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Cora vai quebrar, ou ela vai se curvar... Este é o começo, ou o fim?

Tudo o que Cora pensava saber sobre Harrow Faire era uma mentira.
Absolutamente tudo.

Agora que as linhas na areia foram traçadas, que uma guerra pelo
Coração da Faire cresce, ela deve descobrir o quanto está disposta a sacrificar
para salvar as pessoas que ela veio a pensar como Família. E quanto de si
mesma está disposta a dar pelo homem que veio a amar.

O vagão do Sr. Harrow está vazio. As portas estão bem abertas na torre.
O Caos chegou a Harrow Faire.

Mas será este o fim do circo?

Ou cada fim é apenas um novo começo?


0. A Contorcionista
1. O Mágico
2. A Trapezista
3. A Aerialista
4. O Mestre de Cerimônias
5. O Pegador
6. Os Gêmeos
7. O Domador de Animais
8. O Homem Mais Forte Vago.
9. A Mulher Barbada
10. O Malabarista
11. O Cuspidor de Fogo
12. O Aparelhador
13. O Palhaço Vago.
14. A Costureira
15. O Marionetista
16. A Adivinha
17. A Diva
18. O Puxador
19. O Mecânico
20. O Maestro
21. A Faire
Acho que não preciso fazer um longo paragráfo sobre como 2020 foi
uma catástrofe de proporções épicas.
Mas vou lhe dizer o que me ajudou a lidar.
Você.
Ser capaz de escrever e publicar histórias é uma coisa. Ter pessoas que
gostam de ler essas histórias é outra coisa completamente diferente. E poder
conversar com elas, interagir com elas e ver o prazer que sentem pelo meu
trabalho é uma honra e uma alegria.
Então, obrigada.
Espero ter ajudado você a passar por isso um pouco também.
Um brinde a mais histórias pela frente e menos anos como este.
O tribalismo1 é o verdadeiro veneno da natureza humana.
Em algum momento de nossas vidas, escolhemos um lugar para pertencer.
Muitas vezes é qualquer situação em que nascemos. Uma família, uma religião, uma
sociedade, um país... Não importa. O tribalismo, querendo ou não, é uma toxina que
todos nós bebemos. Uma que procuramos ativamente para nós mesmos. Uma que
beberemos alegremente cada vez que nos for oferecida.
Por quê?
Nos primeiros anos, esse conceito de “tribalismo” era bastante literal. A
sociedade humana em sua infância foi formada pela simples necessidade de caçar e
sobreviver. Inventamos essas construções para nos proteger contra os predadores –
humanos e outros – que se escondiam na escuridão e tiravam de nós o que
precisávamos para viver, procriar e persistir.
É simples entender por que, como animais primitivos, os humanos se
agarravam uns aos outros. No entanto, na maioria das sociedades, não precisamos
mais nos preocupar com matilhas de coiotes que limpam nossos ossos durante a noite.
Vivemos vidas confortáveis e protegidas.
Então, por que ainda encontramos a necessidade de nos dividir? Por que
procuramos maneiras de definir nosso ser dessa maneira?
Porque não basta simplesmente ser humano.
Devemos ser importantes.

Relativo a tribo, grupo de pessoas que descendem do mesmo povo, partilham a mesma língua, têm
1

os mesmos costumes, tradições etc.


Na multidão que enumera a humanidade somos pequenos, insignificantes e sem
importância. Em nossa busca por identidade, por importância, devemos estreitar a
lente e aumentar a ampliação. Continuamos a fazer isso de novo e de novo, de novo e
de novo, cada vez menor, até encontrarmos algum lugar em que somos especiais.
Onde importamos.
Religião. Nação. Esportes. Afiliação política. Orientação sexual. Preferências de
entretenimento. A lista continua. Encontramos maneiras de estreitar nossa tribo até
encontrarmos nosso nicho. O lugar onde a nossa identidade pode ser vista e
apreciada. Criamos para nós um lugar ao qual pertencer na falsa esperança de que
isso possa causar um impacto no mundo quando partirmos.
Mas esse não é o único motivo. Se fosse simplesmente isso, seria um lembrete
não esclarecido, mas totalmente benigno, da evolução da espécie. Seria o resíduo de
todas aquelas noites assustadas amontoados em uma caverna, com medo dos tigres no
escuro.
Há outro ímpeto muito mais insidioso e muito mais perigoso para as divisões
em nossa natureza nas quais nos envolvemos deliberadamente. E está nos recessos
mais escuros do coração que a sociedade em geral se recusa a reconhecer. Pois se
olharmos para o poço de nossa própria natureza e falarmos a verdade, não somos as
criaturas nobres que fingimos ser.
Mas permita-me lançar alguma luz sobre isso para os propósitos desta
discussão.
Os humanos precisam de ódio.
Precisamos desprezar os outros a cada respiração que damos.
Nós sobrevivemos disso. Nós nos deleitamos com isso. Desejamos gritar nosso
desgosto aos nossos inimigos. Queremos exaltar em nossas vitórias sobre nossos
inimigos derrotados. Queremos esmagá-los abaixo de nós. Pois somos “nós”, e
desprezamos “eles”.
Mesmo quando as armas e os exércitos são omitidos, encontramos uma razão
para odiar nossos vizinhos. O imigrante que parece diferente de nós. Aqueles que
desafiam nossas regras tribais de sexualidade, amor e religião. Aqueles que se opõem
às nossas crenças políticas. Nós olhamos com desprezo para eles, os chamamos de
tolos e pecadores. Odiamos eles com o âmago do nosso ser. Desejamos-lhes o mal.
Desejamos-lhes a ruína. Nós celebramos quando eles são reduzidos.
Definhamos quando eles são elevados, porque compartilhar nosso status com
eles é nos desvalorizar. Há tantas fichas de pôquer na mesa, e odiamos compartilhar.
E odiamos aqueles com quem devemos compartilhar nossa identidade.
Buscamos nossas tribos.
Não apenas para ter um “nós”.
Mas porque exigimos um “eles”.
Devemos odiar.
Devemos destruir os outros.
Isso é o que significa ser humano.
-M. L. Harrow

Cora estava caindo.


Ela não sabia para onde. Ela não sabia por quanto tempo. Mas quando a
escuridão passou por ela, ela pôde distinguir formas que mal eram
discerníveis. Elas estavam fora de vista e se movendo rápido demais para ela
entender o que estava vendo. Mas não importava. Ela estava caindo.
Então, ela fez a coisa natural. Ela gritou.
Ela se perguntou se cairia para sempre.
Até o momento em que ela parou.
E a parada foi pior.
Dor. Queimando e apunhalando cada parte de seu corpo, ela não podia
fazer nada sobre isso, exceto sentir. Ela não conseguia nem gritar mais. Até
isso foi tirado dela. Todo o resto, incluindo seus pensamentos, se despedaçou
– sua mente estava silenciosa, exceto pela agonia. Era o tipo de sensação que
ela sabia que ficaria com ela. Mesmo que a dor em si fosse embora, a memória
perduraria.
Em algum lugar, fracamente, muito acima... Ela ouviu alguém gritar
seu nome.
Metal se projetava de seu corpo em lugares onde não deveria estar. Seu
peito, suas pernas, seus braços, sua garganta. Ela tentou respirar. Tentou
gritar em resposta à voz acima dela. Mas tudo o que ela podia fazer era
provar o sangue que inundou sua boca.
A escuridão cobriu os limites de sua mente, mas não chegou mais perto.
Ela sabia que não haveria nenhum alívio silencioso com ela.
Ela não podia morrer. Seu corpo estava tentando curar o dano, mas ela
não conseguia se mover. Ela não conseguia sair da estrutura que a empalou.
Ela estava presa.
Honestamente, ela preferia a queda.

Normalmente, Cora adorava sonhar. Durante toda a sua vida, os


sonhos tinham sido divertidos. Ela nunca tinha sido realmente incomodada
por pesadelos. Não, pelo menos, até que Duncan a tivesse machucado. Nos
anos seguintes, parecia que tudo o que ela podia fazer era reviver aquele
momento terrível em seus sonhos. Mas, lentamente, esses pesadelos foram
diminuindo, tornaram-se menos frequentes e sonhar tornou-se uma
experiência agradável novamente.
Até que ela veio para Harrow Faire.
Agora, seus sonhos eram um pé no saco pra caralho.
Ela não conseguia dormir. O último a acordou, e então ela se revirou
por um tempo, tentando ficar confortável. Ela olhou para o teto de painel de
madeira do vagão por uma hora antes de finalmente escapar de baixo do
braço de Simon. Ele fez um barulho resmungão e lamentoso, mas rolou e
começou a roncar baixinho novamente.
Ela sorriu e o observou por um longo momento. Ele era mau. Mal puro
e não adulterado. Mas cara, ele era adorável ao mesmo tempo. Isso dizia mais
sobre ela do que provavelmente sobre ele. Ela estendeu a mão e gentilmente
acariciou seu cabelo escuro e encaracolado.
Mau. Mas... Não ao mesmo tempo. Ele era estranhamente atencioso da
maneira mais estranha. Ele era doce com ela. Ele era engraçado. Ele a fez rir e
sorrir mais do que qualquer outra pessoa já fez em sua vida.
E ele a ajudou a cometer assassinato. O que dizia “eu me importo com
você” mais do que isso?
Ela se encolheu com a memória do que tinha feito com Duncan. Ela não
se arrependia. Mas ficou de uma forma estranha. Não era exatamente uma
percepção confortável – descobrir que ela era capaz de matar alguém.
Saindo da cama, ela se vestiu. Ela podia ouvir a chuva batendo no teto
do vagão e batendo nas janelas. Seria bom andar na chuva,
independentemente de ela ficar encharcada. Depois de apenas algumas
semanas presa na Inversão com sua perturbadora falta de clima, ela havia
superado toda a situação e estava feliz por ter a coisa simples chamada – um
céu – de volta em sua vida.
Cento e uma coisas divertidas que ela nunca pensou que daria como
garantidas. Um céu. Vivendo e aprendendo. Ou não-vivendo e aprendendo. Ainda
não sei se contamos como vivos ou não.
Vestindo um casaco, ela silenciosamente abriu a porta e a fechou atrás
dela. Ela esperou um segundo. Quando as luzes do vagão não acenderam e
Simon não veio atrás dela, ela saiu do toldo sobre os degraus e foi para o
parque.
A chuva estava fria. Era setembro. Estava prestes a ser oficialmente o
outono. Ela esperava estar por perto tempo suficiente para ver as folhas
mudarem. O Halloween em Harrow Faire devia ser uma festa infernal. Ela
enfiou as mãos nos bolsos enquanto percorria o caminho entre as barracas de
jogos fechados e os brinquedos desativados. Apenas os postes de luz estavam
acesos.
Bem, os postes de luz e a gigante e brilhante torre de observação.
Olhando para a estrutura, ela suspirou. Era o Coração de Harrow Faire.
E Mestre de Cerimônias tinha a Chave. A Chave que ela deveria arrancar de
suas mãos frias e mortas. Mas ela não queria cometer assassinato.
Eu não queria cometer assassinato até o momento em que cometi.
Eu sou tão hipócrita, porra.
Mas ela não matou Duncan. Na verdade, não. Ele saiu em uma maca na
parte de trás de uma ambulância. Mas ela tinha outras coisas para prestar
atenção além dos novos celulares das pessoas e seu salto no tempo. Porque
Duncan estava respirando. Ele estava boquiaberto com o mundo ao seu
redor.
Ela não o havia matado.
Ela tinha feito algo muito pior. Muito, muito pior.
Ela o havia destruído.
As luzes estavam acesas, mas não havia ninguém em casa. Ela havia
arrancado o motorista do veículo proverbial que era seu corpo. Então, ela o
empurrou através de um picador de madeira. Claro, o carro estava bem, e o
motor ainda estava funcionando, mas o motorista estava reduzido a
picadinho.
E foi ela quem fez isso. Não Simon. Ela sabia que se Simon tivesse
simplesmente o rasgado em pedaços, provavelmente teria sido um destino
mais gentil. Duncan sentiu-se dissolver em ácido proverbial, os pés primeiro.
E não havia mais nada dele para ir para qualquer tipo de vida após a morte –
se é que havia uma. O método de Simon teria sido mais violento, mas no
final... Mais misericordioso.
Ela olhou para as palmas das mãos. Ela estava encharcada agora, mas
ela não se importava. O frio não iria matá-la ou deixá-la doente. E era
catártico.
Destruí um homem para proteger alguém que amo.
Ela estremeceu com a memória de ver Duncan bater Emily contra a
parte de trás da tenda no meio do caminho. Ele iria machucá-la. Ficou claro
que ele tinha feito isso muitas vezes antes.
Cora fez isso para detê-lo.
Mas isso não era inteiramente verdade, era?
Porque se fosse esse o caso, ela teria concordado em matar Mestre de
Cerimônias por causa de seu amor por Simon. Passando as mãos pelo cabelo
molhado, ela suspirou. Havia uma diferença entre os dois cenários. Uma
coisa que se destacou em por que ela destruiria Duncan, mas não Turk.
Destruí Duncan porque o odiava.
Foi o ódio que a inspirou. Não amor.
Era simples assim.
Ela entrou em sua tenda e, ligando o interruptor, foi para o palco no
centro. Ela não tinha intenção de praticar, mas não sabia para onde ir.
Sentada na beirada do palco, ela se deitou de costas e olhou para as listras
azuis e pretas que convergiam acima.
Ela tinha visto a pequena Jane. Tommy. Seus amigos... Ela estava quase
agradecida por isso. Por saber que todos tinham estado bem. Eles não se
lembram de mim. Eu não sou uma perda para eles. Eu nunca existi.
— É melhor assim, você sabe.
Cora gritou.
Ela se sentou e rapidamente encontrou a fonte da voz. Palhaço. Lazarus.
A Faire. Tanto faz. Ele estava sentado na escada do palco ao lado dela.
— Pelo amor da porra, não faça isso!
Ela empurrou o ombro dele e caiu de costas.
Ele riu.
— Desculpe.
Ela o sentiu inclinar-se casualmente contra seu joelho. Pelo menos ele
não usava a maquiagem bizarra de caveira desde que Palhaço morreu e se
tornou parte da Faire. Ela também sabia que ele estava apenas usando aquele
corpo porque lhe dava algo familiar para conversar.
Considerando tudo, ela gostava de conversar com a Faire através do
rosto morto de Palhaço. As outras opções eram mais estranhas. Como se ele
fosse um monstro marinho gigante e retorcido ou algo assim.
— É melhor — reiterou. — Que eles se esqueçam de você. Você
realmente quer que as pessoas chorem por você? Sintam sua falta? Venham te
procurar e descubram que não pode ir embora?
— Não. Eu acho que não. É apenas uma coisa difícil de se acostumar – a
ideia de que eu realmente não existo.
— Você existe. Apenas... Não como você era. Mas como algo melhor.
— Melhor? Ou pior? Eu matei um homem ontem à noite. — Ela fez uma
pausa. — E pior ainda, eu gostei. — Ela estremeceu. — Gostei muito. Tipo...
De um jeito muito fodido.
— Eu sei. — Ele beijou o joelho dela. — Há uma razão pela qual eu
escolhi você.
— Porque eu fico excitada matando pessoas? — Ela levantou a cabeça
para encará-lo incrédula.
Ele riu.
— Não. Eu escolhi você porque você é forte o suficiente para carregar o
fardo por um longo tempo. Que talvez, apenas talvez, você não odeie ser
minha guardiã.
Ele balançou a cabeça e se apoiou nos cotovelos, chutando as pernas na
frente dele e olhando para o parque de diversões e a chuva torrencial. Estava
caindo com mais força agora, tamborilando no teto de tecido da tenda.
— Sempre me conformei com os fortes. Os resistentes o suficiente para
sobreviver por algumas centenas de anos. Mas eu nunca encontrei alguém
que pudesse... Não ver isso como um fardo em primeiro lugar. Eu nunca tive
um guardião que pudesse querer mais do que apenas poder. Dito isso... —
Ele riu. — Eu não pensei que você reagiria dessa maneira.
Ela o chutou no ombro. Não forte. Mas forte o suficiente para fazer seu
ponto.
— Você está fodido.
Ele riu alto, sorrindo para ela.
— Eu nunca neguei isso. Nem uma vez. Bem, pelo menos você tem
Simon, hein?
— Sim. — Cora deitou a cabeça para trás e olhou para a tenda. — Eu
acho.
— O que há de errado? Achei que você ficaria feliz depois de destruir
Duncan. Você teve sua vingança.
— Eu tive. Acho que é isso que está me incomodando. — Ela fechou os
olhos. — Eu não matei por amor. Eu matei por causa do ódio.
— Qualquer um que pensa que mata por amor é um tolo que se
engrandece. Todo mundo mata por causa do ódio. Isso é o que matar
significa.
— Eu suponho que sim.
Eles ficaram em silêncio por um longo momento antes que ela
percebesse algo.
— Ei, Lazarus?
— Esse é o meu nome agora? — Ele cantarolou. — Eu mereço por
aparecer para você neste corpo. Suponho que seja tão bom quanto qualquer
outro. Sim, Cora?
Ela o cutucou com o pé.
— Como posso tocar em você?
— Eu não sou um fantasma, você sabe. Sou real.
— Se alguém entrasse aqui e me visse, você estaria aqui? Ou eu estaria
totalmente insana?
— A realidade é subjetiva. — Ele fungou. — O que você vê é apenas a
luz refletindo nos objetos e sendo percebida por uma mente imperfeita e
inerentemente tendenciosa. E uma que é propensa a defeitos e
inadimplências.
— Responda a minha pergunta.
— Sim, você pareceria louca. Nosso vínculo não é forte o suficiente para
eu aparecer em forma física.
Ela soltou uma risada triste e colocou as mãos sobre os olhos.
— Excelente. — Eles ficaram em silêncio por um longo tempo. —
Quanto tempo eu te dei alimentando você com Duncan, Laz?
— Alguns anos no máximo. Ainda não tenho forças para outra
Inversão. Espero que não tenhamos que nos preocupar com isso. — Ele
suspirou. — Mas alguns anos para mim não são nada. Eu ainda estou
morrendo.
— Por que você não pode sobreviver com o que o Caminho das Trevas
lhe dá?
— Há uma grande diferença entre comer uma única mordida de
hambúrguer ou comer a vaca inteira de uma só vez. — Ele resmungou. —
Ainda mais quando você se sente culpado pelo pedaço do hambúrguer e o
divide com seus filhos famintos.
— É por isso que você ainda está alimentando identidade para a
Família?
— Se eu sobreviver, não quero fazer isso sozinho. O que é a vida eterna
sem ninguém com quem compartilhá-la? — Ele olhou para ela. — Cora...
Mestre de Cerimônias ainda precisa ser detido. Você precisa matá-lo.
— Eu sei. — Ela fez uma pausa. — Como eu sei que você não está
apenas brincando com minhas simpatias? E você não é secretamente algum
monstro terrível e malvado?
— Suponho que não saiba.
— Excelente.
Ela abaixou a cabeça.
— Você vai fazer isso?
Ela engoliu a pedra em sua garganta.
— Sim. Sim. Acho que vou. Se matei por Emily, por que não matarei
por Simon e todos os outros?
— Porque a ameaça não é real o suficiente para você ainda. Você não
odeia Mestre de Cerimônias da mesma forma que odiava Duncan. Estou
preocupado que, antes que tudo acabe, você possa muito bem odiar.
— O que isso deveria significar? — Levantando a cabeça, ela olhou para
ele. Ele estava olhando para fora da tenda, as linhas expressivas de seu rosto
desenhadas em um olhar de puro pavor. — Laz, o que vai acontecer?
— Não posso dizer com certeza. Mas se eu estiver certo, então... Você
deveria saber que eu não posso te salvar. Que eu sinto muito. Eu sinto muito
mesmo. Mas não posso. Estou fraco e morrendo. Eu sou pequeno. E nesse
lugar, não tenho poder.
Ela se sentou e se aproximou dele.
— Laz... O que vai acontecer?
Ele fechou os olhos e balançou a cabeça.
— Acredite ou não, eu me importo com você. Eu me importo muito
com todos vocês. Vocês são meus filhos. Minha família. É meu papel fornecer
para vocês. Garantir que todos estejam felizes. Eu fiz um trabalho terrível. Eu
ainda não entendo vocês, criaturas. Eu lhes dou todos os confortos que vocês
pedem. Mas a felicidade é muito mais do que isso, não é?
Ela estendeu a mão e colocou a mão no ombro dele. Ele estava quente
sob a mão dela, ele parecia vivo. Ela podia sentir o tecido ligeiramente áspero
de seu gibão de algodão de estilo antigo. Ele estava olhando para as mãos
agora, cutucando as unhas, e sua expressão era de... Dor. Ela franziu a testa.
Ele estava prestes a chorar. Ela podia ver a umidade em seus olhos.
O circo assassino gigante, antigo, maligno e devorador de humanos
estava triste. E isso de alguma forma partiu seu coração. Coisas assim não
deveriam sentir. Eles deveriam ser apenas terríveis, pesadelos, criaturas
sobrenaturais que transcendiam coisas tão pequenas e mesquinhas como
emoções. Mas ela se perguntou se o amor e a tristeza não eram tão pequenos,
afinal. Ela se mexeu e, estendendo a mão, o abraçou-o. Puxou-o contra ela e
apertou.
— Ei. Está tudo bem.
— Eu não acredito que esteja, Cora. Há coisas terríveis por vir. Coisas
monstruosas que nenhum de nós poderia sobreviver. — Ele se inclinou em
seu abraço, agarrando seus braços, segurando-a. — Eu não quero que você se
machuque. E quando o fizer... Não poderei salvá-la.
— Então eu não vou pedir para você tentar. Eu vou reclamar com outra
pessoa.
Ela tentou animá-lo e claramente falhou.
— O problema não é que eu não possa ajudá-la. O problema é que não
sei se alguém pode. — Ele se afastou dela e se levantou, andando alguns
passos para longe. — Se meus medos estiverem corretos, se minhas previsões
forem verdadeiras, então não há nada que alguém possa fazer, Cora.
Ela sentiu um frio se instalar sobre ela.
— A torre.
Ele assentiu fracamente.
— Dentro daquele lugar, ninguém tem poder a não ser o portador da
Chave. Se ele não quer deixar ninguém entrar... Ou ninguém sair... Isso é um
direito dele. E ninguém pode desafiá-lo.
— E o único que pode matá-lo sou eu. Então, se ele me colocar naquele
lugar, então, ele está seguro.
— Sim.
— Então por que ele ainda não fez isso? Por que ele não fez isso no
momento em que soube que eu era uma ameaça?
Lazarus sorriu. Não foi gentil. Era um sorriso mortalmente frio.
— Porque o que você deve perceber... É que ele ainda acredita ser o
herói. — Ele se virou para olhar para ela, e todo o calor em sua expressão se
foi. — Ele ainda não consegue aceitar que não existem heróis e vilões neste
mundo. Há apenas nós... E eles.

