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ATENÇÃO!

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intuito de levar reconhecimento às obras para que futuramente sejam publicadas. O Tea &
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vendidas. Também deixamos claro que, caso os livros sejam comprados por editoras no
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grupos, descumprindo, bloquearemos o responsável. Nosso intuito é que os livros sejam
reconhecidos no Brasil e fazer com que leitores que nunca comprariam as obras em inglês
passem a conhecer. Nunca diga que leu o livro em português, alguns autores (e eles estão
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procuramos adquirir as obras dos autores que traduzimos e também reforçamos a
importância de apoiá-los, se você tem condições, por favor adquira as obras também.
Todos os créditos aos autores e editoras.
AVISO DE CONTEÚDO
por thb

O conteúdo a seguir aborda representatividade de personagens


sáfica/lésbica, bem como o uso de tropes como chefe x funcionária
e friends to lovers. No entanto, é importante ressaltar que este texto
também contém gatilhos que podem ser perturbadores para
algumas pessoas. Estes gatilhos incluem a morte de um
personagem secundário, menções a racismo, descrições de cenas
de crime e sangue, descrições sobre causas de morte e estupro,
desigualdades sociais, e conversas sobre desigualdade racial.
Recomendamos que os leitores considerem esses elementos antes
de prosseguirem com a leitura, especialmente se algum desses
temas puder causar desconforto emocional ou psicológico.
Este livro é dedicado às dezenas de
milhares de mulheres que trabalharam
em instalações de inteligência de sinais
como Arlington Hall durante a Segunda
Guerra Mundial – e a todas as
mulheres que já tiveram que esconder
sua luz debaixo do alqueire.
CONTEÚDO

CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
CAPÍTULO QUINZE
CAPÍTULO DEZESSEIS
CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE
CAPÍTULO VINTE
CAPÍTULO VINTE E UM
CAPÍTULO VINTE E DOIS
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
CAPÍTULO VINTE E CINCO
CAPÍTULO VINTE E SEIS
CAPÍTULO VINTE E SETE
CAPÍTULO VINTE E OITO
CAPÍTULO VINTE E NOVE
CAPÍTULO TRINTA
CAPÍTULO TRINTA E UM
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
CAPÍTULO TRINTA E CINCO
CAPÍTULO TRINTA E SEIS
CAPÍTULO TRINTA E SETE
CAPÍTULO TRINTA E OITO
CAPÍTULO TRINTA E NOVE
CAPÍTULO QUARENTA
CAPÍTULO QUARENTA E UM
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

NOTA DA AUTORA
AGRADECIMENTOS
CAPÍTULO UM

Sabíamos, pelo nosso treinamento, sobre a continuidade


criptográfica – como esses novos códigos eram baseados
em códigos antigos, e alguns dos elementos antigos
estavam fadados a aparecer novamente.
— BRIGID GLADWELL

JUNHO DE 1942
Esta é a história de um assassino e a história sobre a rápida
amizade entre meninas.
Claro, o Grande Assassino foi a guerra, na qual jovens foram
despedaçados enquanto suas mães choravam por eles em casa e
milhões de inocentes foram mortos pelo ódio nos terríveis fornos da
Europa. Não bastava apenas amar e esperar que o mundo pudesse
ser mudado pelo amor. A mudança viria apenas com tiros, estações
de batalha e explosões de bombas – amor e esperança eram
insuficientes.
Mas foi o amor e a esperança que criaram uma imensa mudança
de sorte em um quarto do terceiro andar da mansão escolar de
Arlington Hall durante o verão de 1942, onde Katherine Sutherland
estava deitada morrendo.
Katherine esteve morrendo durante a maior parte de sua vida. Ela
tinha sido uma bebê doente e uma criança doente, passando por
mais médicos em seu tempo de vida do que poderia contar. Agora
ela era uma jovem moribunda, contando cada respiração ofegante.
Ela lutou para poder vir para esta escola de aperfeiçoamento, onde
o curso de caça, a arena de equitação e os campos de hóquei
estavam fora de seu alcance. Ela lutou para concluir suas aulas de
comportamento, literatura, astronomia, botânica e boas tarefas
domésticas. Ela nunca faria um bom lar com um homem bonito e
sorridente voltando da guerra, mas a confortava saber que em um
mundo diferente, em um corpo diferente e saudável, ela poderia ter
tido a opção.
As opções eram o problema. Katherine lutou para morrer à sua
maneira e em seus próprios termos. Principalmente, isso significava
lutar para ficar onde ela era feliz, mesmo em seu pior momento, no
terreno da escola, em vez de voltar para o abraço úmido de seus
pais na Pensilvânia, que há muito perceberam que nada que eles ou
os médicos fizessem iria ajudar, que ela nunca se casaria ou
melhoraria a fortuna da família. Katherine sabia que ela era um
Limão.
As garotas Limão, forçadas a serem corajosas, estabelecem seus
próprios termos.
Então Katherine ficou. Enquanto as alunas dos outros quartos
faziam as malas para as férias de verão – férias das quais jamais
voltariam, por acaso – ela estava deitada na cama, de camisola,
com a grande janela aberta. Ela olhou através dela para as
cerejeiras do lado de fora e segurou a mão de uma garota que não
era notada porque usava uniforme de empregada. Esta era Kathleen
Hopper, e ela era a companheira de Katherine.
Companheira, enfermeira e empregada doméstica, Kathleen havia
sido contratada quatro anos antes porque não era negra (a mãe de
Katherine insistira em uma menina branca). E uma menina doente
precisava de alguém que a ajudasse a se vestir, ler com ela,
preparar e levar as refeições, andar no seu ritmo enquanto os outros
corriam.
Se foi um confinamento para Kathleen – um pouco como se ela
estivesse morrendo lentamente – então esse era apenas o preço
que você pagava para manter um bom emprego. Com cinco irmãos
em Scott’s Run, ela teve sorte de ter um emprego. Mas a rotina
diária da vida de Katherine tinha sido toda a existência de Kathleen
por tanto tempo que as barreiras entre patroa e empregada foram
completamente derrubadas, e é por isso que elas se deram as
mãos.
Talvez essa não fosse a única razão pela qual elas deram as
mãos.
Agora aqui estão elas – duas garotas Limão1, vidas e mentes tão
entrelaçadas que não conseguem imaginar uma sem a outra.
Kathleen realmente acredita que Katherine só está viva por causa
dela. Não no sentido prático, mas no sentido da alma, como se ela
estivesse colocando um pouco de sua própria energia no corpo de
Katherine. Mas as coisas começaram a mudar para pior. Ela deu e
deu, mas não foi o suficiente, e não há nada que Kathleen possa
fazer sobre isso.
Elas acompanharam o ritmo uma da outra durante esses longos
dias de verão, lendo Austen e Euclides em voz alta, falando sobre o
modo como as estrelas giram em suas constelações cintilantes e
qual cavalo nos estábulos tem o melhor nariz para acariciar.
Kathleen alimentou Katherine com possets2 e esfregou o chão para
evitar a poeira, e agora as janelas estão abertas em uma tarde
gloriosa e suave.
Katherine dobra as duas mãos em um arco de tenda e fala com
sua voz ofegante.
— Você já pensou sobre isso, como nossos nomes são tão
parecidos? Quero dizer, no dia em que você veio pela primeira vez,
eu disse...
— Eu sei o que você disse. — Kathleen ajusta seu assento na
cama. — Eu estava lá. Eu lembro.
Katherine não é dissuadida.
— Eu disse: Oh Deus, nós somos como gêmeas de nome. Aquele
foi o melhor dia.
Kathleen se lembra dos terrores daquele dia: se seus novos
empregadores gostariam dela, se seriam horríveis ou se
aproveitariam dela, como sua mãe lhe disse que às vezes acontece.
Pressionada para trabalhar aos quatorze anos, Kathleen ficou
consternada ao se ver encarregada dos cuidados diários de uma
garota de sua idade. A princípio, parecia que ela e Katherine
estavam ofegando pelo mesmo ar. Mas então ficou normal e mais
fácil, como se estivessem respirando juntas.
Agora Kathleen não diz nada em resposta, e Katherine, que pode
menos ainda se dar ao luxo de falar, continua.
— Já pensou no que vai fazer no outono? Quando tudo isso
acabar?
Kathleen balança a cabeça, porque tudo isso é grande demais e
ela não sabe, não sabe o que vai fazer. Katherine é o seu tudo isso
e já faz algum tempo.
— Eu estive pensando — Katherine diz, então faz uma pausa
para respirar. Cada respiração é como estilhaços em seus pulmões.
Ela se inclina para a frente para pedir ajuda com um gole de chá de
mel, acomoda as costas contra os travesseiros. — Estive pensando
e decidi. Mas você também tem que decidir.
Kathleen, que sabe que suas decisões não significam nada neste
mundo, joga junto.
— O que você decidiu? E não me diga para começar a doar suas
jóias de novo, porque você sabe que isso é estúpido e eu não vou
fazer isso.
Katherine sorri porque não consegue rir, mas então seu sorriso
fica sério.
— Não estou falando das jóias, Katie.
Katherine é Katherine e Kathleen é Katie, então outras pessoas
não se confundem. Mas à noite, elas são apenas Kitty e Katie, que é
exatamente o que acontece quando você está abraçado em
consolo. Quatro anos, e Kathleen está orando por mais quatro,
embora ela possa dizer que isso não vai acontecer.
— Cala a boca — ela sussurra, mas Katherine não cala a boca.
— Ouça, e ouça bem. — O tom de Katherine é perigoso agora. —
Quando tudo isso acabar, eles vão dizer para você voltar para West
Virginia. Uma garota como você, com a cabeça cheia de geometria,
piano, palavras cruzadas e nomes latinos de plantas...
— …e como passar ferro a vapor e colocar uma bandeja de chá e
acender o fogo na grelha — diz Kathleen, sempre prática.
Katherine aperta suas mãos unidas.
— Você sabe que isso não é suficiente. Nunca será o suficiente.
Não mais.
— Não importa — diz Kathleen, mas sua garganta está apertada.
— Esta é a última coisa, ok? — Katherine olha pela janela, olha
para trás. — É a melhor coisa que posso lhe dar para compensar
todas as tosses e os dias ruins. — Ela acena para o pé da cama.
Seus baús estão arrumados lá, e Kathleen sempre os mantém
limpos. — Ouça-me... ouça. Eu irei, e então tudo terá que ser
empacotado. Mandado para casa.
— Não — diz Kathleen.
— Isso mesmo. Não. — Katherine tem belos olhos azuis e, no
momento, eles são claros e quentes. Ela aperta as duas mãos com
sua melhor amiga em todo o mundo. — Quero que você leve meu
baú grande, Katie. Tem tudo que você precisa. Roupas. Papéis.
Referências. Não as jóias, porque alguém faria um alarde sobre
isso, mas o dinheiro, sim, porque eles não sabem. O suficiente para
colocá-la em seu caminho. O suficiente para ajudar você.
É como se ela estivesse falando sobre um barco zarpando. Ela
está dando um barco para Kathleen. O coração de Kathleen está
batendo forte. O que diabos ela fará com um barco?
O que ela fará sem um?
— Alguém vai notar — diz Kathleen, urgente. Ela não quer pensar
nisso. A ideia de voltar para a pequena cabana de seus pais em
Scott’s Run – de volta para as cobras cabeças-de-cobre, pó de
carvão e vento cortante soprando pelo chão de tábuas – enche sua
cabeça com um som apressado e apavorado. Mas ela não quer
pensar em se aventurar sozinha no desconhecido.
— Não. — Katherine balança a cabeça. — Eles vão me notar e
notar que sou um problema. E provavelmente levarão o que
puderem carregar, o pequeno baú, minha bolsa azul. Mas o baú
grande precisará ser empacotado, e os tapetes e cobertores e tudo
mais precisarão ser retirados, e você estará aqui para fazer isso.
Ela tosse novamente. Mais chá de mel. Uma pausa em sua
respiração.
— Eu ouvi da Senhorita Grey, eles venderam Arlington Hall. Está
indo para o Departamento de Guerra ou algo assim, e você sabe o
quão confuso tudo está com os trens e os racionamentos de
gasolina. Pode levar semanas até que alguém perceba que o baú foi
extraviado. Você pode levá-lo para a Union Station. Você poderia
levá-lo para qualquer lugar. É apenas vestidos para eles. Ninguém
vai se importar.
— Eu me importo — diz Kathleen. Suas lágrimas são tão bem
treinadas que ficam em suas bochechas sem cair.
— Você sempre se importou — diz Katherine, então gentilmente
— e é assim que posso me importar de volta. É tudo o que posso
oferecer, mas dou a você. Você pode ser eu para ser você. Diga que
aceita, Katie. Diga que vai viver, mesmo quando eu não puder.
Promessas são feitas e mantidas entre garotas o tempo todo, mas
esta significa mais. Aterrorizada, Kathleen concorda com a cabeça
porque parece que Katherine não ficará tranquila sem ele. Suas
duas cabeças se curvam juntas. Impossível saber que outras
palavras se passam entre elas, e então o momento passa e é noite.
Katherine Sutherland morre durante a noite, ainda segurando a
mão de Kathleen.

Na manhã seguinte, tudo acontece exatamente como Katherine


previu. Kathleen está entorpecida. Ainda com o uniforme de
empregada, ela ajuda a enrolar o corpo. Ela responde às perguntas
da diretora e aceita um aperto de mão da Srta. Grey. Arranjos são
feitos.
Katherine é levada embora, o que é a parte mais difícil, mas a
escola está praticamente vazia e não há outras meninas para ver a
maca com a figura envolta em branco sendo carregada escada
abaixo para o furgão do necrotério. As autoridades levam a bolsa
azul e o baú, todas as joias da caixa de jacarandá sobre a cômoda.
É claro que Kathleen ficará para arrumar o resto e limpar o quarto,
é claro que ela fará este último dever para sua ama. Os caminhões
militares já estão no portão, então ela terá que se apressar. Só falta,
explica a diretora com as luvas na mão, terminar a última mala,
ficando apenas alguns funcionários da cozinha. Ela dá um tapinha
no ombro de Kathleen antes de partir. Depois de receber essas
instruções finais, Kathleen é praticamente esquecida.
Kathleen fecha a porta, depois atravessa a sala e abre bem a
janela para a vista da cerejeira, agarrando a moldura branca com as
duas mãos. Ela tem que decidir agora se deve entrar no barco e
velejar. Mas tudo o que ela sente é uma tristeza tão profunda que é
como morrer.
Katherine é quem morreu, no entanto. Ela estaria me dizendo
para não ser uma idiota. Entre no barco.
Entre no barco ou fique sozinha no cais enquanto o barco parte.
De qualquer forma, ela está sozinha.
Ela pode ouvir a voz de Katherine tão claramente. Você pode ser
eu para ser você. Diga que você vai viver, mesmo quando eu não
puder.
Kathleen se lembra de sua promessa. Não se permitindo pensar
muito, ela se afasta da janela e estende as duas mãos para trás.
Dedos frios enquanto ela puxa o laço do avental, desfaz o barbante,
tira as alças do avental dos ombros e afrouxa a roupa. Ela dobra e
coloca sobre a cômoda, porque está acostumada a dobrar.
Ela se ajoelha no tapete e abre o grande baú.
É familiar, no modo como ela lidou e arrumou mil vezes. Mas
também é mais do que ela esperava. Entre as roupas, uma pasta
com papéis – referências que atestam o bom caráter de Senhorita
Katherine Sutherland, a qualidade de sua família. Uma série de
relatórios de notas de Arlington Hall e de outras escolas,
assegurando suas qualificações e habilidades em datilografia e
francês e assim por diante. Documentos de identidade e – Deus
abençoe – uma certidão de nascimento, todo filigranado na lateral.
Um envelope de dinheiro, que Kathleen tem muito medo de contar,
mas parece muito. Parece o suficiente.
Como Katherine juntou tudo isso, bem debaixo de seu nariz? Não
há tempo para refletir sobre o mistério disso.
Kathleen desabotoa todos os botões do vestido preto até a cintura
e tira os sapatos oxford. Ela tira a meia e o sutiã, ficando apenas de
calcinha. Ela dobra o avental, o vestido e tudo mais em uma trouxa,
que enfia dentro do baú.
Então ela se veste com as roupas de Katherine. Primeiro o
corselette, aconchegando-se com os muitos ganchos e olhos. Ela
calça as meias de Katherine e as ajusta no lugar, alisa a
combinação sobre a cabeça e sobre as coxas. Ela tira o traje de
viagem e o veste: a saia azul-marinho, a blusa estampada, e a
jaqueta azul-marinho com cintura peplum. Katherine foi peneirada
pela doença e Kathleen pelo trabalho árduo, então elas são do
mesmo tamanho. Ela encontra os sapatos que a acompanham, com
salto continental.
Ela veste tudo, tudo que sua ama vestia. Então ela se vira para o
espelho e se encara, e o que ela vê... Ela não tem tempo para isso
agora. Amarrando o laço da blusa com os dedos trêmulos, seu
batimento cardíaco parece muito alto.
O cabelo dela está errado. Ela desabotoa o chapéu e solta o
cabelo do coque minúsculo e apertado na nuca. Escova-o com a
escova de cabelo de Katherine, deixada no ninho de passarinho na
cômoda, junto com os outros itens pessoais: os pentes esmaltado
de Katherine, os grampos de cabelo e as redes, o pó compacto e o
batom, além do jornal dobrado até a última palavra cruzada em que
trabalharam juntas. Há uma foto da família de Katherine. Uma rosa
seca em um vaso de botão.
Mãos rápidas e trêmulas enquanto Kathleen rola e prende o
cabelo ruivo no lugar. Seu cabelo é grosso e mais curto do que está
na moda. Ela enfia o chapéu no baú, procura mais uma bolsa – o
vinil marrom macio – e um chapeuzinho marrom. Ela prende o
chapéu no cabelo, abre a bolsa e encontra um par de luvas marrom-
escuras. Antes de vestir as luvas, ela passa o pó no rosto e passa o
batom. Ela tira dez dólares – o salário de uma semana – do
envelope e o enfia no bolso interno da bolsa.
Agora, no espelho, ela se parece mais com a garota que finge ser.
O pó não disfarça as sardas, mas sardas são boas, muitas meninas
têm. As sardas não a denunciam. Kathleen ajusta a bolsa e abotoa
o casaco. Ela pratica alguns gestos curtos. Mãos assim. Postura
ereta. Ela está sendo Katherine, mas não Katherine. Ela tem que
apagar a Katherine que ela conhecia, substituí-la por esta nova
versão, a versão que é ela mesma.
Kathleen fecha os olhos por um momento. A coisa toda é
desorientadora e aterrorizante.
Quando seus olhos se abrem, os detritos na cômoda parecem
repentinamente, incrivelmente tristes. Ela não suporta vê-los ali,
então coloca tudo na bolsa – tudo, menos o vaso. Então ela fecha e
tranca o porta-malas, prende-o verticalmente na armação de metal
com as rodinhas e agarra a maçaneta.
Entrar no corredor faz sua respiração parar na garganta, mas não
há ninguém por perto – absolutamente ninguém. Kathleen tenta
andar do jeito que Katherine andava, mas ela não está acostumada
com seus sapatos. Depois de alguns metros, ela percebe que não
pode fazer dessa forma: ela não pode se passar por Katherine. Isso
vai denunciá-la. Ela se endireita e anda com seu passo normal, o
que a faz se sentir melhor.
O baú é um grande peso. Ela leva para o elevador, mas não cabe.
Droga. Ela o leva até a escada e começa a longa descida.
No segundo andar, um jovem.
Há tanto o choque de ver alguém nos corredores vazios quanto o
fato de ser um homem. Normalmente, os únicos homens no terreno
da escola são o zelador, o jardineiro e o entregador da cozinha.
Este homem está de uniforme, com um rifle no ombro.
Não, não é um rifle. Um cabo de vassoura serrado.
— Posso ajudar? — Palavras estúpidas, palavras servis. Deus,
ela estragou tudo na primeira vez que abriu a boca.
Mas o jovem parece tão chocado quanto ela. Ou talvez
envergonhado, por causa do cabo da vassoura. Deve ser porque os
rifles estão em falta.
— Oh, não. Não, Senhora. Estamos apenas limpando o prédio.
Disseram-nos que todos os residentes tinham ido embora.
É o jeito dele, talvez, que a permite sorrir. Este menino é um
servo, assim como ela. Um servo do Departamento de Guerra.
— Sim, acho que sou a única que sobrou — ela diz alegremente.
— Gostaria de uma ajuda com esse baú, senhora?
Este é um novo conceito.
— Uh, sim. Obrigada, eu agradeceria.
Ele leva o baú até o próximo lance de escadas. Kathleen tem que
se impedir de pegá-lo de volta. Apenas se concentre nas escadas.
Pé esquerdo, pé direito, mãos enluvadas no corrimão. É bom que
suas mãos estejam enluvadas – ela tem as unhas curtas e os calos
de uma criada.
No térreo, o elegante saguão de entrada com o balcão
administrativo virado para o exterior. Chão de madeira sob os
calcanhares enquanto ela instrui o soldado a colocar o baú logo
após a grande porta de entrada. A porta está aberta e, através dela,
ela pode ver os veículos estacionados em frente à saliência verde
do círculo de conversão: vans monótonas da época da guerra, além
de um carro preto.
O soldado lhe dá uma saudação enérgica enquanto sobe as
escadas.
E agora? Ela volta para a mesa da administração e coloca sua
bolsa lá, pega o jornal e um pente para encontrar os dez dólares.
Nervosa por perder o dinheiro, ela o enfia no bolso do casaco. Em
seguida, volta para a porta, para verificar os clipes no porta-malas.
Suor na nuca.
O som de conversas e ela se assusta quando duas jovens entram
juntas no auditório do saguão.
— Oh meu Deus. Bem, olá. — A mais alta das duas, de cabelos
pretos e, surpreendentemente, usando calças. — Você é uma das
garotas da escola?
— Sim. — Verdadeiro e falso. Ela tem que pensar rápido agora.
Ela não pode ser Katherine e ela não pode ser Kathleen, ela deve
ser uma fusão de ambos. Ela estende a mão, o algodão da luva
absorvendo a umidade da palma. — Kit Sutherland, oi.
— Moya Kershaw — O aperto de mão da jovem é caloroso, firme,
não o aperto educado de dedos flácidos das classes altas. Ela
parece apenas um ano mais velha que a própria Kit. — E esta aqui
é Dottie. Você está esperando um táxi?
— Sim. — Kit molha os lábios. — Quero dizer, chamei um táxi,
mas ele não chegou.
— Pode ter sido parado no portão — sugere Dottie. Dottie tem um
rosto doce, com cachos loiros e uma figura redonda agradável.
Kit age adequadamente desconcertada.
— Há soldados no portão?
— Receio que sim. — Moya se apoia na mesa da administração e
tira um cigarro de uma carteira estreita. — Todo o prédio foi
apropriado. Você não ouviu?
— Eu ouvi — diz Kit. — Mas tudo... Bem, tudo tem sido meio
corrido.
— Nem me diga. — Dottie sorri. — Desculpe pelo táxi. Onde você
está indo?
— Estação da União. — É o primeiro lugar que Kit consegue
pensar, e o mais óbvio. — Acho que vou descer até a estrada e
esperar o ônibus.
— Você precisa de ajuda com sua bagagem? — Dottie pergunta.
— Obrigada, mas devo ficar bem. — Kit coloca a bolsa no ombro
e caminha até o porta-malas. Ela pode fazer isso. Ela pode
simplesmente sair pela porta e continuar andando.
— Senhorita Sutherland? — A voz de Moya. O tom especulativo
vira Kit de cabeça para baixo.
Todo o seu rosto parece rígido.
— Sim?
Moya acendeu o cigarro. Seu batom é vermelho-bombeiro. Ela é
alta para uma garota, angulosa e com curvas acentuadas nos
quadris, ombros e bochechas. Ela está segurando o jornal dobrado
na outra mão. — Este é o seu jogo de palavras cruzadas?
Será que um jogo de palavras cruzadas vai denunciá-la? Kit
pensa por um momento, decide que está ficando paranóica.
— Sim. Desculpe, isso é meu.
Moya troca um olhar com Dottie, como se estivessem
compartilhando um segredo.
— Você gosta de quebra-cabeças?
Kit sente a transpiração na linha do cabelo. Mas ela está muito
longe para voltar atrás agora.
— Eu faço isso no meu tempo livre.
— E você estudou aqui… — Moya inclina a cabeça. — Quais
eram suas matérias favoritas?
A bolsa está escorregando do ombro de Kit, mas ela não quer
ajustá-la. Sua garganta está muito seca.
— Literatura. Botânica. Francês. Também gostei das aulas de
astronomia. — Ela tenta fazer tudo parecer natural. Estas são as
aulas com as quais ela ajudou Katherine. — Era melhor do que
digitar.
Novamente, o olhar entre as duas outras mulheres.
— Você tem família esperando por você? Ou um noivo? — As
bochechas de Dottie estão rosadas.
Kit sente sua resposta corar.
— Família, sim. Noivo, não.
Moya se aproxima, segurando o papel dobrado. A curva vermelha
de seu batom é como uma lâmpada na noite.
— Srta. Sutherland... o que você diria se eu lhe dissesse que
poderia lhe oferecer um emprego ajudando no esforço de guerra?
Kit fica completamente imóvel, exceto pelo O redondo de sua
boca.
Estou entrando no barco, Katherine. Deus me ajude, estou
entrando no barco.
Ela dá um passo único e ponderado em direção a Moya e Dottie.
— Eu diria para me contar mais.

1. Garotas Limão (ou em inglês, Lemon Girls) significa que uma mulher é lésbica. A
expressão não tem conotações negativas.
2. Posset era originalmente uma popular bebida quente britânica feita de leite coalhado
com vinho ou cerveja, muitas vezes temperada, que era frequentemente usada como
remédio.
CAPÍTULO DOIS

criptologia (n.): linguagem secreta ou oculta; de kruptos


(gr.), “segredo, oculto”, e logos (gr.), “palavra, razão”. A
partir de 1945 é conhecida como “ciência dos caracteres ou
códigos secretos”.

MARÇO DE 1943
— Chegando! Mais lápis chegando! Ei, Kitty-Kat, tenho as borrachas
que você disse que precisava. — Dottie abre caminho entre as
fileiras de cadeiras e mesas na sala de trabalho, uma pequena caixa
de papelão debaixo do braço. Ela é um flash de suéter pêssego sob
as novas luzes fluorescentes.
Kit não a ouve, muito absorta nos números digitados nas fichas
dispostas na mesa de madeira à frente. Ela segura um lápis e, como
todas as outras garotas em uma das grandes mesas do Arlington
Hall, está usando luvas de tricô com os dedos cortados e meias
extras. Pela janela, os terrenos da escola parecem lindos no início
da primavera: as cerejeiras que Katherine tanto apreciava
floresceram. O ar lá fora está ficando mais quente, um alívio bem-
vindo após o inverno rigoroso, mas os andares superiores da escola
são muito mais frios do que fora e as condições são próximas de
uma geladeira.
A sala de trabalho zumbia com conversas baixas, o arranhar de
lápis e o barulho de máquinas de escrever no andar de baixo. Com
sua blusa branca de algodão, suéter azul, saia e meias quentes, Kit
se inclina para a frente em sua cadeira de madeira dura e conta
baixinho.
— Um, dois e três... E um, e dois, e... aí está. Opal, você está
vendo isso?
— Mostre-me. — Opal Jenks, que geralmente se senta mais perto
da janela, está sentada ao lado de Kit e espiando por cima do
ombro. — Um, e dois, e três... Não estou vendo isso no primeiro
grupo.
— Na próxima linha debaixo. — Kit aponta para um conjunto de
números em seu cartão de índice com a ponta do lápis. — Espera,
eu preciso de uma borracha...
— Aqui está — diz Dottie, pegando um da caixa de papelão e
entregando a ela.
— Obrigada, Dot. — O sorriso de Kit é um lampejo de gratidão
antes que ela volte às cartas e faça a correção. Ela está tentando
não ficar excitada. — Ok, aqui. Você vê? Próxima linha... aqui de
novo.
Opal morde o lábio inferior, olhando para os números.
— Ok, talvez.
— Não sei. — Kit larga o lápis, recosta-se e esfrega os dedos. —
Talvez eu esteja forçando.
— Mostre-me. — Brigid Gladwell empurra a cadeira para trás e se
posiciona do outro lado de Kit. Em cada sala de trabalho, há uma
garota que mantém as coisas funcionando sem problemas e, no
momento, é Brigid.
Kit inclina suas cartas e aponta para os agrupamentos de
números.
— Estou imaginando coisas?
Brigid franze a testa.
— Se estiver, estamos imaginando-as juntas.
A sala de trabalho está cheia de mesas e garotas: garotas com
casacos de inverno, garotas com listas de vitórias, garotas entre 18
e 25 anos. Algumas meninas com lápis atrás das orelhas se
levantam e se aproximam da mesa de Kit. Há um arrepio quando
todas sentem que algo está acontecendo.
— Escreva de novo. — Brigid empurra um bloco de notas. —
Temos o cartão? Rose?
— Um segundo. — Rose, a sobreposta, corre para pegar a folha
correta de sua mesa. — Peguei!
— Me dê aqui. — Kit levanta a mão, e uma pequena brigada de
meninas manda o cartão em sua direção.
Kit fica no terceiro andar da escola. É o mesmo andar que ela
deixou com tanta pressa em junho do ano passado. Mas desde
aquela época, a maioria dos dormitórios foi transformada: cortinas
retiradas e substituídas, camas desmontadas, tapetes exuberantes
enrolados. As banheiras eram muito difíceis de remover. Elas estão
todas cheias de interceptações agora.
Longe no Pacífico, o Exército Imperial Japonês está atirando em
jovens soldados americanos, com uma pausa ocasional para enviar
uma mensagem. Kit trabalha nas mensagens enviadas na pausa.
Seu trabalho é pegar um cartão da cesta de arame à sua frente,
examinar cada número de quatro dígitos, remover a criptografia
usada pela operadora local para encaminhar os números para
Arlington Hall e começar a procurar padrões. Como todas as outras
garotas na sala, Kit circula repetições de quatro dígitos, repetições
de dois dígitos, subtrai um grupo de números de outro, tenta uma
dúzia de outras técnicas com régua de cálculo e papel quadriculado
para encontrar qualquer coisa que corresponda acima. Embora os
números nos cartões muitas vezes pareçam apenas uma sequência
distorcida de dígitos, Kit sabe que há palavras ali em algum lugar –
palavras japonesas romanizadas como dan, tuki e maru.
O zumbido do radiador na parede é como uma rebarba dentro de
seu cérebro, a trilha sonora do zumbido do foco intelectual que
permeia a sala.
Kit tornou-se parte de uma grande mente coletiva.
O trabalho da colmeia é quebrar códigos inimigos.
Com os dedos trêmulos, ela e Opal deslizam a folha do
memorando por baixo das cartas e dos agrupamentos de números
reescritos, para fazer uma comparação.
Outras meninas pararam de trabalhar para observar e fazer
sugestões sussurradas.
— Dê-lhes mais luz! — Edith diz, e uma garota reposiciona uma
luminária de mesa.
— Verifique-o contra o cartão — Brigid os instrui.
O lápis de Kit já está seguindo as linhas.
— Estou checando…
— Kit, acho que tenho um — diz Opal, com a voz subitamente
uma oitava acima. Um zumbido percorre a sala. — Santo Deus,
Kit...
— Esse é um — diz Kit, balançando a cabeça. — E aqui…
— Estou ligando para o andar de cima — diz Brigid, decidida, e
começa a pegar o telefone preto de baquelite perto da porta.
Dottie acena com a mão.
— Moya está descendo!
Moya Kershaw entra na porta do corredor.
— Já estou aqui, o que está acontecendo?
Kit olha para cima, subitamente distraída. A calça de Moya é
divina e a blusa dela é de seda – o que quer dizer que é velha. Tudo
é rayon agora que a seda japonesa é desaprovada.
— Uma possível descoberta — diz Brigid. — Venha ver.
Moya desliza entre as cadeiras e as meninas, e Kit abaixa a
cabeça para que ninguém perceba suas bochechas ficando
rosadas. Ela se volta para a busca por repetições de números.
— Eu tenho um — diz Opal, agora com o lápis voando. — E Kit
tem um...
— Tenho dois — diz Kit. Ela circula os lugares onde os pares de
números se juntam, do memorando e do cartão. — Aqui. E aqui.
Moya coloca a palma da mão ao lado de Kit na mesa e se
aproxima. Kit registra a presença de Moya da mesma forma que ela
registra o som do radiador: como o zumbido baixo de um ímã
poderoso.
Moya examina as cartas, franzindo a testa, e todos prendem a
respiração. Então ela diz:
— É isso aí, você conseguiu — e a tensão se quebra enquanto as
garotas de toda a sala comemoram.
Dottie e Rose gritam, se abraçando, e Opal solta um pio
esfarrapado.
— Kit, nós conseguimos!
— Graças a Deus. — Kit solta uma risada de alívio e prazer
quando Opal a arrasta para um abraço. — Tenho visto esses
números em meus sonhos.
— Claro que sim. — Opal esfrega os olhos. — Aquele trecho de
código estava acabando com a gente.
— Não mais. — Brigid está sorrindo. — Ótimo trabalho, meninas.
— Sim... muito bem. — Moya ainda está debruçada sobre o
memorando e o cartão. Ela pega um lápis solto na mesa e circula
outro par de números. — Mas continuem tentando. Você tem outro
aqui.
Kit pisca para o novo par.
— Como eu não vi isso?
Moya dá a ela um sorriso de esfinge e se endireita.
— Parabéns, senhoritas. Vocês salvaram algumas vidas hoje. —
Ela olha em volta. — E agora podemos salvar mais vidas voltando
ao trabalho, vamos nos mexer, a guerra não vai esperar.
Sua atenção é atraída pela visão de um jovem de terno marrom
parado na porta. Kit o reconhece. Emil Ferrars – Kit só consegue
pensar nele como o Sr. Ferrars – é um gênio da matemática de 22
anos que estudou em Princeton. Agora ele trabalha com a lendária
Srta. Caracristi em alguns dos ataques mais avançados aos códigos
do Exército Imperial no Salão.
O Sr. Ferrars acena.
— Moya? Você tem um minuto?
Dottie também percebe o Sr. Ferrars e imediatamente endireita os
ombros e alisa a saia com a mão. Kit esconde um sorriso. Emil
Ferrars é alto, magro e atraente, e às vezes, quando está andando
pelo refeitório, deixa lápis atrás das orelhas ou se esquece de tirar
os óculos de leitura. Dottie mencionou mais de uma vez como acha
isso adorável.
Dottie também mencionou que o Sr. Ferrars têm dores de cabeça
debilitantes. Com suas dores de cabeça e seu poder cerebral, ele
tem uma dispensa do Departamento de Guerra para estar em
Arlington Hall, em vez de estar na frente de batalha e, de acordo
com Dottie, às vezes se sente envergonhado com isso. Kit acha que
qualquer um que queira colocar o Sr. Ferrars em um uniforme de
artes marciais e dar-lhe um rifle e empurrá-lo para lutar contra
japoneses e alemães é obviamente um completo idiota. Seria um
desperdício chocante de uma mente de primeira linha.
Moya reconhece o Sr. Ferrars com um aceno de cabeça antes de
se virar.
— Ok, o dever chama. Dottie, você terminou aqui? Eles querem
você de volta à circulação.
— Estou a caminho. — Dottie dá uma pequena sacudida no
cabelo quando Moya encontra o Sr. Ferrars na porta e os dois saem
juntos. Então ela se inclina para dar um aperto de lado em Kit. —
Sua campeã. São três descobertas este mês?
— Só duas. — Kit sorri, relaxado e feliz.
— “Só duas” — diz ela. — Ei, vamos comemorar no refeitório
mais tarde. Carol disse que tem rosquinhas. — Dottie ajeita o suéter.
— E você ouviu as últimas fofocas? Tem uns ingleses vindo visitar.
Kit franze a testa.
— Por que?
— Para ver nossos lápis mágicos trabalharem, eu acho. — Dottie
balança as sobrancelhas. — Espero que se pareçam com Joel
McCrea e soem como Cary Grant.
Kit revira os olhos.
— Devem ter sessenta anos, com cabelos saindo das orelhas.
— Eca, saia daqui, você. — Dottie se levanta. — refeitório às
quatro?
— Claro que sim. Certo, continue agora, antes que Moya apareça
de novo. — Dottie faz uma saudação atrevida e se dirige para a
porta.
— Muito bem, senhoritas, a diversão acabou — Brigid anuncia
enquanto as garotas voltam a se sentar. — Vamos nos concentrar.
Opal levanta o queixo para a figura de Dottie que se afasta.
— Ingleses estão visitando Arlington Hall?
Kit ainda está sentindo um brilho nebuloso de euforia por decifrar
o código.
— Se você acredita nos rumores. Suponho que isso significará
mais segurança.
Opal revira os olhos.
— Já temos crachás de identificação e policiais militares de
plantão e cercas de malha de aço por todo o complexo. O que eles
vão fazer, checar nossas calcinhas?
Kit bufa em resposta. Mas ela está pensando sobre isso.
Ela se acomoda na cadeira e tenta voltar sua concentração para o
cartão à sua frente. Os números nele são um disfarce, e é o trabalho
dela tirar esse disfarce.
A ironia não passou despercebida por ela.
Ela e Opal procuram mais repetições até a mudança de turno às
quatro, quando todas as meninas largam os lápis, arrumam as
estações de trabalho e os cabelos, tiram as luvas e se dirigem para
a porta. Elas se juntam ao corredor de garotas que saem de outras
salas, e meia dúzia de garotas se encontram em um grande rio de
garotas que flui pelo lado esquerdo do corredor. Do lado direito,
fluindo para cima, chegam mais meninas para o turno das 16h à
meia-noite.
Kit diverge perto do corrimão para entrar em seu dormitório.
Apenas seis quartos no terceiro andar são dormitórios, com outros
seis quartos no andar de baixo e um punhado no primeiro. Há muito
mais meninas do que quartos, então a maior parte da força de
trabalho fica fora do local.
Ela tira as luvas e pendura o casaco, sentindo-se mais fresca,
mas mais confortável, e tira os sapatos. Então ela se senta em sua
cama feita, esperando que os números mutáveis em sua cabeça se
dissipem.
O quarto em si é minúsculo, com painéis escuros e duas camas
de solteiro em ambos os lados de uma janela. Um guarda-roupa
com um espelho anexo fica entre a cama e a porta do lado de Dottie
e, do lado de Kit, uma cômoda. Se ela esticar as pernas, os dedos
dos pés tocarão a armação de metal da cama de Dottie. Mas Kit não
se importa; está bem longe do quarto onde ela cresceu, com jornais
colados nas paredes, fogão de barril com a botija de água quente
em cima, prato esmaltado esquentando sobras de pão de milho.
Debaixo de sua cama está o baú – o baú de Katherine – com
todos os elementos de que ela precisa para perpetuar sua fachada.
A vista da janela mostra o familiar pátio verde do terreno da
escola. Além da borda oeste da escola fica a parte florestal da
propriedade. Em algum lugar entre aquelas árvores, os velhos
estábulos. Cerca de um quilômetro e meio além da floresta há mais
cercas de malha de aço, mas Kit não pode vê-las daqui.
Depois do gramado quádruplo, atrás da escola, fica o antigo chalé
da administração. Mais atrás, a construção abriu um corte no verde
enquanto os funcionários do Departamento de Guerra concluíam um
novo depósito no terreno inclinado atrás. É uma pena destruir a
adorável área ao norte do terreno, mas Deus sabe que eles
precisam de espaço. Onde diabos eles colocarão os visitantes
ingleses?
Nove meses atrás, Kit teve uma oportunidade. Depois que a
entrevista e as verificações de papel terminaram, ela simplesmente
se tornou outra garota. Há garotas por toda parte agora: garotas nas
ruas, garotas de uniforme, garotas no recém-concluído prédio do
Pentágono a cinco quilômetros de distância. As meninas estão
amontoadas em todos os espaços disponíveis na capital, ocupando-
as em casas de alojamento, enfileirando-se nos balcões de
farmácias e estações de trem, sentando-se de três em três nos
ônibus. Os editoriais dos jornais reclamam da brigada do batom,
mas é assim que funciona enquanto os meninos estão no exterior.
Outra garota do governo engrossando as fileiras do Serviço de
Inteligência de Sinais e Washington, DC, em geral... Kit está
escondida em uma floresta, apenas mais uma árvore. Ela tem
contado com esse anonimato. Ela tem seu baú, sua bolsa, seu
quarto compartilhado com Dottie e seu crachá de identificação com
foto com a cor de sua autorização claramente marcada. Ela fica
rente ao chão. Ela faz o trabalho dela.
Arlington Hall tem sido seu refúgio.
Mas os emissários estrangeiros que vêm ao Hall podem mudar a
rotina.
Kit reconhece a leve palpitação de medo em seu peito e a acalma
observando as folhas se mexerem nas árvores do lado de fora. Os
carvalhos a lembram da infância, de carregar fardos de casca de
carvalho da montanha – sua mãe costumava vender a casca para o
curtume a um centavo por libra. Kit coloca aquela velha memória de
lado; pensar muito sobre quem ela era, quem ela se tornou e quem
ela é agora faz sua cabeça doer. Em vez disso, ela se concentra em
simplesmente absorver o silêncio da sala.
Quando a porta da sala se abre, a primeira reação de Kit é de
decepção.
— Você esqueceu, não foi? — diz Dottie, entrando apressada. —
Tive a sensação de que você ia esquecer.
Kit morde o lábio.
— O refeitório…
— Não se preocupe com isso, querida. — Dottie sorri. Ela está
vestindo a camisa de guingão mais fofa, a gola espreitando sobre a
gola de seu suéter pêssego, e seus cachos loiros estão balançando.
— Acabei de descer do Quatro. Emil Ferrars teve um pequeno
episódio de dor de cabeça, então fiquei para ajudar Moya.
— O Sr. Ferrars está bem?
— Ele vai ficar bem. É só o ritmo... você acha que está cheio aqui
no Três, é muito frenético no sótão.
— Ele deveria mudar de escritório, para ficar mais perto da
enfermaria — sugere Kit.
— Isso nunca vai acontecer. — Dottie aquece as pernas no
radiador. — Eles nunca moveriam o material de alta classificação
para um andar inferior, muito tráfego de pedestres. E não há
escritórios disponíveis no Um, de qualquer maneira. Todo este lugar
é como um labirinto cheio de coelhos.
Kit se pergunta se pergunta sobre os visitantes ingleses pareceria
suspeito. A transição de empregada doméstica para classe média
alta a faz observar constantemente como ela se apresenta. Nos
últimos nove meses, ela se questionou: a pergunta dela é muito
intrometida? É algo que ela já deveria saber? O sotaque ou
fraseado dela é muito grosseiro?
Pelo menos com Dottie ela não precisa se preocupar muito.
Dorothy Crockford vem de Baltimore, onde seu pai administra uma
mercearia, e ela age da mesma forma, quer esteja conversando
com o pessoal da cozinha ou com debutantes. Kit aprendeu muito,
passando tempo com Dottie, e não apenas sobre as fofocas de Hall.
— Então, qual é a história dos ingleses? — Kit pede a ela.
— Não sei muito — admite Dottie, tirando o suéter e pendurando-
o no guarda-roupa. — Apenas o que ouvi enquanto estava
coletando as transcrições, e não é para repetir, certo? Mas eles
chegarão nas próximas duas semanas.
Duas semanas.
— Por que eles estão vindo aqui?
— Pegar algumas dicas, talvez? — Dottie tira a camisa, tremendo,
e a coloca sobre a grade ao pé da cama. Ela pega um vestido
utilitário rosa do guarda-roupa. — Segundo Moya, eles têm sua
própria unidade na Inglaterra, fazendo as mesmas coisas que nós.
Eles começaram antes de nós, diz ela.
Kit chuta as pernas suavemente.
— Então podemos ser nós pegando as dicas.
— Você acha? — A expressão de Dottie diz que ela acha isso
duvidoso enquanto desabotoa a saia. — Mas por que eles viriam
aqui se não precisassem de ajuda com alguma coisa?
— Troca de ideias? — Kit sugere.
— Vou “trocar idéias” com garotos ingleses qualquer dia da
semana. — Dottie dá uma piscadela sedutora para Kit enquanto ela
sai de sua saia. — Você vem comigo para Fazenda Arlington hoje à
noite?
Isso seria um não. Mas Kit não consegue explicar o que a
mantém presa ao Hall.
— Estou pensando sobre isso.
Dottie balança a cabeça.
— É o que você sempre diz. Bem, não pense muito, estou saindo
às cinco e meia.
— Meu cérebro está exausto. — Kit faz isso soar como uma
confissão. — Não sei se serei muito boa para uma conversa.
— Soldados bonitos e música tocando, quem precisa de
conversa? — Dottie guarda a saia e a camisa. Sua voz se torna
persuasiva enquanto ela se mexe no vestido utilitário e amarra o
cinto. — Vamos, Kitty-Kat, vou arrumar seu cabelo e te emprestar o
meu batom.
Kit sorri com a ideia de alguém pentear seu cabelo, e não o
contrário.
— Eu ficaria mais tentada se meus pés e costas não estivessem
tão doloridos. Mas vou te ajudar a desenhar nas costuras da meia,
que tal?
— Eu aceitaria sua companhia ao invés de uma costura de meia,
mas com certeza. Se seus pés já estão doendo, uma dança não
será muito divertida. — Dottie veste um suéter novo por cima do
vestido e ajeita a gola. — Se você não vai sair, pelo menos desça
comigo até o refeitório. Vamos, sei que você perdeu o almoço.
— Você acha que alguém no refeitório notaria se eu aparecesse
de chinelos? — Kit vê a expressão de Dottie. — Ah, tudo bem então.
Kit enfia os sapatos de volta e segue Dottie para fora. Os sapatos
ainda a incomodam; Katherine era meio tamanho menor. Kit tinha
planos de comprar novos, ainda tem até cartão de racionamento
para eles, mas quem tem tempo? A programação é de sete dias de
trabalho e um dia de folga. Em seu dia de folga, ela quer
principalmente dormir.
E se ela está um pouco nervosa por deixar a vizinhança
conhecida de Arlington Hall, enfrentando o mundo mais amplo, isso
também é compreensível.
Ela acompanha Dottie escada abaixo e pelo corredor do primeiro
andar até o refeitório – o que costumava ser o antigo auditório de
concertos – onde encontram bandejas e pratos de bolo de carne e
salada de repolho, com gelatina de sobremesa. As rosquinhas já se
foram, o que é uma pena. A cozinha recebe apenas uma ração
limitada de manteiga e açúcar, então pode demorar um pouco até
que eles recebam mais.
Meia hora depois, Kit está costurando as meias de Dottie. Dottie
se apoia em dois grandes dicionários – um alemão e um japonês –
que ela pegou emprestado da sala de transcrição.
— Você vai com Edith e Carol? — Kit pergunta.
— E Libby. E a Betty, do Dois, disse que ela poderia vir junto. —
Dottie segura a bainha da saia acima dos joelhos. — O que você vai
fazer aqui esta noite, sozinha?
— Hum... não sei. Talvez participar do jogo de pôquer de Moya?
— Desde quando você... e não, ela vai tosquiá-la até ficar cega!
— Dottie ri e se vira para ver. — Ei, vou pegar o último ônibus para
casa, então não espere.
— Tudo bem — diz Kit. — Agora fique quieta.
— Estou parada! Mas escute, eu quis dizer o que eu disse, você
deveria sair mais, Kitty. Se solte um pouco!
— Da próxima vez — diz Kit, sabendo que não haverá próxima
vez, passando o lápis de sobrancelha pela parte de trás da perna de
Dottie com a mão firme.
CAPÍTULO TRÊS

Deixe as coisas serem mostradas, deixe-as aparecer em


suas cores reais.
— ELIZEBETH FRIEDMAN

Kit não vai ao jogo de pôquer. Tempo sozinha é uma raridade, e


somente quando ela está sozinha ela pode realmente relaxar. Ela
pega chocolate quente no refeitório e lê na cama – um exemplar
antigo de Emma, um livro que sempre fazia Katherine rir – e então,
por volta das dez horas, ela apaga o abajur e vai dormir.
À 1:00 da manhã, ela acorda.
Ela sabe que é 1h porque os ponteiros do despertador ao lado da
cama brilham fracamente no escuro. As cortinas estão abertas.
Através da janela congelada, Kit pode ver as estrelas girando no alto
da noite acima das árvores.
Um vislumbre pega nas dobras apertadas da cama oposta.
Kit acende a lâmpada. A cama de Dottie está vazia, ainda bem
arrumada. Por um segundo, a cabeça de Kit fica enevoada. Ela olha
para a cama, depois para o relógio. De volta à cama.
Ela pega seu roupão.
Enquanto ela calça os chinelos, ela repassa as possibilidades.
Dottie foi para a Fazenda. Ela poderia ter perdido o último ônibus. A
dança pode ter atrasado.
Mas Kit tem certeza de que as damas que administram essas
coisas vão querer tudo empacotado até meia-noite. As pessoas têm
que ir para casa, dormir um pouco, ir trabalhar no dia seguinte.
Todas as garotas da Fazenda Arlington são do governo.
O ônibus pode ter quebrado... Kit descarta isso rapidamente.
Pense direito. Quais são as outras opções? Dottie poderia ter
conhecido alguém. Isso não é improvável, mas é diferente do feitio
de Dottie. Ela não é realmente uma garota do tipo “passar a noite
juntos no primeiro encontro”.
Kit considera mais ideias, e as descarta. O quarto está frio com as
cortinas abertas. Kit morde o lábio por um momento, depois sai para
o corredor.
Ela desce um andar. Parece estranho andar pelo Hall de chinelos
e pijamas enquanto outras garotas estão trabalhando nas mesas a
apenas um corredor de distância.
A porta a que Kit chega é de madeira escura, como o entalhe das
paredes. Kit levanta o punho, hesita.
Moya é sua colega. Amiga de Dottie e, portanto, sua amiga. Mas
Moya também é a supervisora do terceiro andar – essencialmente
sua chefe. Ela afasta a outra preocupação, que Moya é afiada e
glamourosa de uma forma que deixa Kit um pouco calada. Moya
tem um coração legal e de aço, o que é um pouco intimidador.
E Kit não quer colocar Dottie em apuros. Mas talvez Dottie já
esteja com problemas.
Kit bate forte.
— Moya, sou eu.
Som abafado de movimento. Um momento depois, a porta se
abre para dentro. Moya está em um roupão masculino, seu cabelo
tipicamente liso despenteado. Ela está segurando um isqueiro
prateado e tem um cigarro preso entre os dentes.
— Dottie não voltou para casa — diz Kit.
Moya esfrega a testa com as costas da mão.
— É uma da manhã.
— Sim. E Dottie não voltou para casa.
Há uma pausa.
— Merda. — Moya acende o cigarro. — Um minuto. — Ela fecha
a porta na cara de Kit.
Kit espera no corredor frio, mudando de posição. Alguém poderia
passar por aqui. As garotas das salas de digitação próximas
poderiam sair para o banheiro e vê-la parada aqui em seus chinelos
e roupão...
A porta se abre novamente, e Moya está vestindo calças de sarja
marrom e uma camisa branca de botão. Ela vestiu uma jaqueta
também – uma jaqueta de couro, com gola de lã. Ela ainda está
fumando o cigarro e está usando botas macias. Ela tem um lenço
azul escuro na mão.
— Dottie foi para a Fazenda? Para o baile esta noite? — Moya
fecha seu dormitório atrás de si.
Kit recua enquanto Moya tranca a porta.
— Sim.
— Certo. — Moya começa a caminhar de volta para as escadas.
Kit percebe que ela deveria seguir.
— Ela disse que pegaria o último ônibus para casa.
— Isso obviamente não aconteceu. — Moya amarra o lenço azul
ao redor do seu cabelo enquanto sobem as escadas para o Três,
para o quarto de Kit. Moya acena com a mão. — Vista-se. Você
ainda está de pijama.
Aturdida, Kit percebe que isso é verdade. Ela vai para o quarto e
rapidamente dispensa o roupão e a roupa de dormir para vestir uma
saia de veludo cotelê, camisa quente, meias compridas, um suéter e
seu casaco marrom.
Moya fala com ela pela porta.
— Dottie estava encontrando alguém na Fazenda?
— Não — Kit responde para a madeira. Ela faz uma careta ao
calçar um par de sapatos diferente: seus velhos oxfords, com salto
cubano. Eles dão a ela todos os tipos de sentimentos estranhos,
mas são definitivamente mais práticos nessa situação. — Na
verdade... não sei. Ela foi com outras pessoas. Betty do Dois. Libby.
Edith. Carol.
— Carol de Hagerstown?
— Carol de Nova Jersey.
— Oh, tudo bem. — O cheiro do cigarro de Moya se infiltra por
baixo da porta. — E elas estão todas de volta agora?
— Não sei — diz Kit. Ela abre a porta.
Moya está encostada no batente da porta, olhando para o
corredor.
— Posso pedir a Beverley Gaskin para verificar. Ela está no turno
da noite. Dottie está envolvida com alguém da Fazenda Arlington?
Kit fica confusa com a pergunta. A Fazenda Arlington é uma
instalação totalmente nova. Fica a apenas cinco quilômetros a
nordeste do Hall e a uma curta viagem de ônibus de DC, o que o
torna uma acomodação popular para garotas do governo. É também
um dormitório feminino.
— O quê?
— Ela está envolvida com alguém na Fazenda Arlington? — Moya
faz uma careta. — Kit, por favor, não seja estúpida.
— Não. Hm. — Kit cora, porque ela realmente não é estúpida. É
surpreendente que Moya seja tão casual sobre isso. — Você
conhece Dottie. Se ela perdesse o ônibus, teria pegado um táxi. Ela
sabe que quebrar o toque de recolher não vale a pena.
— Tudo bem. — Moya começa a andar novamente. — Vamos
encontrar Emil.
Kit corre para acompanhá-la, puxando as mangas do suéter por
baixo do casaco.
— Por que o Sr. Ferrars?
— Porque precisamos de uma carona e ele me deve um favor.
Eles param perto das oficinas para que Moya pergunte a Beverley
Gaskin quem voltou do baile. Betty, Edith e Carol voltaram. Libby
trabalha em outro lugar, no registro de interceptação, mas ela é
confiável; ela provavelmente está de volta. Moya agradece a
Beverley e lança um olhar significativo para Kit.
Elas sobem as escadas novamente, até o Quatro. Esta não é uma
parte da escola que Kit normalmente tem permissão para visitar. O
corredor do sótão está bem iluminado e os sons de conversas e
movimentos vêm dos quartos de cada lado. Quando ela e Moya
passam por uma porta aberta, Kit vê duas garotas, ambas na casa
dos vinte anos, trabalhando em máquinas de escrever. Kit se
pergunta se alguma das superestrelas decifradoras de Hall está de
plantão – a Srta. Berryman, talvez, ou o Sr. Kullback.
Está mais quente aqui do que no Três. Elas chegam a uma porta
no outro extremo que está em uma alcova escura. Kit se lembra
desta sala – originalmente era usada para armazenar equipamentos
de hóquei em campo, quando Arlington Hall ainda era uma escola.
Moya bate na porta.
Depois de um momento, o som de uma voz educada.
— Sim?
— Emil, abra — diz Moya.
A porta atende, e Emil Ferrars está descalço, de calça comprida e
camiseta de mangas compridas. O primeiro pensamento de Kit é
que Dottie provavelmente preferiria ser a única a ver o Sr. Ferrars de
camiseta.
— O que está acontecendo? — Sr. Ferrars diz, piscando.
Moya sopra fumaça acima de sua cabeça.
— Uma das minhas garotas está desaparecida na Fazenda
Arlington, e eu a quero de volta sem muito barulho.
— Moya, é uma da manhã.
— Ela é uma boa menina, Emil.
O Sr. Ferrars suspira e coloca o suspensório sobre os ombros.
— Vou pegar meu casaco.
Ele sai logo depois de vestir uma camisa e um suéter, carregando
os sapatos – ele os calça no corredor – e entrega o casaco a Moya.
— As chaves estão no bolso do meu casaco. — Ele se inclina na
parede para amarrar os cadarços. — Do lado esquerdo interno.
— Você pode dirigir depois desta tarde? — Moya está sendo
enigmática, mas Kit sabe que o Sr. Ferrars geralmente precisa
descansar após um episódio de sua doença.
— Eu vou ficar bem — diz ele calmamente.
As datilógrafas nem piscam quando eles passam de novo. O Sr.
Ferrars tem passos ligeiramente mais longos. Moya tem pernas
longas, mas Kit precisa dobrar o passo para acompanhá-la.
— Você vai ficar me devendo muito depois disso, Moya — diz o
sr. Ferrars.
Moya ri.
— É o que você sempre diz.
— Minha cabeça acabou de encostar no travesseiro.
Kit sabe como é isso, e ela se sente mal por ele.
— Desculpe.
— Ah, não é sua culpa. — Ele olha de relance. Ele tem belos
olhos castanhos. — Vamos apenas esperar que sua jovem esteja
bem.
Kit não tem certeza do que dizer sobre isso, porque isso toca um
acorde muito solene dentro dela.
A viagem restante para baixo é muito rápida. Eles não saem pela
porta principal no Um; em vez disso, Moya e o Sr. Ferrars viram
para a esquerda e passam pelos quartos – incluindo alguns
dormitórios silenciosos – até o final do corredor acarpetado, onde
viram à esquerda novamente e passam por baixo da escada.
Eles saem por uma porta dos fundos e saem pelos degraus de
concreto. À direita está uma área de estacionamento com alguns
veículos de cúpula preta. O Sr. Ferrars e Moya seguem direto para o
estacionamento. Kit puxa o casaco para mais perto e esfrega os
braços: a noite lá fora está muito mais fria do que na escola, e sua
respiração embaça à sua frente.
— Você tem gasolina suficiente? — Moya não está falando com
Kit.
— Sim. — O Sr. Ferrars corre até o sedã mais próximo, um
Chrysler preto muito bonito, destranca o lado do motorista, entra e
se inclina para destrancar o lado do passageiro. — Embora eu
esperasse economizar um pouco para uma viagem à cidade no
meio da semana.
— Desculpe, Emil. — Moya parece sincera desta vez. Ela joga
fora a bituca do cigarro, então desliza para o banco do passageiro e
acena para Kit. — Vamos, vamos embora.
Após uma breve hesitação, Kit entra no banco de trás. Ela nunca
andou em um carro pessoal antes. Ela pegou o trem e o ônibus, e
duas vezes ela esteve em táxis. O assento de couro está
congelando sob suas palmas, e ela está feliz por ter usado veludo
cotelê.
Emil Ferrars liga o motor, tira o carro da vaga de estacionamento
e eles descem a curva enluarada da entrada da garagem até o
portão de segurança, onde são avisados pelo policial de plantão.
Kit sente como se estivesse no meio de um sonho bizarro. Dirigir
pela Arlington Boulevard a esta hora da noite é lento e estranho, e
há poucos outros carros na estrada. As luzes da rua estão
apagadas e todos estão dirigindo com os faróis apagados por causa
das regras de blecaute. A lua é uma vantagem, mas o Sr. Ferrars
ainda não está indo a mais de quinze milhas por hora. É
estranhamente solitário estar assim em uma noite npa Virgínia.
Moya se vira para olhar para ela.
— Você sabe onde Dottie pode estar? Idaho Hall?
— Eu acho que sim. — Kit não tem certeza, mas é onde
geralmente acontecem as danças.
— Vamos começar por aí e ir seguindo o caminho — Moya
esfrega as mãos para aquecê-las. — Prefiro não acordar metade
dos moradores da Fazenda, a menos que seja necessário.
A Fazenda Arlington é coloquialmente conhecida como Vinte e
Oito Acres de Garotas. Lá, os bailes atraem militares de todos os
lugares, e Dottie disse que alguns dos homens são legais e outros
enfadonhos, e muitos deles são ansiosos demais. As matronas
ficam de olho nas coisas, mas Kit sabe que é muito fácil as
situações sociais saírem do controle. Às vezes é difícil para garotas
educadas dizerem não. Ela olha para os carvalhos iluminados pela
lua passando pela janela do carro do Sr. Ferrars e espera que Dottie
esteja bem.
Eles fazem uma curva fechada na South Washington Boulevard
para a Arlington Ridge Road e depois para a entrada de carros. A
construção da Fazenda ainda está sendo finalizada – praticamente
tudo relacionado à guerra ainda está sendo finalizado – e a
paisagem fica empoeirada quando eles passam pelo portão
principal. Kit se lembra novamente de seu passado: nozes pretas no
outono, água da nascente descendo a colina, terra de barro
vermelho no quintal. Há muita sujeira e concreto na Fazenda
Arlington, e não há muita grama. Algumas das tubulações estão
expostas, para ainda serem disfarçadas sob os jardins. No escuro,
todos os prédios quadrados de dois andares parecem muito
armazéns, com uma grande árvore ocasional.
Os turnos da meia-noite começaram há quase duas horas, e o
lugar é fantasmagoricamente silencioso. Não há pedestres. Todo
mundo que pode dormir está dormindo.
O Sr. Ferrars para bem em frente à entrada principal de um prédio
pré-fabricado com um pórtico grande e alto e muitas janelas. A placa
na frente diz IDAHO. Do outro lado da rua, uma ENFERMARIA.
Moya sai do carro imediatamente.
— Você quer que eu entre? — Emil Ferrars pergunta pela janela
aberta do carro.
— Não para isso. — Moya está andando para trás. — Fique aqui.
Espero que voltemos logo. — Ela olha para Kit. — Vamos lá, o que
você está esperando?
Kit não sabe ao certo por que Moya precisa dela, se ela não
precisa do Sr. Ferrars. Mas a voz de Moya está comandando, então
Kit abre a porta e segue Moya para dentro do prédio.
O lobby é um grande espaço aberto com piso de madeira e um
sofá pedestal em seu centro. À direita, uma mesa desocupada. À
esquerda, um longo balcão fica em frente a uma parede de caixas
de correio. Há uma reservista do WAVES3 de plantão, mas ela está
lendo um jornal.
Ela olha para cima quando elas entram.
— Um pouco cedo, não é?
A voz de Moya perde o tom de autoridade, torna-se educada e
casual.
— Estamos procurando uma amiga. Ela veio para o baile de
dança esta noite, mas ainda não chegou em casa.
— Talvez ela tenha ficado com um morador, se perdeu o ônibus
— diz a reservista.
— É possível, mas ela está quebrando o toque de recolher. —
Moya tira o maço de cigarros do bolso do casaco, abre e oferece
um. — Estamos tentando evitar que ela tenha dor de cabeça ao
nascer do sol.
A reservista do WAVES pensa, pegando um cigarro.
— Eu tenho essa dor de cabeça de vez em quando.
— Dottie Crockford. — O isqueiro de Moya já está em sua mão.
— Mais ou menos alta, cachos loiros… — Moya se vira para Kit. —
O que ela estava vestindo?
Kit avança.
— Uh, um vestido rosa com um suéter vermelho. E sapatos de
sela. Ela não levou casaco.
Moya guarda o isqueiro no bolso assim que o cigarro é aceso.
— Ela estava aqui com outras quatro garotas do Hall.
À menção de “Hall”, a reservista do WAVES se endireita, sopra a
fumaça para cima.
— Bem, meu plantão só começou à meia-noite, mas eu não a vi.
— Ela pode ter se sentado em algum lugar para descansar e
adormecido.
— Você poderia verificar a cozinha e os banheiros? Não sei onde
mais ela pode estar, se não estiver em um dos quartos do
dormitório. A oficina está fechada desde as oito. Todo o resto
também está fechado.
— E a enfermaria? — Kit pergunta de repente. Ela percebe o
olhar rápido e aprovador de Moya.
A reservista não parece convencida.
— Ela estava se sentindo mal?
— Não quando ela saiu. Mas ela pode ter ficado tonta com a
dança. — Ou se ela bebeu. Kit sabe que não precisa dizer isso em
voz alta.
— Tem alguém de plantão na enfermaria? — Moya pergunta.
— Sim, senhora. — A reservista do WAVES segura seu cigarro
educadamente sob o balcão.
Moya se volta para Kit novamente.
— Você atravessa a rua e verifica. Vou procurar aqui.
Kit sai por onde entrou, enquanto Moya e a militar negociam se a
reservista pode deixar seu posto para ajudar Moya na busca. Kit sai
do prédio e passa correndo pelo carro.
Emil Ferrars está debruçado na janela.
— Precisa de uma mão?
— Dê-nos mais um minuto.
— Feliz em esperar.
Ela toma o caminho para a enfermaria, outro prédio com o mesmo
pórtico, mas situado mais abaixo. Há uma lâmpada de aparência
quente acesa na entrada e um posto de enfermagem com uma
senhora mais velha – na casa dos trinta – de plantão. Kit descreve
sua busca e faz a pergunta.
A mulher balança a cabeça.
— Não que eu saiba, querida. Temos apenas duas camas
ocupadas agora, e essas meninas são residentes.
Droga. A ansiedade de Kit borbulha dentro dela.
— Bem, obrigada de qualquer maneira.
— Você pode tentar o salão dos fundos de Idaho, ou Ohio ao
lado. — Quando Kit parece perplexa, a enfermeira explica. — Há um
pequeno assento na porta dos fundos de cada residência, para as
meninas que querem sentar e fumar.
Kit agarra aquela centelha de esperança.
— Obrigada, isso é realmente útil.
— De nada. — A enfermeira sorri. — Espero que encontre sua
amiga.
Kit retrocede pela rua escura. Mas, em vez de entrar no saguão
de Idaho, ela segue o caminho de concreto à esquerda, em direção
aos fundos da residência. É uma pequena caminhada – cerca de
dez quartos, de acordo com a contagem de janelas.
Na parte de trás do prédio, é exatamente como a enfermeira
disse: um conjunto de degraus leva da terra ao nível do solo até
uma varanda traseira sombreada. Um banco de madeira é montado
ali, decorado com um cinzeiro. Dois copos vazios estão no corrimão.
Nada de Dottie.
Oh Dottie, querida, onde está você?
Enquanto Kit morde o lábio, uma luz se acende na janela da
cozinha e a porta dos fundos se abre. É Moya, sozinha.
— Alguma coisa? — Quando Kit balança a cabeça, Moya murcha
um pouco. — Também não tenho nada.
— Dê-me um minuto para verificar a porta ao lado — diz Kit. Ela
não vai embora até que tenham esgotado todas as possibilidades.
— Eu vou junto. — Moya apaga a luz e desce os degraus. —
Posso verificar a cozinha e o saguão de Ohio.
Elas seguem outro caminho concreto no escuro. Kit não quer
dizer que está preocupada com mais do que Dottie quebrando o
toque de recolher, mas Moya enfrenta esses medos de frente.
— Será que ela teria entrado no veículo de um soldado?
Kit fica aliviada por não ser a única a pensar nisso.
— Não se ela estivesse sóbria.
— Bem, não há garantia disso.
— Eu sei. Mas Dottie não é burra. Você sabe como ela é... ela
age espumosa e é extrovertida, mas mantém a cabeça no lugar.
Existem dois prédios no final do caminho dividido: o Ohio Hall à
esquerda e uma estrutura Cemesto4 muito menor à direita, talvez
uma lavanderia.
— Você vai para a direita, eu vou para a esquerda — diz Moya.
Kit segue o caminho certo, mas só dá alguns passos antes de
ouvir o grito de Moya. Ela volta correndo.
Dottie está no sofá de vime almofadado na varanda dos fundos de
Ohio, um cobertor sobre os ombros. Moya está sentada ao lado
dela, apertando-a. O rosto de Dottie está pálido e seu cabelo está
todo cacheado. Ela ainda está de sapatos.
— ...pensei em me deitar só por um minuto. Que horas são?
— Tarde — diz Kit, subindo os degraus. — Mas isso não importa,
você está bem?
— Estou bem. — A mão de Dottie passa por seu cabelo. Ela
parece desorientada. — Só com frio e um pouco tonta. Mas só tomei
ponche a noite toda, juro.
Moya se inclina para verificar seus olhos.
— Você aceitou bebida de um dos meninos?
— Um ou dois... — O rubor de Dottie não é visível nas sombras.
— Parece que alguém batizou sua bebida, querida.
Dottie começa a chorar.
Moya a abraça gentilmente.
— Você não parece desarrumada. Deve ter chegado aqui antes
de qualquer coisa acontecer.
O alívio de Kit está fluindo por ela como um jorro de água morna.
Ela se ajoelha, esfregando as mãos de Dottie.
— Como você veio parar aqui, Dot?
— Ah, Kit! — Dottie estende a mão, o rosto prateado sob o luar.
— Eu nem me lembro!
— Tudo bem. Está tudo bem. — Kit permite que ela se agarre. —
Dottie, estou tão feliz por termos encontrado você. Você está bem
para andar?
— Acho que consigo andar — diz Dottie, com a voz turva. —
Deixe-me tentar.
— Temos um carro. Sr. Ferrars...
— Ei! — Uma voz feminina raivosa vem de algum lugar do prédio
atrás deles. — Tem gente tentando dormir aqui!
Moya olha para Kit.
— Vamos.
Elas ajudam Dottie a se levantar e começam a trilhar o caminho
de volta para Idaho. Dottie realmente está tonta – elas têm que
direcionar seus passos.
Agora que a ansiedade e a adrenalina diminuíram, Kit está
voltando para seu corpo. Ela sente uma urgência que nem havia
registrado antes. Ela olha para Moya.
— Você pode levá-la? Preciso ir ao banheiro.
— Eu não voltaria para Ohio, se fosse você — adverte Moya.
— Deixe-me tentar a lavanderia.
Kit volta rapidamente ao longo do caminho, segue a curva à
direita para a pequena lavanderia pré-fabricada de concreto e
amianto. No exterior, outro banco e o familiar pórtico, mas de escala
ainda menor.
Lá dentro, está escuro como o inferno. Kit não consegue localizar
o interruptor de luz. O luar através das janelas revela banheiras de
aço e concreto à esquerda, há a parede e prateleiras de secagem
dobradas inclinadas juntas como um quebra-cabeça de macaco. No
final da sala, uma porta com a inscrição em branco brilhante:
BANHEIRO.
Graças a Deus. Kit passa pelas banheiras e empurra a porta do
banheiro o suficiente para ver outra porta para o box mais próximo.
Ela se apressa. Alívio abençoado.
Ela tem que encontrar o papel higiênico tateando a parede do
cubículo. Os sons de sua busca desajeitada pela descarga ecoam
estranhamente no espaço fechado de concreto. Ela bate com os
dedos na cisterna – caramba. Não, ela consegue. O encanamento
está barulhento e Kit pensa com culpa nas mulheres tentando
descansar nos dormitórios próximos.
Ela sai para lavar as mãos. Está escuro como breu e congelante,
e o concreto sob seus sapatos parece pegajoso. Ela segue o brilho
de um espelho, mas dá apenas dois passos antes de tropeçar em
alguma coisa. Quando suas mãos descem, elas não se conectam
com o concreto frio. Sua mão esquerda cai em uma poça, e sua
mão direita…
É algo que ela reconhece pelo toque. Tecido e o toque macio da
carne.
Tem alguém aqui, deitado no chão.
Kit se joga para trás, se afasta rapidamente de bunda, com a
respiração ofegante, a boca aberta, dominada por uma sensação
subterrânea espinhosa de errado. Ele sobe nela como vapor, se
funde com o cheiro de concreto e ferro no ar. Um terror miasmático
que cresce e cresce dentro dela até atingir um pico avassalador.
Quando suas costas batem na parede perto da porta, ela estende
uma mão para o interruptor de luz que deve estar aqui, deve estar...
Ela encontra. Aperta com força.
Sua mão esquerda está pintada de um vermelho brilhante e
violento contra a parede branca sob a luz forte.
Kit olha para trás.
Ela começa a gritar.

3. Sigla para “The United States Naval Reserve (Women's Reserve)”, uma reserva
militar para mulheres que trabalhavam no exército durante a Segunda Guerra Mundial.
4. Cemesto é um material de construção composto resistente, leve, à prova d'água e
resistente ao fogo, feito de um núcleo de placa isolante de fibra de cana-de-açúcar,
chamado Celotex, revestido em ambos os lados com cimento de amianto.
CAPÍTULO QUATRO

Oh Deus, não há luz, e nenhuma libertação da dor?


