Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nosso grupo traduz voluntariamente livros sem previsão de lançamento no Brasil com o
intuito de levar reconhecimento às obras para que futuramente sejam publicadas. O Tea &
Honey Books não aceita doações de nenhum tipo e proíbe que suas traduções sejam
vendidas. Também deixamos claro que, caso os livros sejam comprados por editoras no
Brasil, retiraremos de todos os nossos canais e proibiremos a circulação através de gds e
grupos, descumprindo, bloquearemos o responsável. Nosso intuito é que os livros sejam
reconhecidos no Brasil e fazer com que leitores que nunca comprariam as obras em inglês
passem a conhecer. Nunca diga que leu o livro em português, alguns autores (e eles estão
certos) não entendem o motivo de fazermos isso e o grupo pode ser prejudicado. Não
distribua os livros em grupos abertos ou blogs. Além disso, nós do grupo sempre
procuramos adquirir as obras dos autores que traduzimos e também reforçamos a
importância de apoiá-los, se você tem condições, por favor adquira as obras também.
Todos os créditos aos autores e editoras.
AVISO DE CONTEÚDO
por thb
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
CAPÍTULO VINTE E NOVE
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
CAPÍTULO TRINTA E SETE
CAPÍTULO TRINTA E OITO
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
CAPÍTULO QUARENTA
CAPÍTULO QUARENTA E UM
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS
NOTA DA AUTORA
AGRADECIMENTOS
CAPÍTULO UM
JUNHO DE 1942
Esta é a história de um assassino e a história sobre a rápida
amizade entre meninas.
Claro, o Grande Assassino foi a guerra, na qual jovens foram
despedaçados enquanto suas mães choravam por eles em casa e
milhões de inocentes foram mortos pelo ódio nos terríveis fornos da
Europa. Não bastava apenas amar e esperar que o mundo pudesse
ser mudado pelo amor. A mudança viria apenas com tiros, estações
de batalha e explosões de bombas – amor e esperança eram
insuficientes.
Mas foi o amor e a esperança que criaram uma imensa mudança
de sorte em um quarto do terceiro andar da mansão escolar de
Arlington Hall durante o verão de 1942, onde Katherine Sutherland
estava deitada morrendo.
Katherine esteve morrendo durante a maior parte de sua vida. Ela
tinha sido uma bebê doente e uma criança doente, passando por
mais médicos em seu tempo de vida do que poderia contar. Agora
ela era uma jovem moribunda, contando cada respiração ofegante.
Ela lutou para poder vir para esta escola de aperfeiçoamento, onde
o curso de caça, a arena de equitação e os campos de hóquei
estavam fora de seu alcance. Ela lutou para concluir suas aulas de
comportamento, literatura, astronomia, botânica e boas tarefas
domésticas. Ela nunca faria um bom lar com um homem bonito e
sorridente voltando da guerra, mas a confortava saber que em um
mundo diferente, em um corpo diferente e saudável, ela poderia ter
tido a opção.
As opções eram o problema. Katherine lutou para morrer à sua
maneira e em seus próprios termos. Principalmente, isso significava
lutar para ficar onde ela era feliz, mesmo em seu pior momento, no
terreno da escola, em vez de voltar para o abraço úmido de seus
pais na Pensilvânia, que há muito perceberam que nada que eles ou
os médicos fizessem iria ajudar, que ela nunca se casaria ou
melhoraria a fortuna da família. Katherine sabia que ela era um
Limão.
As garotas Limão, forçadas a serem corajosas, estabelecem seus
próprios termos.
Então Katherine ficou. Enquanto as alunas dos outros quartos
faziam as malas para as férias de verão – férias das quais jamais
voltariam, por acaso – ela estava deitada na cama, de camisola,
com a grande janela aberta. Ela olhou através dela para as
cerejeiras do lado de fora e segurou a mão de uma garota que não
era notada porque usava uniforme de empregada. Esta era Kathleen
Hopper, e ela era a companheira de Katherine.
Companheira, enfermeira e empregada doméstica, Kathleen havia
sido contratada quatro anos antes porque não era negra (a mãe de
Katherine insistira em uma menina branca). E uma menina doente
precisava de alguém que a ajudasse a se vestir, ler com ela,
preparar e levar as refeições, andar no seu ritmo enquanto os outros
corriam.
Se foi um confinamento para Kathleen – um pouco como se ela
estivesse morrendo lentamente – então esse era apenas o preço
que você pagava para manter um bom emprego. Com cinco irmãos
em Scott’s Run, ela teve sorte de ter um emprego. Mas a rotina
diária da vida de Katherine tinha sido toda a existência de Kathleen
por tanto tempo que as barreiras entre patroa e empregada foram
completamente derrubadas, e é por isso que elas se deram as
mãos.
Talvez essa não fosse a única razão pela qual elas deram as
mãos.
Agora aqui estão elas – duas garotas Limão1, vidas e mentes tão
entrelaçadas que não conseguem imaginar uma sem a outra.
Kathleen realmente acredita que Katherine só está viva por causa
dela. Não no sentido prático, mas no sentido da alma, como se ela
estivesse colocando um pouco de sua própria energia no corpo de
Katherine. Mas as coisas começaram a mudar para pior. Ela deu e
deu, mas não foi o suficiente, e não há nada que Kathleen possa
fazer sobre isso.
Elas acompanharam o ritmo uma da outra durante esses longos
dias de verão, lendo Austen e Euclides em voz alta, falando sobre o
modo como as estrelas giram em suas constelações cintilantes e
qual cavalo nos estábulos tem o melhor nariz para acariciar.
Kathleen alimentou Katherine com possets2 e esfregou o chão para
evitar a poeira, e agora as janelas estão abertas em uma tarde
gloriosa e suave.
Katherine dobra as duas mãos em um arco de tenda e fala com
sua voz ofegante.
— Você já pensou sobre isso, como nossos nomes são tão
parecidos? Quero dizer, no dia em que você veio pela primeira vez,
eu disse...
— Eu sei o que você disse. — Kathleen ajusta seu assento na
cama. — Eu estava lá. Eu lembro.
Katherine não é dissuadida.
— Eu disse: Oh Deus, nós somos como gêmeas de nome. Aquele
foi o melhor dia.
Kathleen se lembra dos terrores daquele dia: se seus novos
empregadores gostariam dela, se seriam horríveis ou se
aproveitariam dela, como sua mãe lhe disse que às vezes acontece.
Pressionada para trabalhar aos quatorze anos, Kathleen ficou
consternada ao se ver encarregada dos cuidados diários de uma
garota de sua idade. A princípio, parecia que ela e Katherine
estavam ofegando pelo mesmo ar. Mas então ficou normal e mais
fácil, como se estivessem respirando juntas.
Agora Kathleen não diz nada em resposta, e Katherine, que pode
menos ainda se dar ao luxo de falar, continua.
— Já pensou no que vai fazer no outono? Quando tudo isso
acabar?
Kathleen balança a cabeça, porque tudo isso é grande demais e
ela não sabe, não sabe o que vai fazer. Katherine é o seu tudo isso
e já faz algum tempo.
— Eu estive pensando — Katherine diz, então faz uma pausa
para respirar. Cada respiração é como estilhaços em seus pulmões.
Ela se inclina para a frente para pedir ajuda com um gole de chá de
mel, acomoda as costas contra os travesseiros. — Estive pensando
e decidi. Mas você também tem que decidir.
Kathleen, que sabe que suas decisões não significam nada neste
mundo, joga junto.
— O que você decidiu? E não me diga para começar a doar suas
jóias de novo, porque você sabe que isso é estúpido e eu não vou
fazer isso.
Katherine sorri porque não consegue rir, mas então seu sorriso
fica sério.
— Não estou falando das jóias, Katie.
Katherine é Katherine e Kathleen é Katie, então outras pessoas
não se confundem. Mas à noite, elas são apenas Kitty e Katie, que é
exatamente o que acontece quando você está abraçado em
consolo. Quatro anos, e Kathleen está orando por mais quatro,
embora ela possa dizer que isso não vai acontecer.
— Cala a boca — ela sussurra, mas Katherine não cala a boca.
— Ouça, e ouça bem. — O tom de Katherine é perigoso agora. —
Quando tudo isso acabar, eles vão dizer para você voltar para West
Virginia. Uma garota como você, com a cabeça cheia de geometria,
piano, palavras cruzadas e nomes latinos de plantas...
— …e como passar ferro a vapor e colocar uma bandeja de chá e
acender o fogo na grelha — diz Kathleen, sempre prática.
Katherine aperta suas mãos unidas.
— Você sabe que isso não é suficiente. Nunca será o suficiente.
Não mais.
— Não importa — diz Kathleen, mas sua garganta está apertada.
— Esta é a última coisa, ok? — Katherine olha pela janela, olha
para trás. — É a melhor coisa que posso lhe dar para compensar
todas as tosses e os dias ruins. — Ela acena para o pé da cama.
Seus baús estão arrumados lá, e Kathleen sempre os mantém
limpos. — Ouça-me... ouça. Eu irei, e então tudo terá que ser
empacotado. Mandado para casa.
— Não — diz Kathleen.
— Isso mesmo. Não. — Katherine tem belos olhos azuis e, no
momento, eles são claros e quentes. Ela aperta as duas mãos com
sua melhor amiga em todo o mundo. — Quero que você leve meu
baú grande, Katie. Tem tudo que você precisa. Roupas. Papéis.
Referências. Não as jóias, porque alguém faria um alarde sobre
isso, mas o dinheiro, sim, porque eles não sabem. O suficiente para
colocá-la em seu caminho. O suficiente para ajudar você.
É como se ela estivesse falando sobre um barco zarpando. Ela
está dando um barco para Kathleen. O coração de Kathleen está
batendo forte. O que diabos ela fará com um barco?
O que ela fará sem um?
— Alguém vai notar — diz Kathleen, urgente. Ela não quer pensar
nisso. A ideia de voltar para a pequena cabana de seus pais em
Scott’s Run – de volta para as cobras cabeças-de-cobre, pó de
carvão e vento cortante soprando pelo chão de tábuas – enche sua
cabeça com um som apressado e apavorado. Mas ela não quer
pensar em se aventurar sozinha no desconhecido.
