . (sae Cassio) Vamos , general, como está ?
magoou a cabeça ?

OTHELLO

Zombas de mim ?

IAGO

Zombo de si !? Não , pelo ceu ! Prouvera a Deus que


supportasse a sua sorte como um homem .

OTHELLO

Um homem cornudo é um monstro e uma besta .

IAGO

Ha muita besta então n'uma cidade populosa e muito


monstro civilisado .

OTHELLO

Elle confessou-o ?

IAGO

Bom senhor, seja homem ! lembre- se que todo o ente


barbado que está debaixo da canga póde puxar com-
126 OTHELLO

sigo. Ha milhares de vivos agora que dormem todas as


noites em leitos pulluidos , que elles juram pertencer-
lhes exclusivamente . O seu caso é melhor. Oh ! é um re-
quinte do inferno, a archi-zombaria do inimigo , beijar
uma perdida n'um leito legitimo e julgal-a casta ! Não ;
é bom saber ; e sabendo o que eu sou, sei o que ella
será.

OTHELLO

Oh ! tu és perspicaz ! é certo .

IAGO
+
Conserve-se alguns momentos afastado , limite-se a
escutar pacientemente . Emquanto estava ahi oprimido
pela sua dor (uma paixão indignissima n'um tal ho-
mem!) entrou Cassio ; mandei-o embora e dei uma boa
desculpa para o seu desmaio ; disse-lhe que voltasse
depressa e aqui me viesse fallar, o que elle prometeu .
Esconda-se e note o escarneo , a chacota e o visivel des-
prezo que mora em cada canto , da sua casa ; por que
vou fazel-o contar outra vez a historia , onde , como ,
quantas vezes , ha quanto tempo , quando teve ou está
outra vez para ter copula com sua mulher. Repito , re-
pare nos seus gestos . Vamos , paciencia ; ou acreditarei
que de todo em todo está transtornado e deixou de ser
homem.

OTHELLO

Ouves, Iago ? hão de achar-me dissimuladissimo na


minha paciencia , mas , ouves? - crudelissimo !

IAGO

É acertado , mas aguarde a occasião propria . Quer


retirar-se ? (Othello retira-se) Agora vou interrogar
Cassio a respeito de Bianca, uma mulher que vendendo
QUARTO ACTO 127

os seus encantos compra pão e vestidos . Ella adora


Cassio ; visto ser praga das rameiras , enganarem a
muitos e serem enganadas por um só . Cassio , em ouvin-
do fallar d'ella, estalla de riso . Elle ahi vem : -Quando
elle sorrir, Othello enlouquecerá ; e o seu estupido ciu-
me interpretará em seu desfavor os sorrisos , os gestos
e o proceder leviano do pobre Cassio . ( Cassio torna a
entrar) Como está tenente ?

CASSIO

Tanto peor, pois me chama pelo titulo , cuja privação


me mata.

IAGO

Supplique instantemente a Desdemona e tenha a


certeza de que o consegue . Ora se esse pedido depen-
desse de Bianca (baixo) quão depressa seria deferido .

CASSIO

Ai ! pobre desgraçada !

OTHELLO ( á parte)

Vejam, como elle já ri .

IAGO

Não conheci nunca mulher que tanto amasse um


homem .

CASSIO

Oh, coitada ! creio na verdade que me ama.

OTHELLO (a parte)

Agora nega-o dissimuladamente e ri!


128 OTHELLO

IAGO

Ouves, Cassio ?

OTHELLO (á parte)

Agora insta para que conte outra vez : vá, bem dito ,
bem dito .

IAGO

Ella espalha, que a vae desposar : tem essa tenção ?

CASSIO

Ah ! ah ! ah !

OTHELLO (á parte)

Triumphas, romano ? triumphas ?

CASSIO

Eu desposal-a ! que creatura ! peço-te que tenhas


mais caridade com o meu juizo ; e não me creias tão
louco . Ah! Ah! Ah!

OTHELLO (á parte)

Assim! assim ! assim! assim! Quem ganha ri !

IAGO

Pois corre o boato de que a vae desposar .

CASSIO

Peço-te, que falles verdade .


QUARTO ACTO 129

IAGO

Tenha-me por um vilão se assim não é .

OTHELLO (a parte)

Retalhaste-me ? bem !

CASSIO

É um boato inventado por aquella mona . Persuadiu-


se , por amor ou por vaidade , que eu havia de casar
com ella ; não por que eu lh'o promettesse .

OTHELLO (á parte)

Iago faz- me signal ; agora começa a historia.

CASSIO

Ella estava aqui ainda ha pouco ; persegue-me por


toda a parte . No outro dia estava eu na praia conver-
sando com uns venezianos , quando chega a tresloucada
e agarra-me , assim, pelo pescoço ...

OTHELLO (á parte)

Exclamando - O' querido Cassio ! ...-É como se ou-


visse ! o gesto bem m'o diz .

CASSIO

Pendura -se , abraça-me , chora, empurra-me , puxa


por mim! Ah ! ah ! ah!

OTHELLO (á parte)

Agora conta como o conduziu para o meu quarto.-


15
OTHELLO
1339
Oh! vejo esse teu nariz, mas não , ainda , o cão a que o
hei de atirar.

CASSIO

Bem ; preciso deixar a sua companhia .

IAGO

Na minha cara ! Olhe onde ella vem !

CASSIO

Ahi volta a fuinha , mas vamos , uma fuinha perfu-


mada. (entra Bianca) Que quer dizer esta perseguição
que me faz ?

BIANCA

Que o demonio e sua mulher o persigam ! Que si-


gnifica aquelle lenço que ainda agora me deu ? Forte
tola fui eu em lhe pegar ! Quer que o copie ! Bonita his-
toria esta de o encontrar no seu quarto e não saber
quem lá o deixou . É o presente d'alguma descarada e
quer que copie o desenho . Tome-o ! dè-o á sua boneca ,
ou a quem o tirou ; eu não o copio .

CASSIO

Que é isto ? minha doce Bianca, que é isto ? que é


isto ?

OTHELLO (á parte)

Pelo ceu aquelle deve ser o meu lenço!

BIANCA

Se quizer venha cear esta noite comigo ; e se não


quer hoje, venha quando tiver vontade . (Sae. )
QUARTO ACTO 131

IAGO

Siga-a ! siga-a !

CASSIO

Por certo , é forçoso ; quando não é capaz de ir gri-


tar pelas ruas .

IAGO

Ceia lá ?

CASSIO

Sim ; essa é a minha tenção .

IAGO

Bem ; talvez lá o procure ; por que preciso muito fal-


lar-lhe.

CASSIO

Peço -lhe que venha ; quer ?

IAGO

Vá ; não diga mais . (Sae Cassio . )

OTHELLO (adiantando-se)

Como hei de eu matal-o , Iago ?

IAGO

Notou como elle riu da propria libertinagem ?


132 OTHELLO

OTHELLO

Oh ! ...

IAGO

E viu o lenço ?

OTHELLO

Aquelle era o meu ?

IAGO

O seu , por esta mão ! E ver como elle estima aquella


tresloucada mulher- sua esposa ! Ella deu- lh'o e elle
deu-o á barregă !

OTHELLO

Quereria estar nove annos a matal-o . Uma linda


mulher ! uma formosa mulher ! uma adoravel mulher!

IAGO

Vamos, esqueça-se d'isso .

OTHELLO

Sim , deixal- a apodrecer e morrer e ser condemnada


esta noite. Por que não ha de viver, não ! O meu cora-
ção transformou-se em pedra ; bato-lhe e magoa a mi-
nha mão ! Oh ! o mundo não possue mais doce crea-
tura ; podia deitar-se com um imperador e impôr-lhe a
sua vontade.

IAGO

Não vae bem por esse caminho .


QUARTO ACTO 133

OTHELLO

Enforcal-a ? Não digo senão o que ella é ! -tão deli-


cada no lavor da sua agulha ! em musica um primor!
Oh ! o seu canto extinguia a ferocidade do urso ! que
fertilidade de talento ! que explendor de imaginação !

IAGO

Por isso mesmo é que é peor.

OTHELLO

Oh ! mil ! mil vezes ! E depois tão meiga !

IAGO

Oh! demasiado meiga !

OTHELLO

É certo : e comtudo , que pena , Iago ; que pena , Iago !

IAGO

Se tanto gosta da sua iniquidade, dè-lhe carta branca.


para o offender ; por que se não lhe importa, aos outros
ainda menos .

OTHELLO

Hei de migal-a em bocados ; ultrajar-me assim !

IAGO

É ignobil da parte d'ella .


134 OTHELLO

OTHELLO

Com o meu official !

IAGO

Isso é mais ignobil ainda .

OTHELLO

Procura-me algum veneno, Iago ; esta noite ! Não


discutirei com ella ; receio que o seu corpo e a sua bel-
leza entibiem a minha vontade . Esta noite , Iago .

IAGO

Não empregue veneno ; estrangule-a na cama , na


mesma cama que ella contaminou .