— PHYLLIS LEWIS

Moya ouve os gritos enquanto coloca Dottie no banco de trás do


Chrysler.
Dottie se assusta.
— O que é isso?
Essa é a voz de Kit. Moya se vira para Emil, que está segurando a
porta do carro.
— Leve ela. Cuide dela.
— Está tudo bem, senhorita Crockford, não se preocupe. — Emil
se ajoelha ao lado de Dottie e segura a mão dela, olhando para
cima. — Moya…
— Fique com Dottie!
Moya corre de volta pelo caminho no escuro. Sua mente se
contrai com a ideia de que ela está correndo em direção a Kit – uma
garota que ela notou, uma garota da qual ela teve o cuidado de
manter distância porque não pode se permitir esse tipo de distração.
E o cara que drogou Dottie ainda pode estar aqui, pode ter se
escondido enquanto elas...
Uma forma sai da noite e se choca contra ela.
É Kit, mãos levantadas.
— Oh, Jesus. Oh Deus…
— Kit. — Moya tropeça para trás, então pega a garota pelos
ombros. — O que você está…
Kit cede no aperto de Moya por um segundo, seu corpo quente.
Então ela se sacode para o lado e cai desordenadamente no chão.
Moya consegue segurá-la pela cintura antes que ela caia. Kit arfa
novamente; os ruídos que saem dela são vis, perdidos e
profundamente humanos. Há algo terrivelmente errado. Kit nunca
teve ataques de histerias. Ela vem do dinheiro, mas não é a típica
esnobe. Ela é cautelosa e tensa por razões que Moya não consegue
entender, mas ela é uma das melhores recrutas que elas
contrataram. Ela é altamente inteligente, silenciosamente confiável.
— Kit — Moya move a mão para manter o cabelo de Kit para trás.
Kit está tremendo como uma folha. — Querida, me diga o que é…
— Há uma garota na lavanderia e ela está morta — Kit engasga,
ainda curvada.
Moya congela.
Kit arfa mais uma vez. Vomita e faz um gemido.
— Tem uma garota lá dentro e ela está... — A respiração seguinte
dela é um soluço. — Oh Deus, eu nunca... Oh Deus!
Moya exala enquanto o pavor se desenrola dentro dela. Ela puxa
o lenço do cabelo.
— Limpe o rosto. Deixe-me ver.
— Não! — Kit agarra a mão dela com o lenço oferecido. — Você
não quer ver. Você não quer…
— Mas eu preciso — diz Moya. — Essa é a primeira coisa que
tenho que fazer, Kit.
Para confirmar. Ela já sabe que o que Kit está dizendo deve ser
verdade. Além de suas observações sobre a confiabilidade de Kit,
Moya cresceu na Cidade de Nova York. Ela foi criada como
colarinho azul e já viu coisas; ela já ouviu mulheres chorarem assim
antes.
Moya olha. Há um vislumbre através das janelas do prédio escuro
da lavanderia, da luz que Kit deve ter deixado acesa.
— Não posso voltar para lá — diz Kit, seu rosto pálido brilhando
na noite.
— Tudo bem. — Moya não esperava ajuda. É seu trabalho ser
forte quando os outros não podem ser.
Kit parece apologética, horrorizada e confusa ao mesmo tempo.
De repente, outra luz mais brilhante atravessa seu rosto – alguém
acendeu uma lâmpada em Idaho. Moya tem que agir rápido.
— Fique aqui — ela ordena. — Não se mexa até eu voltar.
Moya se vira para a lavanderia. Antes de Arlington Hall, ela
passou seis meses trabalhando no Escritório de Notificações,
digitando mensagens sobre filhos, maridos e irmãos mortos ou
desaparecidos em ação. Isso deu a ela uma pele de rinoceronte –
era isso ou chorar no trabalho todos os dias.
— Espere — diz Kit. — Não está certo. Você não deveria entrar lá
sozinha. Eu... eu irei com você.
Moya se vira, piscando: ninguém jamais se ofereceu para fazer as
coisas difíceis com ela antes, e claramente demorou muito para Kit
fazer a oferta. Mas ela precisa manter o foco.
— Você vai vomitar de novo?
— Não. — Kit se endireita, enfia o lenço no bolso do casaco. —
Eu acho que não.
Ela está perto o suficiente para que Moya ainda possa sentir seu
calor, ou talvez seja apenas o calor de seu apoio.
— Tudo bem então. Vamos.
Elas caminham juntas até o prédio. A porta é sombreada pelo
pórtico e fria ao toque. Moya não se fortalece conscientemente, mas
muda para seu eu de trabalho, seu eu de “apenas fazer o trabalho”.
A parte dela que está acostumada a ler transcrições de
interceptações relatando a morte de homens perdidos no mar,
homens caídos em batalha. Ela aproveita cada pedacinho desse
trabalho agora ao abrir a porta da lavanderia.
A voz de Kit é um sussurro.
— Ela está no último banheiro.
Moya sente sua respiração acelerar, e a controla. Ela e Kit
caminham próximas uma da outra, passando pelas formas escuras
de banheiras e um emaranhado de estendais para a porta do
banheiro. Está cercada de luz.
Os dentes de Kit estão batendo. Moya estende a mão – talvez ela
pense que está puxando Kit atrás dela, mas em vez disso ela
encontra sua mão entrelaçada, os dedos quentes de Kit nos seus.
Fazia muito tempo que Moya não dava as mãos a uma garota, e o
contato trouxe um sobressalto. Sua voz sai baixa e enferrujada.
— Você pode ficar atrás de mim se quiser.
O aperto de Kit aumenta.
— Não para isso.
— Ok — Há uma confusão na cabeça de Moya que a deixa feliz
por ambas estarem olhando para frente. — Você está pronta?
— Não. Mas vá em frente.
Moya estende a mão livre e abre a porta do banheiro com
cuidado.
Oh.
Oh, oh.
A respiração de Moya escapa em uma forte lufada de ar. A
primeira visão da cena é como um ataque – totalmente branco,
vermelho sobressalente. Como se ela tivesse levado um tapa. Ela
deveria ter se preparado mais: Kit segurou sua mão e ela se
distraiu, mas isso não é... isso não é...
Esta é uma garota no chão de concreto pintado de branco do
banheiro. Ela está morta, ninguém pode perder tanto sangue sem
morrer.
Oh Deus, há sangue por toda parte: no chão, embaixo da garota,
na pia branca, na parede. Moya sente que suas pálpebras se
abriram para absorver tudo.
O corpo delicado da garota está espalhado obscenamente. A saia
dela está levantada, o rosto virado. Ela está deitada de costas e há
laços lilases brilhantes em seu torso que parecem flores até Moya
reconhecê-los pelo que são. Por um momento, ela está tonta. Então
o aperto brutal de Kit em sua mão é registrado e os sentidos
retornam, e ela se lembra de inalar.
— O que... o que é?
— Oh não. — Kit está com lágrimas no rosto. — Acho... acho que
é Libby Armstrong. O cabelo castanho e a saia rosa...
— Não — Moya sussurra, negando instintivamente.
Kit assente.
— É ela.
E de repente é como se toda a cena diante delas tivesse virado
de cabeça para baixo, porque esta é Libby Armstrong deitada no
chão da lavanderia. Moya viu Libby ontem na sala de rústica no
Três. Agora aquela garota com o sorriso tímido está aqui, em uma
poça de sangue, irreconhecível exceto por sua saia e…
— Sapatos — diz Moya, com os lábios dormentes. — Ela está
usando aqueles escarpins marrons com lacinhos.
— Sim — diz Kit, com a voz falhando.
Uma bomba está solta, como se Libby estivesse prestes a soltá-
la. Oh Deus.
Moya fecha os olhos por um momento, mas então ela percebe –
ela tem que registrar isso. Ela tem que manter tudo em sua cabeça,
a fim de dar uma conta adequada. Isso manterá ela e Kit no controle
de suas emoções. Será necessário para a polícia. E é necessário
para Libby, então há uma testemunha. Pode ajudar de alguma
forma, de alguma forma…
De que maneira? Essa garota está morta. Ninguém está vindo
para trazê-la de volta à vida…
Cale a boca, cale a boca.
Moya engole.
— Kit, segure a porta. — Deus, a voz dela está tão rouca! Mas é
bom dar ordens.
Kit não parece se importar em recebê-las. Ela mantém a porta
aberta com o pé.
— O que você está…
— Me ajude. — Não é uma ordem. Tremendo demais para ser
uma ordem. Moya aperta a mão de Kit com força. — O que mais
você vê?
— As... meias dela estão rasgadas. — A voz de Kit é fraca.
— Ela está de esmalte rosa — diz Moya. Um suor frio repugnante
brota em sua testa e desce pelo pescoço. — Uma blusa cinza.
— Sim. E ela... — Kit engole audivelmente. — Sem bolsa. Não
vejo uma bolsa.
— Ou um casaco. — Moya aperta os lábios. — São pegadas?
— Acho que são minhas. — Kit parece doente.
— Não. Suas pegadas estão ali.
— E essa é a minha marca de mão na parede... Moya, vamos. Eu
quero ir embora.
— Ok. Deixe-me apenas… — Moya dá um passo inseguro
adiante, além da soleira. Ela se obriga a olhar. Percorre os olhos
dela por tudo, da esquerda para a direita e vice-versa. Atrai o cheiro
do banheiro. A sensação do espaço. A maneira como a luz dura cai
e sobre o quê. — Há óculos na pia — diz ela. E é verdade: um par
de óculos fica no local plano de cerâmica onde o sabonete deveria
estar.
— Libby não usa óculos — diz Kit.
— Eu sei.
— Moya. — Kit puxa a mão dela, irradiando uma energia aguda.
Moya acena com a cabeça, recua enquanto Kit abre a porta. A
visão do inferno se foi. São só elas de novo, no escuro. Elas estão
segurando as mãos uma da outra, os braços uma da outra.
Moya cresceu forte. Sua capacidade de compartimentar não
surgiu do nada – é um produto da infância e das circunstâncias. Seu
rosto público é protegido, cheio de glamour e indiferença. Aqui, na
gelada lavanderia escura, ela tem que trabalhar muito para manter
aquele escudo.
Ela sempre acreditou que Deus é uma mulher. Mas ela mesma é
uma mulher, e Kit é uma mulher, e Libby Armstrong, deitada ali
totalmente fora de alcance atrás da porta, é uma mulher também...
— Vamos — Kit sussurra, e ela está conduzindo Moya agora
enquanto elas se dirigem para a porta da lavanderia.
Lá fora novamente, Moya sente o ar frio na testa e nas bochechas
como um alívio. Em seguida, há sons e uma lanterna brilhando bem
em seu rosto.
— Falei com o senhor do carro lá na frente — diz a reservista do
WAVES, um pouco afastada — e ele disse que houve uma
comoção?
— Poderia abaixar a lanterna, senhora? — Kit solta uma das
mãos de Moya para cobrir seus próprios olhos.
Moya recupera totalmente seu escudo e o envolve como um
manto. Ela solta Kit e entra no círculo branco da lanterna do
reservista.
— Ligue para o seu suboficial. — Suas palavras são duras, seu
rosto uma pedra. — E depois chame a polícia. Uma garota foi
assassinada na sua lavanderia.
CAPÍTULO CINCO

Oh, diabos não, não foi mágica! Nunca pensamos nisso


assim. Mas entendemos que decifrar era ver as coisas de
uma maneira diferente.
— OPAL BUKOWSKI

— Você acha que vai demorar muito mais? — Dottie geme.


— Não falta muito agora, querida — diz Kit, que é a mesma
resposta que ela vem dando nas últimas quatro horas. Seus ombros
estão doloridos de tensão, seus olhos estão cheios de areia, há uma
dor de cabeça latejando dentro de seu crânio, e ela deseja mais do
que tudo que eles estivessem todos de volta ao Hall.
A polícia as interrogou primeiro perto do Chrysler, sob o clarão
das luzes estroboscópicas azuis e o burburinho de oficiais de
uniforme escuro correndo de um lado para o outro. Kit ainda estava
em estado de choque naquele momento, esforçando-se para não
chorar enquanto ela se sentava no Chrysler com a porta aberta, os
pés na beira da calçada.
Em seguida, Emil Ferrars foi mandado para casa, para Arlington
Hall com o carro, e Kit, Moya e Dottie foram levadas para o saguão
do Idaho Hall, onde foram interrogadas novamente por um oficial
mais graduado. Kit se recompôs o suficiente para ficar nervosa em
responder quando as perguntas se voltavam para a identificação
pessoal.
Elas foram transferidas para a enfermaria quando Dottie sofreu
um ataque de choro e passaram uma hora no pequeno salão de
hóspedes. Dottie está enfiada em um canto do sofá com Kit ao lado
dela. Moya anda perto da janela. O melhor que a enfermeira pôde
oferecer foi um copo de Coca-Cola para cada uma, e para Dottie,
um Alka-Seltzer.
Agora é madrugada, a luz do sol brilhando sobre a terra nua e as
paredes de Cemesto da Fazenda Arlington. Moya abre as cortinas
de chita ocasionalmente para verificar o progresso do lado de fora.
Seu rosto é uma máscara afiada e furiosa. Ela está fumando seu
último cigarro, e a vulnerabilidade que Kit viu nela quando eles
estavam na lavanderia se foi. Esta versão séria e controlada de
Moya é a versão com a qual ela está mais acostumada, e a ideia de
que pode haver uma versão mais desvendada por baixo é
estranhamente perturbadora. Mas esta é a Moya que ela conhece –
a Moya que lidou com as trocas com a polícia, garantiu que
nenhuma delas fosse interrogada sozinha, fez questão de enfatizar
que elas são necessárias em Arlington Hall como parte do esforço
de guerra. Ela foi capaz de fornecer uma descrição muito mais
detalhada e sucinta da terrível descoberta na lavanderia do que Kit,
o que foi outra coisa boa.
A última coisa que Kit precisa é ser o foco de interesse da polícia.
Fervendo no fundo da mente de Kit está a preocupação de que
esta investigação policial seja uma atenção que ela não deseja. Ela
se sente culpada, porque sabe que é insensível pensar dessa
maneira. Mas Libby Armstrong está morta e não tem mais nada a
perder. Kit, por outro lado, está muito viva.
— Oh, por que eles simplesmente não nos deixam ir para casa?
— Dottie choraminga.
Kit dá um tapinha na mão dela gentilmente.
— Eles vão, Dot. Eles estão apenas se certificando de que têm
tudo de que precisam.
Para equilibrar as responsabilidades que Moya assumiu ao lidar
com a polícia, Kit assumiu o comando de Dottie. Ouvir que Libby foi
a vítima de assassinato quase deixou Dot no limite da histeria, e o
que quer que tenha colocado em sua bebida no baile a deixou com
uma enxaqueca devastadora. Um dos policiais que as questionou
fez um comentário sobre Dottie ter sorte de só ter sua bebida
batizada, e Kit não ficou nem um pouco surpresa quando Dottie
vomitou em seus sapatos.
— Você pensaria que eles já estão fartos de eu vomitar por toda
parte — Dottie diz, com as bochechas coradas.
— Ei, eu também vomitei. — Kit ouve sua voz ficar adstringente.
— E isso vai ensiná-los a não serem idiotas. Como se você
precisasse ouvir que tem sorte de não ser assassinada, depois de
tudo. Que coisa para dizer.
— Ela teve, no entanto — diz Moya. Ela coloca as cortinas de
volta no lugar e se afasta da janela. — Ela teve muita sorte. — Moya
tirou o casaco, está nos ombros de Dottie agora, e está esfregando
o pescoço com a mão que não segura o cigarro. — Ela veio com o
mesmo grupo que Libby, e ela estava bem ali. É por isso que eles
estão correndo tanto. Eles estão ficando malucos porque havia uma
testemunha do que aconteceu a menos de seis metros de distância.
— Ela nem estava consciente!
— Eu sei disso. Mas, como eu disse, está deixando a polícia
maluca. E estão tentando descobrir se o cara que batizou a bebida
de Dottie foi o mesmo que matou Libby.
— Como eles podem ter certeza que era um cara? — Dottie olha
para cima com ar queixoso.
— Era um cara — Moya diz sem elaborar.
Kit engole e acena com a cabeça, sem encontrar os olhos de
Dottie.
— Era um cara.
— Mas... — Dottie olha de relance para as duas, depois parece
doente. — Oh.
Moya fumou o cigarro até o filtro. Ela apaga o que sobrou no
cinzeiro em uma mesa lateral.
— A polícia está investigando os detalhes dos movimentos de
Libby. Ela não é interna em Arlington Hall, só ficou até tarde depois
do trabalho para ir ao baile com as outras meninas. E ela não era
moradora da Fazenda. Ela morava em DC, como metade dos outros
participantes.
Kit força seu cérebro a funcionar.
— O pessoal da Fazenda tem um registro de quem compareceu?
Tipo, eles guardam os nomes das vendas de ingressos ou algo
assim?
— Não é assim — diz Dottie. — As pessoas simplesmente
entram. Esta não é uma base militar com PM’s no portão. Claro,
eles têm as WAVES de plantão, mas há residentes do WAVES,
então é só... Qual é a palavra?
— Conveniente? — Kit ofertou.
— Conveniente, sim.
— Então o cara pode não ter vindo aqui para o baile — aponta
Moya. — Ele pode ter estado aqui por algum outro motivo, ele pode
ser um entregador, ou apenas um visitante regular. Ele pode nem ter
ido para Idaho.
— Ele pode não ser um soldado — diz Kit, olhando para as
cortinas. — Dot, você descreveu os homens que conheceu para os
policiais, certo?
— Eu fiz... quero dizer, eu tentei. Mas havia tanta coisa que eu
não conseguia lembrar, e os policiais disseram algumas coisas por
trás das mãos, e foi... bem, foi embaraçoso. E havia tantos caras no
baile... — Dottie esfrega as têmporas. — Ai, minha cabeça.
— Você está indo muito bem, querida — Kit a tranquiliza. —
Certamente não deve demorar muito agora.
— Dot, você está quente o suficiente? — Moya pergunta. —
Posso pegar meu casaco de volta?
Dottie acena com a cabeça, então Kit entrega a jaqueta.
— Você vai lá de novo?
— Sim. — Moya puxa a gola de pele de carneiro da jaqueta para
cima. — Vou ver se consigo alguns cigarros e informações com um
dos policiais. Essa garota é uma das nossas e eles não podem
ignorar isso.
— Pergunte a eles quando vão nos deixar ir — sugere Dottie. —
Não é justo que ainda estejamos aqui.
Kit sabe que o interesse de Moya não é apenas bisbilhotar sobre
a época de sua libertação.
— O que você está tentando descobrir?
— As pegadas — diz Moya. — E os óculos. Não eram de Libby,
mas para mim pareciam óculos de menina.
Kit não tem certeza se gosta da direção da mente de Moya.
— Não é nosso trabalho investigar isso. A polícia sabe o que está
fazendo.
— Sabem?
O olhar que Moya dá a ela é nivelado, e Kit foge dele. Moya quer
justiça para Libby: Uma das nossas realmente significa Uma das
minhas. O compromisso que Moya sente pelas garotas do Hall sob
seus cuidados não cobre apenas seu trabalho nas mesas; estende-
se à sua saúde, conforto e perspectivas de futuro. É por isso que ela
é uma das supervisoras mais jovens do Hall e a mais eficiente. É
por isso que Kit foi bater em sua porta à uma da manhã.
Mas não é Moya quem vive uma mentira. Ela pode meter o nariz
nos negócios de outras pessoas sem medo de se expor. Kit não tem
esse luxo.
— Tenho certeza de que eles estão fazendo o melhor que podem
— Kit oferece, mas mesmo para seus ouvidos isso não parece
convincente.
— Bem, vou ver o que significa exatamente “o melhor que podem”
— diz Moya, e sai da sala.
— Não sei como ela consegue. — Dottie apoia a cabeça no
ombro de Kit, derramando lágrimas. — Não quero mais falar sobre
essas coisas horríveis. Só quero ir para casa, tomar um banho e
tomar uma aspirina e tentar dormir. Ah, Libby.
— Dot... — Kit não tem certeza se quer fazer a pergunta. Mas a
sensação que teve na lavanderia não vai se dissipar: não o choque
que sentiu ao ver o corpo de Libby, embora isso também fosse
horrível, mas o medo que experimentou antes de acender a luz. Kit
nunca sentiu um medo tão intenso, mesmo ao sair pela porta com
uma nova identidade. Era enorme, paralisante – e Libby Armstrong
teria suportado isso.
Como seria sentir um terror tão absoluto nos momentos antes da
morte? Kit fica horrorizada com isso.
— Dottie, você disse à polícia que conversou com muitos caras —
ela começa. — Muitos militares. Algum deles se destacou para
você? Qualquer um que parecesse estranho, ou... não sei...
— Algum deles tinha uma grande placa piscando acima de sua
cabeça dizendo “assassino”? — Dottie parece desbotada e pálida,
mas se ainda estiver controlando o sarcasmo, provavelmente ficará
bem. — Não, Kit. Todos pareciam... caras normais.
— Talvez seja assim que ele se parece. Um cara normal. — Kit
morde o lábio.
— Talvez. Isso provavelmente torna mais difícil pegá-lo, certo? —
Dottie prende o cabelo para trás. — De qualquer forma, havia
muitas outras garotas por perto. Estávamos todos conversando,
rindo e dançando...
— Tudo parecia normal — Kit avisa Dottie quando ela para.
— Isso mesmo. E então acordei no sofá do lado de fora do
dormitório.
O olhar de Kit se volta para ela.
— Uma das garotas deve ter ajudado você lá fora. Alguém
colocou um cobertor sobre você.
Dot faz uma careta.
— Mas elas não me levaram para dentro.
— Elas provavelmente pensaram que você precisava de um
pouco de ar e que voltaria para Idaho... — Kit se aproxima de Dottie
no sofá. — Dottie, quem quer que seja aquela garota, precisamos
falar com ela. A polícia precisa falar com ela.
— Sobre o assassinato de Libby?
Kit assente.
— Ela pode ter visto alguma coisa. A lavanderia fica entre Ohio e
Idaho. — Ela pega a mão de Dottie. — Mas não apenas isso. Uma
garota foi morta. Mas o que aconteceu com você também foi um
crime.
— A polícia não parece estar muito preocupada com isso agora —
Dottie diz com tristeza.
— O que é estúpido. Se o cara que fez isso com você não é o
assassino, isso ainda significa que há outro homem vindo a esses
bailes e tentando atacar as garotas. Drogando-as.
Dottie aperta a mão de Kit.
— Acho que Moya estava certo. Eu tive sorte.
Kit engole em seco.
— Dorothy Crockford, não diga isso. Nós somos as sortudas.
Temos sorte de você estar bem. Ah, Dottie...
Ela se inclina para dar um abraço em Dottie, e a solidez e o calor
de Dottie lhe dão algum alívio. A maneira como Dottie retribui
sugere que ela está feliz pelo abraço – por todos os abraços. Elas
ainda estão se abraçando quando Moya volta para a sala arrastando
o cheiro de fumaça de cigarro e ar da manhã, para dizer que a
polícia as está liberando.
CAPÍTULO SEIS

Decifrar não é um processo para uma mente fechada.


— ELIZEBETH FRIEDMAN

Elas pegam um táxi de volta para o Hall e, assim que passam pelos
repórteres clamorosos do lado de fora dos portões da Fazenda
Arlington, a viagem parece curta: Kit acha surpreendente que, todo
esse tempo, café e banho e o conforto de sua própria cama estavam
a apenas três milhas e meia de distância. Ela nunca ficou tão feliz
em ver as colunas brancas da escola, o verde fresco dos jardins.
Elas se aglomeram perto do portão de vigia, conduzem o PM na
guarita do portão – felizmente, todos eles têm seus distintivos – e
caminham penosamente até a casa. Dottie carrega seus sapatos.
Depois da grande porta da frente, fica claro que o mundo não
mudou: o trabalho continua normalmente, salpicado pelo som das
máquinas de escrever. São apenas nove da manhã.
Moya começa a dar ordens.
— Kit, ajude Dottie a subir e coloque-a na cama. Vou dizer ao
pessoal da cozinha para preparar uma bandeja, se você não se
importar em buscá-la. Vou subir para o Quatro.
Kit olha para o rosto pontiagudo de Moya e seus enormes olhos
cinzentos. Seu cabelo preto está caído, sua pele tão pálida e quase
translúcida sobre suas maçãs do rosto.
— Diga-me que você não vai voltar direto ao trabalho.
— Eu tenho que informar o administrador e dar a notícia para as
garotas na sala de trabalho de Libby. — Moya balança a cabeça
com a ideia. — E eu deveria estar de plantão. — Ela penteia o
cabelo para trás com os dedos. — A guerra continua, Kit. Não serei
a primeira soldada a voltar à luta sem dormir.
— Então eu deveria…
— Não. Você cuida de Dot. — Antes que Kit possa dizer mais, o
tom de Moya suaviza. — Se eu precisar de você, mando buscá-la.
A ideia de ser necessária por Moya, ser chamada, tranquiliza Kit
um pouco quando Moya se separa e se dirige para a cozinha. Kit se
volta para Dottie, tentando manter a voz otimista.
— Ok, querida, apenas alguns degraus e nós estaremos lá.
Deixe-me pegar esses sapatos.
Kit ajuda Dottie a trocar de roupa e ir para a cama. Então ela
retorna ao Um para buscar a bandeja. Ela passa do refeitório até a
cozinha, onde a maioria dos funcionários negros está trabalhando
duro nos preparativos do almoço. No final da longa bancada da
cozinha, perto da porta dos fundos, uma jovem negra de suéter e
saia roxa escura está recolhendo uma bandeja com um serviço de
café. Ela olha para cima, pisca com força e encontra os olhos de Kit
– mas Kit não pode fazer mais do que olhar vagamente de volta.
O cabelo dela está desgrenhado? O rosto dela está repuxado?
Ela não tem energia para se importar, e é tudo o que ela pode fazer
para se concentrar enquanto uma matrona mais velha dá uma
bandeja a Kit – há um copo extra de suco de laranja, Kit fica aliviada
ao ver – e instruções sobre como equilibrá-la. Kit concorda com a
cabeça, como se precisasse dessas instruções.
Ela leva a bandeja de volta para cima. Tudo parece fora de
ordem: ela está usando seus sapatos de empregada gastos e
carregando uma bandeja. Talvez alguém a veja e perceba como ela
é competente nessa função. Kit tem que afastar o pensamento.
Assim que Dottie pega a bandeja, ela incentiva Kit a dormir um
pouco. Kit bebe seu suco de laranja, veste o pijama – descartado na
cama desarrumada – e cai no colchão. Ela apaga antes que possa
pensar mais.
Quando ela acorda novamente, de um sono inquieto, é para ouvir
uma batida suave na porta. O quarto está escuro com as cortinas
fechadas e Dottie está roncando baixinho na outra cama. Kit esfrega
os olhos e veste o roupão.
É Rose Haskell na porta, parecendo hesitante.
— Ei. Lamento acordá-la. Você está bem?
— Estou bem — diz Kit em voz baixa. Pela maneira como os
olhos de Rose vagam em direção a Dottie, Kit pode dizer que a
notícia já está circulando. — Nós duas estamos bem. Moya precisa
de nós?
— Só de você — Rose sussurra. — Você tem que ir até o Quatro,
fazer um relatório.
— Que horas são?
— Meio-dia. — Rose muda de posição. — Eu ouvi sobre o... bem,
sobre o que aconteceu...
— Claro — diz Kit. Ela não quer entrar nisso agora. — Diga a
Moya que tenho que me trocar, mas já vou subir. — Ela fecha a
porta antes que Rose possa dizer mais alguma coisa e se encosta
na madeira. Seus sonhos eram cheios de sangue e terror, e ela não
se sentia descansada. Seus olhos estão doendo e seus dentes
parecem embaçados, e a ideia de voltar a vestir a roupa a faz
querer gemer. Esses são os momentos mais perigosos: quando ela
está cansada, quando não consegue manter seu sotaque tão bem,
quando os pequenos maneirismos e regras de etiqueta a
abandonam, a deixam exposta. Ela provavelmente não deveria ter
fechado a porta na cara de Rose.
Ok. Trabalhar.
Kit empurra a porta e recolhe roupas limpas. A saia dela é a
mesma que ela usou ontem, não a de veludo cotelê da noite
passada. Ela calça os sapatos desconfortáveis. Em seguida, ela vai
ao banheiro para jogar água no rosto, escovar os dentes, aplicar pó
e batom. Seu cabelo está desajeitado, então ela o enfia sob um
lenço. O lenço azul de Moya ainda está no bolso do casaco, ela
lembra. Ela aperta as bochechas na frente do espelho e sussurra
para si mesma:
— Vamos, agora. Isso aí.
Deixando Dottie roncando, ela sobe as escadas para o Quatro.
Infelizmente, Moya não está lá. Uma mulher mais velha com o
cabelo preso em um coque francês dá instruções a Kit: ela deve
escrever seu relatório e enviá-lo para datilografia.
Kit está sentada em uma cadeira de madeira no canto do
escritório – não há espaço na mesa para falar – com papel de carta
em uma prancheta dura equilibrada em seu joelho. Ela escreve toda
a história a lápis. Em certos momentos da recordação, sua mão
treme; ninguém parece notar.
Quando ela devolve o relatório para a mulher com o pão francês,
ela é instruída a almoçar.
— E depois?
A mulher parece não saber. Ela acena com a mão.
— Apenas apresente-se em sua mesa habitual no Três, eu acho.
Você acha? Kit fecha a boca e começa a longa caminhada de
volta ao refeitório. Mas quando ela chega ao pé da escada, algo
nela simplesmente se recusa a ceder. Kit pressiona a palma da mão
na testa. Ela precisa... Deus, do que ela precisa? Ela precisa que
Libby não esteja morta. Ela precisa que a imagem de Libby no
banheiro pare de rolar de volta em sua mente, espontaneamente.
Ela precisa de um pouco de paz.
Sem pensar, Kit atravessa o assoalho e começa a descer o
corredor, seguindo o tapete. Ontem à noite, ela, Moya e o Sr.
Ferrars viraram à esquerda aqui para chegar à porta dos fundos.
Agora ela passa por aquela saída e continua até uma porta na
parede.
Quando Arlington Hall era uma escola, esta era a porta de uma
biblioteca. Kit está muito familiarizada com isso, porque Katherine
era uma leitora ávida, mas não tinha forças para vir aqui ela mesma.
Quando ela gira a maçaneta e abre a porta, Kit fica aliviada ao ver
que o espaço praticamente não mudou. Estúdios de arte e salas de
comportamento são desnecessários no novo Arlington Hall, mas as
bibliotecas ainda são importantes.
Cortinas grossas cobrem as janelas altas. As paredes são altas
com livros. Não é uma sala grande, mas há um sofá chesterfield e
duas poltronas. Kit sempre teve a sensação – talvez por causa das
poltronas – de que este quarto foi projetado por um homem. O
cheiro de madeira escura e couro envelhecido reforça essa
impressão agora.
É um santuário tranquilo. Ela deveria ter vindo aqui antes.
Kit caminha até as prateleiras à esquerda e deixa os dedos
vagarem pelas lombadas dos livros. Muitos deles ela leu, ou leu em
voz alta para Katherine. Ela puxa cuidadosamente um livro de
poesia da prateleira, abre a capa e respira fundo.
Ela pode apenas ficar aqui por um minuto e ler. Só por um tempo.
Então, quando sua mente estiver resolvida, ela voltará para cima,
encontrará sua cadeira nas mesas do Três. Mas por enquanto, uma
pausa.
Kit fica perto das prateleiras por uns bons dez minutos antes de
sentir os cabelos da nuca se arrepiarem. Quando ela vira a cabeça,
a jovem negra que ela viu na cozinha está parada na porta. Ela tem
olhos grandes e um rosto pequeno e inteligente. Sua saia roxa é
distinta das cores vermelho-vinho e teca da sala da biblioteca. Ela
tem cabelos cacheados, controlados por um laço.
Kit pisca.
— Posso ajudar?
A garota a olha bem nos olhos.
— Eu vi você na cozinha. Disseram que você viu um assassinato.
— Uh, sim — diz Kit. — Mas não foi…
— Eles disseram que seu nome é Kit Sutherland — diz a garota.
— Katherine Sutherland.
Kit sente um estranho desconforto na barriga. Ela fecha o livro
nas mãos.
— Isso mesmo.
— Bem. — A menina cruza os braços. — Acho que nós duas
sabemos que isso não é verdade.
CAPÍTULO SETE

Muitas das cifras em que trabalhamos eram substituições,


em que algumas ou todas as letras da mensagem eram
substituídas por letras ou números diferentes. Você só
tinha que descobrir como identificá-las.
— BEVERLEY GASKIN

Kit sempre pensou que quando chegasse a hora, quando alguém


descobrisse, ela iria embora discretamente.
Em vez disso, ela se vê colocando os ombros para trás, o coração
batendo forte no peito.
— Acho que não sei o que você quer dizer.
A garota apenas olha para ela por um momento. Então ela fecha
a porta da biblioteca. Agora são só as duas. Uma tensão elétrica
sob a pele de Kit faz com que sua respiração suba em sua garganta.
— Você não é Katherine Sutherland — diz a garota. — Você se
parece um pouco com ela, mas não é ela.
Kit ouve um som apressado em sua cabeça, como as asas de
uma centena de corvos.
— Eu não acho…
— Para começar, seu cabelo está da cor errada. — A garota dá
um passo mais perto. — E depois há o fato de que Katherine
Sutherland está morta.
Kit mal consegue engolir. Seus dedos ficaram gelados.
A garota inclina a cabeça.
— Katherine tinha uma empregada, uma garotinha branca com
um avental de babados... É você, não é? Você é a empregada.
O livro de poesia escorrega das mãos de Kit e cai no tapete com
um baque surdo. Ela tem que se esforçar para tirar as palavras de
sua boca.
— Quem é você?
— Violet DuLac. — A menina avança com a mão estendida.
Quando Kit não aceita, sua expressão muda.
— Qual é o problema? Você não aperta a mão de garotas
negras?
— Isso não é... — Nunca houve muitos apertos de mão quando
Kit era empregada doméstica. Ela pisca, e a compreensão vem. —
Você trabalhou aqui antes. Aqui no Hall.
— Isso mesmo. — Violet puxa a mão para trás e a coloca no
quadril. Seus lábios se curvam em um lado da boca. — Pessoal da
cozinha. Mas o Sr. Coffee me tirou de lá assim que percebeu que eu
sabia e tinha cérebro.
— Sr. Coffee?
— William Coffee, chefe da unidade Negra. — Violet se endireita
ao falar sobre isso. Um ponto de orgulho.
— Existe uma unidade Negra? — Kit deixa escapar.
— No velho chalé da administração. — Violet parece se divertir
com a ignorância de Kit. — Fazemos códigos comerciais.
Certificamos que ninguém está passando nada pelos canais da
Mitsubishi e assim por diante. Você ficaria surpresa com o que
descobrimos. Mas estou me adiantando agora, onde você
conseguiu as roupas? E não tente me dizer que comprou um
guarda-roupa da sociedade com o salário de uma empregada.
É um pouco como pular de um penhasco, Kit percebe. Somente
esta queda a fará cair nas rochas. Tudo o que ela trabalhou tanto
para manter durante esses longos meses será perdido. Todos os
momentos diários de ansiedade, a autoavaliação constante, o tempo
que ela passou reprimindo seu sotaque, as bolhas desses malditos
sapatos...
Mas é muito tarde. Ela já caiu. Se essa garota souber, Kit não
conseguirá mais manter sua verdadeira identidade em segredo.
— Katherine. — Ela solta a respiração – uma que ela estava
segurando há muito tempo – e o nome sai com uma lufada de ar. —
Ela me deu seu baú antes de falecer.
— Você não colocou um travesseiro na cabeça dela para apressar
as coisas? — Violet sorri. Sua expressão muda rapidamente quando
ela percebe que passou dos limites. — Ah, ok. Desculpe. Ela
significava algo para você.
— Ela era minha amiga. — Kit se levanta. Esta vida, esta vida
abençoada de números, teca e couro, nunca foi dela para começar.
Ela não pode lamentar sua perda agora. E ela não pode começar a
chorar, ela não tem tempo para isso. — Bem. Obrigada por falar
comigo, senhorita DuLac. Foi bom conhecê-la.
Ela passa por Violet enquanto caminha em direção à porta. Seus
joelhos estão instáveis, seu peito apertado e oco. Ela está
alcançando a maçaneta quando a voz de Violet soa atrás dela.
— Onde você está indo?
— Eu... — Kit se vira, passando as mãos pela saia. Tentando
manter sua dignidade. Tentando não parecer suplicante. — Dê-me
uma hora. Posso deixar o baú e os papéis. Aceito dez dólares como
salário, mas você pode ficar com o resto do dinheiro. Se isso me der
uma hora...
— Com licença? — O nariz de Violet está franzido.
— Só uma hora. — O queixo de Kit balança. Ela abandona a ideia
de não implorar. — Isso vai me dar tempo suficiente. Posso estar no
ônibus e a meio caminho da Union Station até lá, juro...
— Agora, espere um minuto. — Violet ergue a palma da mão
pálida. — Apenas espere aí.
— Meia hora, até — diz Kit, desesperada.
— Não quero o seu dinheiro. — Violet revira os olhos. — Deus.
Ouça-me, ok? Não quero seu dinheiro e não tenho planos de falar
sobre isso. Não vou contar a ninguém. — Ela faz uma pequena
torção de sua boca. — Ainda não, de qualquer maneira.
— Você... — Kit sente a própria boca abrindo e fechando. O som
apressado em sua cabeça diminui. — Por que?
— Porque há algo de que preciso. — Violet agarra a beirada do
sofá chesterfield. — Aquela garota que morreu na Fazenda Arlington
ontem à noite, ela era uma garota Hall, certo? Uma garota do
governo?
— Eu não... — Kit sente uma chicotada. Ela estava se preparando
para correr; agora ela não tem ideia de onde tudo isso está indo. —
Sim. Libby Armstrong. Ela trabalhava registrando no Três.
— Foi o que eu disse, uma garota do governo. — O rosto de
Violet está muito mais sério agora. — Bem, ela não foi a única.
— O que você está falando?
— Houve outra garota morta, é disso que estou falando. Três
semanas atrás, no centro da cidade.
— O quê? — Kit faz uma dupla tomada. — A polícia não disse
nada sobre outro assassinato.
O tom de Violet é cáustico.
— Bem, eles não iriam, não é?
Isso é tudo o que leva para Kit resolver isso.
— Ela era negra.
Violet ergue o queixo.
— A polícia, eles não se importam se é só uma garota de cor. Mas
Dinah era… — Ela parece assombrada por um segundo, antes de
se deixar afundar no braço do chesterfield. — Ela era minha amiga.
Kit acha chocante ouvir suas palavras repetidas.
— Você não acha que eles vão investigar o assassinato dela.
— Eu sei que eles não vão. O que significa que algum louco
matou duas garotas de Washington em menos de um mês, mas os
casos não serão examinados adequadamente porque a polícia é
fanática demais para ver o padrão… — Violet se joga no braço do
sofá, o olhar desviado. — Quero dizer, acho que há um padrão. Não
saberei até obter os detalhes de você.
— Com licença?
— Olhe, estou lhe oferecendo um bom negócio. — Violet
semicerra os olhos para ela. — Uma troca. Você me conta o que
sabe e eu fico de boca fechada sobre como você é uma impostora.
A mente de Kit faz uma revolução grande e sem pressa,
desorientada o suficiente para que ela queira se sentar. Se ela for
revelada como uma impostora, não haverá como evitar uma corte
marcial e um retorno a Scott’s Run.
Mas Violet está oferecendo uma tábua de salvação.
Kit cerra os dedos, hesitante.
— Posso contar o que vi. Não sei se será muito reconfortante.
Mas posso contar o que a polícia nos contou.
Violet considera.
— Quem somos nós?
— Eu. Dottie Crockford, do Três. Moya Kershaw, do Quatro.
— Moya Kershaw… — Violet inclina a cabeça. — Garota alta e
branca, usa calça?
Kit assente.
— Ela também viu tudo. E há relatórios. Talvez eu possa
conseguir cópias para você.
— Isso seria útil. — Violet está sentada mais reta agora. —
Ajudaria a juntar as peças.
De repente, Kit entende o que está acontecendo.
— Você está planejando investigar isso sozinha, não está?
— Isso mesmo. — A expressão de Violet é firme e teimosa.
— Isso é loucura — Kit deixa escapar.
— Você vê mais alguém disposto a fazer isso? — As mãos de
Violet se estendem enquanto ela gesticula ao redor da sala. — Sou
eu ou ninguém. Então, você vai ajudar ou não?
— Eu não... — Kit vacila. Violet está com a mesma expressão que
Moya esta manhã, quando foi falar com a polícia em Fazenda
Arlington: como se estivesse em uma missão. Uma missão pela
justiça.
E Kit não deveria se envolver. A justiça é um luxo que ela não
pode pagar com sua identidade em Arlington Hall em risco.
Então você vai ficar calada, sem fazer nada? Ela ouve as palavras
na voz de Libby.
Kit engole em seco. Ela é uma impostora, uma farsa. Tantas
vezes foram feitas perguntas a ela, e ela disse e não fez nada, foi
cúmplice de seu silêncio. Pior do que isso, ela mentiu. De novo e de
novo. Ela teceu uma máscara de falsidades para cobrir seu
verdadeiro rosto, e agora mal consegue distinguir a máscara da
realidade.
Ela trabalha com Opal, Brigid, Moya e Dottie todos os dias, e elas
não sabem nada sobre ela que não seja mentira. Ela deveria ser
uma colega de confiança. Mas ela não vai nem defender uma garota
morta, deitada no chão frio de um banheiro de lavanderia com sua
saia rosa e seus sapatos marrons com lacinhos...
Droga. Droga.
— Tudo bem — diz ela. As palavras parecem grossas em sua
boca. — Ok, eu ajudo. Posso falar com Dottie e Moya e conseguir
as informações de que você precisa.
Violet se levanta lentamente.
— Eu aceito essa ajuda. E você pode continuar sendo Kit
Sutherland, eu acho.
— Você acha?
— Você é mais útil se não for empregada. — Violet sorri e
estende a mão novamente. Ela tem lábios elegantemente cheios e
covinhas fora de moda. — Prazer em fazer negócios com você.
Kit aperta a mão de Violet. Enjoada com a chance que ela está
tendo. Ela já se arriscou antes e valeu a pena: ela espera em Deus
que isso seja o mesmo.
Quando Violet passa por ela em direção à porta, algo – uma
imagem – cai no cérebro de Kit. Ela se vira e fala por instinto.
— Violet, isso vai soar estranho, mas... Dinah usava óculos?
Violet para. Ela olha por cima do ombro, um sorriso enrugado
morrendo em seu rosto.
— Tudo bem — diz ela. — Sem brincadeiras agora. Diga-me
como você sabia disso.
CAPÍTULO OITO

Puxa, as transcrições. Você voltaria para sua mesa e


haveria uma pilha até o teto. Sempre havia mais do que
você conseguia acompanhar.
— BETTY JOHNSON

Moya sente aquele zumbido vago que ela associa a ficar acordada a
noite toda e fumar muitos cigarros.
Ela passou muito tempo no Quatro, interrogando-se com o
Coronel Corderman e Sheila Kelly, do Recursos Humanos. Eles
estão coletando depoimentos de todos os envolvidos. O relatório
final irá para o Sr. Kullback, e haverá ondulações; além da terrível
tragédia da morte de Libby, que afeta todas as garotas do Hall, há
questões do Departamento de Guerra a serem consideradas.
Perguntas sobre se Libby pode ter sido alvo porque ela era uma
guardiã de segredos do governo. O Coronel Corderman informou a
polícia, usando vagas referências a “assuntos de segurança
nacional”.
Moya imagina que há uma maneira de garantir que os detalhes do
trabalho de Libby permaneçam confidenciais, mas as circunstâncias
de seu assassinato já virou notícia. As garotas de toda a DC estarão
trancando as portas à noite, e comentaristas estridentes usarão isso
como outra desculpa para argumentar que as mulheres não devem
ser empregadas em papéis de guerra.
Como complicação adicional, as autoridades do Hall agora
precisam recrutar outra decifradora. Mas ela não pode nem pensar
nisso agora. Ela só dormiu uma hora nas últimas vinte e nove, e seu
cansaço está deixando-a tonta. Ela desceu para comer, cutucou sua
porção de salada de batata e cachorro-quente até que notou a
manchete nas folhas de jornais empilhadas perto da porta: “Horror
na Fazenda Arlington”. Perto dessa manchete havia um artigo
chamado “Como se defender contra um estuprador”. Combinado
com suas memórias da noite passada, isso a fez empurrar o prato
para o lado. Ela pegou uma caneca de café preto forte e subiu as
escadas para o Quatro.
Agora são 15h e ela sente que está flutuando. Ela olha para uma
das salas de trabalho na Três enquanto passa e vê...
— Kit?
Kit está sentada em uma das cadeiras perto da porta, com o
cabelo preso para trás com um lenço verde-menta que contrasta
com o suéter laranja-escuro. Uma franja ruiva escapa do lenço e cai
sobre seus olhos, grandes de exaustão. Suas bochechas estão
pálidas e o colarinho de sua camisa está ligeiramente torto, mas ela
está trabalhando.
Ela parece vulnerável, mas é forte. E todo mundo sabe que ela é
forte. Como ela faz isso?
— Achei que você estava descansando. — Moya dá uma longa
tragada no cigarro, ouve o papel queimar. — Sua dedicação é
admirável, mas volte para a cama. Parece que você está dormindo
na mesa.
Kit fica.
— Posso falar com você um minuto?
Moya pensa em como ela e Kit se deram as mãos na lavanderia.
Ela aperta os lábios e examina a sala, verificando se todos estão na
tarefa. Verificando se alguém percebe ela e Kit conversando. Não,
tudo bem se as pessoas as virem conversando. Eles vão presumir
que ela e Kit estão conversando sobre o que aconteceu na
Fazenda. Ninguém está olhando, de qualquer maneira.
Deus, ela está analisando demais. Ela realmente precisa dormir
um pouco.
— Claro. — Ela sai da porta para o corredor, tentando parecer
indiferente, e Kit a segue.
Não há quartos vazios neste andar do Hall – elas vão até o final
do corredor para conversar. Seus passos são amortecidos pelo
corredor do tapete vermelho escuro. Quando chegam a um canto
privado, a voz de Kit surge, quente e baixa. — Os óculos na
lavanderia. Eram óculos de menina.
Moya ouve a certeza absoluta no tom de Kit. Ela olha para o
corredor, mantendo sua expressão neutra, antes de fixar os olhos no
rosto de Kit.
— Sim. A polícia me disse. Como você sabia disso?
— Porque acabei de conhecer uma garota que era amiga da dona
dele. — As palavras de Kit são niveladas. Seus olhos são urgentes.
— Esses óculos vieram de outra vítima de assassinato. Uma garota
que foi morta há apenas três semanas. O nome dela era Dinah
Shaw. Dinah foi morta a facadas no Centro. Ela era uma escrivã
negra do Conselho de Munições, outra moça do governo.
Moya tem se mantido ocupada desde que chegaram ao Salão, e o
peso de seu cansaço é opressivo. Mas agora ela se lembra do que
estava sentindo esta manhã, o que a tem desgastado o dia todo: ela
está com raiva. Furiosa com a forma como Libby morreu – uma de
suas filhas, violentada em um banheiro, massacrada como um
animal.
Agora Kit está dizendo que já aconteceu antes.
— Eu não posso acreditar nisso. — Moya solta um suspiro, inala o
seguinte através do cigarro. — Então, outra garota foi morta dessa
maneira, e a polícia não disse uma palavra sobre isso.
— Isso mesmo.
— Malditos sejam os policiais. Malditos sejam. — Moya coloca a
mão sob o cotovelo e desvia o olhar. — Não consigo parar de
pensar nisso. Sobre o que vimos.
— Eu... eu sonhei com isso — Kit confessa.
O choque de raiva e exaustão interior faz Moya se sentir frágil.
Quando ela registra um leve toque em seu ombro, ela estremece.
Kit puxa os dedos para trás. Ela parece assustada, apologética.
— Seu... seu cabelo está se soltando do coque.
Moya balança um pouco nos pés. Com um gesto gentil, Kit quase
a desfez. As últimas quinze horas foram uma espécie de pesadelo,
mas Kit está próxima, calorosa e real, o rosto virado para cima, a
expressão aberta.
Moya passa a mão na frente de sua blusa azul-safira e tenta
encontrar algum equilíbrio. Algum profissionalismo.
— Você... você disse que conheceu alguém... a amiga de Dinah.
Eu gostaria de falar com ela.
— Agora? — Kit puxa a bainha de seu suéter, os olhos
repentinamente arregalados.
— Agora não. — Moya bufa, apaga o cigarro em um cinzeiro
próximo. — Acho que devo dormir pelo menos dez horas antes de
nossa próxima conversa complicada. Amanhã.
— Violet disse que trabalha na casa de campo. — Kit morde o
lábio, pensando. — Mas ela pega café na cozinha por volta das
nove e meia.
— Vou deixar um recado para ela — diz Moya. — Nos
encontraremos às onze, em algum lugar lá embaixo.
— Eu conheço um lugar — diz Kit. — A velha biblioteca no Um.
— Ok — Movimento pelo corredor, a atenção de Moya se divide.
É Edith, soluçando baixinho, sendo levada para fora da sala de
trabalho por Brigid. Essa bagunça está machucando a todas, e
Moya quer acabar com isso. — Ok, isso é um plano. Agora, pelo
amor de Deus, Kit, volte para a cama.
— Tudo bem. — Kit assente. — É falta de educação se eu disser
à chefe para seguir seu próprio conselho? Você parece tão cansada
quanto eu.
— Sou a supervisora, não a chefe. — Moya sente algo se soltar
dentro dela, no entanto.
— Uh-huh. — Kit sorri gentilmente. — Descanse um pouco,
senhorita supervisora. Você vai precisar de um pouco de gasolina
no tanque para amanhã.
Moya controla um arrepio. Esta manhã houve um assassinato, e
agora há dois.
Amanhã, tudo pode acontecer.
CAPÍTULO NOVE

Contanto que você tivesse um bom volume de tráfego,


você teria uma folga. Quanto mais profundidade você tinha,
mais fácil era quebrar um código.
— BRIGID GLADWELL

Kit passa o lápis pelas fileiras de dígitos de seu cartão, tentando


manter os nervos sob controle. Tenta parecer ocupada enquanto
checa o relógio discretamente.
Seu dia de folga oficial não é até quarta-feira. Hoje é domingo,
que é apenas um dia de descanso fora do tempo de guerra. Todas
as meninas estão de volta ao trabalho. Kit está sentada perto de
Opal e Brigid nas mesas. Uma noite de sono decente fez uma
enorme diferença em seu estado de espírito, e ela atacou grupos de
códigos digitados em cartões verdes com um vigor renovado. Mas
nenhuma quantidade de vigor fornecerá garantia de que este
próximo encontro com Violet e as outras garotas não irá expor sua
verdadeira identidade.
Ela bate a ponta do lápis no lábio inferior, ignorando a vontade de
mastigar. Ela trabalhou duas vezes mais, esmagou todas as
memórias de seu passado, fez tudo o que pôde para lutar por sua
própria sobrevivência – ainda pode não ser o suficiente. E a ideia do
que Dottie e Moya vão dizer, a cara delas se descobrirem a
verdade... Kit pressiona a mão no estômago, lutando contra o enjôo.
Às dez para as onze, Dottie aparece na porta e acena.
— Kitty-Kat? Eles precisam de você por um minuto.
Kit sente os olhos nela enquanto ela se levanta e arruma sua
estação de trabalho.
Opal ergue os olhos de suas cartas.
— Você não está com problemas, está?
— Não, não. Provavelmente tem algo a ver com ontem.
— Deus... Libby. — Opal estremece. — É horrível. Horrível. Ainda
não consigo entender isso.
— Eu também. — Kit tenta manter as mãos firmes. — Ok, eu
estarei de volta em breve.
Dottie a conduz para fora da porta e pelo corredor em direção às
escadas.
— Este é um momento complicado para uma reunião.
— Violet mora fora do local — ressalta Kit — e não sabemos se
ela pode ficar depois das quatro, por isso é na hora do trabalho ou
nada.
— Bem, dedos cruzados, podemos fazer isso rápido.
— Você está com o rosto corado esta manhã — diz Kit com
aprovação.
— O sono fez bem para mim. — Dottie ainda parece um pouco
desbotada e preocupada, mas seus cachos loiros recuperaram a
elasticidade. — Só estou nervosa com Moya. Ela não ficou feliz
quando soube que eu estava indo.
— O quê? Por que? — Kit agarra o corrimão.
— Não sei. — Dottie dá de ombros. — É Moya, nem sempre dá
para saber.
— Você faz parte disso tanto quanto qualquer outra pessoa — diz
Kit. Ela verifica o rosto de Dottie. — Quero dizer, se você quiser.
Você pode não querer se envolver com...
— Eu estava lá. — Dottie para na escada. Sua expressão é
estranhamente séria. — Eu estava lá, Kit. Poderia ter sido eu em
vez de Libby naquela lavanderia.
— Dottie, não pense assim...
— Libby era minha amiga, e é como você disse. — Os ombros de
Dottie se endireitam. — Faço parte disso tanto quanto qualquer
outra pessoa.
Kit dá um aperto nela, até que Dottie empurra as duas escada
abaixo até o Um.
Dottie nunca esteve na biblioteca do Hall. Quando Kit abre a
porta, Dottie diz:
— Huh. Livros — e dá uma olhada superficial no espaço.
— Você não gosta de livros? — Kit acha a ideia difícil de
compreender. O simples fato de entrar na biblioteca já lhe deu uma
medida de paz.
— Claro. Livros são bons — diz Dottie, entrando na sala. — Você
gosta deles, no entanto. Todas as noites antes de as luzes se
apagarem, você fica com o nariz enfiado em um.
— Na verdade, eu poderia sentar aqui e ler o dia todo — admite
Kit.
— Uh, eu não sou uma grande leitora — Dottie acena com a mão.
— Mas talvez você pudesse fazer isso depois da guerra.
— Fazer o que? Ler o dia todo?
— Tornar-se uma bibliotecária, boba — Dottie sorri. — Posso ver
você atrás do balcão, parecendo muito bem com suas roupinhas
bem arrumadas. Dizendo a todos para ficarem quietos.
— Ok, sim, eu meio que gostaria disso. — Kit olha para os livros,
seu sorriso se esgueirando. A ideia tem muito apelo. — E o que
você quer fazer depois da guerra?
— Ah, não sei. — Dottie passa um dedo pelas lombadas das
prateleiras. — Voltar para Baltimore, finalmente me tornar uma
professora, eu acho. Ou talvez ajudar em casa com a mercearia até
eu me casar. Sei que não é muito ambicioso, mas nunca pensei
muito além disso.
— Dê a si mesma alguns anos e você estará administrando sua
própria loja — sugere Kit.
— Talvez eu construa um império de mercearias. — Dottie ri, olha
de relance. — Ei, Moya, o que você vai fazer quando a guerra
acabar?
Kit olha para trás para ver Moya entrando pela porta.
— A guerra vai acabar? — Moya se acomoda em uma poltrona e
pega um pequeno volume encadernado em couro que encontra em
uma mesa próxima. — Agora essa é uma ideia.
Ela combina confortavelmente com a formação acadêmica em
suas calças marrons e uma blusa creme sob um colete de tweed.
Seu senso de contenção e autocontrole parece recuperado hoje, e
seu cabelo é uma coroa de cachos pretos bem cuidados. Há um
brilho rosa pálido em suas bochechas. Seus olhos também parecem
mais brilhantes – menos turvos.
— Você parece melhor — Kit deixa escapar. Ela sente-se corar. —
Quer dizer, parece que você dormiu um pouco.
— Eu me sinto melhor. — Moya estica os ombros para trás e
devolve o livro à mesa. — Estou sem cigarros, mas descansei um
pouco, então são balanços e desvios, eu acho.
— Você não respondeu à pergunta — Dottie a repreende. — O
que você vai fazer depois que a guerra acabar?
Antes que Moya possa responder, uma voz se eleva.
— Ela abrirá um negócio por conta própria. — Violet está sorrindo
na porta. — Ela será contratada por empresas que precisam de
alguém para comandar o CEO — sugere Violet. — Estou certa?
Violet está usando o laço novamente, mas desta vez seu suéter
de botão é azul e sua saia é marrom. Ela parece radiante, suas
bochechas suaves e seus grandes olhos brilhando. Ela é mais
jovem do que Kit percebeu, talvez dezessete no máximo. Para uma
garota de dezessete anos, Violet com certeza tem muita coragem.
— Oi. Feche a porta. — Se Moya fica surpresa, ela não revela.
Ela se levanta e caminha para a frente, com a mão estendida. —
Moya Kershaw.
— Violet DuLac. — Violet aperta com a mão não empurrando a
porta fechada. — Obrigada pela mensagem.
— Obrigada por se encontrar conosco.
Dottie se aproxima rapidamente e segura a mão de Violet.
— Olá, sou Dottie Crockford.
— Prazer em conhecê-la — Violet levanta o queixo enquanto elas
abaixam as mãos. — Isso é sotaque de Baltimore?
— Você me pegou. — Dottie sorri. — Você já conhece Kit.
Kit faz uma onda apertada.
— Sim, realmente — diz Violet. Seus olhos dizem algumas coisas
que somente Kit pode decifrar. — Então. Aqui estamos.
— Aqui estamos... e imagino que nenhuma de nós tenha muito
tempo, então provavelmente é melhor irmos direto ao ponto. —
Moya volta para ela cadeira do clube. — Kit nos contou sobre sua
amiga Dinah. Sinto muito pela sua perda.
— Obrigada — Violet encontra um lugar no assento do
chesterfield. — Kit provavelmente também disse que eu quero
investigar um pouco mais.
— Ela disse — Os olhos de Moya se voltam para Kit. — E
chegaremos a isso em um minuto. Primeiro, você quer nos contar
sobre o que aconteceu com Dinah?
Kit percebe que não pode continuar rondando as estantes. Violet
não é venenosa, e se ela não mantiver sua palavra – mantiver o
segredo de Kit – não importará onde Kit está. Ela chega mais perto,
todo o caminho, para se empoleirar em um braço do chesterfield.
— Dinah mora… — Os dedos de Violet se entrelaçam enquanto
ela olha para baixo. — Morava. Dinah morava na Lowell Street com
sua família, assim como eu. Costumávamos pegar o ônibus juntas.
Quero dizer, nós nos conhecíamos antes disso, quando morávamos
em Queen City.
— Queen City — Os olhos de Moya se estreitam. — Toda aquela
área foi limpa quando eles construíram o Pentágono, certo?
— Isso mesmo. — O olhar de Violet fica um pouco duro. — Era a
única cidade do estado com história que remontava aos negros
livres na época da escravidão. Engraçado como eles escolheram
exatamente aquele local para limpar para o novo prédio. Eles
despejaram todas as famílias negras no espaço de um mês. A
família de Dinah e a minha se mudaram para Green Valley. Ela
conseguiu um emprego na Munições na mesma semana em que fui
transferida da cozinha para cá.
— Kit disse que você trabalha com a unidade segregada agora. —
Moya entrelaça os dedos frouxamente no colo. — Ouvi falar da
unidade... ouvi dizer que você faz um bom trabalho. Mas nunca vi.
— Eu nem sabia que havia uma unidade segregada. — Dottie
reivindica a outra cadeira do clube.
O olhar que Violet dá a ela é suave.
— Você assumiu o compromisso, certo? A Inteligência de Sinal
deve ser secreta. Parece que somos melhores em guardar segredos
do que alguns outros.
Kit se consola um pouco com isso e com o olhar sub-reptício de
Violet em sua direção.
Moya redireciona a conversa.
— Quando você soube do assassinato de Dinah?
— No mesmo dia em que aconteceu, três semanas atrás. —
Violet passa as palmas das mãos pelo tecido marrom da saia, até os
joelhos. Sua voz fica sombria. — Dinah foi trabalhar de manhã e não
voltou para casa. Ela costumava trabalhar muito até tarde, então
seus pais não pensaram nada até quase meia-noite. Cerca de meia
hora depois, a polícia bateu na porta, foi quando todos nós ouvimos.
— E como ela morreu? — Kit pergunta baixinho. É a primeira vez
que ela se permite falar.
— Dinah foi… — Violet chupa os dentes de trás e olha para baixo.
— Ela estava em um beco. Ela foi esfaqueada, brutalizada. Nós
pensamos que era algum ato aleatório, sabe? Ou talvez o KKK.
Dottie franze a testa.
— Eles estão ativos em Washington?
Agora o olhar de Violet é menos suave.
— Garota, eles estão ativos em todos os lugares, em todos os
lugares em que negros estão tentando existir. — Ela solta um
suspiro. — De qualquer forma, eu sabia que a polícia não iria
persegui-lo com muita força. Se fosse o Klan, eles descartariam. Se
não fosse, diriam que era um louco que nunca pegariam. Então eu
ouvi sobre o que aconteceu na Fazenda.
Kit levanta a cabeça.
— É por isso que você fez contato comigo.
— Você entendeu.
Dottie ainda está tentando recuperar o atraso.
— Então... como você sabe que os assassinatos estão
conectados?
— Porque duas garotas do governo assassinadas em menos de
um mês é significativo. E por causa do que Kit e eu vimos na
lavanderia na sexta à noite. — Moya é como um gato, afundado na
cadeira do clube em um estado de imobilidade equilibrada até que
ela fala. — Libby estava no banheiro da lavanderia. Um par de
óculos foi colocado na pia. A polícia disse que eram óculos de
menina, algo que sobrara do baile. Mas a aparência deles, como
foram colocados... Algo parecia errado.
— Moya está certa — Kit tem que limpar a garganta. — Eles meio
que... se destacaram. Todo o resto estava uma bagunça, e os
óculos estavam afastados. Como se não pertencessem.
— Dinah usava armações de aro de chifre. — As mãos de Violet
esboçam no ar diante de seu rosto. — Redondo, com lentes
grossas. Ela não conseguia ver um metro à sua frente sem os
óculos.
— Foi o que eu vi — diz Moya, concordando. — Kit, você se
lembra?
— Sim. — A resposta de Kit é lenta e triste. — Lembro que as
molduras eram escuras e redondas.
— Mas o que isso significa, então? — Dottie se inclina para a
frente na cadeira, os cotovelos apoiados nos braços de couro
acolchoado. — Que o assassino da Fazenda Arlington deixou uma...
Deus, mal posso dizer... uma lembrança da última garota que matou
no local do assassinato de Libby? Por que ele faria uma coisa
dessas?
— Por que matar uma garota em primeiro lugar? — Violet
responde — Louco é louco. Como você se envolveu nisso?
— Eu estava lá. — Dottie empalidece sob o olhar de Violet, mas
continua. — Fui ao baile com Libby e algumas outras garotas. Mas
alguém colocou algo na minha bebida... Desmaiei na varanda do
Ohio Hall, a seis metros da lavanderia onde Libby foi morta. E eu
estava usando um vestido da mesma cor.
O lembrete atinge Kit com um soco. Se fosse Dottie naquela
lavanderia, Kit iria querer justiça tanto quanto Violet. Ela se sentiria
menos constrangida pelo peso acumulado de suas próprias
mentiras. Ela gostaria de encontrar esse assassino, seja ele quem
for, e...
Espere.
Kit junta os pontos em sua própria mente, e a percepção vem,
rápida e clara. Eu conheço este homem. Ele também é um impostor,
fingindo ser normal. Ele está disfarçado, iludindo as autoridades, e
eu entendo exatamente como é...
Talvez ela possa fazer bom uso desse entendimento.
— Ainda não sabemos muito — diz Kit, sem ser solicitada. — Não
temos certeza se os óculos no banheiro eram de Dinah. Portanto,
esse é o nosso primeiro passo: obter mais informações.
— Existem passos? — Dottie pergunta.
— Sim — Moya olha para Kit, seu olhar curioso. — Se decidirmos
nós mesmas investigar os assassinatos.
— Isso é algo que queremos fazer? — Dottie parece preocupada,
mas nervosa.
— É algo que eu quero fazer. — Violet se levanta, com o queixo
firme. — Quer vocês decidam participar ou não...
— Nós vamos — diz Moya, apaziguando. — Nos juntar, quero
dizer. Mas Violet, você está queimando essa tocha há semanas, eu,
Kit e Dottie estamos apenas nos atualizando. Dê-nos um minuto
para esclarecer as coisas em nossas mentes, ok?
A franqueza calma de Moya parece impressionar. Violet se senta
novamente.
— Ok. Mas eu preciso saber agora. Hoje. Já perdi muito tempo.
— Isso é justo. Mas vamos descobrir o que podemos fazer. E o
que vai fazer a diferença.
— Acho... — Kit se apoia no braço do sofá. — Acho que há
informações por aí que podemos usar para resolver isso. Ou pelo
menos fazer algumas sugestões para a polícia investigar.
— Seja o que for que encontrarmos, teremos que ser minuciosas.
Não confio na polícia para investigar isso direito. — Os olhos de
Moya são duros e escuros. — Nós podemos resolver isso. Mas
todas nós teríamos que nos comprometer com isso. Isso não é um
jogo.
— Não é um jogo para mim — diz Violet categoricamente. —
Dinah merece mais do que isso.
Dottie morde o lábio inferior.
— Por onde começaríamos?
— Com a obtenção de mais dados. — Kit tem pensado nisso. —
Os homens na dança. O que foi deixado para trás no banheiro. Os
detalhes de ambos os assassinatos. — Ela sente os olhos das
outras meninas sobre ela, abre as mãos. — Não sei de onde
tiraríamos tudo isso.
— Eu poderia voltar e falar com a polícia de novo — sugere Moya.
Dottie assente.
— E posso voltar para as Fazendas e encontrar a garota que me
levou para fora. Talvez conversar com outras garotas também.
— Tenho um amigo que trabalha no DC General. — Violet enfia
um cacho solto de seu cabelo atrás da orelha. — É para onde eles
levaram o corpo de Dinah, eles podem ter levado Libby Armstrong
para lá.
— Você acha... — Dottie engole, olhos arregalados. — Você acha
que pode haver mais meninas? Mais do que apenas Dinah e Libby?
Todas absorvem a ideia por um momento, horrorizadas.
— Teríamos de lidar com isso como lidaríamos com um código. —
Kit se sente compelida a falar. — A maneira mais fácil de quebrar
um código é encontrar mais profundidade. Quanto mais mensagens
você tiver nesse código, melhor. — Ela olha para Violet, para Dottie
e Moya. — Quanto mais informações pudermos descobrir sobre
isso, mais entenderemos. Seremos capazes de criar links.
Desenvolver uma cadeia plausível de ideias.
Moya está balançando a cabeça lentamente.
— E investigar dois assassinatos nos dará muita profundidade.
Dottie parece intrigada agora.
— Poderemos ver se esse assassino está fazendo as mesmas
coisas todas as vezes.
— Repetindo um padrão — concorda Violet.
— E... o que acontece se encontrarmos um padrão?
— Nós o paramos. — Kit endireita os ombros, sente sua
expressão endurecer. — Nós o impedimos de matar mais garotas.
CAPÍTULO DEZ

Pode-se afirmar redondamente que a engenhosidade


humana não pode inventar uma cifra que a engenhosidade
humana não possa resolver.
— EDGAR ALLAN POE

— Olá, com licença, pessoal. — O capitão John Cathcart está


parado na porta da sala de trabalho. — Posso ter a atenção de
todas, por favor? Obrigado.
É segunda-feira e o dia de folga de Moya. Nesses dias, o capitão
Cathcart assume seu papel. Ele é um magricela em uniforme cáqui,
sério e de fala mansa. Kit sabe que Cathcart tem vinte e quatro
anos, o que não é tão velho, mas ele sobreviveu à batalha e isso o
envelheceu. Uma linha irregular e feia corre de sua têmpora até o
topo de seu lábio esquerdo, e ele manca.
Dottie disse que Cathcart é solteiro – e como é uma pena que ele
tenha dificuldade em se casar, com suas cicatrizes. As garotas na
sala de trabalho estão sempre provocando-o, porém, fazendo o
possível para atraí-lo.
— Olá, capitão Cathcart! — Carol de Nova Jersey grita
sedutoramente.
Cathcart joga para trás o cabelo louro-escuro com os dedos e
pigarreia.
— Sim, olá. Desculpe interromper, mas tenho um anúncio.
Anúncios de serviço público acontecem periodicamente. Kit já
ouviu dezenas de anúncios sobre o horário das férias das meninas,
quando os suprimentos de material de escritório devem chegar,
como relatar “atenções indesejadas” no transporte público e o que
fazer se houver uma sirene de ataque aéreo. Mas isso é sobre outra
coisa.
— Os crachás de segurança estão sendo revisados e renovados
nas próximas semanas — diz Cathcart. — Você será chamada em
ordem alfabética e terá de ir ao antigo ginásio para verificar sua
autorização ou reemiti-la, se necessário.
Uma pequena onda de murmúrios.
— Por que eles estão fazendo isso agora? — Brigid pergunta. —
Disseram-nos que os crachás seriam válidos por um ano.
Cathcart assente.
— Sim, eles originalmente deveriam ser renovados em três
meses, mas as circunstâncias mudaram.
Rose fala.
— Que circunstâncias?
— Uh, isso não é um... eu não tenho a informação sobre isso.
Desculpe. Acabei de receber instruções para passar adiante o
anúncio.
Kit ouve a voz de Dottie em sua cabeça. Tem caras ingleses vindo
nos visitar.
Opal se inclina para Kit, suas palavras são silenciosas.
— Eles também cancelaram a licença estendida. Eu pensei que
era um boato, mas a minha foi cancelada ontem. Quero dizer, não
quero ver minha irmãzinha se casar com um cara pateta de Omaha,
mas me sinto mal por não poder estar lá.
Há um burburinho de conversa na sala de trabalho. Cathcart está
tentando corajosamente responder a perguntas de todos os cantos.
— …uh, não, desculpe, eu não posso te dizer quando. Mas a
liberação será reemitida no local assim que sua revisão for
verificada.
Kit espera que alguém faça sua pergunta. Há uma pergunta de
Edith sobre se elas precisam levar a papelada para o ginásio.
— Uh, sim — diz Cathcart. — Apenas seu crachá atual e sua
documentação de identidade, sua certidão de nascimento, se tiver.
Ninguém está fazendo a pergunta.
Kit força a mão no ar.
— Desculpe-me, capitão, mas o que envolve o processo de
revisão?
— Oh, hum, não é complicado. — Cathcart consulta um papel que
está segurando. — Para aquelas de vocês que já foram
entrevistadas e passaram por verificações de antecedentes, que
devem ser quase todas aqui, é apenas um carimbo.
— Oh — Kit diz, alívio inundando suas veias. — Ok.
— Para aquelas de vocês que não passaram por uma extensa
verificação de antecedentes — Cathcart continua — a administração
fará perguntas durante a entrevista. São apenas telefonemas,
principalmente — explica. — Estaremos ligando para famílias ou,
em alguns casos, instituições, para garantir que tudo em sua
documentação esteja em ordem.
Todo o corpo de Kit fica gelado.
Ela olha pela janela para se concentrar. A cena lá fora é idílica. A
grama abaixo do Arlington Hall ainda brilha com o orvalho no início
da manhã.
Pense, Kit.
Mas não há o que pensar. Esta revisão significará o fim de sua
identidade falsa. Os papéis dela não resistirão ao escrutínio direto.
Se os entrevistadores chamarem suas referências, toda a história
será revelada.
Ela engole uma gargalhada. Ela evitou uma crise com Violet,
apenas para cair em outra.
Respire agora. Você está na sala de trabalho. Aja normalmente.
Com um esforço enorme, Kit recompõe os fios de sua
consciência. Estorninhos cantam nas árvores lá fora, competindo
com sons mais próximos: o zumbido do radiador, o murmúrio de
uma conversa em voz baixa, um telefone tocando em algum lugar
no corredor.
— Tudo bem — diz Cathcart finalmente. — Se você tiver mais
perguntas, haverá um aviso na sala de descanso com mais
informações. Obrigado. É isso.
Kit olha para cima quando Cathcart sai e outra figura toma seu
lugar. É Dottie, usando um lindo vestido vermelho de bolinhas que
provavelmente é muito fresco para o clima atual.
— Todo mundo bem? — Ela esfrega os braços contra o frio da
sala. — Temos estoque de lápis?
— Estamos cheios de lápis — responde Brigid. — Mas
precisamos de mais papel quadriculado.
Dottie faz uma careta.
— Desculpe, mas estamos esperando uma nova remessa. Pelo
menos você não está esperando a fita da máquina de escrever,
como as garotas do Dois. Kit, quer pegar a bandeja lá de baixo? A
cozinha diz que está pronta. — Dottie olha significativamente entre
Kit e o relógio de parede, que marca 9h20.
Kit está esperando por essa convocação – ela tem que entregar
uma mensagem – mas agora sua cabeça está uma bagunça. Ela se
atrapalha para se levantar e empurrar a cadeira para dentro.
— Você quer que eu leve aquela pilha para o sobreposto? — Opal
pergunta.
— Hum... claro. Obrigada.
Dottie toca seu braço ao passar.
— Ei. Você está bem? Parece que você viu um fantasma.
— Ah, estou bem — responde Kit. — Apenas um pouco cansada
— Ela precisa sair daqui, longe de outras pessoas. Ela precisa de
tempo para processar, mas o único tempo que ela tem é durante
esta caminhada até a cozinha. Seu cérebro se agita com o problema
enquanto ela desce as escadas.
Seremos chamadas em ordem alfabética, o que significa que
pode levar dias. Talvez até uma semana. Eu poderia dizer que irei
sair à tarde. Ir às compras. Ou... visitar minha irmã. Dessa forma, eu
poderia fazer uma mala e levá-la comigo e ninguém saberia…
Ela faz uma pausa no patamar. Ela não pode espiralar agora. Ela
tem uma semana de graça. Tudo ficará bem. Ela vai dar um jeito.
Kit chega à cozinha exatamente às nove e meia, e há duas
bandejas esperando, uma para o terceiro andar e outra para o
chalé. A bandeja de Violet, com uma pilha de canecas e um bule de
café recém feito, parece melhor. A bandeja para o Três contém
apenas salgadinhos e o prato padrão de biscoitos.
Violet fica ao lado da bandeja, esfregando as palmas das mãos.
Ela está usando luvas de tricô sem dedos e está esperando que a
garçonete da cozinha encha uma panela de água quente. Kit tem
que esperar por mais salgadinhos.
Kit se inclina para cima para que fiquem lado a lado.
— Frio onde você está localizada?
— Pode apostar. — Violet sopra nos dedos e mantém os olhos
desviados, assim como Kit. Ela acena para a bandeja de Kit. — Isso
é para o andar de cima?
— Sim. — Kit reorganiza as placas para melhor equilíbrio. —
Vamos nos encontrar no quarto de Moya às seis amanhã à noite.
Segundo andar, quarto sete.
Violet dá um pequeno aceno de reconhecimento.
— Liguei para o hospital. Minha amiga Ruth terá os arquivos
prontos para mim às quatro de amanhã.
— Vai ser apertado. Você está pegando o ônibus?
— Sim. Eu vou fazer isso. Você ouviu sobre a entrevista?
— Ouvi.
Violet recebe sua panela de água quente, levanta sua carga e
lança um olhar irônico para Kit.
— Não derrame sua bandeja.
Kit bufa.
— Já pratiquei bastante com bandejas.
— E não deixe que a entrevista a abale. — O olhar de Violet está
preocupado. — Quero dizer. Nós daremos um jeito... vai ficar tudo
bem.
— Obrigada — gagueja Kit.
É gentil de Violet a tranquilizar. Nós daremos um jeito. Kit espera
de todo o coração que essas palavras se tornem realidade.
CAPÍTULO ONZE

O primeiro trabalho era sempre registrar e, depois que uma


mensagem era registrada e digitada, você tinha que retirar
o código de transferência local antes de passá-lo adiante.
— CAROL ANN WHITE

— São quase seis — diz Dottie. — Kitty, pare de mexer no cabelo.