Simon acordou sozinho na cama.


Foi assim que ele acordou por cento e trinta e cinco anos. Era como ele
tinha acordado por trinta e um anos antes disso. Ele tinha sido um verdadeiro
solteirão na sua época. Mas um artista com um apego vago à sanidade não se
transformava em um solteirão desejável, mesmo rico e conectado como tinha
sido.
Mas nas últimas semanas, ele se acostumou com o calor de um corpo
contra o seu. O cheiro de seu xampu. De lilás e da doçura dela. E quando ela
se foi, quando ela estava desaparecida, ele encontrou algo dolorido dentro
dele.
A noite passada tinha sido gloriosa. Ele nunca quis, nem nunca adorou,
alguém tanto quanto ele queria Cora enquanto a observava drenar a vida do
cretino do Duncan. Toda a cena diante dele tinha sido decididamente erótica.
E quando ela se sentou em cima dos quadris de Simon em sua cama e imitou
a pose que ela tinha feito com seu agressor tão perfeitamente, ele se
perguntou se ele estava prestes a morrer.
Ele honestamente não se importou.
Porque ela era uma criatura de pura arte. Pura majestade. E ele tinha
compartilhado o êxtase do momento. Ele não poderia ter escolhido uma
maneira pela qual preferia morrer.
Eu a amo.
Eu não deveria. E eu odeio isso. Mas eu a amo.
Eu a amo. Mesmo que destrua o que resta da minha mente.
Ele estendeu a mão para ela sem abrir os olhos e encontrou a cama
vazia. Ele não a ouviu fazendo barulho. Tudo o que ele podia ouvir era a
chuva contra o telhado e as janelas. Ele não cheirava comida cozinhando. Ele
nem sentiu cheiro de café. Não era muito comum Cora ficar de pé sem sua
dose de cafeína.
Significava que algo estava errado.
Ou logo estaria errado.
Ele voou da cama. Ele verificou o banheiro e o encontrou vazio.
Rosnando, ele vestiu sua roupa. Eles estavam em um cenário precário, e
agora não era hora de sair vagando sozinha! Ela deveria saber o perigo que
eles corriam! Não, ela não tem motivos para saber. Ela ainda é uma criança aqui.
E agora vou estragar meu belo casaco!
Ele abriu a porta do vagão, pretendendo correr para a Faire para
encontrá-la. Ela não poderia ter ido longe. Eles estavam presos.
Ele parou.
Ele não estava sozinho.
Encharcado pela chuva, um pequeno grupo da Família estava na base
dos degraus. Liderado, em grande parte, por Turk. Simon zombou.
— Você parece um cachorro molhado.
— Pegue-o. — Foi um comando simples. E ninguém hesitou.
Simon lutou. Ele tirou a mão de Bruce. Ele lutou muito, e lutou bem...
mas um soco forte na têmpora de Jack o fez cambalear para o chão. E então
acabou. Mestre de Cerimônias levantou a bota e pisou em seu pescoço.
Houve um estalo e tudo escureceu.
Mas não antes de perceber – com uma quantidade não pequena de ódio
e horror – que seu último pensamento antes que a escuridão o levasse não era
por sua própria segurança.
Era pela de Cora.
Cora olhou para cima quando alguém entrou em sua tenda. Ela
esperava que fosse Simon. Ou pior, Mestre de Cerimônias. Ela sabia que eles
estavam vindo para ela, e mais cedo ou mais tarde. Ela havia destruído um
homem. Sem mencionar toda a coisa de “ameaça existencial à missão justa de
Turk”.
Mas não foi um homem alto que entrou na tenda – magro ou largo. Era
uma velhinha baixinha. Ela sorriu para Cora. Era a Adivinha.
— Oh. Oi, Maggie. — Cora inclinou a cabeça curiosamente para a velha.
— Eu não estava esperando você.
— Ninguém espera o destino quando ele chega. — O forte sotaque de
Jersey da mulher ainda era divertido para Cora, mas agora não era hora de rir
ou provocá-la sobre isso. — Mestre de Cerimônias já levou Simon, você sabe.
Eles estão a caminho daqui para pegar você em seguida.
Cora se encolheu.
— Eu deveria estar lá com ele.
— Por que? Então você poderia ter visto Simon levar uma pancada? —
Maggie bufou e caminhou até o palco e se sentou ao lado dela. — Vocês
jovens e sua necessidade de serem tão sangrentos sobre tudo.
— Simon e Turk são mais velhos que você.
— Eu suponho que sim. — Ela deu de ombros. — Me sinto mais velha.
Às vezes sinto a idade de toda a Faire. Palhaço e eu tínhamos isso em comum,
ainda que por razões muito diferentes.
Cora ficou quieta e olhou pela entrada da tenda, esperando para ver
uma multidão com forcados vindo para ela. Ela também não sabia como
responder a nenhum comentário sobre Palhaço.
— Eu sei quem ele era. — Maggie deu um tapinha em seu joelho. — Eu
sei o que ele te deu. Eu sei o que Harrow Faire provavelmente lhe pediu para
fazer. Também sei quem era aquele homem que você matou ontem à noite e o
que ele fez com você há tanto tempo. Você não precisa se fechar ao meu
redor. A Adivinha vê tudo.
Isso foi meio que um alívio, mesmo que fosse um pouco assustador.
— Turk vai me jogar na torre, não é?
— Ele terá que fazer um julgamento primeiro. Essas são as regras. Você
vai se levantar e dizer sua parte. Não tenho certeza de quantas pessoas vão se
juntar ao seu lado. Eu vejo tudo, mas isso não significa que eu saiba tudo.
— Eu pensei que sua coisa era ver o futuro? — Cora disparou para a
outra mulher uma sobrancelha erguida.
— Esse é o grande erro de todos. Você sabe como é fácil prever o futuro
quando você sabe tudo o que é? Um, mais um, mais um é igual a quê? —
Maggie ergueu uma mão áspera e desenhou uma linha no ar na frente dela.
— É fácil ver todos os padrões. Mas quando as coisas enlouquecem, quando a
resposta não é três, mas dezessete, nem mesmo eu posso dizer o que vai
acontecer a seguir. Momentos como este são... Emocionantes. Quando tudo
está no ar.
— Eu odeio isso.
Cora apoiou os braços nos joelhos. Ela não conseguia tirar os olhos da
abertura da tenda. A qualquer minuto, tudo ia dar errado. De novo.
— Claro que você odeia. Você está no meio disso. — Maggie suspirou.
— Não é por isso que estou aqui. Não tenho nada a dizer sobre o tumulto que
está prestes a acontecer. — Ela acenou com a mão com desdém. — Sou
neutra. O destino não escolhe lados. Se isso acontecesse, oh, todo o inferno se
soltaria. — Ela riu.
— Então o quê? Quero dizer, eu aprecio o aviso social pré-tortura e tal,
não me entenda mal.
Cora sorriu.
Maggie riu.
— Você tem estado muito perto de Simon. Você está pegando o senso
de humor dele.
— Não. Sempre tive esse senso de humor. Ele apenas encoraja.
— Vocês dois são adoráveis juntos, você sabia disso?
Maggie enfiou a mão no casaco acolchoado e tirou um maço de cigarros
antigos e um antiquado isqueiro Zippo.
Cora olhou para os cigarros antigos.
— Você tem esse maço há sessenta anos, ou a Faire os cria assim?
Maggie gargalhou.
— O último. Fumo um maço por dia. Sempre tem. Achei que seria o
que me mataria. Eu estava errada nisso, hein?
Ela colocou um cigarro entre os lábios e utilizou o Zippo. Depois que o
dela estava brilhando, ela ofereceu a Cora um do maço.
— Não, obrigada. Estou bem.
— Melhor. Coisas feias e malditas. — Maggie deu de ombros. — Mas
quando você está viciada, você está viciada. — Ela fez uma pausa. — Estou
aqui por causa de Simon. Não que eu me importe de conversar com você.
— Oh?
Maggie assentiu.
— Um conselho para vocês. Uma última palavra minha antes que você
esteja por sua conta. Ou vocês fazem isso juntos, ou não fazem nada.
Cora levantou uma sobrancelha para ela.
— O que isso deveria significar?
— Significa exatamente o que eu disse. — Maggie sorriu para ela por
trás do cigarro. — Quando chegar a hora, quando você tiver sua chance, você
terá que confiar nele.
— É de Simon que estamos falando. Não há como confiar nele. — Ela
correu os dedos ao longo da borda do palco, traçando algumas das espirais
menores pintadas ali. — Eu o amo, e ainda não acredito em metade das
merdas que ele diz.
— Eu sei. É por isso que estou aqui. É por isso que eu tinha que dizer o
que tinha a dizer. — A ponta do cigarro da velha brilhava intensamente
quando ela deu uma tragada. — Eu devo ir — disse ela em uma exalação de
fumaça que se enrolou em torno dela. — O grupo está a caminho. Eu não
gosto de ver as pessoas serem levadas. Espero que não se importe.
— Excelente. — Cora se encolheu. — Não. Está bem. Eu acho.
Ela esfregou a nuca.
— Apenas lembre-se do que eu disse. Você saberá quando for
importante.
— Obrigada. Eu acho.
Maggie riu enquanto se levantava com um grunhido.
— Ah, não me agradeça. Nunca me agradeça. Eu sou apenas a
portadora de más notícias.
— Isso não foi tão ruim, considerando todas as coisas. Dizer-me
‘chegará um momento em que eu preciso confiar em Simon’ não é tão
terrível.
Maggie riu.
— Só porque você não sabe o que vai levar a isso.
E com isso, a Adivinha se foi.
Cora não ficou sozinha por muito tempo com as más notícias e seus
pensamentos sombrios. Talvez um minuto ou dois no máximo antes que uma
grande figura quase enchesse a entrada da tenda. Ela conhecia aquela
silhueta à primeira vista. Ela se levantou e se recusou a recuar. Ela não
correria mais.
Mesmo que ela estivesse apavorada.
— Olá, Turk.

Mestre de Cerimônias apertou o último nó nas cordas que prendiam


Simon e Cora ao poste no centro de sua tenda de escritório. Ele os teria
arrastado para a torre imediatamente, mas... regras eram regras, e leis eram
leis. E havia um código na Família que não devia ser quebrado.
Qualquer um condenado à torre deveria ser ouvido por seus pares. Era
para haver uma votação com todos presentes.
Normalmente, esse era o caso.
Mas Turk tinha um problema.
Realizar um julgamento significaria que Cora teria a chance de dizer à
Família que ele planejava matar Harrow Faire de fome. Ele tinha fé que
poderia conter a ira dos outros por uma semana, mas agora as coisas haviam
mudado. Porque ela havia alimentado a criatura com a identidade daquele
homem, ela havia estendido a vida de Harrow Faire. Por quanto tempo, ele
não sabia. Mas seria tempo suficiente para que aqueles como Rudy e
quaisquer outros que pudessem ficar do lado de Cora se levantassem contra
ele.
Turk passou a mão no bigode e sentou-se na cadeira. A madeira rangeu
embaixo dele quando ele descansou o cotovelo na mesa e olhou para os dois
infelizes e inconscientes indivíduos à sua frente. Ele se arrependeu de ter
socado Cora com força suficiente para nocauteá-la. Mas ela estava gritando
por ajuda, e ele não podia deixá-la perturbar o resto da Família. Ainda era
cedo, e ele esperaria até o sol nascer antes de chamar os outros para julgar.
Mas o que fazer?
Nenhuma de suas escolhas era boa.
Ele poderia amordaçá-la, mas ela era permitida pelo código deles para
fazer um caso para si mesma. E assim que o fizesse, ela iria virar o suficiente
da Família contra ele para que pudesse haver problemas. Seria uma
inconveniência – não havia nada que eles pudessem realmente fazer contra ele
– mas ainda assim seria um problema.
Ele poderia lançar o Marionetista e a Contorcionista na torre sem
julgamento, mas isso quebrava o código deles.
Suspirando pesadamente, ele fechou os olhos. Nada disso era sobre o
homem cuja identidade foi drenada. Sim, era contra suas leis matar um
cliente. Mas aquele pobre homem partiu com os olhos arregalados e o coração
batendo. Não havia leis sobre o roubo de identidade – e essa era a razão por
trás de toda a cruzada de Turk para acabar com todos eles.
Não era sobre aquele homem.
Era sobre a morte de Harrow Faire.
Cora tinha tomado a identidade daquele homem – o drenado para
alimentar o monstro. Isso significava que Turk era sua próxima vítima. E com
Simon sussurrando em seu ouvido e apoiando sua causa, eles eram uma
ameaça. Uma ameaça muito perigosa.
Não cheguei tão longe para desistir agora.
Mas que tipo de homem ele era se quebraria sua honra com seu último
suspiro? Se, quando as coisas finalmente se tornassem difíceis para ele, ele
sacrificaria sua dignidade e afundaria nas mesmas profundezas daqueles
contra quem se opôs, que tipo de homem ele era?
Mas de que serviriam todos os anos de sacrifício se ele a deixasse contar
a verdade à Família?
Eles não podiam saber. Eles não podiam ser autorizados a saber. Não
até talvez seu último dia.
Por outro lado, Cora não podia ser privada de seu direito de ser
julgada. Sua destruição do homem deu a Turk a oportunidade de colocá-la na
torre sem ter que inventar um crime. Por isso, ele estava agradecido. Mas isso
o deixou na mesma situação desconfortável e impossível.
Ou ele quebrava seu código de ética e a jogava na torre sem um
julgamento adequado e sem causa... Ou ele seria forçado a olhar para a
Família que ele amava e dizer a todos que ele os havia condenado à morte.
Eles não representavam nenhuma ameaça real para ele. Mesmo que eles
o prendessem em uma das caixas de Louis e o jogassem no lago, eles não
poderiam tirar a chave dele. Só poderia ser transferida voluntariamente pelo
proprietário ou tomada após sua verdadeira morte. E ninguém poderia matá-
lo.
Ninguém além de Cora.
Era trágico para ele que ela fosse colocada com tal fardo. A garota não
havia feito nada de errado com ninguém desde sua chegada até a noite
anterior. Ela não merecia uma única grama do que seria pago a ela. Ela
parecia ser uma garota gentil e inteligente. Apesar de sua escolha em homens.
Mesmo isso pode não ser culpa dela. Eles estão ligados.
Turk fechou os olhos e se apoiou pesadamente na mesa. Ele estava tão
cansado de tudo isso. Ele permaneceu como o soldado “corajoso” por tanto
tempo. A última linha de defesa contra um monstro que atormentava a Terra
desde o início dos tempos. Ele queria que isso acabasse. Em breve, acabaria.
De uma forma ou de outra.
Ele tinha estado tão perto!
Maldita seja por alimentar a fera, Cora. Maldita seja. Que o profeta amaldiçoe
seu nome!
Mas ele poderia realmente culpá-la por buscar sua própria
sobrevivência? Ele poderia culpar Rudy por querer alimentar seus animais?
Não. Eles eram lobos raivosos. Eles não tinham culpa por estarem famintos.
— Querido?
Ele olhou para Amanda enquanto ela entrava na tenda. Ela era linda,
mesmo em seu pijama descombinado e sobretudo úmido. Suas roupas
coloridas e histericamente contrastantes sempre o faziam sorrir.
— Olá, meu amor.
Amanda olhou para Simon e Cora e franziu a testa.
— Ainda me sinto tão mal por ela.
Ela caminhou até Turk, e ele estendeu o braço para ela. Ela se
empoleirou em sua coxa e se inclinou em seu peito, e ele a abraçou com um
leve sorriso.
Não importa quão sombrios fossem seus pensamentos, ela sempre seria
sua luz brilhante.
— Assim como eu. Mas não sei mais o que fazer. Eu esperava que ela
ficasse do meu lado contra Harrow Faire. Mas a noite passada mudou tudo
isso.
Amanda encostou a cabeça no pescoço dele.
— Ela vai precisar de um julgamento.
— E quando ela falar, ela vai colocá-los todos contra mim. Se a Família
a libertar antes que eu possa colocá-la na torre, nós perdemos. — Ele repetiu
seus pensamentos em voz alta. Às vezes isso o ajudava a resolver as coisas. A
pobre Amanda tinha sido forçada a ouvir muitas conversas unilaterais em
seu nome. — Se eu a colocar na torre sem julgamento, então... Eu sou tão
ruim quanto aqueles que eu procuro superar.
— Se ela contar a verdade à Família e eles ficarem do lado dela, você
estará em perigo.
Amanda franziu o cenho.
Ele encolheu os ombros.
— Eles não podem me matar, você sabe disso.
— Mas ela pode... E se eles a ajudarem a fazer isso?
Turk piscou. Ele não tinha pensado nisso. Sim, a Família não poderia
matá-lo. Mas eles poderiam segurá-lo enquanto Cora o fazia.
— Oh.
— Às vezes você realmente não pensa em tudo, não é? — Ela sorriu
tristemente e beijou sua bochecha novamente. — Então coloque-a na torre
sem julgamento. Diga aos outros que não foi por causa da destruição daquele
homem, mas porque ela é uma ameaça. — Amanda bateu o dedo na ponta do
nariz dele. — Você é Mestre de Cerimônias. Você faz as regras.
— Os outros não vão ver dessa forma.
— Os outros não poderão fazer nada para detê-lo. E eles vão se acalmar
com o tempo. Ninguém ficará triste ao ver Simon enjaulado. Eles vão xingar e
reclamar de Cora, mas você pode simplesmente explicar que havia assuntos
mais perigosos a serem considerados. A culpa é de Simon. Diga que eles
estavam conspirando contra você, e a noite passada foi a prova disso.
Turk resmungou.
— É uma brecha.
Amanda sorriu tristemente.
— Mas também é a verdade. Isso parte meu coração, mas não posso te
perder. Eu não vou deixar eles te machucarem.
Ele fechou os olhos e passou os braços ao redor dela. Ela era tão menor
do que ele, que às vezes ele sentia como se estivesse segurando um bichinho
de pelúcia. E ele a chamou de seu ursinho de pelúcia muitas vezes.
— Suponho que seja a verdade. Eu não tinha considerado colocar dessa
forma. Há honra nisso.
— Você e sua honra. — Ela riu. — Vai te matar algum dia.
— Irá. Mas posso morrer sabendo que fiz isso como o melhor homem.
Amanda colocou os braços sobre seus ombros e ao redor de seu pescoço
e o beijou suavemente.
— Eu vou buscar Jack. Vamos levá-los para a torre agora, antes que
todos acordem e esperem um julgamento.
Mestre de Cerimônias assentiu levemente. Ele não queria fazer isso.
Mas ele não via outro caminho.
Simon era um monstro e merecia cada grama de dor que já foi paga a
ele. Mas Cora... Ela foi vítima de Harrow Faire. Não somos todos vítimas de
nossa circunstância? Tudo o que resta é decidir se queremos subir acima ou afundar
abaixo do que nos é feito.
Cora tinha destruído aquele homem. Simon ajudou. Ela tinha escolhido um
lado.
Se eu os deixasse por conta própria, eles destruiriam mais cem mil. Eles devem
ser parados. Harrow Faire deve ser parada. Para o bem de toda a humanidade.
Ele beijou Amanda com ternura. Sua pequena voz da razão, capaz de
ver através de seus pensamentos rodopiantes como um farol chamando um
navio para a praia na noite.
— Vá. Vou pegar a Chave. Teremos que ser rápidos sobre isso.