— Não. — Katherine balança a cabeça. — Eles vão me notar e
notar que sou um problema. E provavelmente levarão o que
puderem carregar, o pequeno baú, minha bolsa azul. Mas o baú
grande precisará ser empacotado, e os tapetes e cobertores e tudo
mais precisarão ser retirados, e você estará aqui para fazer isso.
Ela tosse novamente. Mais chá de mel. Uma pausa em sua
respiração.
— Eu ouvi da Senhorita Grey, eles venderam Arlington Hall. Está
indo para o Departamento de Guerra ou algo assim, e você sabe o
quão confuso tudo está com os trens e os racionamentos de
gasolina. Pode levar semanas até que alguém perceba que o baú foi
extraviado. Você pode levá-lo para a Union Station. Você poderia
levá-lo para qualquer lugar. É apenas vestidos para eles. Ninguém
vai se importar.
— Eu me importo — diz Kathleen. Suas lágrimas são tão bem
treinadas que ficam em suas bochechas sem cair.
— Você sempre se importou — diz Katherine, então gentilmente
— e é assim que posso me importar de volta. É tudo o que posso
oferecer, mas dou a você. Você pode ser eu para ser você. Diga que
aceita, Katie. Diga que vai viver, mesmo quando eu não puder.
Promessas são feitas e mantidas entre garotas o tempo todo, mas
esta significa mais. Aterrorizada, Kathleen concorda com a cabeça
porque parece que Katherine não ficará tranquila sem ele. Suas
duas cabeças se curvam juntas. Impossível saber que outras
palavras se passam entre elas, e então o momento passa e é noite.
Katherine Sutherland morre durante a noite, ainda segurando a
mão de Kathleen.
1. Garotas Limão (ou em inglês, Lemon Girls) significa que uma mulher é lésbica. A
expressão não tem conotações negativas.
2. Posset era originalmente uma popular bebida quente britânica feita de leite coalhado
com vinho ou cerveja, muitas vezes temperada, que era frequentemente usada como
remédio.
CAPÍTULO DOIS
MARÇO DE 1943
— Chegando! Mais lápis chegando! Ei, Kitty-Kat, tenho as borrachas
que você disse que precisava. — Dottie abre caminho entre as
fileiras de cadeiras e mesas na sala de trabalho, uma pequena caixa
de papelão debaixo do braço. Ela é um flash de suéter pêssego sob
as novas luzes fluorescentes.
Kit não a ouve, muito absorta nos números digitados nas fichas
dispostas na mesa de madeira à frente. Ela segura um lápis e, como
todas as outras garotas em uma das grandes mesas do Arlington
Hall, está usando luvas de tricô com os dedos cortados e meias
extras. Pela janela, os terrenos da escola parecem lindos no início
da primavera: as cerejeiras que Katherine tanto apreciava
floresceram. O ar lá fora está ficando mais quente, um alívio bem-
vindo após o inverno rigoroso, mas os andares superiores da escola
são muito mais frios do que fora e as condições são próximas de
uma geladeira.
A sala de trabalho zumbia com conversas baixas, o arranhar de
lápis e o barulho de máquinas de escrever no andar de baixo. Com
sua blusa branca de algodão, suéter azul, saia e meias quentes, Kit
se inclina para a frente em sua cadeira de madeira dura e conta
baixinho.
— Um, dois e três... E um, e dois, e... aí está. Opal, você está
vendo isso?
— Mostre-me. — Opal Jenks, que geralmente se senta mais perto
da janela, está sentada ao lado de Kit e espiando por cima do
ombro. — Um, e dois, e três... Não estou vendo isso no primeiro
grupo.
— Na próxima linha debaixo. — Kit aponta para um conjunto de
números em seu cartão de índice com a ponta do lápis. — Espera,
eu preciso de uma borracha...
— Aqui está — diz Dottie, pegando um da caixa de papelão e
entregando a ela.
— Obrigada, Dot. — O sorriso de Kit é um lampejo de gratidão
antes que ela volte às cartas e faça a correção. Ela está tentando
não ficar excitada. — Ok, aqui. Você vê? Próxima linha... aqui de
novo.
Opal morde o lábio inferior, olhando para os números.
— Ok, talvez.
— Não sei. — Kit larga o lápis, recosta-se e esfrega os dedos. —
Talvez eu esteja forçando.
— Mostre-me. — Brigid Gladwell empurra a cadeira para trás e se
posiciona do outro lado de Kit. Em cada sala de trabalho, há uma
garota que mantém as coisas funcionando sem problemas e, no
momento, é Brigid.
Kit inclina suas cartas e aponta para os agrupamentos de
números.
— Estou imaginando coisas?
Brigid franze a testa.
— Se estiver, estamos imaginando-as juntas.
A sala de trabalho está cheia de mesas e garotas: garotas com
casacos de inverno, garotas com listas de vitórias, garotas entre 18
e 25 anos. Algumas meninas com lápis atrás das orelhas se
levantam e se aproximam da mesa de Kit. Há um arrepio quando
todas sentem que algo está acontecendo.
— Escreva de novo. — Brigid empurra um bloco de notas. —
Temos o cartão? Rose?
— Um segundo. — Rose, a sobreposta, corre para pegar a folha
correta de sua mesa. — Peguei!
— Me dê aqui. — Kit levanta a mão, e uma pequena brigada de
meninas manda o cartão em sua direção.
Kit fica no terceiro andar da escola. É o mesmo andar que ela
deixou com tanta pressa em junho do ano passado. Mas desde
aquela época, a maioria dos dormitórios foi transformada: cortinas
retiradas e substituídas, camas desmontadas, tapetes exuberantes
enrolados. As banheiras eram muito difíceis de remover. Elas estão
todas cheias de interceptações agora.
Longe no Pacífico, o Exército Imperial Japonês está atirando em
jovens soldados americanos, com uma pausa ocasional para enviar
uma mensagem. Kit trabalha nas mensagens enviadas na pausa.
Seu trabalho é pegar um cartão da cesta de arame à sua frente,
examinar cada número de quatro dígitos, remover a criptografia
usada pela operadora local para encaminhar os números para
Arlington Hall e começar a procurar padrões. Como todas as outras
garotas na sala, Kit circula repetições de quatro dígitos, repetições
de dois dígitos, subtrai um grupo de números de outro, tenta uma
dúzia de outras técnicas com régua de cálculo e papel quadriculado
para encontrar qualquer coisa que corresponda acima. Embora os
números nos cartões muitas vezes pareçam apenas uma sequência
distorcida de dígitos, Kit sabe que há palavras ali em algum lugar –
palavras japonesas romanizadas como dan, tuki e maru.
O zumbido do radiador na parede é como uma rebarba dentro de
seu cérebro, a trilha sonora do zumbido do foco intelectual que
permeia a sala.
Kit tornou-se parte de uma grande mente coletiva.
O trabalho da colmeia é quebrar códigos inimigos.
Com os dedos trêmulos, ela e Opal deslizam a folha do
memorando por baixo das cartas e dos agrupamentos de números
reescritos, para fazer uma comparação.
Outras meninas pararam de trabalhar para observar e fazer
sugestões sussurradas.
— Dê-lhes mais luz! — Edith diz, e uma garota reposiciona uma
luminária de mesa.
— Verifique-o contra o cartão — Brigid os instrui.
O lápis de Kit já está seguindo as linhas.
— Estou checando…
— Kit, acho que tenho um — diz Opal, com a voz subitamente
uma oitava acima. Um zumbido percorre a sala. — Santo Deus,
Kit...
— Esse é um — diz Kit, balançando a cabeça. — E aqui…
— Estou ligando para o andar de cima — diz Brigid, decidida, e
começa a pegar o telefone preto de baquelite perto da porta.
Dottie acena com a mão.
— Moya está descendo!
Moya Kershaw entra na porta do corredor.
— Já estou aqui, o que está acontecendo?
Kit olha para cima, subitamente distraída. A calça de Moya é
divina e a blusa dela é de seda – o que quer dizer que é velha. Tudo
é rayon agora que a seda japonesa é desaprovada.
— Uma possível descoberta — diz Brigid. — Venha ver.
Moya desliza entre as cadeiras e as meninas, e Kit abaixa a
cabeça para que ninguém perceba suas bochechas ficando
rosadas. Ela se volta para a busca por repetições de números.
— Eu tenho um — diz Opal, agora com o lápis voando. — E Kit
tem um...
— Tenho dois — diz Kit. Ela circula os lugares onde os pares de
números se juntam, do memorando e do cartão. — Aqui. E aqui.
Moya coloca a palma da mão ao lado de Kit na mesa e se
aproxima. Kit registra a presença de Moya da mesma forma que ela
registra o som do radiador: como o zumbido baixo de um ímã
poderoso.
Moya examina as cartas, franzindo a testa, e todos prendem a
respiração. Então ela diz:
— É isso aí, você conseguiu — e a tensão se quebra enquanto as
garotas de toda a sala comemoram.
Dottie e Rose gritam, se abraçando, e Opal solta um pio
esfarrapado.
— Kit, nós conseguimos!
— Graças a Deus. — Kit solta uma risada de alívio e prazer
quando Opal a arrasta para um abraço. — Tenho visto esses
números em meus sonhos.
— Claro que sim. — Opal esfrega os olhos. — Aquele trecho de
código estava acabando com a gente.
— Não mais. — Brigid está sorrindo. — Ótimo trabalho, meninas.
— Sim... muito bem. — Moya ainda está debruçada sobre o
memorando e o cartão. Ela pega um lápis solto na mesa e circula
outro par de números. — Mas continuem tentando. Você tem outro
aqui.
Kit pisca para o novo par.
— Como eu não vi isso?
Moya dá a ela um sorriso de esfinge e se endireita.
— Parabéns, senhoritas. Vocês salvaram algumas vidas hoje. —
Ela olha em volta. — E agora podemos salvar mais vidas voltando
ao trabalho, vamos nos mexer, a guerra não vai esperar.
Sua atenção é atraída pela visão de um jovem de terno marrom
parado na porta. Kit o reconhece. Emil Ferrars – Kit só consegue
pensar nele como o Sr. Ferrars – é um gênio da matemática de 22
anos que estudou em Princeton. Agora ele trabalha com a lendária
Srta. Caracristi em alguns dos ataques mais avançados aos códigos
do Exército Imperial no Salão.
O Sr. Ferrars acena.
— Moya? Você tem um minuto?