OTHELLO

Bem , bem ; essa justiça agrada-me ; muito bem .

IAGO

Emquanto a Cassio, eu me encarrego d'elle . Terá


mais noticias á meia noite. (Um clarim fóra.)

OTHELLO

Optimamente bem ! que clarim é este ?

IAGO

Alguma mensagem de Veneza , por certo . É Ludo-


vico ; vem da parte do Doge ; e veja , sua mulher acom-
panha-o .
QUARTO ACTO 135

Entram LUDOVICO, DESDEMONA e COMITIVA

LUDOVICO

Salvè, digno general .

OTHELLO

De todo o meu coração , senhor.

LUDOVICO

O Doge e senadores de Veneza lhe enviam sauda-


des. (Dando- lhe umas cartas. )

OTHELLO

Beijo o instrumento das suas determinações . (Abre


e lê.)

DESDEMONA

E quaes são as noticias, meu bom primo Ludovico ?

IAGO

Muito folgo de o vèr, senhor ; bemvindo a Chypre .

LUDOVICO

Agradecido . Como vae o tenente Cassio ?

IAGO

Vive, senhor.

DESDEMONA

Primo , deu-se entre elle e o meu senhor uma infeliz


desintelligencia, mas meu primo ha de conciliar tudo .
136 OTHELLO

OTHELLO

Está certa d'isso ?

DESDEMONA

Meu senhor ?

OTHELLO (lendo)

Isto não deixe de o fazer, como melhor lhe pareça .

LUDOVICO

Elle não chamou ; está occupado com a leitura do


papel . Ha desintelligencia entre o meu senhor e Cassio?

DESDEMONA

Ha, e desgraçadissima ; faria muito para os congra-


çar pelo affecto que tenho a Cassio.

OTHELLO

Fogo e enxofre !

DESDEMONA

Meu senhor ?

OTHELLO

Está em seu juizo ?

DESDEMONA

O què ! pois elle está zangado !


QUARTO ACTO 137

LUDOVICO

Póde ser que a carta o excitasse, pois , segundo


penso, ordenam -lhe que regresse , entregando a Cassio o
governo !

DESDEMONA

Creia-me ; folgo muito com isso .

OTHELLO

Devéras ?

DESDEMONA .

Meu senhor ?

OTHELLO

Estimo bastante vel-a doida.

DESDEMONA

Porqué, meu querido Othello ?

OTHELLO

Demonio ! (Bate- lhe . )

DESDEMONA

Não o mereço .

LUDOVICO

Senhor, este facto não seria acreditado em Veneza ,


ainda que eu jurasse que o tinha visto . É demais ; peça-
The perdão ; ella está chorando .
16
138 OTHELLO

OTHELLO

Oh! demonio ! demonio ! se a terra podesse ser fe-


cundada com lagrimas de mulher, cada lagrima derra-
mada produziria um crocodillo . - Fóra da minha vista!

DESDEMONA

Não ficarei , para o não mortificar . (Sahindo .)

LUDOVICO

É na verdade uma senhora obediente . Supplico -lhe


senhor que a chame.

OTHELLO

Senhora !

DESDEMONA

Meu senhor ?

OTHELLO

Que lhe quer ?

LUDOVICO

Quem ? eu?

OTHELLO

Sim ; quiz que a fizesse voltar . Senhor : ella póde


voltar e comtudo seguir e voltar outra vez ; e póde cho-
rar, senhor , chorar, e é obediente como acaba de me
dizer, obediente , muito obediente ! - Continue a verter
lagrimas . - A respeito d'isto, senhor, -Oh ! bem repre-
QUARTO ACTO 139

sentada paixão ! Ordenam-me que regresse . - Vá-se


d'aqui ; mandal-a-hei chamar dentro em pouco . — Se-
nhor -cumprirei as ordens e voltarei a Veneza . - En-
tão ! Fóra ! (sae Desdemona) Cassio occupará o meu
logar - E, senhor , peço -lhe que ciemos juntos esta noite .
Seja bemvindo a Chypre. - Cabros e bugios . ( Sae .)

LUDOVICO

É este o nobre Mouro a quem o nosso senado unani-


memente chamava perfeito em tudo ? -É esta a natureza
que a paixão não podia abalar ? cuja solida virtude nem
os tiros da desgraça , nem as settas do destino podiam
ferir ou penetrar ?

IAGO

Está muito mudado .

LUDOVICO

Estará são o seu entendimento ? não se lhe terá var-


rido o juizo ?

IAGO

Elle é o que é : não posso exercer a respeito d'elle a


minha critica. O que elle podia ser - se o que podia
não é, --- prouvéra ao ceu que o fosse.

LUDOVICO

O quê? bater em sua mulher ?

IAGO

Por minha fé , não foi bem feito ; comtudo eu quizera


estar certo de que era aquella a peor das suas violen-
cias.
140 OTHELLO

LUDOVICO

É isto costume d'elle ? ou foram as cartas que actua-


ram sobre o seu sangue e geraram este seu desmando?

IAGO

Ai ! não seria honesto da minha parte dizer o que


tenho visto e sabido . Ha de observal-o e as suas acções
tanto o darão a conhecer que eu poderei dispensar-me
de fallar : basta que o siga e notará a sequencia dos
seus actos .

LUDOVICO

Peza-me ter-me enganado com elle . ( Saem.)

SCENA II

Um aposento no castello

Entram OTHELLO e EMILIA

OTHELLO

Então, não tem visto nada ?

EMILIA

Nem nunca ouvido , nem nunca suspeitado .

OTHELLO

Sim, tem visto Cassio e ella juntos .


QUARTO ACTO 141

EMILIA

Mas então ? não vi mal algum ; e n'essas occasiões


ouvi cada syllaba que pronunciaram.

OTHELLO

O quê ? Pois elles não se fallavam baixo ?

EMILIA

Nunca, meu senhor .

OTHELLO

Nunca a mandaram sahir!

EMILIA

Nunca.

OTHELLO

Nem para trazer o seu leque , as suas luvas , a sua


mascara, nem nada ?

EMILIA

Nunca , meu senhor .

OTHELLO

É extraordinario !

EMILIA

Atrevo-me, senhor, a jurar que ella é honesta ; dava


em penhor a minha alma ; se pensa o contrario afaste
142 OTHELLO

de si esse pensamento , engana o seu coração . Se al-


gum desgraçado lhe metteu isso em cabeça , que o ceu
The pague com a maldição da serpente ! por que se ella
não é honesta, casta e fiel , não ha homem feliz ; a mais
pura das esposas é torpe como a calumnia.

OTHELLO

Ordenc-lhe que venha aqui . - Vá . - (sae Emilia)


Disse bastante ; - comtudo ella é uma simples alcaiota
que não pode dizer mais ; é uma astuta rameira, um
gabinete fechado á chave , repleto dos mais impudicos
segredos e comtudo póde ajoelhar e rezar ; eu já lh'o
vi fazer .

Entram DESDEMONA e EMILIA

DESDEMONA

Que manda , meu senhor ?

OTHELLO

Peço-lhe que se aproxime .

DESDEMONA

Que pretende ?

OTHELLO

Deixe-me ver os seus olhos ; olhe bem para mim.

DESDEMONA

Que horrivel capricho é este ?

OTHELLO (a Emilia)

.
Exerça o seu officio , senhora ; deixe macho e femea
QUARTO ACTO 143

a sós e feche a porta ; tuça ou faça hem se alguem vier .


Ao seu officio, ao seu posto - vá ! avie-se !! (Emilia
sae.)

DESDEMONA

De joelhos lhe pergunto o que querem dizer essas


palavras ? comprehendo que ha colera n'ellas, mas não
comprehendo as palavras .

OTHELLO

Pois que és tu ?

DESDEMONA

Sua esposa, meu senhor, a sua fiel e leal esposa.

OTHELLO

Vamos ! jura-o e condemna-te ; pareces tanto do


ceu, que podem recear os demonios apoderar-se de ti ;
vamos pois , condemna-te duplamente, jura que és ho-
nesta !

DESDEMONA

O ceu bem o sabe !

OTHELLO

O ceu bem sabe que és falsa como o inferno .

DESDEMONA

A quem, meu senhor ? com quem? como sou eu


falsa ?

OTHELLO

Ah! Desdemona , vae-te !... vac-te ! vae-te !


144 OTHELLO

DESDEMONA

Ai ! dia tremendo ! porque chora ? sou eu o motivo.


d'essas lagrimas , meu senhor? Se por ventura suspeita
.
que meu pae seja o instrumento da sua exoneração ,
não lance a culpa sobre mim ; se o perdeu , perdi-o eu
tambem .