Cora acordou lentamente. Ela estalou o pescoço de um lado e depois


para o outro, ouvindo-o estalar. Ela se encolheu ao fazê-lo. A memória de ver
o enorme punho de Mestre de Cerimônias vindo em direção ao seu rosto ia
ser algo que perduraria por um longo tempo. Pelo menos só levou um soco.
Ele bateu forte.
— Bom dia, docinho.
Ela levantou a cabeça e foi se virar na direção da voz, mas descobriu
que não conseguia se mexer. Ela estava amarrada a um poste, sentada de
costas para ele, as cordas prendendo-a à madeira. Cordas. Não cordas
invisíveis. Ela virou a cabeça e viu um pouco de terno carmesim com listras
pretas atrás dela.
— Simon?
— A última vez que verifiquei, sim.
Ela revirou os olhos. Sempre com uma resposta espertinha.
— O que aconteceu? Turk entrou na minha tenda e me derrubou.
— Eles me pegaram primeiro. Você achou que iríamos nos safar com o
que você fez com Duncan? — Ele riu. — Você é tão adoravelmente ingênua.
Existem regras contra matar clientes.
— Mas ele está tecnicamente vivo. Nós não o matamos.
— Oh não. Isso é verdade. Mas fizemos algo muito pior, Cora, querida.
Você mostrou a Mestre de Cerimônias em termos inequívocos que não tinha
mais medo de usar seu novo dom. Ontem à noite você deixou bem claro o
lado que você escolheu.
Ela fechou os olhos e suspirou. Ela sabia que haveria consequências do
que ela tinha feito. E Turk estava certo. Ela tinha escolhido um lado.
— O que acontece agora?
— Nós somos julgados na frente da Família. Você terá sua chance de se
defender. Estou ansioso para ver os olhares em seus rostos enquanto você
explica exatamente quem era aquele merdinha que enviamos de Harrow
Faire em uma maca. Além disso, esta é sua chance de fazer o seu caso,
docinho. Esta é a sua chance de olhar a Família nos olhos e dizer a eles que
Mestre de Cerimônias está nos condenando a uma morte lenta.
Cora descansou a cabeça contra a madeira.
— Acho que deveríamos ter feito algo ontem à noite. Provavelmente era
estúpido ir para a cama e fingir que nada aconteceu. Eu só... Eu não estava
pensando com clareza.
Ela se sentiu bêbada depois de matar Duncan, para dizer o mínimo.
— O que exatamente poderíamos ter feito? Mesmo que fossemos buscar
Rudy ontem à noite, nós três não poderíamos enfrentar o resto da Família. Os
outros teriam visto isso como uma revolta, e você nunca teria sido o centro
das atenções. Não. Isso está indo perfeitamente, e exatamente como eu
planejei. Você precisa da chance de falar com eles. Você precisa dizer a eles a
verdade, e eles precisam ouvir isso de você. Este julgamento é a
oportunidade perfeita.
— Eu suponho que sim. Acho que só gostaria de não estar amarrada a
um poste novamente. — Ela fez uma pausa. — E você não planejou nada,
Simon.
— Eu planejei sim.
— Mentiroso. — Ela virou a cabeça e tentou encará-lo, mas mal
conseguia vê-lo. — Você não tinha ideia de que Duncan estava aqui!
— Eu ia encontrar alguém para você matar. — Ele fungou com desdém.
— A Faire acabou por me vencer. — Ela ouviu um estalo que soou como
metal. — Eu gostaria que eles não trancassem minhas mãos nesta caixa
estúpida novamente.
— O quê?
— Louis fez isso há muito tempo. Você acha que eu tenho sido uma
praga em Harrow Faire por cento e trinta e cinco anos e eles não teriam
inventado uma maneira de neutralizar meu poder? Por favor.
— Huh. — Ela nunca tinha realmente pensado sobre isso. Ela encostou
a cabeça no poste. — Então, nós passamos por este julgamento, eu defendo
meu caso... E então a Família vota?
— Duvido muito que chegue tão longe. Uma vez que você diga a eles
que o Sr. Harrow nunca ocupou o vagão vinte e um, e que o pão mofado em
uma cartola esteve dando as cartas esse tempo todo, eles vão se revoltar.
Haverá pânico, raiva, dissidência, uma briga começará... E teremos a chance
que você precisa para matá-lo. É perfeito. É exatamente como eu planejei.
Ela suspirou. Ela sabia que ele estava inventando isso, mas não havia
nenhum ponto em discutir com ele. Quando um movimento chamou sua
atenção pelo canto do olho, ela olhou para ver a sombra de Simon na parede
perto deles, torcendo suas mãos em garra.
— Ah, oi, coração. — Ela sorriu. — Estou bem por enquanto.
A sombra franziu a testa e estendeu a mão para ela. Mas não importa o
quanto ele tentasse, ela sabia que eles não podiam se tocar. Não aqui, de
qualquer forma. Ele parecia tão triste e desamparado que partiu seu coração.
— Eu sei. Eu também não gosto disso. — Ela tentou tranquilizá-lo,
mesmo que ela mesma não se sentisse melhor. — Mas vai ficar tudo bem. Vai
dar tudo certo.
— Não minta para ele. É cruel. Ele não sabe de nada, pois tem a
inteligência de uma rutabaga cozida no vapor. E, pela última vez, pare de
incentivá-lo.
Simon puxou as cordas novamente, o que as apertou ao redor do peito
dela.
Ela grunhiu de dor.
— Ai, pare com isso.
— Eu tive uma coceira.
Por alguma razão, sua resposta indignada a fez rir. Ela abaixou a cabeça
e fechou os olhos. Ali estava ela, amarrada a um poste com Simon Waite. O
Marionetista e o demônio insano por quem ela se apaixonou.
Ela estava prestes a ser julgada na frente de um bando de aberrações de
circo semi-mortos e semi-imortais por destruir a identidade do homem que
ela amara e que a estuprara. E que esteve prestes a estuprar sua amiga.
Ou, pelo menos, esteve prestes a estuprar uma pessoa que não era mais
sua amiga, porque Harrow Faire havia comido tudo o que era “Cora Glass” e
a removido do resto da realidade.
Ah, e agora ela tinha que descobrir como destruir Mestre de Cerimônias
para sobreviver.
De uma forma sombria, doente e sádica, era muito engraçado.
Então ela riu.
As cordas se moveram quando Simon se moveu atrás dela.
— Você perdeu a cabeça? Se sim, posso te dar algumas dicas. Não é tão
ruim quando você se acostuma com os sapos invisíveis.
Ela riu mais forte. Ela tinha certeza de que ele estava brincando sobre os
sapos, mas apenas um pouco. Ela inclinou a cabeça contra o poste e fechou os
olhos.
— Simon?
— Sim, docinho?
— Obrigada por me fazer rir.
— Ah, para. — Eles ficaram em silêncio por um longo momento antes
que ele falasse. — Minha sombra lhe manda lembranças. Pronto. Agora, por
favor, fique em silêncio, seu borrão de tinta glorificado e tagarela?
Cora riu.
— Eu também te amo, sombra de Simon. Obrigada.
— Ele nunca disse isso.
— Sim, ele disse. Eu sei que ele disse. — Ela conseguiu cutucar Simon
nas costas com o cotovelo. — Você está apenas sendo um idiota sobre isso.
Ele ficou quieto por um longo tempo. Quando ele finalmente quebrou o
silêncio, o humor havia deixado sua voz. Assim como o aborrecimento.
— Por que você o ama, Cora?
Ela fez uma pausa. Ela sabia a pergunta que ele estava realmente
fazendo. Por que você me ama? Os dois eram o mesmo homem, apenas pedaços
de um todo. Sua sombra era sua dor, separada de sua mente para protegê-lo
do peso de tudo. Ela se contorceu o máximo que pôde e desejou poder ver o
rosto dele. Mas de alguma forma, não olhar para ele tornou as coisas mais
fáceis de uma maneira estranha. Ela podia apenas... Falar. E não ter que ver
aqueles olhos preto-vermelho-branco olhando para ela.
— Suponho que há algo atrativo na escuridão. Algo sedutor. Algo sobre
o perigo que é simplesmente... Provocante.
— Não, isso é porque você nos fode. Eu não estou perguntando isso.
Estou perguntando por que você o ama, Cora. O que poderia valer a pena
gostar em algo tão quebrado, tão distorcido e tão violento?
Ela fechou os olhos novamente.
— Ele me faz sorrir. Você sabe que eu realmente não fui feliz uma vez
nos últimos cinco anos da minha vida? E quem sabe por quanto tempo antes
disso? Eu não... Tinha uma vida. Eu não tinha valor. Eu era um desperdício
de ar e carne sentado atrás de um balcão contando moedas e descontando
cheques. Mas ele viu em mim algo de valor. Algo valioso. — Ela não estava
apenas falando sobre sua sombra. Ela suspeitava que ele sabia disso. —
Mesmo que fosse apenas como um lanche. — Ela riu. — Foi a primeira vez
que alguém desde Duncan olhou para mim e... Me quis.
— Sim, mas...
— Shhhh. — Ela o cutucou novamente. — Deixe-me falar. — Quando
ele não a interrompeu novamente, ela continuou. — Ele é engraçado. Não,
correção, ele é histérico. Eu me vejo incapaz de parar de sorrir perto dele,
mesmo sabendo que não deveria encorajá-lo. Claro, ele é perverso. E sombrio.
E violento. Mas também há uma beleza dentro dele. Ele é perspicaz. Ele vê
através do absurdo das pessoas, mesmo que ele só faça isso para zombar
delas. Ninguém poderia pintar e desenhar o mundo ao seu redor tão
maravilhosamente sem esse tipo de percepção. Ele vê o mundo em toda a sua
elegância grotesca. E há tanta dor lá, bem no fundo dele, que me faz querer
estender a mão e apenas... Torná-la um pouco menos terrível para ele. Ele é
solitário, e eu também. Ele é gentil comigo. Ele se preocupa comigo. Ele é
atencioso das maneiras mais estranhas. É por isso que eu o amo, Simon. —
Ela sorriu fracamente. — E é por isso que eu te amo.
Simon ficou em silêncio por um longo tempo.
— Cora... Eu...
A aba da tenda se abriu quando Turk, Amanda e Jack entraram. Simon
riu.
— Ah, bom. Agora a diversão pode realmente começar. — Ele
endireitou as costas, e puxou as cordas ao redor dela, e ela grunhiu
novamente de dor. — Onde estão os outros? Vamos começar o julgamento,
homem gordo?
Turk ergueu-se sobre eles, em seu traje completo de Mestre de
Cerimônias. Olhos escuros encontraram os dela. Eles estavam frios e duros.
Não havia simpatia, empatia... E nenhum perdão a ser encontrado neles.
— Não haverá julgamento.
— O-O quê? Espere! — Simon gaguejou. — Há sempre um julgamento.
Você não pode... É contra as regras...
— Você e Cora têm conspirado contra mim e a Família em segredo.
Qualquer chance de falar com eles será usada para causar mais agitação. Não
darei a nenhum de vocês essa chance. — Ainda assim, Turk estava
observando Cora. — Sinto muito, Srta. Glass. Sinto muito mesmo.
— Jack, Amanda, vocês me conhecem. — Cora lutou contra as cordas.
Ela não sabia o que a esperava na torre, mas sabia que não seria bom. — Por
favor! Me deem uma chance de explicar.
— Amordacem os dois — instruiu Turk a Amanda e Jack. — Mate-os
novamente se for preciso. Precisamos fazer isso rápido.
Jack caminhou até ela e se agachou ao lado dela, uma bandana na mão.
Ele franziu a testa para ela.
— É verdade, Cora? É realmente verdade? Você estava planejando
matar Mestre de Cerimônias?
— Eu... Sim... Mas... Jack, ele está... Ele está tentando matar a todos nós.
Ele está tentando matar a Faire. Eu prometo a você, estou apenas tentando
salvar a todos. — Talvez se conseguisse convencer Jack, tudo ficaria bem. Ela
contaria toda a verdade ao Aparelhador, e então ele a libertaria. — Estou
implorando, por favor, me escute.
Jack sorriu para ela com tristeza. E então seu coração, que tinha inflado
um pouco de esperança, afundou em seu estômago.
Ele sabia.
Jack sabia.
— Nós não deveríamos existir, Cora... Eu sinto muito. Sinto muito que
você não entenda.
Ele amarrou a mordaça em torno de sua cabeça e empurrou o tecido em
sua boca. Ela não lutou contra isso. Não havia sentido. Não havia ninguém lá
que pudesse ajudá-la.
Simon não foi tão quieto. Ele lutou e se debateu, xingando e
amaldiçoando Amanda enquanto ela tentava amordaçá-lo. Ela ouviu um
barulho doentio atrás dela e soube que Amanda havia quebrado o pescoço do
Marionetista.
Mas Cora não se incomodou em lutar. O que ela poderia fazer contra
Jack, Mestre de Cerimônias e Amanda? Nada. Ela era flexível. Excelente. Ela
estava impotente, e com as mãos amarradas na frente dela, ela não podia
tocá-las. E com o pouco que ela entendia sobre sua conexão com a Faire,
drenar a identidade levava tempo.
Tempo que ela não teria.
Então ela ficou mole, e se deixou ser arrastada enquanto eles puxavam
ela e o corpo de Simon da tenda.
Ela só conseguia chorar.
Jack murmurava desculpas para ela, tentando se explicar. Mas ela não
estava ouvindo. Ela só conseguia olhar para a torre branca com todas as suas
lâmpadas queimando. Ela se destacava como um farol brilhante contra o céu
escuro. Ainda estava chovendo, e as lâmpadas piscavam através da névoa.
Era bonito. Era aterrorizante.
E agora... Era inevitável.
Simon sempre parecia estar com um dólar a menos e um dia atrasado
em todos os aspectos de sua vida. E hoje não foi diferente.
Ele acordou com os pés arrastando no chão. Eles vão arranhar meus
sapatos. Ele supôs que essa era a menor de suas preocupações, mesmo que
fosse a primeira a subir ao topo. Pela segunda vez em um punhado de horas,
seu pescoço foi quebrado. E isso era irritante, mas não ia ser a pior coisa feita
a ele naquele dia.
Eles estavam na porta da torre.
Ele lutou contra a vontade de vomitar.
E não havia nada que ele pudesse fazer a não ser observar turvamente
enquanto Mestre de Cerimônias enfiava a mão em seu casaco e tirava uma
chave. Ele destrancou o primeiro par de portas para revelar o conjunto que
esperava um pouco além dele.
Essas portas não eram normais.
Nem a chave que as abria.
Ele as tinha visto uma vez antes. Ele havia sido arrastado por elas trinta
e oito anos atrás, depois de libertar Hernandez de sua dor. Simon não
merecia a tortura então, e ele certamente não merecia a tortura agora.
Mas ele não podia nem gritar com eles com a mordaça na boca. Ele só
podia olhar para aquelas portas que estavam gravadas em sua memória.
Feita de um metal antigo, cada centímetro do portal bizarro estava
gravado com uma escrita arcaica e estranha cujas formas Simon mal
conseguia ver, muito menos entender. Quanto mais ele olhava para elas, mais
elas pareciam fugir dele. Como se estivessem tentando ser esquecidas.
E no centro de sua superfície havia uma forma, uma lacuna no padrão
tortuoso esculpido, como se parte dele estivesse faltando. E ele sabia o que
era.
A Chave para Harrow Faire.
Simon não tinha entendido na primeira vez que viu. Mas quando
Mestre de Cerimônias tirou o pequeno brasão de metal do bolso do casaco e o
colocou na seção que faltava, ele ganhou um novo significado.
Era isso que ele deveria roubar. Era isso que ele queria arrancar dos
dedos mortos de Turk e tomar para si. O poder de comandar Harrow Faire.
Mas não era para ele. Era para Cora.
Talvez ela me deixasse tê-lo...
Poderíamos governar juntos.
Isso seria tão ruim?
Ou talvez eu pudesse governar ao lado dela. Seu conselheiro, confidente e
amante.
Ele tentou afastar o pensamento traidor. Não, ele deveria ter tido a
oportunidade de governar sozinho. Era seu direito. Ele era o único com a
inteligência e os meios para fazê-lo. Ao contrário de Turk e Cora, ele faria o
que fosse necessário para sobreviver.
Mas nada disso importava mais. Nada disso. Ele contava com uma
coisa: que a honra de seu oponente fosse maior que a sua. Mestre de
Cerimônias nunca se desviou do código que ele rodeou em seu coração como
uma armadura. Ele nunca agiu sem honra.
Até o momento em que o fez.
Simon levantou a cabeça e olhou para Cora. Ela estava sendo puxada
por Amanda, um olhar distante e assustado em seus olhos. Ela não entendia
o que estava prestes a acontecer com ela. Mas ela teve a inteligência de saber
que ia ser terrível.
Simon olhou para o homem que o puxava. Era Jack. Sempre o nobre
ajudante de Mestre de Cerimônias. Ele honestamente não estava muito
surpreso que o Aparelhador tivesse traído a amizade de Cora. Ele murmurou
através da mordaça para Jack.
Jack revirou os olhos.
Ele murmurou novamente. E continuou até que Jack tirou o tecido da
boca.
— O quê, Simon?
— Você sabe a verdade, Aparelhador?
Ele disse, tossindo para limpar a garganta.
— Nós somos monstros, Simon. Você acima de tudo. Não deveríamos
existir.
Jack o puxou enquanto Mestre de Cerimônias abria as grandes portas
de metal. Elas se moviam silenciosamente, apesar de sua grossura e idade.
Isso as tornava de alguma forma mais perturbadoras. Ele desviou o olhar da
escrita nas portas. Isso fazia algo em sua alma coçar, e ele odiava.
— Há quanto tempo você sabe?
Talvez ele pudesse apelar para a natureza gulosa de Jack. Era sua
última aposta. Sua última chance de evitar ser pendurado novamente.
— Desde ontem à noite. — A mandíbula de Jack se contraiu. — Não
muda nada.
— Ele mentiu para você.
— Não vou deixar mais ninguém sofrer o mesmo destino que eu. —
Jack olhou para Simon. — Eu farei qualquer coisa para pará-la.
— Mesmo que isso signifique machucar Cora?
O Aparelhador desviou o olhar, a dor brilhando em suas feições.
— Sim. Mesmo que isso signifique machucar alguém que não merece.
Logo, eles estavam dentro de um lugar que ele desejava nunca mais
ver. O cheiro das vigas de madeira e poeira atingiu algum tipo de interruptor
dentro de sua mente. A memória de ficar pendurado nas vigas por cinco anos
correu por ele, e ele puxou Jack para trás enquanto era arrastado para frente.
— Não... De novo, não. Não!
Um soco forte em sua têmpora o fez cambalear e cair no chão. Suas
mãos ainda estavam no abominável cofre que mantinha suas cordas fora de
seu controle. Mas não importava mais. Ninguém tinha poder dentro da torre.
Ninguém, exceto Mestre de Cerimônias.
A porta se fechou atrás dele, e ele sentiu seu coração bater com o
estrondo retumbante. Outro soco na têmpora, e ele estava cambaleando no
chão, sua visão girando. Ele ouviu uma corrente grande e pesada
chacoalhando. O que era estranho, visto que ele nunca se lembrava de haver
correntes envolvidas em toda essa provação.
Então um pensamento o atingiu.
Se eles vão me pendurar... Onde vão colocar Cora?
Ele ergueu a cabeça e observou enquanto Turk puxava os elos de metal
para cima e por cima do parapeito. Ele não conseguia ver para onde ia, pois
desaparecia na escuridão do poço no centro da torre.
Simon nunca perguntou o que havia no fundo da escada que descia
para a escuridão. Quando Turk o arrastou aqui pela última vez, ele estava
muito ocupado gritando seu ódio por Mestre de Cerimônias. Quando ele foi
arrastado para fora, ele mal estava lúcido o suficiente para se lembrar do que
aconteceu.
Puxando mais alguns metros de corrente do poço, Mestre de
Cerimônias a prendeu sob seu pé. No final havia um par de algemas. Mestre
de Cerimônias as colocou em volta dos pulsos de Cora e fechou. Foi só então
que ele tirou a mordaça de sua boca.
— Por favor, Mestre de Cerimônias... Eu... — Cora estava tremendo de
medo. Ela respirou fundo, balançou a cabeça e endireitou os ombros.
Abençoada seja ela, ela estava tentando ser corajosa. Ela olhou para o homem
mais alto e se manteve firme. — Você vai nos deixar aqui até que tudo acabe,
não é?
A voz profunda de Turk foi final e firme.
— Eu vou.
A respiração de Cora era rápida e superficial enquanto ela lutava contra
seu medo. Mas ela estava mantendo-o sob controle.
— Se você não me deixar explicar para a Família o que eu fiz e por que
estou aqui... Então você precisa fazer isso. Eles merecem saber. Você ganhou.
Então diga-lhes toda a verdade. Diga a todos que eles só têm um ou dois anos
de vida. Talvez eles fiquem do seu lado. Talvez não. Não importará de
qualquer maneira.
E você pensou que era uma covarde. Simon sorriu. Boa menina.
A expressão de Turk suavizou, ainda que ligeiramente. Ele estendeu a
mão e colocou a mão pesada em seu ombro.
— Eu vou, Cora... Isso eu posso fazer. Você sabe que eles não podem
libertá-la, mesmo que me torturem.
— Eu sei. — Ela balançou a cabeça. — Não é sobre isso. É errado mentir
para eles.
Mestre de Cerimônias assentiu.
— Eu os mantive no escuro por muito tempo. Farei como você pede.
— Posso... — Ela olhou para Simon. — Por favor, posso dizer adeus?
O coração de Simon apertou em seu peito. Ele olhou para suas mãos,
ainda presas na caixa de metal.
— Jack, liberte minhas mãos. Deixe-me abraçá-la antes que eu seja
pendurado pelo resto da minha vida miserável.
O Aparelhador olhou para Turk, que apenas assentiu. Amanda estava
de pé junto à parede, com as bochechas molhadas de lágrimas. Mas ela não
fez nada para ajudar ou atrapalhar a cena de forma alguma. Jack se inclinou
e, depois de tirar uma chave do bolso, destrancou as algemas que mantinham
suas mãos presas na caixa de metal. Ele queria socar Jack em seu rosto
perfeito. Mas qual era o ponto? Ele não poderia vencer em uma briga contra
Mestre de Cerimônias e Jack sem a ajuda de seu poder.
Isso não o impediu de querer sangrar o lábio de Jack. Mas não faria
nada além de negar-lhe a chance de abraçar Cora uma última vez. Ele ficou
com as pernas trêmulas e caminhou até Cora.
— Simon... Eu...
Sua voz falhou e quebrou em um estrangulamento. Pegando-a em seus
braços, ele a abraçou com força contra seu peito. Ela estava tremendo em seus
braços. Ela estava com tanto medo. Seu coração doía, e ele sabia que não era
apenas o medo e o sofrimento dela que eram os culpados.
— Ssh, Cora... Eu sei. Eu sei.
Ele acariciou o cabelo dela com a mão. Tentando acalmá-la o mínimo
que podia. Não havia sentido, mas ele fez o seu melhor. Ele inclinou a cabeça
dela para a dele e a beijou. Lentamente, com ternura, tentando fazer durar.
Era para ser o último beijo deles.
Não havia retorno deste lugar.
Havia umidade em suas bochechas. Não era dela. Foi ele quem chorou.
Quando eles se separaram, ela ergueu as mãos algemadas e acariciou as
lágrimas de seu rosto.
— Eu falhei com você, Cora. Eu deveria saber que Turk não deixaria
você contar aos outros o que sabe. — Ele apertou as mãos dela e beijou seus
dedos. — Eu falhei em proteger você.
— Isso não é culpa sua.
Ele sorriu.
— Tudo é minha culpa, docinho. Você não prestou atenção?
Ela sorriu de volta para ele. Apenas um pouquinho, mas o suficiente.
Ela estava chorando também. Aqueles lindos olhos cinza dela eram brilhantes
e salpicados de branco como nuvens. Ele a pegou em outro abraço, beijando-
a, desejando poder tirá-la de tudo isso.
Se ele pudesse destruir sua alma, se ele pudesse matá-la, ele o faria. Ele
faria qualquer coisa para poupá-la do que estava por vir. Ele não sabia para
onde as correntes levavam. Ele não sabia o que a esperava na base da torre.
Mas ele sabia o que o esperava no topo, e não conseguia imaginar que descer
fosse mais misericordioso do que subir.
Encontrarei uma maneira de destruí-lo, Mestre de Cerimônias. Encontrarei
uma maneira de arrancar seus ossos de seu corpo ainda vivo e fazer novos pincéis com
eles. Vou destilar seu sangue em pigmento e criar uma obra-prima de você. Será a
melhor realização da qual você fará parte.
Porque eu a amo.
E você vai machucá-la.
E ela é minha.
— Está na hora. — Turk ergueu a corrente sob o agarre de sua mão. —
Diga adeus.
Cora soluçou contra ele, e ele quebrou o beijo, abraçando-a perto.
— Ssh, Cora... Seja corajosa. Seja forte. Você é mais do que pensa que é.
— Simon... Eu te amo. Eu te amo. — Ela segurou a frente do casaco dele
com as duas mãos, como se só isso pudesse impedi-los de se separarem.
Ele sorriu para ela e acariciou sua bochecha úmida.
— Assim você continua dizendo. Cora... Eu...
Turk soltou a corrente. O peso dela descendo na escuridão a puxou
para trás e a arrancou de seus braços. Ele tentou agarrá-la de volta, mas a
força foi demais. Cora gritou e bateu no parapeito e tombou sobre ele. Ela
caiu na escuridão.
— Cora! — Simon gritou enquanto tentava alcançá-la. Mas ela já tinha
ido. — Cora... Não...
Ela gritou.
E então seu grito foi interrompido.
Ele levou um momento para perceber que o lamento indigno que
encheu o ar veio dele... Não dela.
— Cora!
Uma mão pesada agarrou a parte de trás de seu casaco e o arrancou da
grade. Ele socou o peito de Turk, mas poderia muito bem estar socando uma
parede de tijolos. Não adiantou.
— Maldito!
Um punho pesado atingiu seu rosto, e o mundo ficou nebuloso. Ele mal
sentiu o impacto ao bater nas tábuas de madeira do patamar. Ele não sentiu
as escadas quicando na parte de trás de suas pernas enquanto ele era
arrastado pela torre sinuosa. Ele não sentiu as cordas ao redor de seus pulsos
se apertarem, prendendo-as em sua cintura para impedi-lo de escalar para a
liberdade.
Mas ele sentiu as cordas em torno de seus tornozelos. Isso forçou seu
foco de volta à superfície. Ele chutou e gritou, berrando como um louco, se
debatendo o mais forte que podia. Mas como Cora... Era tarde demais.
Seu peso deixou as escadas enquanto Turk o levantava. E então ele
estava caindo.
Mas ele não precisava ir muito longe.
Com uma guinada dolorosa, ele gritou quando os ossos de seus
tornozelos se partiram. Mas não importava. Ele não cairia. Ele nunca, nunca
cairia.
Houve um tempo em que ele odiava e detestava a escuridão abaixo
dele. Ele havia desejado rancor sobre o que quer que se escondesse em suas
sombras.
Mas agora ele sabia o que havia lá embaixo naquele poço.
Cora.
Ela não estava gritando. Havia apenas o som de seu próprio sofrimento.
Ele não podia sequer alcançá-la.
Turk soltou um suspiro pesado.
— Eu nunca quis machucá-la, Marionetista. Ela não merece isso. Eu vou
apodrecer nos poços da vida após a morte – se eu tiver uma – quando tudo
isso acabar. Mas isso deve ser feito. Esta criatura deve ser detida. — Mestre de
Cerimônias desceu as escadas para longe dele, desaparecendo na penumbra.
— Adeus, Simon. Eu gostaria de poder dizer que me sinto culpado por fazer
isso com você... Mas não me sinto. Você merece isso e muito mais.
Simon rugiu de raiva.
— Me solte, Mestre de Cerimônias! Me solte agora mesmo!
Mas ele não estava gritando com ninguém. Ele estava sozinho. Alguns
segundos depois... E as luzes da torre se apagaram. Ele escutou e esperou o
som da porta de metal se fechando.
Turk se foi.
E ele nunca mais voltaria.
O sangue estava correndo em sua cabeça. Seus ouvidos já estavam
latejando. Logo, ele começaria a desmaiar de dor. Ele iria hiperventilar. Seu
corpo começaria a passar por um padrão de alívio e agonia enquanto ele
morria do sofrimento e depois se curava o suficiente para acordar.
E agora, ele chorou.
Ele chorou...
Porque ele nunca teve a chance de terminar sua frase.
— Cora... — Ele falou para a escuridão abaixo. — Cora... Eu te amo.