Dottie também percebe o Sr. Ferrars e imediatamente endireita os
ombros e alisa a saia com a mão. Kit esconde um sorriso. Emil
Ferrars é alto, magro e atraente, e às vezes, quando está andando
pelo refeitório, deixa lápis atrás das orelhas ou se esquece de tirar
os óculos de leitura. Dottie mencionou mais de uma vez como acha
isso adorável.
Dottie também mencionou que o Sr. Ferrars têm dores de cabeça
debilitantes. Com suas dores de cabeça e seu poder cerebral, ele
tem uma dispensa do Departamento de Guerra para estar em
Arlington Hall, em vez de estar na frente de batalha e, de acordo
com Dottie, às vezes se sente envergonhado com isso. Kit acha que
qualquer um que queira colocar o Sr. Ferrars em um uniforme de
artes marciais e dar-lhe um rifle e empurrá-lo para lutar contra
japoneses e alemães é obviamente um completo idiota. Seria um
desperdício chocante de uma mente de primeira linha.
Moya reconhece o Sr. Ferrars com um aceno de cabeça antes de
se virar.
— Ok, o dever chama. Dottie, você terminou aqui? Eles querem
você de volta à circulação.
— Estou a caminho. — Dottie dá uma pequena sacudida no
cabelo quando Moya encontra o Sr. Ferrars na porta e os dois saem
juntos. Então ela se inclina para dar um aperto de lado em Kit. —
Sua campeã. São três descobertas este mês?
— Só duas. — Kit sorri, relaxado e feliz.
— “Só duas” — diz ela. — Ei, vamos comemorar no refeitório
mais tarde. Carol disse que tem rosquinhas. — Dottie ajeita o suéter.
— E você ouviu as últimas fofocas? Tem uns ingleses vindo visitar.
Kit franze a testa.
— Por que?
— Para ver nossos lápis mágicos trabalharem, eu acho. — Dottie
balança as sobrancelhas. — Espero que se pareçam com Joel
McCrea e soem como Cary Grant.
Kit revira os olhos.
— Devem ter sessenta anos, com cabelos saindo das orelhas.
— Eca, saia daqui, você. — Dottie se levanta. — refeitório às
quatro?
— Claro que sim. Certo, continue agora, antes que Moya apareça
de novo. — Dottie faz uma saudação atrevida e se dirige para a
porta.
— Muito bem, senhoritas, a diversão acabou — Brigid anuncia
enquanto as garotas voltam a se sentar. — Vamos nos concentrar.
Opal levanta o queixo para a figura de Dottie que se afasta.
— Ingleses estão visitando Arlington Hall?
Kit ainda está sentindo um brilho nebuloso de euforia por decifrar
o código.
— Se você acredita nos rumores. Suponho que isso significará
mais segurança.
Opal revira os olhos.
— Já temos crachás de identificação e policiais militares de
plantão e cercas de malha de aço por todo o complexo. O que eles
vão fazer, checar nossas calcinhas?
Kit bufa em resposta. Mas ela está pensando sobre isso.
Ela se acomoda na cadeira e tenta voltar sua concentração para o
cartão à sua frente. Os números nele são um disfarce, e é o trabalho
dela tirar esse disfarce.
A ironia não passou despercebida por ela.
Ela e Opal procuram mais repetições até a mudança de turno às
quatro, quando todas as meninas largam os lápis, arrumam as
estações de trabalho e os cabelos, tiram as luvas e se dirigem para
a porta. Elas se juntam ao corredor de garotas que saem de outras
salas, e meia dúzia de garotas se encontram em um grande rio de
garotas que flui pelo lado esquerdo do corredor. Do lado direito,
fluindo para cima, chegam mais meninas para o turno das 16h à
meia-noite.
Kit diverge perto do corrimão para entrar em seu dormitório.
Apenas seis quartos no terceiro andar são dormitórios, com outros
seis quartos no andar de baixo e um punhado no primeiro. Há muito
mais meninas do que quartos, então a maior parte da força de
trabalho fica fora do local.
Ela tira as luvas e pendura o casaco, sentindo-se mais fresca,
mas mais confortável, e tira os sapatos. Então ela se senta em sua
cama feita, esperando que os números mutáveis em sua cabeça se
dissipem.
O quarto em si é minúsculo, com painéis escuros e duas camas
de solteiro em ambos os lados de uma janela. Um guarda-roupa
com um espelho anexo fica entre a cama e a porta do lado de Dottie
e, do lado de Kit, uma cômoda. Se ela esticar as pernas, os dedos
dos pés tocarão a armação de metal da cama de Dottie. Mas Kit não
se importa; está bem longe do quarto onde ela cresceu, com jornais
colados nas paredes, fogão de barril com a botija de água quente
em cima, prato esmaltado esquentando sobras de pão de milho.
Debaixo de sua cama está o baú – o baú de Katherine – com
todos os elementos de que ela precisa para perpetuar sua fachada.
A vista da janela mostra o familiar pátio verde do terreno da
escola. Além da borda oeste da escola fica a parte florestal da
propriedade. Em algum lugar entre aquelas árvores, os velhos
estábulos. Cerca de um quilômetro e meio além da floresta há mais
cercas de malha de aço, mas Kit não pode vê-las daqui.
Depois do gramado quádruplo, atrás da escola, fica o antigo chalé
da administração. Mais atrás, a construção abriu um corte no verde
enquanto os funcionários do Departamento de Guerra concluíam um
novo depósito no terreno inclinado atrás. É uma pena destruir a
adorável área ao norte do terreno, mas Deus sabe que eles
precisam de espaço. Onde diabos eles colocarão os visitantes
ingleses?
Nove meses atrás, Kit teve uma oportunidade. Depois que a
entrevista e as verificações de papel terminaram, ela simplesmente
se tornou outra garota. Há garotas por toda parte agora: garotas nas
ruas, garotas de uniforme, garotas no recém-concluído prédio do
Pentágono a cinco quilômetros de distância. As meninas estão
amontoadas em todos os espaços disponíveis na capital, ocupando-
as em casas de alojamento, enfileirando-se nos balcões de
farmácias e estações de trem, sentando-se de três em três nos
ônibus. Os editoriais dos jornais reclamam da brigada do batom,
mas é assim que funciona enquanto os meninos estão no exterior.
Outra garota do governo engrossando as fileiras do Serviço de
Inteligência de Sinais e Washington, DC, em geral... Kit está
escondida em uma floresta, apenas mais uma árvore. Ela tem
contado com esse anonimato. Ela tem seu baú, sua bolsa, seu
quarto compartilhado com Dottie e seu crachá de identificação com
foto com a cor de sua autorização claramente marcada. Ela fica
rente ao chão. Ela faz o trabalho dela.
Arlington Hall tem sido seu refúgio.
Mas os emissários estrangeiros que vêm ao Hall podem mudar a
rotina.
Kit reconhece a leve palpitação de medo em seu peito e a acalma
observando as folhas se mexerem nas árvores do lado de fora. Os
carvalhos a lembram da infância, de carregar fardos de casca de
carvalho da montanha – sua mãe costumava vender a casca para o
curtume a um centavo por libra. Kit coloca aquela velha memória de
lado; pensar muito sobre quem ela era, quem ela se tornou e quem
ela é agora faz sua cabeça doer. Em vez disso, ela se concentra em
simplesmente absorver o silêncio da sala.
Quando a porta da sala se abre, a primeira reação de Kit é de
decepção.
— Você esqueceu, não foi? — diz Dottie, entrando apressada. —
Tive a sensação de que você ia esquecer.
Kit morde o lábio.
— O refeitório…
— Não se preocupe com isso, querida. — Dottie sorri. Ela está
vestindo a camisa de guingão mais fofa, a gola espreitando sobre a
gola de seu suéter pêssego, e seus cachos loiros estão balançando.
— Acabei de descer do Quatro. Emil Ferrars teve um pequeno
episódio de dor de cabeça, então fiquei para ajudar Moya.
— O Sr. Ferrars está bem?
— Ele vai ficar bem. É só o ritmo... você acha que está cheio aqui
no Três, é muito frenético no sótão.
— Ele deveria mudar de escritório, para ficar mais perto da
enfermaria — sugere Kit.
— Isso nunca vai acontecer. — Dottie aquece as pernas no
radiador. — Eles nunca moveriam o material de alta classificação
para um andar inferior, muito tráfego de pedestres. E não há
escritórios disponíveis no Um, de qualquer maneira. Todo este lugar
é como um labirinto cheio de coelhos.
Kit se pergunta se pergunta sobre os visitantes ingleses pareceria
suspeito. A transição de empregada doméstica para classe média
alta a faz observar constantemente como ela se apresenta. Nos
últimos nove meses, ela se questionou: a pergunta dela é muito
intrometida? É algo que ela já deveria saber? O sotaque ou
fraseado dela é muito grosseiro?
Pelo menos com Dottie ela não precisa se preocupar muito.
Dorothy Crockford vem de Baltimore, onde seu pai administra uma
mercearia, e ela age da mesma forma, quer esteja conversando
com o pessoal da cozinha ou com debutantes. Kit aprendeu muito,
passando tempo com Dottie, e não apenas sobre as fofocas de Hall.
— Então, qual é a história dos ingleses? — Kit pede a ela.
— Não sei muito — admite Dottie, tirando o suéter e pendurando-
o no guarda-roupa. — Apenas o que ouvi enquanto estava
coletando as transcrições, e não é para repetir, certo? Mas eles
chegarão nas próximas duas semanas.
Duas semanas.
— Por que eles estão vindo aqui?
— Pegar algumas dicas, talvez? — Dottie tira a camisa, tremendo,
e a coloca sobre a grade ao pé da cama. Ela pega um vestido
utilitário rosa do guarda-roupa. — Segundo Moya, eles têm sua
própria unidade na Inglaterra, fazendo as mesmas coisas que nós.
Eles começaram antes de nós, diz ela.
Kit chuta as pernas suavemente.
— Então podemos ser nós pegando as dicas.
— Você acha? — A expressão de Dottie diz que ela acha isso
duvidoso enquanto desabotoa a saia. — Mas por que eles viriam
aqui se não precisassem de ajuda com alguma coisa?
— Troca de ideias? — Kit sugere.
— Vou “trocar idéias” com garotos ingleses qualquer dia da
semana. — Dottie dá uma piscadela sedutora para Kit enquanto ela
sai de sua saia. — Você vem comigo para Fazenda Arlington hoje à
noite?