OTHELLO

Tivesse aprazido ao ceu experimentar-me com afflic-


ções ; tivesse elle derramado toda a sorte de pustulas e
vergonhas sobre a minha fronte ; tivesse-me elle mergu-
lhado em miseria até aos labios , dado ao captiveiro a
mim e ás minhas mais caras esperanças , teria achado
em algum recanto da minha alma uma gota de pacien-
cia : mas ai ! fazer de mim a figura fixa do tempo ,
para o escarneo me apontar, movendo lentamente o
dedo ! ... Ainda o podia supportar ; bem, muito bem :
mas ali , onde cu tinha depositado o meu coração , onde
me é forçoso viver, ou renunciar á vida , o manancial de
onde brota a minha corrente, sem o que se estancaria ;
ser d'ali expulso ou guardal-a como uma cisterna, para
asquerosos sapos terem copula e procrearem ! transfor-
ma o teu rosto , ó paciencia , joven cherubim de roseos
labios ! e apparece-me negro como o inferno !

DESDEMONA

Espero meu nobre senhor, que me creia honesta .

OTHELLO

Oh sim ; como as moscas de verão nos açougues ,


que tem copula mesmo voando . O' erva daninha , tão
bella e tão suavemente fragrante , que os sentidos se
embriagam ao teu contacto, oxalá nunca tivesses nas-
cido !
QUARTO ACTO 145

DESDEMONA

Ai! que peccado terei eu inconscientemente com-


mettido ?

OTHELLO

Foi este esplendido velino , este formosissimo livro


feito para n'elle se escrever : -prostituta !-- Que terás
commettido ? commettido ! ó tu escoria das meretrizes !
Quizera que fossem forjas as minhas faces para reduzi-
rem a cinzas a modestia , só com fallar das tuas acções .
Que commetteste ? O ceu tapa o nariz e a lua fecha os
olhos . O vento libertino , que beija tudo quanto encontra ,
conserva-se mudo e quedo nos antros da terra e re-
cusa-se a escutal-o . Que commetteste ! impudente ra-
meira!.

DESDEMONA

Pelo ceu , injuria-me !

OTHELLO

Não é uma rameira ?

DESDEMONA

Não ! tão verdade como eu ser christa ! Se o preser-


var este vaso para o meu senhor, de qualquer outro
torpe e illicito contacto , é não ser rameira, não o

OTHELLO

Què ?! não é uma prostituta ?

DESDEMONA

Não ! assim Deus me salve !


17
146 OTHELLO

OTHELLO

Será possivel?

DESDEMONA

O ceu nos perdoe !

OTHELLO

N'esse caso peço-lhe perdão . Tomei-a por aquella


astuta corteză de Veneza, que casou com Othello . Olá !
mulher que tem o officio opposto ao de S. Pedro e
guarda a porta do inferno ! -(torna a entrar Emilia)
Olá ! olá! olá ! acabámos de conversar; ahi tem dinheiro
pelo seu trabalho : peço-lhe que de volta á chave e
guarde o nosso segredo . (Sae. )

EMILIA

Deus do ceu ! que suspeita este homem? como está ,


senhora? como está minha boa senhora ?

DESDEMONA

Por minha fé, meio aniquilada !

EMILIA

Minha boa ama, que se passa com o meu senhor ?

DESDEMONA

Com quem ?

EMILIA

Mas ... com o meu senhor, minha boa ama.


QUARTO ACTO 147

DESDEMONA

Quem é o teu senhor?

EMILIA

Aquelle que tambem é seu, minha senhora.

DESDEMONA

Nenhum teuho ; não me falle , Emilia ; eu não posso


chorar ; nem tenho outra resposta que não devesse dar-
se com lagrimas . Peço-te que ponhas esta noite na mi-
nha cama os lençoes do meu casamento ; não te esque-
ças, e chama aqui teu marido.

EMILIA

Que grande mudança na verdade ! (Sae . )

DESDEMONA

É bem que assim fosse tratada ! é justissimo . De


que modo me comportei eu, para que elle podesse ligar
a minima suspeita ao menos abusivo dos meus actos ?

Torna a entrar EMILIA e IAGO

IAGO

Que deseja, senhora? que lhe aconteceu?

DESDEMONA

Não o posso dizer. Os que educam creancinhas fa-


zem-n'o com meios brandos e faceis tarefas : elle podia
ter-me reprehendido assim, porque eu sinceramente ,
sou uma creança quando ralham comigo .
448 OTHELLO

IAGO

Que novidades ha, senhora ?

EMILIA

Ai , lago, ai de mim! o meu senhor abocanhou-a


tanto de prostituta , lançou tão malignos e pesados in-
sultos sobre ella , que aos corações nobres não é dado
supportal-os .

DESDEMONA

Eu sou ... esse nome, Iago ?

IAGO

Que nome, formosa senhora ?

DESDEMONA

O que ella disse que o meu senhor disse que eu era!

EMILIA

Chamou-lhe prostituta ! um mendigo ebrio não teria


lançado taes vilipendios sobre a sua amasia.

IAGO

Porque disse elle semelhante cousa ?

DESDEMONA

Não sei ; estou certa de que não sou nenhuma das


taes .

IAGO

Não chore ! não chore ! Dia aziago !


QUARTO ACTO 149
19

EMILIA

Pòz ella de parte por ventura tão nobres casamen-


tos, seu pae, o seu paiz , as suas amizades, para ser
acoimada de prostituta ! Não faz isto chorar?

DESDEMONA

É a minha desgraçada sorte .

IAGÓ

Amaldiçoc-o por isso . D'onde lhe viria tal desmando ?

DESDEMONA

Só Deus o sabe !

EMILIA .

Enforquem-me se algum consumado vilão , algum


insinuante e diligente biltre, algum lisongeiro e bajula-
dor sabujo, não inventou esta calumnia para alcançar
algum emprego ; enforquem-me se assim não é !

IAGO

Ora, não ha homem assim, é impossivel .

DESDEMONA

Se o ha que o ceu lhe perdoe.

EMILIA

Que uma corda seja o seu perdão ! e o inferno lhe


ròa os ossos ! Porque havia d'elle chamar-lhe prostituta ?
quem a requesta ? em que sitio ? quando ? de que fórma?
150 OTHELLO

quaes os indicios ? O Mouro anda enganado por algum


vilissimo biltre, algum despresivel e insigne patife , al-
gum pustulento desavergonhado . O' ceu, que patenteias
taes seres ! mette em cada mão honesta um latego, para
retalhar as carnes a esses garotos , correndo o mundo.
do oriente ao occidente !

IAGO

Falla baixo !

EMILIA

Oh! vergonha sobre elles ! da mesma casta era aquelle


que lhe transtornou a cabeça e o fez suspeitar de mim
com o Mouro . !

IAGO

És uma tola ; vae-te .

DESDEMONA

Ai de mim, Iago ! que hei-de eu fazer para reconquistar


o affecto do meu senhor? Bom amigo, vae ter com elle,
porque, por esta luz do ceu, não sei como o perdi . Aqui
ajoelho ; se alguma vez a minha vontade peccou contra
o seu amor, por pensamentos ou por obras, ou se os
meus olhos , os meus ouvidos ou quaesquer outros sen-
tidos se deleitaram com outras formas, que não as suas ,
se lhe não quero muito, e sempre quiz e hei-de querer,
ainda que elle me repudie por meio de escandaloso di-
vorcio , amando-o ternamente , que a consolação me
abandone. Maus tratos podem fazer muito ... e os seus
maus tratos podem aniquilar a minha vida , mas nunca
macular o meu amor. Não posso pronunciar -prosti-
tuta, -horrorise-me quando digo essa palavra ; mas pra-
ticar o acto que podia grangear esse nome, nem todas
as vaidades da terra me levariam a pratical- o .
QUARTO ACTO 151

IAGÓ

Peço-lhe que se acalme ; é apenas um assòmo de


mau humor ; algum negocio de estado o afflige , e por
isso elle ralha com a senhora .

DESDEMONA

Se não fosse senão isso ?

IAGO

É só isso , afianço -lh'o eu . (clarins fóra) Escute !


como estes instrumentos chamam para a ceia, os men-
sageiros de Veneza esperam-n'a . Vá e não chore ; tudo
acabará em bem. (saem Desdemona e Emilia; entra
Rodrigo) Olá Rodrigo !

RODRIGO

Não acho que andes lisamente comigo .

IAGO

Que provas tens em contrario ?

RODRIGO

Todos os dias inventas algum novo subterfugio ,


Iago ; e , segundo agora me parece, mais afastas de mim
qualquer circumstancia favoravel do que me proporcio-
nas a mais leve esperança . Não estou disposto , com
franqueza , a aturar isto por mais tempo , nem estou
resolvido a remoer em silencio o que já tão estupida-
mente tenho aguentado .

IAGO

Quer ouvir-me , Rodrigo ?


152 OTHELLO

RODRIGO

Já o tenho ouvido de mais, porque as suas palavras


não estão em relação com o seu procedimento .

IAGO

Accusa-me com a maior injustiça .

RODRIGO

Só com verdade . Tenho gasto mais do que podia .


As joias que lhe confiei para dar a Desdemona , teriam,
metade d'ellas , corrompido uma professa ; tem-me dito
que ella as tem recebido, compensando-me com a espe-
rança d'um proximo reconhecimento e apresentação ,
mas por ora nada !