Cora estava caindo.


Ela não sabia para onde. Ela não sabia por quanto tempo. Enquanto a
escuridão passava por ela, formas fora de vista estavam se movendo muito
rápido para ela entender qualquer coisa. Ela gritou.
Ela se perguntou se cairia para sempre.
Até o momento em que ela parou.
E a parada foi pior.
Ela sentiu seu corpo se contorcer e torcer ao bater em algo afiado e
metálico. Sua visão brilhou em branco enquanto a dor lancinante assolava seu
corpo, deixando-a incapaz de processar qualquer coisa.
Ela não podia gritar.
Ela não podia fazer um som.
Ela não tinha ideia de quanto tempo ela perdeu assim antes de voltar a
si.
Ela desejou ter ficado naquele espaço branco onde tudo doía demais
para pensar.
Porque então ela não teria que ver a estrutura em que pousou. Era uma
espécie de escultura. Dentes e garras, irregulares e afiadas, erguiam-se ao
redor dela. Ela tinha pousado... Em uma boca, talvez? Era difícil dizer. Ela
não conseguia virar a cabeça o suficiente para ver.
Porque um pedaço de metal atravessava sua garganta, bem na base, na
clavícula. Outro pedaço comprido afiado espetava seu estômago. Outro, sua
coxa direita. Sua panturrilha esquerda com outro. Seus braços estavam sobre
o peito, ainda algemados no pulso. A corrente de metal estava enrolada em
volta dela sobre a escultura como enfeites mórbidos em uma árvore de Natal.
Ela tentou encher os pulmões e engasgou com o sangue. Se ela virasse a
cabeça assim, ela poderia respirar, mas parecia que estava sugando o ar
através de um canudo apertado.
Doía.
Oh, Deus, doía.
Achei que sabia o que era dor.
Ela tentou se mover. Ela podia mover os braços... Mas isso era tudo.
É assim que eu morro.
É assim que meu mundo acaba.
Alguém lá em cima gritou seu nome. Ela não podia ouvir muito mais.
Eles estavam muito longe. Mas ela podia reconhecer o dono da voz. Simon.
Ela sabia que ele estava muito acima dela, pendurado nas vigas da torre. Ele
estava sofrendo como ela.
Ele chamou o nome dela novamente. Ela desejou poder gritar de volta.
Mas sua mente estava começando a desaparecer na escuridão. Ela não
conseguia respirar o suficiente para manter tudo funcionando. Ela não
conseguia se mover o suficiente para se libertar. Ela ia morrer assim.
Mas ela sabia que não iria durar.
Nada em Harrow Faire era tão fácil.
Ela tentou alcançar. Ela não sabia por quê. Algo nela queria estar
apenas alguns centímetros mais perto de Simon. Ela queria abraçá-lo. Queria
ser abraçada por ele.
Mas nunca terei a chance. Isso é o mais perto que chegaremos de novo.
Pelo menos... Pelo menos eu vou com ele.
Eu te amo, Simon Waite. Eu te amo.
E eu sinto muito.
Mestre de Cerimônias fechou as portas de madeira e de metal atrás de
si, trancou-as uma de cada vez e enfiou as duas chaves no casaco. Ele supôs
que não importava se ele mantivesse a Chave escondida, mas ele fez isso de
qualquer maneira. Ele poderia pendurá-las na maçaneta e convidar qualquer
um a tentar, mas como todos os outros tentando arrancar Excalibur da pedra,
ninguém poderia empunhar a Chave além dele.
Mas era o princípio da coisa.
No entanto, seu coração estava pesado.
Jack e Amanda estavam na porta da torre, não querendo ouvir os gritos
de raiva de Simon e seus gritos por Cora. Cora não fez um som desde que ela
atingiu o fundo. Conhecendo a estátua da criatura em que ela pousou...
Mestre de Cerimônias não ficou surpreso.
Ele não tinha certeza de qual era o destino mais gentil. Eles
provavelmente eram semelhantes. Assim como a torre acima era refletida
pela torre abaixo, Harrow Faire não era nada se não equilibrada. E, no
entanto, algo parecia errado com a torre abaixo do solo. Era raro ele descer as
escadas invertidas na escuridão. Algo sobre o poço o inquietava.
E ele nunca, jamais, ousou abrir a escotilha que o levaria ao convés de
observação invertido da torre.
Por que ele pediria para olhar para a boca do próprio inferno? Por que
ele iria querer se aproximar do coração da criatura que ele lutava para matar?
Amanda ainda estava chorando, lamentando nos braços de Jack.
Mestre de Cerimônias caminhou até eles e gentilmente acariciou seu
cabelo loiro. Tinha parado de chover, mas os três ainda estavam úmidos.
— Tinha que ser feito.
— Eu-eu sei. — Ela fungou e deixou o abraço de Jack para o dele.
Mestre de Cerimônias a abraçou. — Mas eles se amam. Eles realmente se
amam. Você viu Simon reagir? Você acha que ela sabe disso?
— Eu não posso dizer. Não importa mais. Mas pelo menos eles estarão
lá juntos.
Jack encostou-se à parede e olhou para a Faire, a testa franzida de
preocupação.
— Você realmente vai contar a todos eles?
Mestre de Cerimônias suspirou pesadamente.
— Não. Ainda não, pelo menos.
— Você prometeu a ela. — Jack fez uma careta. — Você prometeu.
— Não seja ingênuo, Aparelhador. Eu lhe disse a verdade porque
precisava de sua ajuda nisso. E porque eu sabia que você concordaria comigo
que essa fera deveria ser abatida. — Ele gentilmente empurrou Amanda para
longe dele para encarar o homem mais jovem. — Se eu marchasse para o
refeitório e anunciasse no café da manhã que aprisionei Cora e Simon não por
causa dela conspirar contra mim, mas porque ela queria salvar Harrow Faire?
Significaria o caos. Eles vão ficar chateados o suficiente com o que eu fiz. Vou
deixar passar por um tempo antes de dizer a eles o que os espera. Que não
vamos Inverter novamente.
— Você quer dizer, esperar que eles se importem menos com Cora. Ela
era uma boa – ela é uma boa pessoa. Ela não merecia nada disso. E os outros...
Ele parou, passando as mãos pelo cabelo, bagunçando-o em pontas
desleixadas e úmidas.
— Os outros podem concordar com ela. — Turk assentiu. — Esse é o
problema, querido Jack. Muitos deles ficarão do lado dela. E eles não podem
fazer nada para ajudá-la ou para me impedir. A Chave só passa para outro se
eu escolher entregá-la ou se eu morrer. Eu nunca vou fazer o primeiro, e a
única que pode fazer o último está trancada dentro daquela torre. A raiva
deles, o medo deles, que bem isso fará?
— Você está apenas se protegendo? — Jack olhou para ele, sua voz
vacilante. — Você a trancou lá, você mentiu para ela, você está escondendo
tudo isso para salvar sua própria pele?
Turk riu. Ele não queria. Mas ele sempre achava adorável quando as
crianças falavam antes de pensar. E Jack ainda era muito jovem em
comparação com ele mesmo.
— Jack, querido menino... Se eu quisesse me proteger, deixaria Harrow
Faire se alimentar e continuar minha própria vida. Eu tenho motivos para
viver. Eu tenho uma mulher que amo. Tenho amigos que considero queridos.
Eu tenho uma Família. Mas eu não os coloco, ou a mim mesmo, acima do
resto do mundo.
— Então por quê? Por que mentir?
— Porque eu os amo. Porque não adiantaria dizer aos outros que
destino os espera. Eles se preocupariam. Eles iriam se enfurecer. Por que lhes
trazer tristeza e raiva quando isso não significará nada além de seu próprio
sofrimento? Se você tivesse um filho pequeno, um bebê, que estivesse doente
e morrendo, você diria a ele o que o esperava? Ou você o deixaria ir
pacificamente, sem medo?
— Eu... Eu não sei.
Turk estendeu a mão e colocou a mão no ombro de Jack. O homem se
encolheu, como se esperasse ser atingido. Isso machucou Turk
profundamente, e mais do que ele esperava.
— Jack... Sempre fomos amigos. E eu ainda sou seu amigo agora.
O Aparelhador fechou os olhos.
— Eu também era amigo de Cora.
Turk assentiu e apertou o ombro de Jack gentilmente.
— Eu sei que isso é difícil. Eu sei que isso parece errado. Mas pense em
quantas almas serão poupadas por causa do que fizemos. O destino de Cora é
repugnante, mas seu sacrifício é menor do que o que devolvemos ao mundo
em troca.
— Eu suponho que sim. — Jack esfregou a nuca. — Isso parece errado.
— Enviei milhares de homens para a morte na guerra. Cometi pecados
terríveis, tudo em nome da proteção dos inocentes. — Turk estendeu a mão
para Amanda. Ela pegou e sorriu ternamente para ele. Isso lhe deu toda a
força de que precisava. — E farei isso cem vezes se isso significar que posso
parar essa criatura que nos amaldiçoou. Lembre-se do que foi feito com você.
Com sua mãe.
Jack assentiu fracamente. Ele olhou para a torre.
— Ainda parece errado.
— Eu entendo. Não é para se envergonhar. Parece errado para mim,
também. Mas fazemos o que devemos. Venha, Amanda... O sol está prestes a
nascer. Os outros estarão esperando o início do julgamento.
— O que você vai dizer a eles, então?
Jack enfiou as mãos dentro do casaco de couro.
— A verdade. Que conspiraram contra mim. Que eles queriam lançar
Harrow Faire no caos. — Turk se inclinou para beijar o topo da cabeça da
Aerialista.
— E quando eles perguntarem por quê?
— Por que Simon precisa de um motivo para causar problemas? —
Turk começou a se afastar, ainda segurando a mão de Amanda. Ele ficaria
eternamente grato por Harrow Faire tê-la trazido para ele, mesmo sabendo
que era para ser algum tipo de oferta de paz. Ele apreciou mesmo assim. — A
Família pode ter vindo a adorar Cora — ele gritou por cima do ombro
enquanto deixava Jack parado na porta da torre. — Mas eles sempre vão
odiar mais Simon.