— Esses pentes vivem caindo. — Kit levanta as mãos. Ela está de
pé no meio da sala, de frente para o espelho no guarda-roupa de
Dottie, apenas de sutiã, calcinha e saia marrom. Ela sobreviveu à
bomba de ontem sobre a revisão, mas esses pentes serão a morte
dela.
— Mostre-me. — Dot, que hoje teve folga e parece ter se
beneficiado com isso, afasta os dedos de Kit. Em cerca de dez
segundos, ela descobriu o problema e arrumou os pentes no lugar.
— Pronto. Não é como se você tivesse que se preocupar, querida,
somos apenas nós, garotas.
Kit se abstém de comentar. Elas vão se encontrar no quarto de
Moya, e por motivos que ela não quer examinar muito de perto, ela
quer parecer bem. Ela veste uma camisa branca, fechada e enfiada
para dentro, e coloca um cardigã verde-sálvia por cima. Desde que
Dottie apontou, parece impossível para Kit não perceber que ela se
parece com uma bibliotecária. Bem, tudo bem. As bibliotecárias são
competentes e conhecedoras.
Exceto que Kit não acha que ela é tão competente e experiente
quanto a imagem sugere – mais uma vez, ela está fingindo. Ela
deveria se trocar? Não há tempo para isso, e essas são todas as
roupas que ela tem. Droga.
Recomponha-se. São apenas roupas. É apenas uma reunião.
Há tanto esforço mental envolvido em manter essa fachada que
ela construiu, e os sentimentos peculiares e turbulentos que ela
experimenta quando está perto de Moya – até mesmo pensando em
Moya – estão dificultando a concentração. Ela calça seus sapatos
desconfortáveis e pega sua bolsa.
— Ok, vamos lá. Não esqueça suas anotações.
Dottie chega mais perto, então elas ficam juntas no espelho.
— Não parece que estamos indo para uma noite de pôquer.
— Claro que parece — Kit não tem ideia de como consiste uma
roupa adequada para a noite de pôquer. Duas semanas atrás, se
alguém tivesse dito a ela que ela iria a reuniões secretas no
dormitório de Moya Kershaw, Kit teria dito que eles estavam
brincando. — Ok, vamos lá.
Dottie fecha a porta atrás delas e elas se dirigem para as
escadas. Os corredores de todos os andares são idênticos, mas há
uma maneira infalível de saber que elas chegaram ao Dois.
— Nossa — Dottie diz — eu nunca consigo entender como Moya
dorme com toda a datilografia acontecendo aqui embaixo.
— Tampões de ouvido?
— Eu acho que sim.
Elas chegaram à porta certa. Kit puxa sua bolsa mais alto, levanta
a mão e bate. A porta se abre e ela imediatamente percebe que está
vestida demais.
Moya está de meias, o cabelo solto e natural. É cortado na altura
da clavícula, e há muito pouca ondulação ali – ela deve se esforçar
para enrolá-lo. Ela está usando uma calça social azul-marinho
macia e uma camisa branca larga por baixo de um roupão de cetim
preto esvoaçante. Isto não é como o roupão masculino dela. A
túnica é elaboradamente bordada com um dragão chinês vermelho
que sobe em uma lapela e enrola sua cauda sobre o ombro de
Moya para descer do outro lado em um deslizar de fogo cintilante.
Kit tenta não parecer deslumbrada.
— Belo cardigã — diz Moya. — Bem-vinda. São seis e cinco. —
Mas ela não parece preocupada com a pontualidade. Ela está
segurando um cigarro aceso em uma das mãos e um copo de
uísque na outra. A música está tocando em algum lugar, lá no fundo.
Dottie fica pacientemente com suas anotações.
— Kit estava mexendo no cabelo.
— Ela estava? — Os olhos de Moya pousam em Kit, voam para
longe. Seus lábios estão ligeiramente virados para cima. — Oh,
bem, entrem.
O quarto de Moya é único em vários aspectos. Primeiro, que ela
tem um para si, quando o espaço no Hall é escasso. Em segundo
lugar, é grande o suficiente para acomodar mais de um residente,
mas Moya manteve seu status de única ocupante.
Em terceiro lugar, a decoração é uma grande surpresa.
Kit sempre assumiu que o quarto de Moya seria um reflexo de sua
persona pública habitual: elegantemente utilitária, ordenada e
reservada. Mas este quarto não é assim. É bagunçado. O interior é
revestido de painéis escuros, como todos os outros lugares da
escola, mas lâmpadas altas com abajures opalescentes emolduram
um brilho rosado. Uma impressão art nouveau emoldurada do
Folies-Bergère ocupa uma parede. Logo à direita da porta está um
grande armário laqueado. Mais perto de Kit, à esquerda, uma mesa
redonda com tampo de baeta é cercada por cadeiras. Depois da
mesa de jogo, bem no canto esquerdo, a cama de Moya é
emoldurada por longas cortinas de veludo azul. Kit vê um
travesseiro branco, um edredom vermelho escuro misturado com
lenços e roupas e várias almofadas coloridas, antes de desviar o
olhar rapidamente.
Moya ainda está segurando a porta, se divertindo com a reação
de Kit.
— Dentro ou fora?
— Oh. Desculpe. Dentro — Kit atravessa a porta.
Moya fecha a porta e caminha até uma pequena estante
escondida do outro lado do armário. A prateleira de baixo contém
uma pilha de livros e, na prateleira do meio, um compacto Philco
wireless fornece a música; Kit reconhece a interpretação de Anne
Shelton de “A Nightingale Sang in Berkley Square”. A prateleira
superior contém uma bandeja com copos e garrafas.
— Bebida? — Moya olha. — Dottie, o de sempre?
— Você é uma joia. — Dottie joga suas anotações na mesa de
jogo e se joga na cama de Moya.
— Kit? — O manto de Moya gira quando ela se vira para olhar por
cima do ombro. — Tenho gim, uísque, conhaque e refrigerante.
— Uh, apenas… — Kit decide que precisa manter seu juízo. —
Refrigerante. Refrigerante está bom.
Moya ergue as sobrancelhas, dá de ombros.
— Encontre um assento. Dottie, não ponha os pés na minha
cama.
— Já tirei os sapatos — rebate Dottie. — Moya, eu gostei da nova
almofada.
— Encontrei em uma banheira no Um. Aqui está o seu conhaque.
— Moya entrega o copo a Dottie e se aproxima para passar um para
Kit. — A maior parte da mobília é roubada. Peguei tudo o que pude
antes que tirassem todas as coisas boas do Hall. Tive de subornar
dois soldados com uma jarra de cerveja para carregar o armário.
— Essas cortinas são do antigo auditório? — Kit deixa a bolsa no
chão. Ela dá um gole em sua bebida, refrigerante puro com gelo, e
uma rodela de limão, e puxa uma cadeira do jogo de mesa para ela.
— Bom olho. — Moya apaga o cigarro em um cinzeiro de vidro
sobre a mesa. — Eles iam jogá-los fora. Eu deveria parar de dizer
“roubado” e começar a dizer “resgatado”.
— Como você guarda tudo isso para você? — Kit deixa escapar.
Moya toca a lateral do nariz.
— Conexões. Na verdade, é porque sou supervisora. E porque
ninguém mais quer dormir tão perto das máquinas de escrever.
— Oh. — Mesmo dentro do quarto, com a porta fechada e música
tocando, Kit consegue ouvir o tap-tappity-tap-tap-ping! do outro lado
do corredor.
— Não me importo com o barulho. — Moya inclina a cabeça. —
Meio que gosto, para ser honesta. Depois de um tempo, é como
ouvir a chuva no telhado.
Os lábios de Moya erguem-se novamente suavemente. Kit se
pergunta como seria o sorriso completo de Moya. A ideia faz seu
coração acelerar o ritmo, e ela vasculha a bolsa em busca de uma
distração.
— Oh, eu trouxe o seu lenço. Eu lavei depois de... bem, você
sabe.
— Obrigada — Moya aceita o pedaço de pano azul. — Passado a
ferro também. Você não precisava fazer isso.
— É muito bonito para não passar a ferro. — Kit sente o rosto
esquentar ao fechar a sacola. Ela dá um gole na bebida. — Uh,
Violet disse que está pegando arquivos do hospital, e depois vai
pegar o ônibus. Ela pode chegar um pouco atrasada.
Moya assente.
— Então vamos falar sobre outras informações. Dot, você acabou
indo para a Fazenda hoje?
— Sim. — Os pés de Dottie estão dobrados sob ela. Ela segura
sua bebida em uma das mãos e aninha uma almofada com a outra.
— Foi muito estranho voltar lá, mas deu tudo certo. Mas não
consegui falar com todos. Algumas das meninas estavam
trabalhando.
Kit senta-se mais ereta.
— A garota que ajudou você... você a encontrou?
— Ela estava… — Dottie para quando alguém bate na porta.
É Violet, segurando um grosso maço de papéis. Seu casaco com
capuz está brilhando com gotas cristalinas de chuva. Ela larga a
papelada na mesa e empurra o capuz para trás.
— Está garoando lá fora. Tive sorte de o ônibus chegar cedo. E
olha, é ótimo nos encontrarmos, mas talvez tenhamos que encontrar
outro lugar para isso.
— Por que isso? — Kit se levanta e a ajuda a pendurar o casaco
nas costas de uma cadeira para secar.
— Não sei se você notou, mas a equipe Negra só trabalha dentro
e fora do Um. — Violet enxuga o rosto com um lenço. — Eu me
afasto um quilômetro caminhando até o Dois.
— Droga, eu deveria ter pensado nisso. — Moya franze a testa.
— Tudo bem, deixe-me descobrir uma solução. Quer uma bebida?
— Qualquer coisa que não seja alcoólica. — Violet olha em volta.
— Uau, esse lugar é muito legal.
— Obrigada. É mais privado do que a biblioteca, pelo menos.
Mas, Violet, se você ir até o Dois ser um problema, vamos encontrar
outro lugar.
— Ótimo. — Violet se acomoda na cadeira com o casaco. —
Vocês garotas iriam começar sem mim?
— Na verdade. — Dottie se apoiou na almofada e agora está
recostada com seu copo de conhaque. — Eu ia dizer o que ouvi na
Fazenda hoje. Foi seu dia de folga também?
— Não. Fui ao hospital depois do trabalho. — Violet aceita seu
copo de refrigerante. — Então, o que você encontrou?
Dottie acena para Kit passar a ela a pasta de anotações.
— Ok, primeiro eu tentei me lembrar de mais alguma coisa sobre
os caras do baile, mas honestamente, minhas memórias são apenas
um borrão. Quando voltei para a Fazenda, porém, consegui
encontrar cinco moças que estiveram lá na última sexta-feira. Duas
delas disseram que viram Libby, mas apenas de passagem. Uma
das garotas disse que pensou ter visto Libby conversando com
alguém, mas não conseguiu ver quem por causa da multidão.
— Não ajuda muito — observa Violet.
— Você entendeu. De qualquer forma, a garota que me ajudou a
ir para o fundo do Ohio Hall? Ela está na Comissão do Banco, e seu
nome é Mildred Gregory. Ela achou que eu estava “me sentindo
delicada”, então me levou para tomar um pouco de ar e me deu o
cobertor. Isso foi por volta das onze e meia da noite de sexta-feira.
— Ela não percebeu que você foi drogada? — Kit acha a ideia
terrível.
— Não... ela achou que eu tinha bebido demais. Ela foi para a
cama assim que me colocou na varanda dos fundos. Ela não notou
nenhum cara à espreita em Ohio ou na lavanderia.
— Mas não parece que Mildred seja a pessoa mais observadora.
— Você estaria certa sobre isso. E ela não estava disposta a falar.
A ideia de alguém ser morta tão perto de seu dormitório a deixou
confusa. Ela mencionou que pode se mudar da Fazenda Arlington,
se conseguir encontrar um lugar barato perto do centro da cidade.
Moya revira os olhos.
— Boa sorte com isso. Conheço garotas perto do prédio do
Capitólio que pagam aluguel para dormir no sofá de um quarto
compartilhado. Dottie, você deixou seus dados de contato? Então
Mildred pode lhe dizer para onde vai se mudar de endereço?
Dottie assente.
— Pode apostar. Mas honestamente, acho que ela é um beco
sem saída. Ela não viu nada, não ouviu nada. Disse que dorme com
uma máscara de beleza e tampões de ouvido por causa do ronco de
sua colega de quarto.
— Huh. — Moya amarra o cinto de seu roupão e puxa uma
cadeira para se sentar perto de Violet. — Consegui informações
melhores na delegacia. Tive que usar um vestido, mas valeu a pena.
— Com quem você falou? — Kit pega novamente sua bolsa e
retira uma pequena pilha de fichas de cor creme e um lápis. Ela
anota as informações de Dottie: Mildred Gregory, Banco C, sem
informações, Fazenda Arlington/Ohio hall, endereço a ser alterado?;
e inicia um novo cartão para Moya.
— Sargento detetive Brendan Whitty. — Moya dá um gole em sua
bebida. — Ele vai ser o cara que eu vou voltar se eu precisar saber
mais.
— Por que? Ele foi legal? — Dottie pergunta esperançosa.
— Legal? Não. Ele tirou a aliança quando achou que eu não
estava olhando. — O tom de Moya é seco, sua voz áspera com o
uísque. — Mas parece que ele fala com qualquer um que usa saia,
e uma vez que ele começa, é difícil calá-lo, o que é bom para nós.
Kit olha para cima de suas cartas.
— O que você descobriu?
— Bem, depois que ele terminou de reclamar sobre como DC está
sendo tomada por mulheres jovens e que dor isso é para a polícia,
ele foi bastante cooperativo. Ele foi informado pelo Coronel
Corderman, então isso ajudou. Ele me deu alguns detalhes do
arquivo da polícia. Espere — Moya caminha até o armário e abre
bem as portas.
Kit consegue reprimir um suspiro, mas apenas por pouco. O
interior do armário é um paraíso de roupas, todas em cores vivas e
ricas. Agora ela entende como Moya sempre consegue parecer tão
bem arrumada. Moya vasculha o bolso de um sobretudo cor de
vinho e encontra o que procura. Ela coloca uma fotografia no feltro
verde da mesa de jogo.
— Eu roubei uma foto do arquivo enquanto Whitty estava falando.
Violet, esta é Libby Armstrong. Ela tinha dezenove anos.
Violet se inclina para a frente e Dottie se aproxima da cama para
olhar também. Mas Kit quase não precisa da foto – ela se lembra de
Libby. Uma morena de feições pequenas, Libby usava sapatos
caprichosos e blusas brancas com golas Peter Pan. Ela está
sorrindo esperançosamente na foto, de um jeito que Kit acha triste.
Libby foi ao baile por companhia, ou talvez para encontrar alguém
que a amasse por quem ela era. Em vez disso, ela conheceu um
homem que não se importava com sua personalidade. Que a violou
e matou da forma mais brutal que se possa imaginar.
Kit viu essa garota caída como carne ensanguentada no chão do
banheiro. A justaposição daquela imagem lembrada com esta
imagem na mesa – de Libby Armstrong como ela era em vida – é
difícil de suportar.
— Ela está... — Dottie começa a chorar. — Ainda não consigo
acreditar que ela se foi. Eu estava conversando com ela no ônibus,
a caminho da Fazenda. Ela estava me contando sobre seu
irmãozinho e como sua mãe esperava que eles se encontrassem na
Páscoa... Deus. Essa coisa toda me deixa doente.
— Segundo Whitty, não houve testemunhas — Moya explica no
silêncio solene. — Ninguém viu Libby sair do baile, muito menos viu
com quem ela poderia ter saído. A polícia parece estar pensando
que ela tinha um namorado que a viu com outro homem na noite do
baile, e então, quando ela deixou Idaho, seu “namorado” a matou
em um acesso de fúria.
Violet faz uma careta.
— Que besteira.
— Eles não têm nenhuma evidência de qualquer pretendente ou
namorado. — A mão de Moya vai para o bolso de seu roupão, puxa
seu fino estojo de prata. Ela pega um cigarro, mas o segura sem
acendê-lo, como se seus dedos precisassem de algo para fazer. —
Libby morava com duas outras garotas em Foggy Bottom, e ambas
disseram que ela não estava envolvida romanticamente com
ninguém. Mas a polícia precisa de suas teorias.
Kit percebe a expressão desdenhosa de Moya.
— E o outro caso? O caso de Dinah?
— Quando eu disse que tinha ouvido nos jornais que outra garota
foi morta recentemente, Whitty me disse que era algo diferente. Não
relacionado.
— Meu senhor, a polícia é inacreditável — diz Violet.
Kit concorda com a cabeça.
— Ou eles não sabem, ou não querem ligar os dois casos
publicamente, ou estão deliberadamente ignorando as
circunstâncias.
— Mas se eles continuarem fazendo isso, mais garotas vão
morrer — A voz de Dottie é quente quando ela bate o copo na
mesa. — Qualquer homem que faz isso, comete crimes como
esse... Ele não vai simplesmente parar. Ele vai continuar matando.
Kit olha novamente para Moya.
— Eles checaram as pegadas? E as impressões digitais?
— Nenhuma impressão digital. Eles acham que ele usava luvas.
— Moya inclina o cigarro como se estivesse fumando, um cotovelo
em concha. — Pelas pegadas, eles calculam que o assassino tem
cerca de um metro e oitenta de altura. Eles estão perseguindo
homens que conheceram Libby, amigos e amigos de amigos.
— Isso só vai causar problemas a muitos garotos que não fizeram
nada de errado. — Violet pega a foto pelas bordas para examiná-la
mais de perto. — Pobre garota. E os óculos? A polícia tem algo a
dizer sobre isso?
— Quando mencionei, Whitty acabou de dizer que alguém da
Fazenda deve tê-los deixado no banheiro da lavanderia.
— Uau — diz Violet. — Eles realmente não estão dando nenhuma
energia ao caso de Dinah, estão?
— Você realmente esperava que eles o fizessem? — Moya
pergunta baixinho.
Violet balança a cabeça, sem palavras.
Kit está escrevendo tudo em cartões – o nome de Whitty, a teoria
da polícia. Outro cartão para Libby Armstrong e seus detalhes. Há
mais informações vindo, e ela quer anotar tudo, colocá-la como as
peças de um quebra-cabeça.
Ou um código.
— Vamos ter que desmontá-lo — diz ela, movendo o lápis. —
Como o trabalho lá em cima, ou no chalé.
— O que você quer dizer? — A expressão de Moya é
especulativa.
— Quando você recebe uma nova mensagem de código, primeiro
remove o código de transferência. — Kit adiciona mais detalhes ao
cartão, olha para cima. — Vamos ter que fazer a mesma coisa aqui.
A polícia tem preconceitos, eles não acreditam que haja uma ligação
entre os dois assassinatos, não acreditam que Libby não tinha
namorado porque não conseguem imaginar uma garota sem
namorado e estão ignorando o caso de Dinah porque ela é negra.
Eles têm uma... maneira confusa de pensar que obscurece seu
raciocínio.
— O que significa que todas as teorias que eles apresentarem
serão maculadas — diz Violet.
Kit assente.
— Temos que tirar isso. Tire o viés e o preconceito, apenas olhar
para as informações. A verdade nua e crua.
— Basta olhar para as evidências. — Dottie empurra os cachos
para trás das orelhas e se acomoda no assento ao lado de Kit.
— Isso mesmo. — Kit seleciona outro cartão. — Vou tentar fazer
anotações de cada pequena informação que obtivermos. Retiramos
qualquer coisa que pareça viés de transferência. Então teremos
dados brutos suficientes para começar a juntar as coisas.
— Bem, eu tenho muito mais dados aqui. — Violet puxa sua pilha
de papelada para mais perto. — Isso é tudo de Ruth Freeman.
Depois que ela foi demitida durante a paralisação das enfermeiras
negras do UVA Hospital em janeiro, ela conseguiu um emprego no
DC General. Esta papelada é apenas um empréstimo; eu tenho que
levar de volta para ela no domingo. Pedi a ela que me conseguisse
qualquer coisa que encontrasse sobre as mortes de Dinah e Libby.
— Libby foi para o General — diz Kit.
— Sim.
— Você já checou isso? — Moya volta a se sentar, pega a folha
de cima da pilha.
— Eu não estava disposta a olhar para ele a caminho de casa —
admite Violet. — Eu... eu estava com medo de começar a chorar no
ônibus.
Dottie estende o braço por cima da mesa e aperta a mão de
Violet.
— Você quer que vejamos isso sem você?
— Não — diz Violet, com os olhos duros. — Sem chance. Você
pode ver as informações de Libby, eu posso ver as de Dinah. Eu
quero saber tudo. Quero a verdade nua e crua.
Ela divide os papéis em três pilhas e entrega uma para Moya e
outra para Dottie. Kit atua como compiladora. Nos dez minutos
seguintes, elas mergulham na leitura. Os únicos sons que Kit ouve
são o barulho de papéis sendo embaralhados, a música baixa e
solitária do saxofone vindo do rádio e o ping distante das máquinas
de escrever.
Moya fuma enquanto examina as páginas e toma um gole de sua
bebida. Dottie tira o suéter. A sala está quente, e Kit registra a
respiração suave das outras garotas – às vezes o barulho de
respiração presa quando uma delas lê algo particularmente
hediondo.
Uma vez que Kit tenha os últimos detalhes das teorias policiais
escritas e suas cartas em ordem, ela olha para cima, com o lápis
pronto.
— Ok, o que temos?
— Estupro — Moya diz sem rodeios. — Em ambas as garotas.
— Isso é nojento. — O rosto de Dottie está pálido. — Olhe aqui,
no entanto. As duas meninas tinham hematomas no pescoço, mas
isso diz algo sobre... algum tipo de osso. Que não estava quebrado.
— Deixe-me ver? — Kit aceita as páginas de Dottie. — O osso
hióide. Está na garganta, perto da laringe.
— Como você sabe disso?
— Eu leio muito, lembra? — Kit devolve as páginas. Ela não quer
dizer que prestou atenção a mais exames médicos sobre os
problemas respiratórios de Katherine do que ela gostaria de contar.
— O que significa, se esse osso não foi quebrado? — Moya
pergunta. — Isso é importante?
— Aqui. — Violet levanta o queixo para a página em sua mão. —
Tenho aqui um bilhete que diz que as duas meninas foram
estranguladas, mas não morreram de estrangulamento.
— Talvez ele as subjugue, estrangulando-as parcialmente —
sugere Kit.
— Parece que sim — diz Violet. — Mas ambas as meninas
morreram de perda de sangue. Ambas foram esfaqueadas.
— Com certeza havia sangue suficiente na lavanderia para me
convencer disso. — Moya bate a ponta do cigarro no cinzeiro.
— Senhor. — Violet solta um suspiro trêmulo.
— Desculpe. — Kit apoia os antebraços na mesa. — Isso deve
ser difícil para você ouvir.
— Sim. — Violet toma um gole de sua água com gás. — Mais
difícil para você testemunhar isso, no entanto. E eu disse que quero
a verdade. Ok, então ele as estrangula, agride, esfaqueia...
— Diz aqui que Libby teve “ferimentos defensivos” — Dottie diz.
— Cortes nas mãos e nos braços. Então ela tentou se defender
primeiro.
Violet assente.
— Dinah também.
— Que tipo de faca ele usou? — O lápis de Kit está se movendo
rápido enquanto ela anota tudo.
— Eles ainda não descobriram isso. Algo comprido e afiado, não
um canivete.
— Mas nenhuma faca foi encontrada na lavanderia — diz Moya.
— Nenhuma arma do crime, de acordo com o detetive Whitty. Não
temos o arquivo policial do caso de Dinah, então, Kit, você pode
querer incluir isso como especulação, mas acho que também não foi
encontrada nenhuma faca no centro da cidade.
— O assassino deve ter planejado isso — Dottie diz de repente.
— Ele trouxe uma faca, depois a levou embora quando terminou.
Ele sabia o que estava fazendo.
Kit se endireita na cadeira.
— E Whitty disse que não havia impressões digitais, que o
assassino usava luvas. Essa é outra pista de que ele planejou isso
com antecedência.
— Mas deve ter havido uma confusão e tanto quando tudo
acabou — diz Violet. — Uma faca grande, e suas roupas deviam
estar sujas de sangue... Como ele escapou sem que ninguém
percebesse?
Moya olha para cima.
— Ele deve ter um carro. Ele não pode ter pegado um táxi ou
andado de ônibus.
— Kit, você está anotando isso? — Dottie pergunta.
— Sim. — Kit termina uma nota e sacode a mão. — Mais alguma
coisa? Ele pegou os óculos de Dinah... o que ele tirou de Libby?
Há um momento de silêncio enquanto todos pesquisam em suas
páginas. Moya se levanta para se servir de um refrigerante.
— Não consigo encontrar nada — Dottie anuncia finalmente. —
As colegas de quarto de Libby podem saber o que ela levou para o
baile, mas não há nada neste relatório. Só o que ela trouxe para o
necrotério.
— Ela não estava com a bolsa... Kit e eu notamos isso... mas ela
pode não ter levado nenhuma. — Moya está encostada no armário,
girando o gelo em seu copo e olhando para a gravura de Folies-
Bergère na parede oposta. — O item pode ter sido algo pequeno e
pessoal. Pentes de cabelo, ou chaves, ou algo que não faria falta de
imediato...
Um suspiro repentino e agudo de Violet faz com que todos olhem.
— O que é? — Moya pergunta.
— Ele... ele… — Violet encontrou uma foto nas anotações. Agora
ela a afasta de si mesma. — Oh, Senhor Jesus.
— O que foi, querida? — Dottie pega a foto. Então ela também
suspira em choque. — Oh meu Deus.
Kit viu e ouviu muitas coisas nos últimos dias que gostaria de
nunca ter visto. Mas isso não a impede de estender a mão para tirar
a foto. É uma fotografia do corpo de Libby, pós-autópsia. E Kit pode
ver a causa do horror de Violet e Dottie imediatamente, costurada
com pontos pretos berrantes.
Ela sente o sangue escorrer de seu rosto enquanto olha para
Moya.
— Sinto muito, mas você precisa ver isso.
Moya coloca a bebida na mesa e se aproxima, tira a foto. Sua
expressão fica dura e fria.
— Ele cortou as duas assim?
Violet se virou e Dottie a está segurando. Kit é que tem que
vasculhar as páginas até encontrar a outra foto de que precisam.
— Sim. — Ela engole enquanto tira a primeira foto da autópsia de
Moya, coloca as duas fotos juntas na mesa. Elas ficam lá como uma
mancha no meio da baeta verde.
— Ele cortou aquele nojento símbolo anti-semita em seus
estômagos. — Moya exala lentamente. — Então, o assassino que
estamos procurando... Provavelmente é americano, se foi a bailes
na Fazenda Arlington. Ele pode até ser um militar. Mas ele é nazista
de ponta a ponta.
CAPÍTULO DOZE

Tive a sorte de poder resolver problemas, e eles não


exigiam muita matemática, na verdade; exigiam muita
engenhosidade.
— ANN CARACRISTI

Naquela noite, Kit sonha com sua casa.


Ela está do lado de fora da casa de seus pais em Scott’s Run no
final da tarde, ao lado da bomba de água verde-ferro perto da
varanda. Ela está vestindo o traje de viagem azul-marinho,
segurando a bolsa de vinil marrom. Olhando para a casa, um
sentimento surge nela – o mesmo pavor e horror crescente que
sentiu na lavanderia da Fazenda Arlington.
Seus pés doíam. Quando ela olha para baixo, o sangue está
manchando suas meias, escorrendo das pontas de seus sapatos
muito apertados. Mas seu corpo se move sem querer, dando o
primeiro passo para a varanda, e o seguinte, até que ela está de pé
sobre as tábuas danificadas, olhando para a porta aberta e escura.
— Mamãe? Papai?
Sua voz suave é levada pela brisa plana e fria. Kit pode ver a cal
lascada na frente da casa, o balde de metal para as cinzas da
lareira. A poltrona quebrada, onde seu pai se senta para fumar à
noite depois que ele chega em casa da mina, range suavemente ao
balançar. Mais longe, a estrada de terra, vazia de gente.
Quando ela olha para trás, Libby Armstrong está parada na porta.
O cabelo de Libby está despenteado e seus lábios estão azuis.
Ela está usando a saia rosa. A frente de sua blusa está aberta,
expondo a suave dobra cinza de sua pele. Uma trilha de pontos de
lagarta preta mantém seu estômago marcado simbolicamente.
O terror que Kit sentiu um sussurro antes é agora uma pulsação
urgente em suas veias.
Os olhos de Libby estão leitosos na morte. Seus lábios pálidos se
movem como se ela estivesse tentando falar. Ela dá um passo mais
perto, levanta a mão.
Kit sabe – com absoluta certeza – que se Libby a tocar com
aqueles dedos frios e mortos, seu coração vai apertar no peito. Ela
tem que correr, ela tem que…
Ela dá um passo para trás, perde o equilíbrio na escada. Então
ela está se debatendo, caindo...
— Kit
Um suspiro, uma sensação latejante de errado, e sua visão
clareia. O rosto de Dottie está acima dela; a mão de Dottie está em
seu braço.
— Não consigo... — Kit tenta controlar a respiração. — Não
consigo…
— Shh, querida, está tudo bem. — Dottie se senta na beirada da
cama e acaricia suavemente o ombro de Kit. — Você teve um
pesadelo, só isso. E não é de admirar, depois de todas aquelas
coisas horríveis ontem à noite.
— Que horas são? — Suor na linha do cabelo: Kit enxuga-o com
o punho da manga do pijama.
— Quase oito. Estou prestes a entrar no turno. — Dottie nivela a
saia sobre os quadris. — Você vai ficar bem?
— Sim. — Kit limpa a garganta. — Sim. Eu vou ficar bem.
— Tome um café e coma o café da manhã, você vai se sentir
melhor depois disso. É seu dia de folga, lembra? Desculpe abraçá-la
e correr…
— Não seja boba — diz Kit. — Vá, vá. Você não quer se atrasar.
Assim que Dottie sai para seu turno, Kit se senta na cama e passa
a mão no rosto. É quarta-feira, seu dia de folga. Certo. Ela pega a
bolsa e tira as fichas de cor creme com todas as informações que
reuniram na noite anterior. Ela coloca as cartas na cama, tentando
ver como elas se conectam. Mas os cobertores em sua cama estão
bagunçados, e todas as cartas parecem um ruído aleatório e
confuso...
Ela precisa se recompor. Ela não quer que seu dia de descanso
seja infundido com essa amargura pós-sonho ruim.
Mas é difícil: o cérebro dela não desliga. Enquanto toma um longo
banho quente, lava o cabelo, arruma a cômoda, toma o café da
manhã, ela pensa na revisão de identidade. Enquanto passa a
roupa da semana, fazendo outras tarefas antes do almoço, ela
pensa nos assassinatos.
Ela ainda está cansada. Normalmente, ela tiraria uma soneca,
mas a perspectiva de ter outro pesadelo não é atraente. Kit pendura
a roupa lavada, veste o casaco e sai para passear.
O pátio nos fundos da escola tem bancos estilo parque, mas
parece muito exposto, então ela vira à esquerda e caminha em
direção às árvores. ela não tem certeza de quão longe dentro da
floresta ela pode ir. Houve um PSA sobre isso, mas infelizmente ela
não prestou muita atenção.
As árvores de casca áspera são reconfortantes, com suas folhas
novas e vibrantes. A administração está falando em desmatar parte
desta floresta para um estacionamento, o que Kit acha triste. Tudo
aqui cheira a verde. A grama é grossa, umedecendo seus sapatos,
mas Kit segue em frente e, antes que ela perceba, chegou ao
pequeno coreto da escola. Pintado em creme, com paredes abertas,
apenas o lugar para se sentar.
Kit se acomoda no banco de madeira lá dentro, observa os
pássaros voando ao redor. Escuta. Parece um mundo distante dos
quartos apertados e apertados do Hall, com o barulho sempre
presente de digitação e vozes de garotas. O ar está frio em suas
bochechas.
— O tempo ainda está meio frio para ficar sentada na sombra,
não acha?
A cabeça de Kit se vira. Violet está de pé ao lado do gazebo. O
rosto da garota está corado devido ao ar fresco, e ela tem um
cardigã marrom de tricô enrolado em volta dela. Seu cabelo é uma
nuvem escura e macia, preso atrás com uma faixa de Alice. O azul
de sua saia é rico contra o verde geral.
— Eu acho. — Kit olha para as árvores. — Está quieto. É legal.
Você não está de plantão?
— Estou de folga. — Violet sobe o degrau e entra no gazebo. Ela
acena com o queixo para algum lugar sobre o ombro de Kit, além da
linha das árvores. — Mas o chalé fica logo ali e eu vi você pela
janela. Você prefere ficar sozinha?
Kit balança a cabeça.
— Está tudo bem. Sente-se.
— A floresta lembra você de casa? — Violet pergunta de repente.
— Eu acho que sim — Kit não permite que seu sotaque mude. Se
ela relaxar uma vez, será mais difícil suprimir novamente mais tarde.
— Meio que não. Há bosques onde cresci, mas a maior parte é só...
terra.
A expressão de Violet se suaviza.
— De onde você é? Tipo, de verdade?
— West Virginia. — Kit acha as palavras difíceis de pronunciar.
— Se isso faz você se sentir melhor, eu não teria adivinhado se já
não soubesse — diz Violet.
Kit não tem certeza de como responder a isso. Ela se contenta
com um aceno neutro.
— Bem... obrigada. Acho que todo mundo vai saber em breve,
com a revisão.
— Já pensou no que vai fazer?
— Não. — Kit chuta seus tornozelos cruzados para frente e para
trás suavemente. — Eu só não tenho certeza. Quero dizer, sei que
terei de correr, mas não sei como ou para onde ir.
— Você não quer ir para casa — diz Violet, com um toque de
surpresa.
Kit não diz nada. Apenas chuta as pernas. Então ela pensa em
algo, uma maneira de enquadrar isso.
— É como picles. Você conhece o sabor dos picles? Ou você ama
ou odeia, não há meio-termo.
— Você está comparando ir para casa com picles? — Os lábios
de Violet se erguem gradualmente, até que ela sorri.
— Sim. — Kit se vê sorrindo de volta. Ela olha para os pés,
sentindo a necessidade de explicar um pouco. — Talvez eu esteja
errada, mas parece que você vem de uma família que está se
virando?
— Nós nos viramos — diz Violet, balançando a cabeça
lentamente.
— Sim. — Kit morde o lábio, ainda olhando para baixo. — Não foi
assim que eu cresci. Nós nunca estávamos conseguindo. Meu pai
trabalhava na mina e meus irmãos capturavam ratos-almiscarados
no riacho para vender as peles. Eu tirava tabaco ou ajudava minha
mãe a coletar raízes de maçã em sacos de estopa para ganhar
dinheiro. Eu nunca tive um par de sapatos até os doze anos,
costumávamos enrolar nossos pés em jornal amarrado com
barbante, depois íamos cavar carvão dos rejeitos da mina.
O rosto de Violet está sério novamente.
— Essa é uma vida dura e pesada.
— Eu nem sabia o quanto éramos pobres até conseguir um
emprego como empregada doméstica. Os Sutherlands tinham
encanamento interno. Eu tinha refeições regulares, um belo avental,
dois pares de meias, um par de sapatos...
— Riquezas — diz Violet suavemente.
— Eu tinha quatorze anos e nunca tive essas coisas antes. Achei
que estava no céu, sabe? — Kit balança a cabeça para si mesma.
— Mas eu ainda era uma empregada. Então comecei a pensar
sobre isso e percebi que estava pagando aqueles belos aventais e
aquelas meias e sapatos. Consegui um emprego, casa e comida, e
meus pais conseguiram uma taxa fixa para o empréstimo.
— Eles venderam você para o serviço — diz Violet sem rodeios.
— É assim que funciona. Simplesmente não acontece com os
brancos com tanta frequência.
— Sim, eu acho. — Kit assente. — Tenho cinco irmãos, então
entendo o porquê, foi um bom negócio para eles. Mas... deixou um
gosto amargo. Então não, eu não quero ir para casa. Mas isso não
importa. Todo mundo tem seus próprios problemas. Você tem seus
próprios problemas, sou uma pobre garota branca, mas ainda sou
uma garota branca.
Violet está olhando para longe contemplativamente.
— Essa é a verdade. Você tem uma chance de subir. Você não
quer voltar para casa, bem, eu não posso voltar para a cozinha. Não
depois de trabalhar no chalé com o Sr. Coffee.
— Você quer algo mais.
Violet aperta os lábios.
— Sei que não há nada de errado em ser o pessoal da cozinha.
Minha mãe trabalhava na cozinha, é um trabalho honesto e paga
vinte e cinco centavos a hora. Mas não consigo mais. E eu não sei
onde isso me deixa. Assim que a guerra acabar, empregos de
serviço assim são tudo o que uma garota negra pode esperar,
mesmo com uma educação universitária.
Kit está chutando as pernas ainda.
— O mundo não é justo.
— Esse é o mundo — Violet a lembra.
Kit sente isso.
— Você iria para a faculdade, se pudesse?
— Tenho a inscrição para a Howard University — confessa Violet.
— Mas eu não a enviei.
A respiração de Kit sai ofegante de surpresa.
— Para Howard? Desculpe-me, mas caramba, Violet. O que está
prendendo você?
Violet olha para baixo, franzindo a testa.
— Estou em dúvida sobre isso. A faculdade seria ótima, mas há o
custo. Não quero que meus pais carreguem isso.
— Você ainda deveria fazer isso — Kit insiste. — Qualquer
chance, você deveria aceitar.
— Às custas da minha família? — Violet olha para Kit de lado. —
E de que adianta eu ser apenas a garota mais bem-educada da
lavanderia?
— Você não vai acabar na lavanderia — diz Kit com firmeza. —
Você é muito inteligente para isso, e as pessoas notaram. É verdade
que o mundo não é justo, mas há uma guerra e o mundo está
mudando.
— Não rápido o suficiente — Violet sussurra. — Não quero
sacrificar minha família pela faculdade. Anos de estudo e gastos... E
se tudo der em nada?
— E se tudo der em alguma coisa? Você poderia levantar sua
família, assim como você mesma — Kit acena em direção às
árvores. — Você precisa ter esperança, Violet. A esperança é tudo o
que temos. E educação. A educação faz parte. Sinceramente,
acredito nisso.
Violet arranha as tábuas do gazebo com a ponta do sapato.
— Você tem alguma educação?
— Não. — Kit balança a cabeça lentamente. — Minha mãe me
ensinou a ler e escrever e a calcular. Toda a educação que tive
depois disso foi por causa de Katherine. Depois que ela descobriu
que eu tinha algumas habilidades básicas, mas nada mais, ela
garantiu que eu tivesse aulas com ela. Disse aos pais que era chato
ter uma companheira sem aprendizado. Ela fez de seu trabalho me
enganar. Me fez ler francês e estudar poesia, história e geometria…
— Kit para de falar, melancólica.
Violet está olhando para ela.
— Ela parece uma boa pessoa.
— Ela era. Tenho tantas saudades dela. — Kit morde o lábio com
um sorriso triste. — Mas é uma faca de dois gumes... agora que
aprendi um pouco, isso me arruinou como empregada doméstica.
— No entanto, faz de você uma pequena decifradora prática. —
Violet sorri.
— Eu acho. — Kit bufa. — Mas ei... Howard. Eu juro, Violet, se
você preencher esse formulário, eu mesmo o levarei ao correio.
Violet pressiona os lábios afetadamente.
— Senhor, escute só você. Posso postar minha própria inscrição,
obrigada.
— Então faça! — Kit acha que a folga de Violet já deve ter
acabado. Ela empurra o assento, estende a mão para ajudar Violet
a se levantar. — Escute, estive pensando nas informações que
temos sobre os assassinatos.
— Bem, isso é uma mudança de assunto — diz Violet enquanto
se levanta, sacudindo a saia. — Mas tudo bem, continue.
— Há muitos dados agora — diz Kit, abotoando novamente o
casaco — alguns úteis e outros não. Se eu tivesse uma memória
fotográfica, poderia organizar tudo na minha cabeça. Mas eu não
tenho memória fotográfica, então...
— Precisamos organizar tudo — diz Violet. Ela envolve seu
cardigã com mais firmeza em torno de si mesma. — Precisamos ver
tudo organizado. Como quando você tem várias mensagens no
mesmo grupo de códigos.
Kit pega.
— Certo, você precisa espalhá-los e depois encontrar as
repetições antes de entender.
— Podemos fazer isso? — Violet pergunta. — Podemos colocar
os cartões que você fez em algum lugar?
Kit sente sua expressão mudar com o novo conceito.
— Isso — diz ela — é uma ideia muito boa.
CAPÍTULO TREZE

Simplesmente não era um trabalho que você pudesse fazer


sozinha; nunca seríamos capazes de fazer o que fizemos
como indivíduos. Nossa comunidade de meninas tornou
tudo possível.
— BEVERLEY GASKIN

São 19 horas no segundo andar, e Moya está lendo sobre as


façanhas de Beryl Markham em um avião na África quando a voz
baixa de Kit vem do corredor.
— Moya. — Uma batida suave na porta. — Moya, abra.
Kit.
Há a reação física imediata: batimento cardíaco acelerado, doce
tensão em seus músculos. Moya demora um pouco para respirar.
Ela lenta e deliberadamente coloca o cigarro no cinzeiro ao lado
dela, vira o livro e sai da cama.
Ela chega a meio caminho da porta antes de perceber que ainda
tem uma toalha na cabeça. Ela arranca a toalha, joga-a nas costas
de uma cadeira, e verifica-se no espelho de corpo inteiro dentro de
uma das portas do armário. Sua camisa preta tem as mangas
arregaçadas, a bainha para fora da calça marrom. Ela joga para trás
o cabelo recém-lavado. Sem maquiagem – isso significa que ela
parece ter dezesseis anos, mas terá que viver com isso.
Ela olha para seu reflexo. O que você está fazendo? Essa é Kit.
Só porque vocês deram as mãos uma vez quando ambas estavam
sob estresse não significa…
Outra batida suave.
— Moya?
— Um instante! — Ela fecha o armário e abaixa o volume do
Philco antes de atender a porta. — Oi.
— Oi. — Kit pega sua bolsa. Ela está usando o mesmo cardigã
verde-claro da outra noite, sobre um vestido utilitário azul-pavão
preso na cintura por um cinto branco fino. Seu cabelo ruivo está
ficando mais comprido – ela o prende com pequenas presilhas.
Suas sardas são lindas. — Então... posso entrar um segundo?
— Oh. — Moya se obriga a se concentrar. — Quero dizer, é claro.
Moya de repente percebe o estado da sala. Há uma jaqueta
pendurada nas costas de uma das cadeiras e a toalha molhada
jogada em outra. Seus livros estão empilhados ao lado da cama e
há alguns sapatos espalhados. Apenas sua lâmpada de leitura está
acesa, a luz fraca fazendo tudo parecer sombrio. E caramba, o
cigarro – Moya vai resgatá-lo enquanto o som suave de “Begin the
Beguine” deriva do Philco.
— Eu tive uma ideia. — Kit não parece incomodada com a
bagunça boêmia. Ela coloca a bolsa na mesa de jogo de baeta. —
Na verdade, Violet teve a ideia, mas ela deu para mim. Precisamos
dispor os cartões de informações de forma permanente. Precisamos
de um quadro de cortiça, ou um gráfico, talvez. Assim podemos ver
tudo organizado em ordem.
Moya pisca por um momento antes de alcançá-lo.
— Como a mesa de um sobreposto.
— Sim. Eu queria fazer na parede do meu quarto, mas Dottie não
deixou.
— Muito horrível?
— Sim. — Kit estremece. — Então pensei que talvez você tivesse
espaço aqui.
— Certo. — Moya tenta pensar. — Não tenho quadro de cortiça.
— A mesa de jogo?
— É, isso não vai funcionar nas noites de pôquer.
Kit lista coisas em seus dedos.
— A biblioteca não é particular. Nenhum outro lugar é privado. Eu
sei que Violet não pode vir aqui, mas...
— Isso não vai ser um problema. — Moya acena a mão com o
cigarro. — Fiz um acordo para que Violet possa vir para o Dois.
— Ótimo. Então aqui. Mas onde?
Elas ficam lá, pensando. A mesa está fora de questão; a parede é
muito visível. A parte de trás da impressão Folies-Bergère pode
funcionar, mas provavelmente é muito pequena. Isso só deixa a
cama, a estante e…
— Oh, okay — Moya sorri, satisfeita por seu cérebro ainda estar
funcionando.
Kit pisca.
— O que é okay?
Moya não responde, porque quer curtir a reação de Kit. Ela apaga
o cigarro e abre o armário. O armário tem uma base pesada e é
grande o suficiente para que ela caiba confortavelmente dentro dele
se estiver brincando de esconde-esconde.
— O que você… — Kit para de falar quando Moya pega um
monte de roupas em cabides e as joga em seus braços. — Você
quer que eu... segure as roupas?
— Coloque-as na cama. — Moya enxota Kit com uma mão. — Vá
em frente, está tudo bem.
Outra braçada de roupas depois, Moya separa os cabides
restantes para emoldurar a parte interna traseira do armário.
— Que tal?
— Engenhoso. — A expressão de Kit é toda maravilha.
É exatamente a reação que Moya esperava, e ela gosta
imensamente.
— Quando não quisermos que seja visto, podemos simplesmente
colocar os cabides na frente.
— Perfeito. — Kit pega sua bolsa. — Eu trouxe tachinhas.
Enquanto Kit guarda todos os cartões dentro do armário, Moya
guarda o excesso de roupas em um baú embaixo da cama que ela
usa para guardar. Tendo ganhado impulso, ela também guarda o
cinzeiro e arruma a roupa de cama e os livros. Empacota um
emaranhado de lenços. Chuta os sapatos em uma pilha. A toalha
úmida vai pendurada em um gancho atrás da porta da frente.
— Você não tem que arrumar por mim, você sabe. — Kit está
meio dentro do armário, então sua voz está um pouco abafada.
— Está tudo bem. — Moya espana as migalhas da mesa de jogo.
— Precisava ser feito.
— Eu tenho que ser honesta com você. — Kit sai do armário,
limpando as mãos. — Estou com um pouco de ciúmes do seu
quarto.
— Ciúmes — Moya bufa. Essa garota nunca para de surpreendê-
la. — Do que? A confusão?
— A privacidade. — Kit morde o lábio. — Quero dizer, meu quarto
é ótimo. E não quero parecer ressentida com Dottie, ela é uma
ótima colega de quarto. A melhor. Mas às vezes é bom ter um
pouco...
— De tempo sozinha? — Moya se apoia contra a mesa em suas
mãos.
— Sei que tenho sorte. Existem lugares piores para se viver do
que o Hall. — As bochechas de Kit ficam com um tom delicado de
rosa quando ela também descansa contra a mesa. — Parece falta
de educação reclamar.
— Você não está reclamando. Todo mundo precisa de privacidade
de vez em quando.
— Às vezes minha cabeça fica cheia — Kit deixa escapar. — E
então eu só preciso... eu não sei. Alguma distância.
— Tempo para pensar — sugere Moya. — Tempo pessoal.
— Isso mesmo — concorda Kit. — Tempo pessoal.
Kit virou a cabeça e seus rostos estão próximos. Apoiadas juntas
assim na mesa de jogo, em frente ao armário, Moya tem plena
consciência do lugar onde seu ombro toca o ombro de Kit. Aquele
lugar é muito quente e confortável.
Moya olha para a constelação de sardas pálidas que circulam
pelas bochechas de Kit, a ponte de seu nariz, e reconhece que elas
são fascinantes. Talvez seja isso que a deixou tão hipnotizada. Uma
emoção inebriante estremece sob a pele de Moya como purpurina.
E é tão tentador ficar desprotegido. É algo que Moya não tinha há
muito tempo.
Mas algumas coisas você simplesmente não diz em voz alta e, às
vezes, não pode confiar em seus instintos. Ela já errou antes, às
custas dela.
Melhor redirecionar a conversa para um território mais seguro.
— Então, deve ser um grande ajuste viver em quartos apertados,
depois do jeito que você cresceu.
— Do jeito que eu cresci? — Kit parece confusa.
— Sua família é da linha principal da Filadélfia, certo? Você
provavelmente tinha um quarto grande só para você e hectares de
terra...
— Oh. Certo. — O rubor de Kit de um momento antes se
desvanece em branco. Ela desvia o olhar. — Sim, eu acho. Embora
eu esteja morando aqui na escola há algum tempo. Anos em
dormitórios estudantis.
— Certo. — O que acabou de acontecer? Kit se fechou como uma
armadilha de Vênus.
Agora Kit se levanta, ergue o queixo para o armário.
— De qualquer forma, está pronto.
Moya se aproxima para ver. Kit prendeu cerca de uma dúzia de
fichas de forma a mostrar as ligações entre elas. Ela também
colocou fotos de Libby e Dinah como eram em vida e alguns
desenhos do layout da lavanderia.
Os olhos de Moya se estreitam, absorvendo tudo.
— Está tudo aí.
— De jeito nenhum. — Kit esfrega a ponta do polegar, que deve
ter se exercitado com as tachinhas. — Nós precisamos de mais.
Muito mais. Deve haver reportagens nos jornais...
— Existem — confirma Moya. — Você viu as últimas notícias nos
jornais? Muitos artigos de “Cuidado, senhoras!”.
— Bem, podemos deixar essas coisas, mas devemos obter cópias
de tudo diretamente relacionado aos assassinatos. E ainda quero
obter o máximo de informações possível do arquivo do hospital,
antes que Violet o leve de volta. E alguns dos cartões são apenas
um título à espera de detalhes, o carro do assassino, o tipo de
faca...
— Mas agora podemos ver o que estamos perdendo — aponta
Moya.
— Tenho medo de não conseguirmos informações suficientes. —
As palavras de Kit saem apressadas. — Que não teremos nenhuma
informação antes de haver outro assassinato. Não quero que
esperemos que a próxima garota morra para progredir.
— Ei, escute. — Moya se vira para ela. — Nós podemos fazer
isso. Você sabe por que podemos fazer isso? Porque é um trabalho
de equipe.
Kit arruma um grampo de cabelo de volta no lugar.
— O que você quer dizer?
— É como trabalhar nas mesas. Códigos nunca são quebrados
por uma única pessoa. — Moya levanta a mão quando Kit abre a
boca, antecipando suas objeções. — Sim, há algumas pessoas de
destaque, como Ann Caracristi, Emil Ferrars e Solomon Kullback.
Essas pessoas são importantes. Mas a maior porcentagem de
código é quebrada por um grupo de pessoas trabalhando juntas. É o
poder de um grupo coletivo de cérebros. É por isso que o Arlington
Hall foi montado dessa maneira.
Os ombros de Kit se endireitam.
— É por isso que tantas garotas trabalham na mesma sala.
— Certo. Porque você pode conseguir uma pausa parcial, e Carol
de Nova Jersey pode conseguir outra parte, e então a
sobreposição...
— Rose…
— …e então Rose junta tudo e faz outra pausa. É assim que se
faz. É um esforço de grupo. — Moya olha para a placa de
assassinato no armário. — E entre mim e você e Violet e Dottie,
temos poder cerebral suficiente para descobrir isso.
— Você acha?
— Eu sei.
— Gostaria de ter sua confiança. — Mas Kit está sorrindo.
Moya fica feliz em ver. Ela se move em direção à estante.
— Relaxa, tenho muito para compartilhar. Então acabamos com o
quadro de assassinatos. Você quer uma bebida?
— Uh, eu… — A cor de Kit voltou. Ela muda de posição. — Eu
disse a Dottie que não demoraria.
— Oh. — Moya percebe que Kit olha para a porta e é lembrada
mais uma vez por que ela não permite que seus instintos a
dominem. — Ok.
— Então... talvez só uma dose?
Moya faz uma pausa no ato de pegar um copo. Ela olha por cima
do ombro, tentando parecer indiferente.
— Refrigerante? Ou uma bebida de verdade?
Kit molha os lábios.
— Uísque.
— Uma dose de uísque, saindo agora.
Moya está envergonhada porque o leve tremor em suas mãos é
identificado pelo tilintar da garrafa nos copos enquanto ela serve.
Acalme-se, garota. Moya empurra com força as solas dos pés,
obrigando-se a respirar normalmente.
O tremor passa quando ela estende o copo de Kit.
— Aqui está.
— Obrigada — Kit pega com as duas mãos.
— Um brinde a… — Moya contempla a tábua de assassinato em
seu armário. — O que estamos brindando?
— Pegar esse cara? — Kit franze a testa, coloca uma mão no
quadril enquanto levanta o copo com a outra. — Não, espere. Ele
não deve ser o foco de nada. Digamos... ao esforço em grupo.
— Tudo bem, então. Ao esforço em grupo.
Elas tocam os copos e o cristal faz um som de sino.
CAPÍTULO QUATORZE

Há um velho provérbio de mineiro: ouro está onde você o


encontra.
— COLONEL PARKER HITT

— Minha vez — Edith Faber diz baixinho. Ela recolhe sua bolsa com
todos os seus documentos de identidade. As outras garotas na sala
acenam com a cabeça ou acenam para Edith.
Kit a observa partir. O progresso nas revisões tem sido lento, mas
constante. Todos os dias desta semana, diferentes garotas deixaram
a sala com precisão alfabética para ir ao ginásio, e todos os dias Kit
sentiu suas costelas apertarem mais. É como esperar a chegada da
morte rastejante.
Ela exala, concentra-se no que está fazendo. Ela, Opal e Brigid
estão trocando cartas, trabalhando na verificação de soma do
sistema de mensagens. A verificação de soma destina-se a proteger
as transmissões contra mensagens distorcidas, mas às vezes é um
ponto fraco que eles podem usar para encontrar uma maneira de
entrar. Elas passaram os últimos dois dias encadeando os números,
procurando o mesmo aditivo repetido, mas isso não parecia levar a
lugar nenhum.
Agora é sábado e as coisas estão ficando agitadas. Mais e mais
mensagens estão chegando e os cartões estão inundando. Dottie
está perdendo os pés – Kit está feliz por não ser a única que vai e
volta do registro e da análise de tráfego, porque ela ficaria aleijada
por seus próprios sapatos após um único turno. O volume de tráfego
é desconcertante, porque não foram informadas de que nada disso
é urgente. Está tudo marcado como “rotina”, o que sugere que a
ação está esquentando em pequenas ilhas distantes do Pacífico.
No lado positivo, o aumento do volume significa mais
profundidade. Kit se debruça sobre suas cartas, o lápis se movendo,
e depois de um tempo ela se esquece da revisão de identidade, não
percebe o tempo passar, até que Brigid dá um tapinha em seu
ombro.
— Kit? São quatro horas.
Kit olha para cima, distraída.
— Mas só falta mais uma fileira.
— Deixa pra lá, querida — diz Brigid, sorrindo gentilmente. —
Acabou o turno. As meninas no corredor estão esperando por suas
cadeiras. Você não tem outro lugar para estar?
Ela tem, lembra Kit. Ela pega o casaco e se move.
Uma parada de meia hora em seu quarto, para descansar os pés.
Ela tem tentado alternar os saltos continentais com um velho par de
sandálias de salto alto de Katherine, mas são piores, e ela tem que
usar meias mais grossas com as sandálias. Ela troca os sapatos e a
camisa e junta suas coisas.
Andar pela escola carregando a bolsa parece estranho, mas todo
mundo está fazendo isso no momento, por causa da revisão. Se Kit
passar pela revisão, ela terá que descobrir outra maneira discreta de
transportar a papelada: carregar uma pasta de papéis dentro do Hall
parece uma violação de segurança.
Mas atualmente ela não tem estratégia para passar na revisão. Kit
se olha no espelho e arruma o cabelo. Uma coisa de cada vez.
Ela sai do dormitório e fecha a porta. Ela não está esperando por
Dottie; no início do turno, Dottie disse que precisava buscar algo
antes da reunião. E Kit não tem certeza se Violet termina seu turno
na cabana ao mesmo tempo que as meninas terminam no Hall. O
que significa que Kit pode chegar ao quarto de Moya antes de todo
mundo.
Ela e Moya terão um momento para conversar. Sozinhas.
Kit sente uma efervescência quente e doce dentro do peito. O que
é isso? Ela não tem certeza. Ela sempre admirou Moya de uma
distância segura. Moya é intelectualmente perspicaz, mas também
sabe o que pensa; Ela sabe quem ela é. Ela dirige seu próprio
navio, e isso é admirável. Kit sempre apreciou o senso de
compostura controlada de Moya – mas algo mudou. Agora Kit
começou a pensar sobre o quanto ela gostaria de ver aquele
controle escorregar…
E ela se sente menos intimidada, de alguma forma. Talvez tenha
sido a experiência que tiveram juntas na Fazenda Arlington. Ou
talvez tenha sido por causa da primeira visita ao quarto de Moya,
quando Kit percebeu que a desvendada e confusa Moya por trás do
glamour é na verdade a verdadeira Moya.
O mais difícil de ignorar é aquela vez, alguns dias atrás, quando
elas conversaram pela última vez. Elas estavam encostadas na
mesa juntas, e havia um... um sentimento entre elas. Kit não sabe
como descrevê-lo. Mas ela tem certeza de que não era a única a
sentir isso.
E agora aqui está ela, descendo as escadas para o quarto de
Moya novamente.
Essa expectativa, prazer e nervosismo agradável não é algo que
ela experimentou com Katherine. Mas ela e Katherine cresceram
juntas, até certo ponto. O progresso de sua amizade parecia natural,
quase predeterminado. E ela e Katherine eram muito parecidas. Tão
parecidas que Kit descobriu que é muito fácil assumir a identidade
de Katherine. Muito parecido com os sapatos, o ajuste não é exato,
mas é próximo o suficiente para que a diferença seja imperceptível
para quem está de fora.
Moya é outro caso.
É um pouco assustador – Kit não pode se dar ao luxo de ter
sentimentos como este. Toda a sua vida é uma teia de subterfúgios.
Ela não quer se machucar ou machucar outra pessoa. E depois há a
necessidade de discrição. Nada aconteceu ou foi dito que pudesse
revelar seu interesse ou a reciprocidade de Moya. Kit nem sabe
como isso pode funcionar, e falar abertamente é sempre arriscado.
Mas – mas! – algum fio tenso dentro dela vibra na presença de
Moya. Em breve ela terá que falar, ou irá explodir com a tensão.
Kit alisa o suéter nos quadris enquanto desce as escadas para o
Dois e é imediatamente distraída pela visão de alguém – alguém em
particular – caminhando pelo corredor em sua direção. Moya está
vestindo uma camisa branca de colarinho, severamente abotoada,
com uma gravata preta afiada. Ela também está usando uma saia
lápis preta, o que é uma surpresa porque saias não são seu estilo
usual. Carregando sua própria pasta de papéis e uma jaqueta
pendurada no braço, ela parece muito oficial. Seu cabelo está preso
em cachos elegantes, presos de cada lado. Ela quase se parece
com uma das garotas do WAVES.
Kit se permite um momento de apreciação arrepiante. Uau.
— Estamos na biblioteca — Moya diz baixinho ao chegar. — Eu
precisava dar uma desculpa para colocar Violet no Dois, então eu
disse que nós começamos uma sociedade de apreciação de
palavras cruzadas. Vamos.
Kit a segue até o próximo lance de escadas.
— Você disse que estamos fazendo um clube de palavras
cruzadas?
— Bem, estamos resolvendo um quebra-cabeça, não estamos?
— O olhar de Moya é divertido. — Não poderemos usar sua tábua
de assassinatos no armário hoje, mas depois dessa primeira
“reunião do clube”, direi apenas que continuaremos no meu quarto.
Como isso soa?
— Plausível — admite Kit. Ela dá a Moya um olhar divertido
enquanto atravessam as escadas. — Linda saia.
Moya revira os olhos.
— Tive que apresentar um relatório formal ao comitê com o
coronel Corderman, e não havia tempo para me trocar. Venha me
ajudar a me preparar.
Quando elas abrem a porta indefinida da biblioteca, Violet já
chegou. Ela está com uma saia elegante cor de amora e uma
camisa branca com gola pontiaguda e uma jaqueta cinza decotada.
Seus olhos estão brilhando, e Kit acha que é provável que ela tenha
acabado de sair correndo da cabana: seus sapatos estão úmidos e
ela tem uma aparência fresca e externa.
— Oi. — Ela desliza o livro que estava folheando de volta ao seu
espaço na estante. — Moya, com essa roupa, parece que você está
prestes a me fazer uma continência.
— Não me tente. — Moya descarrega sua papelada na mesa de
centro na altura do joelho perto de uma das poltronas. — Estou feliz
que você pôde vir. Você teve algum problema para fugir?
— Não. — Os lábios de Violet se curvam. — Termino às quatro,
como todas vocês. Então eu disse aos meus pais que estou
pegando o último ônibus e o Sr. Coffee aprova. Se o Sr. Coffee
aprovar, meu pai e minha mãe acham que está tudo bem.
— O que você disse ao Sr. Coffee?
— A mesma coisa que eu disse a todo mundo: é um clube de
palavras cruzadas. O Sr. Coffee nos encoraja a tirar um hobby do
trabalho. E ele está feliz por eu estar me misturando com outras
garotas da escola porque, por um lado, ele é totalmente a favor da
dessegregação e, por outro, sou a decifradora mais jovem que ele
tem.
A testa de Moya franze.
— Ele parece ser um cara legal. Lamento que você tenha que
mentir para ele.
— Ele é um cara legal, mas tem que ser feito. — Violet dá de
ombros e sorri. — E você sabe que adoro essas palavras cruzadas.
Entre as três, é um trabalho curto reorganizar a mesa de centro
para um local entre as poltronas e o sofá chesterfield. Elas não têm
nenhum refresco para sugerir uma reunião do clube, mas Moya
trouxe uma pequena pilha de quebra-cabeças de jornais e Violet
recolhe alguns dicionários e um velho dicionário de sinônimos nas
prateleiras. Kit gostaria que a reunião delas fosse realmente sobre
algo tão inócuo quanto palavras cruzadas.
— Ah, eu tenho o arquivo do hospital. — Ela puxa o arquivo
grosso de sua bolsa e encontra um lugar para sentar no sofá ao
lado de Violet.
Violet pega o arquivo.
— Obrigada. Vou devolvê-lo a Ruth amanhã à tarde.
— E eu escrevi as anotações do meu encontro com o detetive
Whitty — diz Moya, provocando os papéis de sua pilha. — Além
disso, aqui estão as cópias dos relatórios da Fazenda Arlington, de
Dottie, Kit e meu.
Está silencioso enquanto elas examinam a papelada nova e
antiga. Kit pode ouvir um carro sendo ligado no estacionamento do
lado de fora, além da janela da biblioteca. A sala está fria e Kit está
feliz por suas meias e suéter. Moya veste a jaqueta, o olhar
abstraído enquanto ela se debruça sobre as anotações.
— Então, do jeito que eu vejo — diz Violet, arregaçando os
punhos — temos dois objetivos principais. Desenvolver uma ideia de
quem é o alvo do assassino e uma foto do próprio assassino.
— Ele tem como alvo as garotas do governo. — Moya bate o lápis
no joelho. — Jovem, bonita. Ele não é exigente quanto à raça.
— Precisamos de mais informações sobre as vítimas. Sobre o
assassino, já sabemos muito. — Kit vasculha para cartões em
branco. — Ele tem um metro e oitenta de altura. Ele é simpatizante
do nazismo.
— Devemos verificar os arquivos antigos sobre a filiação a
Aliança Teuto-Americana — diz Violet, fazendo uma anotação. —
Haverá algo no Departamento do Tesouro.
— É uma boa ideia — concorda Kit. — A outra coisa que
sabemos sobre esse cara é que ele é esperto.
— Esperto... por causa das luvas? — Moya pergunta.
— Sim. Ele é um planejador, isso significa que ele é inteligente.
— E você sabe, ele provavelmente é bonito — diz Violet.
As batidas de lápis de Moya param.
— O que te faz dizer isso?
— Pense nisso. A polícia presumiu que o assassino seguiu Libby
de Idaho até a lavanderia. Mas já sabemos que muito do que a
polícia assumiu estava errado. E se o assassino a convenceu a
sair?
— Ele tem que ser bonito para isso? — Kit pergunta.
— Com certeza ajuda.
— É possível — Kit concorda, balançando a cabeça. — Vou
colocar isso como especulação, mas, na verdade, isso me lembra
algo que Dottie disse: que todos os caras do baile pareciam caras
normais.
— Sim, ele é apenas um cara normal, totalmente americano… —
Moya reflete.
— Ele provavelmente é branco. — Violet absorve os olhares das
outras garotas. — Quero dizer, você sabe que os bailes na Fazenda
Arlington são segregados, certo?
— Não, eu não sabia disso — diz Kit, surpresa. Ela pega outro
cartão.
— E me corrija se eu estiver errada — continua Violet —, mas
Libby parecia bem tradicional. Uma garota como Libby
provavelmente não iria com um homem negro, mesmo se ele
estivesse de uniforme.
— Um homem branco inteligente e bonito de um metro e oitenta
de altura... — Kit franze a testa e balança a cabeça. — Ele deve ter
parecido um bom partido.
— Sem falar que ele é rico — Dottie diz da porta. Ela se parece
com uma loira curvilínea Rita Hayworth. Ela está usando seu vestido
vermelho de bolinhas novamente, mas desta vez reforçado com
meias quentes e confortáveis, um suéter creme aconchegante e um
casaco comprido. Seu cabelo está preso com uma fita vermelha
atrevida e ela está carregando um livro de palavras cruzadas e uma
caixa de lápis. Ela fecha a porta atrás de si. — Desculpe estou
atrasada.
— Acabamos de começar — diz Violet. — Gostei do seu vestido.
— Obrigada! — Dottie sorri. Depois de puxar uma poltrona para
mais perto, ela enfia as saias para baixo para se sentar e tira um
pedaço de papel pesado dobrado do livro de quebra-cabeça. —
Moya, é disso que você precisava?
Dot joga o livro de quebra-cabeça de lado, abre o papel e Kit pode
ver o que é.
— Um Mapa De Washington, Dc E Arredores — Kit lê na legenda
de um lado. — Isso é inteligente.
— Sim, isso é perfeito. Coloque-o aqui. — Moya abre espaço para
o mapa na mesinha de centro.
— Volte atrás um pouco — diz Violet. — Como esse cara é rico?
Dottie tira os braços do casaco e o enrola atrás de si.
— Carro particular porque ele estaria coberto de sangue, lembra?
A maioria dos meninos vem para a Fazenda de ônibus ou táxi,
alguns até de bicicleta, mas não consigo imaginar nosso assassino
fazendo isso. Caras que dirigem seus próprios carros geralmente
são elegantes. Os únicos outros veículos são carros de serviço, que
geralmente transportam grupos, ou vans de entrega.
— Faz sentido — admite Violet. — E sobre o mapa?
— Precisamos manter o controle de locais. Havia uma cópia
sobressalente, então... peguei emprestado.
— Eles vão sentir falta lá em cima? — Kit pergunta.
— Duvido... eles estão interessados principalmente em mapas do
norte da África e das Filipinas no momento. — Dottie tira um lápis de
cor vermelha da caixa que trouxe e faz um círculo no mapa. — Aqui
está a Fazenda Arlington. Olha, tem uma coisa que está me
incomodando. Violet, você disse que Dinah foi morta no centro da
cidade. Pode me mostrar onde?
Violet pega o lápis, examina a área em questão, faz um círculo.
— Aqui... na Linha da Embaixada.
— Não é muito longe de onde aconteceram os protestos sindicais
sobre os salários das mulheres. — Dottie pega o lápis e inclina a
cabeça. — Tem certeza de que foi lá que ela foi encontrada?
— Sim. Foi o que a polícia disse aos pais dela.
— Mas você disse que Dinah trabalhava na Munições, e ela
pegou o ônibus para casa. — Dottie aponta no mapa com a ponta
do lápis vermelho. — O prédio das Munições fica aqui, na
Constitution Avenue. Moya e eu conhecemos aquele prédio, é onde
a Inteligência de Sinais ficava antes que os escritórios do Exército
dos Estados Unidos ficassem muito lotados e o Departamento de
Guerra nos instalasse aqui no Hall. O ônibus para Arlington segue
direto pela Constitution Avenue.
— Sim, isso é estranho. — Moya afrouxa o nó da gravata e o
primeiro botão da camisa. Sua atenção ainda está no mapa. —
Dinah poderia ter pego aquele ônibus bem na porta da Munições e
estar em casa em meia hora. Se ela foi encontrada na Linha da
Embaixada, ela estava fora de sua rota normal.
— Então... como Dinah foi parar no Centro? — Kit pergunta.
Violet mastiga a ponta do lápis.
— Eu apenas presumi que ela foi até o Segundo Batista para o
serviço.
Kit mede as distâncias com o dedo.
— Ela faria todo aquele caminho para o serviço tão tarde? Eles
realizam um serviço lá tão tarde?
Violet semicerra os olhos.
— Para ser honesta, eu não sei.
— Tenho certeza de que podemos descobrir — Dottie garante.
Violet esfrega as têmporas.
— É como se cada pedaço de informação que obtemos criasse
novas perguntas.
— Não, isso é bom. — Kit olha para ela. — Queremos novas
perguntas. Porque as respostas a essas perguntas serão novos
dados. Será uma maneira de conseguir. Sempre há uma maneira de
conseguir. Lembra-se dos requisitos do capitão Hitt para decifrar
códigos?
Violet assente. É uma das primeiras coisas que as novas garotas
de código são encorajadas a aprender durante a indução.
— Primeiro requisito de Hitt para sucesso na quebra de códigos:
análise cuidadosa dos dados.
— Em segundo lugar, perseverança — acrescenta Dottie.
— Intuição — pronuncia Moya.
— E sorte — conclui Kit. — Todas essas coisas combinadas nos
dão a maior oportunidade de sucesso. Temos a intuição e a
perseverança. Faremos nossa própria sorte. E análise cuidadosa
dos dados... Isso significa apenas que precisamos de mais dados.
— Acho que precisamos das informações da polícia sobre o caso
de Dinah — diz Moya. — O que é um obstáculo. Eu poderia voltar
para falar com o detetive Whitty, mas ele não vai me deixar tirar uma
cópia desse relatório.
Dottie franze a testa.
— E ele nem mesmo acha que os dois casos estão relacionados.
— Então precisamos de outra fonte. — Moya tem uma expressão
de aço, como se estivesse focada em um problema de código
particularmente complicado. — Kit, você mencionou algo... sugeriu
descobrir o que foi dito sobre os assassinatos nos jornais.
Kit assente.
— Sei que tem havido muitos artigos sensacionalistas, mas se
pudéssemos encontrar alguns que forneçam mais fatos, seria útil,
sim. Tudo é útil.
— Talvez eu conheça alguém que possa ajudar com isso.
As sobrancelhas de Dottie se erguem.
— Alguém nos arquivos?
— Não. — Moya balança a cabeça. — Um repórter.
— Você conhece um repórter?
Violet olha para cima, esperançosa.
— Os repórteres obtêm informações da polícia que nós não
conseguimos.
— E este repórter tem conexões. — Moya morde o lábio. — Se
ele ainda estiver trabalhando na área do crime, ele saberá.
— Ele? — Kit tenta não soar muito intrometida.
— Raffi. — O olhar de Moya se volta para dentro. — Mas já faz
anos... — ela se descontrola. — Vou tentar mandar uma mensagem
para ele.
— Para qual jornal ele trabalha? — Violet pergunta.
— O Washington Star... foi onde ele estagiou, pelo menos.
— Ele estaria interessado em se encontrar conosco?
— Talvez. — Moya considera. — Se ele ainda estiver em DC. E
se ele pensar que há uma história nisso, com certeza.
Uma história. Kit sente um movimento nauseante e levanta os
olhos rapidamente.
— Teríamos que manter nossos nomes fora dos jornais.
— Absolutamente — afirma Moya. — Essa é a última coisa que
alguém do Hall deseja. — Ainda pensando, ela afasta a gravata do
pescoço. — Mas acho que ele se encontraria conosco. Não aqui,
em algum lugar da cidade. Dê-me quarenta e oito horas para
descobrir.
Dottie sorri.
— Então... parece que a Sociedade de Apreciação das Palavras
Cruzadas vai fazer uma viagem de campo.
CAPÍTULO QUINZE

Bem, nós fizemos muitas coisas. Nós jogamos tênis.