IAGO

Bem , continue ! Muito bem.

RODRIGO

Muito bem ? continue ? não posso continuar, homem ,


nem isto é muito bem. Mais ainda , acho que é torpe , e
coméço a convencer-me de que tenho sido ludibriado .

IAGO

Muito bem !

RODRIGO

E eu já lhe disse que não é muito bem. Vou apre-


sentar-me a Desdemona ; se ella quer restituir-me as
minhas joias , renunciarei á minha pretensão e arrepen-
der-me-hei das minhas illicitas solicitações ; se não,
póde estar certo de que lhe exigirei uma satisfação .
QUARTO ACTO 153

IAGO

Já disse tudo ?

RODRIGO

Já ; e não disse nada que não proteste cumprir.

IAGO

Vejo agora que és homem de coragem, e desde este


momento faço de ti melhor conceito do que nunca fiz até
hoje . Dá-me a tua mão , Rodrigo : tu estás com razão
escandalisado comigo e comtudo juro-te que tenho an-
dado muito lizamente n'este teu negocio .

RODRIGO

Não me tem parecido .

IAGO

Concordo ; na verdade não o tem parecido ; e a tua


suspeita não é destituida de sagacidade e de bom senso ;
mas se tens em ti, Rodrigo , o que tenho poderosas ra-
zões para crêr que tens , - quero dizer : - decisão , cora-
gem e valor, mostra-o esta noite . Se na immediata não
gosares Desdemona, arranca-me d'este mundo com
morte aleivosa, e inventa insidias contra a minha vida.

RODRIGO

Bem ; que é? cousa rasoavel e exequivel ?

IAGO

É vinda de Veneza uma commissão especial para


conferir a Cassio o logar de Othello .
18
154 OTHELLO

RODRIGO

Isso é certo ? n'esse caso Othello e Desdemona vol-


tam a Veneza ?

IAGO

Oh ! não ; elle vae para a Mauritania e leva comsigo


a bella Desdemona, a não ser que a sua estada aqui te-
nha que prorogar-se por algum acontecimento impre-
visto ; ora nenhum póde ser tão efficaz como a remoção
de Cassio .

RODRIGO

Que quer dizer com essa remoção ?

IAGO

Ora ! impossibilitando-o de exercer o logar d'Othello


--deitando -lhe fóra os miolos .

RODRIGO

E quer que eu o faça?

IAGO

De certo ! se ousar fazer para si mesmo um proveito


e uma justiça . Elle ceia esta noite com uma loureira e
com elle me hei de lá encontrar ; elle nada sabe ainda
da sua brilhante fortuna ; se o quizer esperar á sahida ,
o que arranjarei que se verifique entre a meia noite
e a uma hora, - póde apanhal-o á sua vontade ; eu es-
tarei perto para secundar o seu ataque e cahirá ás mãos
de nós ambos . Vamos , não fique para ahi pasmado, ve-
nha comigo ; hei de provar-lhe tanto a necessidade da
QUARTO ACTO 155

morte d'elle , que ha de julgar-se obrigado a matal-o . É


mais que tempo de estar a cear, e a noite vae passando .
Mãos á obra .

RODRIGO

Preciso ouvir mais razões para decidir-me .

IAGO

Ouvil-as-ha ! fique descansado . (Saem. )

SCENA III

Outro aposento no castello

Entram OTHELLO, LUDOVICO, DESDEMONA, EMILIA e COMITIVA

LUDOVICO

Peço-lhe, Senhor, que não se dè mais incommodo .

OTHELLO

Oh, desculpe-me ; andar deve-me fazer bem .

LUDOVICO

Boas noites, minha senhora ; humildemente agradeço


a Vossa Senhoria.

DESDEMONA

Vossa honra, é sempre bemvindo .

OTHELLO

Quer vir passear, Senhor ? O' Desdemona ?


156 OTHELLO

DESDEMONA

Meu Senhor?

OTHELLO

Vá já para a cama ; estarei de volta em breve . Des-


peça a sua aia ; e cumpra o que lhe digo .

DESDEMONA

Sim, meu Senhor. (Saem Othello, Ludovico e comi-


tiva.)

EMILIA

Como vae isto agora? elle parece mais manso do que


antes .

DESDEMONA

Disse que volta immediatamente ; ordenou-me que


fosse para a cama , e mandou que a despedisse .

EMILIA

Que me despedisse ?!

DESDEMONA

Foi a sua ordem ; por isso , boa Emilia , dê-me a mi-


nha roupa de noite e adeus ; precisamos não o desgos-
tar agora.

EMILIA

Desejava que nunca o tivesse visto .


QUARTO ACTO 157

DESDEMONA

Outro tanto não desejava eu; o meu amor por elle


é tão entranhado , que mesmo a sua rudeza , os seus re-
pellões e os seus sobresenhos (peço-te que me deṣaper-
tes) são para mim graça e mimos .

EMILIA

Puz na cama os lençoes que me mandou .

DESDEMONA

Bem. Santo Deus , que loucas somos ! Se morrer an-


tes de ti, peço-te que me amortalhes n'um d'esses len-
çoes .

EMILIA

Vamos, vamos ; que está dizendo !

DESDEMONA

Minha mãe tinha uma creada chamada Barbara.


Barbara estava namorada ; e aquelle que ella amava en-
louqueceu e abandonou-a : ella sabia uma canção do sal-
gueiro; era uma cousa antiga , mas retratava a suà
sorte ; e morreu cantando-a. Essa canção não me quer
esta noite sahir da imaginação ; custa-me muito não re-
elinar a minha cabeça toda a um lado e cantal-a como
a pobre Barbara . Avia-te , anda , avia-te .

EMILIA

Trago-lhe o seu roupão de noite ?

DESDEMONA

Não ; desaperta-me aqui ; -este Ludovico é um bello


homem .
158 OTHELLO

EMILIA

Um lindissimo homem!

DESDEMONA

Conversa bem .

EMILIA

Conheço uma Senhora de Veneza, que teria ido des-


calça á Palestina só por sentir o contacto do seu labio
inferior.

DESDEMONA (cantando )

Ao pé de um sicomoro
a triste exhalava
suspiros de dor.
Cantae todos , todos , o verde salgueiro,
no peito a mão tremula ;
nos joelhos pousava
a fronte, em suor.
Cantae o salgueiro, salgueiro, salgueiro.
Ao pé brando corrego
seus ais e ternuras
repete, e lhe apraz .
Cantae o salgueiro, salgueiro, salgueiro.
Emquanto com lagrimas
as pedras mais duras
abranda e desfaz .

Põe isto ahi .

Cantae o salgueiro, salgueiro, salgueiro,

Avia-te depressa ; elle não tarda .

Dá-me a c'roa funebre


salgueiro indefeso ;
cantae-o, cantae.
Não o accusem ! prezo -lhe
o proprio desprezo
que sobre mim cae.

Não é isto o que se segue ; escuta ! quem bate ?


QUARTO ACTO 159

EMILIA

É o vento .

DESDEMONA

Eu chamei-lne perfido !
respondeu-me... horrores
que não diz ninguem.
Cantae o salgueiro, salgueiro, salgueiro .
-Se eu sou falso, entrega-te
a outros amores ;
sê falsa tambem!

Agora vae-te , boas noites ; ardem-me os olhos , será


presagio de lagrimas ?

EMILIA

Não é presagio de nada .

DESDEMONA

Tenho-o ouvido dizer. Oh ! estes homens, estes ho-


mens ! Em consciencia pensas tu, dize-me Emilia , que
ha mulheres que enganem seus maridos de uma tão
torpe maneira ?

EMILIA

Ha , sem duvida , algumas.

DESDEMONA

Praticarias tu , pelo mundo inteiro, uma tal acção ?

EMILIA

E a Senhora , não ?
160 OTHELLO

DESDEMONA

Não , por esta luz do ceu!

EMILIA

Nem eu por esta luz do ceu . Podería pratical-a egual-


mente ás escuras .

DESDEMONA

Commetterias tu uma tal acção, pelo mundo todo?

EMILIA

O mundo é uma cousa muito grande, e um exage-


rado premio para um pequeno crime.

DESDEMONA

Em consciencia, penso que o não farias .

EMILIA

Em consciencia penso que o faria ; e desfazel-o - ia


depois de feito . Não o faria por um duplo annel ou por
umas medidas de fazenda, nem por vestidos , saias , tou-
cados ou quaesquer outras insignificancias ; mas pelo
mundo todo ; quem não coroaria o marido para o fazer
monarcha ? eu por isso arriscava-me ao purgatorio .

DESDEMONA

Amaldiçoada seja eu se , pelo mundo todo , commet-


tesse semelhante crime.

EMILIA

Ora ! O crime é só crime no mundo ; e tendo obtido


QUARTO ACTO 161

o mundo pelo seu trabalho , é um crime no seu proprio


mundo e podia depressa convertel-o em virtude .

DESDEMONA

Não creio que haja uma tal mulher.