Cora estava entrando e saindo da consciência. A escuridão era


preferível à dor lancinante dos dentes e garras de metal irregulares que se
projetavam através de seu corpo. Ela podia sentir-se tentando curar. Havia
uma coceira estranha e desconfortável em sua pele enquanto sua carne
tentava se fechar em torno dos objetos estranhos que não tinham nada que
estar dentro dela.
Mas ela não podia curar. Não o suficiente. Ela preferia os lugares
tranquilos em sua mente quando a escuridão a levava à agonia de estar
acordada. Mas essa não era a pior parte.
A pior parte era não conseguir respirar. Ela tinha que inclinar a cabeça
da maneira certa para conseguir algum ar, e isso não era suficiente. Era uma
asfixia lenta.
Para frente e para trás, para frente e para trás, vigília e escuridão. Havia
uma luz fraca no poço, onde quer que ela estivesse, mesmo que as luzes
elétricas dos postes estivessem desligadas. Turk nos deixou no escuro. Ele não
poderia ter pelo menos deixado uma maldita lâmpada acesa? Babaca idiota.
Era a mesma estranha não-luz que enchia a floresta da Inversão. Tudo
estava apenas iluminado por alguma fonte que ela não conseguia identificar.
Ela percebeu que a torre em que estava, estava literalmente de cabeça para
baixo. As lâmpadas apontavam para o chão que era o teto. Os corrimões
estavam na parte inferior das escadas. Os parapeitos estavam no topo das
janelas.
Tudo era Invertido.
E do lado de fora das janelas, ela não viu nada. Apenas um vazio, como
o céu tinha sido.
— Pobrezinha. Eu sinto muito.
Alguém saiu das sombras. Era Lazarus. Ele franziu a testa para ela,
olhando para seu corpo retorcido, empalado no metal. Ele assobiou em dor
solidária.
Ela tentou falar, mas só conseguiu tossir sangue.
— Não, não... Shhh... Não fale. — Ele caminhou até ela e gentilmente
acariciou seus cabelos. Ele tirou um pouco do olho dela. — Eu sinto muito...
Muito mesmo.
Ele a havia avisado que não poderia ajudá-la. Ele não seria nenhuma
fonte de alívio. Ele não podia libertá-la. Ela estendeu a mão para ele, e ele
pegou a mão dela. Não me deixe sozinha. Por favor.
— Estou aqui. Eu sempre estarei aqui. — Ele se inclinou e beijou sua
bochecha. — Nós vamos morrer. Mas não vamos morrer sozinhos.
Ela se lembrava de segurar a mão de seu pai enquanto ele morria. O
câncer o havia levado. Foi rápido, mas foi brutal. Ele parecia tão pequeno, tão
fraco, e não como o homem que ela se lembrava. Ele estava com tanta dor, no
entanto. Tinha sido sua hora, e ele sabia disso.
Cada detalhe daquele quarto de hospital ainda a assombrava. Quando
ela fechava os olhos, ela podia ver cada pedacinho disso. O relógio na parede.
A lousa anunciando alegremente a data e o nome da enfermeira de plantão.
Ela conhecia a vista da janela das sempre-vivas e a estrada de cor. Ela poderia
listar cada objeto que estava na mesa perto da janela.
Tantas pessoas tinham dito a ela para ir para casa. Mas ela ficou. Ela
ficou, apesar de doer. Porque seu pai estava lá para ela quando ela precisava
dele, então ela queria retribuir o favor.
Ele tinha deixado de responder no último dia. Era surpreendente para
ela que, embora estivesse sentada naquele quarto de hospital por três dias
seguidos, embora tivesse segurado a mão de seu pai mil vezes naquele
interminável período, ela soubesse quando ele a deixaria.
E quando ela se sentou para segurar sua mão novamente, ele parou de
respirar.
Assim como ela tinha naquela época, ela começou a chorar. Ela sempre
chorava com a memória. Ela imaginou que sempre faria isso. As gotas
rolaram em seu cabelo. Eu não quero morrer.
— Nem eu. Muito poucas pessoas honestamente querem. Mesmo
aqueles que pensam que querem abraçar o fim de suas vidas... Estão apenas
buscando uma mudança que lhes foi negada de outra forma. Eles escolhem a
morte porque sentem que é a única coisa que resta em seu controle. — Ele
suspirou. — Desculpe. Estou ficando filosófico novamente. — Ele acariciou
sua têmpora, enxugando suas lágrimas com o polegar. — Eu gostaria de
poder fazer alguma coisa, Cora. Com cada grama de tudo que eu sou, eu
gostaria de poder. Mas estou muito fraco. Muito faminto. Minha ligação com
este mundo é muito fraca. Se você tivesse a Chave, ou... — Ele balançou a
cabeça. — Não importa.
Está tudo bem.
— Não, não está. — Ele riu. — Nada disso está ‘tudo bem’ por qualquer
extensão da imaginação.
Mas às vezes, a intenção é o que importa. A escuridão estava começando a
vir para ela novamente. Ela não conseguia respirar o suficiente para ficar
consciente. Ela tentou lutar contra isso.
— Eu suponho que sim. — Ele sorriu tristemente. — Não, não. Não
tente ficar acordada. Deixe vir. Deixe esses momentos passarem por você.
Veja os passarem como um fluxo. Se você lutar contra isso, você vai se
machucar. Eu odiaria que você perdesse a cabeça antes do fim. Mas está tudo
bem se você fizer isso.
Eu não quero morrer. Eu não quero perder a cabeça. Eu não...