Fomos ao teatro... Kully – o coronel Kullback – era um
grande entusiasta do softball e costumava patrocinar
torneios de softball... Havia muita atividade social.
— ANN CARACRISTI

Desde o momento em que Moya disse a eles que o encontro com o


repórter estava acontecendo naquele momento, parado no corredor
de um ônibus municipal em uma noite de segunda-feira, Kit odeia
excursão.
— Kit, anime-se — sussurra Dottie. — Parece que você está indo
para um funeral, não para uma noite na cidade.
— Ok — Kit se agarra à borda do encosto do banco mais próximo
e estende a outra mão para ajustar a bainha.
— E deixe a bainha em paz ou vai estragar a costura da meia que
desenhei.
— Desculpe.
— E pare de se desculpar! — Dottie se vira para que suas
cabeças fiquem mais próximas. — Oh, querida, você está realmente
tendo dificuldades com isso, não é? É a multidão?
Quase não há espaço para encolher os ombros, mas Kit levanta e
abaixa um ombro. O ônibus está definitivamente lotado. Hoje em dia
não há assentos vagos, então ela e Dottie estão amontoadas com
estranhos por todos os lados. As meninas estão saindo à noite, indo
para seus empregos nas linhas de produção da fábrica, indo para
casa. Jovens militares brincam uns com os outros sobre os planos
da noite. Há um zumbido baixo de conversa, o ar cheira a óleo de
cabelo e gasolina e, em algum lugar perto dos fundos, um bebê está
chorando. Mas Kit não está ansiosa por causa da multidão.
Ela simplesmente não gosta de sair do Hall.
Arlington Hall é seguro. Kit conhece todo mundo lá e sua
identidade está firmemente fixada na mente das pessoas. O mundo
lá fora é um jogo de bola completamente diferente. Kit não conhece
as ruas de DC e não tem ideia de para onde está indo, o que está
fazendo, como se comportar. Alguém certamente olhará para ela e
perceberá: “Essa garota está fingindo”. É o culminar de inúmeros
cenários de pesadelo em que ela é exposta pelo que realmente é:
uma fraude, uma ladra de identidade, um monstro.
Ela prepara as pernas para se equilibrar enquanto o ônibus
sacoleja sobre o concreto da Arlington Memorial Bridge. A noite caiu
sobre Washington, DC. Elas vão se encontrar com Moya e Violet no
bar de um hotel às sete e meia.
Kit enxuga a testa com o punho da luva.
— Está quente aqui. Você está com calor?
— Está um pouco quente, claro. — Dottie morde o lábio, sua
expressão preocupada. — Você pode ver pela janela? Passaremos
pelo Lincoln Memorial em breve. Ajuda se olhar a paisagem?
Ajuda um pouco. Pelas janelas obscuras, um cenário escuro
passa: as luzes da cidade refletindo na água do Potomac, as
sombras enormes dos edifícios.
Dottie – com as bochechas rosadas, os olhos brilhando com a
perspectiva de uma noite na cidade – dá um tapinha no ombro de
Kit para encorajá-la.
— Pelo menos você tem roupas ótimas para sair. Você parece
ótima.
Kit teve que vasculhar os níveis mais baixos do baú de Katherine
para um vestido de festa azul meia-noite com acessórios
combinando. O decote é cortado reto na clavícula e preso na
cintura, com um pequeno laço de cetim no decote. Há outro laço
azul meia-noite para o cabelo, além de uma bolsa branca e luvas
brancas e sandálias brancas de tiras.
Dottie se esforçou por horas, montando suas roupas, e Kit ficou
grata por essa ajuda.
— Você também — ela oferece. — Você fica ótima com essa cor.
— Ah, obrigada! — Dottie responde.
Dottie está linda em seu vestido verde-claro, o tecido drapeado
em V da gola até o corpete, a saia ondulada e macia, enfatizando as
curvas de Dot. Um lindo broche em forma de gato preto está preso
ao lado de seu busto generoso. Com seus cachos cor de mel e seu
batom brilhante, ela é um nocaute.
Kit se pendura no banco do ônibus e em sua bolsa enquanto o
ônibus faz uma curva. Isto é normal. Garotas normais saem e se
divertem. Talvez garotas normais não encontrem repórteres para
beber para descobrir casos de assassinato horríveis, mas pelo
menos ela e Dottie têm roupas elegantes.
Mas Dottie está certa: chegará um dia – talvez antes do que Kit
esperava, com a revisão chegando – em que ela terá que sair
sozinha. Esta viagem para a cidade é uma boa prática.
O ônibus sobe a Seventeenth Street NW e Dottie abre caminho
até a porta para que possam sair na próxima parada. Quando elas
finalmente conseguem descer do ônibus para a calçada, Kit
descobre que pode respirar um pouco mais fácil. A brisa da noite é
fresca e a cidade não tem um cheiro particularmente limpo, mas a
mistura de aromas é intrigante: o cheiro de escapamento, o cheiro
de ferro do asfalto, o leve cheiro de lixo, a cadência do perfume
feminino.
Kit arruma suas roupas.
— Como chegamos ao Hay-Adams daqui?
— Ok, essa é a rua H. — Dottie aponta. — Nós vamos para a
direita e são dois quarteirões para lá.
— Você conhece bem a cidade.
Dottie sorri.
— Peguei aquele mapa emprestado, lembra? Vamos.
Ela avança, demonstrando como navegar na calçada e no tráfego
da cidade que cruza as proximidades. Há muita gente por perto:
garotas do WAVES, grupos de damas fantasiadas, homens mais
velhos de terno. O concreto sob os pés está úmido de uma chuva
anterior, e os postes de luz e painéis estão brilhando no escuro. A
noite em DC é um reino dos sonhos, e Kit absorve tudo. Mas há um
lampejo ocasional de realidade: pôsteres antigos com desenhos de
trabalhadores furiosos levantando os punhos e o slogan
DESPEÇAM MULHERES – CONTRATE HOMENS grita ao lado de
outros pôsteres exortando EMPUNHEM ARMAS – JUNTE-SE À
MARINHA!
Kit segue Dot com determinação, ignorando a mordida em seus
pés causada pelas tiras da sandália.
— Quem você acha que é esse repórter, aquele com quem vamos
nos encontrar?
— Isso é um mistério — diz Dottie. — Talvez Moya o conhecesse
de quando ela trabalhava na Notificações ou algo assim?
Kit se lembra do murmúrio suave e reflexivo de Moya na biblioteca
no sábado... Mas já faz anos...
— De alguma forma, acho que não.
— Então ele deve ser um velho amigo de Moya. — Dottie
gesticula para encorajar Kit a atravessar perto da Lafayette Square
para que eles não caminhem em uma área sem iluminação. — Acho
que vamos descobrir.
Mais meio quarteirão, então o grande edifício branco do hotel está
se erguendo entre os outros edifícios, grandioso e imponente. Antes
de chegarem à esquina da Rua Dezesseis, Kit vê a entrada
iluminada do porão do hotel. Uma discreta placa dourada revela que
o bar se chama Extra Oficial – um nome completamente apropriado
para um lugar onde elas estão encontrando um repórter.
Um casal elegantemente vestido desce as escadas. Murmúrios e
música saem no retrocesso da porta sendo aberta e fechada.
— Vamos entrar? — Kit examina a rua. — Ou esperamos por
Violet?
— Não sei. — Dottie puxa seu xale para mais perto; ela e Kit
usam agasalhos para se proteger do frio da noite. — Acho que
vamos entrar. Violet já deve ter chegado. E está congelando aqui
fora. — Elas beliscam as bochechas para dar cor e descem as
escadas.
Atrás de uma porta pintada de vermelho, o resto do bar de teto
baixo também é decorado em vermelho: paredes de mogno,
banquetas estofadas em veludo vermelho, mesinhas escuras com
pequenas luminárias. A música está tocando, sensual e silenciosa.
Todo o lugar cheira a álcool caro, cigarros e estilo.
Kit luta contra uma onda de pânico. Nunca em sua vida ela
pensou que chegaria a frequentar um lugar tão sofisticado quanto
este. Ela podia imaginar ser uma funcionária atrás do bar, talvez, ou
uma faxineira depois do expediente, mas não uma cliente.
Então ela vê Moya de pé ao lado de uma mesa, acenando para
elas e sinalizando para o barman. Ela parece uma visão: sua blusa
é dourada e sedosa, com um decote em V na frente, e suas calças
largas são de um rico marrom caramelo. Seu cabelo está enrolado
em um coque preto brilhante. Uma estola de pele escura desliza
elegantemente de um de seus ombros.
Todos os outros pensamentos fogem da cabeça de Kit
imediatamente. Ela umedece os lábios e tenta disfarçar o sorriso
para uma potência mais aceitável enquanto se dirigem na direção
de Moya.
— Comprei martinis para vocês — diz Moya, como forma de
saudação, ao se aproximarem da mesa. — Onde está Violet?
Dottie tira seu xale de veludo preto enquanto se senta.
— Achamos que ela já estava com você.
— Ainda não. Mais precisamente: onde está Raffi? — Moya
verifica o relógio. — Ele deveria estar aqui há quinze minutos.
Droga, aquele garoto nunca consegue ser pontual.
Kit encontra um lugar ao lado de Dottie na banqueta, tira as luvas
e o xale de cetim branco, acomoda a bolsa no colo. Se ela assistir o
que as outras garotas fazem, copiar ao pé da letra, há uma chance
de ela conseguir isso.
O barman entrega dois martinis para complementar o que já
estava na frente de Moya – ela entrega a ele um dólar de sua bolsa
enquanto Dottie termina de falar sobre o caminho que elas fizeram
para chegar aqui.
— ...no momento em que encontramos o lugar. Você sabe se
Violet pegou um ônibus ou um táxi?
— Não faço ideia, mas acho que ela vai aparecer logo — diz
Moya, erguendo seu martíni pela metade. — Bebam, senhoritas.
Kit observa como Dottie e Moya seguram suas taças. Ela levanta
a sua com cuidado e toma um gole. O líquido é forte, com uma
acidez oleosa e frio congelante; as pontas dos dedos formigam e
seu rosto esquenta quando o primeiro gole de martini desce por sua
garganta.
Dottie lambe os lábios.
— Este é o tipo de viagem de campo que eu poderia me
acostumar.
O que está errado, pensa Kit. Elas estão aqui porque duas
meninas foram assassinadas. Parece quase repugnante para ela
estar se divertindo.
— Este bar pode estar abafado — diz Moya —, mas eles fazem
um ótimo martini. Oh, espere, lá está ela. Violet!
Ela se levanta para gesticular para o membro mais jovem da
equipe. Kit estica a cabeça e vê uma pequena figura hesitando do
lado de dentro da porta. Então o rosto de Violet se ilumina e ela se
aproxima.
— Eu não tinha certeza se deveria entrar direto — diz Violet. —
Uau, vocês garotas se limpam muito bem.
— O mesmo para você — diz Dottie. — Puxa, você está ótima!
— Ora, obrigada — Violet parece satisfeita. Ela está usando um
vestido lilás com saia rodada e um bolero combinando com debrum
branco. O tecido do vestido tem um brilho suave e, com os cabelos
enrolados, ela parece elegante, com mais de dezessete anos. —
Onde posso conseguir uma cadeira por aqui?
— Vou encontrar uma cadeira para você — diz Moya. — E uma
bebida... coquetel virgem, certo?
— Você entendeu — diz Violet, mas antes que ela possa se
sentar, o barman chega e começa a falar em voz baixa com Moya.
Moya, ainda de pé, faz uma careta para ele.
— Com licença? Quer repetir isso, porque acho que não ouvi
direito.
Kit vê a mudança de expressão de Violet e sabe que haverá
problemas. Ela se levanta de seu lugar na banqueta e se inclina
para Violet.
— Ele não quer servir você?
Violet dá de ombros um pouco, sua boca em uma linha sombria.
— Oh, há muitos lugares assim na cidade. Eles dizem que estão
abertos, mas o que querem dizer é que estão abertos apenas para
brancos.
Dottie parece confusa.
— O que está acontecendo?
Moya diz:
— Ouça, senhor… — e Kit mal tem tempo de pensar Isso pode
ficar feio, quando uma nova pessoa aparece entre o barman e
Violet. Ele é um jovem alto e esguio, de pele morena, em um terno
de ombros largos. Ele tem ombros para usá-lo também.
— Senhoras, que bom ver vocês. — Seu chapéu fedora está em
um ângulo libertino sobre seu cabelo escuro, e seu sorriso é largo.
— Estamos tendo um pequeno problema aqui?
— Raf? — Os olhos de Moya se arregalam por um momento,
antes de ela virar a cabeça para encarar o barman. — Não sou eu
que tenho problemas.
— Não se preocupe com isso — diz o jovem. — Você já pagou
por essas bebidas? Ótimo. Então beba rápido... vamos embora.
— Vamos sair do bar? — Dottie lamenta.
— Relaxe, querida. Conheço um melhor. — Quando o jovem sorri,
covinhas gêmeas aparecem em suas bochechas. — Ótimo vestido,
a propósito. Muito va-voom. Senhoras, vamos?
É um turbilhão, pensa Kit, um turbilhão de machos dinâmicos.
Mas, em menos de um minuto, seus copos de martini estão vazios e
eles estão todos do lado de fora na calçada escura enquanto “Raf”
chama um táxi, que rapidamente para no meio-fio.
— Vai ser um aperto, mas não vamos longe — diz ele.
Ele está certo – é bem apertado com todos os cinco no carro, e o
taxista resmunga.
— Cinco minutos — responde Raf — e farei valer a pena. Leve-
nos até a Sixteenth e vire à direita na esquina da U Street com a
Eleventh.
— As Cavernas? — o taxista pergunta.
— Exatamente — Raf se vira de sua posição ao lado do motorista
e estende a mão para Kit no banco de trás. — Raffi Ramale,
Washington Star, prazer em conhecê-la.
Kit ainda está sentindo o ronronar quente em seu estômago por
causa do martini, e ela não pode deixar de rir de sua expressão
arrogante enquanto ela aperta sua mão.
— Kit Sutherland. Oi.
— Você é ruiva — diz Raffi, com o sorriso ainda mais iluminado.
Ele se vira para olhar para Moya, espremida perto da janela no
banco da frente ao lado dele. — Você não me disse que tinha uma
ruiva na sua gangue de garotas!
— Eu não te contei muita coisa, exceto onde nos encontrar —
Moya fala lentamente, mas seus lábios estão levantados nos cantos.
— É ótimo ver você, Moya — diz Raffi. — E desculpe meu
francês, mas caramba, você está linda. Por que você não se casou
comigo, antigamente?
— Por que não me casei com você? — As sobrancelhas definidas
de Moya. — Provavelmente porque você tinha treze anos e eu doze,
e sua mãe achava que eu era um inferno.
— Mas veja como você ficou... — Raffi sorri de novo e beija a
bochecha dela, antes de se virar para se apresentar a Dottie. — Va-
voom! É um prazer conhecê-la adequadamente.
— É sim — Dottie ri, apertando sua mão. — Dottie Crockford.
— É um prazer, Dottie. — Ele estende a mão para Violet. — E oi...
eu pediria desculpas por roubar você daquele bar, mas você não iria
querer bebidas medíocres e serviço ruim de qualquer maneira.
— Na verdade, não — diz Violet, enquanto eles se
cumprimentam. — Violet DuLac.
— Uma violeta vestindo violeta… touché — diz Raffi, tocando a
aba do chapéu, mas é imediatamente distraído pelo taxista parando
o carro. — Só um pouco mais abaixo? Perto da antiga Caixa
Econômica Industrial... É isso, bom homem. Senhoras, esta é a
nossa parada.
Raffi paga o taxista e eles se amontoam em uma rua muito
diferente – uma com ruas largas e muita vida noturna. Mulheres
jovens em seus melhores trajes, homens de terno e homens de
jeans, crianças correndo na calçada, matronas em pele de raposa...
Todos eles são escolhidos sob as luzes de lâmpadas brilhantes e
neon.
Kit não conhece a cidade, e esta área é muito diferente das ruas
de aparência formal perto do Hay-Adams. Existem farmácias e
salões de beleza e restaurantes de chili e mercearias todos lotados
nos mesmos quarteirões, e uma marquise de teatro é iluminada nas
proximidades. O asfalto está lotado de carros e táxis.
Kit examina a cena em confusão.
— Onde estamos?
— No coração palpitante de Cardozo. — Raffi pisca para ela
enquanto as conduz pela calçada. — Todo este quarteirão está
cheio de juke-clubes, cabarés e bares.
— E para qual vamos? — Dottie pergunta, tentando acompanhar.
— Por aqui.
Raffi as conduz pela Eleventh Street até um curioso prédio de
esquina com lâmpadas piscando na fachada. Ele recebe um aceno
de alguém na porta quando eles milagrosamente contornam a fila do
lado de fora, e ele aperta a mão das pessoas no caminho. Então há
um lance de escadas descendo e eles chegam a uma entrada
redonda esculpida. Kit pode ouvir o barulho e a música da multidão.
Raffi estende a palma da mão.
— Damas primeiro.
Kit segue Moya pela entrada e olha em volta maravilhada. O
taxista disse “As Cavernas” e ela pensou que era apenas um nome
chique, mas é como uma caverna de verdade aqui. As paredes são
lascadas de pedra, estalactites penduradas no teto. Enquanto uma
caverna seria fria, esta é quente, abarrotada de pessoas e mesas
cobertas de branco.
Uma banda está tocando no palco; um homem de calças justas e
suspensórios está balançando na frente do microfone. Silhuetas
tremeluzem à luz das velas, vestidos femininos brilham como jóias
do arco-íris e alguns casais dançam na pequena pista. Há o
burburinho da conversa, o estouro das risadas, o cheiro da bebida.
E é uma multidão mista, observa Kit: rostos brancos, negros e
marrons se misturam, todos aqui apenas para curtir a música e a
atmosfera.
A expressão de Violet é extasiada.
— Já ouvi falar deste lugar.
— Como ele se compara? — Raffi pergunta.
Ela sorri.
— Ele se mantém até agora.
— Excelente, agora tudo o que temos a fazer é arrumar uma
mesa.
Eles encontram um lugar quando Moya percebe que um pequeno
grupo está saindo; ela se apressa, abrindo caminho entre a multidão
e as mesas, para reivindicar seu lugar antes que alguém possa
roubá-lo. Um garçom chega para pedir as bebidas enquanto eles se
sentam. Raffi recomenda as margaritas enquanto tira o paletó e o
pendura nas costas da cadeira. Ele garante ao garçom que todos
estão na idade de beber e pisca para Kit quando o garçom sai.
Violet está rindo das travessuras da banda, trocando comentários
com Dottie. Até Moya parece mais relaxada.
Kit enfia a bolsa e o xale no colo, batendo os joelhos com Moya
debaixo da mesa. As condições aqui são mais apertadas do que no
Extra Oficial, e eles têm que falar mais alto por cima da música, mas
isso parece mais confortável de alguma forma. Ela está menos
preocupada em observar seus p’s e q’s.
Raffi Ramale inclina seu corpo esguio para trás na cadeira.
— Olhe para mim — diz ele, sorrindo para todas elas — sentado
no Clube Caverna com quatro lindas mulheres. Sou oficialmente o
cara mais sortudo de DC.
Enquanto Kit observa, o sorriso de Raffi muda de maneiras sutis –
seus olhos semicerrados, seu sorriso achatado nos cantos. Há uma
nova dureza de diamante em seu rosto. De repente, ela se lembra:
Raffi não é apenas um cara se divertindo à noite na cidade com os
amigos. Ele é um repórter. Seu charme faz parte de sua técnica
jornalística.
— Agora que estamos todos aqui — diz ele — talvez vocês
amáveis senhoras gostariam de me contar como acabaram
pesquisando um par de assassinatos brutais. Moya, em que diabos
você se meteu?
CAPÍTULO DEZESSEIS

Não, não tínhamos permissão para dizer nada. Assinamos


um compromisso, você sabe. Noivos, pais, amigos, família
– não podíamos contar a ninguém o que estávamos
fazendo pelo esforço de guerra.
— ROSE OVERTON-MITCHELL

— Deixe-me ver se entendi direito. — Raffi usa as mãos quando


está falando, apontando para Violet, Dottie, Kit e Moya
sucessivamente. — Você é a melhor amiga da garota que foi
assassinada no Centro. E você estava na Fazenda Arlington na
noite do último assassinato. E vocês duas entraram na cena do
crime na Fazenda.
— Isso mesmo — diz Moya. Ela bebe sua bebida calmamente.
— E agora todas vocês decidiram fazer um pequeno trabalho
estilo Nancy Drew sobre isso... — Raffi faz uma careta, como se a
visão das quatro estivesse machucando sua cabeça. — Eu sei que
as garotas podem fazer qualquer coisa hoje em dia, mas ainda
parece meio forçado. O que você já sabe sobre esses casos?
— Bastante — Kit fala porque eles precisam disso; elas precisam
que ele entenda. — Sabemos que quem matou essas meninas é um
homem branco alto, rico e bonito. Sabemos que ele dirige seu
próprio carro. Sabemos que ele deixa uma lembrança de seu último
assassinato no local do mais recente. Sabemos que ele estupra as
meninas...
— Jesus — diz Raffi, olhando para longe e para trás em sua
franqueza.
— Sabemos que ele usa luvas, leva uma faca para o local e
depois a leva consigo, o que significa que ele é esperto e cuidadoso.
— Sabemos que ele é simpatizante do nazismo — diz Violet.
— O símbolo que ele cortou nelas — A expressão de Raffi é
plana. — Eu vi as fotos do necrotério.
— E sabemos que ele planeja com antecedência — diz Dottie. —
O que significa que ele vai matar mais garotas se ninguém o pegar a
tempo.
Há uma pausa na música e o público aplaude.
Raffi balança a cabeça.
— Você sabe que essa... essa investigação, ou como quiser
chamar, é loucura, certo?
Violet se inclina para a frente e fala como se ele não tivesse
falado.
— O que precisamos é de mais informações sobre as vítimas,
quem elas conheciam, para onde foram, que rotas seguiram. Posso
fornecer alguns detalhes sobre Dinah, mas obviamente havia coisas
sobre ela e sobre seu assassinato que nem eu sei.
Moya assente.
— A polícia não vai divulgar os detalhes do assassinato de Dinah
Shaw para nós…
— Bem, é claro que não — Raffi zomba, inclinando-se sobre a
mesa com os braços cruzados.
— …e eles afirmam que não tem relação — continua Moya. —
Mas isso simplesmente não é verdade. Precisamos de mais
informações sobre a cena do crime. Precisamos desenterrar
possíveis conexões com a antiga Aliança Teuto-Americana, ou
mesmo com o Primeiro Comitê Americano. E precisamos saber o
que foi dito sobre os assassinatos na imprensa, o que foi
suprimido... e se há mais casos que deixamos de ver.
— Que seria onde eu entro. — Raffi olha para ela. — E devo
contar o que sei porque...?
— Porque podemos dar a você uma pista sobre um grande caso
que atualmente está recebendo muita atenção. — Moya sorri
docemente enquanto toma um gole de sua margarita, antes de ficar
mais séria. — Porque você é um bom homem, Rafael. E você não
quer que mais jovens sejam agredidas e mortas.
Ele está se sentando mais ereto depois de ser chamado de bom
homem.
— O que a faz pensar que pode fazer um trabalho melhor para
descobrir isso do que o departamento de polícia de DC?
— Não somos como a polícia — diz Kit. — Não somos
obscurecidas pelo preconceito. Nós nos preocupamos com essas
garotas e em pegar o homem que está fazendo isso. E porque… é o
que fazemos. Resolvemos quebra-cabeças, fazemos divisões...
Moya dá a ela um olhar sufocante.
Raffi revira os olhos castanhos.
— Olha, você não precisa ser delicada comigo, ok? Eu não seria
nenhum tipo de repórter decente se não soubesse que há algo
relacionado ao código de guerra acontecendo na Inteligência de
Sinais em Arlington Hall.
Moya inclina a cabeça.
— Mas, como você disse, Raf, você é um repórter... e há coisas
sobre as quais não podemos falar.
— Isso é justo. — Ele solta um suspiro quando a banda começa
um novo número. — Então, primeiro você precisa dos relatórios da
imprensa sobre os assassinatos.
— Alguma coisa saiu na imprensa que ainda não soubéssemos?
— Dottie pergunta, pegando o palito, com sua cereja marasquino
espetada, de sua Mary Pickford.
— Não que eu saiba. As senhoras parecem tê-lo muito bem
coberto. Mas posso mandar recortes dessas histórias para vocês
pelo correio. — Ele franze a testa e considera. — E provavelmente
posso farejar um pouco sobre o pessoal de DC ligado a Aliança.
Então você precisa saber se há outros casos.
— Houve outros casos? — Kit pergunta. A tentação de enfiar a
mão na bolsa e tirar fichas e um lápis é quase irresistível. Ela segura
a vontade tomando sua margarita, ela gosta mais dessa do que do
martini.
— Bem, eu trabalho na área do crime e não vi nada. — Raffi puxa
a ponta do lábio inferior entre os dentes. — Houve um caso, cerca
de dois meses atrás, de uma menina que se afogou. Mas não é isso
que você está procurando, certo?
— Afogamento? — Dottie balança a cabeça. — Isso não soa
como o nosso cara.
— Ela era uma garota do governo? — Kit pergunta
impulsivamente.
— Sim — Raffi admite. — Ela trabalhava como secretária em
algum departamento.
— Mande esse também. — Kit olha para as outras. — Outra
morte de garota do governo, devemos verificar antes de descartar.
— E o relatório da polícia sobre o assassinato de Dinah Shaw? —
Moya tira sua cigarreira de prata do bolso da calça.
— Um pouco mais difícil, mas provavelmente consigo isso. — Raf
se inclina para acender sua fumaça. — Tenho alguns contatos no
DPDC, e alguns deles trabalham na área do Centro.
Violet franze a testa, brincando com a haste do copo.
— Ainda não sabemos como Dinah foi parar no Centro, quando
trabalhava no Munições. Isso está me deixando louca.
— Você não sabe? — Raffi olha para ela. — Bem, não posso ter
cem por cento de certeza, mas posso arriscar um palpite. Muitas
garotas do governo estão em turnos curtos e, desde que a Lei da
Receita entrou em vigor, o dinheiro está apertado. Assim, eles
complementam sua renda com atividades secundárias, como mesas
de trabalho, para pagar o aluguel.
— Ou para ajudar suas famílias a pagar o aluguel. — A expressão
de Violet é pesarosa. — Ela nunca me contou.
— Talvez ela não quisesse que você se preocupasse, se a família
dela estivesse atrasada — sugere Raffi. — Mas houve uma grande
festa chique no Fairfax, no centro da cidade, na noite do assassinato
de Dinah. Aposto que ela provavelmente estava voltando de seu
trabalho clandestino como garçonete.
Kit respira fundo: pode ser isso. Esta pode ser a informação que
elas precisam.
A expressão de Moya também ficou afiada.
— Uma festa? Que tipo de festa?
— Há algum baile nesta cidade a cada duas semanas. — Raffi dá
de ombros. — Saudações do PAC, arrecadação de fundos de
guerra, reuniões da sociedade, faça a sua escolha. As pessoas que
vêm de dinheiro antigo comparecem, e os novos ricos, além de
candidatos políticos e suas esposas. Acrescente alguns banqueiros
comerciais e presidentes da indústria, adicione alguns jogadores de
alto nível, como chefes de mídia e atores e o resto das
celebridades…
— Parece um método para se divertir — diz Moya, estreitando os
olhos.
— Já estive em alguns... eles servem bebidas gratuitas. Na
verdade, vou a uma na sexta à noite. — Ele franze a testa quando
vê a expressão de Moya, mas ela está olhando para Kit.
— Um branco alto, rico e bonito.
— Ele pode tê-la visto lá — sugere Dottie.
— E a seguiu até em casa — concorda Violet.
— Uma festa — diz Kit em voz baixa. — Como o evento na
Fazenda Arlington.
— Isso mesmo — Moya diz, balançando a cabeça. — Acho que
precisamos dar uma olhada.
Kit não tem certeza.
— Todas nós?
— Absolutamente. Somos uma equipe, não somos? — Dotti diz,
tomando um gole de seu Mary Pickford.
— E se algo acontecer, há segurança nos números — lembra
Violet.
Moya sorri para todos eles, então se vira para Raffi com um olhar
tímido.
— Raffi...
— O quê? — Ele olha de um rosto para outro. Dá uma olhada
dupla. — Não. Sem chance.
— Raf, precisamos ver isso — insiste Moya.
— Moya, você sabe que eu te amo, mas isso é loucura. Eu não
sou um gerente social. Não sei como posso fazer você entrar...
— Você pode — ela interrompe. — Você disse como pode nos
fazer entrar, não se — Ela sorri e se recosta. — Vamos, Raffi. É por
isso que você nos trouxe aqui, não é?
— Eu trouxe a gente aqui para dançar! — ele contesta.
— Claro, mas é mais do que isso, certo? Eu vi você apertando as
mãos no caminho, mostrando-nos o grande jogador que você é,
mostrando-nos suas conexões locais. Agora estamos pedindo que
você use essas conexões para um bem maior.
Raffi apenas fica sentado ali, a boca abrindo e fechando como a
de uma truta recém-capturada. Ouve-se um toque de trompete
quando a banda começa um novo número, e Violet se levanta.
— Tudo bem — diz ela, olhando para Raf. — Você veio aqui para
dançar? Vamos dançar.
— Agora?
— Ei, eu não me vesti com a minha melhor roupa e vim para o
melhor clube de DC apenas para ficar de fora. — Ela estende a
mão. — Vamos. Você pode pensar em nos conseguir convites para
festas enquanto estivermos na pista.
Raffi suspira e se levanta, como se olhar para todas elas o
deixasse cansado. Violet apenas sorri e o arrasta para a multidão.
— Ah, eu também quero dançar! — Dottie exclama.
— Você pode dançar comigo — Moya sugere, com um sorriso
travesso. Ela apaga o cigarro e se levanta. — Kit, você se
importaria...
— Eu não me importo — diz Kit rapidamente. Ela está pensando
em seus sapatos e no fato de não saber dançar. — Vou apenas
observar.
Não há muito espaço para balançar no chão; o espaço é muito
pequeno. Mas Raffi e Violet parecem estar bem. Raffi claramente
gosta de dançar e se comporta bem, até dando algumas voltas em
Violet. Ela diz algo que o faz rir.
Perto dali, Moya sorri enquanto Dottie gira suas saias verdes e
encoraja as duas a mergulhar. Ninguém desconfia de duas garotas
dançando juntas – não hoje em dia, quando não há garotos
suficientes para todas. As duas têm uma facilidade de fazer inveja a
Kit. É verdade que Dot conhece Moya há mais tempo. Afinal, elas
trabalhavam juntas no grupo de garotas da Munições. Mas é mais
do que isso: Dottie não fica tão tensa com Moya quanto Kit fica.
Essa tensão no corpo de Kit sempre que Moya está por perto é algo
que ela não consegue se livrar. Mas ela ainda não criou coragem
para fazer nada a respeito.
Ela suspira e toma outro gole de sua margarita, sentindo o gosto
de sal.
A noite parece esticar depois disso. Raffi leva cada uma delas
para o chão – todas menos Kit, que continua hesitando – e às nove
e meia, todos estão um pouco bêbados. Violet diz que precisa voltar
para casa e Moya os leva para a saída. Subir as escadas e sair do
Clube Caverna, voltando para a rua fria, é como sair do País das
Maravilhas.
— Você nunca dançou comigo — Raffi aponta. Ele está andando
com Kit, um pouco atrás dos outros, enquanto eles se dirigem para
o ponto de táxi.
Kit notou que suas bochechas estão rosadas e suas palavras são
mais soltas, mas ele está firme em seus pés. Ele é muito bom em
dar a aparência de embriaguez, embora não esteja completamente
embriagado. Deve ser uma habilidade útil para se ter como repórter.
— Eu sou meio específica com meus parceiros de dança — Kit
responde com um sorriso. — Não leve para o lado pessoal.
— Ah. — Raffi concorda com esta informação. — Então, não é
por causa dos seus sapatos? Seus sapatos estão muito apertados.
Kit endurece.
— Meus sapatos estão bons.
— Você é interessante — declara Raffi. — Você não revela muito.
Acho isso interessante em uma garota.
— Não fique muito interessado — Kit murmura baixinho.
Ele aperta os olhos.
— Você realmente quer ir a esta festa na sexta à noite?
— Eu realmente não quero ir a nenhuma festa — diz Kit. — Mas
quero saber mais sobre quem está matando essas garotas. E a
festa é um bom lugar para fazer isso.
— Bem, acho que vocês estão loucas, mas respeito o que estão
tentando fazer. — Ele soluça um pouco, tira a carteira do bolso do
paletó e tira um cartão, que apresenta a Kit com um sorriso floreado.
— Esse é meu número. Ligue a qualquer hora, se precisar de
alguma coisa para o caso. Ou, sabe, se você quiser se livrar desses
sapatos muito apertados e vir dançar.
CAPÍTULO DEZESSETE

Certamente, algumas senhoras solteiras viveram juntas


como “amigas queridas” ou “companheiras de longa data”.
Esses eram os eufemismos que todos usavam, mesmo
para parcerias comprometidas de anos.
— BRIGID GLADWELL

Os convites da festa chegam pelo correio na quinta-feira, junto com


recortes de imprensa sobre os assassinatos.
— Raffi é um bom moço — Moya tira a papelada do envelope e a
coloca sobre a mesa de baeta em seu quarto na noite de quinta-
feira. — Ele é um cão de caça, mas é seu trabalho ser. Ai, meu
Deus, essas colunas de jornais estão ficando histéricas, todas as
mulheres de DC vão ficar apavoradas... Mas olha, aqui está a
reportagem sobre a outra moça do governo, a que se afogou.
— Deixe-me ver? — Kit está esperando por isso. Ela estende a
mão sobre a mesa para pegar o pedaço de papel, depois o
examina, franzindo a testa.
— O que ela diz? — Dottie se vira do armário aberto. Em sua
camisa branca e saia lápis vermelha, ela está examinando o quadro
de assassinatos e adicionando pequenos detalhes aos cartões de
Kit.
— O nome dela era Margaret Wishart. Ela era uma assistente de
escritório de vinte anos transferida para um escritório consular...
— Isso significa o Serviço de Relações Exteriores dos Estados
Unidos — observa Moya.
— Bem, ela foi transferida do Departamento de Comércio. Ela foi
encontrada flutuando na beira da água perto do porto da balsa,
perto da Maine Avenue Southwest, no dia 17 de janeiro... — Kit olha
para a direita. — Violet, você poderia me passar um cartão?
Dottie parece cabisbaixa.
— Então você acha que ela é outra vítima? Oh, aquela pobre
garota.
— Ainda não sei — rebate Kit, ainda lendo. Sim, este caso é
diferente, mas algo sobre ele soa estranhamente em sua mente.
— Alguma menção a objetos encontrados com ela? — Violet pega
outro cartão de índice de cor creme e o entrega, junto com um lápis.
Kit folheia o jornal.
— Não que eu possa entender. Eles podem não ter notado nada,
se ela estivesse entre os pilares. Vou fazer uma anotação, no
entanto. Ela é uma garota do governo e tem a idade certa. Não há
menção de estupro, mas diz que ela não foi encontrada por dois
dias. Imagino que a evidência física possa ter se perdido na água.
— Mas ela foi esfaqueada? — Violeta insiste.
— Não — admite Kit, olhando para cima. — Ok, o caso ainda é
um ponto de interrogação. Mas devemos tentar descobrir um pouco
mais, se pudermos. Pode ter sido assim que ele começou.
— Pelo menos temos notícias sobre Dinah e Libby. — Dottie os
pega da pilha. — Vou anotar isso junto com os horários dos ônibus
do centro.
— Deixe-me obter detalhes do artigo sobre Dinah. — Violet
arregaça as mangas de seu cardigã azul e estende a mão para o
recorte que Dottie passa para ela.
— Prenda este também, quando eu terminar — diz Kit, anotando
em um cartão. — Estamos chegando lá. Estamos obtendo mais
dados.
— Essa é a boa notícia — diz Moya. — Você quer ouvir as más
notícias? Há apenas dois convites para festas.
Violet ergue os olhos enquanto pega um lápis.
— Para que serve a festa, afinal?
— É uma arrecadação de fundos para fins políticos. Harry
Hopkins fará um discurso para convidados. — Moya pesca um
pedaço de papel restante do envelope onde tudo veio. Kit percebe
como suas clavículas estão expostas com sua blusa de jérsei verde
escuro solta na frente, as mangas arregaçadas até o cotovelo. —
Raf também nos enviou o nome e o número da empresa de bufê
que servirá na noite da arrecadação de fundos. Duas de nós podem
usar os convites e duas de nós podem servir como garçons.
— Acho que vou passar a noite com uniforme de empregada —
diz Violet com voz resignada.
Dottie enfia o próprio lápis atrás da orelha.
— O quê? Por que?
— Quantos participantes negros você acha que eles deixam
entrar nessas coisas? Vou me destacar como um dedo dolorido se
chegar como convidada.
— Eles devem ter alguns convidados negros nos registros?
— Não vai ser uma longa lista deles, eu posso te garantir. —
Violet relaxa os ombros para trás. — E todos eles se conhecerão,
todos sabem quem é quem na comunidade local. Eu não sou um
“quem”. Vai ser bem menos óbvio se eu for como garçonete.
— Bom, isso não é justo! Você não deveria ir a todas as festas
como empregada doméstica.
— Você continua pensando nisso. — Violet bufa. — Se mais
pessoas começarem a acreditar nisso, um dia desses veremos
alguma mudança.
Kit se mexe na cadeira. Há um uniforme de empregada enfiado no
porta-malas do quarto dela, apenas um andar acima. Ela poderia ir à
festa como empregada doméstica: seria fácil. A ideia de voltar a
vestir o uniforme preto, amarrar o avental, deixa-lhe a garganta
seca. Ela engole em seco e abre a boca, mas Dottie chega antes
dela.
— Nesse caso, também vou ir como garçonete — declara Dottie.
Kit pisca, perplexa.
— Dot, você não precisa... eu posso ir como empregada.
— Não seja boba, querida. — Dottie dá a ela um olhar divertido.
— Sou filha de um merceeiro. Tenho muito mais experiência em
servir o público do que você.
— Mas…
— Não, eu decidi. — Dottie joga os cachos por cima do ombro. —
Eu e Violet seremos as garçonetes disfarçadas. Provavelmente
ouviremos muito mais fofocas dessa maneira, de qualquer maneira,
e falaremos com o pessoal da cozinha, que pode saber mais. Você
e Moya serão nossos contatos glamorosas.
— Isso tudo parece ótimo — Moya fala lentamente — e eu odeio
estourar sua bolha, mas onde vamos conseguir uniformes de
funcionários?
— A cozinha — diz Violet. — Eles têm uma pilha de uniformes lá
embaixo na despensa para o caso de derramamento, ou para as
pessoas que se trocam quando chegam ao trabalho. Aventais
também.
— Problema resolvido. — Moya inclina a cabeça em
reconhecimento.
Dottie junta algumas tachinhas.
— E quanto a Kit?
— E quanto a Kit? — Violet pergunta, empilhando seus papéis de
carta em pilhas.
— Bem, ela só tem saias e tal para a escola, eu acho. — Dottie se
volta para o armário, falando com Kit por cima do ombro. — O que
você vai vestir? A mesma roupa de coquetel que você usou no
Clube Caverna?
— Ela não pode. — Moya acena o convite, em seu papel grosso,
e toma um gole de refrigerante ao chamar a atenção de Kit. — Não
pode... é roupa formal. Preto e branco para os meninos, vestidos
para as mulheres.
Kit não tinha considerado isso.
— Talvez eu tenha que olhar meu guarda-roupa...
— Olhe o meu — Moya diz alegremente, papéis flutuando
enquanto ela vira o pulso para verificar o relógio. — Oh, droga, são
8:45h. Senhoras, eu encerro esta reunião.
— Quinze pras nove? Caramba, eu preciso correr ou vou perder o
ônibus para casa. — Violet se levanta da mesa, pegando sua bolsa.
— E preciso deixar este lugar apresentável para uma noite de
pôquer. — Moya já está juntando recortes, papéis e lápis em uma
pilha, transportando os copos de volta para a bandeja de bebidas.
Ela usa o copo para apontar para Kit. — Não vá a lugar nenhum
ainda.
Dottie está ajudando Violet com a jaqueta.
— Fale comigo amanhã sobre uniformes, ok?
— Você vai precisar de sapatos. — Kit, de pé, olha para os dois e
morde o lábio. — Quer dizer, você provavelmente vai ficar muito de
pé.
— Vamos conversar sobre sapatos — diz Violet, acenando para
Kit e Dottie, depois pegando a bolsa e puxando o cabelo para trás.
— E uniformes. Tenho que ir!
— Vá, vá! — Dottie vê Violet saindo pela porta enquanto Moya
marcha, jogando pastas no armário e fazendo uma limpeza geral.
Dottie dá a Kit um sorriso de desculpas. — Desculpe. Você
provavelmente teria preferido ficar em segundo plano como
empregada na festa. Eu sei como você odeia multidões.
Kit dá de ombros, sem saber como ela se sente sobre isso.
— Tenho certeza de que vai ficar tudo bem.
— Eu realmente tive muita experiência lidando com Joe Public, no
entanto.
— Kit... um segundo? — Moya está chutando sapatos para os
cantos e pendurando toalhas fora de vista.
Dottie veste o cardigã e junta as pastas restantes antes de apertar
o braço de Kit.
— Vou levar toda a nossa papelada lá para cima. Parece que
você e Moya estão invadindo o estoque de roupas dela.
— Nós estamos? — Kit diz.
— Vejo você lá em cima daqui a pouco. — Dottie sorri. — A
menos que você decida ficar para a noite de pôquer.
Ela sai pela porta enquanto Moya avança, tirando o pó das mãos
e fazendo uma última verificação visual do espaço.
— Parece bom. Ninguém se importa se alguns cachecóis ainda
estão por aí. — Ela se vira para Kit, que está colocando sua bolsa
na mesa limpa. — Temos cerca de quarenta minutos e você precisa
de algo chique para vestir.
— Não sei do que preciso. — Kit de repente percebe que ela e
Moya estão sozinhas. Por pouco tempo antes do grupo de pôquer
chegar, mas ainda assim. Ela achata as mãos na frente, tentando
acalmar seus nervos. — Quero dizer, eu não sei se tenho algo mais
chique do que o vestido azul escuro. A maioria das roupas que
tenho em casa são mais... de dia a dia. Práticas.
Moya inclina a cabeça.
— Você nunca teve jantares formais aqui?
Kit hesita. Havia jantares formais, mas ela nunca comparecia. Seu
número também foi reduzido no ano anterior à morte de Katherine.
— Não desde que a guerra cresceu.
— Justo. — Moya dá um passo para trás e volta toda a força de
seu olhar para Kit, olhando-a da cabeça aos pés. — Ok, nada muito
apertado.
— Você é mais magra do que eu — Kit aponta.
— E mais alta — Moya concorda. — Nossas medidas não
coincidem. Mas tenho algumas coisas que podem funcionar... — Ela
vai até a cama, puxa o baú debaixo dela e levanta a tampa.
Enquanto Moya tira do baú pilhas de tecido cor de jóia, Kit pensa
no que significa ir a um evento formal. Ela saberá como se
comportar? Ela conseguiu se encaixar com sucesso no Clube
Caverna, mas isso pode ser uma ordem diferente de operações. As
pontas de seus dedos ficaram frias com a ideia. Abrir a bolsa para
guardar os lápis é a diversão mais próxima.
— Você acha que isso vai funcionar?
— A arrecadação de fundos? Eu acho. — Ajoelhada no tapete,
em frente ao baú, Moya joga as roupas na cama com um abandono
descuidado, como se a arrumação recente lhe desse licença para
fazer bagunça de novo. — É uma pista tão boa quanto qualquer
outra que tivemos até agora.
Procurando em sua bolsa, Kit vê o cartão com o logotipo do
Washington Star. Ela realmente precisa colocar isso no quadro de
assassinatos. Isso a lembra de outra coisa também. Quão bem elas
realmente conhecem Rafael Ramale?
Ela não quer insultar o amigo de Moya bem na frente dela, mas
também não pode ficar quieta.
— Você confia em Raffi? Quero dizer, confia completamente nele?
Ele acompanhou os casos de assassinato, está no comando da
cidade, tem conexões com a polícia e políticos de DC que podem
protegê-lo... Pelo que sabemos, ele pode ser o cara que estamos
procurando.
— Kit! — Moya repreende.
— Não posso evitar! — Kit joga as mãos para cima. — Parece
que todo homem que conheço ultimamente é um suspeito em
potencial.
— Claro — Moya diz gentilmente. — Mas não Raffi... nunca Raffi.
Ele realmente parece alguém com simpatias nazistas? Não. E eu
confio nele. — Ela hesita antes de continuar. — Eu confio nele
porque crescemos juntos. Em um lugar chamado Mott Haven, na
cidade de Nova York.
— Eu não sabia disso — diz Kit em voz baixa. É a primeira vez
que Moya revela algo pessoal sobre seu passado, e ela não pode
deixar de querer mais. — Como foi?
Moya se inclina sobre o baú, o laço solto de sua blusa se
arrastando na frente, sua calça azul-marinho macia franzida nos
joelhos. Faixas escorregadias de tecido escorrem por suas mãos –
amarelo brilhante, magenta brilhante – e Kit espera, sabendo que
Moya precisa se sentir confortável.
— Era uma área difícil, cheia de famílias migrantes. — Moya
mantém as mãos ocupadas e os olhos no conteúdo do baú
enquanto fala. — Os Ramales viviam do outro lado da rua da minha
família. O pai de Raffi trabalhava em uma gravadora. O meu
trabalhava como contador em uma fábrica de roupas. Éramos
crianças de cortiço, jogando baseball de rua. — Os lábios de Moya
se curvam. — Eu era uma diabinha.
Kit sente sua própria expressão suavizar.
— Você? Não.
Moya sorri ainda mais com a piada, mas depois seu rosto se
entristece.
— Meu pai foi demitido no ano em que fiz treze anos. Ele
começou a beber mais. Foi uma época ruim para minha família. As
coisas ficaram difíceis. Meu pai... ficou raivoso.
Kit entende.
— Desculpe.
Moya afasta o sentimento com uma amostra de tafetá.
— A família de Raffi estava lá para mim quando eu precisava de
uma pausa. Eles não transformaram isso em grande coisa. Raffi
tinha mais ou menos a minha idade, mas não retrucou quando eu
ataquei. Eu estava com raiva de muitas coisas naquela época.
Seu queixo abaixa. Mechas pretas de seu cabelo caem em ondas
suaves enquanto ela cava no baú. Kit acha que a busca de Moya se
tornou uma distração, e ela sente uma profunda compaixão pela
jovem que sofreu naquela época – a garota que se transformou na
Moya que ela conhece agora.
— O que aconteceu? — Kit pergunta gentilmente.
Moya dá de ombros.
— Ah, você sabe. Meu pai conseguiu outro emprego, nos
mudamos para o norte do estado. As coisas melhoraram. Raffi e eu
mantivemos contato aqui e ali.
Kit conhece a lealdade duradoura que você sente por aqueles que
foram fiéis em tempos difíceis. E elevou Raffi mais alto em sua
estimativa.
— Ele sempre quis ser jornalista?
Moya assente.
— Ele teria se alistado, mas agora os cinejornais fazem parte do
esforço de guerra. Sei que ele preferiria entrevistar soldados e
generais mais perto do Japão, mas é útil em Washington.
— Nunca pensei em jornalistas dessa maneira antes — Kit reflete.
— Como parte do esforço de guerra, quero dizer.
Moya dá de ombros.
— FDR e o resto do governo ainda precisam de notícias políticas
sobre a guerra para executar. O público ainda precisa sentir que as
coisas estão acontecendo, que tudo isso vai acabar algum dia.
Algum dia em breve, espero.
— Todos nós esperamos.
Moya se endireita e olha, seus olhos cinzas grandes.
— É por isso que eu confio em Raffi. Por causa de um monte de
memórias antigas e algum propósito compartilhado.
— Para ver o fim da guerra. — Kit explica isso claramente.
— Sim. Eu me inscrevi para trabalhar na Inteligência de Sinais
para ajudá-lo a acabar mais cedo.
Há uma pausa, na qual elas se olham e o Philco entoa uma
melodia baixa e oscilante. Moya é tão cautelosa que raramente
revela informações privadas; Kit sabe que acabou de receber algo
precioso. Ela se sente honrada por isso. Mais do que tudo, ela
gostaria de poder compartilhar com a mesma honestidade... mas se
ela fizesse isso, este momento viraria cinzas.
Ela não pode ficar aqui e não dizer nada, no entanto.
— Agora aqui está você — ela deixa escapar — classificando
informações em outro tipo de guerra.
— Estou começando a ter a sensação de que as guerras não
acabam — diz Moya ferozmente. — Que elas apenas mudam de
forma. Derrubam e infestam casas, famílias. Plantar uma semente
no coração de algum homem de que a melhor expressão para seu
ódio é atingir mulheres jovens dessa maneira terrível, horrível...
— Podemos detê-lo. — Kit acredita que isso é verdade.
— Algum dia em breve, espero. — Moya quebra o contato visual.
Ela se levanta e se aproxima, uma faixa de cores pendurada em um
braço. — Mas agora temos que vestir você para uma festa.
Kit empurra contra um trinado de borboletas em seu estômago
com a proximidade repentina de Moya.
— Ugh, eu odeio festas. — Pelo menos ela pode ser honesta
sobre isso.
— Eu sei que você odeia. Cale-se. — Um lado da boca de Moya
se levanta. Ela ergue um vestido de veludo vermelho brilhante,
ainda no cabide, e faz uma careta. — Esse vai ser muito longo para
você.
— Todos não serão?
— Talvez. — Moya joga o vestido vermelho de volta na cama e
remexe na pilha pendurada em seu braço. Ela segura um cachecol
azul martim-pescador ao lado do rosto de Kit. — Outro motivo para
trabalhar com Raffi: ele é bom em farejar informações e estará
presente na arrecadação de fundos para nos apresentar às
pessoas. — Ela joga o lenço de lado, experimenta outro laranja-sol
que cheira a perfume inebriante. — Mas Dottie está certa. Ela e
Violet provavelmente ouvirão mais fofocas de bastidores do que
nós.
Kit estremece.
— Eu ainda tenho que me arrumar, hein?
— Sim. — Moya sorri, olha para baixo para separar sua braçada.
— Ok, vamos tentar esse.
Ela segura um vestido composto por camadas drapeadas de ouro
líquido, semelhantes a togas. Kit olha com desconfiança. Ela não
consegue ver onde uma extremidade começa e a outra extremidade
começa.
— Está muito comprido.
— É ajustável. Apenas tente.
— Vou ter que, hum... — Kit olha ao redor em busca de um lugar
privado para se trocar. — Talvez o banheiro no final do corredor…
— Kit — Moya revira os olhos, vira as costas, volta ao baú. — Vá
atrás da porta do armário. Prometo não olhar.
Sentindo seu rosto em chamas, Kit corre para o canto da sala
entre o armário e a porta. Com as mãos tremendo um pouco, ela tira
o suéter e tira os sapatos. Moya está novamente ajoelhada ao lado
do tronco, mexendo em folhas soltas de penas de avestruz e fios
soltos de tule. Kit tem certeza de que não está olhando para trás.
Kit desabotoa a camisa e a saia. Finalmente, em suas roupas
íntimas, ela não tem certeza se realmente a incomodaria se Moya
olhasse, ou como colocar o vestido, ou se ela conseguiria regular o
ritmo de seu coração.
— É para... Tem zíper?
— Ele envolve você — diz Moya, com um sorriso em sua voz.
Kit cambaleia até a mesa, sentindo como se estivesse se
afogando sob massas de chiffon dourado.
— Eu não tenho certeza se posso... Hum, ajuda?
Moya se levanta e volta para a mesa, com uma carranca
afetuosa.
— Como você conseguiu esse emaranhado?
— Não sei! — Kit lamenta. — Não é tão fácil de colocar!
— Espere, espere, deixe-me consertar isso. — Moya afasta as
mãos de Kit gentilmente. Ela dá a volta por trás e levanta o cabelo
de Kit, ajustando as alças de lantejoulas e o excesso de tecido do
vestido. Elas estão próximas uma da outra, as duas, e Kit tem plena
consciência disso. Da gagueira em sua própria respiração. Do calor
que emana do corpo de Moya e da maneira como seu próprio corpo
responde, o sangue subindo quente em suas bochechas.
As mãos de Moya são cuidadosas, desenrolando e rearranjando o
tecido. Seus polegares roçam a sensível nuca de Kit, e Kit está
muito consciente da proximidade entre elas para mover até mesmo
um músculo. Se ela se mexer, esse momento pode desaparecer.
— Acho que você cometeu um erro. — Sua voz soa
chocantemente rouca. — Acho que são dois vestidos.
— Não são dois vestidos. — As palavras de Moya também são
suaves. — Fique quieta.
Kit deixa a cabeça cair para a frente.
— Estou muito... estou muito quieta.
As pontas dos dedos de Moya descem pelas costas de Kit, junto
com um pedaço de chiffon. As sensações criam um rastro de fogo
que a faz estremecer.
— Você não poderá usar corselete ou sutiã com isso — diz Moya.
— As tiras vão aparecer.
Kit descobre que todas essas sensações vão direto para sua
cabeça.
— Então vou sem.
Moya faz uma pausa. Limpa a garganta de forma audível.
— Levante um pouco os braços. — As mãos de Moya dobram,
suavizam e dobram. Ela gira em torno de Kit como uma estrela,
circulando de volta até que elas fiquem cara a cara mais uma vez.
Ela alcança a cintura de Kit para amarrar um pedaço de tecido
âmbar na frente. — Talvez eu tenha que fazer um pouco de bainha.
— A voz de Moya é rouca. — Apenas aqui.
Moya olha para cima. Agora seus rostos estão mais próximos do
que Kit jamais sonhou ser possível.
Isso não é um erro, ela percebe. Isso não é um acidente. Moya
não é uma pessoa que faz coisas sem propósito.
A garganta de Kit ficou magnificamente seca.
— Saias compridas. — Ela tenta engolir. — Agora entendo por
que você prefere calças.
— Calças me dão liberdade de movimento. — O hálito de Moya
cheira levemente a cigarro e uísque. Ela passa uma mecha de ouro
pela cabeça de Kit e a desliza lentamente por seu ombro. — Você
deveria tentar.
Kit sente isso em seus ossos quando ela decide se comprometer.
Ela sustenta o olhar de Moya.
— Eu poderia.
— Todas as meninas estão usando calças hoje em dia. — Os
olhos cinzentos de Moya estão brilhando na luz baixa.
— Nem todas as garotas — Kit diz suavemente.
— Algumas garotas. — Moya ajusta o tecido descendo nas
laterais de Kit, contornando os dedos leves sobre o quadril sem
quebrar o contato visual. — Certas garotas.
Kit finalmente consegue engolir.
— Certas garotas.
Há apenas a ponta de um dedo entre seus lábios agora. Quando
Kit levanta os calcanhares e fecha a lacuna, é simples, como
respirar.
Os lábios de Moya são macios como nuvens. Ela faz um
barulhinho delicioso, um suspiro, quando seus lábios se encontram.
Ela suspira novamente enquanto o beijo se aprofunda.
Kit pensou nesse momento por tanto tempo, e agora não sabe
onde colocar as mãos, até que elas se acomodam naturalmente,
com razão, nas curvas da cintura de Moya. Há músculos rígidos sob
a camisa macia, e Moya se encolhe um pouco e choraminga. Kit
acaricia sua mão suavemente sobre o quadril de Moya para acalmá-
la até que Moya relaxe, relaxando no beijo, desfazendo-se com o
beijo. Até que ambas estejam ofegantes, suas mãos subindo,
cobrindo as bochechas, os dedos passando pelos cabelos uma da
outra.
Elas se beijam até que as coisas começam a espiralar. Quando se
separam, não é para separar, mas para encostar as testas juntas.
Kit está respirando pesadamente, sentindo o calor e a languidez em
todos os seus membros. Seus braços estão emaranhados com os
de Moya, o sabor dos lábios de Moya é rico em sua língua e seu
coração pulsa como um tímpano.
O rosto de Moya está corado.
— Eu não sabia... não tinha certeza...
Kit diz:
— Nunca estive tão segura — e Moya a beija novamente por isso,
até a hora de se desfazer e tirar o vestido, com movimentos bem
mais lentos do que antes. Então, quando Kit está apenas em seu
corselete, há a parede do quarto de Moya para se encostar.
— Você ainda é tímida? — Moya pergunta, brincando com os
dedos ao longo da clavícula de Kit.
Kit ri e Moya sorri, um sorriso aberto. Kit só pode aproveitar o
esplendor. Eu sabia... eu sabia que seria assim. Olha esse sorriso.
— Obrigada — ela diz suavemente. — Por escolher um vestido
para mim... Por me escolher.
— Nós nos escolhemos — diz Moya, com os olhos brilhantes. Ela
passa a mão levemente pelo braço de Kit. — Isso... vai dificultar
minha concentração no que faremos amanhã à noite.
Kit sorri. Ela não consegue parar de se inclinar para inalar o
cheiro do cabelo de Moya naquele ponto sedoso logo atrás da
orelha.
— Não vamos fazer muito. Apenas ouvir. Observar os convidados.
Ficar de olho em qualquer homem branco alto, bonito e rico na sala.
— Haverá muitos desses, posso garantir. — Moya olha para baixo
onde suas mãos estão entrelaçadas. — Há outro fator sobre o
assassino. Ele é mais novo. Não mais de trinta anos.
— O que te faz dizer isso? — Kit franze a testa, antes de
perceber. — A Fazenda.
— Sim. — Moya olha para cima. — Senhores mais velhos não
vão a bailes de dança.
— Isso reduz as coisas de novo — diz Kit, a ideia estalando em
sua cabeça. Ela começa a ir em direção à mesa para encontrar um
lápis.
— Espere. — Moya a arrasta de volta com as mãos unidas. —
Você entende o que isso significa, Kit? Estaremos na festa. Somos
garotas do governo. Nós nos encaixamos no perfil de idade.
— Oh. — Kit entende agora. Ela molha os lábios.
— Sim. — Moya deixa a ideia na frente delas por um momento. —
Nós somos a isca.
CAPÍTULO DEZOITO

Essa foi a principal coisa que fizemos – procurar


repetições. Porque com a mesma certeza de que Deus fez
pequenas maçãs, em algum momento algo se repetiria.
— EDITH YOUNG

Rolhas de champanhe estouram no Grande Salão do Mayflower


Hotel e Moya se assusta. Ela tenta não deixar transparecer, mas
seu copo de bolhas espirra um pouco.
— Opa, você está bem? — Kit pergunta.
— Tudo bem — diz Moya. — Apenas nervosa. Não sei o que há
de errado comigo esta noite. — Mas isso não é verdade, ela sabe.
Sua cabeça está um tumulto desde que ela e Kit se beijaram na
noite passada, e ela está com essa energia nervosa o dia todo.
Não ajuda que as operações entre Três e Quatro estivessem tão
ocupadas que ela mal teve tempo de se sentar. Descobertas de
repente começaram a aparecer em todos os lugares hoje. Às vezes
é assim: não haverá nada por semanas e então bam, tudo é
descoberto de uma vez. Moya estava perdida: consultando Emil
Ferrars, notificando as mulheres na análise de tráfego, fazendo
contato com os sobrepostos, tentando fazer tudo fazer sentido a
tempo de criar uma ordem de batalha para o relatório do Pentágono,
para que as informações fizessem algum bem no campo.
Sobreposto ao ritmo acelerado estava a sensação em sua pele, a
consciência de Kit – Kit em sua cadeira, Kit com o sol atrás dela, Kit
com um lápis sobre a orelha... Apenas trocando um olhar inocente
com Kit na sala de trabalho foi o suficiente para deixar Moya se
sentindo como se fosse uma estrela explodindo.
Agora elas estão juntas em um salão de baile em uma noite de
sexta-feira, e Moya mal consegue acreditar em sua sorte. O cabelo
ruivo de Kit está preso para trás e trançado em estilo grego – em
seu vestido drapeado, ela parece um minúsculo e perfeito ídolo
dourado. Seu vestido desce de seus ombros nus em alças finas e
brilhantes que se encontram com o corpete de chiffon dourado.
Metros de pano de cobre, torcidos em cordão, envolvem as dobras
soltas do vestido nos seios, na cintura, nos quadris, onde o tecido
finalmente cai livre, até o chão. Atrás, comprimentos gêmeos de
chiffon polido flutuam de cada um dos ombros de Kit, encontrando-
se em uma dobra macia de tecido na parte inferior de suas costas.
Ela olha e sorri, e Moya fica chocada ao perceber que suas mãos
tremem. Ela nunca é tão descontrolada. Mas agora, é tudo o que ela
pode fazer para não pegar a taça de champanhe de Kit junto com a
sua, jogá-las em um dos enormes vasos de palmeiras que enfeitam
cada gloriosa colunata do salão de baile e encontrar uma alcova
silenciosa em algum lugar onde ela e Kit possam se beijar em
particular.
Calma lá, garota. Moya tenta se concentrar em sua respiração e
apreciar a vista do salão de baile Mayflower, que é espetacular. Sob
o teto alto e arqueado e lustres luxuosos, a longa sala é preenchida
com o crème de la crème da sociedade DC. Está literalmente lotado
até as vigas: o nível do mezanino está lotado de homens de
smoking ou uniforme de gala, mulheres pingando jóias, o barulho
baixo de conversas e risadas competindo com a banda de swing no
palco do primeiro andar, perto de onde ela e Kit estão.
Uma imensa estrela e listras estão suspensas na varanda do
mezanino, e bandeirolas vermelhas, brancas e azuis estão
penduradas nas colunatas com bordas douradas. Moças de
uniforme preto e avental branco circulam com bandejas de copos. O
barulho, as luzes brilhantes e o calor no salão de baile são quase
insuportáveis. Moya escolheu um vestido de veludo preto de gola
alta para usar esta noite, e agora ela está suando nele.
Kit se inclina para se fazer ouvir.
— O que fazemos agora?
— Desfrutamos de mais bebidas das bandejas de prata? — Moya
dá de ombros, lançando sua voz sobre a banda. — Raffi vai chegar
logo e nos encontrar.
— Devemos apenas ficar aqui e esperar?
Moya sorri e dá um gole na bebida.
— Acho que devemos nos misturar.
— Deus, eu sou tão ruim nisso. — A carranca de Kit está
preocupada. — Eu deveria ter sido apenas uma empregada.
— Preciso que esteja onde possa ficar de olho em você. — Moya
dá a ela um olhar brilhante, então suaviza. — Você realmente gosta
da vida tranquila, hein?
— Eu realmente gosto de não ser o foco das atenções — Kit diz
com firmeza — e não ter que falar com estranhos.
Moya bufa.
— Você é uma vergonha para as donzelas da sociedade em todos
os lugares. Por que você foi para Arlington Hall, afinal?
Kit enrijece – não muito, mas é perceptível.
— Por que eu não iria para Arlington Hall?
Moya gesticula com o copo.
— Uh, porque você poderia ter ido para Bryn Mawr?
Kit olha, sem ver, para a multidão.
— Eu... eu não queria ficar tão perto dos meus pais.
— Eu entendo isso — Moya examina os rostos dos funcionários,
mas ainda não vê Dottie ou Violet. Raffi ainda não chegou, mas é
hora de trabalhar. — Bem, se você não quer se misturar, relaxe e
me ajude a me misturar. Essas pessoas podem ser uma importante
fonte de informação. Devemos ficar mais longe da banda. Dê uma
volta ao redor comigo?
— Claro. — Kit olha para trás e lhe dá um sorriso tímido que deixa
Moya arrepiada.
Elas se escondem atrás de um vaso de palmeira e desviam dos
convidados até chegarem à área sob o mezanino. Está mais escuro
e silencioso aqui – ainda cheio, mas não a ponto de ficarem ombro a
ombro. O salão de baile é um longo retângulo, com uma grande
entrada saindo do saguão de passeio do Mayflower e outra menor
no lado oeste. Escadas duplas no lado leste levam os hóspedes
para a área da varanda acima. O piso principal é uma massa
fervilhante de pessoas, mas este sub-bosque é todo de tapetes
elegantes e sofás de descanso, onde matronas mais velhas
conversam com convidados de pé e se refrescam com leques de
penas de avestruz.
Kit está segurando sua taça de champanhe como um acessório,
observando a pista de dança. Moya calcula a probabilidade de as
pessoas perceberem se ela colocar o braço em volta da cintura de
Kit.
— Quantas pessoas estão aqui, você acha? — Kit parece
deslumbrada com tudo isso.
— Talvez seiscentas? — É mais fácil falar agora que elas não
precisam gritar. — Mas ainda é cedo. Provavelmente vão se
espremer mais antes do final da noite. Parece que todo mundo que
é alguém compareceu ao discurso de Harry Hopkins.
Olhando por cima do ombro, Moya vê os membros da banda
tocando em um cenário de cortinas de veludo prateado. De cada
lado do palco, mais veludo prateado esconde as portas dos fundos,
por onde os servidores entram e saem, carregados de bandejas.
Ela olha para trás quando Kit puxa sua mão.
— Lá está Violet.
— Hora de mais champanhe — diz Moya enquanto se dirigem
para ela.
Violet as encontra no meio do caminho. Seu cabelo está puxado
para trás, devidamente arrumado, com uma touca branca presa por
cima. Ela parece elegante, mas anônima em um uniforme preto de
algodão, e não totalmente emocionada por estar atendendo uma
multidão de brancos novamente.
Moya não pode culpá-la.
— Como você está?
— Ah, tudo bem. — Violet chupa os dentes. — Está alto o
suficiente aqui, você acha?
— Barulhento e movimentado — diz Kit. — Eu estava preocupada
que sentiríamos sua falta nessa multidão. Dottie está aqui?
— Você ainda não a viu? — Violet ergue sua bandeja de copos
pela metade com um ar de longanimidade. — Ela está fazendo as
rondas. Provavelmente melhor do que eu, para ser honesta, sempre
fui uma péssima empregada na cozinha do Hall.
— É frenético na cozinha aqui? — Kit pergunta.
Violet assente.
— É o próximo nível abaixo, o que significa que todos nós
estamos subindo e descendo as escadas como formigas operárias.
— Ouviu alguma coisa interessante até agora? — Moya troca o
copo vazio por um cheio na bandeja de Violet.
— Tenho estado ocupada demais para fofocar — admite Violet. —
Mas quando as coisas se acalmarem, poderemos ouvir mais. Ok,
devo parecer que estou circulando. Farei uma check-up novamente
mais tarde.
— Mantenha os ouvidos abertos — diz Moya — e não vá para
cantos escuros sozinha. Fique segura.
— Pode deixar — diz Violet com fervor, e ela se afasta
rapidamente.
Kit se inclina para vê-la partir.
— Você realmente acha que devemos ficar em alerta enquanto
estamos aqui? Dinah não foi morta até ela voltar para casa.
— E Libby foi morta enquanto as pessoas dançavam no prédio ao
lado — lembra Moya. — Sim, acho que é inteligente ser cautelosa.
Droga, onde está Raffi?
Os lábios de Kit se contraem.
— Você disse que ele odeia ser pontual.
— É a principal falha de caráter dele. — Moya suspira, esticando
o pescoço para olhar para a entrada principal novamente.
— É difícil lembrar que estamos aqui para investigar um
assassinato — diz Kit melancolicamente. Sua voz suaviza ainda
mais. — Eu disse que você está linda, certo?
Os olhos de Moya se voltam rapidamente, um pouco da tensão
deixando seu corpo rapidamente.
— Cerca de uma dúzia de vezes antes de entrarmos no táxi, sim.
— Bem, ainda é verdade. — Kit sorri, suas bochechas ficando
rosadas. Moya pode ver suas sardas através do pó facial como uma
camada de manchas douradas. — As pessoas notariam se eu te
beijasse agora, você acha?
— Provavelmente — Moya diz com um sorriso, embora ela esteja
pensando exatamente a mesma coisa. A visão dos lábios de Kit a
lembra do sabor do vinho de gengibre. Ela chega mais perto para
que elas se toquem, o veludo preto ronronando contra o chiffon
dourado.
Os olhos de Kit escurecem.
— Parece um desperdício de todas essas roupas chiques, se eu
não posso fazer nada para mostrar como eu aprecio você nelas.
— Ainda vamos usá-las quando chegarmos em casa.
— Algo pelo qual ansiar, então. — Kit leva a taça de champanhe
aos lábios, o rosto corado e radiante.
Moya observa Kit engolir, e ondas brilhantes de desejo sobem e
descem por sua espinha. Esta é a parte do namoro que ela ama; o
empurrão e puxão magnético disso, a brincadeira sedutora e a
resposta que enrola os dedos dos pés, a eletricidade sob sua pele
que eleva todos os seus sentimentos. Saber que ela não é a única
afetada por isso aumenta a emoção, mas ela desvia os olhos antes
de entrar em combustão.
— Ah... Raffi está aqui!
Ela agarra a mão de Kit e as move em direção à colunata mais
próxima da banda enquanto Raffi se aproxima delas. Sem chapéu
fedora esta noite, mas ele está vestido com sua melhor roupa, suas
maçãs do rosto acentuadas complementadas por um smoking ainda
mais elegante.
— Você gostou? — Depois de beijar suas bochechas, ele estende
as mãos para admiração. — Aluguei este com tanta frequência que
a senhora ajustou os punhos para mim. Vocês duas estão lindas.
Com quem vocês conversaram até agora?
— Ninguém — diz Moya, sorrindo. Ela pega um copo de uma
bandeja que passa e entrega a ele. — Achei que você teria uma
ideia melhor da configuração do terreno.
As covinhas de Raffi aparecem quando ele sorri e revira os olhos.
— Tudo bem, deixe-me ver... — ele dá um gole na bebida,
examinando a multidão. — Ah, ok. Venha por aqui e deixe-me
apresentá-las ao meu bom amigo, Bob Pepper...
Durante a hora seguinte, Raffi as move pela multidão como um
mestre de xadrez, acenando para as pessoas aqui, rindo com as
pessoas ali, trocando gentilezas e fazendo elogios. Ele explica a
todos que Moya é “uma das minhas amigas mais antigas de Nova
York” e que ela e Kit estão agora “trabalhando para o Departamento
de Estado”, um eufemismo útil que abrange tudo, desde digitação
de secretariado até diplomacia estrangeira.
Magnatas da mineração e senadores estaduais caem nessa,
pressionando cartões de visita na palma da mão de Moya com
dedos pegajosos de champanhe. Por volta das 22h, ela e Kit já
tiveram uma conversa leve com filhos de industriais, engenheiros de
bombas e militares graduados, incluindo pelo menos alguns jovens
que se encaixam no perfil.
Durante um intervalo, ela e Kit ficam ao lado de uma mesa de
refrescos empilhada com uma torre de canapés enquanto Raffi
desaparece no meio da multidão para buscar água para as duas.
— Nunca pensei que esta seria a noite em que aprenderia tudo o
que queria saber sobre a fabricação de nylon — diz Kit, tentando se
abanar com o cartão de visita de um magnata da fabricação.
— O cara da fábrica de pára-quedas?
— É... ele não parecia um suspeito em potencial. — Kit recolhe
seu terceiro copo de champanhe de um garçom que passa.
— Tenho que concordar — diz Moya. — Ei, devagar aí. Espere a
água. Coma alguma coisa... esses canapés parecem bons.
— Acho que os homens com quem estamos falando não são
jovens o suficiente.
— Vou contar a Raf. — Moya se distrai com algo perto do palco
do salão de baile. É Dottie, que faz uma garçonete de ótima
aparência, abrindo caminho no meio da multidão.
— Lá está Dot — diz Kit, surpresa.
Enquanto Moya observa, Dottie entrega um copo para um homem
mais velho em um uniforme da Grande Guerra, então se vira
quando é saudada por outro homem de uniforme – é o capitão John
Cathcart de Arlington Hall. Dottie sorri vitoriosamente e inclina a
cabeça, acenando com a cabeça para algo que ele disse.
— Eu não sabia que haveria gente do Hall aqui esta noite — diz
Kit. Ela parece enervada.
— Não é só John — diz Moya. — Olhe, Emil está com ele. Eu
nem sabia que Emil tinha um smoking.
O que mais eu não sei sobre Emil? Por um breve momento, Moya
olha para sua colega de trabalho sob uma luz diferente. E ele tem
um carro... Ela afasta esses pensamentos. A tendência de Kit de ver
todos os homens como suspeitos em potencial não mudou tanto sua
visão do mundo.
Kit levanta o queixo para olhar em volta.
— Será que a Srta. Caracristi e o Sr. Kullback também estão
aqui?
Mas Moya está pensando muito.
— Foi assim que ele soube.
— Perdão?
Moya se vira para enfrentar Kit.
— Foi assim que ele soube. Fiquei pensando a noite toda, como o
assassino sabia que Dinah era uma garota do governo quando ela
estava na festa de Fairfax em um uniforme de garçonete? Mas foi
assim que ele soube. Porque alguém do trabalho dela estava lá...
— ...e o assassino os ouviu dizer oi para ela no salão — Kit
termina. — Eu acho que você está certa.
— Eu sei que estou certa — Moya diz com firmeza.
Kit está olhando para o ar acima das cabeças dos foliões.
— Mas isso muda nossa teoria sobre o processo do assassino.
Sabemos que ele planeja e traz seu equipamento com
antecedência. Mas se ele não está perseguindo suas vítimas, se
está mirando em garotas que conhece por acaso, então ele deve ter
seu equipamento com ele toda vez que for a um evento...
— Ele está sempre preparado — sugere Moya.
— Ele está sempre carregando provas — retruca Kit, encarando-a
de volta. — Mesmo que ele lave as luvas, lave a faca, haverá
vestígios de sangue deixados para trás. Se pudermos encontrá-lo,
essa evidência estará com ele. Será o suficiente para condená-lo.
— Poderíamos dar à polícia mais do que apenas um monte de
teorias… — Moya está entendendo.
— Podemos dar a eles o suficiente para pegar o assassino e as
provas para colocá-lo atrás das grades. — Os olhos de Kit estão
acesos.
— Droga, Kit. — Moya respira fundo. Estar tão perto da
combinação de beleza e inteligência de Kit é inebriante. — As
pessoas notariam se eu te beijasse agora, você acha?
Kit sorri.
— Provavelmente.
O zumbido sob a pele de Moya é tão intenso que ela só é salva
de jogar o cuidado ao vento quando Raffi chega. Seus braços são
levantados para proteger os dois copos suados de água gelada que
ele carrega enquanto se aproxima da multidão.
— Ok, aqui está. — Ele deposita um copo para cada uma delas.
— Há champanhe em abundância, mas você sabe como é difícil
conseguir água por aqui? Eu tive que procurar alto e baixo. — Ele
sacode as gotas de suas mãos, então gira para inspecionar o grupo.
— Quem é o próximo? Você quer filhos de políticos ou um velho
proprietário de terras?
— Você faz parecer que estamos em uma mercearia — diz Moya,
bufando. — Feijão enlatado ou milho enlatado?
Kit parece estar tentando não rir.
— Moya pode escolher. Espere um minuto. Vou visitar o banheiro.
Ela entrega o copo a Moya antes de se desviar da multidão. Moya
nem percebe que está acompanhando o movimento de Kit até Raffi
dar um tapinha em seu braço.
— Você gosta dela, hein? — Ele parece um pouco triste.
Moya olha duas vezes.
— Não me diga que você pensou que tinha uma chance com ela?
— Pshaw, de jeito nenhum. — Raffi acena com a mão, todo
indiferente.
— Você pensou — Moya solta uma risada, aperta os lábios
enquanto coloca os dois copos na mesa de refrescos. — Desculpe
desapontá-lo, Raf, mas você está latindo para a árvore errada.
— Faz sentido. — Sua expressão é pesarosa, então se
transforma em um sorriso. — Bem, bom para você, para vocês
duas. Só não deixe que ela parta seu coração, ouviu?
— Farei o possível — diz Moya, rindo. Mas parte dela está se
perguntando como ela parece ter caído tão forte, tão rápido. Isso
não é o do feitio dela. Estar perto de Kit quebrou alguma parede
interna. Ela está começando a suspeitar que a parede era um
confinamento e não uma proteção.
— Ok, vamos lá — ela insiste com Raf, para mudar de assunto. —
Proprietário ou político? Você decide. Qualquer pessoa com
rumores de conexões com a Aliança seria útil. Mas vamos ver se
podemos encontrar alguns caras mais jovens, veneráveis
cavalheiros não são nosso alvo.
— Proprietário, então — diz Raffi. — Ele é velho, mas os homens
com quem ele está são mesquinhos.
Ele estende o cotovelo para que ela possa enfiar a mão em seu
braço e leva os dois para longe dos refrescos em direção a um
grupo de quatro homens reunidos perto do palco de veludo
prateado.
— Ora, isso é... Howard! Que bom te ver de novo! — Raffi
exclama quando eles esbarram “acidentalmente” no grupo. — Puxa,
faz uma eternidade. Você conheceu Moya Kershaw?
— Acho que não tive o prazer — diz Howard. Ele é um homem de
quase cinquenta anos, do tipo que Moya já viu: bem-vestido, ombros
caídos e olhar autoritário.
— Moya é uma amiga de longa data de Nova York — explica Raffi
— e eu não fazia ideia de que ela trabalhava para o Departamento
de Estado em DC até nos encontrarmos novamente na semana
passada. Moya, este é Howard Lascar, ele está trabalhando com...
ainda é o Departamento de Agricultura?
— Sim, de fato — entoa Howard Lascar, apertando a mão
estendida de Moya. — Prazer em conhecê-la, Srta. Kershaw. Um
momento, e quando houver uma pausa na música, apresentarei
meu colega Richard Kingett e seus filhos.
— Eu não sabia que você tinha vindo da Pensilvânia para esta
festa — diz Raffi, antes que um toque discordante de trombetas no
palco abafe todas as esperanças de conversa. Raffi semicerra os
olhos e olha ao redor. — Espere, acho que está acontecendo
alguma coisa, pode ser Harry Hopkins. Vou descobrir e volto com
um relatório. Howard, cuide da senhorita Kershaw para mim?
Estarei de volta em apenas um minuto.
Enquanto Raffi sai correndo, Moya vê Howard Lascar vê-lo partir,
confuso.
— Bom rapaz... um pouco volúvel, mas tem inteligência. É uma
pena que ele esteja acorrentado ao Star. Ele seria um trunfo no
campo.
Moya não está convencida de que Raffi Ramale seja adequado
para a sujeira e o horror das linhas de frente, mas provavelmente é
melhor não mencionar isso a ele ou a Lascar.
— Não costuma residir na capital, Sr. Lascar?
— Howard... por favor, eu insisto. — O homem tem um rosto largo
e rude. — Não, geralmente estou ocupado visitando fazendas no
norte, mas sou um admirador de Hopkins e pensei que gostaria de
ver seu discurso pessoalmente.
— Oh, se você é do norte, você pode… — Mas o que quer que
Moya fosse dizer é interrompido quando Kit chega, com as
bochechas rosadas e sem fôlego, com Dottie a reboque.
— Fico feliz que você não tenha ido muito longe — diz Kit. —
Pensei que ia me perder aqui! Pedi a Dottie que me mostrasse o
caminho... — Ela repara em Lascar. — Oh, desculpe-me, eu não
queria interromper.
— Nenhuma interrupção — diz Lascar suavemente. Ele pega uma
taça de champanhe da bandeja de Dottie. — Obrigado, minha
querida.
— Certamente, senhor — diz Dottie, reprimindo um sorriso.
Moya se endireita.
— Sr. Lascar…
— Howard.
— Howard, é claro. Deixe-me apresentar minha amiga e colega,
Katherine Sutherland.
Os olhos de Lascar se estreitam em confusão.
— Perdão?
— Kit — diz Kit, com a mão estendida com um sorriso, angelical
em sua elegância dourada. — Quero dizer, eu sou Katherine
Sutherland, mas todos me chamam de Kit.
— Katherine Sutherland? — Lascar parece confuso.
— Sim. — O sorriso de Kit escurece um pouco enquanto sua mão
paira no ar.
— Você está... — Lascar balança a cabeça. — Você é uma dos
Grand Rapids Sutherlands?
— Uh, não, eu… — Kit parece estar perdendo seu brilho. Sua
mão abaixa lentamente. — Minha família é da igreja Pensilvânia.
Robert e Charlotte Sutherland, de Bryn Mawr? Não sei se você
conhece...
— Eu sou familiar, e se isso é uma piada, é de muito mau gosto.
— As sobrancelhas brancas de Lascar estão franzidas e o traço de
seu rosto é severo.
— Com licença? — Moya sente uma estranha mudança de
corrente no ar entre o grupo: Kit ao lado dela, ficando mais pálida a
cada segundo; Dottie rondando e preocupada, com sua bandeja
carregada; o rosto impassível de Howard Lascar. — Sr. Lascar, você
disse que é da Pensilvânia, então deve saber...
— Conheço os Sutherlands — diz Lascar com rispidez — e recebi
a notícia de sua perda em junho do ano passado.
— Perda? — Moya encontra sua cabeça virando para frente e
para trás, entre Lascar e Kit.
— Da única filha deles, Katherine. — Ele vira seu olhar
diretamente para Kit. — Mocinha, eu não sei quem você é, mas isso
é um insulto para a dor de Robert e Charlotte. Não sei por que você
estaria usando o nome de Katherine Sutherland, exceto por algum
propósito nefasto...
— O quê? — O sorriso de Dottie e sua bandeja estão caindo
agora.
Moya olha entre os dois atores principais nesta cena com uma
sensação de fratura, como se ela tivesse caído em algum tipo de
realidade alternativa.
— Sr. Lascar, tenho certeza de que há algum engano, conheço Kit
há nove meses e ela... Kit?
Mas Kit está parada. Silenciosa. Completamente branca. Olhando
para Lascar, os lábios entreabertos, é como se ela tivesse virado
cera. Com um esforço aparentemente gigantesco, ela fecha a boca.
Abre novamente para falar.
— Sinto muito — diz ela com a voz rouca.
Moya sente uma sensação abrupta de cisalhamento, como se o
chão tivesse caído de seus pés.
— Estou tão, tão... — os olhos de Kit estão brilhantes e quentes
quando ela se vira de Lascar para Moya. — Eu não queria... Moya,
me desculpe.
Moya só pode ficar boquiaberta, toda a respiração sugada de seu
peito.
— Não era para ser assim... — Kit treme, a mão chegando à
boca, a cabeça começando a tremer. — Não posso... sinto muito.
E ela se vira e se afasta, no meio da multidão.
— O que você quer dizer com perda? — Dottie lamenta. — O que
está acontecendo?
Lascar está dizendo algo, mas Moya não consegue ouvi-lo. Os
convidados do salão fecham atrás do velório de Kit, como se ela
nunca tivesse existido. Moya ouve um rugido feroz, como um
turbilhão em sua cabeça, e então o turbilhão está ressoando alto e
ela percebe que está gritando.
Alguém está gritando no salão de baile.
O barulho vem de perto. Uma mão agarra seu braço e Raf está lá.
Moya sente sua presença como um calor, uma solidez, que é um
alívio depois do que apenas... o que apenas...
— O que acabou de acontecer? — ela pergunta a ele
melancolicamente.
— Moya. — Seu rosto está sério, seus olhos escuros e
inquisitivos. — Eles encontraram outra garota.
CAPÍTULO DEZENOVE