EMILIA

Sim , uma duzia ; e tantas a aproveitar-se , quantas


seriam necessarias para encher o mundo , para ganhar
qual trabalham . Eu porém penso que se as mulheres
caem, a culpa é de seus maridos ; se elles se relaxam
nos seus deveres e lançam os nossos thesouros em re-
gaços estranhos ; se rompem em enfadonhos ciumes ,
impondo-nos peias ; se nos batem, ou por despeito nos
cerceiam o que antes tinhamos . Ora, nós temos fel, e
ainda que possuamos alguma benevolencia tambem te-
mos rancor. Conheçam os maridos que suas mulheres
teem sentidos como elles : ellas vèem, cheiram e teem
paladar para o doce e azedo como teem os maridos ..
Que fazem elles quando nos trocam por outras ? é por
prazer ? creio que sim ; é a affeição que os leva ? tam-
bem o creio ; é a fragilidade que assim os faz errar?
tambem assim é ; e não temos nós affeições , appetites
e fraquezas como os homens ? Então que elles nos tra-
tem bem, ou aliás saibam que o mal que lhes fazemos
é-nos ensinado pelo mal que nos fazem.

DESDEMONA

Boas noites , boas noites. O ceu me conceda sem-


pre taes costumes , que eu não colha nunca do mal o
mal , mas do mal a emenda ! (Saem .)

FIM DO QUARTO ACTO

19
ACTO V

SCENA 1

Chypre . Uma rua

Entram IAGO e RODRIGO

IAGO

Aqui ; esconde-te n'esse recanto ; elle está a chegar :


desembainha a tua boa espada e enterra-lh'a bem . De-
pressa, depressa ; não receies nada , estarei a teu lado :
isto ou nos salva ou nos perde; pensa no caso e fixa
definitivamente a tua resolução .

RODRIGO

Não vás para longe ; posso não me sahir bem.

IAGO

Aqui ; ao alcance da tua mão . Cobra animo e põe-te


no teu logar. (Retira-se a pequena distancia.)

RODRIGO

Não tenho grande enthusiasmo por esta façanha e


164 OTHELLO

no entanto elle tem empregado para comigo argumen-


tos convincentes : -é apenas um homem que desappa-
rece ; arranca-te minha espada ; é homem morto . (Vae
para o seu posto.)

IAGO

Esfreguei-lhe a borbulha até a por em carne viva ;


irrita- se. Agora, que elle mate Cassio ou que Cassio o
mate a elle , ou se matem um ao outro , redunda tudo em
meu proveito. - Vivendo Rodrigo , reclama de mim uma
larga restituição de ouro e joias que lhe empalmei a ti-
tulo de dadivas a Desdemona ; não póde ser : se Cassio
fica, tem na sua vida uma diuturna belleza que me
torna feio a mim, e demais o Mouro póde descobrir-lhe
as minhas gentilezas ; ahi corro um grande perigo ; não;
é preciso que morra; mas escuta ! elle ahi vem.

Entra CASSIO

RODRIGO

Conheço-lhe o andar, é elle : - vilão , vaes morrer .


(Salta do seu recanto e atira um bote a Cassio . )

CASSIO

Esse golpe ter-me-ia deveras damnificado, se a mi-


nha cota não fosse melhor do que pensavas : — vou ex-
perimentar a tua . (Desembainha, e fere Rodrigo.)

RODRIGO

Ai ! mataram-me . (Iago arremeça -se do seu posto,


acutila Cassio por traz n'uma perna e sae.)

CASSIO

Estou aleijado para sempre ... Soccorro ! acudam !


assassinio ! assassinio ! (Cae.)
QUINTO ACTO 165

Entra OTHELLO , a distancia

OTHELLO

A voz de Cassio ... Iago cumpre a sua palavra .

RODRIGO

Oh! vilão que eu sou!

OTHELLO

É mesmo assim .

CASSIO

Oh ! soccorro ! oh! luz ! um cirurgião .

OTHELLO

É elle ; ó valente Iago, honesto e justo , que com-


partilhas tão nobremente o ultrage do teu amigo ! tu en-
sinas-me . Formosa, o teu querido jaz morto e o teu
destino precipita-se. Prostituta, ahi vou . Para longe do
meu coração esses encantos ! Os teus olhos estão apa-
gados ; o teu leito que a luxuria polluiu vae ser tinto
com o teu sangue luxurioso . (Sae . )

Entram LUDOVICO e GRACIANO a distancia

CASSIO

Que ? olá ! não ha ronda ? ninguem passa ? Assassi-


nio ! assassinio !

GRACIANO

Alguma desgraça ; a voz é muito lastimosa .


166 OTHELLO

CASSIO

Oh! soccorro !

LUDOVICO

Escuta !

RODRIGO

O' vilão miseravel!

LUDOVICO

Dous ou tres se lamentam ; é uma terrivel noite ;


isto podem ser armadilhas ; julgo imprudente acudir a
esses gritos sem mais auxilio .

RODRIGO

Ninguem vem ? então morro esvaido em sangue .

LUDOVICO

Escuta !

GRACIANO

Ahi vem um em mangas de camisa, com luz e ar-


mas .

Entra IAGO

IAGO

Quem está ahi ? que barulho é este, gritando á voz


de assassinio ?
QUINTO ACTO 167

LUDOVICO

Nós não sabemos .

IAGO

Não ouviram um grito ?

CASSIO

Aqui, aqui , por Deus , soccorram-me .

IAGO

Que ha de novo ?

GRACIANO

Este é o alferes de Othello , se me não engano .

LUDOVICO

Em pessoa, sem duvida ; um valentissimo rapaz !

IAGO

Quem grita ahi tão lastimosamente ?

CASSIO

Iago ? oh ! estou aleijado ! aniquilaram-me os scele-


rados ! dá-me algum soccorro .

IAGO

Ai de mim, tenente ! que malvados fizeram isto ?


168 OTHELLO

RODRIGO

Julgo que um d'elles está por ahi e não póde fugir.

IAGO

Ah ! traidores vilões ! que ? (a Ludovico e Graciano)


estão ahi? venham cá e prestem algum soccorro .

RODRIGO

Ai! acudam-me !

CASSIO

Esse é um d'elles .

IAGO

O' miseravel assassino ! ó malvado ! ( apunhala Ro-


drigo.)

RODRIGO

O' maldito Iago ! ó perro inhumano !

IAGO

Matar homens nas trevas ! ... Onde estão estes ban-


didos sanguinarios ? -Que silenciosa está esta cidade !
Olá ! assassinatos, assassinatos ! Que serão os senho-
res? São gente de bem ou de mal?

LUDOVICO

Julgue-nos pelos nossos actos .

IAGO

Senhor Ludovico ?
QUINTO ACTO 169

LUDOVICO

Elle mesmo, senhor.

IAGO

Peço-lhe perdão ... Aqui está Cassio ferido por ban-


didos .

GRACIANO

Cassio !

IAGO

Como vae isso , irmão ?

CASSIO

A minha perna está cortada em duas.

IAGO

Ora essa ! não o permitta o ceu ! alumiem- me se-


nhores ; -vou ligal-o com a minha camisa.

Entra BIANCA

BIANCA

Que succedeu ? heim ? quem foi que gritou ?

IAGO

Quem foi que gritou?

BIANCA

O' meu querido Cassio ! meu doce Cassio ! Cassio!


Cassio ! Cassio !
20
170 OTHELLO

IAGO

Insigne rameira! Cassio, póde suspeitar quem se-


riam os que assim o maltrataram ?

GRACIANO

Sinto muito encontral-o assim, eu tinha ido procu-


ral-o .

IAGO

Empreste-me uma liga - assim - oh quem me déra


uma cadeira para o levar commodamente d'aqui !

BIANCA

Ai! elle desmaia ! O' Cassio ! Cassio ! Cassio!

IAGO

Senhores , suspeito que este bandalho teve parte


n'este attentado . Um momento de paciencia, bom Cas-
sio . - Vamos , vamos ; alumiem-me . - Conhecemos nós
esta cara ou não ? ... Ai de mim! o meu amigo e que-
rido compatriota Rodrigo ? Não : -sim certamente, -oh
ceus ! Rodrigo !

GRACIANO

Qué ? o de Veneza ?

IAGO

Elle mesmo, senhor ; conhecem -n'o ?

GRACIANO

Se o conhecemos ? De certo .
QUINTO ACTO 171
17

IAGO

Senhor Graciano , eu supplico humildemente o vosso


generoso perdão ; estas scenas sanguinolentas devem
desculpar as minhas maneiras desatenciosas, e o pouco
caso que fiz da sua pessoa .

GRACIANO

Estimo vel-o .

IAGO

Como está, Cassio ? oh ! uma cadeira ! uma cadeira!

GRACIANO

Rodrigo !

IAGO

Elle ! elle ! é elle . - Dito e feito ; a cadeira, ahi vem a


cadeira ; leve-o d'aqui com cuidado algum homem cari-
doso ; -vou buscar o cirurgião do general . — Quanto a
ti , rapariga, (a Bianca) dispensamos os teus cuidados .
O que ali está prostrado, Cassio , era o meu querido
amigo ; que desavença havia entre os dois ?