Os períodos de escuridão haviam começado. Simon suspirou. Ele


continuou acordando enquanto seu corpo ligava os interruptores novamente,
esperando que as circunstâncias tivessem mudado. Vida, morte, vida, morte,
vida, morte... Era chato.
Era excruciante.
Mas era principalmente chato.
Ele havia parado de gritar. Pelo menos por enquanto. Ele não podia
evitar. Às vezes ele saía daquele lugar mortal só para se ver já gritando. Ele
puxou as mãos, tentando libertar os pulsos de onde estavam presos à cintura.
Se ele pudesse soltá-los – se ele pudesse subir pela corda – ele poderia se
libertar.
Mas não tinha funcionado trinta e oito anos atrás.
Não funcionaria agora.
E assim, ele ficou pendurado lá. Sangue latejando em seus ouvidos.
Todos os músculos de seu corpo doíam. Pelo menos seus tornozelos tinham
curado... Pequenos favores.
Cora ainda tinha que fazer um barulho do fundo do poço. Não havia
como dizer o quão longe ela estava. Trinta metros? Sessenta? Trezentos?
Talvez ela tivesse caído direto para o inferno. Talvez o próprio Lúcifer
estivesse agora sentado ao lado dela, conversando com ela enquanto tomava
uma xícara de chá.
Por que isso o deixou com ciúmes?
Porque se ela pode me amar, ela pode amar o próprio diabo.
A raiva cresceu nele. Ele rosnou e se debateu, mas não adiantou. Isso
nunca aconteceu; isso nunca aconteceria, mas não o impediu de odiar tudo o
que já havia acontecido com ele.
— Por que? — Ele rosnou. — Por que fazê-la me amar? Por que
empurrá-la em mim assim? Eu nunca pedi por ela. Eu nunca a quis. Você me
deu um cachorrinho! Eu! Não posso nem mesmo ser confiado com uma planta
caseira. — Ele nem sabia com quem estava gritando. Harrow Faire? Deus? O
diabo? Consigo mesmo? Como tudo o mais, não importava mais. — Eu não a
queria. Eu estava feliz como estava!
— Você está mentindo para si mesmo de novo.
Ele lutou na corda até que se virou para ver sua sombra na parede perto
dele. O sol estava alto, enviando raios de luz âmbar alegre que fluíam para a
torre. A plataforma de observação lá em cima tinha um piso de grade e
formava um padrão quadriculado ao longo da parede de madeira e da escada
ao lado dele. Sua sombra estava lá, com seus olhos irregulares e sua boca
carrancuda e cheia de dentes.
— Cale a boca, sua pobre desculpa de familiar. Você não pode fazer
algo útil? Tipo me cortar?
— Você está mentindo para si mesmo. Você a ama. Você quase contou a ela.
Por que você não pode simplesmente admitir isso?
— Eu admiti. Não significa que eu tenha que gostar. Eu odeio o fato de
me sentir assim! Eu não... — Ele engoliu em seco. Ele odiava estar de cabeça
para baixo. Ele realmente, realmente odiava. — Eu não sou feito para isso.
Ninguém deveria me amar. Claramente, ela está com defeito. Ela deveria
amar qualquer outra pessoa. Isso é culpa dela. Ela deveria ter sido mais
esperta do que isso e ficado com Jack. Inferno, até mesmo Rudy! Não eu.
Nunca eu. — Ele fecha os olhos. Seus óculos de sol caíram em algum
momento. Não importava. — Você vê o que acontece quando alguém me
ama? — Ele riu. — O mundo acaba.
— Isso teria acontecido de qualquer maneira. Isso não é sobre você.
— Tudo é sobre mim.
— Esse é o problema.
— Eu desprezo você. Eu gostaria que você simplesmente murchasse e
morresse. — Ele zombou. — Por que você não faz algo útil e vai ver Cora?
— Eu fui.
Sua sombra afundou na parede, quase desaparecendo nos contornos
rígidos da própria escuridão aguda da escada. Apenas seus olhos eram
visíveis, girando e pontiagudos, visíveis onde não deveriam pertencer.
Havia muito peso nessas duas palavras. Simon engoliu novamente.
Algo lhe dizia que ela não estava nas profundezas do inferno tendo uma
brincadeira sexual com Lúcifer. De repente, ele quase preferia essa opção.
— Ela está... — Ele nem sabia o que perguntar. — Ela está bem?
— Não.
Simon fechou os olhos. A raiva ferveu dentro dele, e ele rosnou, se
debatendo novamente na corda, chutando loucamente, tentando fazer
qualquer coisa. Qualquer coisa mesmo! Libertar suas mãos. Libertar seus pés.
Cair a distância na escuridão. Ele seria mutilado e quebrado quando
aterrissasse, mas não se importava. Ele estaria com ela.
Ele a amava.
Ele odiava que ele a amava.
Mas ele a amava assim mesmo.
— Cora!
— Ela não pode ouvir você. Não agora.
Ele estava chorando? Quando isso começou? Ele gritou a plenos
pulmões. Era a única coisa que ele podia fazer. Ele estava desamparado.
Ele estava impotente.
E ela precisava dele.
Não havia nada que ele pudesse fazer.
E isso era o pior de tudo.
— Você fez o quê?
Turk fechou os olhos quando a pequena multidão à sua frente explodiu
em caos e gritos. Alguns assustados, a maioria com raiva. Ele esperava isso.
Ele ergueu as mãos para tentar acalmá-los. Não funcionou.
— Todo mundo, por favor, acalmem-se.
Ainda assim, eles continuaram.
— O que você quer dizer, você os colocou na torre?
— Mas por quê?
— Por que Cora sequer matou aquele homem?
— Existem regras, Mestre de Cerimônias!
Turk suspirou.
— Gente, por favor. É o suficiente. Deixem-me falar. — A multidão
continuou a gritar com ele. Finalmente, ele não aguentou mais. Ele deu um
soco no poste da tenda ao lado dele, fazendo toda a estrutura tremer. — Já
chega!
Silêncio.
Ele endireitou as costas, endireitou os ombros e puxou para baixo a
bainha de seu fraque. Ele era Mestre de Cerimônias. Ele estava no comando.
Harrow Faire era seu domínio. E estes eram seus soldados. Amigos dele. A
Família dele.
Por um momento, ele debateu manter sua palavra para Cora. Mas ele
olhou para seus rostos de raiva e confusão – de medo – e decidiu contra isso.
Isso só lhes traria pânico desnecessário. Eles deviam aproveitar os últimos
anos de suas vidas. Não gastar com raiva e tristeza.
Turk estava muito cansado de tudo isso. Ele ficou aliviado por ter
Harrow Faire morta em uma semana. Mas as ações de Cora estenderam sua
linha do tempo, e isso o frustrou infinitamente. Mas os contratempos eram o
pão com manteiga da guerra.
Contratempos e crueldade.
Agora ele tinha os dois.
— Eu não os coloquei na torre por causa de suas ações na noite passada
— começou Mestre de Cerimônias. — Eu não sei por que ela atacou aquele
homem em particular, mas isso não importa. Eu sei há algum tempo que após
a morte de Palhaço, Cora recebeu sua habilidade de drenar identidade. Simon
viu isso como uma oportunidade. Eu sabia que ele estava conspirando contra
mim. Ele queria usá-la para me matar e assumir a Faire. Quando falei com a
Contorcionista sobre isso, ela não mostrou nenhum desejo de usar suas novas
habilidades. Mas ontem à noite, tudo isso mudou. Para proteger a todos nós
do perigo que ela se tornou – comandada pelas cordas do Marionetista – eu
fiz o que tinha que fazer. Eu removi a ameaça. Eu os coloquei na torre.
A tenda estava silenciosa. Aaron estava sentado perto da frente, com a
mão sobre a boca e os olhos arregalados. Puxador sempre foi o curinga nesses
cenários. Finalmente, depois de um longo momento, ele falou.
— Por quanto tempo?
— O tempo que for necessário para eles desistirem de sua trama. — Ele
fez uma pausa. — Eu faço isso com a bênção do Sr. Harrow. Conversamos
sobre o assunto ontem à noite. — Era terrível mentir. Mas era uma habilidade
praticada neste momento em sua longa carreira. Ele se consolava com o fato
de ter falado as falsidades para protegê-los. Para protegê-los da verdade, não
machucá-los com ela.
Rudy rosnou na parte de trás da tenda. Era um ruído baixo e bestial. Ele
mostrou os dentes para Mestre de Cerimônias e saiu do recinto.
Louis balançou a cabeça.
— Não ter julgamento, mesmo que o que você está dizendo seja
verdade, é errado, Turk. Todos são julgados antes de entrar na torre.
— Ela é uma ameaça, Mágico. Uma terrível. Um toque dela sozinho, e
você sabe o que ela pode fazer. — Turk balançou a cabeça.
— Então coloque uma caixa nas mãos dela, como fazemos com Simon.
— Louis colocou o braço em volta de Elena, segurando a Costureira perto. A
expressão geralmente animada da ruiva foi trocada por preocupação e medo.
— Por que não deixá-la falar? Explique o que eles estão procurando?
— Porque Simon sussurra mentiras perigosas em seu ouvido, Mágico.
Você sabe como ele pode ser manipulador. Deixá-los espalhar esse veneno é
muito perigoso. Confie em mim, eles estavam além da razão. Não havia nada
que pudesse ser feito tendo um julgamento, exceto ameaçar todas as suas
vidas.
— Mas... — Louis parou e balançou a cabeça.
— Não faz sentido — Bertha interrompeu. — Ela o mantinha sob
controle. Ela não era sua boneca. Eu vi como eles estavam juntos. E tudo bem,
não deixe que ela te toque. Mas por que não deixá-la falar?
— As palavras são mais perigosas do que qualquer outra coisa neste
mundo, Mulher Barbada. — Mestre de Cerimônias franziu a testa. — Elas
penetram na alma. Ele a corrompeu. Eu não vou deixar ela corromper todos
vocês também.
— Besteira. — Aaron se levantou e começou a andar. — Isso é besteira,
Turk. Isso... E você... Fede.
— Ele está falando a verdade. — Jack se levantou de onde estava
sentado perto das mesas. Ele deu um passo à frente. — Eu estava lá. Eu o
ajudei a colocar Cora e Simon na torre. E... Ela estava planejando matá-lo. Ela
queria assumir Harrow Faire.
A multidão murmurou. Os Gêmeos balançaram a cabeça em uníssono e
juntaram as mãos na frente deles. Jim, o Mecânico, esfregou a mão no rosto
desalinhado e olhou para longe.
— Não é do feitio dela. — Bertha cruzou os braços sobre o peito amplo
e tatuado. — Não é do feitio dela nem um pouco. Estou com Puxador. Algo
cheira mal. Cora não queria governar Harrow Faire. Ela acabou de começar a
querer estar aqui.
— Mas Simon quer governar — Pierre, o Malabarista, argumentou de
volta. — Ele aproveitaria qualquer oportunidade para nos ver todos sob seus
calcanhares. Você sabe disso.
A discussão desceu ao caos.
— Okay. Mas ele não tinha como controlá-la.
— Ele a enganou para amá-lo!
— Você os viu juntos. Você viu como ele olhava para ela.
— Ele está atuando.
— Eles estavam juntos antes de Palhaço morrer. E então? Ele não
poderia saber o que estava por vir.
Mestre de Cerimônias esfregou a mão na testa. Isso estava lhe dando
dor de cabeça. Ele estava feliz por não ter contado a verdade. Ele também
estava feliz por Jack estar mantendo a boca fechada. Pelo menos por
enquanto.
As brigas continuaram. Mais uma vez, Mestre de Cerimônias deu um
soco no poste.
— Chega. Basta disso. Eu sou Mestre de Cerimônias, e é meu dever
defender o código da Família. Cora e Simon quebraram nosso código em seu
pacto de me ver destruído e nossa Família enviada para uma convulsão. Eu
os sentenciei à torre. Mas eu vou permitir a eles isso. Vou deixá-los sair para
um julgamento formal quando fizermos a próxima Inversão e não houver
clientes para eles colocarem em perigo.
Isso acalmou suas preocupações. Até Bertha parecia um pouco
confortada com isso. Eles passaram apenas alguns meses no máximo “em
cima” antes de irem para o vazio.
No entanto, Mestre de Cerimônias sabia que desta vez seria um tempo
mais longo. Harrow Faire lutaria para manter sua vida o maior tempo
possível. Mas não havia nada que pudesse fazer agora. Eventualmente, iria
murchar. Eventualmente, ela morreria de fome.
Turk não estava mentindo. Ele também não estava dizendo a verdade.
Ele saiu da tenda sem dizer mais nada, seu humor era péssimo. Toda a
provação deixou um gosto amargo na boca. Ele estava cansado, mas sabia
que qualquer tentativa de dormir seria inútil. Sua mente, desejando que ele
sofresse por seus atos, manteria o sono à distância.
Ele não gostava dessas coisas que tinha que fazer. Mas alguém tinha
que fazê-las.
Não haverá uma próxima Inversão.
Cora e Simon nunca mais vão pôr os pés fora daquela torre.
Cora estava entrando e saindo da consciência. Novamente. De novo e
de novo e de novo. Cada vez que ela voltava, a primeira coisa que ela
percebia era a dor. Ela tocou o pedaço irregular de metal que percorria seu
torso.
Havia uma poça de sangue seco e fresco ao redor de onde se projetava
para fora de seu corpo, acumulando-se na cavidade de seu estômago que era
feita pelo ângulo não natural de seu corpo sobre a estátua. Seus ombros e
joelhos estavam mais altos que seus quadris. Isso significava que se ela
virasse a cabeça direito, ela poderia ver todos os tons de sangue em seus
estágios de secagem e envelhecimento.
Vermelho brilhante. Carmesim rico. Marrom. Preto onde era grosso e
seco.
Ela deixou a cabeça cair para trás. Ela desejou ter algo para descansar.
Doía tê-la pendurada ao ar livre. Mas não havia nada que ela pudesse fazer.
O metal que corria pela base de sua garganta entre as clavículas doía mais.
Ela quase podia esquecer os que passaram pelo resto dela. O que estava em
sua garganta continuava rasgando seus nervos e tendões, não importava o
quanto ela tentasse ajustar a cabeça.
Pelo menos ela não estava sozinha.
Não de verdade.
Lazarus estava ao lado dela toda vez que ela voltava da escuridão. Ele
sorria para ela com ternura, beijava sua bochecha, acariciava seu cabelo e se
desculpava por não haver mais nada que pudesse fazer. Nada além de contar
suas histórias.
Pelo menos ele sabia contar boas histórias.
Ela imaginou que uma criatura tão antiga quanto o início dos tempos
tinha algumas divertidas para contar. Ela não conseguia se lembrar de todas
elas que ele tinha falado no passado...
Há quanto tempo ela estava aqui?
Ela não sabia. As coisas estavam meio confusas e estranhas. Ela não
conseguia se concentrar na passagem do tempo ou em tudo o que ele dizia.
Ele contou histórias do Egito. Rússia. França. Inglaterra. Mas foram as
histórias dele sobre a Família que ficaram em sua mente. Histórias de seu
tempo como Harrow Faire.
Lazarus estava sentado em uma parte lisa da estátua de metal,
encostado em outra pedaço irregular que se esfaqueava em direção à torre
acima. Ela percebeu que ele falava no meio de uma frase
— ...e havia uma cabra. Apenas... Uma cabra, bem ali, no meio da feira.
— Ele riu. — Não faço ideia de como chegou lá, ou de onde veio. Apenas
uma cabra aleatória. Você pensaria que eu estaria ciente de uma maldita
cabra vagando, mas eu nem percebi até que Bertha e Rudy começaram a
brigar sobre o que fazer com ela.
Quanto mais ela se concentrava, mais ela sentia dor. Então ela apenas
tentou não engolir muito sangue e respirar o melhor que podia. Ela não podia
falar, mas pelo menos ele podia ouvir seus pensamentos. Brigando por ela? Por
que?
— Rudy queria comê-la. Bertha queria mantê-la como animal de
estimação. Oh, eles gritaram e gritaram um com o outro. Rudy mordendo e
rosnando para a pequena cabra gritando. Mas Bertha não queria nada disso.
Ela bate forte. Acertou Domador de Animais bem na cabeça, e acho que o
pobrezinho viu estrelas. Ele finalmente cedeu. Bertha manteve aquela cabra
como animal de estimação por anos. Deu-lhe o nome de Sam. Aquela cabra a
amava e a seguia em todos os lugares. O tempo todo, Rudy continuou
tentando comer a coisinha. Até o dia em que Sam morreu de velhice.
— Ela enterrou a cabra na linha da floresta perto do lago. — Laz
suspirou. — Eu nunca vi alguém tão dividido quanto Bertha por Sam. Ela se
sentou na frente de seu vagão e chorou. Então, a pior coisa aconteceu. Rudy,
como um lobo, caminhou até ela e deitou a cabeça em seu colo. Ela precisava
de um animal para consolá-la, e ele de alguma forma sabia disso. Ela chorou
em sua pele por uma hora. Apenas o abraçou e chorou. Eles têm sido
melhores amigos desde então. De vez em quando, ele traz um animal de
estimação de sua coleção para ela quando acha que ela precisa de companhia.
— Coisinhas engraçadas, os animais de estimação. — Ele riu e passou a
mão sobre a cabeça careca. — Ela amou aquela cabra mais do que eu acho
que ela já amou alguém antes ou depois. Sempre achei fascinante como os
humanos podem amar mais os animais do que as pessoas. Acho que é porque
eles são simples, puros, eles não pedem nada em troca além de comida,
abrigo e talvez um pouco de atenção. E o que eles devolvem é amor e
lealdade inabaláveis.
Somos seus animais de estimação?
— Você diz isso como se fosse uma coisa ruim. — Ele resmungou e
desviou o olhar, e então mexeu na manga do casaco. — Eu suponho que sim.
Sim. Eu queria que vocês fossem, de qualquer maneira. Mas os humanos não
dão amor e lealdade. Não por muito tempo. E não como os animais fazem.
Excelente. Você é um idiota.
— Ora! O que você espera que eu diga? — Ele gesticulou para a torre ao
seu redor. — Não se esqueça do que eu sou. Eu não sou essa coisa que você
vê aqui. Eu nem sou este lugar. Eu sou algo completamente diferente. Eu
apenas faço essas coisas... Existirem em sua dimensão. Eu sou outra coisa,
você percebe. Algo à esquerda do seu mundo. Eu sou uma criatura fora do
seu conceito de criação. Eu sou uma criatura que transcende acima de todas
as suas pequenas percepções de espaço e tempo.
E é isso que você faz com o seu tempo? Vende cachorro-quente frito no palito?
— Eu-eu estou tentando ser o mais benigno possível, você percebe. Eu
poderia governar este mundo se eu quisesse. Esmagá-los debaixo do meu
polegar. — Ele balançou um dedo para ela. — Mas eu quero ver este mundo
da sua perspectiva, não da minha.
O que quer que você diga, circo assassino devorador de humanos. Todo o poder
do mundo, e você se enfia em um pote glorificado e vende salgadinhos de milho para
as pessoas. Ela o estava provocando. Ela foi espetada em uma estátua de metal,
morrendo lentamente e voltando, e ela estava provocando um deus inferior
insondável. Ela tentou sorrir para ele. Se ela ia morrer, ela poderia muito bem
sair do jeito que entrou. Acho que você está cheio de merda. Acho que você está
dando um bom show para mim, só isso.
Lazarus riu. Ele estendeu a mão e pegou a mão dela.
— Eu acho, querida Cora, que você pode ser uma das minhas favoritas.
Só estou triste que teve que terminar assim. Poderíamos ter sido
maravilhosos juntos, você e eu. — Seu sorriso ficou triste e melancólico. Ficou
claro que ele estava sonhando com coisas que poderiam ter sido. — Você
teria sido gloriosa.
Obrigada. Eu acho.
Ele deu um tapinha na mão dela.
— O poder é uma droga estranha. Faz coisas imprevisíveis para quem o
prova. Imagine o poder como uma espada – não há coincidência de que as
espadas sejam o símbolo de autoridade e controle para a humanidade por... O
quê... Milhares de anos, agora? O poder é uma arma. Pode ser usado para
defender ou proteger. Pode ser um símbolo de tirania ou nobreza. O senhor
da guerra e o rei. E você nunca sabe exatamente o que uma pessoa vai fazer
com ele até que seja entregue a ela. Até que lhes digam que pertence a eles, e
o campo é deles para manter ou arrasar. Acho que uma das minhas coisas
favoritas sobre a humanidade é como vocês são imprevisíveis com esse dom.
Cora tossiu. Oh, Deus, tossir dói. Ela sentiu gosto de sangue na boca e
virou a cabeça para tentar limpá-lo, mas não conseguiu. Ela engoliu. Engolir
doeu ainda mais. Mas tirou a bola de sua garganta e a deixou respirar
novamente.
Ou talvez não.
Os momentos de vigília e não-vigília estavam se misturando. Quando
ela voltou à consciência, Lazarus não se moveu. Ele ainda estava sentado ao
lado dela, olhando por uma das janelas pretas como o vazio.
— Bem-vinda de volta.
Ela engoliu novamente. Sua língua parecia grossa e seca em sua boca.
Ela desejou um copo de água, mas ela sabia que nunca viria. Ela não se
incomodou em pedir.
— Já foi dito muitas vezes por criaturas mais espirituosas do que eu,
mas o poder vem com um fardo. Até para o senhor da guerra, até para o
monstro. Se alguém quiser empunhar a espada, você deve sentir seu peso ao
mesmo tempo. Mestre de Cerimônias recusou. Ele viu sua chance de pegar a
lâmina sem a responsabilidade que vinha com ela. — Laz fez uma careta. —
Essa é a fraqueza dele. Esse é o crime dele. Pensar que ele está acima do fardo
que veio com o poder que ele queria exercer.
Ele não quer empunhá-lo. Ele quer matá-lo.
— Atirar uma espada em um lago ainda é usá-la para alguma coisa. —
Laz fungou com desdém e cruzou os braços sobre o peito. Ficou claro que ele
levou a coisa toda para o lado pessoal. Ela supôs que ela levaria, também, se
alguém estivesse tentando matá-la porque ela era muito má para viver.
Eu acho.
— Há um momento em que eu realmente entendi como era para uma
de vocês criaturas ter o verdadeiro poder. Verdadeiro poder. Não apenas
exércitos, não apenas identidade e legado, mas algo que rivalizava com meu
próprio alcance, mas dado a uma criatura que já foi mortal. Ele entrou aqui
um dia. Sujeito alto. Muito alto. Claramente desumano. Sua pele era da cor de
cinzas brancas. Você teria gostado dele. Vendo como eu sei que você gosta de
olhos vermelhos e tal.
Rá, rá.
Lazarus riu.
— Cara sério, no entanto. Parecia que poderia machucá-lo sorrir. Ele
entrou aqui e ficou claro que ele simplesmente... Sabia o que eu era. Assim
como eu sabia o que ele era. Eu não tinha certeza de quem estava mais
curioso sobre quem, ele ou eu. — Ele sorriu.
Sério? Isso a fez sorrir que esse tipo de coisa existia no mundo. Tornou
tudo ainda mais interessante.
— Oh sério. Há mais coisas no Céu e na Terra, e assim por diante. Você
acha que era só eu perambulando por este lugar? Não, querida. Criaturas
como nós são simplesmente boas em se esconder.
Ele fechou os olhos e descansou a cabeça contra o metal, um pequeno
sorriso cruzando suas feições. A memória de um bom dia estava claramente
passando por sua cabeça.
O que aconteceu?
— Enviei Palhaço para dizer olá, como só um palhaço pode fazer. Ele
fez para a criatura um balão de brinquedo. Uma espada rosa forte. — Lazarus
riu. — Achei que ele ficaria furioso com o insulto. Que ele iria estourá-lo, no
mínimo. Mas ele não o fez. Ele pegou. Naqueles olhos vermelhos vi uma
criatura que reconhecia a escuridão como sua. Ele entendeu o que nós
éramos. Ele tinha uma ideia do que esse lugar realmente era. E ele
simplesmente disse, ‘Obrigado’, e... Foi embora. Ele entregou a espada para
uma criança uns três metros depois, claro, mas ele a pegou. Ele poderia ter
começado uma guerra. Ele poderia ter feito algum dano incrível. Ele viu uma
criatura que rivalizava com seu próprio poder, uma ameaça em potencial, e
escolheu a paz.
Cora engoliu outra bola grossa de sangue. Ela queria ouvir o resto da
história. A dor estava começando a corroer seu foco. Ela ia voltar para a
escuridão em breve. E?
— Aprendi então que sua espécie é capaz de lidar com poder assim,
como o meu, afinal. Nem sempre. Talvez não por muito tempo. Mas às vezes,
talvez de vez em quando, vocês escolhem a paz. Vocês escolhem apenas
viver. — Lazarus deu de ombros. — Isso me deu esperança para a
humanidade. Que vocês não são totalmente fanáticos odiosos, monstruosos,
autodestrutivos e egoístas. Apenas na maior parte.
Ela teria sorrido. Ela teria rido. Ela teria tentado dar uma resposta
espirituosa.
Mas tudo meio que sumiu.
Ela sentiu os lábios tocarem sua mão.
— Eu sinto muito, Cora... Nós poderíamos ter sido ótimos, você e eu.
Ela se perguntou se isso era verdade.
Mas isso realmente não importava mais.
Nada importava.
Turk hesitou quando sua mão tocou a maçaneta da porta do vagão. Ele
sentiu como se estivesse sendo observado. Com um suspiro longo e pesado,
ele olhou para cima. Lá, em cima de sua estrutura, estava um lobisomem. Um
com olhos amarelos ardentes que brilhavam na escuridão.
Mestre de Cerimônias ergueu uma sobrancelha para ele.
— O quê, Rudy?
Ele recebeu um rosnado baixo do Domador de Animais.
Com um revirar de olhos, ele abriu a porta de seu vagão e a deixou
aberta.
— Se você quer falar, fale. Você sabe que eu não respondo a táticas de
medo.
Ele foi até o fogão fazer um bule de chá.
Houve um baque atrás dele. Ele ouviu a porta se fechar. Ele sabia que
Rudy teria que assumir a forma humana para passar pela porta. Isso
significava que ele não tinha vindo para uma briga. Turk estava bastante
contente. Ele só tinha brigado com Rudy algumas vezes ao longo dos anos, e
era sempre... Bagunçado. Ele geralmente ganhava, mas nunca era agradável.
De repente, ele sentiu falta de suas lutas de boxe com Ludwig. Ele e o
Homem Mais Forte muitas vezes brigavam no ringue para entretenimento e
prática. A dor arrasou seu coração. De todos os membros da Família que
vieram e foram ao longo dos anos, ele sentia mais falta do gentil gigante.
Ludwig teria conseguido colocar juízo em Cora. Se o Homem Mais Forte
tivesse ficado apenas mais algumas semanas, tudo isso poderia ter sido
evitado.
Ludwig podia colocar bom senso em qualquer um. Até Simon, de vez
em quando. Mas a gentil criatura se foi. Mestre de Cerimônias se perguntou
se isso não fazia parte dos desígnios de Harrow Faire.
Rudy não disse nada. Houve apenas silêncio.
— Você veio me ver, Rudy. Se você espera que eu fale primeiro, isso é
muito rude.
Turk sorriu enquanto colocava a chaleira no fogão e ligava o gás. Ele se
virou para ver o outro homem encostado na parede perto da porta,
carrancudo. Pelo menos ele estava vestindo calça. Geralmente era uma aposta
de cinquenta por cento com Rudy.
— Liberte-os —Rudy grunhiu.
— Por que?
— O que você fez está errado. — Rudy arreganhou os dentes em um
rosnado. — E você está mentindo para os outros.
Turk endureceu.
— Quanto você sabe, Domador de Animais?
— O suficiente. Senti cheiro de morte neste lugar muito antes de ela
chegar. Eu podia sentir o icor no chão. A fome. Eu procurei Palhaço anos
atrás. Ele me disse a verdade. Que você engaiolou a fera e nos impediu de nos
alimentar. Que você deseja que todos nós morramos.
— Ele falou com você?
— Ele falaria com qualquer pessoa disposta a ouvir.
Mestre de Cerimônias soltou um suspiro longo e pesado. Ele passou a
mão sobre a metade inferior do rosto, ponderando suas próximas ações. Ele
também não poderia jogar Rudy na torre. Isso era demais para pesar contra a
honra de Turk. Rudy não tinha feito literalmente nada de errado.
Ainda.
Ele se encolheu e se inclinou contra os armários.
— Você vai contar para os outros?
— Sempre fiquei parado e deixei o drama acontecer. — O Domador de
Animais deu uma olhada nas fotos nas paredes. — Você é o líder deste
bando. Até mesmo sua escolha de matar a Faire de fome e matar todos nós eu
respeitava porque você está no comando. Mas prender Cora e Simon é um
ato de covardia. Você tem medo de lutar. Você tem medo de perder.
— Se você e Simon estiverem do lado dela, eu vou. — Ele riu. — Eu não
sou tolo.
Rudy zombou.
— Eu nunca disse que você era estúpido. Eu chamei você de covarde.
— É covardia encarar minha própria morte? Saber que vou levar todos
que amo e cuido comigo? Não, Domador de Animais. Eu não sou um
covarde. Estou fazendo o que deve ser feito. E este lugar – esta coisa – deve
ser destruída. E não deixarei que minha vitória seja arrebatada de mim no
último momento.
Rudy riu baixinho.
— Então lute. Não se rebaixe a táticas dissimuladas. Se você falhar,
então você falha. Essa é a maneira do bando. Se o alfa é velho, fraco e não
pode liderar, então ele é desafiado e morto. Essa é a lei da natureza. É assim
que deve ser.
— Nós não somos lobos, Rudy. Para sua decepção, eu sei. — Ele tirou a
chaleira quando ela começou a assobiar. — Somos monstros que não têm o
direito de existir. Simon e Cora ficarão na torre. E eles vão ficar lá até que este
lugar deixe de existir. Então vou perguntar de novo, você vai contar aos
outros?
Rudy o encarou. Seus ombros erguidos, tensos, e suas mãos formaram
punhos ao seu lado. Por um momento, Turk se perguntou se o Domador de
Animais mudaria de forma novamente e o faria em pedaços. Mas depois de
um momento, ele relaxou.
— Qual o bem que isto faria? Não há tortura que eu possa fazer a você
que faria você mudar de ideia. Nenhuma dor que eu pudesse fazer você
suportar. Eu te conheço, Turk. E seus princípios são tudo que lhe restou. —
Ele abriu a porta. — Vou ficar em silêncio por enquanto. Mas saiba disso...
Quando o fim chegar, você vai cumprimentar o vazio comigo comendo seu
fígado.
Ele abriu a porta para ir.
Turk balançou a cabeça.
— Bom ver você também, Rudy. Estou feliz por termos tido essa chance
de conversar.
E com isso, o Domador de Animais foi embora. A porta clicou atrás
dele. Turk colocou as mãos na borda da pia e se inclinou sobre ela, fechando
os olhos. Não havia como libertá-los. Não havia como liberar Cora e Simon
para o mundo. Eles não parariam por nada para matá-lo. Ele tinha certeza de
que esta era a coisa certa a fazer.
Mas não entorpeceu o gosto amargo em sua boca.
Batendo o punho no balcão, ele observou as rachaduras se formarem
sob seus dedos.
Não cheguei tão longe para questionar minha fé agora.
Eu vou destruir esta criatura.
Eu devo.
Alguém estava acariciando seu cabelo. Ela estava deitada de lado em
algo macio e fresco, a cabeça em cima de algo mais firme. A luz do sol, quente
e maravilhosa, tocou sua bochecha. Ela podia sentir uma brisa. Ela estava do
lado de fora, em um campo. Não empalada em alguma estátua de metal
retorcida.
Era um sonho. Ela não se importou. O sonho era superior.
Ela se esticou e enrolou os dedos no tecido sob sua bochecha. Ela estava
deitada com a cabeça no colo de alguém. Ele cheirava como uma loja de
antiguidades. Misturado com colônia antiga e apenas um pouco de tinta,
ficou claro quem era. Ela não sabia qual versão de Simon tinha vindo para
consolá-la, ou se ele estava realmente lá, mas ela não recusaria a companhia
de qualquer maneira.
Consolo era consolo. Conforto era conforto. E os mendigos não podiam
escolher.
— Oi — ela murmurou. Ela estava quase com medo de falar. Quase
com medo de que dizer algo o mandasse embora como uma ilusão. Mas ela
tinha que interagir com ele, mesmo que fosse tudo uma mentira e um sonho.
— Eu gostaria de poder ajudá-la — ele sussurrou. O som de agonia em
sua voz lhe disse quem era. Era sua sombra. Simon nunca soou assim –
exausto de emoções. Essa era a chave da questão.
— Você está. Isso está ajudando.
Ela pegou a mão dele, e ele a pegou, entrelaçando os dedos no colo
junto ao rosto dela.
— O que aconteceu com você?
— Há outra torre, invertida abaixo da normal. Há... Uma estátua lá
embaixo. Estou presa a ela.
— Nela?
— Nela.
Ela se encolheu e esfregou a garganta onde a estátua a empalou.
Simon soltou um suspiro longo e vacilante e acariciou o cabelo dela
novamente.
— Eu deveria saber que Mestre de Cerimônias jogaria sujo. Eu deveria
ter feito alguma coisa.
Ela beijou a mão dele.
— É tarde demais agora. Não adianta lamentar coisas que não podem
ser mudadas.
— Não sei quanto tempo teremos juntos. Eu duvido muito. Cora... Eu
quero que você me escute. — Sua voz era baixa, insistente e vacilante de
emoção. — Eu preciso que você me escute. Eu... Eu me importo com você.
Mais do que você imagina. Diga o que quiser sobre mim, e tudo é verdade.
Cora Glass, eu... — Ele hesitou por um longo momento. — O fato de que eu
não posso te salvar vai ser o que destrói o que resta da minha mente. E eu
queimaria tudo se achasse que isso me daria a chance de poupá-la desse
destino.
Ela sorriu tristemente. Ela adorava esses momentos com a sombra de
Simon, poucos e distantes entre si. Claro, ele era um pouco esquisito e um
pouco exuberante demais. Mas seu amor por ela era claro. Era o único amor
que ela teria de Simon Waite.
O eu desperto de Simon não podia amá-la. Não queria amá-la. Por suas
próprias palavras, ele odiava que ele se importasse com ela.
Mas ela o aceitou pelo que ele era. Ela beijou sua mão novamente.
— Eu te amo, Simon. Eu realmente amo. Você todo. As duas metades –
ou loucuras, o que você quiser dizer que seja. Não importa o que você faça,
não importa o que você diga, não importa onde isso nos levou. Eu te amo.
Tanto o homem quanto o Marionetista.
Algo úmido tocou sua bochecha. Ele a afastou um segundo depois.
— Olhe para mim, chorando como uma criança de novo... — Ele riu
tristemente. — Olhe a quê você me reduziu. Estou chorando como um idiota
por você. Oh, a degradação nunca terminará?
Isso não soava como sua sombra. Ela abriu os olhos e, sentando-se,
virou-se para olhar para o homem na grama ao lado dela. Ela esperava que
ele estivesse vestindo um terno todo preto. Que fosse ver olhos cianos
olhando para ela.
Vermelho a encontrou em ambos os casos.
— Simon...?
Ele enxugou as bochechas, mesmo enquanto tentava zombar dela
cruelmente.
— Quem mais seria, docinho?
— Eu... — Ela gaguejou. — Você...
— Desculpe minhas lágrimas. — Ele acenou com a mão com desdém. —
Um momento de fraqueza causado pelo sangue correndo para minha cabeça.
Pendurar-se de cabeça para baixo pelos tornozelos tende a fazer com que
digamos coisas tolas.
Ela jogou os braços em volta do pescoço dele e o abraçou com tanta
força que o desequilibrou. Ele gritou de surpresa e caiu na grama com um
“unf”.
— Simon!
— Olá, Cora, querida. — Ele a abraçou com força e beijou sua têmpora.
— Eu suponho que este momento será fugaz na melhor das hipóteses. Tenho
certeza de que devo agradecer à Faire. Acho que devo dizer minha parte
agora. Minha chance foi tirada de mim duas vezes agora, e acho que deveria
aproveitar para me expressar, pois esta pode ser nossa última oportunidade.
Cora Glass, eu...
Ela o beijou. Ela não pôde evitar. Ela o beijou com tudo o que tinha.
Agora ela estava chorando. Ela não queria dizer adeus. Ela não podia ouvi-lo
dizer adeus. Ela não o deixaria dizer que eles nunca mais se falariam.
Abraçariam um ao outro novamente. Fariam uma ao outro rir novamente.
Ele tentou interromper o beijo para falar. Ele murmurou coisas abafadas
contra seus lábios. Finalmente, ele riu e pegou sua cabeça em suas mãos para
puxá-la de volta.
— Deixe-me falar, mulher!
— Não. — Ela ia chorar se não tomasse cuidado. — Espere. — Ela
tentou pronunciar as palavras algumas vezes, apenas para ter sua voz
embargada, antes que ela finalmente conseguisse. — Eu não quero dizer
adeus. Eu não vou.
Seus olhos se enrugaram de tristeza quando ele acariciou sua bochecha
com o polegar.
— Oh, Cora... Isso não é o que eu quero dizer.
— Então o que é?
Sua voz suavizou. Ela não viu nada além de uma riqueza de emoção
naqueles olhos preto-vermelho-branco.
— Cora Glass... Eu...
O sonho piscou para longe. A escuridão a levou.
— Cora Glass... Eu...
Ela desapareceu de seus braços. Um segundo, ela estava lá. No
próximo, como um fantasma, ela se foi. Ele uivou de raiva e chutou os
calcanhares na grama.
— Caramba! — Ele pressionou as palmas das mãos sobre os olhos. —
Dane-se tudo para o inferno! Você fez isso de propósito, Harrow Faire. Eu sei
que você fez!
— Você só tem que culpar a si mesmo.
Simon levantou a cabeça surpreso. Havia um homem de pé a seus pés.
Um homem vestindo roupas muito velhas. Um homem que ele pensou que
poderia reconhecer. Ele apertou os olhos. Oh.
— Olá, Palhaço. Eu não reconheci você sem todo o... — Ele acenou com
a palma da mão vagamente na frente de seu rosto em um movimento
circular. — Negócio de caveira.
O homem a seus pés olhou para ele severamente. Simon conhecia
aquele olhar. Era a expressão de um pai severo e desaprovador.
Simon revirou os olhos e, cruzando os braços atrás das costas, se
acomodou.
— Harrow Faire, certo?
Silêncio.
— E é assim que você aparece para Cora? — Simon murmurou. — Eu
teria escolhido uma aparência mais bonita, pessoalmente. Mas suponho que
meu belo rosto já foi tirado. — Ele sorriu. — Não podemos tê-la confundindo
nós três agora, podemos?
Ainda assim, o fantasma de Palhaço-que-virou-a-Faire olhou para ele
sem rodeios.
— Estou histérico. Eu não sei qual é o problema com todos vocês. —
Simon fechou os olhos, aproveitando o sol e a brisa. Era muito melhor do que
ficar pendurado pelos tornozelos. Ou ser espetado em uma estátua como a
pobre Cora. — Muito rude nos interromper, a propósito. Eu estava prestes a
fazê-la muito feliz.
— Você teve tantas chances de dizer a ela que a ama. E cada vez você
não podia dizer. Por que?
— É indigno.
— Simon.
Ele abriu um olho.
— O quê?
— Se eu te dissesse que você tem o poder de salvá-la, você faria isso?
Isso chamou a atenção dele. Ele se levantou, puxando o paletó.
— Por que você não começou com isso? É claro! O que eu preciso fazer?
— Você disse a ela que se sacrificaria para poupá-la. — A Faire olhou
para ele. — Eu preciso saber se você quis dizer isso ou se você está mentindo
de novo.
Simon vacilou. — O... O quê?
Ele deu um passo para trás, lembrando-se de repente que a Faire, por
mais castrada que pudesse estar em seu estado faminto, ainda era muito
perigosa.
— Você está disposto a se sacrificar por ela, Simon Waite?
— Bem. — Ele ajeitou a gravata. — De quanto estamos falando?
A Faire suspirou pesadamente.
Uma terceira voz entrou na briga. Bem, tecnicamente, ainda era apenas
uma das duas vozes. Mas mesmo assim foi inesperado.
— Eu estou. Eu farei qualquer coisa que você precisar.
— Gá! — Simon saltou um pé no ar enquanto olhava para si mesmo. —
Oh. Ah. Ah. Veja. Veja, agora eu sei que estou alucinando. — Ele apontou
para a imagem espelhada de si mesmo. Apenas algumas coisas eram
diferentes. O terno era um estilo mais antigo e preto. Olhos ciano olharam
para ele. Olhos que ele costumava ter, mas não via no espelho há muito
tempo. — Viu? Isso tudo é apenas um sonho. Não preciso abrir mão de nada,
porque nada disso é real.
A imagem espelhada de Simon olhou para o fantasma de Palhaço.
— Eu sacrificarei qualquer coisa que você precise. Qualquer coisa por
ela. — Ele deu um passo em direção ao outro homem. — Eu a amo. Eu faria
qualquer coisa para protegê-la, e você sabe disso.
Palhaço respirou fundo e soltou lentamente.
— Oh, coitadinho. — Ele estendeu a mão e colocou as palmas das mãos
no peito do reflexo vestido de preto de Simon, e por um momento, ele
esperou senti-las por conta própria. O Marionetista deu um passo para trás
da cena, achando-a profundamente perturbadora. — Tão dividido, você nem
sabe mais o que você é, não é?
— Eu sei... Perfeitamente bem... — Simon gaguejou. — Estou bem,
muito obrigado! Por que você está falando com ele? Ele não é real. Não sei o
que ele é, mas essa coisa não sou eu e...
— Cale-se! — Seu reflexo o rodeou, atacando-o inesperadamente. —
Isso é tudo culpa sua! Se você não fosse tão egoísta por um segundo... Uma
fração de segundo...
— Espere. — Simon piscou. — Sombra? Isso é você? — Ele gargalhou.
— Oh! Eu entendo agora. Cora estava fazendo sexo com essa versão de mim.
Achei que ela só gostava de coisas estranhas... Bizarras... E sombras. — Ele
mexeu os dedos em seu reflexo e torceu o nariz. — Isso é um alívio, na
verdade.
Seu reflexo se encolheu, em seguida, brilhou.
— Pare. Isso não é engraçado.
— Errado. Isso é histérico. Estou alucinando um sonho entre mim,
Palhaço-que-agora-é-Harrow-Faire, e minha própria sombra. Isso não tem
preço. E se você acha que vou ser colocado para...
Sua sombra o socou.
Diretamente na mandíbula.
O derrubou na grama, e ele gemeu de dor.
— Ai.
De repente, ele estava de costas na grama mais uma vez e alguém
estava montado em seu peito. Infelizmente, era seu reflexo, e não Cora
empoleirada em cima dele desta vez. Sua sombra tinha as lapelas de seu
paletó carmesim fechadas em ambas as mãos.
— Cale a boca e ouça, Marionetista.
— Tudo bem, mas... — Sua sombra o sacudiu, balançando sua cabeça
na terra. Ele resmungou e ficou quieto.
— Eu a amo. Eu a amo mais que tudo. Mais que a vida. E você também!
Nós somos o mesmo homem. Sempre fomos o mesmo homem. Apenas fui sua
muleta. Seu apoio emocional. Você quer saber a verdade? Eu não sou real. Eu
sei disso. Eu costumava pensar que era parte de você... Mas não sou. Eu sou o
balde onde você coloca tudo que você está fraco demais para sentir.
— Eu não...
Sua cabeça ricocheteou na terra novamente.
— Ela ama você. Ela ama você. Ela estava disposta a segurar sua mão
pelo resto do tempo, sabendo que você odiava cada grama de simpatia e
compaixão que você já teve por ela. Ela estava disposta a carregar esse fardo,
sabendo que nunca, jamais, realmente a amaríamos de volta. Não porque não
podíamos, mas porque você não queria. Porque você não queria o
inconveniente. A indignidade. O sacrifício. Então, em vez disso, você vai
arruinar tudo, como nós arruinamos tudo o que já tocamos!
Dessa vez, Simon nem tinha nada a dizer. Ele apenas olhou para sua
sombra e deixou que essa parte dele continuasse ininterruptamente. Isso, e
ele não queria que sua cabeça batesse no chão novamente.
— Se pudermos salvá-la... Se pudermos tirá-la daquele poço... Então
vamos fazê-lo. Mesmo que isso nos destrua. Estamos mortos de qualquer
maneira! Você não entende? Este é o fim. Isto é para nós. Mas se ela pode
continuar – se ela pode sobreviver – então vale a pena. Então nossa vida
miserável e de merda valeu alguma coisa no final. Porque Deus sabe que não
fomos nada além de uma maldição em tudo ao nosso redor até agora! Não
estou pedindo para você ser um herói, Simon. Não estou pedindo para você
ser o mocinho. Estou lhe pedindo para não ser tão covarde. Ame-a. Seja
corajoso o suficiente para tentar. Ou você abandonou essa parte de você
também?
Simon colocou a mão nas costas de uma das que seguravam seu casaco.
Sua sombra se encolheu, seus olhos lacrimejando.
— Você sabe o quanto eu gostaria que pudéssemos trocar de lugar? O
quanto eu quero acordar naquela cama com ela? Quanto eu... Eu a amo?
Quanto eu daria só para poder vê-la rir de novo...?
— Sim. — Ele apertou a mão sob a sua suavemente. — Eu sei.
Lágrimas rolaram pelas bochechas de sua sombra sem controle
enquanto ele agarrava as roupas de Simon com mais força, sacudindo-o mais
uma vez.
— Então faça algo sobre isso. Salve-a. Proteja-a. Ame-a. Porque eu...
Porque não estarei mais por perto para fazer isso por você.
Simon franziu a testa.
— O quê?
— Não posso mais ser sua muleta. Eu não posso ser sua desculpa. —
Sua sombra saiu dele então, enxugando seu rosto. Ele puxou uma respiração
trêmula e olhou para o céu azul, pontilhado de nuvens brancas. — Estou com
medo. Depois de todo esse tempo, estou com medo. Eu nunca fui real para
começar. Mas eu ainda... Me senti real. Eu me sentia uma pessoa. Acho que
isso é tudo o que é preciso para ter medo de morrer. — Ele limpou a manga
no nariz. — Diga a ela que eu disse adeus. Diga a ela que eu disse que a amo.
E faça o que fizer, Simon Waite — sua sombra olhou para ele — não estrague
isso também.
O mundo virou. A gravidade mudou.
O sonho se desfez.
Ele estava pendurado pelos tornozelos mais uma vez.
Ele estava sozinho. E ele não conseguia nem enxugar as lágrimas do
rosto enquanto elas pingavam na escuridão abaixo dele. Ele se perguntou se
elas poderiam alcançar Cora.
Ele esperava que sim.