A Lei de Espionagem de 1917:


É crime transmitir relatórios falsos ou declarações falsas
com a intenção de interferir na operação ou sucesso das
forças militares ou navais dos Estados Unidos ou promover
o sucesso de seus inimigos quando os Estados Unidos
estão em guerra, causar ou tentar causar insubordinação,
deslealdade, motim, recusa de serviço nas forças militares
ou navais dos Estados Unidos, ou obstruir
intencionalmente o serviço de recrutamento ou alistamento
dos Estados Unidos.
— 18 U.S.C. CH37

Quando Kit se afasta, é como se ela estivesse se afastando de


qualquer tipo de futuro.
Ela empurra, sem ver, através da multidão, e ela está tentando –
tentando tanto! – manter os pés no chão. Mas a voz em sua cabeça
a repreende. O que você acha que aconteceria? Você realmente
imaginou que ia durar?
Seus ouvidos estão zumbindo e seu coração está dilacerado,
dilacerado. Os sentimentos surgem em uma onda negra e
sufocante, arrastando-a para baixo, fazendo-a ofegar, até que ela
finalmente se livra de todos os corpos no salão de baile e sai pela
porta, no calçadão.
Alguém está chamando o nome dela.
— Kit!
Quando ela se vira, é Violet parada ali, a porta se fechando atrás
dela. O uniforme de algodão preto de Violet ainda parece impecável,
e ela largou a bandeja em algum lugar. A visão do uniforme de
empregada é suficiente para fazer Kit gemer.
— Kit? — Violet se aproxima. — Kit, você precisa voltar, tem um…
— Moya sabe. — Kit fica chocada ao ouvir como sua própria voz
soa estrangulada. Mas agora ela disse, tornou real, as palavras vêm
mais facilmente. — Havia... havia um homem do estado natal de
Katherine. Ele conhecia a família dela e sabia que eu não era... que
eu não era...
A boca de Violet se abre.
Ela aperta o braço de Kit.
— Ok. Vai ficar tudo bem.
Kit só consegue ficar ali, tremendo.
Violet se solta, estende a mão e desabotoa a touca,
desamarrando o avental. Ela dobra os dois em um quadrado, que
guarda no bolso, antes de agarrar o braço de Kit novamente.
— Seu casaco está no vestiário, certo? Vamos.
Elas pegam seus casacos no vestiário e voltam para o lado
oposto do calçadão. Kit se vê conduzida para onde um homem mais
velho com libré do Mayflower abre as portas externas. Postes de luz
pitorescos fornecem iluminação contra a noite, mas é uma área
muito mais simples do que a frente do hotel. Elas estão em uma
garagem de serviço.
— Entrada de funcionários — explica Violet.
Kit sabe que deveria apertar mais o casaco contra o vento frio,
mas não consegue fazer os dedos trabalharem. O homem de libré
chama um táxi para elas na rua 17; ele para diante delas na entrada
da garagem. Quando estão na cabine, fica mais quente. Violet dá
instruções ao motorista.
— Onde estamos indo? — Kit sussurra.
— Casa — diz Violet. O táxi começa a se mover e ela se vira para
Kit. Na parte de trás do carro, estão apenas duas garotas de
casaco, uma com uniforme de empregada, outra com pentes de
ouro nos cabelos. — Então não é mais segredo. Moya sabe. E a
Dottie?
— Sim. — Kit ainda se sente entorpecida. — Ela estava bem ali.
— Ok. Você tem dinheiro? Você tem seu crachá do Hall?
— Sim.
A expressão de Violet está definida.
— Volte para o Hall, pegue suas coisas. Faça o táxi esperar e ele
a levará a este endereço. — Violet tirou um lápis e um cartão, um
cartão de índice de cor creme, Kit observa, de seu outro bolso. À luz
dos postes de rua que passam, ela rabisca no cartão e o passa para
Kit.
— O que... Onde é isso? — Kit pergunta.
— É o meu lugar. A casa dos meus pais, na Lowell Street. Você
pode se recompor lá e depois pegar o ônibus para a Union.
O cartão na mão de Kit está tremendo. Ela o segura com força.
— Tenho que correr.
— Sim. — Violet agarra o braço de Kit. — Desculpe. Eu sei que
não era isso que você queria...
— Acho que nunca soube o que queria — sussurra Kit. Com
exceção de Moya. Mas as coisas que ela poderia ter desejado são
imateriais agora. Talvez sempre tenham sido.
— Olha, eu sei que isso é ruim, mas você ainda tem uma chance
de escapar. — Violet dá uma olhada rápida para o taxista e abaixa a
voz. — Você fez planos, certo? Talvez você não saiba para onde
está indo, mas tinha um plano para chegar ao Union e se libertar.
Você ainda pode fazer isso, se for rápida.
Kit olha pela janela. A cidade é um borrão chuviscado de luzes
cintilantes e prédios sombreados.
— Por que você saiu do salão de baile?
Pela primeira vez, o rosto de Violet perde sua expressão de
“assuma o controle”, parece oco e triste.
— Eles encontraram uma garota. Ela estava nos fundos da casa,
em um depósito perto da escada...
— Outra garota? — A cabeça de Kit vira para trás. — Quer dizer
que houve outro assassinato?
— Sim. — Violet observa o visual de Kit. — Eu não estava lá, ok?
Eu não vi, só ouvi os gritos e...
— Precisamos dar a volta por cima. — Kit senta-se mais ereto. —
Precisamos voltar, podemos...
— Não. — Violet parece quase zangada. — Senhor, menina, você
está louca? Esta é sua única chance! Eu sei que dói e sei que você
quer fazer o bem por essas garotas, eu amo Dinah e também quero
fazer o bem por elas. Mas você tem que pensar em fugir.
Kit cobre o rosto com as mãos, fala por entre os dedos.
— Violet, eu não posso. Isso está errado, isso é tudo...
— Escute-me. — A mão de Violet vai para o ombro de Kit, dá uma
pequena sacudida. Sua voz é baixa e séria. — Isso não é apenas
sobre como você se sente. Você mentiu em documentos do
governo.
— Sim, e eu sabia que haveria repercussões — insiste Kit. —
Uma corte marcial, uma multa...
— É muito pior do que isso. Isto é tempo de guerra. Você violou a
Lei de Espionagem, isso é traição, Kit. Pelo amor de Deus, eles
condenaram aquele taberneiro de Detroit à forca só por dar uma
xícara de café a um prisioneiro de guerra alemão fugitivo!
Traição. Espionagem. Enforcamento.
Kit se lembra das palavras do juramento de lealdade que ela
assinou, bem na pequena escrivaninha de madeira após sua
entrevista: Dizia que ela fez o juramento livremente, “sem qualquer
reserva mental ou propósito de evasão”. Ela lembra que a caneta
que pegou para assinar estava sem tinta, então o entrevistador
permitiu que ela usasse a própria caneta que estava no bolso da
camisa…
Ela se sente doente.
— Eu sei… — Violet prende a respiração e deixa a mão cair. —
Eu sei que deve parecer que tudo está desmoronando agora. E
você quer salvar essas garotas, fazer justiça para elas. Entendo.
Mas você também tem que pensar em se salvar.
Kit olha para Violet, seus olhos quentes. Violet está piscando
rápido, com a testa franzida. Tudo o que Kit pode fazer é acenar
com a cabeça. Então Violet está estendendo a mão para ela,
puxando-a para um abraço.
— Salve-se, Kit — sussurra Violet. — Antes que seja tarde.
CAPÍTULO VINTE

Às vezes, havia um cronograma para os apagões. Mas às


vezes as sirenes tocavam, e era isso – você não conseguia
se mexer.
— CAROL ANN WHITE

Na frente do Arlington Hall, as meninas se abraçam novamente,


então Violet instrui o motorista a levá-la para casa e voltar ao
mesmo local para pegar Kit em meia hora. É pouco antes da meia-
noite, e a escuridão suave ao redor da base está profundamente
silenciosa, perturbada apenas pelo zumbido distante do tráfego e o
barulho do asfalto arenoso enquanto Kit caminha até o portão de
segurança. Ela enfia a mão no bolso do casaco em busca do
distintivo.
Na guarita, um soldado está fumando com o oficial de plantão. O
policial de plantão acena com a cabeça.
— Teve uma boa noite?
— Sim — mente Kit, e é preciso um esforço gigantesco para não
dizer Sim, senhor. Ela costumava lutar muito com isso quando
assumiu a identidade de Katherine, mas esta é a primeira vez em
algum tempo que ela teve que suprimir o hábito.
— Certo, bem...
A PM inspeciona seu crachá de perto. Kit sente a arritmia
cardíaca aumentar. Mas então ele simplesmente devolve o crachá e
acena para que ela passe. Kit aperta os lábios para sorrir em
agradecimento, permite que a respiração que ela estava segurando
escorra enquanto ela pega a estrada que leva à escola.
Dentro do vestíbulo escuro, o bater de seus saltos no parquet
brilhante ecoa o bater das máquinas de escrever no andar de cima.
Ela sobe as escadas até o Três, tentando não parecer que está com
pressa.
Você mentiu em documentos do governo... Você violou a Lei de
Espionagem, isso é traição, Kit.
As palavras ecoam em sua cabeça. Uma garota de saia azul-
marinho e conjunto elegante desce do outro lado da escada. Kit
controla sua respiração, certifica-se de encontrar os olhos da garota
e acena com a cabeça, como sempre. Finalmente, o último passo
para a aterrissagem do Três. Kit caminha pelo corredor e entra em
seu quarto, fecha a porta e se encosta nela.
Respire.
Seu queixo está tremendo, mas ela não tem tempo para chorar.
— Vamos, agora — ela sussurra. Ela acende a luz.
Primeiro, o baú. Ela desempacota roupas suficientes para expor
uma sacola azul-escura, que não fazia parte do conteúdo original do
baú – é algo que Kit adquiriu há cerca de seis meses, de uma garota
no Dois que a estava distribuindo. A bolsa de carpete é grande o
suficiente para guardar itens essenciais e roupas. Mais
crucialmente, não se parece com uma mala.
Kit se pergunta por que ela nunca, até este momento, fez as
malas para sua fuga. Não é como se ela não tivesse recebido
muitos avisos prévios. E não é que ela pensou que nunca seria
pega – é que ela não queria pensar em ir embora. Ela faz a mala
com rapidez e eficiência, acrescentando produtos de higiene,
cuecas e meias, uma muda de saia, outra camisa, um vestido
utilitário, um cardigã, além dos papéis de referência e o envelope de
dinheiro. O resto ela deixa onde está.
Agora para a parte mais difícil.
Kit se levanta e tira o casaco. Ela se vira para o espelho de corpo
inteiro no guarda-roupa de Dottie e olha para si mesma: o vestido
dourado, o brilho cintilante dos pentes em seu cabelo, os lindos
sapatos emprestados. Kit pensa na maneira como Moya olhou para
ela no salão de baile – como se ela fosse uma maravilha natural.
Como se ela fosse uma aurora boreal.
A última visão de Kit de si mesma no vestido é nublada por
lágrimas, mas ela olha uma última vez. Uma memória dolorosa
ainda vale a pena preservar.
Ela tira os sapatos, desamarra o cordão de tecido na frente,
desenrola tudo, tira as tiras brilhantes. Ela pendura o vestido em um
cabide, enfia no guarda-roupa de Dottie, junto com os sapatos. Ela
tira os pentes do cabelo e os coloca sobre a cômoda.
Tudo depois disso é metódico: sutiã, cinta, meias quentes, camisa
azul, suéter cinza, saia azul. Ela calça os sapatos oxford para
movimentos mais rápidos. Ela enche a bolsa de vinil marrom com
um pente, seu batom e pó compacto, a cópia de Emma de seu
criado-mudo, um envelope com dez dólares dentro. Ela prende uma
boina cinza no cabelo e coloca o casaco de volta. Ela coloca a bolsa
no ombro e pega a bolsa-tapete pela alça de bambu.
Há um momento para inspecionar o quarto – este quarto, onde ela
vivia, lia e dormia, onde ela conversava com Dottie sobre tudo o que
se possa imaginar, onde elas riam e comiam guloseimas que
escapavam do refeitório e experimentavam as roupas uma da outra
e mexiam com seus cabelo, e fofocava e confidenciava e ficava
acordada até tarde... Este quarto onde ela se sentia livre pela
primeira vez, uma garota com vida própria. Uma menina que partiu
de barco, há tanto tempo, e chegou à costa distante de um novo
jeito de ser.
Kit apaga a luz.
De volta ao corredor, ela verifica se a barra está limpa antes de
voltar para as escadas, descendo com os pés tranquilos. É mais
fácil nestes sapatos. Embora o som de máquinas de escrever,
murmúrios e papel embaralhado venha de quartos em outros
andares, nenhuma outra garota aparece para perguntar a Kit o que
ela está fazendo, descendo com roupas de viagem tão perto do
toque de recolher.
Ela chega ao primeiro andar sem incidentes e está compondo
mentalmente a mentira que contará ao PM no portão para poder sair
do complexo: Ela recebeu uma má notícia, sua mãe está doente,
gravemente. Este é um traço de misericórdia. Os guardas não
sabem quem ela é, não podem distinguir uma garota da outra, então
ela pode dizer que está indo apenas para Bethesda, e ninguém
saberá. Kit ensaia a mentira enquanto caminha pelo chão em
direção à entrada principal, puxa a bolsa mais alto para estender a
mão e agarrar o puxador da porta...
Uma sirene toca, ecoando pelo prédio.
Kit deixa cair sua bolsa de carpete. Seu corpo se achata contra a
parede. O clamor em sua mente compete com a buzina da sirene, e
ela tem que cerrar os punhos com força para se concentrar, para
perceber que o alarme não está disparando porque ela tocou na
maçaneta da porta ou porque eles descobriram que ela está
tentando sair.
É a sirene de ataque aéreo.
É um ataque aéreo.
Uma onda de movimento – uma garota corre pelo saguão, indo
para o auditório. As luzes se acendem no corredor no andar de cima
e são apagadas com a mesma rapidez. Kit ouve o burburinho das
vozes das garotas vindas deste andar e do Dois, enquanto os
supervisores do andar comandam seus pupilos. Em um momento,
esta área de entrada frontal estará lotada de garotas enquanto os
funcionários da Signal Intelligence correm para o abrigo antiaéreo.
Kit tem que se mover.
Ela se abaixa para pegar sua bolsa de viagem. A sirene de ataque
aéreo ainda está fazendo seu pavoroso aaaoooowwwooo, e ela está
tremendo tanto, respirando rápido e em pânico, que ela precisa de
duas tentativas antes de conseguir segurar a maçaneta novamente.
Ela poderia se juntar à multidão de garotas prestes a descer e se
proteger no porão. Não, esse é o último lugar que ela quer estar –
presa no porão claustrofóbico com todas as outras, sem chance de
escapar. Mas não há absolutamente nenhuma chance de ela passar
pelo portão durante um ataque aéreo ativo.
Droga.
Ela não pode voltar para seu quarto – subir as escadas, contra o
fluxo do tráfego, chamará a atenção e eles verificarão dormitório
após dormitório para garantir que ninguém foi deixado para trás.
A biblioteca.
Kit aproveita essa ideia quando as luzes do prédio se apagam,
mergulhando a escola na escuridão. Pequenos gritos de garotas no
andar de cima são rapidamente abafados.
Kit conhece seu caminho no escuro.
A sirene soa por todo o Hall. Ela aperta a bolsa contra o peito,
contra as abas da frente do casaco. Ela caminha rapidamente para
o corredor à direita do saguão, salta quando uma garota sai de seu
quarto para o corredor acarpetado e se dirige para a entrada
principal. Kit acelera o passo na outra direção.
Mais alguns passos e ela está lá.
A porta da biblioteca se abre silenciosamente. Kit fecha
rapidamente atrás dela. Nenhuma lâmpada ilumina a sala, e as
cortinas grossas impedem até mesmo a luz da lua. Há o cheiro de
lustra-móveis fria no escuro.
Kit segura as sacolas com uma das mãos e tateia em busca do
chesterfield. O barulho da sirene é menor aqui, pelo menos. Kit
afunda na cadeira, recuando – o couro está congelando. Ela se
atrapalha ainda mais e encontra a ponta de uma das poltronas
laterais, seu estofamento de tecido mais amigável. Ela inclina a
cadeira para que fique de costas para a porta. Se alguém entrar,
não ficará imediatamente óbvio que a sala está ocupada. Então ela
coloca as malas no chão, atrás da cortina, e se senta.
Ela tira os sapatos e enfia os pés embaixo dela. Ela não vai a
lugar nenhum, isso é certo. Mesmo que ela conseguisse sair para a
rua, seria parada por agentes antiaéreos. Nenhum veículo circulará
no blecaute. Seu táxi agora está fora de questão.
Ela está presa.
Um cobertor de mohair está pendurado nas costas da cadeira; Kit
o desdobra sobre si mesma. Ela desabotoa a boina e a coloca sobre
o joelho. Impossível saber que horas são, mas é tarde.
A sirene de ataque aéreo silencia abruptamente.
Kit fica sentada no escuro, enfiada na poltrona, pensando em
Moya. Tensa com a preocupação de que alguém entre e a encontre.
Ansiosa por seus amigos, ansiosa por uma corte marcial, triste por
tudo ter dado tão errado.
Ela senta, escuta e espera.
Mas depois de mais de uma hora ouvindo e esperando, a tensão,
a ansiedade e a mágoa a esgotam. Fechar os olhos não é diferente
de sentar na escuridão. Kit agarra o cobertor de mohair. Deixa seu
corpo afundar na cadeira. Conta suas respirações.
Adormece.
CAPÍTULO VINTE E UM

Quando você tiver feito um esforço completo e


razoavelmente longo para entender uma coisa e ainda se
sentir confuso com isso, pare. Você só vai se machucar se
continuar.
— LEWIS CARROLL

Moya olha pela janela do táxi enquanto elas entram na Arlington


Boulevard, imaginando quando ela vai começar a sentir novamente.
Não houve tempo para sentir. A noite passada foi uma bagunça
antes mesmo da sirene de ataque aéreo que confinou todos no
Mayflower Hotel. A polícia tinha acabado de chegar para isolar a
cena do crime na escada do salão de baile quando as sirenes
começaram a soar. A equipe providenciou rapidamente para que os
convidados da arrecadação de fundos procurassem abrigo ou
encontrassem camas, uma vez que ficou claro que todos estavam
presos no lugar.
Durante toda a noite, Moya pensou na expressão no rosto de Kit
quando ela disse “sinto muito” e saiu correndo do salão.
Agora é sábado de manhã cedo e Moya está pensando há horas,
e ainda não registra nenhuma emoção. É como se os eventos da
noite passada tenham-na esgotado completamente; não há mais
energia dentro dela para desenterrar ansiedade ou chateação.
Talvez seja assim que ela vai reagir a tudo agora – com essa calma
oca e sem emoção. Isso pode realmente ser uma coisa boa.
— Moya, seu crachá?
Ela percebe que está na calçada perto da guarita em frente ao
Hall sem nenhuma lembrança de ter saído do táxi. O ar externo é
fresco. Uma multidão de garotas gira em torno da guarita, todas
tentando entrar ao mesmo tempo. Dottie está falando com ela.
— Você tem seu crachá, certo? — As lapelas do casaco de Dottie
estão frouxas. Seu rímel está borrado e seu cabelo está solto, e ela
parece exausta.
— Oh, sim. Bem aqui. — Moya remexe no bolso do vestido em
busca de sua identidade.
O PM espera com aborrecimento mal disfarçado, mas finalmente
as deixa passar. Moya acha que elas devem parecer um par e tanto:
ela com o vestido de veludo preto com gola alta e mangas justas,
Dottie com seu uniforme e casaco de empregada sujos. Juntas, elas
caminham pela entrada da garagem até a grande entrada do Hall.
Quando elas chegam ao saguão, a ideia de subir um lance de
escada para chegar ao quarto dela deixa Moya completamente
enervada.
— Você acha que Kit voltou? — Dottie pergunta, sua voz baixa.
— Não sei. — Moya fecha os olhos e fica de pé no assoalho,
quase cambaleando de cansaço. — Eu só quero me sentar.
— O refeitório? — Dottie sugere.
Moya pensa na forte e implacável luz fluorescente refletida nas
paredes brancas e nos bancos do refeitório, balança a cabeça.
— A biblioteca.
— Ok — Dottie se vira naquela direção. — Talvez eu possa nos
trazer um pouco de café?
— Parece bom — Moya entoa enquanto ela segue, ouvindo a
falta de cor em sua voz.
No final do corredor, a porta da biblioteca. Além da porta, um
mundo de teca quente e cortinas escuras e...
— Moya! — Dottie acena com a mão freneticamente.
Kit está enfiada na cadeira entre o sofá chesterfield e uma janela.
Um cobertor de mohair está estendido sobre seus joelhos, a ponta
do cobertor apertada em sua mão, junto com uma boina cinza. Sob
o casaco, ela está vestindo um suéter cinza e uma saia de viagem
azul; uma mala e uma bolsa de carpete estão enfiadas debaixo da
bainha da cortina nas proximidades. Pelo vinco de luz desbotada ao
longo da parede, Moya pode ver que Kit está dormindo; suas
bochechas estão pálidas e sua cabeça está virada para o ombro
como a de um passarinho.
Uma pontada de dor afiada como diamante se desenrola no peito
de Moya, fazendo com que ela prenda a respiração. Ela está
sentindo novamente.
As pálpebras de Kit vibram.
— Ela está acordando. — A voz de Dottie é toda de partículas
duras.
É patético, mas a visão de Kit lentamente abrindo os olhos traz
uma pequena centelha de alegria. O rosto de Kit ganha cor. Ela
pisca para elas, estranhamente calma.
— Você quebrou o toque de recolher — diz ela suavemente.
Por um momento, é como se Moya tivesse esquecido como falar,
como se mover. Então ela engole, sua garganta desgruda, e a
sensação de estar nela corpo retorna.
— O ataque aéreo. — Ela passa a mão trêmula pelo cabelo. —
Ninguém poderia ir a lugar nenhum. Dottie e eu passamos a noite
em sofás no salão de baile do Mayflower Hotel.
— Você está indo embora — O queixo de Dottie está tremendo
levemente enquanto ela olha para Kit, seu rosto pálido e acusador.
Kit não responde. Ela se desdobra de sua posição estranha na
lateral; Moya quase pode ouvir seus músculos rangendo.
— Que horas são?
— São sete da manhã — diz Moya. Então ela faz a pergunta mais
importante, aquela que está prestes a sair: — Quem é você?
Kit esfrega os bíceps no casaco e se inclina para a frente na
cadeira.
— Kathleen. — Ela parece quase serena, dizendo isso. Há até um
sotaque diferente em sua voz. — Sou Kathleen Hopper, de Scott’s
Run, West Virginia. Eu era a empregada de Katherine Sutherland.
Dottie parece horrorizada.
— Você é empregada?
— Empregada doméstica. Companheira. Enfermeira. — Kit olha
entre as duas garotas. — Katherine cresceu doente. Ajudei-a a
tomar banho, ajudei-a a se vestir, ajudei-a nas aulas. Nós éramos...
muito próximas. — O queixo de Kit cai. — Ela morreu na noite
anterior ao Departamento de Guerra assumir a escola.
Dottie fica ainda mais magoada.
— E você roubou os papéis dela?
— Eu não roubei nada. — Os lábios de Kit se contraem e depois
se soltam, talvez reconhecendo que Dottie fez uma suposição
razoável. — Eu não peguei nada, exceto um nome. Katherine me
deu seu baú e seus papéis na tarde anterior ao seu falecimento. Ela
me encorajou a ir embora. E eu estava pronta... até encontrar vocês
duas no saguão.
Moya molha os lábios, lembrando.
— E nós lhe oferecemos um emprego.
— Por que você não nos contou? — diz Dottie. — Por que você
não disse nada?
— O que eu poderia dizer? — Kit olha para cima agora com mais
fogo. — Teria me dado este emprego se eu dissesse que sou
empregada doméstica? Uma garota sem referências, sem educação
para falar? Você teria me aceitado do jeito que fez se eu tivesse lhe
contado a verdade? Eu já tinha me apresentado como Katherine, eu
estava… — ela engole. — Eu estava assustada. Eu ainda estou
com medo. É por isso que estou indo embora.
Há um longo silêncio. Moya pressiona a palma da mão na barriga,
sobre o veludo. A pressão é boa – ela a mantém centrada. Ela olha
para Dottie, fazendo sua voz serena, mas firme.
— Dot, você poderia pegar algo para bebermos na cozinha?
Café... sei lá... algo, desde que esteja quente.
— Não posso ficar para o café — Kit começa. — Já demorei
muito...
— Uma xícara de café — diz Moya, levantando a mão. — São
apenas sete horas, ainda falta tempo para a mudança de turno.
Dottie franze a testa, mas – depois de um longo olhar para Kit –
ela se vira e sai da biblioteca, fechando a porta atrás de si. Kit a
observa partir.
Moya sente como se todos os seus fios tivessem sido cortados.
Ela ainda está de pé, mas apenas por força de vontade. Diante dela,
o rosto pálido de Kit está iluminado com altos pontos coloridos. Seu
cabelo é um fogo de outono, contrastando com os azuis e cinzas de
sua roupa. Bela Kit – resistente e inteligente Kit. Moya mal consegue
entender como uma garota tão esperta pode ser tão tola.
Mas Moya sabe que ela é a idiota.
— Não acredito que você mentiu para mim — ela sussurra.
De repente, toda a alma de Kit parece aparecer em seus olhos.
— Você era a pessoa para quem eu menos queria mentir. Mas eu
já era Katherine há muito tempo para voltar. E eu tinha muito a
perder.
— Kit… — Moya sente uma dor aguda e vítrea no peito. Ela não
pode mais fazer isso. Ela afunda lentamente no chesterfield, os
dedos sobre o rosto. — Nem sei se devo chamá-la de Kit ou
Kathleen.
— Eu sou Kit. Assim como sempre fui.
Moya não sabe no que acreditar. Ela mal confia em si mesma
para falar. Ela deixa a pausa crescer até que Kit mude de rumo
suavemente.
— O que aconteceu no Mayflower ontem à noite?
Moya deixa cair as mãos, reunindo todos os pedaços quebrados
de si mesma para responder.
— Eles encontraram uma garota perto da escada. Jovem, bonita.
— Ela sente sua expressão se contorcer e se livrar dela. — Eu
nunca cheguei perto o suficiente para ver. Raffi me contou alguns
detalhes.
— Ela era uma das garçonetes?
— Não. Ela era uma convidada. Uma estenógrafa do
Departamento de Guerra, em compras.
A frustração e a ansiedade de Kit transparecem em seu tom.
— Violet e Dottie subiram e desceram aquelas escadas a noite
toda.
— Eu sei disso.
— Quase voltei — confessa Kit. — Violet me convenceu do
contrário na parte de trás do táxi.
Moya sente outra dor aguda, não consegue evitar como sua voz
fica feroz.
— Violet sabe?
Kit assente.
— Ela costumava trabalhar na cozinha. Ela me reconheceu na
manhã em que voltamos da Fazenda.
— Ela manteve o seu segredo, todo esse tempo… — Moya se
pergunta se Kit sabe o que tudo isso significa. — Ela lhe disse que o
que você fez, falsificar sua identidade em documentos oficiais, é um
crime federal?
— Sim — Kit reconhece simplesmente.
Moya apenas olha para ela, estupefata.
— Kit, você tem ideia do perigo que corre?
Kit parece calma sobre isso, o que é assustador.
— Sim. Meus papéis, minhas referências... Todos pertencem a
alguém que não existe mais. Passei pela entrevista de
recrutamento, mas não vou passar pela revisão de segurança. —
Ela faz um bufo triste. — Se eu sair agora, pelo menos terei uma
vantagem.
— Você deveria ter saído há uma semana. — É um comentário
feito para machucar, e Moya fica feliz em ver Kit recuar; talvez ela
comece a levar isso a sério.
A porta da biblioteca se abre e Dottie volta com uma bandeja – e
Violet logo atrás dela. Violet está bem vestida com um sobretudo
camel, um vestido verde de lã com mangas compridas e um cardigã
marrom. Ela traz ar frio para a sala, e Moya fica feliz em vê-la:
talvez, entre as duas, elas possam fazer Kit ver sentido.
— Acabei de voltar para o complexo — diz Violet, tirando o
casaco e jogando-o no braço do sofá, tirando as luvas. — Eles
mantiveram todos os membros da unidade Negra na frente do
portão por meia hora, verificando os crachás como se não
soubessem que pertencemos àquele lugar. — Ela olha para Kit, na
poltrona. — Você não apareceu na minha casa ontem à noite. O que
diabos você ainda está fazendo aqui?
— Eu não podia ir embora. — Kit dá de ombros. — O ataque
aéreo…
— Foi ontem à noite. Você deveria estar a trinta quilômetros de
distância agora!
— Adormeci.
— Você é louca — diz Violet, balançando a cabeça.
Dottie finalmente coloca sua bandeja na mesa baixa entre o
lateral e o chesterfield.
— Café. — Seu rosto ainda está azedo, mas ela também parece
muito cansada. — Eu mesma fiz... o pessoal da cozinha ainda não
foi autorizado a entrar no prédio.
— E eu fiquei para o café — diz Kit a Violet, mas soa débil.
— Você ficou para se desculpar, é isso, e está arriscando sua vida
— Violet se volta para Moya e Dottie. — Olha, eu sei que ela não é
a verdadeira Katherine Sutherland, e talvez isso estrague suas
saias. Mas ela é apenas mais uma garota tentando sobreviver, como
todas nós. E agora, ela deve estar o mais longe possível da
Inteligência de Sinais. Se eles a pegarem...
— Pare. Apenas... espere e deixe-me pensar. — Os dedos de
Moya se fecham em punhos, que ela coloca na testa por um
momento. Mas vai levar mais do que um momento para resolver
essa bagunça. Ela solta as mãos, pega o bule de café, despeja um
pouco da bebida de aparência leitosa em três xícaras, há apenas
três na bandeja. Ela passa um copo para Violet. — Beba isso e me
dê um segundo.
Kit pega um copo para entregar a Dottie no automático, vacila
quando percebe que Dottie está apenas olhando para ela. Mas
então o cansaço de Dottie parece superar sua indignação. Ela pega
a xícara e se acomoda no sofá.
Violet só toma um gole antes que o silêncio pareça incomodá-la.
— Você sabe que ela não pode ficar…
— Mas ela também não pode ir embora — interrompe Moya. Ela
tamborila os dedos no joelho coberto de veludo, ainda pensando
muito. — O turno do dia está prestes a começar.
— Está uma loucura lá fora — diz Violet. — Todas as garotas que
estavam em rotação, que ficaram presas durante o ataque aéreo,
mais as garotas do turno da noite ligando para perguntar se elas
deveriam estar aqui, mais as garotas que chegaram para começar
às oito. É um bom momento para fazer uma pausa.
— Mas ela não precisa ir ainda — Moya insiste, seu coração
batendo furiosamente contra suas costelas.
— E se o cara do salão de baile a denunciar? Aquele que
conhece a família dela?
— Nunca contei a Lascar onde ela trabalhava, para que ele não
soubesse para quem ligar. — Moya preocupa a unha do polegar
com os dentes. — Se ela entrou ontem à noite, seu crachá ainda
está bom, e a revisão de segurança não chegou ao fim do alfabeto.
— Ela deve ir enquanto pode — ressalta Violet — não passar
perto.
Moya sabe que a ideia de Violet não vai rolar.
— Isso parece sensato, mas não é. Ela vai chamar mais atenção
se não aparecer para trabalhar. Ela será denunciada ao Recursos
Humanos.
Kit abre a boca, mas parece mudar de ideia. Ela não diz nada,
toma um gole de café. Escolha sábia.
Dottie, desamparada, aquece as mãos na xícara.
— Não acredito que tudo isso está acontecendo no meu dia de
folga.
É isso. Moya olha para cima.
— Dot, você está certa. Kit deve sair em seu dia de folga. Faltam
apenas alguns dias... quarta-feira, certo? — Moya verifica o aceno
de Kit. — Então nós adiamos para quarta-feira. Até então, agimos
normalmente. Eu, Kit e Violet vamos trabalhar. Dottie tira o dia de
folga para descansar. Vou tomar algumas providências para que, se
Kit for embora na quarta-feira, eles não esperem que ela volte até
tarde.
— Ela é uma impostora! — A voz de Dottie se eleva e ela bate a
xícara na bandeja. — Como devemos agir normalmente?
— Fique quieta — Moya sussurra. — Você quer que ela seja
enforcada? — Seu corpo treme com o esforço necessário para
recuperar o controle, mas ela resiste. — Esta é a melhor maneira de
fazer isso.
— Acho uma loucura esperar tanto — diz Violet. — Mas se é
assim que você quer jogar...
Os olhos de Kit estão correndo entre todas elas.
— Você está esquecendo alguma coisa. E o assassinato? E a
garota do Mayflower...
Dottie se levanta e se afasta, levantando as mãos.
— Ah, querida. — Violet balança a cabeça cansada. — Isso não é
mais da sua conta.
— Mas aquela garota…
— Kit — Moya dá a ela o olhar mais duro, tentando fazê-la
entender. — Não brigue comigo sobre isso. Estou tentando ajudá-la
a fugir.
— Moya…
— Por favor. — Moya sente a tensão em todos os seus músculos.
Sua voz, sem permissão, torna-se irregular. — Só posso salvar a
vida de uma garota por vez.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Não, os códigos não eram como palavras cruzadas ou


anagramas – os códigos não foram feitos para serem
resolvidos. Alguns códigos, nunca resolvemos.
Continuamos tentando, no entanto.
— BRIGID GLADWELL

Elas deixam a bandeja do café na biblioteca. Dottie diz que voltará


para buscá-la mais tarde, mas que agora ela só quer tirar o uniforme
de empregada. Moya sai para seu próprio quarto, para sair do
veludo preto e vestir roupas de trabalho – Kit odeia vê-la partir.
Violet segue em frente para a casa de campo.
Kit tira o casaco para cobrir a sacola enquanto sobe as escadas.
Ela ainda está estranhamente entorpecida. Ocorre que ela tentou
fugir de Arlington Hall duas vezes, apenas para voltar atrás na porta.
Pelo menos ela pode usar seus próprios sapatos agora.
Hoje. Amanhã. Dois dias depois.
Esse é todo o tempo que ela tinha. Ela tem que deixar de lado os
pensamentos de Dinah Shaw e Libby Armstrong e essa nova garota.
Ela precisa se concentrar em manter seu disfarce por mais quatro
dias e talvez – apenas talvez – encontrar uma maneira de fazer as
pazes com Moya e Dottie. Se é que isso é possível.
Kit pendura o casaco e a bolsa atrás da porta do quarto. Ela tem
que ir para a sala de trabalho, mas o que ela vai dizer para as outras
garotas lá? Como ela pode conversar agora? Em quatro dias, ela
terá ido embora.
Ela tira seus produtos de higiene pessoal da sacola. Esses nove
meses inteiros não foram um longo processo de partida? Ela não
sabia em seu coração que um dia ela simplesmente teria que
desaparecer?
Com um suspiro, ela desliza a bolsa debaixo da cama, ao lado do
baú. Não adianta desempacotar o resto. Ela pensa nas mentiras que
contou, para manter sua identidade falsa, para se manter segura... É
por isso que ela é tão compelida a encontrar justiça para as meninas
que foram mortas? Ela tem tentado equilibrar suas mentiras e
traições cotidianas com gestos obstinados de decência moral e
virtude?
Ou é porque ela lutou muito para ter uma vida, e Dinah e Libby e
essa nova garota – Kit nem sabe o nome dela – nunca tiveram a
mesma chance?
Kit rosna para si mesma e abre a porta.
No corredor e na esquina, na sala de trabalho, tudo é farfalhar de
papel silencioso, rabiscos de lápis e o cheiro de pó de talco rosa.
Opal tira suas cartas da mesa de Kit.
— Desculpe! Eu não sabia se você ia aparecer...
— Eu dormi demais depois do ataque — diz Kit. Outra mentira,
meu Deus, ela está cheia delas. Ela pigarreia enquanto toma seu
lugar à mesa. — Já voltou tudo ao normal? Houve alguma notícia
sobre isso?
— Só o de sempre — diz Carol, erguendo a cabeça enquanto
pega outro cartão. — Um táxi caiu em uma vala. Um grupo de
garotas do governo disseram que foram impedidas de entrar em um
abrigo antiaéreo na Universidade Católica pelo homem na porta. Ah,
e uma senhora caiu na linha férrea em Union.
— Ela estava bem?
Carol dá de ombros.
— Eles não disseram.
— Mas foi um exercício ou um ataque de verdade?
— Ninguém parece saber.
— Ótimo. — Kit suspira, então seu olhar se volta para os novos
maços de cartas. — Cartões azuis, agora?
— Sim — diz Brigid, do outro lado da mesa. Ela revira os olhos. —
E você vai amá-los.
Isso geralmente significa que o código é difícil. Kit seleciona um
cartão do topo de sua bandeja de arame e o examina. A primeira
coisa que ela percebe é que a mensagem parece abreviada. São
apenas algumas linhas de dígitos e não há nenhum código de
endereço óbvio.
O código de endereço geralmente está no início de cada
mensagem e é distinto porque esse código é diferente do código da
própria mensagem. O endereço especifica de quem é a mensagem,
para quem ela está indo e onde essas unidades estão localizadas –
o que é bastante interessante por si só – e geralmente é um bom
lugar para tentar primeiro, porque quase sempre há repetições de
coisas como saudações e agradecimentos e honoríficos.
— Onde está o endereço? — Ela embaralha as outras cartas
azuis em sua bandeja. — Nenhum deles tem endereço?
Opal balança a cabeça, sua expressão grave. Ela segura o
embrulho na mão.
— Olhe para isto... todos os cartões que sobraram da noite
passada.
— Mas isso é…
Kit para, se levanta e olha para cima e para baixo na mesa. Em
cada bandeja, há o dobro de fardos do que o normal. Edith, no final
da fileira, tem uma cesta vazia para o sobreposto. Uma cesta vazia.
Kit se volta para Opal.
— Sem descobertas? Nada?
— Uma sala inteira cheia de patos mortos — Opal confirma
tristemente. Ela levanta a mão. — Quero dizer, claro. As garotas no
cemitério ficaram presas com o ataque. Mas essas coisas são...
muito difíceis.
— Ok, deixe-me ver. — Kit pega seu lápis e começa seu primeiro
cartão. Sua impressão inicial é que Opal e Brigid estão certas, não
haverá uma solução simples para esse código. Não será como
ontem, quando elas tiveram suas grandes surpresas: alguém
descobriu que a cifra anterior era muito fácil de ler, ou talvez os
japoneses tenham apenas mudado para um novo livro de códigos.
Às vezes é assim, uma onda de mensagens complicadas quando o
livro de códigos muda pela primeira vez. — Acho que você já tentou
todos os ataques óbvios. — Kit corre o lápis pelas fileiras. — Estes
estão todos despojados?
— Aquela pilha, sim. — Opal passa uma borracha para ela. —
Edith disse que pode ter encontrado uma repetição em um de seus
cartões, mas ela não está nem perto de uma descoberta.
— Posso ver?
Há um momento de consulta com Edith, e algumas das outras
garotas se aglomeram ao redor. Kit acha que a matemática de Edith
é ótima. Carol faz uma sugestão e elas tentam algumas das
técnicas mais avançadas de mensagem no cartão de Kit. Mas os
números que saem do outro lado não fazem o menor sentido.
— Isso não está funcionando — observa Opal. — Alguém já
tentou encadear as diferenças?
— Eu tentei isso. — Outra garota, Florence, do outro lado da sala.
— Foi um fracasso.
— Bem, deve haver algo que possamos fazer para descobrir —
diz Kit, e todas as garotas concordam em tentar estratégias
diferentes. Edith e Carol fazem cópias de dois cartões, um de Kit e
um de Brigid, e todas começam a atacar as mesmas duas
mensagens de ângulos diferentes.
Na hora do almoço, ainda não há resultado. Algumas das garotas
estão ficando frustradas e Opal precisa animá-las.
— Lembrem-se, senhoras, isso não é um arranjo de flores. — Ela
se abana com as cartas na mão. — Você tem que estar preparada
para trabalhar nisso e falhar, então se recompor e trabalhar nisso
novamente.
Mas é difícil quando você fracassa repetidamente. É
especialmente difícil quando as meninas sabem que, sem uma
quebra de código, os meninos no campo ficarão visíveis e
vulneráveis. Sem essas pausas, os meninos americanos morrerão.
No final do turno, a cabeça de Kit está doendo e ela tem certeza
de que não é a única. Ela desce as escadas para o refeitório, seus
sapatos batendo pesadamente a cada passo. Durante um jantar de
salsichas com feijão, ela tenta encorajar os números a driblarem sua
cabeça. Mas isso não deixa muito para trás, exceto uma sensação
renovada de solidão: nem Moya nem Dottie cruzaram seu caminho
o dia todo, e Violet terá terminado seu turno e ido para casa.
Kit sai para passear no terreno e depois vai para a biblioteca para
pegar um livro antes de voltar para o quarto. Depois do banho, ela
arruma suas coisas e lê na cama. Dottie ainda não voltou.
Kit percebe que sua mente se desvia das palavras na página toda
vez que ouve passos no corredor. Finalmente, quando ela está
prestes a apagar a luz e dormir cedo, outro par de passos e a
maçaneta gira.
Dottie entra apressada, com duas sacolas de papel em uma das
mãos e a bolsa no outro braço. Ela vai direto ao guarda-roupa para
guardar suas coisas e não olha para Kit.
— Você foi fazer compras na cidade? — Kit pergunta.
As portas do guarda-roupa estão abertas e Dottie não responde.
Kit se vê, de pijama, refletida no espelho da porta do guarda-roupa.
Kit tenta novamente.
— Você teve um bom dia de folga?
Dottie ainda não responde. Ela recolhe sua toalha, artigos de
toalete e pijamas. Sai do quarto.
Kit suspira. Ela deixa o livro de lado, deita no travesseiro e pensa
no discurso de Opal para as meninas na sala de trabalho. Você tem
que estar preparada para trabalhar nisso e falhar – então se
recompor e trabalhar novamente.
Quando Dottie volta para o quarto, ela apaga a luz e vai para a
cama.
É muito quieto por um tempo, lá no escuro.
— Eu não queria mentir para vocês — Kit diz para a sala. — Não
é que eu não confiasse em você. Você é minha melhor amiga. Eu
só... não sabia como dizer isso.
O som de Dottie se virando na cama, de frente para a parede.
— Sinto muito — diz Kit.
Ela espera, continua esperando. Mas não há resposta. Depois de
um tempo, ela ouve a respiração de Dottie estabilizar.
Kit esfrega a manga da camisa do pijama contra os olhos úmidos.
Droga.
Mas ainda há uma chance. Ela tem mais três dias.
Ela empurra os cobertores até o peito, sentindo-se sufocada.
Tudo o que ela tem são palavras – desculpe, não queria magoá-la,
por favor, perdoe-me – e talvez isso não seja suficiente. Talvez ela
precise de mais. Se ela pudesse mostrar a Moya e Dottie de alguma
forma...
Mas mostrar a elas o quê? Que ela ainda é confiável? Como elas
vão acreditar nisso? Se ela estivesse no lugar delas, acharia difícil
de acreditar.
Ela revira o problema repetidamente em sua mente, sem
resultado, então tenta tirá-lo de sua cabeça. Não há mais nada em
que pensar, exceto os números nos cartões azuis na sala de
trabalho. A falta de endereço nos cartões azuis não faz sentido e
torna tudo mais difícil, porque o início é o melhor lugar para abrir a
mensagem.
Ela soma e subtrai mentalmente os números da primeira linha de
seu cartão de amostra – ela passou tantas horas trabalhando nisso
hoje, ela sabe de cor. Nenhum dos números que ela soma ou
subtrai ajuda a revelar qualquer coisa.
Kit olha para os ponteiros que brilham no escuro do despertador:
23h07. Ela deveria estar cansada. Como a garota do Mayflower foi
do salão de baile até o depósito perto da escada? Ela pode ter sido
persuadida a sair do salão pelo assassino. Encantada com sua boa
aparência e charme. Como essa garota foi enganada? Como o
assassino sabe exatamente quais botões apertar para fazer uma
garota confiar nele? Como ele sabia quais botões apertar para essa
garota?
E qual era o nome dela?
Droga.
Kit joga fora os cobertores e pega o roupão, arranhando os
chinelos. Ela tenta ficar quieta – Dottie está tentando dormir e Kit já
está operando com déficit de boa vontade. Ela vai até a porta e
encontra sua bolsa, remexe dentro dela. O pequeno cartão de visita
branco está bem no fundo, preso no forro da bolsa.
Ela pega o bloco de notas e o lápis ao lado da cama, volta para a
porta e sai do quarto.
Há um telefone público na escola, mas fica na cozinha. Kit desce
até o primeiro andar, atravessa o saguão e o refeitório de chinelos e
roupão. Um grupo de meninas tomando café, em um intervalo no
refeitório, olha para ela com ar divertido antes de retomar a
conversa. Kit bate no lintel da porta da cozinha para chamar a
atenção de um funcionário e ele mostra a localização do telefone
público dos funcionários: fica no fundo da despensa.
Ela afasta algumas latas de feijão verde para colocar o bloco de
anotações na prateleira da despensa. Não é até que ela levanta o
telefone que ela percebe que não pensou em trazer um centavo. Ela
tem que entrar em contato com a operadora e ligar a cobrar.
Felizmente, Raffi Ramale é uma coruja da noite.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Persistência é absolutamente necessária para decifrar.


— ELIZEBETH FRIEDMAN

Domingo de manhã e Moya ainda está de pijama. Ela não sabe se


tem energia para sair da cama e encontrar algo para vestir.
Ela faz, no entanto. É o que ela faz: todas as manhãs, ela se
levanta e encontra sua fantasia no armário, faz o cabelo e a
maquiagem, veste seu escudo glamoroso e sai para a batalha. Nos
dias em que ela está se sentindo deprimida, ela se mostra
particularmente bem. É uma espécie de armadura e é útil, mas o
esforço envolvido é tão cansativo.
Ela gostaria de que avisar dizendo que está doente não
parecesse covardia.
Quando alguém bate na porta, a voz acompanhante a faz prender
a respiração.
— Moya, sou eu. Eu preciso falar com você. — Uma pausa. —
Moya, você ainda está aí?
O despertador marca 7h02.
Talvez, se ela ficar muito quieta, Kit desista.
Mas Kit persiste.
— Moya, eu sei que você está aí dentro, posso sentir o cheiro da
fumaça do seu cigarro. Vamos, por favor, abra.
Moya xinga baixinho, apaga o cigarro e põe o cinzeiro na mesa de
cabeceira. Ela aplaude por não olhar para seu reflexo ao passar
pelo armário – ela não deveria se importar mais com sua aparência
na frente de Kit. Ela puxa o laço de seu roupão masculino em um nó
duro na cintura e abre a porta.
Kit entra e começa a falar sem preâmbulos.
— A garota do Mayflower era Veronica Luca. Ela tinha vinte anos
e chegou com uma colega do Departamento de Guerra, outra
estenógrafa. Ela foi morta na lavanderia perto da escada, o lugar
onde os funcionários geralmente guardam toalhas de mesa,
guardanapos e utensílios de cozinha.
Kit marca as coisas nos dedos. Ela está usando um vestido
utilitário azul-pavão com um cardigã de caxemira, e ela ficaria bem
vestida, só que seu cabelo está uma bagunça fofa.
— Kit, o que você está fazendo aqui? — Moya resiste à vontade
de estender a mão e prender o cabelo de Kit no lugar. Em vez disso,
ela cruza os braços contra o peito.
— Feche a porta que eu explico.
— Eu não vou… — Moya se interrompe ao perceber que o
volume de sua voz já está aumentando. Esta é a última coisa que
ela precisa que todos saibam, então ela fecha a porta. — Ok, a
porta está fechada. Isso não significa que eu quero que você
explique. Eu disse que você precisa deixar a investigação do
assassinato pra lá...
— E eu entendo isso — diz Kit. — Eu entendo. Mas estou aqui
por mais três dias e posso ajudar com...
— Não queremos que você ajude. Eu, Dottie e Violet ficaremos
bem sem...
— Eu preciso fazer alguma coisa — Kit joga as mãos para fora. —
Não consigo parar de pensar nisso. E enquanto ainda estou aqui,
posso muito bem...
— Não — diz Moya. — Kit, pelo amor de Deus, deixe para lá. Por
que você se importa? Você está indo embora.
— Eu nunca quis ir embora. — O rosto de Kit está vermelho, sua
respiração difícil. Todas as suas palavras saem cortadas. — Eu sei
que você não confia em mim, e isso é compreensível, mas nós
tínhamos algo, Moya. Algo que eu não quero dizer adeus. Passei
quatro anos no Hall e nunca quis sair... e absolutamente não quero
sair agora.
Há um longo silêncio enquanto elas ficam olhando uma para a
outra. Moya quer ficar com raiva, sabe que deveria estar com raiva,
mas a raiva não vem. É profundamente confuso.
Kit pressiona a frente do vestido com a mão e se recompõe com
esforço.
— Raffi me deu seu número em um cartão de visita na noite em
que fomos ao Clube Caverna. Eu... não consegui dormir ontem à
noite, então liguei para ele. Ele me deu muitas informações sobre o
assassinato de Veronica Luca.
— Você ligou para Raffi? — Moya descobre que sua voz ficou
rouca.
— Sim. — Kit olha para cima, nos olhos de Moya. — Tenho três
dias restantes e quero usá-los para fazer algo de bom. Três dias,
isso é tudo. Por favor, dê-me três dias e, depois disso, juro que
partirei em silêncio. Vou cooperar com qualquer coisa que você
quiser que eu faça.
— Três dias. — Moya cerra os punhos para se impedir de
estender a mão.
— Sim. — O corpo de Kit parece balançar para frente, na direção
de Moya, mas ela muda seu ímpeto no último minuto para caminhar
em direção ao armário. — Eu preciso olhar para o quadro de
assassinatos. Eu preciso verificar algo. Raffi disse que havia algo
deixado para trás na cena da morte de Veronica Luca, uma pequena
bolsa rosa. Lembro-me do que notamos na cena do assassinato de
Libby, na lavanderia das Fazendas...
— Libby Armstrong não tinha bolsa — diz Moya. Ela mudou de
posição e agora observa enquanto Kit abre as portas do armário,
empurrando as roupas para cada lado.
— Foi isso que ele pegou. — Kit está na frente do armário,
examinando a coleção de notas, cartões, mapas e fotos. Ela digita
uma nota. — Pronto... anotei em meu relatório que a bolsa de Libby
sumiu.
— Então ele deixou outra lembrança nesse novo assassinato. —
Moya descobre que, apesar de tudo, ela está presa na trajetória do
pensamento de Kit.
— Já são três assassinatos. E preciso verificar os registros de
Dinah. — Kit se vira para encarar Moya diretamente. — E eu quero
ter outra reunião. Hoje, na hora do almoço.
— Hoje?
— Tive uma ideia, e se conseguir uma confirmação das anotações
de Dinah, gostaria de compartilhar com todo o grupo. Talvez quando
eu me for, todas vocês possam fazer algo útil com ele.
Realmente não ajuda, pensa Moya, como ela se transforma em
massa total sempre que Kit olha para ela com aqueles olhos
sinceros e cheios de alma, todo o seu corpo irradiando uma
determinação fervorosa. Mas essa é a reação de Moya e,
infelizmente, ela está presa a isso.
No momento, ela só pode apertar os lábios e acenar em
consentimento.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

O livro de treinamento dizia que os dois lugares onde os


códigos são melhor atacados são no começo e no fim,
então sempre tentamos esses primeiro. E você não
adivinharia – funcionou.
— OPAL BUKOWSKI

— Fale rápido — diz Violet, esfregando as mãos nas luvas de lã


sem dedos. — Fiz uma pausa no turno da manhã, então preciso
estar de volta em dez minutos.
Elas estão reunidas nos estábulos anexos ao antigo picadeiro
coberto. Foi uma caminhada, mas Moya disse que elas não
poderiam se reunir no gazebo sem chamar a atenção: O gazebo fica
perto da escola e é visível da casa de campo. Os estábulos, por
outro lado, são mais profundos na floresta, fora da vista dos edifícios
principais e da zona de construção. Kit pode ver além das fileiras de
baias vazias até a entrada da pista de equitação. O cheiro de gado e
couro velho persiste, mas já faz quase um ano desde que enviaram
todos os cavalos de distância. O prédio é cercado por árvores e,
embora o céu mais alto seja de um azul claro e ensolarado, o ar ao
redor é escuro e fresco. Kit está com os braços cruzados para se
proteger do frio, raspando a sola dos sapatos nos restos de
serragem seca. Moya está parada na porta, enrolada em um casaco
com gola drapeada. Ela acendeu outro cigarro e parece estar
exalando nuvens de gelo enquanto se vira para as árvores.
Dottie está perto da entrada da velha sala de arreios, com uma
saia de inverno com meias grossas e um suéter creme com
pequenos laços vermelhos decorativos que Kit sempre detestou.
— Isso é loucura. Não sei por que estamos todas aqui...
— Estamos aqui porque me deram algumas informações sobre o
assassinato mais recente, de Veronica Luca — diz Kit. — A bolsa
rosa de Libby Armstrong foi encontrada ao lado do corpo de
Veronica.
Dottie cruza os próprios braços, repetindo a pose de Kit.
— O que isso importa agora?
— É importante porque não vamos desistir disso — insiste Kit. —
Mesmo quando eu for embora, vocês três vão continuar trabalhando
nisso, certo?
— Certo — diz Violet imediatamente.
Moya olha para Kit, mas apenas brevemente.
— Certo.
Dottie levanta as mãos.
— Ok, tudo bem, eu acho.
Kit confronta Dottie de frente.
— Ouça. Esses assassinatos são maiores do que qualquer coisa
acontecendo comigo. Devemos isso às vítimas, e a todas as vítimas
em potencial, continuar. Concordamos com isso ou não?
A boca bonita de Dottie franze, mas ela concorda.
— Sim, nós concordamos.
— Bom. — Kit relaxa um pouco. — Porque precisamos esclarecer
isso. E tenho uma teoria sobre os assassinatos que quero lhe contar
antes de partir.
— Uma teoria. — Dottie ainda não parece convencida.
— Isso mesmo. — Kit muda de posição, liberando um pouco da
tensão. — Olha, Raffi me disse que a bolsa de Libby foi encontrada
perto do corpo de Veronica, e Moya e eu checamos as notas para
confirmar. Então voltei e verifiquei as anotações sobre os pertences
de Dinah, do hospital. Dinah também tinha um objeto, mas era tão
pequeno que nunca o notamos.
As mãos de Violet estão paradas.
— Que objeto?
— Um anel. — Kit tira do bolso a ficha que ela escreveu no quarto
de Moya para ler. — Em seus pertences, havia um pequeno anel de
prata.
— Como você sabe que não era da Dinah? — Dottie pergunta.
— Porque tinha gravado Sempre no meu coração MW + DT. — Kit
mostra a eles onde rabiscou os detalhes da gravura no cartão. —
MW, Margaret Wishart.
— A garota que se afogou — Moya diz baixinho, de sua posição
de satélite. Ela ainda está virada para fora contemplativamente.
— Acho que podemos dizer, de forma bastante conclusiva agora,
que ela não se afogou. — Kit deixa sua expressão ficar séria. — E
não acho que faremos progresso nisso a menos que tentemos uma
abordagem diferente.
— O que você quer dizer? — Violet esfrega os bíceps.
— Quer dizer, precisamos começar a nos antecipar ao assassino.
— O homem que está matando essas garotas é esperto — aponta
Dottie. — Sabíamos que seria difícil.
— Sim, ele é inteligente — Kit concorda. — Nós já sabíamos
disso. E podemos repassar as informações sobre os assassinatos.
Mas sem uma nova estratégia, estamos apenas reagindo,
esperando que a próxima garota morra. Isso não está certo. Se
continuarmos jogando assim, mais garotas morrem, e sempre
estaremos dois passos atrás.
— Que tipo de nova estratégia você tem em mente? — Moya se
aproximou, seu rosto pálido e afiado.
Kit sente-se em ressonância com a proximidade de Moya, tem
que se concentrar no que ela está tentando dizer.
— Ok, todas vocês sabem que os pontos de entrada mais fáceis
para qualquer código são o começo e o fim. São os lugares mais
vulneráveis a ataques. — Kit empurra os calcanhares para ficar
firme. — Margaret Wishart foi morta, mas não esfaqueada. Seu anel
foi a primeira lembrança. Acho que o assassinato de Margaret
Wishart foi o começo. Precisamos descobrir o máximo que
pudermos sobre isso. Quero ir ao local onde ela foi morta.
— O que isso vai adiantar? — Dottie franze a testa. — Ela morreu
meses atrás. O que você acha que ainda estará lá?
— Não sei — admite Kit. — Mas é o lugar onde o assassino
começou. Temos que começar por aí também.
Violet suga o ar entre os dentes.
— Teríamos que pegar o ônibus. Preciso verificar o horário do
ônibus que passa pela Maine Avenue Southwest.
— Você pode verificar agora? Podemos ir depois do trabalho?
A boca de Dottie se contrai.
— Você quer ir hoje?
— Não tenho muitos dias restantes — diz Kit em voz baixa.
— Nós vamos hoje. Esta tarde. — Moya puxa o casaco em torno
de si. Agora ela examina cada uma delas por vez. — Margaret foi
assassinada em janeiro, e Dinah um mês depois. Libby foi morta há
duas semanas. Ele voltou a atacar na sexta-feira. Ele está
acelerando. Precisamos agir rápido antes que outra garota morra.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

O palpite de ouro é a estrela de aprendizagem da verdade.