CASSIO

Nenhuma absolutamente; nem eu conheço o homem.

IAGO (a Bianca)

Como é isso ? empalidece ? Oh ! levem-n'o d'aqui, ti-


rem-n'o do ar. (levam Cassio e Rodrigo) Fiquem meus
senhores . Estás pallida, rapariga? Notem como o seu
olhar é espantado . Nada ! Se assim está já , espavorida ,
172 OTHELLO
T2

que fará d'aqui a pouco . -Reparem bem n'ella , peço-


lhes que olhem bem para ella ; vêem senhores ? -sem-
pre o crime se revella ; mesmo quando se acabasse o
uso das linguas .

Entra EMILIA

EMILIA

Ah! que aconteceu, marido meu, que aconteceu?

IAGO

Rodrigo e outros companheiros que fugiram, acom-


metteram nas trevas Cassio , que está moribundo ; Ro-
drigo está morto .

EMILIA

Ai! que excellente rapaz ! Ai ! bom Cassio!

IAGO

É o que se tira da vida airada . Peço-te um favor


Emilia ; vae saber onde Cassio ceou esta noite . - Como!
isto fal-a tremer?

BIANCA

Ceou em minha casa , mas isso não me faz tremer.

IAGO

Ah ! isso é assim? ordeno-lhe que me acompanhe .

EMILIA

Vergonha, vergonha sobre ti , prostituta !


QUINTO ACTO 173

BIANCA

Não sou nenhuma prostituta , antes levo tão honesta


vida como a senhora, que me insulta .

EMILIA

Como eu ? abrenuncio ! figas para ti !

IAGO

Mas senhores , vamos fazer cuidar do pobre Cassio ;


vamos , rapariga, tens que nos contar outro conto.-
Emilia , corra á cidadella e diga ao senhor e á senhora o
que aconteceu. Quer-nos preceder ? (a parte) Esta noite ,
faz ou destroe completamente a minha fortuna.

SCENA II

Um quarto de cama, Desdemona dormindo


na cama, uma luz acceza

Entra OTHELLO

OTHELLO

É a causa , é a causa , ó minha alma . Permitti que a


não diga a vós , castas estrellas ! a causa é esta . - Com-
tudo não quero derramar o seu sangue ; nem lacerar a
sua pelle , mais alva que a neve , e lisa como o alabas-
tro d'um moimento . (tira a espada) É porém preciso
que morra, senão , póde trahir outros homens . - Apa-
gar a luz , e depois ... Apagar a luz ? Se te apago a ti ,
ministro flammante, posso , arrependendo-me, restituir-te
a primitiva chamma ; extincta, porém, uma vez a tua ,
formosissimo modelo da opulenta natureza , não sei
174 OTHELLO

onde está o fogo de Prometheu que a possa reaccender.


Quando te houver colhido a rosa, não posso restituir-
The a sua potencia vital ; mas é forçoso que murche : -
vou na haste aspirar-lhe o aroma . (beijando -a) Oh ! ha-
lito suave ! que induzes quasi a justiça a quebrar a sua
espada ! ... Mais um, mais um. - Sè assim quando es-
tiveres morta . - Mato-te , e amo-te depois . - Outro ainda !
O derradeiro ! Nunca o houve tão doce que fosse tão fa-
tal. Começo a chorar, mas são lagrimas crucis : esta
dor é celestial : fere quem ama.- Ella acorda !

DESDEMONA

Quem está ahi ? Othello ?

OTHELLO

Sim, Desdemona .

DESDEMONA

Vem deitar-se , meu senhor ?

OTHELLO

Resou esta noite, Desdemona ?

DESDEMONA

Sim, meu senhor.

OTHELLO

Se se recorda d'alguma cousa até agora não per-


doada pelo ceu, implore já o seu perdão .

DESDEMONA

Ah ! meu senhor, que quer dizer com isso ?


QUINTO ACTO 175

OTHELLO

Vamos ! fal-o e sè breve ; eu passeio por aqui :, não


quizera matar-te o espirito em peccado ; não ! o ceu não
o permitte. - Não quizera matar a tua alma.

DESDEMONA

Falla de matar?

OTHELLO

Sim , fallo .

DESDEMONA

Então o ceu se compadeça de mim !

OTHELLO

Amen, de todo o meu coração .

DESDEMONA

Posto que assim o diga, espero que me não mate .

OTHELLO

Um !

DESDEMONA

Comtudo assusta-me ! É implacavel quando os seus


olhos se revolvem d'esse modo ... Por que eu deva te-
mer não sei , visto que em mim não ha culpa ; comtudo
sinto que temo .

OTHELLO

Pensa nos teus peccados.


176 OTHELLO

DESDEMONA

São o amor que lhe consagro .

OTHELLO

Sim, e por isso morres .

DESDEMONA

É morte contra a natureza a que se dá por amor.


Ai ! por que morde assim o labio inferior ? Alguma pai-
xão sangrenta lhe sacode os membros todos : -são pre-
nuncios ; comtudo eu espero , espero não ser o alvo a
que se dirigem.

OTHELLO

Silencio ! e queda !

DESDEMONA

Obedeço . Mas que é isto ?

OTHELLO

Aquelle lenço que eu estimava tanto e que te dei, tu


deste-o a Cassio.

DESDEMONA

Não ! pela minha vida, pela minha alma ; mande-o


chamar e pergunte-lh'o .

OTHELLO

Doce alma, toma cuidado , toma cuidado , não jures


falso , estás no teu leito de morte !
QUINTO ACTO 177

DESDEMONA

De certo, mas não ainda para morrer !


/
OTHELLO

Sim, d'aqui a momentos ; por isso confessa franca-


mente o teu crime ; pojs nem mesmo negal-o , ponto por
ponto debaixo de juramento , póde desviar nem destruir
a forte convicção que me martyrisa . Has de morrer.

DESDEMONA

Então , Deus se compadeça de mim.

OTHELLO

Digo -Amen .

DESDEMONA

Tenha compaixão tambem ! nunca em minha vida o


offendi ; jamais consagrei a Cassio um sentimento que
não fosse permittido pelo ceu ; nunca lhe dei prenda de
amor .

OTHELLO

Pelo ceu vi o meu lenço na sua mão ! O' perjura


mulher ! petrificas-me o coração e fazes-me dar o nome
de assassinio ao acto que vou consummar e que tinha
por um sacrificio ! -Eu vi o lenço ...

DESDEMONA

Então achou-o elle , nunca lh'o dei . Mande-o vir


aqui ; que confesse a verdade .
21
178 OTHELLO

OTHELLO

Já confessou !

DESDEMONA

O què, meu senhor ?

OTHELLO

Que se serviu de ti.

DESDEMONA

Como? peccaminosamente ?

OTHELLO

Sim .

DESDEMONA

Elle não pode dizer isso .

OTHELLO

Não ; a sua boca está inerte : o honesto lago recebeu


ordem n'esse sentido .

DESDEMONA

O meu receio interpreta ! ... Que ? elle está morto?

OTHELLO

Se fossem vidas todos os seus cabellos a minha es-


pantosa vingança a todos elles tragaria !
QUINTO ACTO 179

DESDEMONA

Ai de mim ! elle foi trahido e eu estou perdida .

OTHELLO

Fóra , prostituta ! choras por elle na minha cara!

DESDEMONA

Oh ! expulse-me senhor, mas não me mate !

OTHELLO

Abaixo, prostituta !

DESDEMONA

Mate-me ámanhã ; deixe-me viver esta noite!

OTHELLO

Não ! Se resistes ...

DESDEMONA

Só meia hora !

OTHELLO

Tem de ser , é já.

DESDEMONA

Só o tempo de rezar ...

OTHELLO

É muito tarde . ( suffoca-a . )


180 OTHELLO

EMILIA (
fóra)

Meu senhor ! meu senhor ! oh! oh ! meu senhor! meu


senhor !

OTHELLO

Que rumor é este? Não estará morta ? bem morta?


Se sou cruel tambem sou compassivo ; não quero pro-
longar a tua agonia : -Assim ! assim !

EMILIA (de fóra)

O' meu senhor, meu senhor ?

OTHELLO

Quem está ahi ?

EMILIA (de fóra)

O' meu bom senhor, queria dar-lhe uma palavra .

OTHELLO

Sim : -é Emilia ; — d'aqui a pouco : —está morta . É


provavel que venha fallar da morte de Cassio ; o alvo-
roto foi grande . — Ah ! está inerte ? queda como o tu-
mulo . - Deverá ella entrar? Seria conveniente ? Parece-
me que se mexe outra vez : -Não . Que hei-de eu fazer?
Se ella entra com certeza quer fallar a minha mulher...
Minha mulher ! minha mulher ! qual mulher ? não tenho
mulher! É insupportavel ! Hora tremenda! Afigura- se-me
que devia haver n'este momento um grande eclipse de
sol e de lua e que o globo devia cobrir-se de espanto
na presença d'esta catastrophe .
QUINTO ACTO 181

EMILIA (de fóra)

Peço-lhe encarecidamente que me deixe fallar com-


sigo, ó meu bom senhor.