Isso seria um não. Mas Kit não consegue explicar o que a
mantém presa ao Hall.
— Estou pensando sobre isso.
Dottie balança a cabeça.
— É o que você sempre diz. Bem, não pense muito, estou saindo
às cinco e meia.
— Meu cérebro está exausto. — Kit faz isso soar como uma
confissão. — Não sei se serei muito boa para uma conversa.
— Soldados bonitos e música tocando, quem precisa de
conversa? — Dottie guarda a saia e a camisa. Sua voz se torna
persuasiva enquanto ela se mexe no vestido utilitário e amarra o
cinto. — Vamos, Kitty-Kat, vou arrumar seu cabelo e te emprestar o
meu batom.
Kit sorri com a ideia de alguém pentear seu cabelo, e não o
contrário.
— Eu ficaria mais tentada se meus pés e costas não estivessem
tão doloridos. Mas vou te ajudar a desenhar nas costuras da meia,
que tal?
— Eu aceitaria sua companhia ao invés de uma costura de meia,
mas com certeza. Se seus pés já estão doendo, uma dança não
será muito divertida. — Dottie veste um suéter novo por cima do
vestido e ajeita a gola. — Se você não vai sair, pelo menos desça
comigo até o refeitório. Vamos, sei que você perdeu o almoço.
— Você acha que alguém no refeitório notaria se eu aparecesse
de chinelos? — Kit vê a expressão de Dottie. — Ah, tudo bem então.
Kit enfia os sapatos de volta e segue Dottie para fora. Os sapatos
ainda a incomodam; Katherine era meio tamanho menor. Kit tinha
planos de comprar novos, ainda tem até cartão de racionamento
para eles, mas quem tem tempo? A programação é de sete dias de
trabalho e um dia de folga. Em seu dia de folga, ela quer
principalmente dormir.
E se ela está um pouco nervosa por deixar a vizinhança
conhecida de Arlington Hall, enfrentando o mundo mais amplo, isso
também é compreensível.
Ela acompanha Dottie escada abaixo e pelo corredor do primeiro
andar até o refeitório – o que costumava ser o antigo auditório de
concertos – onde encontram bandejas e pratos de bolo de carne e
salada de repolho, com gelatina de sobremesa. As rosquinhas já se
foram, o que é uma pena. A cozinha recebe apenas uma ração
limitada de manteiga e açúcar, então pode demorar um pouco até
que eles recebam mais.
Meia hora depois, Kit está costurando as meias de Dottie. Dottie
se apoia em dois grandes dicionários – um alemão e um japonês –
que ela pegou emprestado da sala de transcrição.
— Você vai com Edith e Carol? — Kit pergunta.
— E Libby. E a Betty, do Dois, disse que ela poderia vir junto. —
Dottie segura a bainha da saia acima dos joelhos. — O que você vai
fazer aqui esta noite, sozinha?
— Hum... não sei. Talvez participar do jogo de pôquer de Moya?
— Desde quando você... e não, ela vai tosquiá-la até ficar cega!
— Dottie ri e se vira para ver. — Ei, vou pegar o último ônibus para
casa, então não espere.
— Tudo bem — diz Kit. — Agora fique quieta.
— Estou parada! Mas escute, eu quis dizer o que eu disse, você
deveria sair mais, Kitty. Se solte um pouco!
— Da próxima vez — diz Kit, sabendo que não haverá próxima
vez, passando o lápis de sobrancelha pela parte de trás da perna de
Dottie com a mão firme.
CAPÍTULO TRÊS
3. Sigla para “The United States Naval Reserve (Women's Reserve)”, uma reserva
militar para mulheres que trabalhavam no exército durante a Segunda Guerra Mundial.
4. Cemesto é um material de construção composto resistente, leve, à prova d'água e
resistente ao fogo, feito de um núcleo de placa isolante de fibra de cana-de-açúcar,
chamado Celotex, revestido em ambos os lados com cimento de amianto.
CAPÍTULO QUATRO
Elas pegam um táxi de volta para o Hall e, assim que passam pelos
repórteres clamorosos do lado de fora dos portões da Fazenda
Arlington, a viagem parece curta: Kit acha surpreendente que, todo
esse tempo, café e banho e o conforto de sua própria cama estavam
a apenas três milhas e meia de distância. Ela nunca ficou tão feliz
em ver as colunas brancas da escola, o verde fresco dos jardins.
Elas se aglomeram perto do portão de vigia, conduzem o PM na
guarita do portão – felizmente, todos eles têm seus distintivos – e
caminham penosamente até a casa. Dottie carrega seus sapatos.
Depois da grande porta da frente, fica claro que o mundo não
mudou: o trabalho continua normalmente, salpicado pelo som das
máquinas de escrever. São apenas nove da manhã.
Moya começa a dar ordens.
— Kit, ajude Dottie a subir e coloque-a na cama. Vou dizer ao
pessoal da cozinha para preparar uma bandeja, se você não se
importar em buscá-la. Vou subir para o Quatro.
Kit olha para o rosto pontiagudo de Moya e seus enormes olhos
cinzentos. Seu cabelo preto está caído, sua pele tão pálida e quase
translúcida sobre suas maçãs do rosto.
— Diga-me que você não vai voltar direto ao trabalho.
— Eu tenho que informar o administrador e dar a notícia para as
garotas na sala de trabalho de Libby. — Moya balança a cabeça
com a ideia. — E eu deveria estar de plantão. — Ela penteia o
cabelo para trás com os dedos. — A guerra continua, Kit. Não serei
a primeira soldada a voltar à luta sem dormir.
— Então eu deveria…
— Não. Você cuida de Dot. — Antes que Kit possa dizer mais, o
tom de Moya suaviza. — Se eu precisar de você, mando buscá-la.
A ideia de ser necessária por Moya, ser chamada, tranquiliza Kit
um pouco quando Moya se separa e se dirige para a cozinha. Kit se
volta para Dottie, tentando manter a voz otimista.
— Ok, querida, apenas alguns degraus e nós estaremos lá.
Deixe-me pegar esses sapatos.
Kit ajuda Dottie a trocar de roupa e ir para a cama. Então ela
retorna ao Um para buscar a bandeja. Ela passa do refeitório até a
cozinha, onde a maioria dos funcionários negros está trabalhando
duro nos preparativos do almoço. No final da longa bancada da
cozinha, perto da porta dos fundos, uma jovem negra de suéter e
saia roxa escura está recolhendo uma bandeja com um serviço de
café. Ela olha para cima, pisca com força e encontra os olhos de Kit
– mas Kit não pode fazer mais do que olhar vagamente de volta.
O cabelo dela está desgrenhado? O rosto dela está repuxado?
Ela não tem energia para se importar, e é tudo o que ela pode fazer
para se concentrar enquanto uma matrona mais velha dá uma
bandeja a Kit – há um copo extra de suco de laranja, Kit fica aliviada
ao ver – e instruções sobre como equilibrá-la. Kit concorda com a
cabeça, como se precisasse dessas instruções.
Ela leva a bandeja de volta para cima. Tudo parece fora de
ordem: ela está usando seus sapatos de empregada gastos e
carregando uma bandeja. Talvez alguém a veja e perceba como ela
é competente nessa função. Kit tem que afastar o pensamento.
Assim que Dottie pega a bandeja, ela incentiva Kit a dormir um
pouco. Kit bebe seu suco de laranja, veste o pijama – descartado na
cama desarrumada – e cai no colchão. Ela apaga antes que possa
pensar mais.
Quando ela acorda novamente, de um sono inquieto, é para ouvir
uma batida suave na porta. O quarto está escuro com as cortinas
fechadas e Dottie está roncando baixinho na outra cama. Kit esfrega
os olhos e veste o roupão.
É Rose Haskell na porta, parecendo hesitante.
— Ei. Lamento acordá-la. Você está bem?
— Estou bem — diz Kit em voz baixa. Pela maneira como os
olhos de Rose vagam em direção a Dottie, Kit pode dizer que a
notícia já está circulando. — Nós duas estamos bem. Moya precisa
de nós?
— Só de você — Rose sussurra. — Você tem que ir até o Quatro,
fazer um relatório.
— Que horas são?
— Meio-dia. — Rose muda de posição. — Eu ouvi sobre o... bem,
sobre o que aconteceu...
— Claro — diz Kit. Ela não quer entrar nisso agora. — Diga a
Moya que tenho que me trocar, mas já vou subir. — Ela fecha a
porta antes que Rose possa dizer mais alguma coisa e se encosta
na madeira. Seus sonhos eram cheios de sangue e terror, e ela não
se sentia descansada. Seus olhos estão doendo e seus dentes
parecem embaçados, e a ideia de voltar a vestir a roupa a faz
querer gemer. Esses são os momentos mais perigosos: quando ela
está cansada, quando não consegue manter seu sotaque tão bem,
quando os pequenos maneirismos e regras de etiqueta a
abandonam, a deixam exposta. Ela provavelmente não deveria ter
fechado a porta na cara de Rose.
Ok. Trabalhar.
Kit empurra a porta e recolhe roupas limpas. A saia dela é a
mesma que ela usou ontem, não a de veludo cotelê da noite
passada. Ela calça os sapatos desconfortáveis. Em seguida, ela vai
ao banheiro para jogar água no rosto, escovar os dentes, aplicar pó
e batom. Seu cabelo está desajeitado, então ela o enfia sob um
lenço. O lenço azul de Moya ainda está no bolso do casaco, ela
lembra. Ela aperta as bochechas na frente do espelho e sussurra
para si mesma:
— Vamos, agora. Isso aí.
Deixando Dottie roncando, ela sobe as escadas para o Quatro.
Infelizmente, Moya não está lá. Uma mulher mais velha com o
cabelo preso em um coque francês dá instruções a Kit: ela deve
escrever seu relatório e enviá-lo para datilografia.
Kit está sentada em uma cadeira de madeira no canto do
escritório – não há espaço na mesa para falar – com papel de carta
em uma prancheta dura equilibrada em seu joelho. Ela escreve toda
a história a lápis. Em certos momentos da recordação, sua mão
treme; ninguém parece notar.
Quando ela devolve o relatório para a mulher com o pão francês,
ela é instruída a almoçar.
— E depois?
A mulher parece não saber. Ela acena com a mão.
— Apenas apresente-se em sua mesa habitual no Três, eu acho.