Cora gritou.
O barulho que ela fez foi silencioso, afogado em líquido, borbulhante e
fraco, mas era um barulho mesmo assim.
Ela sentiu como se facas estivessem cortando seu corpo. Rasgando a
carne, puxando os tendões, esticando coisas que não deveriam ser esticadas.
Ela sentiu veias e tendões estalarem. Sentiu eles se separarem e rasgarem.
Sua visão ficou branca, depois preta.
E por muito tempo, não havia nada.
Então, pouco a pouco, as coisas começaram a voltar para ela. Era
estranho como as coisas voltavam de maneiras estranhas. Não onde ela
estava, ou o que tinha acontecido. Não. A primeira coisa que ela percebeu foi
que seus dedos estavam entrelaçados em um piso de metal sob ela. Ela sentiu
as saliências do ferro fundido, as seções pontiagudas e o leve grão sob os
dedos das seções enferrujadas. Ela estava deitada de lado novamente. Mas
desta vez, não era na grama macia e fresca. Não era em um dia ensolarado
em um campo no colo do homem que ela amava.
Era no fundo de um poço.
No “topo” de uma torre invertida que se estendia profundamente no
solo.
Mas alguém ainda estava acariciando seu cabelo com ternura.
Ela tentou falar e tossiu. Ela rolou mais para o lado e ofegou, tentando
limpar a garganta. Ela cuspiu sangue que era velho e pegajoso. Foi nojento.
Parte dela pingou na escuridão abaixo dela através do chão. Ela gemeu de
dor, mas ficou feliz ao descobrir que podia respirar. Ela podia fazer barulho.
Ela chiou por um segundo, puxando uma respiração trêmula.
Lentamente, pouco a pouco, as coisas começaram a clarear. Ela
pressionou a mão no pescoço e não sentiu nenhum ferimento gigante lá.
Havia sangue, quente e grosso, mas nenhum corte. Nenhuma lança gigante
de metal saindo dela.
Demorou até aquele momento para perceber que ela estava livre.
Uma mão – uma mão grande – gentilmente pressionou suas costas,
acariciando-a. Era quente e macia, mas os dedos pareciam longos demais
para serem humanos. Ela ficaria com medo se não parecesse tão terno e
cuidadoso na maneira como a ajudou a se sentar. Ela se virou e deu um pulo
de surpresa.
Ela não sabia o que estava esperando.
Mas não era isso.
Era a sombra de Simon. Mas não contra a parede. Não ao longo do
chão, ou qualquer objeto próximo. Estava flutuando no espaço à sua frente.
Isso... Não era possível. Era?
Ele estava sorrindo para ela com tristeza naqueles olhos retorcidos e
irregulares dele. Com uma mão grande e sem corpo, acariciou seu cabelo
novamente. A outra se enrolou em seu quadril, e ele se aproximou dela. Ele
parecia veludo quente. Macio e um pouco felpudo, mas não desagradável.
Ela não tinha certeza do que esperar, mas nunca havia tocado uma sombra
antes, para ser justa.
— Como você... — Ela tossiu. — Você me libertou?
Ele assentiu.
Ela jogou os braços em volta do pescoço dele e o abraçou. Ele pareceu
mole, um pouco como um balão de água. Mas real.
— Obrigada. Oh, Deus, obrigada, Simon... — Ela quase chorou de
alívio. — Eu não sei como... Eu não achei que você pudesse tocar o mundo
real. Obrigada, obrigada, eu te amo.
— Eu te amo, Cora. — Era uma voz sussurrante. Não a que ela estava
acostumada a ouvir em seus sonhos. Ele soou suave e distante, mas ainda alto
o suficiente para ser ouvido. — Nunca pensei que algum dia conseguiria
interpretar o herói. Olhe para mim. Fiz algo certo.
— Obrigada, muito obrigada...
Ela beijou sua bochecha de sombra. Seu sorriso ficou um pouco mais
brilhante.
— Estou feliz por ter tido a chance de salvá-la. Mesmo que tenha sido apenas
uma vez.
— Uma chance...? — Ela se afastou dele apenas o suficiente para olhar
naqueles olhos medonhos e de redemoinhos. — O que você quer dizer?
— Eu te amo, Cora. Eu faria qualquer coisa para te salvar. Eu pagaria
qualquer preço... Você sabe disso.
Uma garra grande e sombria traçou sua bochecha.
E então ela percebeu o que era a tristeza em seus olhos. Isso não era
apenas lamentação pela dor que ela havia sofrido.
Isso era luto.
Isso era adeus.
— N-não. Por favor.
A sombra de Simon se inclinou e descansou sua grande cabeça contra a
dela.
— Está tudo bem. Eu tenho significado agora. Eu tenho propósito. Posso
morrer pela mulher que amo. Isso é mais do que eu já mereci.
— Por favor, Lazarus, por favor, salve-o.
— Eu sinto muito. É preciso muito poder para se manifestar — disse
Laz de algum lugar atrás dela. — Ele se esgotou, e não há nada que eu possa
fazer. Ele não é minha criação.
— Não. Não. Salve-o. Faça alguma coisa. — Ela não se virou para olhar
para Laz. Ela estava muito fixada na sombra à sua frente. Ela o segurou com
força, como se só por isso pudesse impedi-lo de desaparecer. — Por favor...
Não ele. — Ela beijou a testa da sombra, e ele a abraçou, descansando sua
testa contra a dela. Seus olhos se fecharam e seu sorriso era triste, mas
contente. Ela estava chorando agora copiosamente. — Eu não posso perdê-lo.
Não posso. Eu o amo.
— Não chore... Eu nunca fui real, lembra? Eu não estarei longe. Eu sempre
estarei aqui com você. Mas eu fiz uma coisa boa. Só desta vez... Eu fiz uma coisa boa.
Ela o sentiu começar a escorregar por entre seus dedos. Sua garganta se
apertou e ela soluçou.
— Não... Laz... Por favor...
— Nada que eu possa fazer... Me desculpe. Ele sabia. Ele queria isso.
— Eu... — Ela voltou sua atenção para a sombra de Simon. — Eu te
amo. Eu te amo tanto, eu... — Sua voz ficou embargada enquanto ela chorava.
— Eu sempre vou te amar. E sempre me lembrarei de você.
— Isso significa que eu existia. Isso me faz feliz. — Ele traçou uma garra
sombria sobre sua bochecha. — Tão bonita...
Cora assistiu com horror quando... A sombra de Simon flutuou.
Desapareceu e escorregou de seus dedos como a fumaça de uma vela. Não
importa o quanto ela tentasse agarrá-lo e puxá-lo para mais perto dela, não
adiantou.
— Por favor, eu...
Mas era tarde demais.
Com um sussurro de vento, ele se foi.
Se foi.
Ela colocou a cabeça entre as mãos... E lamentou.
— Querido, hora de acordar.
Turk murmurou e jogou um grande braço sobre os olhos.
— Humm.
Amanda o cutucou.
— Eu fiz o café da manhã. Seu favorito.
Grogue, ele sorriu. Ele sabia o que ela estava fazendo só pelo cheiro.
Crepes. Ele os adorava. Amanda os dominara ao longo dos anos,
especificamente porque ele gostava muito deles. Ele grunhiu e rolou para o
lado. Ela já estava na cozinha novamente, cantarolando para si mesma.
Ele a observou por um longo momento. Ele amava tudo nela. Ele
adorava a forma como a luz do sol brilhava em seu cabelo loiro. O jeito que
ela sempre parecia estar sorrindo. A maneira como ela via o melhor nele,
mesmo agora.
Mas não importa o quanto ele a amasse, ele não poderia colocar
ninguém à frente do mundo. Nem mesmo a Aerialista. Ele preferiria morrer
cem mil vezes a vê-la machucada. Ele queimaria alegremente nas
profundezas do inferno até que o universo deixasse de existir se isso
significasse que ela estava segura. Mas ninguém – nem mesmo Amanda –
valia o dano que a criatura continuaria a causar à raça humana.
Especialmente se fosse libertada da pseudo-prisão que ele conseguira criar ao
longo do lago em New Hampshire.
Ele a abraçaria quando seu próprio mundo terminasse. Ele orava ao
profeta para que ela recebesse um lugar na vida após a morte. Mas mesmo
que deixassem de existir, seria um fim tranquilo e indolor para suas vidas.
Era mais do que a maioria recebia.
Era uma esperança fugaz que ele pudesse empurrá-la para as estrelas
enquanto caía abaixo. E ele faria isso sem hesitação.
Ele ficou ali, confortavelmente envolto nos travesseiros, sorrindo para
ela.
Ela olhou para ele e, um momento depois, lançou-lhe um olhar curioso.
— O que há com esse rosto sentimental?
— Apenas apreciando a vista.
Ela olhou para si mesma e para seu pijama folgado e lançou-lhe outra
expressão incrédula.
— Pah. Você sabe o que eu quero dizer. — Ele se levantou da cama com
um grunhido e arranhou as unhas curtas no peito. Ela não se importava com
o pelo que crescia lá – na verdade, ela dizia gostar. Mesmo que ele a tivesse
pego trançando em fileiras enquanto ele dormia daquela vez. Ele caminhou
atrás dela e beijou o topo de sua cabeça. — Você é adorável, e eu estava
apenas refletindo sobre o quanto eu te amo.
— Ah, o que te fez sentir todo idiota esta manhã? — Ela inclinou a
cabeça para beijá-lo. — Não que eu esteja reclamando.
— Culpa pelo que fiz com Cora e Simon. Eu me sinto terrível pelo que
fiz com ela.
— Você não tem escolha. — Amanda suspirou. — Mas é melhor você se
sentir terrível do que não. Significa que ainda há esperança para você.
Ele riu.
— Eu suponho que sim.
— Simon teria jogado você naquele lugar e nunca olhado para trás. Ele
teria assobiado ao fazê-lo. Que você sinta remorso faz de você um homem
melhor.
— E quanto a Cora?
— Eu... Eu não sei. Eu gostaria de pensar que ela era forte o suficiente
para não ser corrompida por Simon. — Ela balançou a cabeça. — Mas eu não
acho que ela era forte o suficiente para não ser corrompida pela Faire.
— Exatamente.
Ele se sentou em sua mesa, a cadeira rangendo. Ele pegou uma das
pequenas estátuas de ouro que guardava ao lado do sal e da pimenta. Elas
tinham sido presentes dados a ele por... Ele não conseguia se lembrar quem.
Ele se lembrou de amar os presentes. Ele se lembrou de como elas o
fizeram feliz. Que ele valorizava as pequenas estatuetas de ouro e queria
mantê-las por perto e visíveis. Ainda assim, elas o fizeram sorrir. Mas ele não
conseguia se lembrar por quê.
Era por isso que a criatura precisava ser parada. Não porque não
conseguia se lembrar do momento em que recebeu as estátuas, mas porque
era isso que fazia com as pessoas. Harrow Faire roubava as pessoas de si
mesmas. Pouco a pouco, acabava com elas. Uma coisa seria se se alimentasse
de sangue. Seria outra coisa se se alimentasse de anos – tirando a vida.
Mas roubar de alguém a única coisa que realmente importava?
Alimentar-se do que faz uma pessoa ela mesma?
Isso o horrorizou, mesmo agora. Mesmo depois de mais de duzentos
anos vivendo com essa realidade, o frio percorreu sua espinha. Harrow Faire
comia gente. Da pior maneira possível.
E assim... Sacrifícios tiveram que ser feitos.
Mesmo que isso machuque seu coração.
O que restou dele. O que a Faire não tinha levado. Ele passou o polegar
sobre a pequena estátua de ouro e desejou – profundamente desejou – que
pudesse se lembrar de quem a havia dado a ele. Mas estava fora de alcance.
Amanda deslizou um prato de crepes na frente dele, inclinando-se para
beijar sua bochecha.
— Anime-se. Tudo terminará em breve e finalmente teremos vencido
nossa guerra contra esse monstro.
Ele sorriu fracamente.
— A guerra nunca é algo para comemorar. Mesmo se você for o
vencedor, ela sempre tem um preço.
— Mas está tudo acabado agora. A Faire jogou sua mão e você ganhou.
— Ela estava atrás dele, colocando os braços sobre os ombros dele,
descansando a cabeça contra a dele. — Agora, anime-se e coma, minha
grande montanha turca. Antes que esfriem.
Ela beijou sua bochecha novamente.
Turk riu. Ele virou a cabeça e a beijou.
— Eu te amo, Amanda.
— E eu, você. — Ela o beijou de volta. — E eu sempre irei. Não importa
o quê.
Ele não tinha dúvidas de que ela falava sério. Mas ele esperava que suas
palavras de vitória fossem tão verdadeiras quanto suas palavras de amor.
Algo lhe dizia que a guerra ainda não havia sido vencida.
Algo lhe dizia que estava apenas começando.
Cora não tinha certeza de quanto tempo se passou antes que ela
pudesse finalmente parar de chorar. Ela ficou de joelhos na grade de metal,
chorando, com a cabeça entre as mãos, pelo que podem ter sido horas.
A sombra de Simon... Toda vez que ela se lembrava de seu rosto
estúpido e sorridente, ou de sua exuberância selvagem, ela chorava
novamente. Ela queria estender a mão e abraçá-lo. Ela queria beijá-lo e dizer o
quanto o amava. Ela queria ouvir suas palavras de amor em troca.
Mas ela nunca mais faria isso. Ele se sacrificou por ela.
A única parte de Simon que podia amá-la... Que queria amá-la... Se foi.
Ela fungou e enxugou os olhos na manga. Ela estava coberta de sangue. Era
pegajoso e nojento. E era o menor de seus problemas.
Simon.
Esse foi o pensamento que finalmente a empurrou para seus pés. Era
mais fácil falar do que fazer. Ela cambaleou escada acima e tomou seu tempo.
Porque eles estavam invertidos, o corrimão estava embaixo dela. Ela apertou
a mão contra a parede, caminhando perto dela. A ideia de cair de volta
naquela estátua a deixou doente do estômago. Ela se concentrou em cada
passo à sua frente até chegar ao patamar no nível do solo. Ela mal parou para
respirar enquanto corria escada acima, agora dois de cada vez, até que ela
pudesse vê-lo.
Seu coração se partiu novamente.
Ele estava pendurado flácido, seus braços amarrados à cintura. Seus
olhos estavam abertos, mas sem ver. Ele estava morto – por enquanto. Ela
sabia que ele estava preso no mesmo ciclo que ela tinha estado. Ela levou a
mão à boca e tentou não chorar novamente. Ela tinha que soltá-lo, mas ele
estava muito longe de seu alcance. Ela subiu correndo o resto dos degraus,
esperando ser capaz de deslizar até uma viga e desamarrá-lo. Mas ela foi
recebida por um teto gradeado de metal. Era idêntico ao andar de baixo,
completo com uma estátua monstruosa no centro. A corda que Simon
pendurava-se vinha da boca da estrutura, como uma língua grotesca, ou
como o Marionetista era o pêndulo de algum relógio terrível.
Não havia como alcançá-lo. Ela procurou por uma vara, um gancho,
outra corda que ela pudesse jogar quando ele estivesse acordado, qualquer
coisa.
Nada.
Sua próxima ideia era a saída. Talvez ela pudesse chamar Rudy – ou
qualquer um – para ajudá-la. Ela estava com medo do que poderia acontecer
quando ela colocasse os pés fora da torre, especialmente sem Simon para
protegê-la. Mas ela tinha que fazer o que tinha que fazer.
Voando para a saída, ela empurrou. Nada.
As portas estavam trancadas do lado de fora. Ela as empurrou
novamente e só conseguiu sacudi-las. Gritando sua frustração, ela bateu os
punhos na superfície até seus pulsos doerem. Mas, assim como sua fuga de
Harrow Faire na noite em que foi transformada na Contorcionista, foi inútil.
Quando este lugar queria trancar a porta, ele trancava a porra da porta.
Ela se sentou na escada, sua esperança se esvaindo tão rapidamente
quanto tinha vindo. Ela colocou a cabeça nas mãos. Quando ela falou, sua voz
soou pequena. Com medo. Quebrada. Era exatamente como ela se sentia.
— O que eu faço?
Silêncio.
Ela suspirou e olhou para a aparição de um homem de pé junto à
parede. Ele estava lá o tempo todo, apenas fora do caminho dela, observando
e não dizendo nada.
Lazarus piscou e apontou para si mesmo.
— Você está me perguntando? Oh. Desculpe. Achei que era retórico.
— Eu te odeio.
— Não, você não odeia. Você está chateada. — Ele se afastou da parede
e olhou para a torre com um zumbido. — Você está certa, no entanto. Você
não pode soltar Simon. E com a porta trancada do lado de fora, não há como
escapar para obter ajuda. Essa porta não vai abrir para você. — Ele fez uma
pausa. — Não por meios normais, de qualquer maneira.
— O que você quer dizer?
— Esta torre – este lugar – é o meu coração. — Ele estendeu os braços e
gesticulou para a estrutura ao seu redor. — Estamos dentro de mim. O poder
de Mestre de Cerimônias funciona porque ele tem a Chave. Se você quisesse
drenar a identidade de alguém aqui, você poderia, porque você carrega o
fardo. Meu poder é o único que funciona aqui.
— Então você pode nos deixar sair.
Ele balançou a cabeça e, com um suspiro longo e cansado, sentou-se ao
lado dela.
— Deixe-me explicar de outra maneira. Sou grande demais para existir
com segurança neste mundo em minha verdadeira forma. Perigoso demais.
Você sabe como eu te dou todas as pequenas bugigangas para se divertir?
Como posso reescrever Harrow Faire de acordo com meus caprichos?
— Sim?
— Eu poderia fazer isso com a Terra como um todo se não fosse
cuidadoso. Um devaneio perdido meu e “puf” dunas de areia e criações
monstruosas até onde a vista alcança. Eu me mantenho pequeno e
principalmente inofensivo para evitar que isso aconteça. Mas para me
impedir de me soltar completamente, preciso de uma âncora. Um guardião.
— Certo. Eu entendi esse pouco. — Ela suspirou. Ele estava dizendo a
ela coisas que ela já sabia. — Palhaço era o guardião. Alguma lady antes dele.
E agora eu.
— Então por que fazer a Chave? Por que fazer uma bugiganga que
alguém poderia usar para me controlar? Por que não ter apenas o fardo de
estar ligado a mim? Por que duas partes?
Cora olhou para ele sem expressão.
— Acho que imaginei que a resposta fosse ‘porque magia e razões’
como tudo por aqui.
Ele riu, mas seu humor desapareceu um momento depois.
— Não. Você vê, eu não quero te machucar. Ou reescrever você. Eu
nunca quis ferir a Família. Os que coleciono são preciosos para mim. Você é
todo meu orgulho e alegria. Mas se eu fizer de você minha guardiã
diretamente, corro esse risco. Quanto mais de mim você tomar em você, mais
risco eu corro de mudar você. Fazer buracos na sua cabeça e enchê-la comigo
em vez disso.
— Então... — Cora parou por um momento. — Você fez uma
ferramenta para fazer isso em vez disso. Como um para-raios ou uma faca.
— Exatamente! Boa garota. — Ele deu um tapinha no joelho dela. —
Pense nisso como uma faca. Ou uma espada. — Ele sorriu ao ligar seu
exemplo de volta à sua história anterior. — Mas poder é poder. E o poder
bruto é apenas isso. Cru. Perigoso. Difícil de manejar sem prejudicar o dono.
— Você está dizendo que eu não preciso da Chave?
Ele suspirou.
— Estou dizendo que você pode ignorá-la. Ainda existiria. Mestre de
Cerimônias ainda teria o controle de mim... Mas ele não seria o único. Vocês
dois seriam o mesmo. Iguais. Ele ainda teria que ser lidado.
— Pelo menos, não será a pior luta desequilibrada de todos os tempos.
— Ela riu. — Ele me chokeslam2 e pronto.
— Nunca achei que você fosse fã de luta livre.
— Eu costumava adorar. Você está brincando comigo? Mas depois ficou
muito real. Eu gostei dos personagens bobos. — Ela se inclinou para trás,
apoiando os cotovelos na escada atrás dela. — Então, eu posso igualar Turk,
mas... Isso me custaria. Eu estaria dobrando este vínculo com você.
— Correto.
— E você iria... Reescrever partes de mim?
Ele encolheu os ombros.
— Eu não sei o que isso vai fazer. Nunca experimentei antes.
Cora fechou os olhos e encostou a cabeça na parede de madeira. A torre
cheirava a construção de madeira fresca, embora claramente tivesse centenas
de anos. Ela deu de ombros.
— Okay.
— Você... — Ele parou, chocado. — Espere. Você disse sim?
— Sim.
— Simples assim?
— Sim.
— Você não quer pensar sobre isso?
Ela ergueu as mãos.
— O que há para pensar? Eu não tenho escolha. Ou eu fico aqui
sozinha, conversando com Simon enquanto ele fica pendurado de cabeça
para baixo sendo torturado, morrendo aleatoriamente, por... O quê...Alguns
anos antes de todos nós morrermos? Ou eu faço isso.