OTHELLO

Tinha-te esquecido : oh ! entra Emilia. - Devagar.


Vou já : - corramos as cortinas . Onde estás tu ? (abre
a porta - entra Emilia) que te aconteceu ?

EMILIA

O' meu senhor, além commetteu-se um aleivoso as-


sassinato .

OTHELLO

O què? agora ?

EMILIA

Mesmo agora, meu senhor !

OTHELLO

São visões que produz a lua ; está- se approximando


da terra mais que de costume , e enlouquece os homens .

EMILIA

Cassio , meu senhor, matou um joven veneziano ,


chamado Rodrigo .

OTHELLO

Rodrigo morto ! e Cassio morto?


182 OTHELLO

EMILIA

Não , Cassio não está morto.

OTHELLO

Não está morto, então está o assassinato fóra do


tom e a doce vingança é amarga .

DESDEMONA

Oh! aleivosamente, aleivosamente assassinada .

EMILIA

Que lamento é aquelle?

OTHELLO

Aquelle ! qual ?

EMILIA

Arreda ! e ai de mim ! aquella foi a voz da minha


senhora.Soccorro ! soccorro ! olá soccorro ! Senhora ,
falle outra vez ! Doce Desdemona ! querida senhora , falle!

DESDEMONA

Morro innocente !

EMILIA

Quem praticou tal acção ?

DESDEMONA

Ninguem; eu mesma . Adeus : recommenda-me ao


meu bondoso senhor, oh ! adeus . (Morre.)
QUINTO ACTO 183

OTHELLO

Como , pois , seria ella assassinada ?

EMILIA

Ai! quem sabe ?

OTHELLO

Ouviu-a dizer que não fui eu ?

EMILIA

Ella assim o disse : e eu devo relatar a verdade .

OTHELLO

Desceu, mentindo , ás chammas do inferno ! Fui eu


que a matei !

EMILIA

Ella é cada vez mais anjo , e o senhor o mais negro


demonio !

OTHELLO

Desvairou ; era uma rameira !

EMILIA

E tu, que a calumnias, és um demonio .

OTHELLO

Era falsa como a agoa.


184 OTHELLO

EMILIA

Tu, devastador como fogo , dizendo que ella era falsa ;


oh ! ella era celestialmente leal !

OTHELLO

Era barrega de Cassio : senão, pergunta a teu ma-


rido. Oh ! eu seria condemnado á maior profundidade
do inferno se não tivesse sido levado por justos moti-
vos a esta extremidade . Teu marido soube tudo .

EMILIA

Meu marido ?

OTHELLO

Teu marido .

EMILIA

Que ella faltava aos deveres de casada ?

OTHELLO

Sim , com Cassio . Ah ! tivesse ella sido leal ; e fa-


bricasse para mim o ceu outro mundo de um só chry-
solito inteiro e perfeito , que não a teria vendido por
elle !

EMILIA

Meu marido !

OTHELLO

Sim , foi elle quem m'o disse primeiro ; é um homem


honesto, e odeia a lama que se apega a acções immun-
das .
QUINTO ACTO 185

EMILIA

Meu marido !

OTHELLO

A que vem essa repetição , mulher ? eu digo -teu ma-


rido .

EMILIA

O' senhora ! A vilania escarneceu do amor ! Meu


marido dizer que ella foi falsa !

OTHELLO

Elle , mulher ; digo -teu marido : entendes a palavra ?


o meu amigo , o teu marido , o honesto , o honesto Iago .

EMILIA

Se elle tal diz possa a sua perniciosa alma apodre-


cer meio grão cada dia ! Mente do intimo do coração ! ...
Mais do que era justo estremecia ella o seu immundo.
enlace .

OTHELLO

Ah!

EMILIA

Faze o maior mal que poderes . Este acto que prati-


caste não é mais digno do ceu do que tu eras digno
d'ella .

OTHELLO

Basta ! será melhor.


22
186 OTHELLO

EMILIA

Tu não tens, para me fazer mal , metade da força que


eu tenho para o supportar. O' imbecil ! ó tonto ! igno-
rante como o lixo ! praticaste uma façanha ! - Não me in-
timida a tua espada ; hei de denunciar-te, ainda que per-
desse vinte vidas . Soccorro ! soccorro ! olá ! soccorro ! O
Mouro matou a minha senhora! assassinato ! assassi-
nato !

Entram MONTANO, GRACIANO e IAGO

ΜΟΝΤΑΝΟ

Que ha de novo ? que é, general ?

EMILIA

Oh! está ahi , Iago ? boas cousas fez para lhe lança-
rem ás costas os assassinatos que praticaram .

GRACIANO

Que aconteceu ?

EMILIA

Se és homem, desmente este vilão : assevera haveres


The dito que sua mulher o atraiçoou ; sei que o não dis-
seste ; não és tão infame como isso falla ! por que o
meu coração está saturado .

IAGO

Disse-lhe o que pensava : e não lhe disse cousa que


elle mesmo não achasse plausivel e verdadeira.
QUINTO ACTO 187

EMILIA

Mas disse-lhe alguma vez que ella lhe foi falsa ?

IAGO

Disse .

EMILIA

Mentiu !! mentiu-lhe odiosa e infamemente ; pela mi-


nha alma juro que mentiu ! Ella , traidora , com Cassio ! -
Disse Cassio ?

IAGO

Com Cassio, mulher. Vamos , calle-se.

EMILIA

Não me hei de callar ; o meu dever é fallar : a minha


senhora aqui jaz , assassinada no seu leito!

TODOS

Oh ! os ceus o não permittam !

EMILIA

E foram as suas historias , que produziram este as-


sassinato !

OTHELLO

Não pasmem, não senhores , é mais que verdade .

GRACIANO

Horrenda verdade !
188 OTHELLO

ΜΟΝΤΑΝΟ

Oh ! monstruosa acção!

EMILIA

Vilania ! vilania ! vilania ! agora comprehendo ! penso


-
e adivinho ! oh infamia ! já então a presentira ; — Matar-
me-hei de magoa ! oh ! vilania ! vilania !

IAGO

Que está doida ? ordeno-lhe que vá para casa.

EMILIA

Bons senhores , é preciso que me decida a fallar ; é


justo que eu obedeça , mas não agora. Talvez , Iago , eu
nunca mais volte a casa.

OTHELLO

Oh ! oh ! oh ! (Cae sobre a cama.)

EMILIA

Vamos ! atira-te para ahi e ruge ; pois mataste a


mais bondosa innocente que jamais ergueu olhos ao
ceu !

OTHELLO

Oh ! ella foi torpe ! (erguendo- se ) Mal o conheci , tio .


Ali jaz sua sobrinha , cuja respiração , com effeito , estas
mãos ainda ha pouco suspenderam : eu sei que este
acto parece horrivel e hediondo .
QUINTO ACTO 189

GRACIANO

Pobre Desdemona ! estimo que teu pac já não exista ;


o teu casamento foi-lhe fatal . Uma invencivel magoa lhe
quebrou o tenue fio da vida : se agora vivesse , esta
scena lhe faria commetter algum acto desesperado ;
blasphemaria contra o melhor anjo da sua guarda e
tornar-se-hia um reproho .

OTHELLO

É lastima ! comtudo Iago sabe que ella commetteu


com Cassio mil vezes o acto vergonhoso. Cassio con-
fessou : e ella gratificou suas amorosas fadigas com
aquella prenda e penhor de affecto , que primeiro lhe
dei ; vi-o na mão d'elle : era um lenço ; uma antiga da-
diva de meu pae a minha mãe .

EMILIA

Oh ! ceus ! oh poderes celestes !

IAGO

Vamos, calle- se .

EMILIA

Hei de fallar ! hei de fallar ! Callar-me eu , senhor ?


não, não ; hei de fallar, tão livre como o vento ! podem
ceu e homens e demonios todos , todos , todos ! gritar
-vergonha - contra mim! hei de ainda assim fallar.

IAGO

Seja prudente , e vá para casa .


190 OTHELLO

EMILIA

Não quero . (Iago ameaça ferir Emilia. )

GRACIANO

Vergonha ! levantar a espada contra uma mulher!

EMILIA

Oh ! estupido Mouro , o lenço de que tu fallas achei-o


eu, por acaso, e dei-o a meu marido ; por que amiudadas.
vezes , com séria insistencia mais do que era devida a
uma bagatella , elle me supplicou que o roubasse .

LAGO

Vil rameira !

EMILIA

Ella dal-o a Cassio ! não , ai de mim! achei-o eu e


dei-o a meu marido.´

IAGO

Mentes , immunda!

EMILIA

Juro por Deus que não minto, senhores ! O ' louco


sanguinario ! que havia de um tal tonto fazer d'uma tão
digna mulher ? (Iago apunhala Emilia e sae correndo.)