— WILLIAM FRIEDMAN

O ônibus é algo velho e antigo, como todos os ônibus em que Kit já


esteve. Kit fica no corredor, perto do fundo, e Moya se senta ao
lado. Há muitos outros passageiros: garotas do Hall, dois garotos
em uniformes de serviço, duas matronas em vestidos marrons com
os cabelos enfiados sob lenços, identificando-as como funcionárias
da limpeza. Kit sente uma pontada de reconhecimento.
Ela também tem uma sensação deslizante de deslocamento
quando Violet entra no ônibus com todos os outros e imediatamente
se move para os bancos traseiros. Dottie se acomoda ao lado de
Violet sem pensar, mas Violet franze a testa para ela.
— Você não pode sentar aqui.
Dottie está alheia.
— Mas... é um lugar vazio.
— Estes são os assentos separados — sibila Violet, olhando de
soslaio, para longe. — Você não pode sentar aqui.
O rosto de Dottie se contrai, sem entender, mas ela se levanta e
avança uma fileira para se sentar ao lado de Moya.
— Melhor — diz Violet, visivelmente relaxada.
— Isso é ridículo — resmunga Dottie. — Estou sentada apenas
um assento à sua frente. Estou falando com você por cima do
assento!
— Não faça uma cena sobre isso — murmura Violet. — Você só
vai criar problemas para mim.
— Bem, tudo bem — diz Dottie. — Mas é ridículo.
— Diga isso ao Conselho do Condado de Arlington.
— Nunca fizemos isso em Baltimore — Dottie bufa.
— Você tem certeza sobre isso? — Violet cruza os braços. —
Talvez você nunca tenha notado.
— Hã, senhoras? — As pessoas estão olhando em sua direção,
então Kit decide mudar de assunto. Ela abaixa a voz. — Devemos
conversar sobre possíveis suspeitos.
Violet ergue as sobrancelhas.
— Temos possíveis suspeitos agora?
— Cada uma de nós conversou com as pessoas no Mayflower —
Kit a lembra. — Então, o que aprendemos?
— Além do óbvio. — Dottie lança um olhar na direção de Kit.
Kit sufoca seu sentimento de culpa.
— Ainda não reunimos nossas informações, mas o homem que
procuramos estava lá. Então, com quem conversamos?
Moya estava olhando pela janela, mas agora ela se vira, os olhos
nublados em pensamentos.
— Dos convidados a quem fomos apresentadas, apenas alguns
deles pareciam se encaixar na descrição. John Farrell foi um deles.
Bob Martelli. Ricardo Norton. Todos têm menos de trinta e cinco
anos, são ricos, bonitos e charmosos.
— E alguns deles são poderosos — observa Kit.
Moya assente.
— Raffi está investigando suas afiliações, para ver se algum deles
tem ligações com a Aliança. O pai de Bob Martelli é grande no ramo
do tabaco. Richard é bem relacionado no Departamento de Guerra.
— O que o colocaria em uma boa posição para escolher garotas
— Dottie reflete.
— John Farrell era o mais novo — acrescenta Kit. — Eu podia vê-
lo em um baile de dança. Mas não os outros.
— Talvez. — Moya dá de ombros. — Dottie, você recebeu notícias
de alguém?
Dottie balança a cabeça.
— Eu estava praticamente servindo a noite toda, então não tive
chance de fofocar. Mas havia um homem na multidão que ficava
vindo, pedindo bebidas, me elogiando...
— Uma praga, em outras palavras — diz Violet, com a voz seca.
Dottie faz uma careta e acena com a cabeça.
— Ele tinha cerca de vinte e cinco anos, era bonito. Consegui
descobrir o nome dele... Henry Robinson.
— Esse é um nome comum — diz Kit, estremecendo.
— Claro que é. Mas também consegui o local de trabalho dele.
Ele é da Comissão de Valores Mobiliários.
— Bom trabalho, Dottie — diz Kit com admiração.
Dottie brilha por um momento antes de lembrar que ela não gosta
mais de Kit e muda para uma carranca confusa.
Kit quer suspirar. Em vez disso, ela se vira para Violet.
— Teve alguma sorte no Mayflower?
— Passei mais tempo nos fundos do que Dottie — diz Violet,
balançando a cabeça. — Todas as garotas com quem falei disseram
para evitar um cara, Charlie Sharpe.
Moya parece intrigada.
— Você deu uma olhada nele?
— Oh, sim. Ele veio até mim para pegar uma taça de champanhe
uma vez. Um cara alto e branco, um pouco magro, mas meio rijo,
sabe? Forte. Cerca de trinta anos, ele poderia ser mais jovem, e um
sorriso muito viscoso. Ele até enfiou o cartão no meu avental.
— Eca, mas ótimo trabalho. — Kit acha a informação
interessante. — Você ainda tem este cartão?
— Bem aqui. — Violet pega sua bolsa e vasculha dentro dela com
seus dedos cuidadosamente enluvados. O cartão de visita é feito
em cartolina creme, com tipografia elegante. Nele se lê Charles
Sharpe, MD, e tem um número de telefone manuscrito.
— Ele é um médico? — Kit recebe um chiado elétrico de
excitação. — Isso se encaixaria muito bem com o que sabemos:
inteligente, bom em planejamento, bom com facas... Violet, você é
uma campeã.
— Eu sei, certo? — Violet sorri. — Se ele cair no nosso colo
assim, eu juro que vou me gabar disso.
— Mas você acabou de dizer isso — observa Moya. — Se ele cair
no nosso colo. Você conhece as estatísticas, então sabe que as
chances disso acontecer, em uma cidade de quase seiscentas mil
pessoas, são bem baixas. Quero dizer, daremos todos esses nomes
a Raffi para obter mais informações, mas, realisticamente, as
chances são de que nenhum dos homens com quem conversamos
no Mayflower seja o assassino.
Kit morde o lábio e olha pela janela. Passaram pelo Jefferson
Memorial e Tidal Basin, seguiram pela Maine Avenue SW e agora
estão entrando na Water Street. Quase não há árvores perto deste
lado do Potomac, mas as que sobrevivem têm galhos recém-
rejuvenescidos que se estendem em direção ao céu.
— Mas ele estava lá — diz Kit. — Ele estava bem ali, no salão de
baile. Misturando-se com os convidados ou espreitando nos fundos
da casa... e ele tinha seu equipamento com ele.
— Se a polícia o tivesse parado e revistado, ele estaria na cadeia
agora — percebe Dottie.
Kit assente.
— E Veronica Luca ainda estaria viva.
— Estamos muito lentas — declara Violet. — Estamos
conectando as informações muito lentamente para agir sobre elas.
— Não desta vez — diz Kit sombriamente. — Desta vez,
começamos a tentar ficar à frente dele.
Dottie pressiona a campainha para a parada. A área em que elas
se amontoam é soprada pelo vento e cheira a salmoura. O tráfego
passa, cria um burburinho para competir com o vento, mas há
menos carros particulares e mais vans de entrega e utilitários. De
onde ela está na calçada, Kit pode ver uma placa de um bar de
ostras e uma farmácia do outro lado da rua. Mais à direita, um salão
de bilhar. Além disso, uma série de casas geminadas começa.
— Há tráfego suficiente na rua — observa Kit. — Ele é muito
confiante, esse cara, os ataques são todos em lugares populosos.
Na metade do próximo quarteirão, um homem em uma barraca de
cavalete está eviscerando sua pesca e jogando as vísceras de peixe
atrás de si, na beira da calçada e na água. Dottie franze o nariz para
a brisa pungente.
— O que Margaret Wishart estava fazendo em um lugar como
este, afinal? Ela não deve ter pegado a balsa em janeiro.
— A balsa estava funcionando? — Kit pergunta. — Deveríamos
pegar um cronograma de horários.
— Não houve nenhuma menção no noticiário sobre por que ela
estava aqui — diz Moya —, e a balsa ainda faz viagens curtas pelo
canal no inverno, para East Potomac Park. Mas ela pode não ter
usado a balsa... pode ter ido ao mercado de frutos do mar. — Moya
levanta o queixo em direção ao pescador e sua barraca, seu cabelo
solto voando em sua garganta no vento frio. Ela estremece. —
Deus, está congelando aqui. Vamos para a bilheteria.
Elas têm que percorrer um caminho para encontrar a bilheteria do
píer 4, um pequeno prédio de tijolos com telhado de duas águas. A
longa extensão do píer se estende atrás do escritório, sobre a água.
Um pavilhão de madeira em estilo marquise cobre a maior parte do
píer.
A bilheteria onde elas estão se abrigando tem fortes portões de
ferro bloqueando a entrada de ambos os lados. Além do píer e seu
pavilhão de espera coberto, Kit pode ver todo o canal até o verde do
parque.
— As pessoas ainda pescam no píer — observa Violet. — Talvez
não este, mas alguns dos outros.
Kit examina a entrada do lado da rua e o portão mais próximo.
— Podemos descer até a linha d’água daqui?
Moya verifica o portão – completamente trancado – e então estica
o pescoço para procurar um trabalhador da balsa.
— Parece que não há ninguém por perto.
— Domingo — Violet a lembra. — A maioria das pessoas estará
no St. Dominic’s.
— Útil para nós — diz Moya. Kit a observa caminhar em direção à
borda do prédio.
— Você sabe exatamente onde Margaret Wishart foi encontrada?
— Violet pergunta. — Quem a encontrou?
Kit se distrai com as linhas magras da figura de Moya sob as
camadas de casaco e calças de tweed. Ela tem que se concentrar
na pergunta de Violet.
— O noticiário dizia apenas “dois estivadores”, não dizia seus
nomes. Mas ela foi encontrada sob uma torre perto da beira da
água.
Dottie estremece.
— Ela devia estar meio congelada.
— Senhoras... aqui. — Moya chama. Ela está gesticulando do
canto esquerdo do prédio.
— Ah, ela não está… — Dottie sussurra.
— Parece que ela está — Kit sorri. — Vamos.
Ao se aproximarem do local de Moya, Kit descobre que onde a
borda de tijolos do píer encontra a estrada, a cerca é apenas
escoras de ferro apoiadas, na altura da cintura. Obviamente,
ninguém pensou que os pedestres seriam tão tolos a ponto de se
aventurar por cima da cerca.
Presos à alvenaria estão os degraus de uma escada de ferro que
leva direto à água.
— Não vou descer lá — declara Dottie.
— Onde está seu senso de aventura, Dot? — Moya dá a ela um
olhar brando antes de tirar o casaco e entregá-lo a Violet. — Não,
eu vou sozinha. Eu sou a única que teve o bom senso de usar
calças.
Kit tem certeza de que Moya lhe dá um olhar quente e fugaz.
Então Moya passou as pernas por cima da cerca e está
manobrando para subir a escada.
— Tenha cuidado — diz Kit automaticamente, com um friozinho
na barriga ansioso enquanto observa Moya descer.
— Cheira bem aí embaixo? — Violet grita.
— Adorável — Moya franze o nariz, conseguindo parecer capaz e
elegante enquanto se agarra com as duas mãos a uma escada. Os
pés de Moya estão em outro degrau a cerca de um metro das águas
cinzentas ondulantes. — Sim, o delicioso aroma de porão.
— O que você pode ver? — Kit pergunta.
— Postes. — Moya olha por cima do ombro na outra direção. —
Não há nenhuma margem para falar, a água vai direto para o píer,
direto para a queda da calçada.
— Então Margaret não morreu aqui, a menos que ela e o
assassino tenham lutado na água.
— Parece duvidoso. — Violet dá um passo para trás, olhando
pelo portão de ferro para a extensão do píer. — Teria sido fácil para
ele pegá-la no pavilhão do píer. Ou ele poderia tê-la agarrado em
qualquer ponto da Water Street, arrastado-a para um canto isolado
e depois jogando seu corpo da calçada direto para o canal.
— Ela teria apenas flutuado até ser pega em alguma coisa — diz
Dottie. Ela estremece.
Kit olha o quão perto os pés de Moya estão da água.
— Você pode subir agora.
— Espere — diz Moya, e ela olha para o fundo da bilheteria, uma
nova nota em sua voz. Ela sobe um degrau, depois estica o pé
esquerdo em um espaço entre a alvenaria e a pilha de concreto sob
o pilar que marca o início do píer.
— Moya… — Kit começa.
— Quase… — Os dedos dos pés de Moya se tocam, então
seguram. Ela está usando suas botas macias, o que ajuda, mas
ainda deixa Kit nervosa. Então Moya está de pé com um pé em um
enorme parafuso enferrujado na pilha, as pernas escarranchadas na
abertura. Ela rapidamente estica a mão para pegar um grampo de
ferro no encontro, provavelmente usado para amarrar barcos. Ela
usa o grampo e a borda de madeira do píer para se arrastar até a
passarela em um movimento forte.
— Você está louca? — Violet chama. — Alguém pode vir! Como
você vai voltar?
Mas Moya ignora isso. Ela caminha rapidamente para uma área
atrás da bilheteria, em algum lugar que o resto delas não pode ver.
Kit corre de volta para o portão de ferro, agarrando-o com as duas
mãos.
— Moya, o que você está fazendo? — Há um minuto de calmaria
em que ela não consegue ver Moya. — Moya?
Um flash de movimento, então Moya reaparece.
— Pegue isso.
Ela trava os olhos com Kit, pressiona algo nas mãos de Kit
através das grades do portão. Kit sente a respiração de Moya em
seu rosto. É o mais próximo que ela e Moya estiveram uma da outra
desde a noite no Mayflower, e Kit sente a conexão como um choque
elétrico. Elas poderiam estender os braços através das barras e se
abraçar neste momento – mas ela seria condenada se ela apenas
tocasse Moya com barras de ferro entre elas.
— Volte para cá. Agora mesmo — Kit insiste. Parte da urgência é
a preocupação de que Moya seja pega; uma parte maior é que ela
quer Moya de volta ao alcance do braço.
Moya assente.
— Indo agora.
Ela corre de volta para a beira da passarela. Kit se move
apressadamente para onde Violet e Dottie observam Moya se
abaixar no grampo e depois abaixar até o parafuso com olhal. A
bota dela escorrega uma vez no ferrolho, segura. Kit solta um
suspiro.
— Droga, ela vai escorregar e acabar na água — resmunga
Dottie.
— Ela vai ficar bem — diz Violet, a brisa puxando os cachos
escuros de seu coque francês e jogando-os contra seu rosto. — E
se ela cair na água, vamos tirá-la de lá e pegar um táxi para casa.
O pacote nas mãos de Kit é um tecido frio, duro e oleoso ao
toque, mas ela não olha para ele até que Moya navegue pela
distância entre o ferrolho e a escada, suba os degraus e – com a
ajuda de Violet – embaralhe sobre a cerca e de volta para a calçada.
— Consegui. — Moya sorri, mas ela está tremendo. Ela pega o
casaco de Violet com gratidão, então gesticula para Kit, que devolve
o embrulho para ela enquanto todas se reúnem.
— O que é aquilo? — Dottie pergunta.
Moya fecha os dedos endurecidos pelo frio de uma das mãos e os
sacode. Com a outra mão, ela segura o embrulho de lona suja.
— Há uma cabana de equipamentos atrás da bilheteria. Eu vi
quando estava olhando por cima do pilar e tive uma ideia. Veja isso.
Ela desdobra a lona encerada e à prova d’água – e revela três
facas.
Violet suga uma respiração.
— Oh meu Deus.
— Eu estava observando aquele homem fazendo a evisceração
ali e pensando no mercado de peixes — diz Moya — e foi aí que
percebi. Margaret Wishart não foi cortada, mas sua morte foi a
primeira. E foi aí que ele teve a ideia do esfaqueamento. Quando ele
viu ferramentas como essas.
— Isso é uma faca de pescador. — Dottie aponta para uma faca
comprida com cabo de caribu. — Papai as vende na loja. Você abre,
tem um pequeno apontador de gancho na picareta.
— E essa é outra faca de pesca — observa Kit. — Um escalador.
Eles as fazem iguais em West Virginia, com o cabo de cortiça para
que elas flutuem. E isso é uma faca de filé.
Violet pega a faca de filé do pacote. O cabo de madeira está
marrom devido ao uso e a bainha de couro é longa. Quando ela a
tira da bainha, ela emerge com um sussurro: 20 centímetros de aço
desgastado, afiado como uma navalha.
— Senhoras — diz ela, inclinando a lâmina para captar a luz —
acho que acabamos de descobrir as armas dos crimes.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

Bem, você não precisa entender a linguagem dos códigos


que está decifrando. Ajuda, mas não é necessário.
— BRIGID GLADWELL

— Então temos as armas — diz Dottie. — O que mais temos?


Moya está sentada ao lado de Kit, de volta ao ônibus, que agora
está menos lotado. O sol está se pondo e a luz que entra pelas
janelas do ônibus é amarelo-rosada pálida. Violet ocupou seu
assento designado pelo condado, logo atrás do ombro de Kit, com
Dottie no assento do outro lado do corredor delas.
Moya está cansada até os ossos. Se foi a agitação da tarde, o
atraso da noite anterior ou a exaustão emocional dos últimos dias,
ela não sabe. Mas enquanto viajam ao longo do Washington
Boulevard, ela sente o barulho do ônibus embalando-a para um
cochilo.
Só que ela ainda não pode descansar.
— Ok — Ela se senta mais reta. — Ele é alto, branco, rico, bonito.
Ele é bem relacionado, se ele vai em festas políticas, mas
obviamente ele mantém suas afiliações políticas pessoais em
silêncio. Ele está confiante, tem estado desde o começo, ao que
parece. Ele tem seu próprio carro.
— Eu estive pensando sobre isso — diz Kit. — Ele poderia estar
compartilhando? Eu sei que muitas pessoas agora estão
compartilhando um veículo e dividindo seu racionamento de
gasolina.
— É possível, eu acho — diz Violet. — Mas se ele for rico e bem
relacionado, ele precisaria fazer isso?
— Ponto justo.
— Temos os quatro locais onde ele agiu — diz Dottie, retomando
o assunto. — Podemos assumir agora que ele está no lado oeste-
sudoeste? Ou pelo menos é a área que ele conhece bem.
— Bem pensado. — Moya esfrega a têmpora, onde uma dor de
cabeça está crescendo. — Ainda é tudo muito vago.
— Temos os contornos do homem, mas nada sólido — concorda
Kit.
— Não se menosprezem — Violet a lembra. — Temos uma boa
ideia de quem ele é, o que fez, a arma que usou para fazer isso.
— Mas nós realmente não entendemos por que ele está fazendo
isso, o que significa que não podemos saber o que ele fará a seguir.
— Kit alisa a saia sobre o joelho; Moya ouve os calos de lápis em
seus dedos prenderem no tecido. — Ele está dizendo algo com
esses assassinatos. Enviando uma mensagem. Mas qual é a
mensagem? Parece mais uma declaração pessoal do que política, e
não consigo entender. É como... não consigo entender a língua dele.
Moya estremece.
— Você realmente quer?
— Para encontrá-lo? Sim, eu quero — Kit insiste.
Violet abaixa a voz e se inclina.
— Escute, você é uma decifradora ou não? Você está quebrando
cifras japonesas há meses, você fala japonês? Não. Mas você sabe
como funciona. Você pode decifrar uma cifra de língua estrangeira
se souber como se comportam os arranjos de letras na língua.
— Temos que descobrir como as cartas dele se comportam. — Kit
inclina a cabeça, pensando. — Então entenderemos a linguagem
dele.
— Você entendeu. — Violet sorri. — Agora anime-se. Ok, esta é a
minha parada. Foi um grande prazer, senhoras, mesmo que eu vá
para casa cheirando a peixe.
Ela acena ao descer do ônibus. Pela janela, Moya vê postes de
eletricidade e uma fileira de vitrines ligeiramente gastas com seus
toldos batendo. Uma série de casas geminadas se estende ao longo
do Arlington Boulevard aqui, na esquina da Glebe Road. Violet faz
outra viagem de ônibus antes de chegar à Lowell Street. Ela parece
uma figura muito pequena em uma área tranquila, e a paisagem
está escurecendo, o sol bem abaixo do horizonte agora…
Nas fachadas das lojas, as manchetes dos jornais em suas
armações de arame gritam “Assassinatos De Garotas Do Governo:
Últimas Atualizações!” Os jornais estão transformando a história em
um frenesi em toda a cidade. Enquanto o ônibus se afasta, Moya
percebe com um sobressalto que todas deveriam começar a tomar
mais precauções quando estiverem sozinhas.
— Você acha que pode ser hora de ir à polícia com isso? — Dottie
pergunta.
Moya se afasta de olhar pela janela.
— O quê?
— Quero dizer, temos muitas informações agora — continua
Dottie. — Devemos levá-las à polícia?
Kit parece estar considerando.
— Eu não acho.
— Por que não?
— Temos generalidades, mas nada específico — sugere Moya.
Está quente no ônibus: ela afasta a gola do casaco do pescoço e
esfrega a nuca. — A polícia não gosta de suposições, eles precisam
de provas.
— Estamos perto — diz Kit —, mas não perto o suficiente.
Dottie solta um suspiro.
— Acho que você está certa. Eu não acreditaria em nós. — Ela
estreita os olhos para Moya. — Juro, porém, que se você fizer outra
proeza como a que fez hoje, estarei deserdando você.
Moya gostou muito de sua “acrobacia” – especialmente a parte
em que ela encontrou Kit nas grades do portão.
— Você só está com ciúmes por não ter conseguido descer a
escada.
— Você me deixou tão nervosa! — Dottie ri e olha. — Kit também.
— Ela não estava — Moya dá uma olhada em Kit.
— Ela estava — Kit confirma, encolhendo os ombros. — Eu não
posso ajudar. Eu sou uma pessoa que se preocupa.
Dottie bufa e sorri para Moya.
— Nós duas vamos deserdá-la.
— Você não faria isso — Moya diz em falso horror.
— Eu poderia. — Dottie joga seus cachos loiros. — Não me teste.
A risada fácil entre todas acalma algo no peito de Moya. Kit
parece mais relaxada e Dottie parece estar descongelando. Mas
saber que elas só têm mais alguns dias na companhia de Kit torna
os sentimentos de Moya melancólicos.
A melancolia permanece com ela até a parada em frente ao Hall,
apesar das piadas de Dottie sobre cheirar a salmoura. Embora ela
não possa deixar de rir da sugestão de Kit de que todas elas
precisam usar o sabão Lava na lavanderia da escola. Talvez seja
apenas porque ela gosta de ver Kit sorrindo.
Elas chegam ao portão, procuram seus crachás para mostrar ao
PM de plantão. Moya tem alguns momentos extras para procurar
enquanto acena através de um Packard preto brilhante com
passageiros no banco traseiro.
— Ei, olhe. — Dottie levanta o queixo para o carro. — Essas
placas são diplomáticas?
— Boa noite, senhoras — diz o PM, voltando para seu posto. Ele
pega os três crachás de uma vez, verifica as fotos e passa o dedo
em uma prancheta.
Moya guarda a identidade no bolso e percebe que algo está
fazendo seu nariz torcer. Ela levanta a palma da mão e cheira, faz
uma careta.
— Sabe, eu posso usar o sabão Lava quando entrarmos.
— As senhoras podem continuar — diz o MP. Mas quando elas
avançam para o portão, ele para Kit com a mão em seu braço. —
Você não, senhora.
Moya sente uma sensação repentina e profunda no estômago.
Kit olha para a mão do PM, sua expressão ficando imóvel.
— Com licença?
— Não pode entrar, senhora. — O MP a olha de cima a baixo. —
Seu crachá de segurança não é válido.
CAPÍTULO VINTE E SETE

Tínhamos um distintivo, com a nossa fotografia… Era um


distintivo redondo, com cerca de um centímetro e meio. Era
vermelho e tinha sua foto nele.
— WILMA BERRYMAN

Kit tem um ataque desorientador de vertigem.


— Mas isso é um erro — Moya diz imediatamente. — Todas nós
trabalhamos aqui. Saímos juntos do terreno às quatro e meia da
tarde...
— Não há engano, senhora. — O PM solta o braço de Kit para
apontar o dedo para a prancheta novamente. — Tenho sinal verde
para Crockford, Dorothy, e Kershaw, Moya. Mas não há nada aqui
para Sutherland, Katherine.
Kit esfrega o braço e vê Moya se levantar. Em um instante, ela se
transforma em sua personalidade glamorosa de olhos de aço. Kit
ficaria impressionada se ela não estivesse tão apavorada.
— Senhorita Sutherland é uma das minhas garotas — diz Moya.
— Eu sou sua supervisora imediata. Este é um novo regulamento?
Quando isto aconteceu?
— Recebi novas instruções há duas horas — admite o PM. —
Apenas aquelas com uma verificação de segurança concluída
podem entrar.
— Por verificação de segurança concluída, você quer dizer a
revisão atual. — O olhar de Moya se estreita. — Essa revisão está
em andamento. Você está me dizendo que toda garota que eu
supervisiono cujo sobrenome cai em algum lugar abaixo de Q no
alfabeto agora está trancada fora desta instalação?
— Não posso lhe dizer isso, senhora. Não tenho todas as
informações sobre...
— Quero falar com seu subtenente. — A postura de Moya é reta
como uma vareta. Mesmo com o cabelo jogado para trás e as mãos
salgadas, ela parece formidável. — Isso é inaceitável. Quero todas
as minhas garotas de volta ao prédio, incluindo a Srta. Sutherland.
— Senhora, posso pegar o telefone...
— Você pode fazer isso — diz Moya. Então, de alguma forma
desempenhando os dois papéis de castigadora e mitigadora, ela
suaviza seu tom. — Olha, tenho certeza de que essa bagunça não é
sua, mas precisamos esclarecer isso agora. Estou cansada e com
fome, e quero levar minhas meninas de volta para casa. Ligue para
o seu subtenente e vamos esclarecer isso.
Enquanto o PM acena com a cabeça aliviado e se vira,
caminhando até a guarita para fazer sua ligação, Moya volta para
Kit.
— Olhe para mim. — Seus olhos estão atentos e sua voz é baixa.
— Você precisa parecer como se eu estivesse te dizendo algo
reconfortante, ok?
Kit lambe os lábios e tenta acalmar a agitação no estômago,
compor o rosto adequadamente.
— Ok.
— Que diabos está acontecendo? — Dottie sussurra.
— Ouça — diz Moya, e Kit não consegue desviar o olhar. —
Dottie, pegue sua bolsa... não faça disso uma encenação, quero que
passe para Kit qualquer dinheiro que tenha com você. Faça isso de
forma descontraída. Se isso der errado e Kit tiver que fugir, pelo
menos ela terá algum dinheiro.
— Vou ter que fugir? — O estômago de Kit está cheio de cinzas.
Ela desvia o olhar do rosto de Moya, verifica a janela da guarita. Ela
pode ver o PM, falando em um receptor de telefone.
— Não sei. — Moya exala uma respiração trêmula. — Deus me
ajude, eu não sei.
— O carro diplomático — Dottie diz de repente. — Você acha que
isso tem algo a ver com tudo isso?
— Talvez. Você pegou sua bolsa?
— Claro. Claro. — Dottie remexe nos bolsos do casaco, sua
expressão tão teatralmente neutra que Kit tem certeza de que o PM
vai notar. — Kit, vou virar e enfrentar a estrada. Moya, você pode
executar a interferência?
Moya não precisa responder; ela simplesmente se dirige para a
guarita como se estivesse se preparando para fazer outra confusão.
Os joelhos de Kit estão trêmulos e as pontas dos dedos parecem
frias como pedra. Ela se aproxima de Dottie, para na frente dela. O
rosto pálido de Dottie, com um olhar vazio piscando que se dissolve
um pouco quando Kit está ao alcance do braço.
— Não me lembro quanto tenho na carteira — sussurra Dottie. —
Pode não ser o suficiente.
— Não importa — Kit sussurra de volta. Ah, Dottie.
A voz de Dottie está trêmula.
— Espero que não precise. Apenas pegue isso. Por favor.
Kit aperta as mãos de Dottie com as suas para fazer a troca. À
distância, elas parecerão duas amigas compartilhando
encorajamento. Junto com o dinheiro dobrado, o aperto de Dottie
transmite calor e amizade desesperada.
Ela agarra as mãos de Kit com força.
— Me desculpe, eu estava com raiva. Sinto falta de ser sua
amiga. Por favor, Deus, espero que isso não seja um adeus.
— Eu também — diz Kit. Ela tem que engolir em seco para conter
as lágrimas inoportunas. — Venha agora. Devemos sorrir para o
PM.
Por cima do ombro de Dottie, ela pode ver Moya conversando
com o PM novamente, seus gestos bruscos. A sensação de cinza
no estômago de Kit é forte. Eu deveria estar pensando em qual
caminho seguir. Mas sua mente ficou completamente vazia de
direções. E agora ela e Dottie têm que se mover para o lado
enquanto outro carro – um Chrysler preto – avança em direção ao
portão do Arlington Boulevard.
Quando a janela do lado do motorista é abaixada, Kit reconhece o
carro. E o motorista.
— Ei, o que está acontecendo? Por que a demora? — Emil
Ferrars está em mangas de camisa, o paletó no banco do carona.
Ele se inclina para fora da janela, erguendo as sobrancelhas ao ver
Moya e o PM. — Senhor, não me diga que o coitado está tentando
discutir com Moya.
— Ele não vai me deixar entrar — Kit deixa escapar, então sente
o rubor subir até suas bochechas. Como se o Sr. Ferrars precisasse
saber disso!
— Ele o quê? — Emil Ferrars faz uma careta, abaixa a cabeça
para dentro do carro para desligar o motor. Então ele sai, pegando
sua jaqueta. — Você perdeu seu distintivo?
Dottie intervém.
— O distintivo dela está bom. Mas ele diz que a autorização dela
não é válida porque ela não passou pela revisão de segurança.
O Sr. Ferrars franze a testa.
— Essa revisão ainda está em andamento.
— Isso é o que Moya disse!
— Ok, acho que sei do que se trata. — Ele olha para a guarita, de
volta para Dottie. — Você vai ficar bem aqui por um segundo? Vou
ver o que posso fazer.
— Ah, isso seria... — Dottie parece um pouco sem fala. — Isso
seria maravilhoso. Muito obrigada.
Encolhendo-se em sua jaqueta, Emil Ferrars se move para se
juntar a Moya na discussão. Está frio agora, e as luzes se
acenderam no portão e na frente das cercas contra ciclones.
— Você acha que ele poderá ajudar? — Dottie pergunta.
Kit tenta acalmar o nervosismo em seus joelhos.
— Eu não faço ideia.
Mas claramente algo muda na conversa, porque cinco minutos
depois, Emil Ferrars e Moya voltam. Moya ainda está com o rosto
rígido e formal de supervisora, mas não há tanto pânico em seus
olhos.
— Está tudo bem — diz o Sr. Ferrars com um sorriso fácil. —
Você está livre para ir.
— Emil assegurou por você — Moya diz a Kit. — E nós dois
assinamos recibos para dizer que você está sob nossa
administração até obter sua autorização final.
— Ok — Kit experimenta o alívio como uma sensação de queda.
Ela não consegue demonstrar exatamente como está aliviada na
frente de Emil Ferrars, mas sente o suor brotar em suas palmas. —
Ok. Ufa.
Dottie é capaz de expressar isso com mais veemência.
— Oh! Graças a deus!
— Agora, vamos embora — diz Moya. — É tarde, e todos
devemos sair do frio.
— Entre no carro — oferece Emil Ferrars. — Vou dar uma carona
para as senhoras até a escola.
Dentro do Chrysler, é mais quente. Os nervos de Kit ainda estão à
flor da pele e a queda de adrenalina a deixou tonta, então calor
extra é bom. Ela não pode falar livremente na frente do Sr. Ferrars,
mas Dottie, sentada com ela no banco traseiro, compensa o déficit.
— Muito obrigada por falar em nome de Kit — diz ela. — Não sei
o que teríamos feito se você não tivesse aparecido.
— Bem, tenho certeza de que Moya teria lidado bem com isso —
diz o Sr. Ferrars, com as bochechas coradas. Ele se concentra em
navegar na entrada da garagem. — Mas não posso deixar vocês
paradas na frente do portão no escuro.
— Foi bom ter mais alguém lá para me apoiar — diz Moya.
O Sr. Ferrars olha pelo espelho retrovisor, molha os lábios.
— Olha, eu sei o que está acontecendo, e você vai descobrir de
qualquer maneira, então eu posso te contar. Há alguns visitantes
estrangeiros no Hall. Eles chegaram alguns dias antes do esperado,
então a revisão de segurança está um pouco atrasada.
Visitantes estrangeiros – os caras ingleses. Kit mal consegue se
impedir de dizer isso.
Moya parece pasma.
— Ouvi dizer que a visita estava marcada. Mas como é que eu
não sabia disso?
— A notícia só chegou no final da tarde — diz o Sr. Ferrars,
desculpando-se. — Para ser honesto, fomos todos pegos com o pé
atrás.
— Bem, eu realmente aprecio você atestar para mim — diz Kit.
— Sem problemas. — O Sr. Ferrars estaciona em seu lugar
habitual, desliga o motor. — Mas ei, obtenha sua autorização! Vai
ser impossível ir e vir sem ela na próxima semana.
— Eu vou sim — Kit confirma.
— Senhoras, vamos embora — diz Moya, abrindo a porta. —
Emil, eu te devo uma.
— Onde é que eu ouvi isso antes — ele ri.
— Obrigada de novo — Dottie diz enquanto sai do carro.
— De nada. — O cabelo escuro de Emil Ferrars cai sobre sua
testa enquanto ele lhe dá um sorriso gentil. — Prazer em vê-la
novamente, Srta. Crockford. Você está bem?
— Estou bem — diz Dottie, sua expressão se transformando. —
Eu estou bem.
— Dottie, vamos lá — diz Moya, então ela as leva às pressas para
a porta que as leva para a escola.
Kit segue o exemplo de Moya sob as escadas e ao longo do
corredor.
— Onde estamos…
— Seu quarto — diz Moya. Suas palavras são muito cortadas.
Elas sobem as escadas até o Três. Kit sente um enorme conforto
ao ver sua própria cama arrumada: se a situação não fosse tão
urgente, ela iria querer simplesmente cair nela e dormir direto. Mas
isso não é possível agora, então ela se contenta em empilhar o
dinheiro amassado de Dottie na mesa de cabeceira e depois sentar
no colchão.
Dottie fecha a porta com as costas.
— Oh meu Deus, essa foi perto.
— Muito perto. — E há uma solução. Kit deixa o peito apertado,
mas ela tem que dizer. — Eu... eu deveria ir embora.
— Não!
— Não — Moya concorda, tirando o cachecol. Ela se posiciona na
porta enquanto Dottie se move para a outra cama. — É uma ideia
idiota e você sabe disso.
Kit gesticula embaixo da cama.
— Minha mala está pronta. Eu só preciso sair em alguma tarefa…
— Você não pode sair ainda.
— Moya, se eu for agora ou na quarta-feira, eles vão descobrir
quem eu sou. E com visitantes no Hall...
— Acabei de testemunhar por você — insiste Moya. Seus olhos
estão arregalados e sérios. — Por favor, Kit. Sei que você deve
estar com medo, mas deixe-me descobrir o que está acontecendo.
Dottie tirou o casaco e caiu na cama.
— São os caras ingleses, certo?
— Parece que sim — confirma Moya. — Mas me dê um minuto.
Kit, eu quero dizer isso. Não vá embora até eu conseguir mais
informações, ok? Você pode esperar?
Kit morde o lábio inferior.
— Eu posso esperar.
Com um último olhar, Moya abre a porta e sai. Kit observa a porta
fechar atrás dela. Está muito quieto na sala agora.
— É uma loucura eu ficar. Isso coloca todas vocês em perigo por
associação...
— Não fale assim. — A expressão de Dottie é mordaz. Então
seus ombros caem e todo o seu corpo parece suavizar. — Kit,
parece tão ruim, você indo embora. Sei que não é sua culpa, mas é
assim que me sinto.
Kit acena com a cabeça, lentamente e curto.
— Parece que estou te abandonando. Eu sei disso.
— Quarta-feira — diz Dottie, suspirando. — E é mesquinho dizer
isso, mas isso é um dia antes do meu aniversário.
— O quê?
— Meu aniversário é quinta-feira.
— Eu não fazia ideia. — Kit sente que a quarta-feira se aproxima
a cada minuto. Ela olha para o interior familiar do quarto: a janela
com suas cortinas verde-escuras, as toalhas penduradas atrás da
porta. Sua colega de quarto, cujos traços definidores são sua
generosidade e bondade. Sentadas uma em frente à outra, seus
joelhos estão quase se tocando. Kit não quer chorar. — Dottie, sinto
muito. Sinto muito por não ter contado quem eu realmente era.
Dottie suspira.
— Você disse que é loucura você ficar? Toda essa situação é uma
loucura. — Ela inclina a cabeça, curiosa, e Kit está familiarizada
com isso também. — Você realmente era uma empregada?
Kit sorri tristemente.
— Sim.
— Como foi?
Kit pensa em como responder, porque ninguém nunca perguntou
a ela antes. Ninguém perguntou se ela queria ser empregada
doméstica ou como era a experiência – nem mesmo Katherine
perguntou. A resposta surpreende até Kit.
— Foi muito parecido, para ser honesta. Uma vida de serviço.
Você se acostuma a não deixar sua própria vida aparecer. Você tem
que ser discreta. — Ela abaixa a cabeça. — Quero dizer, eu tenho
escondido quem eu sou nos últimos nove meses, mas de muitas
maneiras, eu tive quatro anos de treinamento para esta função e
este trabalho.
A boca de Dottie abre e fecha.
— Isso soa... confinante.
— Mas eu me rebelei. — Kit arqueia o lábio. — Fiquei livre.
Katherine me deu uma chance e eu aceitei. Mesmo se eu for pega,
terá valido a pena. Só para ter vivido em meus próprios termos por
um tempo.
— Você ficaria feliz?
— Não me interpretem mal, não quero ser condenada por traição.
Mas tive nove meses de liberdade. Cumprindo o trabalho. Tendo a
chance de usar minha mente. Para servir o meu país de uma forma
que nunca teria imaginado. — Kit agarra a beirada do colchão. —
Para fazer amizades que nunca vou esquecer. Dottie, você pode me
perdoar?
Agora elas estão de joelhos e Dottie a está abraçando. Kit
agradeceu muitas vezes, mas este momento parece um presente
especial. Kit abraça Dottie de volta e, juntas, elas atravessam a
lacuna enquanto se apertam e torcem pelo melhor.
CAPÍTULO VINTE E OITO

Tratamos os códigos como quebra-cabeças – como um


jogo. Mas sabíamos que não era um jogo.
— BETTY JOHNSON

— Você já tentou subtrair um aditivo simples e depois encadear? —


Opal bate com o lápis que está segurando na unha do polegar.
— Tentamos usar o quarto dígito como um cheque de soma, mas
não foi isso.
— Pode ser algo óbvio, como... um número primo?
— Hum, eu não sei. Eu tentei a maioria dos aditivos óbvios, mas
não tentei primos de um dígito. — Kit sopra uma mecha de cabelo
para longe de seu rosto. — Ok, vou tentar dois, três, cinco e sete.
Depois disso, passo para Brigid para continuar com dois dígitos
enquanto encadeio os resultados. Vamos ver se isso nos leva a
algum lugar.
Opal dá de ombros, concordando, então Kit puxa seu bloco de
notas para mais perto e vira para uma nova página. Ela pode
subtrair com uma parte de sua mente, enquanto o resto de sua
mente se concentra em três outros problemas.
Primeiro problema: sua existência em Arlington Hall é tênue e ela
pode ser descoberta a qualquer momento.
O segundo problema: a linguagem de um homem que mata
garotas continua a iludi-la.
E o terceiro problema: Moya ainda está fora de seu alcance. Em
alguns dias, Kit partirá e Moya será apenas uma lembrança.
E isso é inaceitável.
Kit pensa na maneira arrogante como Moya disse ontem:
— Isso é inaceitável. — O tom de voz que ela usou é semelhante
à voz interna na cabeça de Kit, dizendo que a reconciliação e as
memórias não são suficientes, que Moya é um risco que ela está
disposta a correr, as consequências que se danem.
Mas assim que se espalhar a notícia de que Kit é uma impostora,
Moya pode ser acusada de conspirar para encobrir o fato, e essas
consequências arruinarão o futuro de Moya, então o problema é
insolúvel.
Kit esfrega as pálpebras fechadas com as palmas das mãos.
Quando ela as abre, há um farfalhar de cabeças se virando por toda
a sala, dando uma olhada na porta. É um jovem, acompanhado pelo
capitão John Cathcart. Os dois estão parados logo atrás do batente
da porta, então ela mal consegue ver o corredor além deles.
— Uh, desculpe-me. — O capitão Cathcart está de uniforme,
como sempre, com uma postura tipicamente correta e educada. Seu
lábio cheio de cicatrizes se contrai quando ele faz o anúncio. —
Senhoras, posso ter sua atenção, por favor.
O jovem ao lado dele também é alto, mas muito loiro. Ele está
vestindo uma camisa branca com uma gravata preta larga, um
colete cinza escuro, calças pretas. Um sobretudo cor de camelo
está pendurado em seu braço, como se ele o trouxesse, mas
achasse muito quente para vestir, o que Kit acha surpreendente
porque elas deixaram o radiador ligado a manhã toda para ficar
longe do frio. Há um momento de silêncio retumbante enquanto
todas as garotas na sala percebem como o jovem é bonito.
— Senhoras — continua o capitão Cathcart —, este é o Sr. Julian
Harding. Ele está visitando o Hall por alguns dias com alguns
colegas. Pediram-nos para mostrar a eles e oferecer toda a cortesia,
o que tenho certeza de que todas ficarão felizes em fazer.
— Olá — diz o Sr. Julian Harding. Ele acena com a mão. —
Obrigado por me receber. Vou tentar não incomodar.
— Oh, Deus, ele parece Cary Grant — Opal sussurra bem perto
do ouvido de Kit.
— Sem problemas — diz Brigid alegremente, aproximando-se da
dupla. — Mas você provavelmente não nos pegou no nosso melhor.
Estamos presas em alguma coisa agora, então todas estão um
pouco exaustas.
O que é verdade, observa Kit. Todas as garotas parecem um
pouco apresentáveis. O cabelo de Opal está saindo do coque. Carol
tirou os sapatos; ela está andando de meias. Quase todo mundo
está vestindo as roupas que usavam ontem, incluindo Kit, enquanto
combinam com o código nas cartas.
— Eu também estou um pouco exausto. — As bochechas pálidas
do Sr. Harding ficam rosadas. — Meu cérebro ainda pensa que
estou em Londres e é hora do jantar.
Opal sorri.
— Então entre, se você é do futuro, você já deve saber a resposta
para este problema!
O Sr. Harding olha para o capitão Cathcart em busca de
aprovação.
— Eu deveria estar observando...
O capitão Cathcart franze a testa, avaliando isso. Há uma breve
agitação de vozes de garotas implorando ao capitão Cathcart para
“ter coração!” e “deixe o pobre coitado, capitão!” – até que ele dê
seu aceno. Em seguida, o Sr. Harding é levado para as mesas,
cercado por garotas.
— Afastem-se um pouco — Brigid as adverte. — Nossa, deem um
pouco de ar para o homem. É hora de voltar ao trabalho de qualquer
maneira... vamos, senhoras.
Opal avança enquanto as outras garotas se retiram e encontram
suas cadeiras.
— Oi, sente-se, sim, qualquer um desses assentos está bom;
pegue o próximo a Kit.
— Er, obrigado. — Julian Harding senta-se em uma cadeira perto
da mesa, colocando o casaco sobre o joelho e olhando para o grupo
de garotas dentro da sala. — É um pouco apertado aqui, não é?
— Eu estou supondo que se você está autorizado a entrar, você já
viu esse tipo de configuração antes.
— Sim — ele admite. — Temos uma operação semelhante em
casa.
— Ótimo, isso significa que não preciso explicar muito — diz Opal.
— No momento, estamos trabalhando em uma nova pilha de cartas
e estamos nos divertindo muito para descobrir as mensagens.
— E seu nome é…
— Opal Jenks... prazer em conhecê-lo. E essa é Kit, e você já
conheceu Brigid. — Opal abre um largo sorriso enquanto eles
apertam as mãos, antes de ser interrompida por Edith, segurando
outro cartão. — Você conseguiu alguma coisa, Edie?
— Não. — Edith coloca o cartão entre Kit e o Sr. Harding. — Eu
apenas tentei recombinar, como você sugeriu, mas não consegui
nada.
— Achamos que a recombinação poderia ser um tiro no escuro —
reconhece Kit. — Mas tínhamos que tentar.
— Posso ver? — O interesse do Sr. Harding é obviamente
despertado pelo pequeno cartões de índice azuis. — Acho que não
posso sugerir nada que vocês já não tenham tentado, mas gostaria
de ver como vocês fazem.
— Aqui. — Kit mostra a ele o cartão. — Todas nós trabalhamos
nos mesmos dois conjuntos de números, para ver se conseguimos
encontrar uma brecha em algum lugar. Mas até agora estamos
travadas.
O Sr. Harding franze a testa para as linhas de números.
— Tem... Não tem linha de endereço?
— É isso que nos deixa travadas — diz Opal.
— Que bizarro... — ele pega um lápis distraidamente.
Pela próxima meia hora, Julian Harding fica sentado nas mesas,
debruçado sobre as cartas com elas. Kit descobre que é um ano
mais velho que ela, que usa óculos de leitura enquanto trabalha e
que seu colete e calça não combinam porque sua bagagem ainda
está em trânsito. O contingente inglês chegou mais rápido do que o
esperado porque seu navio foi bombardeado perto do Golfo de St.
Lawrence, então eles completaram a viagem de avião de St. John’s
em Newfoundland.
— O Exército dos EUA tem uma base lá, certo? — Kit empurra
um novo bloco de notas sobre a mesa em sua direção.
— Sim, felizmente para nós. — Ele tira um maço de cigarros azul
do bolso do colete com a mão esquerda enquanto rabisca alguns
números com a direita. — Embora todos os aviões tenham um leve
cheiro de peixe. Mas não posso reclamar, posso? Isso seria um
pouco grosseiro. Você já tentou números primos nisso?
— Acabamos de começar agora — diz Kit, virando para uma nova
página. — Na verdade, eu deveria fazer isso.
O Sr. Harding acende sua fumaça – algum tabaco escuro nojento
e francês, pelo cheiro – e bate com o lápis no cartão.
— Posso fazer uma sugestão? Tente o número sete. Ou
possivelmente oito.
— Por que sete e oito?
— Porque os japoneses os consideram números de sorte.
As sobrancelhas de Kit se erguem e ela olha para Opal, que dá de
ombros.
— Ok. É melhor tentar.
— Poderíamos tentar os outros dígitos da sorte — diz Opal. —
Setenta e sete, setenta e oito, oitenta e oito.
— Que tal nove? — Kit sugere.
— Não — diz o Sr. Harding imediatamente. — Nove é um número
de azar. A pronúncia da palavra japonesa para nove tem o mesmo
som da palavra para sofrimento. Como quatro, é pronunciado com o
mesmo som da palavra para morte.
— Justo. Tudo bem, sete e oito... acho que vamos tentar. —
Recém-animada, Kit empurra suas velhas páginas de números para
o lado.
Ela só anotou duas linhas de dígitos antes de haver outra
perturbação na porta. É o capitão Cathcart de novo.
— Olá Sr. Harding, você está indo bem?
— Esplendidamente — responde Harding.
— Bem, isso é ótimo. — O olhar de Cathcart passa por ele. — Hã,
senhorita Sutherland? Querem você no ginásio.
Kit sente como se tivesse acabado de receber um balde de água
gelada.
— Perdão?
O capitão Cathcart não parece notar sua expressão congelada.
— Sim, é para sua revisão de segurança. Trouxe seus
documentos com você?
Kit balança a cabeça, sem palavras.
— Então seria uma boa ideia parar em seu dormitório e recolhê-
los. Você precisa de mim para acompanhá-la?
Todos os sentidos de Kit aumentaram. De repente, Cathcart
parece menos uma presença benigna: seu lábio cicatrizado dá a seu
rosto um tom malévolo, seu comportamento taciturno parece mais
taciturno do que reservado. E ele estava no Mayflower. É como se
ela tivesse acabado de ser lembrada.
— Uh... não — ela gagueja. — Não, obrigada, eu vou ficar bem.
Kit se levanta da mesa, com as pernas de madeira. Opal sorri
para ela de forma encorajadora – Opal conseguiu seu carimbo de
autorização na semana passada – e é um esforço para fazer um
sorriso de volta. Assim que Kit sai da mesa, Opal e o Sr. Harding se
aproximam para trabalhar no código, como água correndo para
preencher um espaço vazio. Brigid dá um pequeno aceno para Kit,
mas ninguém mais nota sua saída.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

Você fez um juramento quando foi trabalhar... As pessoas


eram muito cuidadosas.
— WILMA BERRYMAN

Kit caminha com passos automáticos para o quarto dela. As cortinas


estão abertas e o quarto está frio e iluminado pelo sol. Esta é uma
emergência – devo entrar em contato com alguém. Mas Dottie está
trabalhando em algum lugar na análise de tráfego. Moya está no
Quatro. Violet tem um dia de folga programado.
Kit está sozinha.
Ela pega sua bolsa, com seus documentos de identidade dentro
de um envelope dourado. O que ela deveria fazer? Pegar a bolsa
dela também e sair correndo pela porta assim que ela descer? Até
onde ela vai chegar? Eles vão deixá-la sair do complexo?
Ela não tem ideia.
Kit senta na cama. Este dia estava sempre chegando, mas ela
deixou a preocupação de lado. Vou embora antes que meu nome
seja chamado... Vou embora na quarta-feira, então por que pensar
nisso...
Talvez ela sempre quis ser pega de alguma forma. Talvez uma
corte marcial não fosse tão ruim. Não é como se ela estivesse
vendendo segredos de estado ou conspirando com o inimigo. Ela é
apenas uma garota que assumiu um nome falso...
…e um homem em Detroit foi condenado por dar café e um
sanduíche àquele prisioneiro de guerra alemão fugitivo. O júri
deliberou por apenas uma hora e meia antes de condená-lo à morte.
Todo mundo está em alerta máximo hoje em dia. Cada infração é
vista através das lentes da guerra.
Kit morde o lábio. Ela realmente não tem escolha. Ela está aqui
agora. Este é o momento em que ela sempre chegaria: apenas ela
mesma, alguns documentos em papel frágeis e um nome falso.
Ela respira fundo e se fortalece e sai da sala. Quando ela chega
ao Um, seus dedos dos pés estão dormentes em seus sapatos e
suas mãos estão tremendo. Ela endireita o cardigã de colarinho e a
saia, puxa a bolsa mais para cima para dar aos dedos algo para
fazer. Então ela caminha pelo saguão e pelo auditório-refeitório e
abre um grande conjunto de portas duplas.
O antigo ginásio não é um lugar com o qual ela esteja tão
familiarizada, porque nunca foi uma grande característica da vida de
Katherine. Desde que o Departamento de Guerra assumiu a escola,
ela tem sido usada para reuniões oficiais e arquivos classificados. O
chão ainda está polido e brilhante, como se – a qualquer momento –
um bando de colegiais viesse correndo jogar badminton ou praticar
valsa. Mas agora há mesas de cavalete montadas, armários de
arquivo e grandes mapas pregados nas paredes ao longo do lado
direito.
Um PM fica de guarda perto da janela. Este homem não tem um
cabo de vassoura como o soldado que ela conheceu na primeira vez
que tentou sair de Arlington Hall. Ele carrega um rifle e as letras em
sua braçadeira são totalmente brancas.
No lado esquerdo, mais abaixo, há uma mesa retangular
volumosa com duas pessoas sentadas atrás dela, de frente para
uma cadeira vazia. Uma das pessoas na mesa acena para Kit se
aproximar. Por um momento, ela pensa em se virar e correr, correr...
Então a razão se reafirma e ela se dirige para eles.
A escrivaninha é adornada com papéis em pastas, dispostos com
simetria precisa em cada canto, e um grande mata-borrão. Um
telefone de baquelite está diante de um homem de aparência
esquelética, vestido de preto como um agente funerário. Ele usa
óculos com armação de metal e seu cabelo está ralo: Kit pode ver o
início de uma careca em sua cabeça quando ele se inclina para a
frente sobre um conjunto de documentos e faz uma anotação.
A mulher atrás da mesa é quem acenou. Ela parece totalmente
comum – matronal, quase, em seu terninho de sarja cinza escuro.
Seu cabelo é curto e enrolado em asas que emolduram seu rosto.
Ela dá a Kit um quase sorriso.
— Senhorita Sutherland, não é? Sente-se.
— Obrigada — Kit se senta na cadeira vazia. A sala é grande;
todos os sons ecoam e são ampliados. Sua língua está tão seca que
gruda no céu da boca.
— Você trouxe sua papelada com você?
— Oh. Eu trouxe, sim. — Kit remexe em sua bolsa e recupera o
envelope dourado. Dentro, os relatórios escolares, as referências, a
preciosa certidão de nascimento.
A mulher pega o envelope e acena com a cabeça sobre os
documentos. Ela os enfia de volta no envelope e os coloca no topo
da coleção de pastas em seu lado da mesa. Kit quer saber se ela
receberá o envelope de volta, mas não consegue abrir a garganta
para perguntar.
A mulher pega outra pasta da pilha, abre e examina um relatório.
— Bem, Miss Sutherland, parece que temos quase tudo em
ordem. Diz aqui que você tem inteligência acima da média e é
confiável. Você é uma garota consciente e trabalhadora. Sua
supervisora acrescentou um elogio ao seu relatório de caráter em
dezembro do ano passado.
— Ela fez? — Kit pisca. Quaisquer elogios que ela recebeu em
dezembro foram adicionados bem antes de ela e Moya terem
qualquer tipo de conexão pessoal, o que é animador.
— Sim. — A matrona faz anotações no relatório com um lápis. —
Ela disse que você foi essencial para uma inovação no processo em
novembro passado, resultando em um fluxo de trabalho aprimorado
em sua seção.
— Oh. Sim. — Kit se lembra. Ela havia sugerido que seria mais
eficiente se cada garota na sala de trabalho pudesse compartilhar
cartões com outra garota, para trabalhar em um intervalo de forma
colaborativa.
— Temos aqui as informações do seu registro de nascimento.
Afirma que você é uma garota nativa, de raça anglo-saxônica e
aparência normal.
Kit acena com a cabeça, esperando que ela ainda tenha uma
“aparência normal”. Afinal, o que isso quer dizer?
— Tudo o que resta agora é coletar uma referência direta do
personagem — diz a mulher. Ela se vira para o homem magro, que
ficou em silêncio todo esse tempo. — Sr. Timmons, o que temos?
O homem – Sr. Timmons – toca um dedo na ponte de seus óculos
e olha para Kit enquanto ele puxa um pedaço de papel para mais
perto. — Temos dois números de telefone, srta. Sutherland. Um
para o Sr. Leighton Wallace, que está ligado à sua família como
advogado, e um para a Srta. Annabelle Grey, que era a vice-diretora
da escola aqui, antes de ser reaproveitada.
— Ah — diz Kit. Ela sente um suor frio brotar na nuca.
— Você tem preferência por quem contatamos primeiro?
— Oh. — Kit tem que engolir em seco. — Hum. Não.
— Então, primeiro entrarei em contato com o Sr. Wallace. —
Timmons alcança o receptor do telefone preto à sua frente.
Três números são discados e Timmons espera. Kit ouve a
pequena voz feminina do outro lado da linha – o prólogo de sua
condenação.
— Longa Distância.
— Telefonista, estou ligando para Filadélfia. — Timmons ajusta os
óculos novamente. — Baldwin um, dois dois um cinco. Meu número
é Principal seis, nove nove um três.
— Obrigado — responde o operador.
Enquanto Timmons espera que a ligação seja completada, ele
enfia a mão no bolso do paletó e encontra um maço de cigarros. Ele
pega um e acende com a mão que não segura o telefone.
— Então você está trabalhando conosco há quase dez meses —
diz a mulher.
Kit se sente fraca. Ela desvia a atenção da ponta do cigarro aceso
de Timmons, com o estômago apertado de náusea.
— Sim. Quer dizer... sim. Acho que já se passaram quase dez
meses.
— E você gostou do trabalho?
— Sim. Sim, eu gosto.
Os primeiros dois meses foram aterrorizantes, é claro – ela estava
descobrindo as coisas e aprendendo a se mascarar. Mas isso não
significava que também não fosse prazeroso conhecer e fazer novos
amigos, trabalhar com a mente em vez das mãos calejadas, ganhar
seu próprio dinheiro e passar o tempo livre como quisesse.
Dez meses vivendo em uma praia distante. De viver livre.
— Você teve alguma dificuldade com o trabalho? Ou você achou
inadequadas as condições do refeitório ou do dormitório?
Kit gostaria de poder ouvir a conversa tranquila que Timmons está
tendo ao telefone, em vez de ter que se concentrar novamente nas
perguntas que a mulher está fazendo a ela. Há um broche na lapela
da mulher, em forma de estrela. Uma grande pedra preciosa roxa
brilha em seu centro. Kit tenta ignorar a saliva agora entupindo sua
garganta, a transpiração condensando-se na linha do cabelo.
— Não tive nenhum problema. — Ela força a força em sua voz
fraca. — Tem sido maravilhoso... Foi o melhor trabalho que já tive.
Timmons ainda está falando ao telefone, em voz baixa. Suas
sobrancelhas afiadas se unem em uma carranca. Ele coloca o
cigarro em um pequeno cinzeiro preto ao lado de seus papéis para
que possa pegar sua caneta e fazer algumas anotações.
A sala gira um pouco e Kit se pergunta se ela vai cair da cadeira.
— Há uma nota aqui, dizendo que você fala francês para
conversação e que estudou astronomia e um pouco de matemática
avançada...
A mulher com o broche de estrela continua falando. Kit sente
como se estivesse em uma zona distante da existência, em algum
lugar os detalhes parecem muito nítidos – o broche, a fumaça do
cigarro, o grão estampado da mesa de madeira – mas suas reações
e respiração diminuíram quase a zero. Ela espera que o PM coloque
uma mão pesada em seu ombro.
Timmons pressiona o dedo no gancho e disca novamente.
Novamente, o operador conecta sua chamada.
— Você tem algum hobby, senhorita Sutherland? — a mulher
pergunta.
A mente de Kit está girando.
— Livros. Eu... eu gosto de ler.
— Aqui diz que você é membro da Sociedade de Apreciação de
Palavras Cruzadas do Hall?
— Oh. Sim. Sim, está certo.
Timmons recoloca o fone no gancho e pega o cigarro no cinzeiro.
Ele passa o papel de carta, com seus rabiscos, de lado para a
mulher, que o olha.
— Ah. — A mulher olha para Kit, de volta ao jornal. —
Aparentemente, o Sr. Wallace a considera confiável, uma cidadão
leal de hábitos sóbrios. Ele diz que você não bebe muito e que sua
família é muito respeitada, sem ligações comunistas e moram em
uma parte desejável do estado.
Kit sente uma dor no peito por falta de oxigênio.
— Eu… o quê?
— Sim. E a Srta. Gray disse que você é uma aluna inteligente,
apaixonada por livros e música clássica. Ela diz que você lutou
contra alguns problemas de saúde ao longo de seus anos em
Arlington Hall e teve coragem para superá-los e se destacar em
seus estudos. Ela elogia seu emprego no governo dos Estados
Unidos e a considera uma excelente candidata para trabalhar em
qualquer departamento.
Kit de repente descobre que pode respirar e que sua primeira
respiração é longa e instável.
— Eu... eu estou… — Ela tem que pensar rápido, o que é difícil
de fazer agora porque ela está profundamente confusa. Também
cabe a ela parecer calma e esperançosa, em vez de chocada. Isso
envolve um esforço considerável. — Estou muito feliz em ouvir isso
— ela responde debilmente.
— Sim, essa é uma referência muito boa. — A mulher enfia o
papel de carta na pasta à sua direita, pega o envelope de Kit e
passa para ela. — Você pode ter isso de volta agora.
— Claro, obrigada — Kit agarra o envelope.
A mulher seleciona um formulário de aparência oficial da pasta,
assina-o e o passa para a esquerda. O homem de terno de agente
funerário também assina, depois tira um bloco de tinta e um carimbo
da gaveta da escrivaninha. Ele carimba o formulário de forma
decisiva.
A mulher agora sorri para Kit corretamente.
— Obrigada pelo seu tempo, Srta. Sutherland. Concluímos sua
análise, a papelada será passada para seus superiores e você
poderá retirar seu novo crachá no quarto andar ainda esta tarde, ao
final de seu turno.
— Eu... — Kit encontra saliva suficiente para lamber os lábios.
Como isso aconteceu? — Obrigada. Muito obrigada.
— Você pode voltar para sua estação agora.
Kit segura o envelope com força, enrijece os joelhos e dá um
passo para longe da cadeira.
— Senhorita Sutherland?
Ela congela. Talvez seja isso. Talvez agora... Ela dá meia volta,
para ver a mulher inclinando a cabeça, as sobrancelhas levantadas.
— Não esqueça sua bolsa, srta. Sutherland.
Claro. A bolsa dela. Kit dá um passo para trás, pega a bolsa,
sente uma vertigem assombrosa ao se endireitar. Ela vai desmaiar?
Ela chegou até aqui e não vai desmaiar.
Ela se vira e caminha para a porta. Ela não se apressa, porque
suas pernas ainda estão instáveis. Ela passa pelo PM com seu rifle
até chegar à porta, abrindo-a, passando por ela, fechando-a.
Então ela se encosta na porta, ofegando como se tivesse subido à
superfície da água do fundo arenoso do oceano.
Querendo saber como em nome de Deus ela ainda está aqui.
CAPÍTULO TRINTA

Trabalhar tão intensamente assim nos deu um verdadeiro


sentimento de lealdade para com a outra. Todas nós nos
ajudamos – havia uma sensação de que estávamos todas
juntas nisso.
— ROSE OVERTON-MITCHELL

No quarto de Moya na noite de segunda-feira, uma festa.


Quatro garotas sentadas ao redor da mesa de baeta verde, quatro
copos, quatro vozes, às vezes falando ao mesmo tempo, mas agora
Moya reivindicou a palavra. Ela está tentando explicar tudo para Kit,
que parecia em estado de choque desde o momento em que ela
chegou.
— Não, realmente — diz Moya — os números de telefone em seu
arquivo eram fáceis. Acabei trocando-os por um conjunto diferente
de números. E descobri os horários das entrevistas, então sabia
mais ou menos a que horas eles fariam as ligações. O verdadeiro
trabalho foi feito por Dottie, Raffi e Violet.
— Quero dizer, eu conheço Becky Piedmont desde que éramos
crianças — diz Dottie, com as bochechas rosadas e os olhos
brilhando. — Quando ela arrumou trabalho na Central Telefônica,
dei uma festa para ela, que foi onde ela conheceu Joe, e eles se
casaram em junho do ano passado, então basicamente eu a
apresentei ao marido, o que foi legal.
— E ela não achou estranho que você quisesse que ela
redirecionasse os números de telefone? — Os olhos de Kit são
enormes e sua voz soa frágil. Seu copo de uísque está praticamente
vazio; foi Moya quem derramou metade do copo direto na garganta
de Kit quando ela apareceu pela primeira vez em lágrimas. A nova
referência de caráter de Kit – que Moya leu – diz que ela não toma
bebidas fortes. Mas essa referência, entre outras coisas, é mentira.
— Oh Deus, não, Becky nem hesitou. — Dottie acena com a mão
solta. Ela já tomou dois conhaques e refrigerantes. — Na verdade,
no Natal passado, nós pregamos essa peça…
— Espere, espere — diz Violet. — Tenho que pegar o ônibus em
cinco minutos, então quero dizer uma coisa primeiro. — Ela ergue o
copo, que ainda está meio cheio de água com gás, em um brinde.
— Este é para você, Kit. Você me deu o empurrão que eu precisava
para fazer minha inscrição na faculdade...
— Você fez? — A boca de Kit cai aberta. — Oh meu Deus, Violet,
você fez!
Violet dispensa isso.
— Sim, eu fiz, agora deixe-me terminar. Ok, como eu estava
dizendo... Kit, posso fingir ser a Srta. Gray ao telefone em qualquer
dia da semana, o que foi assustador, por sinal, e não tenho medo de
admitir isso, desde que possamos ficar com você.
— Pela inscrição da faculdade de Violet! — Dottie levanta seu
próprio copo. — E por manter Kit!
— Por manter Kit — Moya ecoa. Ela sorri para todas enquanto
bebem, elas levaram a colegialidade a um nível totalmente novo
com essa travessura, e ela não se arrepende. Seu quarto está
brilhando com a luz quente de vários abajures, um dos quais ela
cobriu com um lenço laranja para um ambiente extra. “Eight to the
Bar” das Andrews Sisters está saindo do Philco, e o clima é festivo.
Ela só gostaria de descobrir como deixar a mente de Kit à vontade.
Os olhos de Kit estão quentes, seu rosto pálido.
— Eu não... não sei o que dizer. Você sabe em quantos
problemas vocês vão se meter se alguém descobrir o que vocês
fizeram?
— Nós sabemos — declara Dottie, estendendo o braço — e não
nos importamos! Você é uma de nós, e as garotas do código cuidam
das suas. — Ela soluça. — Mas eu lhe digo que teria pago dinheiro
de verdade para ouvir a representação de Raffi do Sr. Leighton
Wallace ao telefone para o examinador.
— Ah! Eu também. Será que ele registrou para a posteridade? —
Violet veste o casaco por cima do suéter de botões e da saia verde
e pega a bolsa e as luvas.
— Oh, Deus, espero que não. — Moya gira o líquido cor de
caramelo em seu copo. — Não quero nenhuma prova deixada para
ninguém encontrar. Troquei os números de volta, então não há nada
no registro de Kit. Com um pouco de sorte, ninguém jamais saberá.
— Obrigada. Todas vocês. — Kit olha para cada uma delas por
sua vez. — Eu nunca poderei recompensá-las. Mas se precisar de
alguma coisa...
— Precisamos de você — Violet a lembra. — Nós nunca vamos
descobrir quem matou Dinah e as outras garotas sem você. Agora
que você não precisa se preocupar em ser presa por traição, pode
pensar nisso corretamente. Olha, eu tenho que ir.
— Muito, muito obrigada — Kit se levanta de sua cadeira para
segurar os antebraços de Violet e beijá-la na bochecha. — Não sei
nem o que dizer.
— Oh, pare com isso — diz Violet, mas ela está corando. —
Como eu disse, você é muito mais útil quando não é empregada.
Agora deixe-me ir antes que eu perca meu ônibus.
— Espere, Violet, vou descer com você. — Dottie também se
levanta. Ela está um pouco boba e fala alto por causa da bebida,
mas não cambaleia enquanto caminha para pegar o balde de gelo
de Moya. — Vou descer à cozinha para pegar mais gelo. Vocês
querem alguma coisa?
— Não, estou bem — diz Moya.
Kit apenas balança a cabeça.
— Venha, então! — Violet insiste.
As duas saem juntas, Violet apressando Dottie junto. Agora é só
Moya e Kit. Kit cai de volta em sua cadeira, como se a remoção de
dez meses de tensão a tivesse deixado desossada. Moya se sente
leve e um pouco tonta, e ela sabe que não é por causa do uísque –
ela não é fraca assim para bebida. Ela fecha os olhos por um
momento, aproveitando a sensação.
— Vocês todas poderiam ser levadas à corte marcial por
conspiração por cometer traição, vocês sabem — diz Kit
suavemente.
A melodia animada do Philco é substituída pela orquestra de
Tommy Dorsey tocando “There Are Such Things”, e as palavras de
Kit caem no balanço baixo e silencioso da música.
Moya abre os olhos e balança a cabeça lentamente, olhando para
o copo. Seus cotovelos estão sobre a mesa, seus antebraços e
pulsos expostos onde as mangas de seu roupão de seda preta
escorregaram.
— Você tem razão. Nós poderíamos ser. — Quando ela olha, o
olhar de Kit está cheio de admiração e preocupação. Seus olhos são
escuros e profundos à luz da lâmpada.
— Por que você fez uma coisa tão insana? — Kit sussurra. —
Moya, por que você correria esse risco?
Moya toma um último gole de uísque e abaixa o copo.
— Você faria o mesmo por qualquer uma de nós.
Moya nunca se considerou uma infratora de regras: ela é uma
supervisora – ela cumpre as regras. Mas é claro que isso não é
totalmente verdade. Há muitas maneiras pelas quais ela quebrou a
ordem aceita. Muitos desejos pessoais ela policia e controla, para
que ela possa sobreviver. Muitos aspectos de sua vida que ela
encobriu e disfarçou também...
Talvez seja hora de desafivelar parte de sua armadura, para que
ela possa viver uma vida real. Talvez seja hora dela parar de pensar
nessas partes vulneráveis de si mesma como fraquezas e
transformá-las em pontos fortes.
Talvez seja hora de começar a quebrar mais algumas regras.
Kit ainda parece perdida.
— Eu não sei o que dizer.
Moya observa as bochechas pálidas de Kit, o tremor em seu lábio
inferior. Sua galáxia de sardas e seus olhos assustados e
esperançosos. Moya está cheia de um desejo tão agudo que é
como uma dor.
— Você tem uma segunda chance agora. — Moya engole em
seco. — Diga que você vai usá-la. Que você vai viver sua vida,
arriscar, sonhar. Diga que vai parar de olhar por cima do ombro.
Diga que vai parar de esconder quem você realmente é.
Diga que vai ficar. Mas essas são palavras que Moya não
consegue pronunciar, por mais que queira. Talvez Kit tome sua nova
liberdade e fuja. Se for isso que ela decidir, então Moya terá que
viver com isso – pelo menos será uma escolha livre de Kit.
Kit pisca como se houvesse uma pressão atrás de seus olhos.
— Uma segunda chance, hein?
— Sim.
— E eu tenho uma segunda chance com você?
Moya para de respirar por um momento.
Ela abre a garganta para inalar, tonta de esperança.
— Kit, você teve uma segunda chance comigo desde que acordou
na biblioteca...
Então ela não fala mais porque Kit estendeu a mão, agarrou um
punhado da lapela do roupão de seda de Moya, segurou o queixo
de Moya com a outra mão, puxou-a para perto o suficiente para
beijar completamente, suavemente, ferozmente.
Suas bocas se fundem, se separam para respirar, se fundem
novamente. Moya dá um suspiro silencioso e engasgado. Sua mão
desliza frouxamente da baeta para a coxa de Kit, e ela sente, pela
primeira vez em muito tempo, como se tivesse encontrado um lugar
para descansar.
CAPÍTULO TRINTA E UM

Não existe um caminho lógico para a descoberta dessas


leis elementares. Existe apenas o caminho da intuição, que
é auxiliado por um sentimento pela ordem que está por trás
da aparência.
— ALBERT EINSTEIN