Você acha? Kit fecha a boca e começa a longa caminhada de
volta ao refeitório. Mas quando ela chega ao pé da escada, algo
nela simplesmente se recusa a ceder. Kit pressiona a palma da mão
na testa. Ela precisa... Deus, do que ela precisa? Ela precisa que
Libby não esteja morta. Ela precisa que a imagem de Libby no
banheiro pare de rolar de volta em sua mente, espontaneamente.
Ela precisa de um pouco de paz.
Sem pensar, Kit atravessa o assoalho e começa a descer o
corredor, seguindo o tapete. Ontem à noite, ela, Moya e o Sr.
Ferrars viraram à esquerda aqui para chegar à porta dos fundos.
Agora ela passa por aquela saída e continua até uma porta na
parede.
Quando Arlington Hall era uma escola, esta era a porta de uma
biblioteca. Kit está muito familiarizada com isso, porque Katherine
era uma leitora ávida, mas não tinha forças para vir aqui ela mesma.
Quando ela gira a maçaneta e abre a porta, Kit fica aliviada ao ver
que o espaço praticamente não mudou. Estúdios de arte e salas de
comportamento são desnecessários no novo Arlington Hall, mas as
bibliotecas ainda são importantes.
Cortinas grossas cobrem as janelas altas. As paredes são altas
com livros. Não é uma sala grande, mas há um sofá chesterfield e
duas poltronas. Kit sempre teve a sensação – talvez por causa das
poltronas – de que este quarto foi projetado por um homem. O
cheiro de madeira escura e couro envelhecido reforça essa
impressão agora.
É um santuário tranquilo. Ela deveria ter vindo aqui antes.
Kit caminha até as prateleiras à esquerda e deixa os dedos
vagarem pelas lombadas dos livros. Muitos deles ela leu, ou leu em
voz alta para Katherine. Ela puxa cuidadosamente um livro de
poesia da prateleira, abre a capa e respira fundo.
Ela pode apenas ficar aqui por um minuto e ler. Só por um tempo.
Então, quando sua mente estiver resolvida, ela voltará para cima,
encontrará sua cadeira nas mesas do Três. Mas por enquanto, uma
pausa.
Kit fica perto das prateleiras por uns bons dez minutos antes de
sentir os cabelos da nuca se arrepiarem. Quando ela vira a cabeça,
a jovem negra que ela viu na cozinha está parada na porta. Ela tem
olhos grandes e um rosto pequeno e inteligente. Sua saia roxa é
distinta das cores vermelho-vinho e teca da sala da biblioteca. Ela
tem cabelos cacheados, controlados por um laço.
Kit pisca.
— Posso ajudar?
A garota a olha bem nos olhos.
— Eu vi você na cozinha. Disseram que você viu um assassinato.
— Uh, sim — diz Kit. — Mas não foi…
— Eles disseram que seu nome é Kit Sutherland — diz a garota.
— Katherine Sutherland.
Kit sente um estranho desconforto na barriga. Ela fecha o livro
nas mãos.
— Isso mesmo.
— Bem. — A menina cruza os braços. — Acho que nós duas
sabemos que isso não é verdade.
CAPÍTULO SETE
Moya sente aquele zumbido vago que ela associa a ficar acordada a
noite toda e fumar muitos cigarros.
Ela passou muito tempo no Quatro, interrogando-se com o
Coronel Corderman e Sheila Kelly, do Recursos Humanos. Eles
estão coletando depoimentos de todos os envolvidos. O relatório
final irá para o Sr. Kullback, e haverá ondulações; além da terrível
tragédia da morte de Libby, que afeta todas as garotas do Hall, há
questões do Departamento de Guerra a serem consideradas.
Perguntas sobre se Libby pode ter sido alvo porque ela era uma
guardiã de segredos do governo. O Coronel Corderman informou a
polícia, usando vagas referências a “assuntos de segurança
nacional”.
Moya imagina que há uma maneira de garantir que os detalhes do
trabalho de Libby permaneçam confidenciais, mas as circunstâncias
de seu assassinato já virou notícia. As garotas de toda a DC estarão
trancando as portas à noite, e comentaristas estridentes usarão isso
como outra desculpa para argumentar que as mulheres não devem
ser empregadas em papéis de guerra.
Como complicação adicional, as autoridades do Hall agora
precisam recrutar outra decifradora. Mas ela não pode nem pensar
nisso agora. Ela só dormiu uma hora nas últimas vinte e nove, e seu
cansaço está deixando-a tonta. Ela desceu para comer, cutucou sua
porção de salada de batata e cachorro-quente até que notou a
manchete nas folhas de jornais empilhadas perto da porta: “Horror
na Fazenda Arlington”. Perto dessa manchete havia um artigo
chamado “Como se defender contra um estuprador”. Combinado
com suas memórias da noite passada, isso a fez empurrar o prato
para o lado. Ela pegou uma caneca de café preto forte e subiu as
escadas para o Quatro.
Agora são 15h e ela sente que está flutuando. Ela olha para uma
das salas de trabalho na Três enquanto passa e vê...
— Kit?
Kit está sentada em uma das cadeiras perto da porta, com o
cabelo preso para trás com um lenço verde-menta que contrasta
com o suéter laranja-escuro. Uma franja ruiva escapa do lenço e cai
sobre seus olhos, grandes de exaustão. Suas bochechas estão
pálidas e o colarinho de sua camisa está ligeiramente torto, mas ela
está trabalhando.
Ela parece vulnerável, mas é forte. E todo mundo sabe que ela é
forte. Como ela faz isso?
— Achei que você estava descansando. — Moya dá uma longa
tragada no cigarro, ouve o papel queimar. — Sua dedicação é
admirável, mas volte para a cama. Parece que você está dormindo
na mesa.
Kit fica.
— Posso falar com você um minuto?
Moya pensa em como ela e Kit se deram as mãos na lavanderia.
Ela aperta os lábios e examina a sala, verificando se todos estão na
tarefa. Verificando se alguém percebe ela e Kit conversando. Não,
tudo bem se as pessoas as virem conversando. Eles vão presumir
que ela e Kit estão conversando sobre o que aconteceu na
Fazenda. Ninguém está olhando, de qualquer maneira.
Deus, ela está analisando demais. Ela realmente precisa dormir
um pouco.
— Claro. — Ela sai da porta para o corredor, tentando parecer
indiferente, e Kit a segue.
Não há quartos vazios neste andar do Hall – elas vão até o final
do corredor para conversar. Seus passos são amortecidos pelo
corredor do tapete vermelho escuro. Quando chegam a um canto
privado, a voz de Kit surge, quente e baixa. — Os óculos na
lavanderia. Eram óculos de menina.
Moya ouve a certeza absoluta no tom de Kit. Ela olha para o
corredor, mantendo sua expressão neutra, antes de fixar os olhos no
rosto de Kit.
— Sim. A polícia me disse. Como você sabia disso?
— Porque acabei de conhecer uma garota que era amiga da dona
dele. — As palavras de Kit são niveladas. Seus olhos são urgentes.
— Esses óculos vieram de outra vítima de assassinato. Uma garota
que foi morta há apenas três semanas. O nome dela era Dinah
Shaw. Dinah foi morta a facadas no Centro. Ela era uma escrivã
negra do Conselho de Munições, outra moça do governo.
Moya tem se mantido ocupada desde que chegaram ao Salão, e o
peso de seu cansaço é opressivo. Mas agora ela se lembra do que
estava sentindo esta manhã, o que a tem desgastado o dia todo: ela
está com raiva. Furiosa com a forma como Libby morreu – uma de
suas filhas, violentada em um banheiro, massacrada como um
animal.
Agora Kit está dizendo que já aconteceu antes.
— Eu não posso acreditar nisso. — Moya solta um suspiro, inala o
seguinte através do cigarro. — Então, outra garota foi morta dessa
maneira, e a polícia não disse uma palavra sobre isso.
— Isso mesmo.
— Malditos sejam os policiais. Malditos sejam. — Moya coloca a
mão sob o cotovelo e desvia o olhar. — Não consigo parar de
pensar nisso. Sobre o que vimos.
— Eu... eu sonhei com isso — Kit confessa.
O choque de raiva e exaustão interior faz Moya se sentir frágil.
Quando ela registra um leve toque em seu ombro, ela estremece.
Kit puxa os dedos para trás. Ela parece assustada, apologética.
— Seu... seu cabelo está se soltando do coque.
Moya balança um pouco nos pés. Com um gesto gentil, Kit quase
a desfez. As últimas quinze horas foram uma espécie de pesadelo,
mas Kit está próxima, calorosa e real, o rosto virado para cima, a
expressão aberta.
Moya passa a mão na frente de sua blusa azul-safira e tenta
encontrar algum equilíbrio. Algum profissionalismo.
— Você... você disse que conheceu alguém... a amiga de Dinah.
Eu gostaria de falar com ela.
— Agora? — Kit puxa a bainha de seu suéter, os olhos
repentinamente arregalados.
— Agora não. — Moya bufa, apaga o cigarro em um cinzeiro
próximo. — Acho que devo dormir pelo menos dez horas antes de
nossa próxima conversa complicada. Amanhã.
— Violet disse que trabalha na casa de campo. — Kit morde o
lábio, pensando. — Mas ela pega café na cozinha por volta das
nove e meia.
— Vou deixar um recado para ela — diz Moya. — Nos
encontraremos às onze, em algum lugar lá embaixo.
— Eu conheço um lugar — diz Kit. — A velha biblioteca no Um.
— Ok — Movimento pelo corredor, a atenção de Moya se divide.
É Edith, soluçando baixinho, sendo levada para fora da sala de
trabalho por Brigid. Essa bagunça está machucando a todas, e
Moya quer acabar com isso. — Ok, isso é um plano. Agora, pelo
amor de Deus, Kit, volte para a cama.
— Tudo bem. — Kit assente. — É falta de educação se eu disser
à chefe para seguir seu próprio conselho? Você parece tão cansada
quanto eu.
— Sou a supervisora, não a chefe. — Moya sente algo se soltar
dentro dela, no entanto.
— Uh-huh. — Kit sorri gentilmente. — Descanse um pouco,
senhorita supervisora. Você vai precisar de um pouco de gasolina
no tanque para amanhã.
Moya controla um arrepio. Esta manhã houve um assassinato, e
agora há dois.