OTHELLO

Não ha no ceu outras pedras senão as que servem


para o raio ? Despresivel vilão !
QUINTO ACTO 191
191

GRACIANO

A mulher cae ! de certo matou sua mulher.

EMILIA

Sim , sim : -oh ! deitem-me ao lado da minha se-


nhora.

GRACIANO

Elle fugiu , mas sua mulher foi assassinada .

ΜΟΝΤΑΝΟ

É incontestavelmente um perverso . Tome esta arma


que tirei ao Mouro : vamos , guarde a porta por fóra ,
não o deixe passar ; em ultimo caso mate-o . Vou no
encalço do scelerado , que é um escravo maldito . (Sae.)

OTHELLO

Nem eu tão pouco sou valente , por que qualquer de-


bil criança me tira a minha espada. Mas por que ha de
a honra sobreviver ao brio ? Deixal-a ir tambem.

EMILIA

O que presagiava a tua canção , senhora? Escuta !


pódes tu ouvir-me ? Quero imitar o cysne, e morrer can-
tando ; Salgueiro, salgueiro, salgueiro . - Mouro , ella
era casta ; amava-te , cruel Mouro ; que a minha alma
consiga a bemaventurança como eu digo a verdade . As-
sim, dizendo o que penso , eu níorro ! ... morro . (Morre.)

OTHELLO

Tenho outra arma n'este quarto , é uma espada de


192 OTHELLO

Hespanha, temperada em gelo. - Eil-a . - Tio ! é forçoso


que eu saia!

GRACIANO (de fóra)

Se o tentares custar-te-ha caro ; estás desarmado e


á força has de succumbir.

OTHELLO

Entra então e falla-me ; ou, desarmado como estou,


lanço-me a ti.

Torna a entrar GRACIANO

GRACIANO

Que temos de novo ?

OTHELLO

Repara ! tenho uma arma ; nunca soldado sentiu pen-


dente a seu lado outra melhor. Já tive dia em que , com
este insignificante braço e esta boa espada, abri cami-
nho por entre obstaculos vinte vezes maiores do que
este da tua guarda : mas ó inutil jactancia ! ` quem póde
dominar o seu destino ? agora é outra cousa. Não se
arreceie, mesmo vendo-me armado ; aqui finda a minha
jornada, aqui está o termo fatal, e , precisamente , a ba-
lisa da minha ultima viagem. Que é isto ? recúa de ter-
ror? é um receio inutil, homem; basta apontar uma
canna ao peito de Othello , e elle retira-se : para onde
ha de ir Othello? Como pareces tu agora ? ó misera
malograda ! branca como a tua camisa ! Quando nos
encontrar-mos no tribunal de Deus , esse teu aspecto ha
de expulsar a minha alma para fóra do ceu e os demo-
nios a tomarão nas garras . - Fria, fria, Desdemona,
como a tua castidade . Oh maldito ! maldito miseravel!
Demonios ! expulsac-me a açoutes da posse d'esta vista
QUINTO ACTO 193

celestial ! Arremecem-me aos vendavaes ! assem-me com


enxofre ! lavem-me nos golphos profundos de fogo li-
quido ! Oh ! Desdemona ! morta , Desdemona ! oh ! oh !

Entram LUDOVICO, MONTANO e CASSIO trazido n'uma cadeira,


e OFFICIAES com IAGO prezo

LUDOVICO

Onde está este arrebatado e desventuradissimo ho-


mem ?

OTHELLO

Aquelle que foi Othello ; eil-o aqui!

LUDOVICO

Onde está essa vibora ? tragam o vilão .

OTHELLO

Abaixo os olhos para mirar-lhe os pés ; - mas isso


é uma fabula . Se é certo que tu és um demonio , não
posso matar-te . ( Othello fere Iago .)

LUDOVICO

Arranquem-lhe a espada .

IAGO

Sangro, senhor, mas não estou morto.

OTHELLO

Tambem não me peza ; antes quero que vivas , por


que em meu sentido , morrer éventura .
23
194 OTHELLO

LUDOVICO

O' tu Othello! que eras outr'ora tão bom, degradas-


te-te praticando acções de escravo maldito ! -que dirão
de ti ?

OTHELLO

O que quizerem. - Um assassino honrado , se lhes


apraz ; por que nada fiz por odio, por honra tudo .

LUDOVICO

Este miseravel confessou em parte a sua aleivosia ;


combinou com elle a morte de Cassio ?

OTHELLO

Sim .

CASSIO

Querido general, nunca lhe dei motivo .

OTHELLO

- supplico- lh'o ,
Creio-o e peço-lhe perdão . - Quer,
perguntar a este semi-demonio , por que me enredou as-
sim corpo e alma ?

IAGO

Nada me pergunte : o que sabe, sabe : d'ora avante


não direi mais uma palavra .

LUDOVICO

O què? nem para rezar?


QUINTO ACTO 195

GRACIANO

Os tratos o obrigarão a fallar.

OTHELLO

Bem ! tomas o melhor partido .

LUDOVICO

Senhor : vae comprehender o que tem acontecido e


que, na minha opinião , não sabe. Aqui está uma carta
achada na algibeira do assassinado Rodrigo , e aqui
está outra uma revella ter sido incumbida a Rodrigo a
morte de Cassio.

OTHELLO

Oh! scelerado !

CASSIO

O mais pagão e mais infame!

LUDOVICO

Agora aqui está outro papel, cheio de queixumes,


achado tambem na sua algibeira ; e que , parece , Rodrigo
tencionava enviar a este vilão maldito : mas é de suppor
que entretanto chegou Iago e lhe deu explicações satis-
fatorias .

OTHELLO

O' tu, pernicioso miseravel ! Como veio ás suas mãos ,


Cassio , aquelle lenço que era de minha mulher ?
196 OTHELLO

CASSIO

Achei-o no meu quarto ; e elle proprio confessou ,


mesmo agora , que ali o deixara cahir, n'uma intenção
particular, conforme com o seu desejo .

OTHELLO

Oh ! louco ! louco ! louco !

CASSIO

Vè-se , além d'isto , da carta de Rodrigo , como elle


acusa lago de o ter levado a provocar-me, no corpo da
guarda ; d'onde resultou ser eu demittido : e agora
mesmo fallou, depois de por largo tempo haver estado
como morto ; disse que fora Iago quem o ferira , Iago
quem o instigara.

LUDOVICO

É preciso que deixe este quarto e nos acompanhe ;


está deposto da sua auctoridade e do seu commando e
Cassio governará Chypre . Quanto a este infame , se ha
algum engenhoso tormento que possa tortural-o muito
deixando-o viver por longo tempo , ser-lhe-ha infligido .
Othello ficará em prisão rigorosa até que a natureza do
seu crime seja conhecida do governo de Veneza . Va-
mos, levem-n'o .

OTHELLO

De vagar ! uma palavra ou duas antes de partir. Te-


nho feito ao Estado alguns serviços e elle o sabe ; sobre
este ponto basta.- Peço-lhe que nas suas cartas , quando
noticiar estes factos miserandos , falle de mim tal qual
QUINTO ACTO 197

sou ; nada attenue , nada aggrave malevolamente : tem de


fallar de quem amou sem criterio, mas com excessiva
paixão ; de quem, não sendo facilmente ciumento , agui-
hoado por perfidas e insistentes insinuações , se tornou
em extremo desconfiado ; d'aquelle, cuja mão , como a
do indio rude, lançou fóra uma perola mais valiosa do
que toda a sua tribu ; d'aquelle cujos olhos submissos ,
ainda que não affeitos a derreterem-se , derramaram la-
grimas em tanta abundancia, como as arvores da Ara-
bia vértem a sua gomma medicinal. Attente bem n'isto ;
e 'diga niais : que uma vez , em Alepo , onde um malvado
turco , de turbante , maltratou um veneziano e disse mal
do Estado, agarrei pela gorja o perro circumciso e ma-
tei-o , - assim. (Fere-se . )

LUDOVICO

O' sangrenta hora!

GRACIANO

Tudo quanto se dispoz está malogrado .

OTHELLO

Beijei-te antes de matar-te , matando-me não tenho


outro meio senão este (cahindo sobre Desdemona) para
expirar sobre um beijo . (Morre.)

CASSIO

Eu receava isto ; mas pensei que não tinha arma .


Era um grande coração.

LUDOVICO (a Iago)

O' cão de Sparta, mais feroz que a angustia a fome


e o mar ! repara no fardo tragico d'esse leito ; é obra
198 OTHELLO

tua. O quadro envenena a vista ; escondam-n'o . Gracia-


no, guarde a casa e tome conta das alfaias do Mouro,
pois que é o seu herdeiro.- Senhor governador, perten-
ce-lhe sentenciar sobre este infernal perverso ; o tempo ,
o logar, o tormento . - Oh ! com o maximo rigor. Eu
vou partir e referir ao Estado esta luctuosa catastrophe,
com o coração cheio de lucto .

FIM
‫مد‬

Você também pode gostar