Kit envolve os braços em torno de si mesma contra a brisa fria que


sopra pelo gazebo.
— Ok... Violet, eu estava pensando sobre o que você disse, sobre
cifras de línguas estrangeiras. Você estava totalmente certa. E
estive quebrando a cabeça para descobrir como os arranjos das
cartas na linguagem do assassino se comportam, mas agora acho
que entendi. Você está pronta? Este é quem estamos procurando.
— Espere — diz Dottie. Ela e Kit trocaram de papéis; Kit tem as
informações, então Dottie está sendo a compiladora. Ela equilibra a
ficha no joelho enquanto se senta no pequeno banco do gazebo.
Kit convocou às pressas o almoço desta terça-feira e ninguém
teve tempo de caminhar até os estábulos. Moya deve voltar para
dentro em cinco minutos e veio sem o casaco; ela está aproveitando
a oportunidade para fumar o cigarro mais rápido do mundo. Violet
está sentada ao lado de Dottie, observando Kit enquanto ela anda
de um lado para o outro nas tábuas.
Dottie finalmente encontra seu lápis no bolso da saia.
— Entendi, estou pronta.
— Alto, branco, rico, nós sabemos de tudo isso. — Kit se vira e
começa a voltar para o outro lado. — Era o material de
personalidade que estávamos perdendo. Como esse homem
realmente é. Mas finalmente descobri essa parte sobre como os
arranjos de cartas se comportam, é o comportamento dele que é a
chave para sua personalidade. É a linguagem de quem ele é.
— E se tivermos uma ideia de sua personalidade, podemos
combiná-lo com os suspeitos — diz Moya, bufando furiosamente. —
Sim, continue.
— Sabíamos que ele era confiante — diz Kit, listando coisas em
seus dedos — porque ele agride vítimas em espaços públicos, à luz
do dia, no meio de festas. Mas ele também as induz a deixar áreas
bem povoadas e ir com ele. Isso significa que ele é charmoso...
persuasivo.
— Alguém que usa o carisma para persuadir as garotas a segui-lo
— diz Violet, concordando. — E que tem força para fazê-las ficar.
— Isso mesmo. Ele tem uma personalidade dominadora, a
maioria das pessoas com sua política gosta de dominar e intimidar.
Ele intimida suas vítimas. Ser branco, no caso de Dinah, e rico o
coloca em uma boa posição para exercer mais influência também.
— Isso faz sentido.
— Ele odeia mulheres — diz Kit com firmeza. — Eu não acho que
ele gostaria de trabalhar com mulheres, ou ser mandado por elas.
Um homem assim gostaria de trabalhar em algum lugar onde as
mulheres fossem subservientes, se é que existem.
— Um lugar com poucas mulheres — sugere Moya. — Ou
nenhuma. Os militares, uma sala de reuniões, alguma outra
indústria de maioria masculina...
— O que mais? — Dottie está rabiscando tudo.
— Sim, ele é inteligente — Kit continua — sim, ele é um
planejador. Mas ele também está fazendo mais do que apenas
planejar esses assassinatos. Ele está levando lembranças e está
usando essas lembranças para jogar com a polícia. Provocar a
polícia assim... Acho que significa que ele é arrogante e controlado.
A única evidência que ele deixa para trás é o que ele deixou
deliberadamente. Acho que esse nível de autocontrole significa que
estamos procurando um cara mais velho, mais perto dos trinta do
que dos vinte.
— Isso exclui alguns dos homens da nossa lista de suspeitos do
Mayflower, como John Farrell — diz Moya, fazendo uma careta.
— Descartar é bom — diz Kit. — Isso significa que estamos
diminuindo o alcance.
— Você disse que Richard Norton é do Departamento de Guerra
— sugere Violet. — Lá a maioria é masculino.
— Mas há muitas garotas trabalhando como secretárias nesse
departamento — retruca Dottie. — O mesmo com a Seguranças e
Intercâmbio, onde Henry Robinson trabalha.
— Bob Martelli também está fora — diz Kit. — Ele tem apenas
vinte e um anos.
— Mas Charlie Sharpe, MD, se encaixa no perfil. — Violet olha
para as árvores. — Na verdade, ele se encaixa muito bem no perfil.
Alto, rico, branco, trabalhando em uma indústria de maioria
masculina. Os médicos têm poder. E ele é arrogante, charmoso. A
maneira como enfiou o cartão no meu bolso naquela noite no
Mayflower...
— Ele gosta de fazer as coisas do seu jeito — diz Kit, pensando a
respeito. — Devemos pedir a Raffi para verificar as afiliações de
Sharpe.
— Pode ser ele — Moya concorda, mas ela está balançando a
cabeça. — Pode ser um monte de homens. Eu disse que não
devíamos ter esperanças de que algum dos caras que conhecemos
no Mayflower fosse o assassino, lembra?
— Mas o assassino estava lá — rebate Kit.
— Sim. E também mais de seiscentas outras pessoas.
— Então, para onde vamos com isso? — Dottie levanta os olhos
de seu cartão de índice, sacudindo a mão de lápis. — Agora é a
hora de ir à polícia?
— Eu não tenho certeza. — Kit para de andar para se sentar no
banco oposto a Violet e Dottie. Ela morde o lábio inferior. — Temos
um perfil e um suspeito em potencial, mas é muito escasso.
— Devemos dar uma última chance. — Moya apaga o cigarro
com o salto do sapato e cruza os braços contra a brisa. — Mesmo
que seja apenas para descobrir o que a polícia sabe.
— E por que os detalhes sobre as mutilações simbólicas nos
corpos não estão aparecendo nos jornais. — Violet esfrega os
bíceps no frio. — É melhor você acreditar que eu notei isso. Moya,
você disse que fez contato com o detetive Whitty, então deveria
voltar e tentar com ele.
— Concordo — diz Moya. — Devemos ir juntas. Que tal esta
tarde?
Violet parece surpresa.
— Você quer que eu vá junto?
— Por que não?
Dottie acena com a cabeça vigorosamente.
— Vocês podem apoiar uma a outra.
— Por que não… — Violet desvia o olhar, pensativa, antes de
olhar para trás. — Ok. Eu irei.
— Não estou convencida de que você vai chegar a lugar algum —
diz Kit, levantando-se do banco. — Embora eu ache que seria bom
saber o que a polícia tem. E pelo menos podemos dizer que
tentamos. Mas ei, eu tenho que voltar. Eu me ofereci para fazer um
turno extra, porque as coisas estão muito apertadas na sala de
trabalho e Julian Harding está aqui apenas por um curto período.
Todas elas precisam voltar – Moya não está em um intervalo
designado e as colegas de Violet podem vê-la se alguém se der ao
trabalho de olhar pela janela. Ela desaparece naquela direção
enquanto Dottie, Moya e Kit voltam para a escola.
A ideia de que elas têm um perfil do assassino – um suspeito, até
– mas nenhuma maneira de verificar isso está corroendo o cérebro
de Kit. Ela está quieta enquanto sobe as escadas com Moya e
Dottie, que se separam no Três para ir para suas respectivas áreas.
Dottie está voltando para análise de tráfego. Na porta da sala de
trabalho, antes de subir as escadas para o quarto andar, Moya roça
a mão de Kit.
— Desce mais tarde para tomar uma bebida? — A expressão de
Moya é suave, mas sua voz tem uma boa vibração.
Kit sorri, sentindo a vibração sob sua pele.
— Absolutamente.
É só para isso que elas têm tempo, e Moya segue para o Quatro
enquanto Kit volta correndo para sua cadeira. Ela se acomoda e
pega papel de carta novo.
— Algum progresso?
— Nada ainda — Opal responde melancolicamente. — No
entanto, há novos cartões coloridos chegando. Brigid nos dividiu em
cartões azuis e cartões amarelos.
Kit examina a sala. A atmosfera é movimentada, mas moderada,
cada garota debruçada sobre sua estação de trabalho, focada em
seu próprio problema complicado. Julian Harding também está
sentado em uma cadeira, mangas de camisa arregaçadas e óculos
de leitura, lápis em movimento. Ainda é estranho ver um homem na
sala, mas ele parece estar bastante confortável neste espaço só
para garotas. Harding desapareceu às vezes, para várias reuniões
com superiores e visitas a outras partes das instalações em
Arlington Hall. Mas algo sobre o quebra-cabeça com o qual as
meninas na sala de trabalho estão lutando parece atraí-lo de volta.
Todo mundo ignora Harding agora – ocupada e concentrada
demais para registrar sua presença – mas as meninas apreciam que
haja outro par de mãos. Ele faz o mesmo trabalho que todo mundo
está fazendo. No momento, ele está contando fileiras para trás com
o lápis na mão direita, um cigarro com cheiro nocivo queimando
lentamente na esquerda.
Kit encontra seu lápis.
— Eu ainda estou com os cartões azuis?
— Sim. — Opal acena para as garotas em frente a eles. —
Cartões amarelos estão desse lado.
Elas desistiram de passar pelas mesmas duas mensagens
usando técnicas diferentes. Agora, todas que trabalham com as
cartas azuis têm uma pilha e estão usando tudo, menos a pia da
cozinha, em cada carta individual, tentando acertar. Kit volta ao
trabalho, verificando possíveis substituições nos grupos de dígitos
que Brigid já atacou com números primos.
Duas horas depois, Kit está cansada de olhar para os mesmos
conjuntos de números. Ela pega o elástico de sua pilha e os
embaralha como um baralho de cartas. Ela classifica os cartões,
procurando padrões. Em seguida, ela os coloca em sua mesa em
fileiras e colunas, sem saber ao certo o que está procurando.
Não há nada. Nada que ela possa ver. Ela está olhando para
esses cartões há dias e nada está se apresentando.
Ela reorganiza as linhas e colunas, usando o primeiro grupo de
códigos de quatro dígitos como ponto de partida, organizando em
ordem crescente. Depois em ordem decrescente. Em seguida, ela
tenta organizar por ponto de origem do rádio. As cartas azuis
parecem um quebra-cabeça de memória na frente dela, mas ainda
não há nada.
A voz de Julian Harding se aproxima.
— Encontrou alguma resposta?
— Não. — Kit balança a cabeça sem olhar para ele. — Porque
não faço ideia do que estou procurando.
— O que você está organizando?
Ela diz a ele. Opal se inclina para trás em sua cadeira para que
Kit possa mostrar a Harding como alguns dos grupos de códigos
parecem tentadoramente relacionados – mas a conexão é
interrompida em uma inspeção minuciosa.
Harding franze a testa.
— Estes são por ponto de origem?
— Sim.
— E estão todos na mesma frequência.
— Sim.
Ele se levanta, apaga o último cigarro e se aproxima.
— Que tal organizar por data de transmissão?
— Como desduplicar?
— Sim, mas acho que estamos mais interessados no fio das
mensagens do que em quaisquer duplicações.
Kit reorganiza as cartas na mesa, verificando as datas. A primeira
data em que os cartões azuis começaram a chegar foi 29 de março.
Ela começa com essa data e consegue tirar seis cartas antes de
encontrar um obstáculo.
— Sinto falta de alguns. Você tem alguma coisa de 29 de março?
Harding examina suas cartas e entrega cinco a ela. Kit tira todas
as cartas que não são de 29 de março para abrir espaço e as coloca
em uma pilha separada. Em seguida, ela distribui as novas cartas,
antes de lançar ao redor.
— Opal, você tem algum cartão de 29 de março?
Opal classifica suas próprias cartas, seleciona três.
— Você achou alguma coisa?
— Provavelmente não — admite Kit.
— Vale a pena tentar, no entanto.
— Vale a pena tentar tudo. — Kit já está encaixando os cartões no
lugar. — Acho que ainda faltam alguns.
Opal fica no lugar e levanta a voz.
— Senhoras, ouçam. Alguém recebeu cartões azuis a partir de 29
de março?
Um farfalhar pela sala, enquanto as garotas vasculham suas
pilhas e arrancam as cartas solicitadas, entregando-as. No momento
em que Kit monta todos os cartões que eles têm a partir dessa data,
a coleção cobre tanto sua estação de trabalho quanto metade da de
Opal.
— Estes são todos? — Opal pergunta.
Kit assente.
— A menos que alguns tenham ido para outra sala de trabalho.
— Não que eu saiba.
Harding está mastigando a ponta do lápis.
— Ainda não está lá, está?
— Não. — Kit aperta a nuca dela. — Parece certo, mas não é
bem...
— Espere. — Harding de repente se inclina para a frente sobre a
mesa. Lápis agora preso atrás da orelha, ele começa a reorganizar
as cartas.
Kit franze a testa e se aproxima.
— O que você está fazendo?
— Data de transmissão e hora de transmissão. — Os olhos de
Harding têm um brilho intenso. — Se você levar em conta o tempo
de transmissão e colocá-los em ordem de recebimento… — Os
dedos longos de Harding se movem rapidamente, deslizando os
cartões para a posição correta. Opal varre uma pilha de papel de
carta e uma caixa de elásticos para fora do caminho enquanto o
quebra-cabeça da memória cresce na mesa.
— São todas mensagens curtas e precisas — diz Harding
enquanto coloca os cartões no lugar. — Está me deixando louco,
que eles são todos tão curtos. Nada de útil é tão curto. Mas talvez,
se juntarmos todas essas mensagens curtas em ordem, tipo...
— Como um quebra-cabeça — Kit exclama de repente. — Não é
um jogo de memória, e sim um quebra-cabeça.
— …então você acaba com uma série de mensagens curtas que
se combinam de alguma forma, embora eu não saiba como elas…
— Lá. — Kit estava contando as fileiras e agora aponta o dedo
para a sétima carta e depois para a oitava. — E lá. Sete e oito,
números da sorte. Eles têm o mesmo grupo de códigos no início da
mensagem.
Opal também está se aproximando.
— E as próximas três cartas têm um grupo de código inicial que
corresponde. — Ela bate na nona, décima e décima primeira carta,
aponta para frente, animada.
— Um código diferente?
— Talvez.
— Você tem razão. — Harding apoia as mãos na mesa, os dois
braços esticados. — Acho que está certo. As cartas sete e oito são
significativas. As cartas de nove em diante são um agrupamento
separado.
— E as primeiras cartas? — Kit pergunta. — Um a seis?
— Elas são tão curtas, algumas são apenas uma única linha
repetida. Acho que são mensagens indesejadas.
Opal franze a testa.
— Então eles são, o quê, uma distração?
— Sim. — Harding tira os óculos. — Sim. Elas são como... uma
diversão dispersa.
— Então cartas com sete e oito…
— Elas são o verdadeiro começo da mensagem. — Kit sente uma
onda de emoção através dela. — Elas têm o mesmo grupo de
códigos no início, estão ligados, podem ser...
— A linha de endereço. — Harding olha para ela. — Kit, acho que
você conseguiu. Meu Deus.
— Garota, você conseguiu! — Opal grita, segurando o ombro de
Kit.
A cabeça de Brigid ergue-se pela sala.
— O quê? Você descobriu?
Harding acena com a cabeça, sorrindo.
— Sim, acredito que sim.
— Muito bem, Kit!
Outras garotas estão percebendo agora, rostos enrugados de
alívio com a ideia de que há um fim à vista. Elas comemoram e
gritam, balançando os punhos no ar em parabéns. Kit pode sentir-se
corando.
— Ainda não podemos comemorar. — Kit respira fundo, animada.
— Se essa é a linha de endereço, ainda temos que quebrá-la.
— Mas agora temos uma linha de endereço, graças a você! —
Opal lhe dá um abraço de lado e um sorriso feroz. — Você tem um
cérebro, senhorita Sutherland.
— Você realmente conseguiu — Julian Harding se levanta
corretamente. Seu colete está desabotoado, seu cabelo
desgrenhado, mas ele está sorrindo. Ele aperta a mão dela. —
Muito bem, Kit. Muito bem feito. Bom Deus.
Kit se lembra de algo que Moya disse, o que parece anos atrás.
— Foi um esforço de grupo.
Uma voz da porta.
— Estou interrompendo?
Kit olha – fala no diabo, Moya está parada ali parecendo
pecaminosamente tentadora em uma blusa de seda preta e calça de
tweed. É a mesma roupa que ela usava duas horas atrás, mas
caramba.
Opal, rosto radiante, responde antes que Kit possa recuperar seu
juízo.
— Achamos que temos uma chance.
— Sério? — As sobrancelhas de Moya levantam e ela passa pela
soleira, olhando para Kit.
— É cedo, mas talvez, sim. — Kit pode sentir-se corando
novamente.
Harding abotoa o colete.
— O Sr. Kullback e os outros precisam de mim lá em cima, Srta.
Kershaw?
Moya pisca para ele.
— Ah, não. Eu só preciso falar com Kit por um momento. Sobre
outro assunto.
— Oh. — Kit larga o lápis e resiste à vontade de arrumar o cabelo.
— Ok, um segundo.
Ela passa a discussão sobre as melhores maneiras de abordar o
problema da nova linha de endereço para Harding e Opal. Então ela
segue Moya pelo corredor.
Ela acabou de perceber que Moya está carregando seu
sobretudo. Kit mantém sua expressão neutra e sua voz baixa.
— O que é?
— Violet me mandou um bilhete. — Moya olha para o corredor, de
volta. — Ela quer nos ver no chalé.
— No chalé?
Moya assente.
— Pegue seu casaco.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Meu Deus, você deveria ter ouvido a alegria subir quando


recebemos um beliscão!
— EDITH YOUNG

Moya leva Kit para fora da escola pelas cozinhas, as duas pedindo
desculpas para a equipe. Aquele rubor de vitória nas bochechas de
Kit é muito atraente. Isso lembra a Moya como a cor de Kit aumenta
depois que elas se beijam... e ela realmente precisa se concentrar
mais, ou vai tropeçar nas escadas dos fundos.
Fora da entrada dos fundos da cozinha está o início de um
caminho de cascalho que corta o quadrilátero na diagonal. Moya
veste sua gabardina cor de vinho no caminho. Elas passam pelos
bancos de madeira do parque e pelos arbustos que já foram
elegantemente moldados e agora estão um pouco crescidos –
ninguém tem tempo para cuidar da topiaria; todas elas estão
trabalhando muito.
Virar à esquerda por outro caminho leva-as à porta de uma casa
de três andares construída com a mesma pedra da escola, onde
morava o Diretor da Escola. Violet segura a porta pintada de branco
parcialmente fechada com uma das mãos. Através da abertura,
Moya vê um vislumbre de uma sala de trabalho composta
inteiramente por mulheres negras em trajes civis, com cabelos
elegantemente enrolados. Elas estão sentadas em carteiras
separadas, de cabeça baixa, lápis voando. É uma espiada em um
mundo diferente, e Moya tem que conter sua curiosidade quando
Violet fecha a porta completamente.
— Você conseguiu. — Violet enfia o lápis atrás da orelha.
— A unidade de Kit teve uma descoberta — explica Moya. — As
coisas estão acelerando.
— Bom para você. — Violet dá a Kit um sorriso de aprovação. —
Na verdade, também temos uma descoberta aqui. Mas é isso que
eu queria te dizer. Conseguimos isso em um piscar de olhos.
Moya está familiarizada com beliscões. É quando alguém no
campo de batalha – às vezes uma equipe armada com intenção
deliberada, às vezes uma toupeira aliada trabalhando na inteligência
inimiga – captura chaves cifradas ou livros de códigos inimigos e os
passa adiante. O valor de uma pitada é estratosfericamente alto e
elas são raras; a unidade de Violet teve sorte. O beliscão só é útil
enquanto o inimigo não perceber que suas chaves cifradas foram
interceptadas. Assim que descobrem, os códigos mudam
novamente. Mas para um decifrador, essa janela de tempo pode ser
uma tábua de salvação.
Moya conhece puristas decifradores que consideram uma trapaça
uma pitada, mas essas pessoas podem ir até o inferno. Isso é
guerra. Você tira qualquer vantagem que conseguir.
— Isso é ótimo — diz ela. — Mas por que você…
— Isso me fez pensar — Violet interrompe. — É assim que
podemos pegar nosso assassino. Nós criamos um beliscão.
Teríamos que semear um pouco, divulgar que há uma evidência ou
algo em torno do assasinato de Veronica Luca. Depois que a isca
estiver colocada, veremos se Charlie Sharpe ou algum dos outros
suspeitos cairá na armadilha.
Kit franze a testa.
— Mas como nós... ohhh.
Moya assente. Kit sempre pegou as coisas rápido.
— Rafi. Ele poderia escrever um novo artigo sobre o assassinato
no Mayflower.
— Ele faria isso? — Violet pergunta.
— Acho que sim — responde Moya. — Sim. Já é de alto perfil, e a
mídia está comendo. Também é interessante que ninguém tenha
resolvido os assassinatos ainda. Raffi pode dizer que há novas
evidências, ou mesmo uma testemunha.
— Mas isso não é verdade. Ele pode mentir em um artigo de
jornal? — Kit pergunta. — Isso é permitido?
Moya deixa sua diversão morder seus lábios.
— Ele não precisa mentir. Ele pode insinuar muito, sem dizer
nada diretamente.
As rugas da testa de Kit.
— É um risco.
— Mas é um risco estratégico aumentar nossas chances, como a
marcha de A. Randolph sobre Washington, apenas a ameaça disso
foi suficiente para fazer uma mudança. — Violet muda de lugar,
animada. — Nós deveríamos fazer isso. Se Raffi escrever um artigo
dizendo que há um possível relato de testemunha, e se ele
encorajar o público a entrar em contato com o Star com dicas ou
informações...
— Nosso cara vai entrar em contato com o Star — Kit está
balançando a cabeça lentamente. — Isso se encaixa com seu tipo
de personalidade. Ele vai querer saber o que está acontecendo. Ele
vai querer saber se alguém tem alguma pista real. E ele é arrogante
o suficiente para pensar que nunca será suspeito ou pego.
Moya sente uma chama queimando em seu peito.
— Que é exatamente onde ele está errado. — Ela verifica o
relógio. — Violet, está chegando às três e meia. Você acha que o Sr.
Coffee iria liberá-la mais cedo, sob minha supervisão? Podemos
começar nossa viagem até a delegacia, então posso deixar você em
casa e ligar para Raffi assim que voltar.
— Talvez. — Violet parece animada, energizada. — Deixe-me ir
ver.
Ela gira de volta pela fresta da porta e, mais uma vez, Moya vê de
relance a unidade Negra, as mulheres trabalhando duro. Por que
elas precisam ser separadas do resto das meninas do código na
escola, se o trabalho delas é o mesmo? Não faz um pingo de
sentido.
— As coisas estão ganhando força, não estão?
Moya se vira para ver Kit olhando distraidamente para o Hall.
— É como uma sensação no ar... — Kit estremece, como se
estivesse sacudindo a sensação, e olha para trás. Seu olhar
percorre Moya da cabeça aos pés, e um sorriso aparece em seu
rosto. — Você vai visitar o detetive Whitty de calça?
Moya bufa, põe a mão no quadril.
— Ele vai ter que lidar com isso.
Kit olha ao redor rapidamente antes de se aproximar.
— Se você e Violet vão sair, preciso voltar lá para cima. Vejo você
hoje à noite para a reunião do grupo?
— Conte com isso. — Moya consegue dar um aperto de mão
quente com Kit antes que ela vá embora. A bainha da saia de Kit
balança um pouco na parte de trás com a brisa, e Moya sorri ao vê-
la partir.
Violet aparece na porta novamente, segurando um casaco de
gabardine azul.
— Sr. Coffee disse que sim. — Ela parece silenciosamente
emocionada. — Então estamos indo para a delegacia, certo?
Moya amarra seu casaco na frente quando elas começam a se
mover.
— Podemos ir de táxi, acho. Vamos.
Mas uma vez que elas descem a entrada da garagem e saem do
portão de vigia, os táxis são mais difíceis de encontrar do que Moya
esperava. Ela e Violet ficam na beira do meio-fio, e duas vezes
Moya levanta o braço e observa os táxis claramente vazios
passarem por elas.
— Que diabos. — Moya acena novamente em vão. — Por que
eles não...
Ela vira a cabeça a tempo de ver Violet erguendo as
sobrancelhas.
— Por que eles não param? — A garota lhe dá um olhar cansado.
— Por que você pensa?
— Você gasta dinheiro como todo mundo, certo? — Moya balança
a cabeça frustrada e abaixa o braço. Olha para Violet de frente e
suspira. — E você é uma pessoa, como qualquer outra. Só acho
todo o conceito desconcertante.
Violet semicerra os olhos para ela.
— Tenho me perguntado sobre isso, sabe.
O que ela está pensando tem que esperar: naquele momento, um
motorista de táxi finalmente fica com pena delas e para. Moya
desliza para o banco traseiro e dá instruções enquanto Violet se
acomoda ao lado dela e puxa a porta para fechá-la. Está quente e
silencioso dentro da grande cabine.
Moya liga o assento de vinil enquanto o táxi se afasta do meio-fio.
— O que você quis dizer com “tenho me perguntado”?
Violet alisa a lã do casaco sobre o joelho.
— Bem, quero dizer que você, Kit e Dottie parecem confortáveis
trabalhando comigo. Desde o início.
— Por que não estaríamos? — Mas Moya pode dizer que ela
precisa fornecer mais esclarecimentos. Ela se recosta no assento.
— A segregação não era realmente algo em que eu pensava, até
que vim para o sul. Cresci na cidade de Nova York, em um bairro
misto. italianos, irlandeses, Porto-riquenhos, alemães… e, sim,
algumas famílias negras também. Todos nós nos misturamos.
Ajudavamos uns aos outros, pelo menos o pessoal da minha rua. É
disso que se trata a comunidade.
— Essa não foi a experiência de Kit, no entanto — ressalta Violet.
— Ou de Dottie.
Moya enfia a mão no bolso à procura da cigarreira.
— Bem, é da natureza de Dottie gostar de todo mundo. — Ela
ouve sua própria voz ficar seca. — Embora você tenha visto como
ela estava no ônibus. Baltimore é tão branca que provavelmente
nunca ocorreu a Dot antes que as condições pudessem ser
diferentes para outras pessoas. Mas ela está aprendendo. —
Finalmente encontrando a caixa de metal duro, ela passa o polegar
por sua superfície. — Kit... Acho que Kit sente que seus próprios
pecados são tão grandes que ela não pode julgar os outros. E sei
que ela cresceu em desvantagem, então não desejaria
desvantagem para ninguém.
— Isso é verdade. — Violet aperta os lábios. — Acho que não
tinha certeza de como isso iria acabar. Achei que você, Dottie e Kit
poderiam achar estranho trabalhar com uma garota negra. — Ela
olha Moya bem nos olhos. — Minha mãe ficaria grata apenas por
ser incluída. Mas não sou da geração da minha mãe. Eu tenho
expectativas mais altas.
Moya sustenta o olhar de Violet.
— Você está certa em tê-las. As coisas precisam mudar.
Violet dá um pequeno sorriso.
— Pelo menos se nós quatro meninas pudermos trabalhar
cooperativamente, é encorajador.
— Estamos nisso juntas — diz Moya com firmeza. — Temos que
nos apoiar. Deus sabe que mulheres de todos os tipos já têm o
suficiente para lidar sem adicionar mais lixo à mistura.
— Amém a isso — diz Violet e, alguns minutos depois, o táxi
estaciona em frente à delegacia.
Moya paga, porque ela tem uma mesada para isso como
supervisora, então as duas vão saindo e arrumando a roupa na
calçada. A estação do Condado de Arlington parece imponente, com
colunas altas de cada lado da grande porta pesada, mas Moya já
esteve aqui antes.
Violet olha para o prédio, sua expressão incerta.
— O que você acha que a polícia vai dizer?
— Eu não faço ideia. — Moya franze a testa para a porta, o vento
puxando seus cabelos. Ela tira um cigarro do maço, ergue a mão e
dá a Violet seu melhor olhar sardônico. — Mas certifique-se de que
sua saia esteja reta. Porque garanto que o detetive Whitty vai notar.
Violet revira os olhos e as duas se dirigem para as escadas.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

O futuro pertence àqueles que acreditam na beleza de


seus sonhos.
— ELEANOR ROOSEVELT

Recém-saída do banho, Kit está parada na porta espelhada do


guarda-roupa de Dottie, tentando não mexer muito no cabelo. Ela
está se preparando para ir para o quarto de Moya enquanto tenta
não parecer que está se arrumando.
Dottie está de chinelo e roupão, sentada na cama com o cabelo
preso com um lenço. Ela pintou as unhas de uma das mãos com um
lindo tom picante de rosa e agora está pintando a outra. O esmalte
de unha está em falta: este é compartilhado por várias garotas no
andar.
Dottie sopra na unha do dedo anelar.
— Então você acha que Raffi vai concordar em escrever o artigo?
— Não sei. — Kit enfia sua blusa branca de algodão. — Mas
provavelmente já é algo que Raffi iria fazer de qualquer maneira.
— Só que ele não ia insinuar que o assassinato de Veronica no
Mayflower tinha uma testemunha — diz Dottie, examinando o dedo
mindinho.
— Só temos que confiar que Moya o convenceu a fazer isso. —
Kit abotoa bem a frente da blusa.
Dottie sorri enquanto passa gloss em sua última unha.
— Moya pode ser bem persuasiva.
— Concordo com isso. — Kit empurra o cabelo para trás uma
última vez, depois desiste de se olhar no espelho. — Ok, nós
estaremos falando de assassinato em breve, vamos mudar de
assunto. O que você vai fazer no seu aniversário?
— Não sei. — Dottie dá de ombros e enfia a escovinha de volta
na garrafa. Ela aperta a touca e se reclina sobre os travesseiros. —
Provavelmente nada demais. Não consegui nem um dia de folga
este ano.
— Bem, nós temos que fazer alguma coisa.
— Talvez possamos ir ao Clube Caverna de novo. — Os olhos de
Dottie brilham enquanto ela balança os dedos para secá-los bem.
— Foi muito divertido — concorda Kit.
Dot faz uma cara triste.
— Estou meio falida.
— Eu também.
Ambas bufam e depois caem na gargalhada.
— Então talvez não. — Dottie ri, antes de virar os olhos azuis para
Kit. — Ok, eu tenho uma pergunta. O que você vai fazer, agora que
não precisa fugir?
A ideia toda faz Kit parar e pensar. Amanhã é quarta-feira, o dia
em que ela deveria ter um dia de folga – o dia em que ela deveria
partir. Ainda não parece muito crível que ela esteja aqui no Hall. O
conceito de ter um futuro é muito novo. Toda vez que Kit tenta
pensar, planejar, considerar o assunto, ele se esquiva dela. É como
acariciar um cavalo assustado; ela tem que esgueirar-se até ele com
cuidado, aproximar-se dele de lado. Enfrentá-lo de frente nunca
parece funcionar.
— Não sei. — Ela inclina a cabeça. — Achei que continuaria
trabalhando e... as coisas voltariam ao normal. Seja lá o que é isso.
Dottie se senta.
— Ainda há um risco, no entanto.
— Ainda há um risco. — Kit assente. De alguma forma, admitir
isso é mais fácil do que pensar no futuro. — Pode haver outra
revisão de segurança, ou alguém pode simplesmente decidir cavar
um pouco mais fundo. Howard Lascar poderia me rastrear. Algum
novo contratado da Pensilvânia pode conhecer os Sutherlands...
não sei. Tudo pode acontecer.
— Você deveria estar pensando no futuro, Kitty-Kat — Dottie diz
suavemente.
A nova política de Kit é a honestidade.
— Eu... não estou acostumada a fazer isso. Não estou
acostumada a pensar além da próxima semana.
— Então comece por aí. — Dottie se inclina para a frente. — O
que você quer fazer na próxima semana?
Kit desvia o olhar, sem saber a resposta. Ela tenta enquadrar isso
como uma piada.
— Que tal o que eu quero fazer em uma hora? Em uma hora,
quero estar sentada na mesa de jogo de Moya, ouvindo o Philco e
conversando sobre os próximos passos. Vamos, você está se
preparando?
Dottie se inclina para trás novamente, considerando.
— Hum... acho que não.
— O que você quer dizer? É uma reunião de grupo...
— Não, não é. — Dottie balança a cabeça. — Moya já mandou
avisar que Violet não pode vir. A mãe dela precisava dela em casa
hoje à noite para algum tipo de jantar em família.
— Ok, então vai ser você e eu e Moya.
— Bem, eu já sei sobre o artigo de Raffi de você, e você pode me
dar um relatório sobre a viagem de Moya e Violet à polícia. — Dottie
levanta o cobertor debaixo de si para que possa enfiar os pés. —
Então, estou pensando em aproveitar a chance de ir para a cama
cedo.
— Mas…
— Vai ser só você e Moya. — Dottie sorri enquanto afrouxa o
lenço sobre o cabelo. — Você não quer que seja assim mesmo?
Kit fica quente, depois fria, depois quente de novo. Encontra-se
gaguejando.
— Bem, eu não sei o que você…
— Kit — Dottie coloca o lenço na cabeceira da cama. — Eu não
estou chocada, ok? Sou amiga de Moya há mais de dois anos. Você
acha que eu não sei com quem ela gosta de namorar? — Ela se
contorce sob as cobertas. — Eu vejo como vocês duas se olham, e
isso me deixa feliz. Quero que um dia alguém olhe para mim assim.
Kit só pode ficar ali, cheia de uma ternura agradecida. Ela estende
a mão para a cômoda para se firmar.
— Bem... ok, então.
— Já que estamos no assunto — diz Dottie, afofando os
travesseiros — o que você acha de Emil Ferrars?
— Sr. Ferrars? — Kit engasga novamente.
Dottie cora um pouco.
— Ele me cumprimentou no refeitório ontem e tive um
pressentimento dele.
— Um pressentimento?
— Você sabe. — O sorriso de Dottie agora é privado.
Kit tenta impedir que sua cabeça gire.
— Ele fez mais alguma coisa além de dizer olá?
— Ainda não, mas eu meio que gostaria que ele fizesse. — Dottie
se aconchega em seus travesseiros, sorrindo. — Vá ver Moya.
Curta a música.
— Ok. Eu... eu vou. — Kit pisca. É tudo um pouco demais para
absorver.
Dottie se curva de lado.
— Apague a luz quando sair? Estou cansada demais para esperar
acordada.
Kit recolhe seu cardigã e sua bolsa. Ela desliga o interruptor de
luz, deixando Dottie com seus sonhos românticos, e sai pelo
corredor.
A escola parece silenciosa a essa hora da noite, apesar dos sons
das salas de trabalho mais abaixo – o carpete amortece parte do
barulho. Kit está muito ciente das ricas cores do tapete, da madeira
escura do rodapé e do corrimão, das cornijas ornamentadas no teto.
Ela se sente muito presente, e uma estranha sensação de gratidão
persiste por dentro. Ela a carrega escada abaixo, até que ela esteja
do lado de fora da porta de madeira na Dois.
Ela levanta a mão para bater e, de repente, a importância total do
que Moya disse na noite passada se apodera dela: ela não precisa
mais esconder quem ela é. Ela pode ser Kathleen e ainda ser Kit.
Ela pode continuar fazendo o trabalho que ama, no qual é boa. E ela
pode se apaixonar por Moya, sem reservas…
A mão de Kit mergulha com o pensamento, os nós dos dedos
roçando a madeira. Em segundos, a porta se abre, como se Moya
estivesse esperando e ouvindo sua chegada.
O som de Jo Stafford cantando “Fools Rush In” chega
suavemente ao corredor. O cabelo de Moya está solto, o laço da
blusa de seda preta solto na frente e a gola aberta. Ela parece tão
bonita que Kit quase não aguenta. Atrás dela, as lâmpadas da sala
estão quentes e fracas.
— Ei. — O sorriso de Moya é descontraído e genuíno. Ela tem um
refrigerante em uma das mãos e sua expressão não é mais
profissionalmente formal, mas suave, cansada, feliz. Tudo nela
parece acalmado pela presença de Kit.
— Ei — diz Kit, sorrindo de volta, entrando.
Eu posso me apaixonar por Moya, sem reservas…
Pela maneira como o coração de Kit bate em seu peito, ela sabe
que se apaixonou há muito tempo.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Pode-se dizer que, mesmo depois de ter uma


compreensão completa dos princípios subjacentes, a
paciência e a perseverança são as notas-chave para o
sucesso.
— ELIZEBETH FRIEDMAN

— “…mas isso depende em grande parte da assistência do público”,


disse um funcionário hoje. “Imploramos que outras testemunhas se
apresentem”. Qualquer pessoa com informações sobre esses
crimes horríveis é incentivada a entrar em contato com o
Washington Star. Relatórios e ligações terão confidencialidade
profissional completa. — Dottie joga o jornal na mesa de centro da
biblioteca. O artigo de Raffi foi publicado ao lado de outro artigo
sobre mulheres trabalhadoras sendo assediadas em ônibus públicos
e notícias sobre os últimos protestos por salários iguais. — Não sei.
A ideia de que um suspeito pode ligar sobre o assassinato de
Mayflower parece meio duvidosa. Você realmente acha que nosso
cara vai entrar em contato com o jornal?
— Sim — Kit diz com firmeza. — Ouvir que houve uma
testemunha do assassinato de Veronica no Mayflower vai atacá-lo.
Ele vai querer saber o que está acontecendo. Ele vai ligar, mesmo
que seja só para bisbilhotar qualquer informação que o Star tenha.
Dottie faz uma careta.
— O que é nada. Eles não têm nenhuma informação, são apenas
coisas que Raffi inventou.
— A parte sobre a testemunha, claro. — Violet move a pilha de
livros de palavras cruzadas para o lado para que ela possa alcançar
um saco de papel com biscoitos. — Mas o resto é real. O resto é o
que Raffi conseguiu de nós.
— E se o nosso cara ligar com um nome falso?
— É uma possibilidade — admite Violet. — Mas se ele for tão
arrogante quanto qualquer nazista, ele não vai pensar que alguém
vai ligá-lo aos crimes. É como o perfil de personalidade de Kit
sugeriu, ele planejou tudo. Ninguém possivelmente suspeitaria dele,
certo? Acho que ele vai usar o nome verdadeiro. E acho que ele vai
ligar para o Star, alegando estar horrorizado com o que aconteceu
no evento que ele assistiu, e perguntar quais informações eles já
têm e se ele pode ajudar.
— Então agora o que nós fazemos? — Dottie pergunta.
— Nós esperamos. — Kit mastiga seu próprio biscoito. Parece um
pouco sacrilégio estar comendo em uma biblioteca, mas Violet
trouxe um saquinho de biscoitos de aveia feitos em casa por sua
mãe. Faz tanto tempo que Kit não come nada feito em casa que ela
quase esqueceu como é. — Puxa, Violet, esses biscoitos derretem
na boca. Sua mãe é uma cozinheira incrível.
— Ela é — reconhece Violet, colocando a palma da mão sob o
biscoito para pegar as migalhas.
— É mesmo? — Dottie faz uma careta. — Nós apenas
esperamos?
— Bem, graças ao detetive Whitty, sabemos por que as
informações sobre as mutilações simbólicas não chegaram à
imprensa. O coronel Corderman pediu à polícia que suprimisse esse
destacamento, por motivos de segurança nacional. — O rosto de
Moya está inclinado para baixo na coleção de pastas em seu colo.
Ela não está comendo os biscoitos. Ela está fumando e folheando a
pasta de cima com a mão desocupada. — E Whitty concordou em
passar informações, se eles descobrirem alguma coisa nova. Se
você acha que podemos acreditar nele.
Violet revira os olhos.
— Eu não acredito nele.
— Eu também. — Moya faz uma careta. Então ela encolhe os
ombros, levanta uma das pastas em seu colo e acena. — Portanto,
tudo o que podemos fazer é esperar e examinar os perfis dos
suspeitos. Raf compilou informações sobre os suspeitos do
Mayflower da lista que demos a ele. Ele ainda não desenterrou tudo
sobre afiliações políticas, mas juntou essas pastas preliminares.
Aqui, dê uma olhada.
Moya divide os arquivos para que cada uma fique com um e dois
ficam para ela. A sala é quente com luz, um ninho aconchegante
protegido da noite lá fora. As cortinas estão fechadas em todas as
janelas, exceto uma; por essa abertura, Kit pode ver o brilho preto
dos tetos dos carros no estacionamento. Além disso, as árvores na
escuridão.
É quarta-feira – a noite do dia em que Kit deveria estar fugindo.
Em vez disso, ela está aqui nesta sala silenciosa com seus amigos.
A biblioteca é um lugar que ela agora associa à irmandade, bem
como ao descanso.
— Kit, você disse que John Farrell é muito jovem — diz Violet,
mastigando seu biscoito e verificando seu arquivo.
— Sim, mas não sabemos ao certo. — Kit engole o resto de seu
biscoito com um gole de água de seu copo. — Qual tipo de
personalidade esse cara é, faz sentido que ele seja mais velho. Mas
devemos manter nossas opções em aberto.
— Bem, mesmo que ele não se encaixe no perfil de idade, parece
que podemos descartar Bob Martelli imediatamente — diz Dottie,
passando a ponta do dedo na primeira página de seu arquivo. —
Aqui diz que ele esteve no Canadá com o pai em janeiro.
— Ótimo, a eliminação é boa. — Moya olha para Kit e acena com
a cabeça, olha para Dottie. — Coloque esse no sofá; vamos fazer
disso a pilha de descarte.
— E Richard Norton tem um álibi para a noite do assassinato de
Dinah — observa Kit, verificando seu próprio arquivo. — Ele estava
em outro evento e, aparentemente, muita gente o viu lá. — Ela
começa a passar o arquivo para Dottie colocar no sofá, então faz
uma pausa. — Devemos confiar que seu álibi é sólido? Não quero
ignorar alguém que pode ter amigos mentindo para ele.
— Deixe-me ver. — Moya pega o arquivo que Kit oferece e
examina a página relevante. — Não, veja... Raffi conseguiu
depoimentos de testemunhas, e uma das pessoas que viu Norton foi
Jean Westmore. Ela é uma das gerentes de unidade em Munições.
Eu acreditaria nela. Ela não tem motivos para mentir.
— Ok, bom. Descarte-o. — Kit acena com a cabeça enquanto o
arquivo vai para a pilha de despejo. — Isso nos deixa com John
Farrell, Henry Robinson e Charlie Sharpe.
— Realmente não acho que seja Farrell — diz Violet, examinando
suas páginas. — Ele simplesmente não parece inteligente o
suficiente. Veja o que você acha.
Kit e Dottie se inclinam para ver o arquivo de Violet, tomando
cuidado para não derrubar o copo de água de Violet na mesinha de
centro. Enquanto elas olham, Moya faz barulho.
— O que é? — Kit move o copo de água para um local mais
seguro.
— Robinson ainda é um talvez. — Moya sopra a fumaça acima de
suas cabeças e vira os papéis de sua pasta. — Mas olhe para
Sharpe. Mora na zona oeste. Com certeza estava na festa no
Centro. Tem um histórico de ser desprezível. Licença médica.
Violet examina os papéis e acena com a cabeça.
— Ele se encaixa na idade demográfica, ele tem 28 anos.
— Então por que não um bisturi ou... ou algum outro tipo de
bisturi? — Dottie pergunta. É uma boa pergunta, que Kit nem
considerou.
— Aqui. — Moya aponta para uma linha de impressão
datilografada. — Isso pode responder a essa pergunta. Ele é dono
de um barco.
— Ele é dono de um barco? — Violet se inclina mais para ver. —
Isso pode colocá-lo nas docas ou perto delas. E teria acesso a facas
náuticas ou de pesca.
— Então pode ser ele. — Dottie colocou seu biscoito meio comido
de lado. — Charlie Sharpe pode ser o nosso cara!
— Sim, mas... espere. Ok? Espere. — Kit puxa a barra da saia
dela. — Estamos apenas traçando algumas linhas de interesse para
a polícia. Pode ser Sharpe, pode ser qualquer um. Vamos ver se
Sharpe liga para o Star. Se ele ligar para o Star, então as chances
são muito maiores de que ele seja o homem que estamos
procurando.
Dottie geme.
— Ah, pelo amor de Deus. Sei que não há mais nada que
possamos fazer, mas está me matando ter que ficar parada com
toda essa informação.
— Segure firme — Moya a aconselha. — Nossa hora está
chegando. Raffi está compilando uma lista de todos os homens que
contataram o Star, para que possamos verificar cada um deles.
Vamos colocar Sharpe, Robinson e Farrell em uma pilha e analisá-
los mais tarde, quando tivermos notícias de Raf. Há mais que
podemos fazer.
— O que mais? — Dottie pergunta melancolicamente.
— Bem, ainda temos que descobrir mais sobre Veronica e
Margaret para o conselho de assassinato — oferece Kit.
— Tudo bem. O que mais?
— Entrei em contato com Ruth para obter cópias do relatório da
autópsia de Veronica e mais detalhes sobre os ferimentos de faca
em todas as meninas — diz Violet. — Devemos confirmar se os
ferimentos foram feitos por uma faca de pescador ou uma faca de
filé, ou outro tipo inteiramente de faca.
— O que mais? — Dottie pergunta.
— É isso, Dot — diz Kit, desejando soar calmante. — Agora
vamos esperar.
— E torcer para que nosso assassino levante a cabeça —
acrescenta Violet.
— Sim. Agora é um jogo de paciência — confirma Moya. — Nós
colocamos a isca na armadilha, agora vemos quem morde. — Ela
apaga o cigarro no cinzeiro ao lado do braço de sua poltrona e dá
um sorriso irônico para Dottie. — Então, isso conclui nossa reunião
da Sociedade de Apreciação de Palavras Cruzadas... a menos que
você tenha mais alguma notícia para compartilhar.
Dottie olha para ela.
— Moya…
— Ah, qual é — diz Moya. — Você sabe que quer contar.
Dottie cora.
— Certo, tudo bem. Eu tenho notícias. Emil Ferrars me convidou
para sair no meu aniversário.
— Dottie! — Kit diz, e então há um burburinho de vozes, que
Dottie tenta em vão abafar.
Ela estende as mãos.
— Ok, acalme-se. Não é grande coisa. — Mas suas bochechas
rosadas desmentem essas palavras.
Kit não consegue parar de sorrir.
— Você disse que teve um pressentimento.
Dottie ainda está corando furiosamente.
— Bem, eu pensei que ele estava interessado, mas que talvez ele
já tivesse um acordo com alguma outra garota. Acontece que ele é
apenas tímido.
— Quando ele falou com você? — Violet está inclinada para a
frente, extasiada.
— Esta manhã, depois do café da manhã. — Dottie luta para
controlar um sorriso e falha. — Fui até a lanchonete e peguei os
jornais para o Quatro, depois peguei meu café e ele pegou o café
dele, e meio que nos esbarramos um pouco. Então, enquanto
estávamos limpando o que derramou, começamos a conversar.
— Bem, isso é simplesmente o mais fofo — diz Violet, suspirando.
— Eu mencionei que é meu aniversário amanhã, e ele só... me
convidou para sair. — Dottie desiste de controlar o sorriso.
— Aonde você vai? — Kit se senta mais ereta, animada por ela.
— Ele está levando você para o Clube Caverna, não está?
— Na verdade, não — Dottie admite. Ela bufa e revira os olhos. —
É bobagem, porque nós dois estamos trabalhando na quinta-feira e
vamos nos ver o dia todo. Além disso, ele acabou sua ração de
gasolina, então não podemos dirigir para lugar nenhum...
— Pegue o ônibus!
— Espere eu terminar! — Dottie faz uma carranca zombeteira,
antes de sorrir gentilmente. — Olha, é só um aniversário, e eu não
queria fazer disso um drama de qualquer maneira. Vamos fazer um
piquenique aqui no terreno.
— Está tudo bem — diz Violet com aprovação.
— Um piquenique no final da tarde sob as árvores? — Moya
finalmente sucumbe à atração dos biscoitos e gesticula para Violet
passar a sacola para ela. — Parece meio romântico para mim.
— Você sabe como são essas coisas. Podemos nos odiar. —
Esse não parece ser um resultado que ela esteja considerando
seriamente.
— Para onde você vai? — Kit pensa no desejo na voz de Dottie
quando ela disse que um dia queria que alguém a olhasse assim e
fica emocionada por ela. — Você tem uma cesta de piquenique? Oh,
espere, podemos ajudá-la a se preparar!
Moya está concordando.
— Posso providenciar um cobertor.
— Posso falar com o pessoal da cozinha sobre comida —
concorda Violet. — Eles provavelmente têm uma cesta na despensa
em algum lugar.
— Bem, obrigada. E se você quiser vir comigo amanhã e acertar
as coisas, não vou dizer não. — Dottie está corando de novo, mas
obviamente satisfeita. — Eu acho que os melhores lugares seriam o
gazebo ou os estábulos?
— O gazebo é meio visível — sugere Kit. — Os estábulos são
mais privados. Você não quer que todas as garotas da escola olhem
para você pela janela.
— Bom ponto. — Dot ajeita a camisa. — Tudo bem, podemos
conversar um pouco mais sobre isso amanhã. Obrigada por se
oferecer para me ajudar a arrumar as coisas.
— De nada — diz Violet, depois pisca. — Quero dizer, vamos lá,
precisamos de alguma emoção que não esteja relacionada a
assassinato ou traição!
— Vou dar-lhe alguma emoção alternativa — retruca Dottie. —
Julian Harding. Ele está chamando a atenção em todo o Hall.
— Achei que você estava ansiosa para passar um tempo com os
ingleses — brinca Kit.
Dottie dá de ombros.
— Quero dizer, ele é fofo e tudo, mas é uma grande distração.
Toda garota na sala espera chamar sua atenção e arranjar um
namoro rápido.
— Seria um turbilhão e tanto — observa Violet, empilhando as
pastas cuidadosamente. — O grupo inglês vai embora na sexta,
certo?
— Vão para Dayton — confirma Moya. — É melhor ele não roubar
nenhuma das minhas garotas para um romance rápido.
Kit balança a cabeça.
— Não acho que ele seja o tipo de cara que tem “romance
rápido”.
— Isso não vai impedir todo mundo de falar sobre isso. — Dottie
revira os olhos.
Violet dá a ela um olhar travesso.
— Você não quer derrubar o Sr. Ferrars e tentar a sorte com
Julian Harding?
— Quer dizer, pegar carona com um cara que não vai ficar por
aqui até o fim do mês? — Dottie acena com a mão dispensando. —
Sem chance.
— Sem falar que você teria que ir para a Inglaterra — observa
Moya.
— O que há de errado com a Inglaterra? — Kit pergunta.
Moya tira migalhas do colo.
— As pessoas dizem que a comida está ruim e o tempo piorou.
Violet ri.
— Você não se importaria com o tempo... ficaria olhando para o
rosto de Julian Harding o dia todo. — Ela percebe o olhar surpreso
de Kit. — Sim, eu o vi. O Sr. Kullback trouxe ele e os outros para um
passeio pela casa ontem.
— Você está de olho na Inglaterra? — Moya provoca.
— Não por causa do Sr. Harding — Violet zomba, antes que sua
voz e expressão mudem. — Mas eles dizem que há militares negros
na Inglaterra agora. Ser soldado e viver livre.
Kit ergue as sobrancelhas.
— Não há leis de segregação na Inglaterra?
— Não. — Violet escolhe outro biscoito da mãe. — Quem sabe,
talvez depois que essa guerra estúpida acabar, eu vá dar uma
olhada.
— Guerra estúpida — ecoa Moya.
— Guerra estúpida — Dottie concorda, suspirando.
O rosto de Violet é contemplativo enquanto ela mordisca seu
biscoito.
— Existem muitas coisas no mundo que são estúpidas.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Digitamos naquele sótão no quarto andar e foi terrível. No


inverno, costumávamos usar todos os nossos suéteres
apenas para nos aquecer e, no verão, nós cozinhávamos.
— GINGER PERRY

— Então, aqui estão os últimos cálculos que fizemos na linha de


endereço.
Kit bate com o lápis na folha de papel. É o dia de folga de Opal e,
sem ela, Kit tem feito o trabalho pesado na sala de trabalho na
possível quebra de código de endereço. Ela e Julian Harding estão
sentados juntos à mesa, tentando diferentes métodos de ataque,
desde o típico até o bizarro. Eles ainda não chegaram lá, embora
Harding seja tenaz – um pouco como ela, reconhece Kit.
A solução parece tentadoramente próxima, mas é tarde de quinta-
feira e o sol está se pondo pelas janelas da sala de trabalho. Kit está
ficando sem gasolina. Ela só tem o suficiente no tanque para
terminar este turno e depois ajudar com os preparativos para o
piquenique de Dottie.
Ela sufoca um bocejo com as costas da mão.
— Hmm…desculpe. De qualquer forma, eu mesma fiz a
transcrição e pedi a Betty para verificar. Todos os números são
sólidos.
— Precisa de uma soneca, senhorita Sutherland? — Julian
Harding está olhando para ela, divertido.
— Provavelmente — admite Kit. Ela estica as costas. — Ontem
era para ser meu dia de folga, mas fiz um turno extra. Estou movida
a café e adrenalina agora.
— Você teve que fazer um turno extra por minha conta? — Agora
Harding parece preocupado. — Sinto muito, não era minha
intenção...
— Não foi sua culpa e você não precisa se desculpar — diz Kit. —
Fiz a escolha de continuar trabalhando. Nós só temos você pelo que
resta de hoje, e estamos fazendo um bom progresso com este
código por causa de sua ajuda. Quero ver se podemos decifrá-lo
antes que você vá embora.
— Seria um belo presente de despedida, não? — Harding sorri
suavemente. Sua gravata está afrouxada e seu cabelo loiro está
bagunçado. Ele basicamente assumiu o mesmo ar de desarrumado
que todas as garotas na sala de trabalho tem.
— Qualquer tipo de presente, nós aceitamos — diz Kit. — A
senhorita Caracristi, a senhorita Berryman e o senhor Ferrars
avançaram em alguns dos outros grupos de códigos de endereço,
graças àquela pitada da Birmânia e aos berços da Marinha...
— A senhorita Caracristi está tentando quebrar o livro, reconstruir
completamente o livro de códigos do inimigo, o que eu acho incrível
— observa Harding. — Ela é esperta o bastante para conseguir
também.
— Mas elas não podem trabalhar todos os códigos. Se
conseguirmos alguns valores de face para este, talvez possamos
descobrir depois que você for...
— …e aí seria um a menos com que eles teriam que se
preocupar. — Harding acena com a cabeça. — E posso voltar para
a Inglaterra amanhã sentindo que fui útil de alguma forma, pelo
menos.
As sobrancelhas de Kit se erguem.
— Você vai voltar para a Inglaterra? Achei que todos vocês iam
para Dayton.
— Isso é para os outros cavalheiros do grupo... Sr. Tiltman e o Sr.
de Grey. Eles vão dar uma olhada em algumas máquinas em
Dayton... — Harding cora — Não tenho certeza do quanto posso
dizer, mas sim, eles estão acontecendo. Eu estou indo para casa.
Recebi um telegrama ontem dizendo que meu pai não está bem.
Além disso, meus colegas no Reino Unido precisam de algum apoio.
— Lamento saber sobre seu pai — diz Kit. — E é uma pena que
você não possa ficar.
Harding esfrega a nuca.
— Parece cruel ter vindo até aqui e ficar apenas alguns dias. Eu
gostaria de ter um mês. Poderíamos quebrar alguns bons códigos
em um mês.
— Se conseguirmos quebrar um código, terá valido a pena — Kit
o tranquiliza.
A voz de Brigid chama do outro lado da sala.
— Kit!
Quando Kit olha, Brigid levanta o queixo em direção à porta. Moya
está na porta, carregando uma pilha de relatórios em envelopes
pardos. Ela está vestindo a jaqueta de colarinho de lã com uma
camisa branca e calças de tweed. Suas mangas estão arregaçadas
até os cotovelos, o cabelo preso em um coque preto solto. Ela faz
com que parecer linda pareça fácil. Kit tem que conter um largo
sorriso quando Moya se aproxima.
— Olá pessoal. — O olhar de Moya para Kit é brincalhão, mas ela
está falando com Harding. — Não estou aqui para apressá-lo, vim
apenas para roubar mais um daqueles cigarros franceses que você
carrega consigo.
— Os Gitanes? — Harding parece surpreso. Ele pesca no bolso
da calça. — Aqui, pegue o resto do pacote.
— Ah, não posso. Eu não pretendo…
— Você não está me privando — ressalta Harding, passando a
ela o pacote azul. — Tenho mais na minha bagagem. Além disso, fiz
um estoque de Lucky Strike enquanto estou nos Estados Unidos,
então estou cheio de cigarros agora.
— Bem, obrigada — Moya aceita o presente com uma inclinação
de cabeça agradecida.
— Enquanto você está aqui… — Harding olha entre Kit e Moya.
— Senhorita Kershaw, você pode nos ajudar com alguma coisa. Eu
realmente gostaria de continuar trabalhando neste problema que
estamos enfrentando nos últimos dias.
— Vocês estão fazendo algum progresso?
— Nós estamos — reconhece Harding. — Mas eu só tenho mais
dezoito horas neste país, e é muito chato ir embora sem terminar o
trabalho.
— Por favor, não se sinta mal — diz Kit rapidamente. — Fizemos
tanto desde que você chegou, e talvez com mais uma hora...
— Kit, mais uma hora não vai nos levar até lá, e tenho certeza
que você sabe disso — diz Harding. — Mas o que você acha de
ficar comigo por mais algumas horas?
— Ficar? — Kit fica surpresa. Ela já fez horas extras antes, mas
apenas quando todo o contingente da sala de trabalho era
necessário para cobrir um turno.
— Eu sei que você está cansada — concede Harding — então
desculpe perguntar, mas parece muito próximo. Com mais algumas
horas, podemos decifrá-lo.
Kit considera. A ideia é profundamente tentadora, ela tem que
admitir.
— Mais algumas horas?
— Espero que isso nos dê o tempo de que precisamos. —
Harding voltou-se novamente para Moya. — Ela seria capaz de
fazer isso, Srta. Kershaw?
— Talvez. — Moya mostra uma carranca indecisa. — Kit, você
tem certeza de que gostaria de ficar?
— Eu acho. Quero dizer... Sim, quero fazer a descoberta. —
Então Kit percebe o que vai custar. — Mas, oh... Dottie.
Moya semicerra os olhos e balança a cabeça.
— Você não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Dottie
entenderá. Ficará tudo bem.
— Mesmo? — Kit faz sua decisão — Nesse caso, sim, gostaria de
ficar. Concordo com o Sr. Harding. Acho que estamos perto.
— Pode arranjar um cantinho para trabalharmos, Srta. Kershaw?
— Harding gesticula para o movimentado interior da sala de
trabalho. — Uma vez que o turno mude, esta área será usada por
outros. Só precisamos de um espaço pequeno, com mesa para
espalhar as cartas.
— Eu vou descobrir — Moya confirma. Seu olhar se volta para Kit.
— Podemos bater um papo rápido no corredor?
Espremendo-se entre as cadeiras, passando por Carol e Brigid e
pelas mesas abarrotadas, Kit segue Moya até chegarem ao final
silencioso do corredor.
— O que é?
— Tem certeza que quer continuar trabalhando? — Moya acaricia
a lateral do braço de Kit. — Você parece abatida.
— Estou bem.
— Julian Harding pega uma carona para casa amanhã, ele pode
dormir na viagem. Você tem que acordar às sete e meia da manhã e
voltar ao trabalho.
— Estou bem — insiste Kit. — Eu prometo. E se conseguirmos
quebrar esse código, meu amanhã será muito mais fácil.
— Bem, não há garantia disso. — Moya puxa um cigarro francês
do maço que Harding lhe deu, mas ainda não o acende. — Olhe,
Raffi ligou para dizer que vai nos enviar algo esta tarde: uma lista de
homens que ligaram para o Star sobre o artigo. Vamos nos
encontrar em meu quarto hoje à noite às oito para passar as
informações.
— E a Violet?
— Ela vai ficar até tarde. E será depois do encontro de Dottie,
então ela pode ir também.
Kit suspira, embora tenha certeza de que está fazendo a coisa
certa.
— Droga. Eu me sinto mal por desistir de Dottie. Mas isso é
provavelmente mais importante.
— Dadas as circunstâncias, sim — concorda Moya. — Vou
arranjar um cantinho para você e Harding trabalharem no Quatro,
para que não sejam incomodados.
— Pensei que estava lotado lá?
— Vou encontrar um lugar para você.
A ideia de trabalhar no sagrado quarto andar é estimulante. É
onde está localizado o verdadeiro tanque de pensamentos de
Arlington Hall. A senhorita Caracristi está lá, o escritório do Sr.
Kullback está lá... É o nexo do intelecto que alimenta os esforços de
guerra em todo o edifício.
E agora Kit estará quebrando o código lá.
Ela não quer parecer muito animada, mas é um esforço.
— Ok, obrigada — Ela abaixa a voz. — A propósito, se você vai
fumar esses cigarros, não sei se podemos namorar.
— Você vai se acostumar com eles. — Moya pisca antes de
apertar a mão de Kit. — Está congelando no Quatro. Não esqueça
seu casaco.
CAPÍTULO TRINTA E SEIS

A natureza complexa do Enigma também era sua maior


fraqueza: nenhuma letra do alfabeto poderia ser codificada
como ela mesma.
— PROFESSOR JULIAN RANDOLPH HARDING

O “cantinho” que Moya encontrou para eles é, de fato, um cantinho:


é um banheiro minúsculo sob o beiral do quarto andar, grande o
suficiente apenas para uma mesa e duas cadeiras. Kit pode ver os
locais onde uma divisória foi instalada às pressas para separar essa
área do banheiro da sala ao lado. O teto está em um ângulo agudo,
e se Julian Harding se endireitar muito rápido, ele vai bater com a
cabeça nas vigas expostas. A geografia do banheiro não faz
sentido: há um chuveiro aleatório acima de uma banheira de ferro
fundido esmaltada de branco – repleta de interceptações decifradas
que ainda não foram arquivadas – ao longo de uma parede. Mas
não há pia ou torneiras em lugar nenhum. E Moya estava certa: está
frio. Kit está feliz por ela estar vestindo seu casaco.
Pelo menos a mesa deles fica em frente a uma janela. O vidro foi
ensaboado no meio para evitar ofuscamento – e olhares indiscretos,
embora a única maneira pela qual alguém seria capaz de ver pela
janela do quarto andar é se estivesse passando de pára-quedas, ou
talvez parado com um par de binóculos nos galhos das árvores na
floresta perto da escola.
Harding já desempacotou a caixa cheia de cartões, além de papel
para cartas, lápis e borrachas.
— Isso é espaço suficiente para se espalhar?
— Acho que esse é todo o espaço que eles têm para nós. — Kit
acende a luminária da escrivaninha e se acomoda em sua cadeira
enquanto Harding permanece de pé. Ele gosta de passear, ela
notou.
Enquanto arruma as cartas na mesa, um movimento na janela
chama sua atenção. Muito abaixo, três figuras seguem seu caminho
ao longo do caminho de cascalho no pátio, passando pelos arbustos
de topiaria e pela cabana, então mais para dentro das árvores. Kit
vê o marrom da jaqueta de Moya, o brilho da saia roxa de Violet.
Dottie está de verde – provavelmente é o vestido verde que ela usou
no Clube Caverna. Não, não pode ser isso. Deve ser o casaco verde
dela, pois a tarde está ficando tarde e a temperatura está esfriando.
— Pessoas que você conhece?
— Oh. — Kit se assusta, desvia o olhar. — Sim. Quer dizer, você
também as conhece. É Moya, mais Dottie Crockford da análise de
tráfego. E outra garota, Violet, da unidade comercial.
Harding apoia a mão no batente da janela e semicerra os olhos
para as figuras que se afastam.
— Um pouco tarde para dar um passeio, não é?
— Dottie tem um encontro com o Sr. Ferrars, do Hall — explica
Kit. — Eles estão fazendo piquenique nos velhos estábulos.
Harding parece inquisitivo.
— Todas as três garotas vão ao encontro?
— Moya e Violet vão ajudar Dottie a preparar o piquenique —
explica Kit.
— Ah. Isso é legal da parte delas — Harding lustra os óculos na
manga. — Você estava planejando se juntar a elas?
Kit dá de ombros.
— Sim, mas tudo bem.
— Então é duplamente gentil de sua parte ficar. Além disso, sei
que você está cansada.
— Estou cansada, mas quero resolver isso.
— Então vamos continuar? Vamos dar uma olhada na última série
de números... — Harding folheia os papéis na outra mão. — Ah,
bem aqui.
Eles trabalham para recuperar o que Kit suspeita serem os
aditivos aos números do grupo de códigos, e o estômago de Kit
começa a lembrá-la de que a hora do jantar está próxima. Mas não
é apenas a fome que está dificultando a concentração dela. Mesmo
quando os dígitos em seu bloco de notas começam a cair em um
padrão mais compreensível, algo em sua mente simplesmente não
para de importuná-la.
Só que ela não consegue descobrir o que é.
— Elas são incríveis, sabe — observa Harding. — As máquinas
que fazem o código, quero dizer.
— Não esses códigos — ressalta Kit.
— Não — reconhece Harding — estes são retirados de livros e
tabelas de códigos por operadores de rádio inimigos do outro lado
do mundo, em batalha, sob fogo… — Ele aperta a ponta do nariz,
esfrega os olhos sob os óculos. — Mas os códigos da máquina são
mais rígidos. O grande número de variáveis que você precisa
calcular é incrível. E as próprias máquinas são engenhosas.
— Você já viu as máquinas Enigma?
Harding acena com a cabeça, enfia os óculos no cabelo. Ele está
sentado em frente a ela, uma perna cruzada sobre a outra, a cadeira
afastada da mesa para que ele possa apoiar o bloco de notas no
joelho.
— Temos algumas recuperadas em Bletchley. — Ele desvia o
olhar com uma careta rápida. — Er, eu não tenho certeza do quanto
você pode saber, mas eu as vi.
— Como elas são?
— Elas são tão grandes, mais ou menos do tamanho de uma
máquina de escrever de estenografia? — Harding demonstra com
as mãos. — Quando você pressiona as teclas, os rotores internos e
as engrenagens produzem letras de código aleatórias, também com
muita eficiência. São pequenas peças de trabalho precisas e
inteligentes.
Kit observa como suas sobrancelhas se levantam.
— Você as admira.
— Admiro a mente que consegue inventar algo tão simples e tão
diabolicamente eficaz. — Harding gesticula para seu bloco de notas,
depois para o dela. — Você tem alguma ideia de quanta força
cerebral foi gasta para descobrir os códigos do Eixo? Você é uma
das milhares de pessoas em quatro continentes trabalhando para
quebrá-los. Estamos até construindo outras máquinas para ajudar a
descriptografá-los. É impressionante, realmente. Eu só queria que
toda aquela inteligência e energia estivessem sendo usadas para
coisas boas, ao invés de... isso. — Ele acena com a mão,
analisando a sala, as interceptações, a guerra.
— Então, como você quebra os códigos Enigma? — Kit está
cansada, mas ela realmente quer saber.
— Você começa lembrando as regras.
Ela aperta os olhos.
— Eu não sabia que havia regras. Você acabou de dizer que os
códigos foram gerados aleatoriamente.
— Eles são — admite Harding. — Mas a Enigma sempre mantém
certos padrões. Por exemplo, nenhuma letra é codificada como ela
mesma.
Kit lembra que já ouviu isso, ou algum boato parecido, antes. Isso
a puxa, essa informação, de uma forma que ela não consegue
entender. Mas se ela conseguir manter Julian Harding falando sobre
isso, talvez tudo fique claro.
— Então, se você vir um A em uma mensagem… — ela sugere.
— Sim — diz Harding. — Você pode estar completamente certo
de que seu A será qualquer outra letra de B a Z, mas nunca será
realmente um A.
Ele diz Z à moda britânica, zed. Kit acena para mostrar que ela
está entendendo.
— Ok.
— Sim — diz Harding, esquentando o assunto. — É a única
idiossincrasia sob um disfarce muito inteligente.
Um disfarce muito inteligente... Kit sente seus sentidos formigar.
— Mas uma vez que você conheça essa regra — continua
Harding — ela pode ajudá-la a descobrir como se comportam os
arranjos de letras em um código Enigma...
— Espere — diz Kit. — Você pode repetir isso?
— Eu disse, isso ajuda você a descobrir como as letras no
código...
— Oh meu Deus. — Uma onda ofuscante de calor, como um raio
em suas terminações nervosas. Ele irradia de seu peito para fora,
forçando sua postura reta. Kit encara Julian Harding. — Oh meu
Deus. Acho que estraguei tudo.
— Perdão? — Harding franze a testa para ela.
Ela pega seu bloco de notas e começa a rabiscar loucamente.
Harding está inclinado para a frente agora.
— Kit, o que você está fazendo? Você já pensou em uma
descoberta para…
— Um segundo. Por favor pare de falar. — Kit continua
rabiscando. — Os arranjos da carta. Achei que conhecia a língua
dele. Mas eu não conhecia, porque ele estava se disfarçando. Oh
meu Deus, ele é completamente diferente...
— Sinto muito, foi algo que eu disse? — Harding parece
estupefato.
— Sim. Você falou sobre como nenhuma letra é codificada como
ela mesma com a Enigma. — Kit anotou tudo em duas listas e agora
está adicionando a elas. — Eu entendi alguns dos traços de
personalidade completamente errados. Achei que nosso cara era
bom em encantar as vítimas em locais públicos, que ele era
confiante e carismático. — Ela olha para Harding cegamente. —
Mas não é isso. É porque elas confiam nele. Você entende? Você
sabe o que isso significa? Significa que ele não é ameaçador.
— Não tenho a menor ideia do que você está falando — diz
Harding.
Kit está frenética.
— E ele não trabalha em um ambiente predominantemente
masculino. Ele trabalha com mulheres o tempo todo. Ele é
subordinado às mulheres e não gosta disso. — Ela agarra a lapela
de Harding com uma das mãos. — Ele é um camaleão. Ele está se
disfarçando. Você entendeu?
Harding fica boquiaberto.
— Eu realmente não entendi.
— Os objetos que ele tirou das vítimas... sim, claro, ele está
exibindo sua inteligência para a polícia, pegando troféus, jogando.
Mas o simbolismo nazista... Era tudo para despistar a polícia.
Procuram um louco, simpatizante dos alemães. Mas é apenas uma
cortina de fumaça. Este homem trabalha com o esforço de guerra.
— Senhorita Sutherland...
— O que significa que seu disfarce é deliberado. — Kit agarra o
tecido da jaqueta de Harding enquanto olha para a janela. — E ele
está operando nos princípios da cifra Enigma para criar seu disfarce.
Ele fabricou toda essa persona com evidências para parecer
diferente, como se estivesse se codificando de outra maneira para
direcionar a atenção para outro lugar. Isso significa que ele é...
— Ele é o quê? — Harding parece envolvido em seu frenesi,
mesmo sem entendê-lo.
— Oh, não, não, não — Kit sussurra, horrorizada.
— Kit, o que está acontecendo...
Ela fixa os olhos em Harding.
— Ele é um decifrador.
— Kit…
Mas Kit já se levantou da cadeira. Agora ela está andando no
espaço apertado entre a mesa e a banheira. Suas palavras são
principalmente para si mesma enquanto ela mastiga a unha do
polegar.
— Pense, Kit. — Ela enfia as duas mãos na parte inferior das
costas, olhando para o teto baixo enquanto se vira. — Ele com
certeza estava no evento no Mayflower. Ele não é ameaçador,
inteligente, branco, rico. Ele é dono de um carro. Ele se encaixa no
perfil. E ele é uma das únicas pessoas que trabalhariam com
códigos Enigma...
Harding se levanta e se aproxima. Suas mãos estão abertas, mas
sua voz é firme.
— Kit, você obviamente está angustiada com alguma coisa. E eu
gostaria de ajudar, mas você precisa me dizer do que diabos está
falando.
Mas ela não o está ouvindo, porque tudo veio a ela em uma
grande onda de compreensão. A coisa que estava dançando em
seu cérebro. O que era importante. O erro que ela cometeu e o que
isso vai custar.
Ela se vira e coloca os dois punhos nas lapelas da jaqueta de
Harding. Vê um vislumbre de seu próprio rosto – tenso e
terrivelmente pálido – no reflexo da janela enquanto ela se agarra à
vida.
— Moya e Violet nunca voltaram dos estábulos.
CAPÍTULO TRINTA E SETE

Sempre costumávamos priorizar as mensagens de três


maneiras: rotineira, urgente e absolutamente frenética.
— EDITH YOUNG

— Não sei o que isso significa — diz Harding, impotente.