Amanhã, tudo pode acontecer.
CAPÍTULO NOVE
— Minha vez — Edith Faber diz baixinho. Ela recolhe sua bolsa com
todos os seus documentos de identidade. As outras garotas na sala
acenam com a cabeça ou acenam para Edith.
Kit a observa partir. O progresso nas revisões tem sido lento, mas
constante. Todos os dias desta semana, diferentes garotas deixaram
a sala com precisão alfabética para ir ao ginásio, e todos os dias Kit
sentiu suas costelas apertarem mais. É como esperar a chegada da
morte rastejante.
Ela exala, concentra-se no que está fazendo. Ela, Opal e Brigid
estão trocando cartas, trabalhando na verificação de soma do
sistema de mensagens. A verificação de soma destina-se a proteger
as transmissões contra mensagens distorcidas, mas às vezes é um
ponto fraco que eles podem usar para encontrar uma maneira de
entrar. Elas passaram os últimos dois dias encadeando os números,
procurando o mesmo aditivo repetido, mas isso não parecia levar a
lugar nenhum.
Agora é sábado e as coisas estão ficando agitadas. Mais e mais
mensagens estão chegando e os cartões estão inundando. Dottie
está perdendo os pés – Kit está feliz por não ser a única que vai e
volta do registro e da análise de tráfego, porque ela ficaria aleijada
por seus próprios sapatos após um único turno. O volume de tráfego
é desconcertante, porque não foram informadas de que nada disso
é urgente. Está tudo marcado como “rotina”, o que sugere que a
ação está esquentando em pequenas ilhas distantes do Pacífico.
No lado positivo, o aumento do volume significa mais
profundidade. Kit se debruça sobre suas cartas, o lápis se movendo,
e depois de um tempo ela se esquece da revisão de identidade, não
percebe o tempo passar, até que Brigid dá um tapinha em seu
ombro.
— Kit? São quatro horas.
Kit olha para cima, distraída.
— Mas só falta mais uma fileira.
— Deixa pra lá, querida — diz Brigid, sorrindo gentilmente. —
Acabou o turno. As meninas no corredor estão esperando por suas
cadeiras. Você não tem outro lugar para estar?
Ela tem, lembra Kit. Ela pega o casaco e se move.
Uma parada de meia hora em seu quarto, para descansar os pés.
Ela tem tentado alternar os saltos continentais com um velho par de
sandálias de salto alto de Katherine, mas são piores, e ela tem que
usar meias mais grossas com as sandálias. Ela troca os sapatos e a
camisa e junta suas coisas.
Andar pela escola carregando a bolsa parece estranho, mas todo
mundo está fazendo isso no momento, por causa da revisão. Se Kit
passar pela revisão, ela terá que descobrir outra maneira discreta de
transportar a papelada: carregar uma pasta de papéis dentro do Hall
parece uma violação de segurança.
Mas atualmente ela não tem estratégia para passar na revisão. Kit
se olha no espelho e arruma o cabelo. Uma coisa de cada vez.
Ela sai do dormitório e fecha a porta. Ela não está esperando por
Dottie; no início do turno, Dottie disse que precisava buscar algo
antes da reunião. E Kit não tem certeza se Violet termina seu turno
na cabana ao mesmo tempo que as meninas terminam no Hall. O
que significa que Kit pode chegar ao quarto de Moya antes de todo
mundo.
Ela e Moya terão um momento para conversar. Sozinhas.
Kit sente uma efervescência quente e doce dentro do peito. O que
é isso? Ela não tem certeza. Ela sempre admirou Moya de uma
distância segura. Moya é intelectualmente perspicaz, mas também
sabe o que pensa; Ela sabe quem ela é. Ela dirige seu próprio
navio, e isso é admirável. Kit sempre apreciou o senso de
compostura controlada de Moya – mas algo mudou. Agora Kit
começou a pensar sobre o quanto ela gostaria de ver aquele
controle escorregar…
E ela se sente menos intimidada, de alguma forma. Talvez tenha
sido a experiência que tiveram juntas na Fazenda Arlington. Ou
talvez tenha sido por causa da primeira visita ao quarto de Moya,
quando Kit percebeu que a desvendada e confusa Moya por trás do
glamour é na verdade a verdadeira Moya.
O mais difícil de ignorar é aquela vez, alguns dias atrás, quando
elas conversaram pela última vez. Elas estavam encostadas na
mesa juntas, e havia um... um sentimento entre elas. Kit não sabe
como descrevê-lo. Mas ela tem certeza de que não era a única a
sentir isso.
E agora aqui está ela, descendo as escadas para o quarto de
Moya novamente.
Essa expectativa, prazer e nervosismo agradável não é algo que
ela experimentou com Katherine. Mas ela e Katherine cresceram
juntas, até certo ponto. O progresso de sua amizade parecia natural,
quase predeterminado. E ela e Katherine eram muito parecidas. Tão
parecidas que Kit descobriu que é muito fácil assumir a identidade
de Katherine. Muito parecido com os sapatos, o ajuste não é exato,
mas é próximo o suficiente para que a diferença seja imperceptível
para quem está de fora.
Moya é outro caso.
É um pouco assustador – Kit não pode se dar ao luxo de ter
sentimentos como este. Toda a sua vida é uma teia de subterfúgios.
Ela não quer se machucar ou machucar outra pessoa. E depois há a
necessidade de discrição. Nada aconteceu ou foi dito que pudesse
revelar seu interesse ou a reciprocidade de Moya. Kit nem sabe
como isso pode funcionar, e falar abertamente é sempre arriscado.
Mas – mas! – algum fio tenso dentro dela vibra na presença de
Moya. Em breve ela terá que falar, ou irá explodir com a tensão.
Kit alisa o suéter nos quadris enquanto desce as escadas para o
Dois e é imediatamente distraída pela visão de alguém – alguém em
particular – caminhando pelo corredor em sua direção. Moya está
vestindo uma camisa branca de colarinho, severamente abotoada,
com uma gravata preta afiada. Ela também está usando uma saia
lápis preta, o que é uma surpresa porque saias não são seu estilo
usual. Carregando sua própria pasta de papéis e uma jaqueta
pendurada no braço, ela parece muito oficial. Seu cabelo está preso
em cachos elegantes, presos de cada lado. Ela quase se parece
com uma das garotas do WAVES.
Kit se permite um momento de apreciação arrepiante. Uau.
— Estamos na biblioteca — Moya diz baixinho ao chegar. — Eu
precisava dar uma desculpa para colocar Violet no Dois, então eu
disse que nós começamos uma sociedade de apreciação de
palavras cruzadas. Vamos.
Kit a segue até o próximo lance de escadas.
— Você disse que estamos fazendo um clube de palavras
cruzadas?
— Bem, estamos resolvendo um quebra-cabeça, não estamos?
— O olhar de Moya é divertido. — Não poderemos usar sua tábua
de assassinatos no armário hoje, mas depois dessa primeira
“reunião do clube”, direi apenas que continuaremos no meu quarto.
Como isso soa?
— Plausível — admite Kit. Ela dá a Moya um olhar divertido
enquanto atravessam as escadas. — Linda saia.
Moya revira os olhos.
— Tive que apresentar um relatório formal ao comitê com o
coronel Corderman, e não havia tempo para me trocar. Venha me
ajudar a me preparar.
Quando elas abrem a porta indefinida da biblioteca, Violet já
chegou. Ela está com uma saia elegante cor de amora e uma
camisa branca com gola pontiaguda e uma jaqueta cinza decotada.
Seus olhos estão brilhando, e Kit acha que é provável que ela tenha
acabado de sair correndo da cabana: seus sapatos estão úmidos e
ela tem uma aparência fresca e externa.
— Oi. — Ela desliza o livro que estava folheando de volta ao seu
espaço na estante. — Moya, com essa roupa, parece que você está
prestes a me fazer uma continência.
— Não me tente. — Moya descarrega sua papelada na mesa de
centro na altura do joelho perto de uma das poltronas. — Estou feliz
que você pôde vir. Você teve algum problema para fugir?
— Não. — Os lábios de Violet se curvam. — Termino às quatro,
como todas vocês. Então eu disse aos meus pais que estou
pegando o último ônibus e o Sr. Coffee aprova. Se o Sr. Coffee
aprovar, meu pai e minha mãe acham que está tudo bem.
— O que você disse ao Sr. Coffee?
— A mesma coisa que eu disse a todo mundo: é um clube de
palavras cruzadas. O Sr. Coffee nos encoraja a tirar um hobby do
trabalho. E ele está feliz por eu estar me misturando com outras
garotas da escola porque, por um lado, ele é totalmente a favor da
dessegregação e, por outro, sou a decifradora mais jovem que ele
tem.
A testa de Moya franze.
— Ele parece ser um cara legal. Lamento que você tenha que
mentir para ele.
— Ele é um cara legal, mas tem que ser feito. — Violet dá de
ombros e sorri. — E você sabe que adoro essas palavras cruzadas.
Entre as três, é um trabalho curto reorganizar a mesa de centro
para um local entre as poltronas e o sofá chesterfield. Elas não têm
nenhum refresco para sugerir uma reunião do clube, mas Moya
trouxe uma pequena pilha de quebra-cabeças de jornais e Violet
recolhe alguns dicionários e um velho dicionário de sinônimos nas
prateleiras. Kit gostaria que a reunião delas fosse realmente sobre
algo tão inócuo quanto palavras cruzadas.
— Ah, eu tenho o arquivo do hospital. — Ela puxa o arquivo
grosso de sua bolsa e encontra um lugar para sentar no sofá ao
lado de Violet.
Violet pega o arquivo.
— Obrigada. Vou devolvê-lo a Ruth amanhã à tarde.
— E eu escrevi as anotações do meu encontro com o detetive
Whitty — diz Moya, provocando os papéis de sua pilha. — Além
disso, aqui estão as cópias dos relatórios da Fazenda Arlington, de
Dottie, Kit e meu.
Está silencioso enquanto elas examinam a papelada nova e
antiga. Kit pode ouvir um carro sendo ligado no estacionamento do
lado de fora, além da janela da biblioteca. A sala está fria e Kit está
feliz por suas meias e suéter. Moya veste a jaqueta, o olhar
abstraído enquanto ela se debruça sobre as anotações.
— Então, do jeito que eu vejo — diz Violet, arregaçando os
punhos — temos dois objetivos principais. Desenvolver uma ideia de
quem é o alvo do assassino e uma foto do próprio assassino.
— Ele tem como alvo as garotas do governo. — Moya bate o lápis
no joelho. — Jovem, bonita. Ele não é exigente quanto à raça.
— Precisamos de mais informações sobre as vítimas. Sobre o
assassino, já sabemos muito. — Kit vasculha para cartões em
branco. — Ele tem um metro e oitenta de altura. Ele é simpatizante
do nazismo.
— Devemos verificar os arquivos antigos sobre a filiação a
Aliança Teuto-Americana — diz Violet, fazendo uma anotação. —
Haverá algo no Departamento do Tesouro.
— É uma boa ideia — concorda Kit. — A outra coisa que
sabemos sobre esse cara é que ele é esperto.
— Esperto... por causa das luvas? — Moya pergunta.
— Sim. Ele é um planejador, isso significa que ele é inteligente.
— E você sabe, ele provavelmente é bonito — diz Violet.
As batidas de lápis de Moya param.
— O que te faz dizer isso?
— Pense nisso. A polícia presumiu que o assassino seguiu Libby
de Idaho até a lavanderia. Mas já sabemos que muito do que a
polícia assumiu estava errado. E se o assassino a convenceu a
sair?
— Ele tem que ser bonito para isso? — Kit pergunta.
— Com certeza ajuda.
— É possível — Kit concorda, balançando a cabeça. — Vou
colocar isso como especulação, mas, na verdade, isso me lembra
algo que Dottie disse: que todos os caras do baile pareciam caras
normais.
— Sim, ele é apenas um cara normal, totalmente americano… —
Moya reflete.
— Ele provavelmente é branco. — Violet absorve os olhares das
outras garotas. — Quero dizer, você sabe que os bailes na Fazenda
Arlington são segregados, certo?
— Não, eu não sabia disso — diz Kit, surpresa. Ela pega outro
cartão.
— E me corrija se eu estiver errada — continua Violet —, mas
Libby parecia bem tradicional. Uma garota como Libby
provavelmente não iria com um homem negro, mesmo se ele
estivesse de uniforme.
— Um homem branco inteligente e bonito de um metro e oitenta
de altura... — Kit franze a testa e balança a cabeça. — Ele deve ter
parecido um bom partido.
— Sem falar que ele é rico — Dottie diz da porta. Ela se parece
com uma loira curvilínea Rita Hayworth. Ela está usando seu vestido
vermelho de bolinhas novamente, mas desta vez reforçado com
meias quentes e confortáveis, um suéter creme aconchegante e um
casaco comprido. Seu cabelo está preso com uma fita vermelha
atrevida e ela está carregando um livro de palavras cruzadas e uma
caixa de lápis. Ela fecha a porta atrás de si. — Desculpe estou
atrasada.
— Acabamos de começar — diz Violet. — Gostei do seu vestido.
— Obrigada! — Dottie sorri. Depois de puxar uma poltrona para
mais perto, ela enfia as saias para baixo para se sentar e tira um
pedaço de papel pesado dobrado do livro de quebra-cabeça. —
Moya, é disso que você precisava?
Dot joga o livro de quebra-cabeça de lado, abre o papel e Kit pode
ver o que é.
— Um Mapa De Washington, Dc E Arredores — Kit lê na legenda
de um lado. — Isso é inteligente.
— Sim, isso é perfeito. Coloque-o aqui. — Moya abre espaço para
o mapa na mesinha de centro.
— Volte atrás um pouco — diz Violet. — Como esse cara é rico?
Dottie tira os braços do casaco e o enrola atrás de si.
— Carro particular porque ele estaria coberto de sangue, lembra?
A maioria dos meninos vem para a Fazenda de ônibus ou táxi,
alguns até de bicicleta, mas não consigo imaginar nosso assassino
fazendo isso. Caras que dirigem seus próprios carros geralmente
são elegantes. Os únicos outros veículos são carros de serviço, que
geralmente transportam grupos, ou vans de entrega.
— Faz sentido — admite Violet. — E sobre o mapa?
— Precisamos manter o controle de locais. Havia uma cópia
sobressalente, então... peguei emprestado.
— Eles vão sentir falta lá em cima? — Kit pergunta.
— Duvido... eles estão interessados principalmente em mapas do
norte da África e das Filipinas no momento. — Dottie tira um lápis de
cor vermelha da caixa que trouxe e faz um círculo no mapa. — Aqui
está a Fazenda Arlington. Olha, tem uma coisa que está me
incomodando. Violet, você disse que Dinah foi morta no centro da
cidade. Pode me mostrar onde?
Violet pega o lápis, examina a área em questão, faz um círculo.
— Aqui... na Linha da Embaixada.
— Não é muito longe de onde aconteceram os protestos sindicais
sobre os salários das mulheres. — Dottie pega o lápis e inclina a
cabeça. — Tem certeza de que foi lá que ela foi encontrada?
— Sim. Foi o que a polícia disse aos pais dela.
— Mas você disse que Dinah trabalhava na Munições, e ela
pegou o ônibus para casa. — Dottie aponta no mapa com a ponta
do lápis vermelho. — O prédio das Munições fica aqui, na
Constitution Avenue. Moya e eu conhecemos aquele prédio, é onde
a Inteligência de Sinais ficava antes que os escritórios do Exército
dos Estados Unidos ficassem muito lotados e o Departamento de
Guerra nos instalasse aqui no Hall. O ônibus para Arlington segue
direto pela Constitution Avenue.
— Sim, isso é estranho. — Moya afrouxa o nó da gravata e o
primeiro botão da camisa. Sua atenção ainda está no mapa. —
Dinah poderia ter pego aquele ônibus bem na porta da Munições e
estar em casa em meia hora. Se ela foi encontrada na Linha da
Embaixada, ela estava fora de sua rota normal.
— Então... como Dinah foi parar no Centro? — Kit pergunta.
Violet mastiga a ponta do lápis.
— Eu apenas presumi que ela foi até o Segundo Batista para o
serviço.
Kit mede as distâncias com o dedo.
— Ela faria todo aquele caminho para o serviço tão tarde? Eles
realizam um serviço lá tão tarde?
Violet semicerra os olhos.
— Para ser honesta, eu não sei.
— Tenho certeza de que podemos descobrir — Dottie garante.
Violet esfrega as têmporas.
— É como se cada pedaço de informação que obtemos criasse
novas perguntas.
— Não, isso é bom. — Kit olha para ela. — Queremos novas
perguntas. Porque as respostas a essas perguntas serão novos
dados. Será uma maneira de conseguir. Sempre há uma maneira de
conseguir. Lembra-se dos requisitos do capitão Hitt para decifrar
códigos?
Violet assente. É uma das primeiras coisas que as novas garotas
de código são encorajadas a aprender durante a indução.
— Primeiro requisito de Hitt para sucesso na quebra de códigos:
análise cuidadosa dos dados.
— Em segundo lugar, perseverança — acrescenta Dottie.
— Intuição — pronuncia Moya.
— E sorte — conclui Kit. — Todas essas coisas combinadas nos
dão a maior oportunidade de sucesso. Temos a intuição e a
perseverança. Faremos nossa própria sorte. E análise cuidadosa
dos dados... Isso significa apenas que precisamos de mais dados.
— Acho que precisamos das informações da polícia sobre o caso
de Dinah — diz Moya. — O que é um obstáculo. Eu poderia voltar
para falar com o detetive Whitty, mas ele não vai me deixar tirar uma
cópia desse relatório.
Dottie franze a testa.
— E ele nem mesmo acha que os dois casos estão relacionados.
— Então precisamos de outra fonte. — Moya tem uma expressão
de aço, como se estivesse focada em um problema de código
particularmente complicado. — Kit, você mencionou algo... sugeriu
descobrir o que foi dito sobre os assassinatos nos jornais.
Kit assente.
— Sei que tem havido muitos artigos sensacionalistas, mas se
pudéssemos encontrar alguns que forneçam mais fatos, seria útil,
sim. Tudo é útil.
— Talvez eu conheça alguém que possa ajudar com isso.
As sobrancelhas de Dottie se erguem.
— Alguém nos arquivos?
— Não. — Moya balança a cabeça. — Um repórter.
— Você conhece um repórter?
Violet olha para cima, esperançosa.
— Os repórteres obtêm informações da polícia que nós não
conseguimos.
— E este repórter tem conexões. — Moya morde o lábio. — Se
ele ainda estiver trabalhando na área do crime, ele saberá.
— Ele? — Kit tenta não soar muito intrometida.
— Raffi. — O olhar de Moya se volta para dentro. — Mas já faz
anos... — ela se descontrola. — Vou tentar mandar uma mensagem
para ele.
— Para qual jornal ele trabalha? — Violet pergunta.
— O Washington Star... foi onde ele estagiou, pelo menos.
— Ele estaria interessado em se encontrar conosco?
— Talvez. — Moya considera. — Se ele ainda estiver em DC. E
se ele pensar que há uma história nisso, com certeza.
Uma história. Kit sente um movimento nauseante e levanta os
olhos rapidamente.
— Teríamos que manter nossos nomes fora dos jornais.
— Absolutamente — afirma Moya. — Essa é a última coisa que
alguém do Hall deseja. — Ainda pensando, ela afasta a gravata do
pescoço. — Mas acho que ele se encontraria conosco. Não aqui,
em algum lugar da cidade. Dê-me quarenta e oito horas para
descobrir.
Dottie sorri.
— Então... parece que a Sociedade de Apreciação das Palavras
Cruzadas vai fazer uma viagem de campo.
CAPÍTULO QUINZE
Moya leva Kit para fora da escola pelas cozinhas, as duas pedindo
desculpas para a equipe. Aquele rubor de vitória nas bochechas de
Kit é muito atraente. Isso lembra a Moya como a cor de Kit aumenta
depois que elas se beijam... e ela realmente precisa se concentrar
mais, ou vai tropeçar nas escadas dos fundos.
Fora da entrada dos fundos da cozinha está o início de um
caminho de cascalho que corta o quadrilátero na diagonal. Moya
veste sua gabardina cor de vinho no caminho. Elas passam pelos
bancos de madeira do parque e pelos arbustos que já foram
elegantemente moldados e agora estão um pouco crescidos –
ninguém tem tempo para cuidar da topiaria; todas elas estão
trabalhando muito.