Com o cérebro agitado, Kit percebe que terá que fazer uma conta.
— Ok, vamos fazer isso rápido. Houve uma série de assassinatos
em Washington, DC.
— O quê? — Claramente, isso não é o que Harding esperava.
— Todas garotas do governo, quase todas ligadas a eventos
sociais, todas brutais, horríveis. Moya, Dottie, Violet e eu estamos
conectadas porque... Olha, isso não importa. Temos rastreado os
casos, usando processos de quebra de código. Já nos
comunicamos com a polícia e estamos conversando com um
repórter.
Isso chama a atenção dele.
— Você andou conversando com um jornalista?
— Tudo bem, ele é um amigo, ele sabe sobre nós... Escute, isso
não é importante, ok? O importante é que Emil Ferrars se encaixa
no perfil do assassino. E as meninas não voltaram dos estábulos.
— Emil Ferrars? — Para um cara inteligente, Julian Harding
demora um pouco para alcançá-lo. — Mas ele... ele tem sido
fundamental para os esforços de decifrar o código aqui. Ele é... Pelo
amor de Deus, queremos levá-lo de volta para a Inglaterra conosco!
— Eu não me importo se ele é vital para o esforço de decifrar o
código! — Kit sente o sangue subir em seu rosto. — Se ele é um
estuprador e assassino, eu quero que ele seja pego! E nada disso
importa, estamos perdendo tempo! — Ela agarra as lapelas dele
novamente. — Julian, você viu as meninas voltando da floresta?
— Eu... não me lembro. — Harding parece confuso. — Acho que
não, mas não estava realmente procurando...
— Então só posso pensar em fazer uma coisa — diz Kit, e se vira
para a porta.
Harding se assusta.
— O que você... Kit!
Mas ela está em ação agora, não parando para ninguém. Kit
passa por ele para o corredor apertado na Quatro, andando
rapidamente ao longo do tapete. O espaço se estreita até que ela
esteja bem no final, do lado de fora da porta do quarto de Emil
Ferrars.
Ela tenta a maçaneta – trancada.
Mas Kit navegou por todos os cômodos da escola e também
conhece todos os truques para entrar neles. Ela tira o passe Hall
plastificado novinho em folha do bolso da saia e o enfia com cuidado
no espaço entre o batente e a fechadura da porta. Balança
cuidadosamente enquanto gira a maçaneta.
A fechadura se abre.
— Kit, o que você pensa que está fazendo? — O sussurro furioso
de Julian Harding vem bem atrás de seu ombro.
Ela olha para ele.
— O que parece que estou fazendo? Precisamos de provas.
Estou arrombando a porta do quarto de Emil para encontrá-las.
Harding parece aflito.
— Você está louca? Seu nível de permissão é...
— Entre ou fique fora, a escolha é sua. — Kit acende o interruptor
de luz, iluminando o espaço claustrofobicamente pequeno onde
reside Emil Ferrars. Há uma cama de solteiro no canto esquerdo,
uma mesa de cabeceira com um copo vazio, um despertador, uma
luminária de mesa, uma pilha de livros. A cama está feita, os lençóis
bem apertados. Uma cômoda fica ao longo da parede direita. Há
uma poltrona – o único luxo do quarto – à direita, perto da porta. No
assento, um exemplar dobrado de um jornal.
Tudo parece tão normal.
Pode não ser ele. Pode não ser ele…
— É hora de descobrir — resmunga Kit.
Longe de ficar sem saber por onde começar, ela é a pessoa
perfeita para essa tarefa. Ela sabe como é viver uma mentira. Para
esconder as coisas. Para esconder a pessoa que você realmente é.
Se ela estivesse morando neste quarto, onde ela esconderia as
coisas?
— Debaixo da cama — ela sussurra.
Ela marcha para a cama, ajoelha-se e tateia com a mão direita
enquanto a palma esquerda permanece firme no colchão,
estabilizando sua posição agachada. Tábuas do assoalho, areia,
tábuas do assoalho... Ela se estica mais. Poeira, tábuas do
assoalho... Um objeto retangular. Sólido, parece uma mala. Kit
procura ao longo de seu comprimento pela alça, encontra-a e puxa
a mala para fora.
É um pequeno estojo de viagem. Feito de couro moldado marrom
escuro. Indefinido. Não tem nem etiqueta de identificação.
— Kit — Harding diz em um sussurro teatral. Ele está em algum
lugar atrás dela, provavelmente enfiando a cabeça pela porta. —
Precisamos sair daqui. Alguém pode aparecer e...
— Pare de reclamar comigo da porta e entre — diz Kit. — Acho
que descobri alguma coisa.
Ela ouve o ranger das dobradiças da porta, então Harding está
parado ao lado dela, sua sombra aparecendo.
— É só uma mala. Todo mundo tem uma mala.
— Shh — diz Kit, e ela encontra os encaixes no estojo com os
polegares e pressiona para baixo.
As fechaduras fazem um disparo de arma de fogo.
Kit levanta a tampa.
Há uma pausa.
— Ai, meu Deus — diz Harding. Agora ele está usando sua voz
normal.
Aqui está a pequena pilha de recortes de jornais sobre os
assassinatos, presos com um clipe de papel. Um envelope aberto e
amarelado contém pedaços de tecido – rosa, preto, azul-claro,
dourado brilhante. No canto direito, um pote com tampa de rosca
contém... cabelo? Kit o levanta. Sim, é cabelo. Uma bolsa de couro
de algum tipo; ela não quer olhar isso.
Uma toalha de mão muito lavada está cuidadosamente dobrada
no fundo da caixa. Em cima da toalha de mão, algo incongruente:
um brinco, gotas de ouro e brilhos de joias brilhando no pingente.
— Foi isso que ele tirou de Veronica — sussurra Kit.
O mais condenável de tudo, preso à tampa interna com tiras de
couro, como o tipo que você encontra em uma cesta de
piquenique…
— Isso é uma faca? — Harding diz com a voz rouca.
— Sim — diz Kit. — É uma faca de pescador, uma faca de filé.
Ela não pode deixar de ver tudo isso. Jamais deixará de ver. Mas
agora que ela o absorveu, ela reconhece algo. Há lacunas no
arranjo aqui. Espaços. Há espaço para outra toalha de mão. E
deveria haver luvas – onde estão as luvas?
Há mais uma coisa, e é a coisa mais importante. Existem dois
conjuntos de tiras de couro na tampa interna da mala. Que
significa…
Kit sente sua respiração deixar seu corpo com pressa.
Ela fecha a tampa da caixa, aperta os fechos. Empurra a mala de
volta para debaixo da cama.
— Mas... Essa é a prova! — Harding se arrasta para trás
enquanto se levanta. — Essa é toda a prova que você precisa
para…
— Sim — diz Kit, dirigindo-se para a porta. — E se as autoridades
o encontrarem aqui, saberão que Ferrars é culpado. Nós deixamos.
— Mas o que nós... Kit! — Harding está de volta ao palco
sussurrando enquanto a segue de volta para o corredor.
— Fora. Agora. — Kit fecha a porta atrás de si. Ela gira a
maçaneta com cuidado para garantir que ela permaneça fechada. —
Vamos.
Ela caminha o mais rápido que pode de volta ao banheiro,
Harding atrás dela. De volta à sala, ela trota até a mesa, empilhando
cartões, notas e lápis. Ela despeja o conteúdo dos bolsos do casaco
sobre a mesa de madeira.
— Você nunca respondeu à minha pergunta. — O rosto de
Harding, no reflexo ensaboado da janela, está pálido e chocado. —
O que fazemos agora? Não podemos simplesmente deixar aquela
mala lá e... Chamamos a polícia?
— Sem tempo. — Kit encontrou muito pouco em seus bolsos: um
lápis, uma ficha, seu compacto, o velho canhoto da passagem de
ônibus até o cais. Ela se vira para Harding. — Você tem um
canivete?
— Eu… sim. — Ele parece ter recuperado algumas de suas
faculdades mentais, mas seus movimentos são rígidos e
espasmódicos. Ele tateia os bolsos da calça antes de pegar o
sobretudo. Ele entrega a ela uma pequena faca, a lâmina curta
dobrada no cabo de osso de veado. — Você está indo atrás delas,
não é?
— Sim. — Kit guarda a faca no bolso do casaco, junto com o lápis
e uma ficha. — Você tem mais alguma coisa?
— Eu não... Deixe-me verificar... — Harding remexe nos bolsos do
sobretudo e passa a ela uma coleção de itens: um lenço, o isqueiro,
uma latinha de balas de menta. — Não sei se alguma coisa disso
será útil.
— Obrigada — Kit devolve as balas, mas acrescenta os outros
itens à sua coleção.
— Eu estou indo com você. — Harding começa a abotoar o
colete. — Vou te ajudar…
— Julian — Kit se aproxima dele. Ela põe a mão no antebraço
dele e aperta. — Você é um cara legal, Julian Harding. Um cara
legal. Não sei o que vai acontecer, mas queria que você soubesse
disso.
Harding para.
— Obrigado. — Ele semicerra os olhos para ela. — Você não quer
que eu vá, não é?
— Você vai me ajudar muito mais fazendo outra coisa — diz Kit.
Pela segunda vez, ela tira seu novo passe laminado do bolso da
saia. Ela olha para ele, então dá para Harding. — Eu quero que
você pegue isso. Vá até os PMs de plantão. Mostre a eles meu
cartão e diga que eles precisam me encontrar na floresta perto dos
velhos estábulos.
Ele parece cético.
— E eles vão, o quê, apenas correr atrás de você quando eu
disser?
— Eles vão saber quando você contar isso a eles. — Kit o olha
diretamente nos olhos. — Ouça com atenção. Eu não sou quem
você pensa que eu sou. Esse não é o meu nome naquele cartão.
Meu nome verdadeiro é Kathleen Hopper. Adotei o nome “Kit
Sutherland” de minha empregadora, para quem trabalhei como
empregada doméstica. Toda a minha papelada é falsa. Minha
identidade é falsa. Se você disser aos parlamentares...
— Você está brincando? — Os olhos de Harding estão saltando.
— Não estou brincando, Julian. Eu quebrei a Lei de
Espionagem...
— Você é empregada? — Harding enfia a mão no cabelo.
— Julian. Julian. Olhe para mim. — Kit aperta seu antebraço com
força novamente. — Diga aos PMs que eu sou uma impostora, com
documentos falsos, e estou solta no terreno. Se você contar a eles
sobre os assassinatos, sobre Emil Ferrars, eles vão demorar muito
para verificar, mas isso é a única coisa que os fará agir rapidamente.
Harding se recosta na beirada da mesa, encarando-a.
— Isso tudo é bastante...
— Eu sei que é muito. Mas vou precisar de reforços. Você é
minha melhor chance de conseguir. Você entende?
Sua boca se abre, então ele simplesmente acena com a cabeça.
— Bom. Obrigada — Kit abotoa o casaco, apalpa os bolsos. — Eu
gostaria de ter uma lanterna... Ok, é isso. Dê-me dois minutos para
sair da escola, depois vá direto aos PMs. Não pare por ninguém. Se
os PMs não se moverem, você tem que fazê-los se mover.
— Se tudo isso é real, então o que você está fazendo é
terrivelmente perigoso — diz Harding.
Kit já está indo para a porta. Ela se vira para olhar para trás.
— Elas são minhas amigas. Dottie e Violet e... — Ela não
consegue dizer o nome de Moya, ou perderá toda a coragem. —
Elas são minhas melhores amigas.
— Eu me sinto péssimo, deixando você ir sozinha — ele deixa
escapar.
Ela dá um sorriso aguado.
— Então venha atrás de mim. E venha rápido.
CAPÍTULO TRINTA E OITO

Sempre fomos – consistentemente – subestimadas. Isso


provou ser um erro.
— BEVERLEY GASKIN

É normal as garotas do Hall correrem para fazer recados, mas


correr chamaria a atenção. Kit não quer chamar muita atenção até
que esteja perto dos estábulos. Seus pés não vão esperar, no
entanto. Uma linha fina e ofuscante de medo chia dentro dela,
acelera seus passos enquanto ela desce do quarto andar para o
terceiro, corre pelo corredor até o próximo lance de escadas, seus
passos amortecidos no tapete.
Moya e Dottie e Violet e Emil Ferrars e Violet e Dottie e Moya e
Moya e Moya…
Ela agarra o corrimão e dá de cara com uma parede cáqui.
— Uau, olá — O capitão Cathcart a firma com a mão em seu
braço. — Desacelere. Não te acertei, acertei?
— O quê? — Kit ergue os olhos para o rosto bronzeado de
Cathcart, o rosto esbranquiçado cicatriz que deforma seu lábio. Ele
tem olhos azuis, ela percebe. — Me desculpe, eu esbarrei…
— Não acertei você com o cotovelo aí, acertei? — Sua expressão
é de desculpas. Então preocupado. — Você está bem, senhorita
Sutherland? Você parece um pouco abalada.
— Eu... estou bem — ela gagueja. — Você não me acertou.
— Oh. Está bem, então. — Cathcart tira a mão e abre espaço
para ela passar. — Como você dizia.
Eu deveria dizer alguma coisa, pensa Kit. Algo inócuo e sem
sentido, projetado para desviar. Mas o jogo acabou. Ela jogou e
jogou – agora ela teve o suficiente.
— Sr. Harding está no Quatro — ela diz de repente.
O capitão Cathcart lança a ela um olhar de confusão educada.
— Ok... Obrigado.
— Ele precisa de ajuda — diz Kit. — Ele... ele precisa de ajuda
com alguma coisa, eu acho.
— Oh. Ok — Cathcart pisca. — Então... acho que vou procurá-lo.
— Faça isso — diz Kit, e ela rapidamente continua a descer.
Ela marcha pelo saguão e pelas grandes portas duplas do
refeitório, depois segue para a cozinha para confirmar o que já sabe
em sua cabeça e em seu interior.
— Olá, desculpe-me. — Ela bate no batente, até que uma das
mulheres de avental olha. — Com licença. As meninas que saíram
com a cesta de piquenique... Ainda não voltaram?
A mulher larga o pano de prato e se aproxima, enxugando as
mãos no avental.
— Você quer dizer a jovem Violet e aquelas outros garotas? Não,
Senhora. Elas ainda não voltaram. Está ficando muito tarde para um
piquenique.
— Sim, está — diz Kit, e então, impulsivamente — Vou buscá-las
de volta.
A mulher ergue as sobrancelhas.
— Você quer passar? A porta dos fundos aqui é mais rápida.
O queixo de Kit levanta.
— Obrigada, agradecida.
Ela passa pela cozinha e pela porta dos fundos. Dois degraus de
pedra a puxam para o caminho que leva pelo pátio até a floresta.
Agradecida, ela pensa descontroladamente enquanto tritura
rapidamente o cascalho. Faz dez meses que não digo “agradecida”.
Mesmo ontem, um deslize como esse poderia significar
perguntas. As coisas estão voltando para ela agora, no entanto.
Coisas velhas que ela pensou que colocaria para dormir.
Ela pode ir muito mais rápido agora que está fora da escola – ela
se apressa até entrar na cobertura das árvores. Mas já passou do
crepúsculo, as sombras ainda mais escuras sob os carvalhos
brancos. Kit não consegue ver o terreno irregular bem o suficiente
para colocar velocidade real. Seu ritmo é muito rápido, mas ela não
está correndo como gostaria.
Ela tem que ser sensata: se tropeçar na raiz de uma árvore e
torcer o tornozelo, será inútil.
Devia ter trazido uma lanterna. Deveria ter trazido um lenço para
o meu cabelo. Deveria ter trazido um monte de coisas, caramba.
Ela vasculha os bolsos do casaco, verificando se a faca de Julian
ainda está lá. O ar ao seu redor tem um gosto verde e frio – a ponta
do nariz dela é fria. Seu senso de perspectiva é alterado pela falta
de luz: Árvores parecem distantes e, de repente, saem correndo da
escuridão. A floresta tem um zumbido silencioso conforme ela se
aprofunda no terreno.
De volta à escola, as coisas vão acontecer. Julian vai falar com
John Cathcart, falar com os PMs, fazer o que for necessário. Kit se
pergunta se haverá um assalto enquanto eles verificam sua
reclamação sobre ela contra sua papelada. Eles conseguirão tirar o
verdadeiro Sr. Leighton Wallace de seu jantar para explicar que
Katherine Sutherland faleceu?
A terra argilosa e as agulhas dos pinheiros loblolly amortecem o
impacto de seus pés. A brisa estala contra suas bochechas
enquanto ela se move. Abruptamente, através da escuridão
crescente sob as árvores, o contorno brilhante de um edifício...
Os estábulos.
Kit nunca esteve aqui à noite. A madeira e a cal do exterior dos
estábulos ficam azuladas ao luar. Ali está a entrada da frente, as
portas duplas escancaradas e escuras. A oeste, um grande pátio de
exercícios cercado, aberto ao ar. Árvores, sim, mas não tantas por
perto — nem tanta cobertura.
Ela se lembra do layout interno. Dentro da entrada, a velha sala
de arreios no lado oeste, depois as baias: dez ao todo, cinco de
cada lado do corredor central. O corredor leva até a pista de
equitação coberta.
Uma lembrança: Moya soprando fumaça enquanto ela fica na
porta dos estábulos em seu casaco. Moya piscando para ela. A
bochecha macia de Moya, seu sorriso cadenciado.
Kit aperta o punho contra a árvore e estabiliza a respiração. A
necessidade de avançar é forte, muito forte, e Kit luta contra ela.
Entrar cegamente pode ser fatal.
Ela não deveria andar bem na entrada da frente. Emil Ferrars a
conhece, conhece as garotas – provavelmente notou sua ausência
no grupo. As outras garotas podem ter dito a ele que ela está
trabalhando em outro lugar. Kit estremece ao pensar em como ele
pode ter extraído essa informação.
Respire. Pense em Emil Ferrars.
Ele tem vinte e dois anos. Ele é singularmente inteligente. Ele
estudou matemática em Princeton. Ele é alto, magro e pálido, com
cabelos castanhos. Ele usa óculos de leitura. Ele tem dores de
cabeça crônicas.
Agora, para combiná-lo com o que ela sabe sobre Emil Ferrars
como um assassino.
Ele é um camaleão. Ele é arrogante, jogando um jogo com a
polícia. Jogando um jogo com todas elas. Na noite em que ela e
Moya bateram em sua porta para ir encontrar Dottie em Fazenda
Arlington... Minha cabeça acabou de tocar no travesseiro.
Claro que sua cabeça acabou de tocar no travesseiro. Ele tinha
acabado de voltar do assassinato de Libby Armstrong. Kit agarra o
tronco da árvore. Então Ferrars é arrogante. Mas ele esconde bem a
arrogância; ele é astuto. Nada do que ele faz é não planejado.
Isso também foi planejado – a faca estava faltando na mala. As
luvas, a toalha de mão. Ele estava planejando matar Dottie durante
o piquenique. Mas ele não trouxe o brinco de gota de ouro de
Veronica Luca. E ele nunca matou tão perto de casa. O que mudou
em seu padrão?
Queremos levá-lo de volta para a Inglaterra conosco. Julian disse
isso. Esse é o gatilho – Ferrars está planejando partir para a
Inglaterra. Ele pode lavar as mãos dos assassinatos de garotas do
governo aqui e começar de novo, com um novo país para saquear...
A respiração de Kit está quase sob controle agora.
Outra coisa que ela lembra.
No interior das cavalariças, depois das baias dos cavalos e antes
do picadeiro coberto, existe um entroncamento. O corredor se divide
em um T. Um lado vai para o oeste, para o pátio de exercícios, e o
outro lado vai para o leste. Portas em cada extremidade. À frente, a
arena.
Ela tem que ir para os estábulos. A ideia a enche de terror. Mas é
mais assustador pensar no que Emil Ferrars pode fazer com Dottie,
com Violet, com Moya.
Kit corre silenciosamente, à direita da porta, para ficar fora da
linha de visão.
Perto da entrada, há evidências do piquenique abandonado: uma
cesta de vime fica em um pedaço de chão iluminado pela lua logo
após a porta do estábulo. Ao lado, um cobertor xadrez amarrotado e
duas lanternas de vela, apagadas.
Kit se move entre as sombras, abraçando a parede. Ela está bem
ao lado das sobras do piquenique. O casaco verde de Dottie está
jogado perto da porta do estábulo. Uma garrafa destampada de 7UP
está vazia, seu conteúdo pingou no chão.
O som de alguém chorando. Kit encosta a orelha na parede dos
estábulos. Mais sons. Alguns deles fazem seus punhos cerrarem.
Mas ela acha que sabe, agora, de onde vêm os sons.
Hora da parte mais complicada.
Kit se agacha, depois desce, apoiando-se nas mãos e nos
joelhos. Suas palmas se conectam com grama e serragem velha. O
cheiro de estrume de cavalo antigo é forte. Trevo selvagem está
crescendo até a dobradiça da porta. Ela espera, escuta, com a saia
presa nas coxas. Se Emil Ferrars a pegar rastejando pela entrada
da frente, tudo irá para o inferno.
Enquanto ela está pensando nisso, uma brisa noturna passa por
entre as árvores ao redor, as folhas farfalham...
Agora.
Ela corre com os sons sussurrantes, rastejando rapidamente pelo
caminho iluminado pela lua na entrada da frente, para a segurança
das sombras na próxima porta vazia.
Kit se pressiona contra a parede. O cheiro de couro seco e
melaço. Ela está na sala de arreios.
Mais longe, uma voz grita.
— Não! Por favor, não…
Dottie. A vontade de correr em direção à voz é como uma dor
física. Ela tem que pensar. Ela tem que fazer alguma coisa.
Distraia Emil Ferrars. Crie uma distração.
Kit procura dentro de si algo que possa usar. Ela é apenas uma
garota. Uma garota inteligente o suficiente para desvendar a teia de
mentiras de Emil Ferrars, mas ainda assim uma garota. Ela não tem
habilidades exceto decodificar e enganar, e essas habilidades são
inúteis agora.
Ela imagina Katherine repreendendo-a. Isso não é tudo que você
é. Você é uma garota com a cabeça cheia de geometria, piano e
palavras cruzadas...
Mas Kit sabe a verdade. Ela ainda é a garota de Scott’s Run, a
garota cujos únicos talentos estão em seus deveres. O que uma
empregada pode fazer contra um gênio homicida de Princeton? O
pensamento traz lágrimas aos seus olhos. Ela corre para eles
rudemente com as costas da mão. Ela é tudo que há. Os PMs virão,
mas talvez não a tempo. Se ela tiver apenas a habilidade de uma
criada, a força de uma menina, isso terá de ser suficiente.
Quais são as habilidades de empregada dela?
Como ser discreta. Cumprir seus deveres discretamente. Como
esfregar o chão. Como passar a ferro a vapor. Fazer um banho.
Colocar uma bandeja de chá. Acender o fogo na lareira…
Kit exala, suave e baixo.
A gente luta com o que tem, e ela sabe como vai lutar.
CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Agora deve ter havido algum sentimento de que as coisas


iriam piorar.
— WILMA BERRYMAN

Os ouvidos de Moya estão zumbindo.


O zumbido é pior, de alguma forma, do que a mordida da corda
fina e áspera em torno de seus pulsos e tornozelos. Ela ainda pode
ver e sentir os dedos – eles estão frios por causa da circulação
cortada, mas estão lá – e os ossos do tornozelo estão se
esfregando. Mas o zumbido em seus ouvidos, como um grande
repique de sinos dentro de sua cabeça, torna impossível o
pensamento concentrado. Isso a deixa assustada. Ela precisa ser
capaz de pensar, agora mais do que nunca.
— Não! — Dottie grita. — Por favor, não…
Emil a interrompe com um tapa na cara. Súbito e eficiente. Ele é
bom em esbofetear mulheres, esse novo Emil Ferrars. Esta versão
que Moya está tentando desesperadamente se ajustar.
— Cale a boca — diz ele. Seu rosto é inexpressivo, distante. —
Você não pode dizer não.
Ele volta a cortar metodicamente os botões da frente do vestido
de Dottie. Dois botões. Três botões. Dottie está chorando. O cetim
de seu sutiã está exposto.
Moya se sente mal. Ao lado dela, Violet está tremendo. Suas
mãos e pés também estão amarrados. Elas estão amontoadas no
chão, sentadas na serragem dura pouco antes da entrada do
picadeiro coberto. A meia parede de madeira está às suas costas.
Moya pode sentir o tremor de Violet nos lugares em que estão
conectadas, na coxa, bíceps, ombro.
Violet está apavorada.
Mas ainda corajosa como o inferno. Ela franze o rosto e grita:
— Deixe-a em paz!
Emil para o que está fazendo. Afasta-se de Dottie, que fica parada
ali, com as pernas trêmulas, o cabelo desgrenhado, o vestido solto
nos ombros e as mãos amarradas.
Dottie geme. Moya entende. Se Emil está prestando atenção nas
amigas de Dottie, ele está dando a ela um alívio temporário. Mas é
uma equação terrível. Horrível. Não há como nenhuma delas vencer
nesta equação. Toda opção é ruim.
Oh Deus, por que não resolvemos isso antes?
Aconteceu tão rápido. Moya, Dottie e Violet marcharam juntas
para a floresta. Todas prepararam o piquenique: abriram um espaço
livre de folhas e galhos, estenderam a manta, arrumaram a cesta, as
lanternas. Riam, colhiam flores e faziam piadas.
Então Emil apareceu cedo. Ele não deveria chegar antes das
cinco e meia. Além de ser precoce, ele parecia normal. Seu cabelo
escuro estava despenteado da maneira típica. Suas calças marrons
e camisa branca estavam passadas e ele estava vestindo um
paletó, em preparação para seu encontro. Dottie corou.
Os olhos de Emil brilharam quando ele a viu. Ele parecia bem.
— Bem, olhe para todas vocês — ele disse com um sorriso.
— Olá, Emil. Estávamos saindo. — Moya sentiu como se
estivesse se intrometendo. Ela e Violet pretendiam apenas ajudar na
organização do piquenique, não estar lá quando o namorado
chegasse. Elas juntaram seus casacos, preparando-se para sair.
— Espere um segundo — disse Emil. — Vocês não precisam sair
correndo.
— Uh, nós meio que temos — disse Violet, sorrindo para Dottie.
— Vocês, crianças, divirtam-se agora.
— Certo, tudo bem. — Emil sorriu. — Entendo. Mas antes de ir
embora, você viu a barraca da baronesa? — Ele acenou com a mão
para o interior do edifício. — A baronesa Lillian Campbell de New
Brunswick enviou sua filha para Arlington Hall quando ainda era
uma escola. Ela montou uma baia exclusiva para o cavalo da filha,
com torneira de água quente e comedouro de bronze. Tem placa e
tudo. Vocês deveriam vê-la antes de ir.
— Posso ver? — Dottie perguntou.
— Claro. Dê uma olhada.
Ele havia entrado no interior escuro dos estábulos, Dottie
caminhando pelo corredor central ao lado dele. Violet olhou para
Moya e deu de ombros, então a seguiu.
Moya queria voltar para Kit. E ela queria desesperadamente
fumar, mas entrou. Ela imaginou que não poderia demorar muito.
Distraída pela necessidade de um cigarro, pensa Moya. Droga.
A luz opaca do final da tarde filtrava-se pelas janelas altas na
parte de trás de cada estábulo. Emil conduziu Violet até a cabine na
extremidade direita do corredor. Ele sorriu, então encorajou a
própria Moya a ir em frente e olhar.
Quando ela olhou para dentro da baia que ele indicou, ela só teve
tempo de dizer:
— Não consigo ver uma placa… — antes que o mundo
explodisse. Sua cabeça foi batida contra a grade de madeira da
baia, seus joelhos foram chutados para baixo dela. O som dos gritos
de Violet veio através de uma névoa de estrelas e sinos repicando.
Quando Moya acordou, ela estava no chão, caída contra a parede
do estábulo. O suéter creme de Violet estava bem próximo. Sua saia
roxa havia subido, expondo seus joelhos, e ela tinha uma mão
quente no braço de Moya.
Moya piscou e os sons voltaram.
— ...farei isso. Eu farei isso, ok? — Violet estava olhando para
alguma coisa. — Só não machuque Dottie.
Moya seguiu a linha do olhar de Violet, mas o que ela viu não
fazia sentido. Emil Ferrars estava atrás de Dottie, que choramingava
em seu vestido de bolinhas. Emil estava usando luvas de couro
escuro. Ele estava segurando o cabelo de Dottie para trás de seu
pescoço com uma mão, e na outra mão...
Uma faca de filé, o aço afiado brilhando.
— Emil — disse Moya. Não era uma pergunta, era mais como se
ela estivesse falando o nome dele para confirmar.
— Oi, Moya — disse Emil. Ele estava sorrindo. Ele olhou para
Violet, seu sorriso ficando pontiagudo. — Isso está demorando
muito.
Foi quando Moya ouviu sua própria voz se tornar questionadora.
— Emil?
Em vez de responder, ele puxou o cabelo de Dottie. Ela
engasgou.
— Tenho que amarrar você — disse Violet, perto da cabeça de
Moya. Sua voz estava trêmula. — Moya, escute. Tenho que amarrar
suas mãos. Sinto muito, mas preciso fazer isso.
— Sim, você precisa — disse Emil. — Amarre as mãos dela e
depois venha aqui.
Tudo aconteceu com uma espécie de lentidão de pesadelo depois
disso. Emil fez Dottie amarrar Violet. Então ele as fez sair da baia,
para o corredor, e mais adiante, para a entrada do picadeiro. Ele
manteve a faca no pescoço de Dottie. Dottie estava chorando. Foi
quando começaram os tapas.
Como isso aconteceu? Moya encontrou a resposta para a
pergunta ainda escapando dela. Ela precisou se apoiar em Violet
para andar. Sua cabeça latejava, e onde ela descansou a testa
contra o suéter claro de Violet, havia uma mancha vermelha.
Assim que todas as garotas estavam na entrada aberta da arena,
Emil disse a elas onde sentar ou, no caso de Dottie, ficar em pé.
Elas estavam separadas uma da outra por um espaço de 2,5 metros
que parecia um quilômetro. Ele fez Dottie amarrar os tornozelos de
Moya e Violet, depois amarrou os pulsos de Dottie.
E o tempo todo, Moya estava tentando pensar além dos sinos em
sua cabeça.
Como elas não sabiam? Como elas foram tão enganadas? Por
Emil... Emil. O cara quieto que colocava lápis atrás da orelha e
esquecia delas. O cara com quem ela trabalhou nos últimos dez
meses. Dez meses. O cara em cujo carro ela andou, com quem ela
discutiu os códigos no Quatro, com quem ela tomou café no
refeitório. O cara com os suspensórios. O cara com as dores de
cabeça. Ele realmente já teve dores de cabeça?
Ela com certeza tem uma agora.
Enquanto Dottie fica impotente e gemendo, enquanto Emil se
aproxima, Moya examina seu rosto em busca de qualquer sinal do
que ela perdeu, mas tudo o que ela pode ver são seus olhos
castanhos, uma vez calorosos, agora brilhando com malícia.
— Deixe-a em paz — repete Emil, saboreando as palavras. Ele se
agacha e encara Violet. — Isso significa que devo deixar Dottie em
paz e brincar com você? — Ele estende a mão com a faca, usa a
ponta da lâmina para jogar para trás uma mecha encaracolada do
cabelo de Violet. Violet estremece.
Moya está tão cansada de ter medo.
— Isso significa que você deve ir embora, Emil. Apenas vire-se
e...
Ele se move tão rápido, a ponta da faca desliza entre seus lábios
e ela congela. Emil examina sua posição desapaixonadamente. Está
posicionada agora no canto de sua boca. Moya sente o aço morder
ali, fazendo uma pequena fenda na pele delicada.
— Estou muito cansado — Emil diz baixinho — de ouvir garotas
falarem. Você conhece isso? Elas conversam o dia todo. É como se
elas não soubessem calar a boca. Bem, eu descobri como fazê-las
calar a boca. É muito eficaz. Gostaria de uma demonstração?
Moya não pode dizer não. Ela não consegue nem balançar a
cabeça. Ela só consegue segurar o olhar escuro e interminável de
Emil. Uma coceira quente de umidade desliza do canto da boca até
o queixo. Ela não pode limpá-lo.
— Você pode imaginar? — ele diz. — Mês após mês preso
naquela escola, cercado por barulho feminino. A fofoca e a
tagarelice. O cheiro delas. Sua auto-importância. A maneira como
elas estão constantemente lá. O caos delas, invade seu cérebro. E
elas estão por toda parte. Na rua. No escritório. No maldito
Pentágono. É como uma maldita praga. Uma praga de garotas.
Emil a olha com tanto ódio que Moya fica tonta.
— Estou fazendo minha parte — diz Emil. — Estou fazendo minha
parte na guerra contra isso. Eu estou selecionando. Mas você
descobriu isso, não é?
Ela leva um momento para perceber do que ele está falando. Este
é o assassino que elas estão perseguindo. Mas como ele sabia que
elas o estavam perseguindo?
— A princípio, pensei que você tinha me visto levar Veronica lá
embaixo no Mayflower — ele continua. — Mas então, quando Dottie
aceitou meu convite para um encontro, eu soube. Você descobriu
algumas coisas, mas não todas. Não exatamente quem. Isso foi
perfeito para mim! Eu conhecia sua identidade, mas você não
conhecia a minha. Você não conhecia a minha!
Emil sorri ainda mais. A ponta do aço na boca de Moya tem um
sabor frio de ferro. Ou talvez seja o gosto de seu próprio sangue.
Ela está com muito medo de engolir; a faca pode cortar ainda mais.
— A coisa toda é ótima — diz Emil. — Eu posso lidar com todas
vocês de uma vez. Até agora, tenho levado uma garota aqui e ali.
Mas é hora de tentar algo diferente, é hora de intensificar. A única
parte embaraçosa — Emil reflete tristemente — é que um membro
de sua pequena gangue está faltando.
Uma imagem do rosto de Kit, a curva de seu sorriso, se destaca
na mente de Moya. Pela primeira vez, Moya se vê verdadeiramente
perdida. Sua visão fica embaçada. Ela não quer que Emil diga o
nome de Kit, nem mesmo pensar em Kit. Moya não quer chorar,
mas as lágrimas vêm mesmo assim. Eles ardem em suas
bochechas e no corte no canto da boca.
Emil se inclina, seus olhos arregalados, mostrando o branco.
— Então, aqui está o que vamos fazer. Nós vamos jogar aqui.
Você disse para se divertir? Eu vou me divertir muito. Três vezes
mais divertido, na verdade. Então, quando terminarmos, vou
encontrar sua amiguinha no Hall e me divertir com ela também.
— Como você sabia? — Violet pergunta de repente.
A pergunta dela vem bem ao lado do rosto de Moya, e Moya
enrijece em um esforço para evitar o sobressalto, para evitar a faca.
Então Emil retira a faca de sua boca e Moya engasga. Ela engasga
porque a faca foi removida e engasga porque entende que Violet fez
a pergunta independentemente do perigo para si mesma,
exatamente com esse objetivo em mente.
Garota esperta e corajosa. Moya está tremendo de alívio e raiva.
— Como eu sabia que eram vocês quatro? — Emil já está de pé.
— Essa foi fácil.
Ele caminha de volta para Dottie. Ela está soluçando baixinho.
Moya está tremendo tanto que mal consegue respirar, mas sente as
mãos amarradas de Violet encontrando as suas. Ela aperta os
dedos de Violet com força.
Emil levanta a mão – não a que está com a faca – e afasta o
cabelo de Dottie do rosto enquanto ela chora.
— Foi fácil, não foi, querida? Você quer contar a elas como eu
soube?
No silêncio sinistro, uma voz soa.
— É porque Dottie disse a você — diz Kit.
CAPÍTULO QUARENTA

Deixe-me dizer-lhe, não há nenhum código feito pelo


homem em qualquer lugar que não tenha sido quebrado
por uma mulher.
— BETTY JOHNSON

A reação é imediata; Emil agarra Dottie e a gira para que suas


costas fiquem pressionadas na frente dele. Dottie grita. Há um
suspiro que Kit sabe que é de Violet, mas ela não pode olhar em
sua direção agora. Ela se concentra em Emil: a camisa dele está
desabotoada no pescoço, a franja escura que cai sombreia seu
rosto. Sob seu cabelo, seus olhos são duros, suas bochechas como
cavernas. Ele parece um tubarão das profundezas. Como ela não
viu isso antes?
Porque ele é um impostor, assim como você. Porque ele só
permitiu que você o visse de uma certa maneira.
Kit sai da sombra da porta da baia, sob o luar, mantendo os olhos
em Emil e na faca na cintura de Dottie. Em vez de permitir que Emil
garanta sua vantagem, ela continua falando.
— Lembro-me do que Dottie disse sobre o dia em que você a
convidou para sair. — A garganta de Kit está seca, mas ela continua
falando. — Ela disse que encontrou você no refeitório enquanto
pegava café e lia os jornais. Esses seriam os jornais entregues
todas as manhãs, que são recolhidos e levados até o Quatro.
— Isso mesmo. — A mão de Emil está afundando no braço de
Dottie, mas seu rosto recuperou o foco. — Bem-vinda ao nosso
piquenique, senhorita Sutherland.
Kit ignora isso.
— Um desses jornais é o Washington Star.
— Kit — suspira Dottie.
Kit mantém sua expressão completamente neutra, apesar de
estar furiosa, cegamente furiosa com Emil Ferrars, pelo que ele fez.
— E você viu a manchete, não viu, Sr. Ferrars? A manchete do
artigo “Testemunha Do Assassinato De Mayflower Vem À Tona”.
Ela ainda não consegue se livrar daquele velho hábito arraigado:
Sr. Ferrars.
— E Dottie notou que você percebeu — continua Kit. — Ela
lembrou a você que tinha visto você no Mayflower naquela noite.
— Kitty, por favor — suspira Dottie.
Kit pode ouvir seu sotaque – seu próprio sotaque real de West
Virgínia – revelando-se através de suas palavras enquanto ela fala.
— E porque ela pensou que podia confiar em você, ela confiou
em você. Ela disse que ela, Moya Kershaw, Kit Sutherland e Violet
DuLac, do chalé, estiveram no Mayflower na noite do assassinato de
Veronica Luca. Dottie lhe disse que estávamos cooperando com a
polícia.
— Ohmeudeus... Dottie? — A voz fraca de Moya. Kit não pode
olhar.
Emil Ferrars oferece um sorriso frio. Seus olhos são igualmente
frios.
— Você é muito boa em resolver essas coisas, Srta. Sutherland.
Dottie está chorando, com as bochechas vermelhas e molhadas.
Ela está falando apenas com Kit.
— Eu não queria... eu não sabia... Oh, Kit, sinto muito.
Por um breve momento, Kit olha para Dottie, colocando todo
pensamento encorajador que ela pode reunir naquele olhar.
— Dorothy Crockford, não se atreva a se desculpar, você não tem
nada pelo que se desculpar. — Ela olha para Emil. — Este homem
fez você confiar nele. Isso é o que ele faz. Ele age doce, gentil e
nada ameaçador, e as garotas se apaixonam por isso. Todas nós
caímos nessa. Então não se sinta mal, nem um pouco. A culpa é
minha por não vê-lo claramente na primeira vez.
O sorriso de Emil Ferrars se transforma em um desdém.
— Você acha que está me vendo claramente agora?
— Sei quem eu sou. — Kit mantém os pés firmemente colocados,
os braços soltos ao lado do corpo. O ar da arena cheira escuro e
fresco. O antigo cheiro de cavalos a lembra das alunas de Arlington
Hall. — E espero que você também esteja me vendo claramente.
Você acha que os ingleses vão te tirar daqui, para longe da bagunça
que você está fazendo. Você acha que tem uma vantagem, Dottie
debaixo do braço, e Moya e Violet lá no chão, e você com a faca.
Mas você está errado. Você não tem vantagem aqui. Você leu todos
os sinais errados.
— Eu li? — Emil parece positivamente furioso agora,
condescendência pingando dele a cada palavra. — Senhorita
Sutherland, acho que não sabe do que está falando. Garotas como
você... — Ele puxa o cabelo de Dottie para trás, ergue a faca até
colocá-la no pescoço dela. Kit ouve seu suspiro. A boca de Emil se
contrai. — Conheço garotas como você. Trabalho com elas todos os
dias.
Kit se mantém firme, as mãos cerradas em punhos.
— Um crachá de identificação do Exército e você pensa que é
uma soldada. Uma linha de código e você se acha uma gênia. —
Emil sorri. É diferente de seu sorriso habitual, distorcido e cruel. Mas
é claro, este é o seu verdadeiro sorriso. — Você acha que tem
inteligência para acompanhar. Você acha que está endurecida pela
batalha. Garotas brincando de soldados, seguras atrás das linhas de
frente... Vocês não são lutadoras de jeito nenhum. Vocês cedem
todas as malditas vezes. Então sim, eu conheço garotas como você.
Já matei garotas como você.
Kit dá um passo mais perto. Este homem não a intimida. Emil
Ferrars terá que sofrer as consequências das coisas que fez. Ela
será a responsável por essas consequências.
— É isso que você acha? Que você me conhece? — Ela se mexe
para que Emil Ferrars possa ver seus olhos claramente. Ela
derrama cada grama de desprezo e repugnância em seu olhar. —
Você não sabe nada sobre mim. Você não sabe quem eu realmente
sou. Você nem sabe meu nome verdadeiro.
Ela vê o sorriso dele vacilar. Ela se aproxima, apenas três passos
de Dottie agora.
— Seu disfarce era bom, Emil, mas o meu era melhor. — Cada
palavra que ela pronuncia rola pela arena, ecoando nas sombras.
Ela levanta o queixo. — Porque eu não sou Kit Sutherland. Eu não
sou da Pensilvânia. E não sou como todas aquelas garotas que
você conhece. Sou o código que você nunca quebrou e não sigo as
regras.
Então, as velhas latas de fluido de limpeza, verniz para madeira e
óleo de pé-de-lixo que Kit ateou fogo na sala de arreios explodem
em uma tempestade ensurdecedora e incandescente.
CAPÍTULO QUARENTA E UM

Você já lutou por algo realmente importante? Quero dizer,


realmente lutou, com cada fibra do seu ser? Isso é o que
estávamos fazendo em Arlington Hall.
— BRIGID GLADWELL

Há um WHOOSH atrás dela, e uma onda de calor e luz, e várias


coisas acontecem ao mesmo tempo.
Kit se encolhe, sente calor nos ombros e na parte de trás das
pernas. Emil se assusta com mais força; seus olhos se arregalam
quando ele se abaixa, seu rosto brilhando com a iluminação do fogo.
Seu braço direito recua automaticamente com o choque. A sombra
repentinamente enorme de Kit o lança em um alívio rachado.
Dottie se vira e o empurra.
— Kit, VAI! — Dottie grita, mas o aperto em seu braço ainda a
prende.
Moya e Violet estão no canto do olho de Kit enquanto ela avança
para puxar Dottie para longe.
— KIT! — Moya chora.
Emil Ferrars tem uma expressão de ódio fervendo em seu rosto
enquanto ele avança em direção a Kit com a faca. Kit cambaleia
para trás enquanto seu braço desce. Ela cambaleia, então o corpo
de Dottie está no caminho.
— Dottie! — Violet grita.
Dottie bate em Emil, seu ombro colidindo com o queixo dele. Emil
grita. Ele se endireita, agarra Dottie pelos cabelos, enfiando a mão
da faca perto da cintura dela. Dottie arqueia e solta um grito.
— DOTTIE! — Kit grita.
Mas Emil Ferrars já está empurrando Dottie para longe, em
direção a Kit.
— Pegue a cadela estúpida, então!
E de repente Dottie está nos braços de Kit – um peso quente e
chocante, seu corpo flácido e mole. Kit segura firme e elas caem
juntas na serragem enquanto Emil Ferrars se vira e salta a meia
parede de madeira para a pista de equitação, correndo para o outro
lado. Há uma porta ali, ela sabe, a apenas sessenta metros de
distância.
— NÃO! — Moya grita.
Kit sente calor nas costas. A luz laranja do fogo está piscando por
toda parte. Algo explode na sala de arreios com um estalo, e Kit se
encolhe novamente.
— Kit — Dottie resmunga. Ela está com o rosto suado, seus
cachos loiros radiantes, seus olhos muito brilhantes à luz do fogo.
Ela está segurando os antebraços de Kit.
— Está tudo bem — Kit responde. — Está tudo bem, eu peguei
você…
— Kit, persiga-o — Dottie suspira. — Você precisa pegá-lo. Não o
deixe ir.
— Kit! — Violet grita. O fogo está pegando em velhos arreios e
feno em estábulos próximos.
Kit passa o braço pela cintura de Dottie, levanta as duas e a puxa
na direção das outras garotas. Dottie solta um grito de dor quando
Kit a empurra para frente, o qual Kit vai ouvir em sua cabeça para
sempre.
Moya levanta as mãos amarradas. Ela ainda está no chão, então
Kit basicamente coloca Dottie em seu colo.
— Leve ela!
— Eu a peguei — Moya diz com firmeza, então ela olha para Kit.
— Kit, eu...
Kit se agacha. Ela e Moya estão perfeitamente cara a cara, e este
é o momento perfeito, então ela se inclina para a frente rapidamente
e beija Moya nos lábios. Então ela se levanta e pega no bolso do
casaco a faca de Julian. Ela abre a lâmina com uma mão e ataca as
cordas nos pulsos de Violet até que caiam. As chamas atrás dela
soam como demônios famintos.
— Dê-me a faca — grita Violet, e ela pega a faca antes que Kit
possa responder, cortando os laços de seu tornozelo. — Moya…
— Aqui. — Moya estende os pulsos para Violet. Todas as suas
vozes são levantadas sobre o crepitar das chamas. — Este prédio
está queimando como uma tocha!
— Saiam daqui, todas vocês! — Kit grita, tirando o casaco,
enrolando-o para pressionar o ferimento de Dottie.
— Vamos cuidar dela — Violet grita de volta, soltando os
tornozelos de Moya. — Vá! Você precisa se mover rápido se quiser
alcançá-lo! — Ela joga a faca para Kit.
— Kit — Moya diz, seu rosto pálido delineado e brilhante. — Vá,
vá.
Nada pode impedir Kit de perseguir Emil Ferrars agora. Ela se vira
e voa pela entrada aberta para a pista de equitação, seguindo o
caminho de Emil.
Seus oxfords imediatamente se enchem de serragem – ela os
chuta. Ela está correndo, saia levantada, respiração ofegante. Seus
pés de meia batem no chão enquanto ela persegue o assassino de
quatro mulheres.
A transpiração gruda em sua testa e bochechas. Uma pontada
aguda de dor surge sob suas costelas; Kit percebe que ficar sentada
na sala de trabalho pairando sobre os códigos não a serviu
exatamente para uma busca frenética. Então sua palma bate na
porta traseira, ela abre a maçaneta e mergulha.
Instantaneamente, há um cheiro de seiva verde e uma onda
chocante de ar fresco da noite. Os sentidos de Kit são assaltados
pelo súbito silêncio enquanto ela se move em direção às árvores.
Ela segura a faca de cabo de osso de veado à sua frente, com a
mão tremendo. Suas solas praticamente nuas encolhem com a
sensação da grama fresca e da terra sob os pés.
A floresta atrás dos estábulos é escura, mas não totalmente
negra. Há uma cintilação de brilho nos pinheiros mais próximos
enquanto o fogo nos estábulos ganha força.
Para que lado ele iria? Voltar para a escola? Ela está prestes a
virar naquela direção quando um farfalhar de vegetação a faz girar
rapidamente.
Emil Ferrars grunhe enquanto golpeia para baixo.
Kit sente algo como um tapa em seu próprio braço que segura a
faca. De repente, há uma dor intensa e ofuscante, e ela larga a faca
de Julian e grita, recuando. Com os joelhos presos na saia, ela
tropeça nas moitas sob os pés e cai pesadamente sobre o cóccix.
Emil está sobre ela em um piscar de olhos, batendo suas costas
contra a terra. Seu braço é levantado para um segundo golpe.
— Você pensou que poderia me derrotar. — Sua respiração é
alta, sua expressão perturbada. Ele a pressiona contra o chão com
o peso de seu corpo. — Você pensou que poderia me expor, me
fazer correr…
O grito de Kit é gutural enquanto ela empurra o braço dele que
segura a faca com as mãos, os braços, os ombros – com todos os
músculos que ela tem. Paus e agulhas de pinheiro arranham sua
espinha através de suas roupas enquanto ela resiste, mas Emil
Ferrars a prende rapidamente.
— Eu sabia que você me perseguiria — Emil resmunga. Seus
dentes estão cerrados em um rosnado. O suor de sua testa respinga
nela como uma névoa. — Tão previsível. Você se acha tão
inteligente. Já lutei com garotas como você...
— CALA A BOCA, CALA A BOCA! — Kit grita na cara dele. A
longa faca de filé balança acima de sua bochecha. Seus braços
estão tremendo, seu braço direito dolorido e fraco.
— Vocês sempre cometem os mesmos erros! — Emil canta. —
Vocês acham que podem vencer a faca. As meninas sempre acham
que podem bater na faca. Mas isso nunca acontece. Garotas como
você não conhecem...
Há um som como o estalo de um raio e Kit grita, e o que ela não
sabe permanecerá para sempre desconhecido porque a cabeça de
Emil Ferrars de repente explode de um lado. Seu corpo segue a
mesma trajetória cortante e ele cai de cima dela.
Os braços de Kit agarram o ar vazio. Seus ouvidos estão
zumbindo alto. Ela está ciente de que algo quente e úmido está
escorregando na lateral de seu rosto, pingando na linha do cabelo.
Tudo o que ela pode fazer é suspirar e suspirar. Ela está fria, o chão
é duro. Sua respiração sopra vapor no ar noturno.
Bem acima dela, além das copas das árvores, as estrelas são
brilhantes, suas vozes cantando.
Existem outras vozes.
— …pensei que ele tinha atirado em você, oh meu Deus — Julian
Harding diz, de repente acima de sua cabeça, seu ombro largo
coberto de tweed bloqueando as estrelas. Julian não está usando
seus óculos. Ele só precisa deles para ler, lembra Kit. — Você está
bem? Kit, você pode me ouvir?
— KIT! — alguém grita, então Julian é abruptamente empurrado
para o lado e Kit é envolvida pelo calor de Moya.
Kit olha para o céu e sente a pressão dos seios de Moya contra
seu peito, os cotovelos pontiagudos e os braços magros de Moya e
o cheiro dela, que é fuliginoso e doce ao mesmo tempo. Kit fecha os
olhos, passa os braços em volta do pescoço de Moya.
Por um tempo ela apenas deixa Moya segurá-la, porque é disso
que ambas precisam. Ela não vai chorar, porque uma vez que
comece, será difícil parar. O choro pode vir depois. Tudo o que ela
quer é ficar aqui no escuro, no chão, com o rosto enfiado na
cavidade acima da clavícula de Moya.
— Ai, meu Deus, Kit, você está sangrando — diz Moya, com a voz
falhando. Então os braços de Moya a envolvem, ajudando-a a se
sentar.
Kit vê Julian Harding, com um halo de chamas nos estábulos
atrás dele, ajoelhado ao lado delas na grama e parecendo
horrorizado.
— Você precisa de um lenço? — ele diz. — Eu tenho um lenço...
— Sim — Moya diz secamente, estendendo a mão.
— Você já me deu seu lenço. — A voz de Kit é rouca. Ela está
surpresa que ainda funcione. — Usei-o para acender o fogo. Seu
isqueiro e seu lenço...
— Eu tenho outro — diz ele. Ele tira o quadrado branco do bolso
do colete, sacode-o e o entrega a Moya.
— É como se você fosse feito de lenços. — Kit se sente leve
como uma pena. Ela suporta o puxão e a pressão enquanto Moya
amarra seu braço. — Ai.
— Precisamos de um médico — diz Moya.
— Sim, bastante. — Julian esfrega o rosto com uma das mãos.
Ele parece estar em estado de choque. — Eu não posso acreditar
que você está…
Ele é interrompido por um homem de uniforme que vem
mancando rápido.
— Senhorita Sutherland, precisamos movê-la. — É John Cathcart.
Ele está se encolhendo de dor, que Kit supõe ser o antigo ferimento
na perna, e está segurando um revólver. — O fogo nos estábulos
está subindo rápido…
Há um rangido. Kit percebe que eles estão a apenas meia dúzia
de metros de um prédio que tem fogo crepitando de seu telhado. Ela
observa as chamas dançantes por um momento, fascinada.
— Tudo bem, pessoal, vamos lá. — A voz de Cathcart é
autoritária. — Pelo menos quinze metros de distância segura.
Senhorita Kershaw, você pode ajudar a senhorita Sutherland? — Há
outras figuras se movendo por perto, figuras em uniformes escuros
e capacetes brancos; ela pode ver suas braçadeiras de PM daqui.
— Onde está Dottie? — Kit pergunta de repente. — E Violet?
— Elas estão bem — diz Julian, levantando-se. — Os PMs as
tiraram do prédio, Kit, está tudo bem.
Moya diz:
— Vamos, apoie-se em mim.
— Você tem um ferimento na cabeça — lembra Kit, passando o
braço bom em volta da cintura de Moya para se apoiar.
— Isso não importa — Moya contesta. Ela acaricia a testa de Kit
com a sua enquanto gentilmente a incentiva a se mover, antes de
virar o rosto para Cathcart. — Capitão, onde estão minhas garotas?
— A senhorita DuLac está cuidando da senhorita Crockford do
outro lado dos estábulos — diz Cathcart, caminhando com elas. —
Há um médico atendendo, estou indo para lá agora. Você vai ficar
com a Srta. Sutherland?
Moya assente, o que é um alívio. Kit não acha que ela poderia se
separar fisicamente de Moya agora. Ela está tendo problemas para
colocar um pé na frente do outro.
Cathcart coloca o revólver no coldre.
— Senhorita Sutherland, lamento que você tenha sido colocada
em perigo. Eu não estava perto o suficiente para atacá-lo e não
consegui ver outro curso de ação...
— Foi você quem disparou, capitão? — Parte de Kit está dobrada
contra o corpo de Moya e parte dela ainda está flutuando livre.
— Sim, sim, senhora.
— Foi um tiro incrível. Você salvou minha vida. — Kit olha por
cima do ombro e vê Julian Harding colocar sua jaqueta de tweed
sobre a parte superior do corpo de Emil Ferrars. — Emil foi... Ele
matou quatro garotas do governo. Margaret Wishart, Dinah Shaw,
Libby Armstrong, Veronica Luca... Temos provas, linhas de
investigação para a polícia...
— Senhorita Sutherland, está tudo bem — diz Cathcart com uma
careta. — Sr. Harding já me mostrou a mala.
— Ah. — Kit de repente quer se sentar novamente. — Moya…
— Agarre-a — diz Cathcart rapidamente.
— Estou com ela. Caminhe comigo — Moya ordena. — Vamos,
Kit. Para a árvore... não, esta árvore.
Assim que chegam ao pinheiro, Moya se senta com ela. Elas se
encostam no tronco áspero e uns nos outros, observando o fogo
consumir os estábulos e iluminar a noite.
Moya envolve o braço de Kit novamente com o lenço azul do
bolso de sua jaqueta de tosquia. Já não dói tanto. O calor do fogo é
agradável no rosto de Kit.
Os faróis de um jipe piscam e saltam por entre as árvores. Há
PMs conversando com Julian Harding no local onde Emil Ferrars
morreu. O olhar de Kit se volta para aquela cena, se afasta. Cathcart
manca na direção delas.
— Eu sabia que você tentaria vir — Moya sussurra no cabelo de
Kit. — Deus, eu estava com tanto medo.
Kit não tem coragem de contar a Moya o que vai acontecer a
seguir.
— Elas estão bem — diz Cathcart ao se aproximar. Sua perna
obviamente está causando muita dor agora. — Quero dizer, a
senhorita DuLac está bem. Ela está com os PMs, prestando
depoimento. Senhorita Crockford...
— Dottie vai ficar bem? — Kit engole em seco.
— Eles a levaram para o hospital... eu a carreguei para o jipe. Ela
está um pouco mais frágil, mas é forte e o médico disse que ela tem
bons sinais. — Cathcart olha para os estábulos em chamas. Ele
ajeita o cabelo daquele jeito de sempre; Kit acha que é um hábito
nervoso. — Senhorita Sutherland...
— Está tudo bem — diz Kit. — Você pode dizer isso.
Moya semicerra os olhos.
— Dizer o que?
Cathcart morde o lábio cicatrizado.
— Seu nome não é realmente Senhorita Sutherland, é?
Moya faz um pequeno som, um gemido ofegante. Kit balança a
cabeça lentamente.
— Bem, isso não é... bom. — Cathcart estremece. Ele tem um ar
de resignação. — Senhorita Sutherland, sinto muito, mas sou
obrigado a...
— Espere — diz uma voz, e Julian Harding se aproxima. Ele está
olhando para Cathcart acusadoramente. — Capitão, pensei que
tínhamos conversado sobre isso. Você disse que uma prisão era o
resultado que você menos gostava.
Cathcart lambe os dentes de trás.
— Nós conversamos. E eu falei…
— Então não faça isso. — As maçãs do rosto acentuadas de
Julian são acentuadas à luz do fogo. — Olha, eu não tenho
nenhuma influência sobre os processos da justiça militar americana.
E eu sei que esta é uma situação embaraçosa. Eu sou britânico,
certamente entendemos errado…
— Ela mentiu sobre seus papéis — diz Cathcart calmamente. Ele
olha para Moya. — Outras pessoas conspiraram para esconder sua
identidade…
— Sim, sim — diz Julian, impaciente. — Ela também quebrou
cifras japonesas cruciais para o esforço de guerra e expôs um
estuprador e assassino em série dentro de sua própria organização.
John... por favor, não faça isso.
Cathcart hesita. Kit pode sentir Moya apertando sua mão.
— Ouça — diz Julian. — Tenho uma sugestão sobre a situação da
Senhorita Sutherland. Pode salvar a cara de todos...
Cathcart faz uma pausa, inclina a cabeça.
— Estou ouvindo.
Kit também está ouvindo. Ela está ouvindo atentamente.
CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Nenhum código é completamente resolvido, você sabe.


— ELIZEBETH FRIEDMAN

É sexta-feira, fim de tarde. A vista do lado de fora da janela do


dormitório de Kit é convidativa: a extensão verde do gramado, as
cerejeiras cheias de folhas, o sol quente brilhando no branco do
chalé da administração. Atrás da casa, vislumbres das obras em
andamento.
Uma andorinha de rabo azul passa voando pela janela. Na área
florestal à esquerda, apenas um trecho enegrecido da linha das
árvores – ainda fumegante – denuncia o que aconteceu na noite
passada.
Kit enfia um último par de meias enroladas em sua bolsa e olha
para a área de construção novamente. Essas salas de trabalho
recém-pintadas estarão prontas para o influxo de novas garotas de
código até o final de abril. Ela quase deseja poder ficar para ver:
todas as garotas em seus terninhos e cardigãs de verão, lápis em
mãos. Todos os rostos brilhantes e radiantes, o rio de garotas, o
exército de garotas fluindo para suas mesas, ansiosos para testar
sua inteligência contra os sinalizadores japoneses agachados no
Pacífico Sul que nem sabe que Arlington Hall e seu grupo de
garotas espertas existem...
— Axis não tem chance — Kit sussurra, sorrindo.
— O que você disse?
Kit olha, cheia de alívio.
— Você está acordada.
— É, mas assim que acordo, sinto sono de novo. — Dottie está
em seu roupão de banho, seu cabelo dourado espalhado pelos
montes de travesseiros em sua cama, sua tez em geral muito pálida.
Seu rosto ainda está mole de cansaço. — Essas pílulas realmente
me derrubaram. Está falando sozinha, Kitty-Kat?
— Só pensando nas novas garotas chegando no verão. — Kit
sacode a saudade solta. — Tem certeza de que vai ficar bem esta
noite? Talvez você devesse ter ficado no hospital...
— Ugh, de jeito nenhum, os hospitais são os piores. — Dottie sorri
para a carranca de Kit. — Não comece a falar disso de novo. Eu vou
ficar bem. Opal vem antes do jantar e a enfermeira da enfermaria
vem cuidar de mim às sete. Tenho garotas fazendo fila para me
checar...
— Sem mencionar um certo capitão que tem sido extremamente
atencioso — observa Kit.
— Bem. — Dottie faz um movimento como se estivesse tentando
jogar o cabelo para trás, mas para e faz uma careta quando isso se
mostra desconfortável. — John é um homem muito bom...
— John, agora? — Kit sorri.
— Ele é um homem muito bom, e não sorria para mim. — Dottie
revira os olhos. — Ele só está passando para dizer olá, o que é uma
coisa gentil de se fazer.
— Uh-huh. Muito gentil.
— Ele me carregou até a ambulância, sabe.
— Você já me contou sobre isso. Duas vezes.
— Bem, talvez eu tenha. — O olhar de Dottie vagueia de lado. —
Mas eu nem estou pensando em coisas assim agora. Está tudo
ainda... muito fresco em minha mente...
— Eu sei, querida — Kit diz gentilmente. Ela se senta na cama e
pega a mão de Dottie. — E eu sei que vai demorar um pouco. Mas
você se lembra do que eu disse. Não houve falha em nada que
qualquer uma de nós fez. Você é uma heroína, Dot. Como você se
colocou na minha frente...
— Eu sei. — Dottie olha para trás ao ver a sacola de Kit na cama
oposta e aperta a mão de Kit. — Mas não vamos falar sobre isso
agora. Você se despediu de Opal e das meninas?
— Sim — diz Kit.
— Bom. Você tem tudo o que precisa? Você está com aquela cara
esquisita de novo...
— Estou fazendo a coisa certa? — Kit pergunta de repente.
— Bem, é a única coisa que você pode fazer, querida. — Dottie
dá um sorriso pálido. — Mas deixando isso de lado... Sim, Kit. Eu
acredito que você está fazendo a coisa certa. Não tenha medo
agora. Não há nada a temer. Exceto eu — ela corrige — se você
não me escrever regularmente, como eu pedi.
— Vou escrever para você — diz Kit. — Dot... — ela pode sentir a
garganta ficando grossa. — Dottie, vou sentir tanto a sua falta.
— Eu sei, Kitty-Kat. — Os olhos de Dottie também estão
brilhando. — Mas vai ficar tudo bem.
Uma voz vem da porta aberta.
— Senhorita Sutherland? Está chegando a hora. — Julian Harding
está vestido com um traje de viagem, seu sobretudo sobre um
braço. Ele está segurando uma pequena mala na outra mão. —
Você gostaria que eu levasse sua bagagem para baixo? Se quiser
mais alguns minutos... — Seu olhar se volta para Dottie, deitada na
cama. — Olá, senhorita Crockford. Eu espero que você esteja se
sentindo melhor?
— Bem, claro, Sr. Harding — responde Dottie. — Estou me
sentindo muito melhor agora que não tenho uma faca enfiada nas
entranhas, obrigada por perguntar.
— Erm… — Julian ainda parece incerto sobre como reagir ao
humor americano às vezes.
Kit o salva de responder.
— Vou levar minha própria bolsa, Julian. Me dê mais um minuto.
— Tudo bem. Vejo você lá embaixo em breve. — Ele inclina a aba
frontal de seu chapéu fedora na direção de Dottie. — Adeus,
senhorita Crockford. Muitas felicidades para sua recuperação.
— Obrigada! — Dottie levanta o queixo, sorrindo.
Kit observa Julian partir.
— Você é uma provocadora.
— Para sempre e além. — Dottie pisca. Ela aperta a mão de Kit
com força. — Ok, está na hora. Nada de longas despedidas, você
sabe que odeio isso.
— Será que Moya já… — Kit começa.
— Ela já fez — Dottie confirma. — Agora beije minha bochecha e
vá embora. E certifique-se de escrever.
— Eu irei — diz Kit, engolindo as lágrimas. Ela beija a bochecha
macia de Dottie conforme as instruções. Inala o aroma de centáurea
de Dottie. Pressiona suas testas juntas. — Amo você, Dottie
Crockford. Fique bem. Melhore.
— Eu também te amo — diz Dottie. — E eu vou. — Seu próprio
queixo está tremendo e sua voz é um sussurro. — Agora saia daqui
e vá viver.
Kit acena com a cabeça – é hora. Ela pega sua jaqueta. É a
jaqueta de viagem azul-marinho com cintura peplum que Katherine
deixou para ela. Kit o coloca, tomando cuidado com o curativo sobre
os pontos em seu antebraço direito. Ela olha para o espelho e ajeita
a blusa por baixo do paletó, ajeita a saia.
— Não se esqueça do chapéu — Dottie a lembra.
Kit prende o chapéu sobre o cabelo enrolado. Ela abre o pó
compacto e empoa o rosto, cobre as manchas vermelhas sob os
olhos. Sua mão, aplicando o batom, treme levemente. Ela termina a
maquiagem e a guarda na bolsa de vinil marrom.
— Luvas, luvas — diz Dottie.
— Peguei elas. — Kit coloca a bolsa no pulso direito, longe do
curativo, e segura a bolsa pela alça de bambu com a mão esquerda.
Toda a papelada dela está lá dentro, mais o salário dela. Ela já
enfiou dez dólares no bolso da jaqueta.
— Vá bem, minha amiga — grita Dottie da cama. Ela beija os
dedos e sopra o beijo na direção de Kit.
— Te amo — diz Kit. Antes que ela possa começar a chorar
novamente, ela sai pela porta.
Agora ela está se movendo, ela se sente melhor, mas ainda é
como se uma parte de sua alma estivesse sendo partida ao meio.
Seus saltos pisam no tapete vermelho até as escadas – ela está
calçando os sapatos de Violet, porque seus próprios sapatos Oxford
foram destruídos no incêndio do estábulo.
Ela tem que cuidar de seus pés ou correr o risco de tropeçar
porque seus olhos ficam lacrimejando. Cada passo que ela dá é um
adeus ao familiar, adeus ao mundo que ela conhece.
— Droga — ela sussurra. — Vamos lá.
— Você está bem aí? — uma voz familiar diz no patamar do Dois.
Violet está de saia azul, blusa creme e suéter verde-floresta. Seu
cabelo é seu lindo tumulto de sempre. Um saco de papel marrom
está pendurado em sua mão. — Ah, garota — diz Violet, balançando
a cabeça. — Você vai estragar sua maquiagem e nem conseguiu
sair pela porta. Pegue isso.
Violet entrega o saco de papel a Kit e procura nos bolsos da saia.
— São biscoitos? — Kit diz, com a voz falhando. Mas ela não
precisa perguntar; ela pode sentir o cheiro de canela e aveia.
— Aqui. — Violet passa para ela um lenço de papel. — Seque
seus olhos. Sim, são biscoitos de casa. Você vai precisar de alguma
coisa para a viagem.
— Oh, Deus. Você já me deu seus sapatos... — Kit coloca a
sacola no chão e enfia o pacote de biscoitos na bolsa. Ela enxuga
com o lenço de papel, sem saber para onde olhar. Seu copo está
cheio e as emoções estão transbordando dela de uma forma que ela
não consegue navegar. — Oh, Deus. Violet…
Violet a agarra para um abraço. Kit a aperta forte. Os braços de
Violet são fortes e quentes. Finalmente, Kit separa as duas.
— Você vai me visitar, certo? — Kit agarra o Kleenex. — Não diga
que eu vou ver. Diga que vai me visitar quando puder.
— Quando meu mandato aqui terminar, tentarei visitá-la — diz
Violet, balançando a cabeça. — Não sei como vou fazer isso, mas
vou chegar lá de alguma forma. Vamos, vamos levá-la para baixo.
Pegou sua bolsa?
— Eu peguei — Kit levanta sua bolsa novamente, forçando seus
pés a se moverem. — Você falou com Raffi?
— Sim, e expliquei tudo o que pude por telefone. — Elas passam
pelas salas de trabalho no Dois, indo para as escadas para o
próximo nível. O som da digitação é um zumbido. — Ele quer se
encontrar e obter os detalhes sobre o que aconteceu com Emil
Ferrars. Eu disse que ainda não sabia se tinha permissão para falar
sobre isso, mas veria.
— Encontre-o de qualquer maneira — sugere Kit. — Vá para o
Clube Caverna e dance. Beba uma margarita para mim.
Violet bufa.
— Vou pensar sobre isso.
— Não pense nisso, apenas faça.
— Talvez eu vá. — Violet segura o corrimão enquanto eles
descem as escadas para o Um.
— Faça isso por Dinah — Kit diz impulsivamente. Ela sente que
tem que dizer tudo, demais, no tempo que lhes resta. — E diga sim
a Howard. Fale com o Sr. Coffee sobre isso...
— Eu já disse sim a Howard — diz Violet. — E o Sr. Coffee disse
que talvez houvesse outro emprego para mim. Ele disse que existe
um lugar chamado NACA, em Langley, que está clamando por
computadores Negros...
— Ai, meu Deus, Violet. É isso. — Chegaram ao parquet da Um, e
Kit larga as malas, agarra-se aos braços da amiga. — É isso. Você
está fazendo isso.
— Não sei... realmente não sei. — Violet morde o lábio inferior, o
queixo tremendo. — Mas esperança é tudo o que tenho e preciso
tentar.
— Você vai ser incrível. — Kit mantém o olhar de Violet. —
Prometa-me que você vai ser incrível.
— Você sabe que sim. — O rosto de Violet se abre em um sorriso
aguado.
— Eu sei disso. E não volte atrás. Quero vê-la novamente antes
que esta guerra acabe. Há liberdade para onde estou indo, você
pode gostar do sabor disso.
— Eu poderia. — Violet engole, acena com a cabeça. — Ok, isso
é o suficiente agora. Você tem que ir. Tenho que voltar ao meu
turno.
— Melhor ir, então. Você já viu Moya?
— Eu vi — Violet mergulha para mais um abraço. — Cuide-se, Kit.
Kit espera por sua querida vida.
— Você também, Violet. Espero vê-la em breve.
Elas se separam e Violet se vira para ir, mas volta atrás. Suas
bochechas morenas são iluminadas pelo sol, suas covinhas
acentuam as curvas. Ela olha para Kit com estranha surpresa.
— Nós realmente fizemos isso, hein?
Kit assente.
— Nós realmente fizemos.
— Acho que isso significa... que podemos fazer qualquer coisa.
Violet sorri e vai embora. Kit está sofrendo com tantas
despedidas. Mais um adeus pode ser o fim dela.
A luz no saguão é forte, as grandes portas duplas se abrem. O ar
cheira a primavera e asfalto quente, do lado de fora da garagem.
Há o som de passos e um leve toque no braço de Kit.
— Vamos — Moya diz gentilmente. — O carro está esperando.
Ela parece um anúncio de moda em uma blusa branca com
alfinetes e um par de calças marinhas de perna larga com sapatos
de salto alto. Seu cabelo preto está enrolado com perfeição,
realçado por seu batom vermelho-bombeiro.
Toda vez que Kit vê Moya, ela fica atordoada novamente.
— Você está linda. Eu te disse isso?
— Algumas vezes, sim. — Moya sorri gentilmente. Há um
arranhão perto de sua têmpora, bem perto da linha do cabelo. Além
disso, você nunca saberia o que Moya passou nas últimas vinte e
quatro horas.
— Se eu tiver que me despedir de mais uma pessoa, vou
começar a chorar.
— Sorte que sou a última, então. — Moya pega uma clutch
vermelha e seu sobretudo cor de vinho na velha mesa da
administração. — Esqueça as despedidas, fique com os elogios.
Kit sente que vai explodir com toda essa emoção.
— Acho que vou ter muito tempo para continuar dizendo que você
está linda durante a viagem.
Moya apenas sorri.
— Imagino que um pouco do meu brilho já terá passado, mas
fique à vontade.
— É quando eu vou mudar para dizer o quão corajosa e
inteligente você é.
— Sua boba — Moya revira os olhos, mas parece secretamente
encantada. — Dê sua bolsa a Julian.
— Sim, eu aceito isso — diz Julian Harding, caminhando para
pegar a sacola de Kit. — Isso é tudo o que você está trazendo, Srta.
Sutherland? Parece bastante leve.
Kit dá de ombros.
— Isso é tudo que eu tenho. O resto pertence a outra pessoa.
Moya lhe dá um sorriso suave. Julian leva a bagagem de Kit até o
carro e Kit descobre que Moya pegou sua mão.
— Pronta para parar de olhar por cima do ombro? — Os olhos de
Moya estão brilhando, a luz da porta aberta dando a ela um halo
radiante.
— Para evitar uma corte marcial? — Kit ri e aperta a mão de
Moya, levando-a aos lábios. — Tão pronta. Mas você disse que
odeia o clima inglês...
Moya se inclina para que suas testas se toquem, fechando os
olhos.
— Se estivermos juntas, tenho certeza que vou aguentar.
— Moya. — Kit sente seu corpo tremer com esses sentimentos.
— Eu quero viver a vida, arriscar e sonhar sonhos... mas só se eu
puder fazer isso com você.
— Você me pegou. — Moya se endireita e sorri, piscando para
conter as lágrimas. — Você me pegou bem... e esse é um código
que você nunca terá de decifrar.
Kit ainda está sorrindo quando Julian retorna, conduzindo-os para
frente.
— Por aqui, senhoras.
Kit desvia o olhar de Moya para olhar para ele.
— Então, este avião em que estamos voando...
— Tecnicamente, é um hidroavião — diz Julian enquanto
caminham em direção à porta.
— Ele continua “tecnicamente” falando sobre as partes — diz
Moya, colocando a mão de Kit na curva de seu cotovelo. — É coisa
de homem.
— Isso mesmo — afirma Julian. — Com certeza é coisa de
“homem”, querer saber as especificações do veículo em que você
está viajando milhares de quilômetros pelo território inimigo.
Moya revira os olhos novamente.
— Só está nos levando para a Terra Nova. Eles vão nos levar de
lá até o navio.
As sobrancelhas de Kit se erguem.
— Eles estão remando conosco?
— Bem — Julian diz — só para o vapor. O hidroavião desta
primeira etapa é uma aeronave de asa fixa capaz de decolar e
pousar na água.
Kit semicerra os olhos para Moya.
— Então... é um barco voador?
— Sim. — Moya chama a atenção de Kit. — O que é tão
engraçado?
Kit coloca a bolsa no ombro e olha pela entrada aberta de
Arlington Hall. O sol lá fora está quente. Ela está realmente fazendo
isso. Ela vai sair pela porta e continuar andando.
— Nada em que você acreditaria. — Kit sorri para Moya. — Mas
vou tentar explicar para você no caminho para a Inglaterra.
NOTA DA AUTORA

Quando a publicação de The Killing Code foi anunciada, uma


grande amiga minha, Lili Wilkinson, exclamou: “Sempre quis
escrever um livro para mulheres decifradoras de códigos, mas não
conseguia enfrentar a pesquisa (ou a matemática) e agora Ellie
Marney está muito gentilmente escrevendo para que eu possa
apenas ler e me divertir!” – o que me fez rir, porque ela não estava
errada: houve MUITA pesquisa envolvida na produção deste livro, e
se eu cometi algum erro ou tomei licença com detalhes, espero que
me perdoe.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todos aqueles que
concederam permissão para o uso de citações por mulheres
decifradoras em The Killing Code. Gostaria de agradecer
particularmente a Megan Harris, especialista em pesquisa do
Projeto de História dos Veteranos da Biblioteca do Congresso, que
forneceu conselhos sobre permissões para citações de Ann
Caracristi; Melissa Davis, da Fundação George C. Marshall,
Lexington, Virgínia, por conselhos sobre permissões para citações
de Elizebeth Friedman; e a Agência de Segurança Nacional pelo
uso de citações de Wilma Davis (nascida Berryman) de sua série
Oral History Interview. Também aprecio muito o gentil conselho de
Jason Fagone, autor de The Woman Who Smashed Codes (Dey
Street, 2017).
Eu mudei um pouco a história ao descrever a primeira unidade
segregada de criptologistas negros, que não existia até 1944. Mas
William D. Coffee – originalmente contratado como zelador –
organizou os decifradores de códigos negros e dirigiu as operações
diárias desse escritório. Ele foi premiado com a Comenda por
Meritório Serviço Civil em 1946. O livro Invisible Cryptologists:
African-Americans, WWII to 1956 por Jeanette Williams (Center for
Cryptologic History, NSA, Series V, Vol. 5, 2001) forneceu
informações importantes sobre esta crucial unidade.
Gostaria de agradecer aos outros autores cujo trabalho incansável
revelando os segredos da inteligência de sinais em tempo de guerra
e as contribuições das mulheres durante a Segunda Guerra Mundial
foram tão importantes para o desenvolvimento do manuscrito.
Menções especiais devem ser feitas a Cindy Gueli, autora de
Lipstick Brigade: The Untold True Story of Washington's World War
II Government Girls (Tahoga History Press, 2015); Charlotte Webb,
autora de Secret Postings: Bletchley Park to the Pentagon
(Booktower Publishing, 2014); Michael Smith, autor de The Secrets
of Station X: How Bletchley Park Codebreakers Helped Win the War
(Biteback Publishing, 2011); Margot Lee Shetterly, autora de Hidden
Figures: The American Dream and the Untold Story of the Black
Women Mathematicians Who Helped Win the Space Race (William
Morrow & Co., 2016); e Robert Harris, autor de Enigma (Hutchinson,
1995).
Vários podcasts forneceram detalhes essenciais para The Killing
Code, particularmente o podcast Bletchley Park e o podcast UCL
Codebreaker: My Top-Secret Codebreaking durante a Segunda
Guerra Mundial, uma gravação de um discurso fantástico do falecido
capitão Raymond C. 'Jerry' Roberts. Também gostaria de enviar
meu amor e gratidão à autora Kate Armstrong e seu incrível podcast
The Exploress, por conselhos e sugestões ao longo do caminho.
Algumas pessoas se esforçaram para fornecer assistência –
gostaria de agradecer e dar abraços à autora Kelly Gardiner, que
forneceu materiais em meu nome da atual propriedade e museu de
Bletchley Park. Muito obrigada, Kell!
Acima de tudo, este livro não existiria sem o impressionante
trabalho de pesquisa de Liza Mundy, Code Girls: The Untold Story of
the American Women Codebreakers of World War II (Hachette,
2017). Quando li o livro pela primeira vez, minha imaginação pegou
fogo. Ao longo de longos meses de rascunho, voltei várias vezes a
Code Girls em busca de inspiração e detalhes, e encorajo todos que
têm interesse no trabalho extraordinário de mulheres decifradoras a
lê-lo.

Se você tem interesse em decifrar códigos, veja o que pode fazer


com isso:

23 5 12 12 0 4 15 14 5 0 25 15 21 0 1 18 5 0 1 0 8 1 14 4
25 0 12 9 20 20 12 5 0 3 15 4 5 2 18 5 1 11 5 18

E se você for muito esperta, experimente este:

GIJV HMXI WYY YBI E RELNC JSXRVI


AYHCLVKOCB
AGRADECIMENTOS

Estou sempre tão exausta no final de escrever um livro! E este livro


foi particularmente cansativo, escrito durante longos meses de
pandemia enquanto tudo parecia estar desmoronando. Houve uma
série de falsos começos e reescritas, mas chegamos lá no final, e
eu não poderia ter feito isso sem todo um elenco de amigos e
apoiadores.
Os primeiros agradecimentos vão para meu incrível agente, Josh
Adams, e para a equipe da Adams Literary, a quem tenho uma
grande dívida de gratidão, sempre. Muito obrigada, Josh e Tracey!
Em segundo lugar, gostaria de agradecer à minha editora, Hallie
Tibbetts, que pegou minha história e a poliu até deixá-la com um
brilho absolutamente perfeito. Hallie, você estava certa! (Sobre um
monte de coisas, mas especialmente sobre confiar em minha
escrita.) Também gostaria de agradecer a Liz Kossnar por assumir
as rédeas de forma tão brilhante e disputar o The Killing Code até a
publicação final. Obrigado, Liz.
Muito obrigado à equipe incrível da Little, Brown Books for Young
Readers – especialmente ao gênio da edição de texto Vivian Kirklin
(desculpe por todas as elipses!) e ao editor de produção Jake
Regier. Gratidão à revisora Sarah Van Bonn e à revisora Jennifer So
por excelentes habilidades de revisão. Agradeço imensamente a Bill
Grace, Andie Divelbiss, Christie Michel e Savannah Kennelly, da
equipe de vendas e marketing da Little, Brown, que nunca recebem
crédito suficiente, e todo o meu apreço a Marisa Russell na
publicidade. Gostaria de fazer uma observação especial sobre
Charlene Allen, que leu este livro em busca de autenticidade em
suas representações e forneceu conselhos sobre como torná-lo
melhor.
Gostaria de mencionar especialmente minha editora adjunta,
Hannah Milton, que leu pela primeira vez The Killing Code e adorou
– obrigada, Hannah. Sinceros votos de felicidades e boa sorte em
todas as suas aventuras.
Obrigado, também, ao pessoal fabuloso da Allen & Unwin por
trazer The Killing Code aos leitores australianos e neozelandeses.
Toda a minha gratidão a Sophie Splatt, Jodie Webster, Eva Mills e
todos os membros da equipe editorial e de publicidade.
Minha pobre vítima de assassinato, Libby Armstrong, recebeu o
nome da verdadeira Libby Armstrong, que é a maravilhosa
proprietária da Livraria Beachside em Sydney. Libby ganhou os
direitos do nome em um leilão do Authors for Fireys, que levantou
fundos de apoio após os incêndios florestais australianos de 2019-
2020, e agradeço a generosidade de Libby em permitir que seu
nome fosse usado de maneira tão espúria.
Muitos leitores escreveram para mim ou gritaram encorajamento
durante a escrita de The Killing Code – obrigada do fundo do meu
coração. Agradecimentos especiais aos meus espreitadelas da
newsletter (olá!) e a todos nas redes sociais que me deram um
impulso quando precisei.
Eu dificilmente escreveria uma palavra sem minha equipe
principal, o Great Goosemoot, o Conselho, a equipe da House of
Progress – todo o meu amor e abraços para Amie, Lili, Nic, Skye,
Eliza, Peta, Kate, Liz e Ebony. Obrigada a Jay Kristoff por torcer do
lado de fora e a Will Kostakis, que é um chefe total. Muitos abraços
também devem ir para as mulheres do Vault, especialmente Fleur,
Rachael e Gab. E eu não poderia ter me arrastado até a linha de
chegada sem CS Pacat, que é uma verdadeira amiga e uma
escritora incrível.
Os agradecimentos finais vão sempre para a minha família.
Grandes abraços para minha irmã Lucy, bem como para Bae, Millie,
Frankie e o novo rapaz Ewan. Meus próprios filhos me mantêm sã
de alguma forma e, com este livro, eles suportaram longos dias em
que eu estava preso à minha cadeira de escrita – Ben, Alex, Will e
Ned, espero que saibam o quanto os amo.
E para meu parceiro, Geoff – digo isso em todos os livros, mas
ainda é verdade: você, senhor, é um príncipe entre os homens.
xxEllie

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