Virar à esquerda por outro caminho leva-as à porta de uma casa
de três andares construída com a mesma pedra da escola, onde
morava o Diretor da Escola. Violet segura a porta pintada de branco
parcialmente fechada com uma das mãos. Através da abertura,
Moya vê um vislumbre de uma sala de trabalho composta
inteiramente por mulheres negras em trajes civis, com cabelos
elegantemente enrolados. Elas estão sentadas em carteiras
separadas, de cabeça baixa, lápis voando. É uma espiada em um
mundo diferente, e Moya tem que conter sua curiosidade quando
Violet fecha a porta completamente.
— Você conseguiu. — Violet enfia o lápis atrás da orelha.
— A unidade de Kit teve uma descoberta — explica Moya. — As
coisas estão acelerando.
— Bom para você. — Violet dá a Kit um sorriso de aprovação. —
Na verdade, também temos uma descoberta aqui. Mas é isso que
eu queria te dizer. Conseguimos isso em um piscar de olhos.
Moya está familiarizada com beliscões. É quando alguém no
campo de batalha – às vezes uma equipe armada com intenção
deliberada, às vezes uma toupeira aliada trabalhando na inteligência
inimiga – captura chaves cifradas ou livros de códigos inimigos e os
passa adiante. O valor de uma pitada é estratosfericamente alto e
elas são raras; a unidade de Violet teve sorte. O beliscão só é útil
enquanto o inimigo não perceber que suas chaves cifradas foram
interceptadas. Assim que descobrem, os códigos mudam
novamente. Mas para um decifrador, essa janela de tempo pode ser
uma tábua de salvação.
Moya conhece puristas decifradores que consideram uma trapaça
uma pitada, mas essas pessoas podem ir até o inferno. Isso é
guerra. Você tira qualquer vantagem que conseguir.
— Isso é ótimo — diz ela. — Mas por que você…
— Isso me fez pensar — Violet interrompe. — É assim que
podemos pegar nosso assassino. Nós criamos um beliscão.
Teríamos que semear um pouco, divulgar que há uma evidência ou
algo em torno do assasinato de Veronica Luca. Depois que a isca
estiver colocada, veremos se Charlie Sharpe ou algum dos outros
suspeitos cairá na armadilha.
Kit franze a testa.
— Mas como nós... ohhh.
Moya assente. Kit sempre pegou as coisas rápido.
— Rafi. Ele poderia escrever um novo artigo sobre o assassinato
no Mayflower.
— Ele faria isso? — Violet pergunta.
— Acho que sim — responde Moya. — Sim. Já é de alto perfil, e a
mídia está comendo. Também é interessante que ninguém tenha
resolvido os assassinatos ainda. Raffi pode dizer que há novas
evidências, ou mesmo uma testemunha.
— Mas isso não é verdade. Ele pode mentir em um artigo de
jornal? — Kit pergunta. — Isso é permitido?
Moya deixa sua diversão morder seus lábios.
— Ele não precisa mentir. Ele pode insinuar muito, sem dizer
nada diretamente.
As rugas da testa de Kit.
— É um risco.
— Mas é um risco estratégico aumentar nossas chances, como a
marcha de A. Randolph sobre Washington, apenas a ameaça disso
foi suficiente para fazer uma mudança. — Violet muda de lugar,
animada. — Nós deveríamos fazer isso. Se Raffi escrever um artigo
dizendo que há um possível relato de testemunha, e se ele
encorajar o público a entrar em contato com o Star com dicas ou
informações...
— Nosso cara vai entrar em contato com o Star — Kit está
balançando a cabeça lentamente. — Isso se encaixa com seu tipo
de personalidade. Ele vai querer saber o que está acontecendo. Ele
vai querer saber se alguém tem alguma pista real. E ele é arrogante
o suficiente para pensar que nunca será suspeito ou pego.
Moya sente uma chama queimando em seu peito.
— Que é exatamente onde ele está errado. — Ela verifica o
relógio. — Violet, está chegando às três e meia. Você acha que o Sr.
Coffee iria liberá-la mais cedo, sob minha supervisão? Podemos
começar nossa viagem até a delegacia, então posso deixar você em
casa e ligar para Raffi assim que voltar.
— Talvez. — Violet parece animada, energizada. — Deixe-me ir
ver.
Ela gira de volta pela fresta da porta e, mais uma vez, Moya vê de
relance a unidade Negra, as mulheres trabalhando duro. Por que
elas precisam ser separadas do resto das meninas do código na
escola, se o trabalho delas é o mesmo? Não faz um pingo de
sentido.
— As coisas estão ganhando força, não estão?
Moya se vira para ver Kit olhando distraidamente para o Hall.
— É como uma sensação no ar... — Kit estremece, como se
estivesse sacudindo a sensação, e olha para trás. Seu olhar
percorre Moya da cabeça aos pés, e um sorriso aparece em seu
rosto. — Você vai visitar o detetive Whitty de calça?
Moya bufa, põe a mão no quadril.
— Ele vai ter que lidar com isso.
Kit olha ao redor rapidamente antes de se aproximar.
— Se você e Violet vão sair, preciso voltar lá para cima. Vejo você
hoje à noite para a reunião do grupo?
— Conte com isso. — Moya consegue dar um aperto de mão
quente com Kit antes que ela vá embora. A bainha da saia de Kit
balança um pouco na parte de trás com a brisa, e Moya sorri ao vê-
la partir.
Violet aparece na porta novamente, segurando um casaco de
gabardine azul.
— Sr. Coffee disse que sim. — Ela parece silenciosamente
emocionada. — Então estamos indo para a delegacia, certo?
Moya amarra seu casaco na frente quando elas começam a se
mover.
— Podemos ir de táxi, acho. Vamos.
Mas uma vez que elas descem a entrada da garagem e saem do
portão de vigia, os táxis são mais difíceis de encontrar do que Moya
esperava. Ela e Violet ficam na beira do meio-fio, e duas vezes
Moya levanta o braço e observa os táxis claramente vazios
passarem por elas.
— Que diabos. — Moya acena novamente em vão. — Por que
eles não...
Ela vira a cabeça a tempo de ver Violet erguendo as
sobrancelhas.
— Por que eles não param? — A garota lhe dá um olhar cansado.
— Por que você pensa?
— Você gasta dinheiro como todo mundo, certo? — Moya balança
a cabeça frustrada e abaixa o braço. Olha para Violet de frente e
suspira. — E você é uma pessoa, como qualquer outra. Só acho
todo o conceito desconcertante.
Violet semicerra os olhos para ela.
— Tenho me perguntado sobre isso, sabe.
O que ela está pensando tem que esperar: naquele momento, um
motorista de táxi finalmente fica com pena delas e para. Moya
desliza para o banco traseiro e dá instruções enquanto Violet se
acomoda ao lado dela e puxa a porta para fechá-la. Está quente e
silencioso dentro da grande cabine.
Moya liga o assento de vinil enquanto o táxi se afasta do meio-fio.
— O que você quis dizer com “tenho me perguntado”?
Violet alisa a lã do casaco sobre o joelho.
— Bem, quero dizer que você, Kit e Dottie parecem confortáveis
trabalhando comigo. Desde o início.
— Por que não estaríamos? — Mas Moya pode dizer que ela
precisa fornecer mais esclarecimentos. Ela se recosta no assento.
— A segregação não era realmente algo em que eu pensava, até
que vim para o sul. Cresci na cidade de Nova York, em um bairro
misto. italianos, irlandeses, Porto-riquenhos, alemães… e, sim,
algumas famílias negras também. Todos nós nos misturamos.
Ajudavamos uns aos outros, pelo menos o pessoal da minha rua. É
disso que se trata a comunidade.
— Essa não foi a experiência de Kit, no entanto — ressalta Violet.
— Ou de Dottie.
Moya enfia a mão no bolso à procura da cigarreira.
— Bem, é da natureza de Dottie gostar de todo mundo. — Ela
ouve sua própria voz ficar seca. — Embora você tenha visto como
ela estava no ônibus. Baltimore é tão branca que provavelmente
nunca ocorreu a Dot antes que as condições pudessem ser
diferentes para outras pessoas. Mas ela está aprendendo. —
Finalmente encontrando a caixa de metal duro, ela passa o polegar
por sua superfície. — Kit... Acho que Kit sente que seus próprios
pecados são tão grandes que ela não pode julgar os outros. E sei
que ela cresceu em desvantagem, então não desejaria
desvantagem para ninguém.
— Isso é verdade. — Violet aperta os lábios. — Acho que não
tinha certeza de como isso iria acabar. Achei que você, Dottie e Kit
poderiam achar estranho trabalhar com uma garota negra. — Ela
olha Moya bem nos olhos. — Minha mãe ficaria grata apenas por
ser incluída. Mas não sou da geração da minha mãe. Eu tenho
expectativas mais altas.
Moya sustenta o olhar de Violet.
— Você está certa em tê-las. As coisas precisam mudar.
Violet dá um pequeno sorriso.
— Pelo menos se nós quatro meninas pudermos trabalhar
cooperativamente, é encorajador.
— Estamos nisso juntas — diz Moya com firmeza. — Temos que
nos apoiar. Deus sabe que mulheres de todos os tipos já têm o
suficiente para lidar sem adicionar mais lixo à mistura.
— Amém a isso — diz Violet e, alguns minutos depois, o táxi
estaciona em frente à delegacia.
Moya paga, porque ela tem uma mesada para isso como
supervisora, então as duas vão saindo e arrumando a roupa na
calçada. A estação do Condado de Arlington parece imponente, com
colunas altas de cada lado da grande porta pesada, mas Moya já
esteve aqui antes.
Violet olha para o prédio, sua expressão incerta.
— O que você acha que a polícia vai dizer?
— Eu não faço ideia. — Moya franze a testa para a porta, o vento
puxando seus cabelos. Ela tira um cigarro do maço, ergue a mão e
dá a Violet seu melhor olhar sardônico. — Mas certifique-se de que
sua saia esteja reta. Porque garanto que o detetive Whitty vai notar.
Violet revira os olhos e as duas se dirigem para as escadas.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
23 5 12 12 0 4 15 14 5 0 25 15 21 0 1 18 5 0 1 0 8 1 14 4
25 0 12 9 20 20 12 5 0 3 15 4 5 2 18 5 1 11 5 18