2 É o nome usado para o golpe em que o atacante enforca o oponente com uma de suas mãos,
levanta-o (geralmente ajudado pela outra mão), e derruba o oponente de costas no chão.
Ela se levantou, foi se limpar e percebeu que ainda estava coberta de
sangue. Ela fez uma careta e enxugou as mãos na única parte limpa da calça
que conseguiu encontrar. Não ajudou. Suas mãos ainda estavam manchadas
de sangue.
— Simon sacrificou parte de si mesmo por mim. Farei o mesmo por ele.
Por todos. Por você.
Ele se levantou e a observou por um longo momento.
— Por mim?
Ela assentiu fracamente.
Ele a abraçou com tanta força e tão de repente que ela guinchou. Ele a
apertou a ponto de quase doer.
— Você não vai se arrepender disso. Você não vai. Eu prometo.
Prometo que serei bom para você – para todos. Oh, Cora... Obrigado.
Obrigado. Acho que ninguém nunca...
— Ar...
Ele riu e a soltou.
— Desculpe. Sim. Respire. — Ele pegou sua cabeça em suas mãos e
beijou sua testa. — Você e eu seremos brilhantes, Cora.
Ela o abraçou de volta. Houve um tempo em que ela teria ficado
aterrorizada com a noção dessa coisa, essa criatura, tomando mais conta de
sua mente. Ela deveria estar chorando de medo. Mas Mestre de Cerimônias
machucou o homem que ela amava. Ele a tinha machucado. E ele ameaçou
ferir os amigos dela. A Família dela.
E parte de sua família era Harrow Faire.
Uma criatura que, na verdade, só parecia querer ajudá-la. Ser gentil
com ela. Talvez a estivesse manipulando. Talvez fosse apenas um jogo
inteligente.
Mas ela não se importava mais.
Tudo o que ela tinha era o jogo.
Tudo o que ela tinha era a mentira.
Todo o resto se foi.
A imagem da sombra sorridente de Simon torceu uma faca em seu
estômago.
Ela alegremente colocaria seus ovos naquela cesta e esperaria que o
fundo não caísse porque não havia outras opções na mesa à sua frente.
Laz começou a descer as escadas para a torre invertida.
— Vamos começar, então.
Ela queria perguntar o que aconteceria a seguir. Ela queria perguntar se
iria doer. Mas, novamente, nada disso importava. Ela o seguiu porque não
havia mais nada para ela fazer. Ela acendeu as luzes antes de descer – vai se
foder, Turk – e as lâmpadas de cabeça para baixo só aumentaram a estranheza
do prédio invertido. Pelo menos ela podia ver.
Quando chegaram ao chão de metal, ela tentou ignorar o sangue que
manchava a estátua. Era todo dela.
Laz se abaixou e abriu uma escotilha no chão.
— Esta metade não está trancada. Ninguém quer descer aqui. — Ele
fungou e pareceu um pouco insultado enquanto respondia sua pergunta não
feita. Este era o espelho da plataforma de observação lá em cima.
Mas embaixo dela, ela não conseguia ver nada.
Apenas escuridão.
Apenas o vazio.
Ela hesitou.
— Eu vou fazer isso de qualquer maneira, mas posso te perguntar uma
coisa?
— Qualquer coisa.
— Você está mentindo pra mim?
Ele inclinou a cabeça.
— Sobre o quê?
Ela gesticulou com a mão para ele.
— Isto. Você. Você está jogando comigo? Me manipulando? Fingindo
ser meu amigo?
Ele sorriu. Era uma expressão fina e não totalmente afável.
— Eu sou mais coisas que você pode imaginar. Eu sou mais velho que o
sol que alimenta este mundo. Eu sou de um tempo antes deste universo ter
surgido. Eu sou todas as coisas. Eu sou bondade e crueldade. Eu sou amor e
ódio. Eu sou mágoa. Eu sou luto. Eu sou alegria. Eu sou as estrelas nos céus.
Eu sou os vermes no chão. — Ele estendeu a mão e tocou a ponta dos dedos
em sua bochecha. — Eu sou luz... E eu sou sombra. Não estou mentindo para
você, Cora. É simplesmente que eu sou mais do que você pode compreender.
Ela estremeceu e fechou os olhos.
— Eu estou assustada.
— Eu sei. Eu estou aqui com você. Eu sempre estarei com você. — Ele
deslocou a mão para pressionar sua palma para ela. — E você sempre estará
comigo.
Essa era a verdade, no fundo. A escolha dela já estava feita. Não havia
como separá-la de Harrow Faire. Nem agora, nem nunca. Algum dia, quando
ela morresse, não haveria linha entre eles. Eles seriam um e o mesmo.
Por que ela estava com medo de borrar essa linha um pouco mais
agora?
A voz de Lazarus era calma, mas firme.
— Somos como os sonhos são feitos, e nossas vidinhas são cercadas por
um sono. — Ele sorriu com a citação. — Estamos todos adormecidos um ao
lado do outro, vivendo realidades semelhantes, mas separadas por um fio de
cabelo. Estou lhe dando a chance de reescrever seu pesadelo e salvar aqueles
de quem você veio se importar.
Ela abriu os olhos e olhou de volta para ele. Seus olhos se foram – tão
vazios quanto o vazio abaixo dela. Não havia sorriso em seu rosto.
— Esse foi o seu jogo desde o começo?
— Importa se foi?
— Não. Eu suponho que não. — Ela respirou fundo e, ao expirar, olhou
para o buraco e gemeu. — Porra de pedra, texugo de bunda devorador de pau!
Laz franziu a testa.
— O que na Terra é um... — Ele parou. — Deixa para lá. Apenas pule,
Cora. Eu estarei lá para te pegar.
Olhando para o abismo sob a grade, ela sabia que não havia mais nada
a fazer.
— Okay. Mas estou farta dessa merda.
Lazarus sorriu.
— Anotado.
Ela deu um passo na escuridão, e sentiu o mundo ceder abaixo dela.
Cora estava caindo.
Desta vez, ela não se incomodou em gritar.
Rudy estava andando de um lado para o outro. Para frente e para trás,
para frente e para trás, para frente e para trás, como um animal enjaulado.
Ele andava como um porque ele era um.
Estalando o pescoço ruidosamente para um lado e depois para o outro,
houve um pequeno alívio no estalo visceral. Ele sempre tinha alguma junta
ou outra que precisava de alívio. Era parte integrante de sua maldição, seu
dom. Seus ossos estavam sempre se reorganizando conforme ele mudava de
forma.
Ele estava acostumado a andar de um lado para o outro. Ele
frequentemente andava de um lado para o outro em seu zoológico. Ele
raramente passava tempo em seu vagão. As paredes eram perto demais para
ele. Na maioria das vezes, ele dormia no telhado. Mas desta vez, não foi
nenhum desses lugares que ele andou. Era a grama na frente do vagão de
Puxador.
Ele fez uma careta, cheirando o ar. Estava cheio de cheiros. A floresta,
os clientes, o fedor de carros movidos a gasolina, óleo, graxa, comidas
gordurosas, açúcar... Álcool.
Abaixo disso estavam todos os aromas que vinham com os animais,
tanto selvagens quanto humanos. Carne, suor, urina, merda, sexo.
Então vieram todas as emoções.
Temor. Felicidade. Alegria. Luxúria. Tristeza. Tudo tinha um cheiro.
Tudo isso. O medo era o mais pungente – sempre foi – ele podia seguir uma
trilha dele por quilômetros. Era o mais primitivo. Todas as outras emoções
empalideciam diante dele.
E então havia o cheiro que era mais denso no ar e tinha sido por muitos
anos – era o que o tinha arrepiado. Era o cheiro da morte. O aroma de um
animal moribundo. Um perfume que prometia uma nova matança para quem
o seguisse.
Harrow Faire estava morrendo há décadas.
Isso irritou a besta nele. Exigiu que ele caçasse, matasse os feridos e
comesse seu cadáver. Mas não havia nada para caçar. Nenhuma carne em
que pudesse cravar os dentes. O cheiro era penetrante de qualquer maneira.
Isso quase o deixou louco. Certamente tinha arruinado seu humor por quase
cinquenta anos. Isso grudou nele como uma doença. A cada momento ele
podia sentir o cheiro, e a cada momento ele queria matar alguma coisa por
causa disso.
Eu nem sempre fui tão impaciente.
Os filhotes da Faire devem considerá-lo um tipo de criatura podre. Não
era culpa dele. Ele estava sempre a um fio de cabelo de beber seu sangue do
coto de qualquer membro que ele arrancasse de seus corpos. Isso lhe rendeu
uma reputação ao longo dos anos.
Foi essa reputação que provavelmente explicou por que Puxador
parecia tão assustado quando saiu de seu vagão. Ele quase tropeçou em seus
próprios pés e teria acabado sentado na escada se não tivesse se apoiado no
batente.
— O-oh. Uh. Bom dia, Domador de Animais.
Rudy resmungou. — Venha.
Ele virou as costas para Aaron e saiu correndo. Ele sabia que Puxador o
seguiria. Ele sempre seguiria. Ele era uma criatura curiosa por natureza e
nunca resistiria à tentação de uma fofoca suculenta.
Sua orelha se contraiu ao ouvir os passos rápidos se apressando para
alcançá-lo. Puxador era previsível. Um bom homem. Um homem gentil. Mas
um previsível.
— Qual é o problema, Rudy?
— Algo aconteceu.
Ele inclinou a cabeça para trás e cheirou. Lá estava novamente. Não era
medo. Não era sangue. Era o cheiro de algo novo. Algo perigoso. Um
predador havia chegado.
— Por que vim e me buscar?
— Ela pode me matar. Mas ela pode não matar você.
— El... P... Uh... O que...
Rudy fez outra careta, sentindo o gosto do ar entre os dentes. Ficou
mais grosso assim. Sim. Um predador e algo familiar também. Algo como
madressilva e lavanda. Ele tinha cheirado muitas vezes nas últimas semanas.
Ele tinha uma teoria. E se ele estivesse certo, ele poderia precisar de
alguém mais testado na arte da fala do que Rudy costumava ser. Ele não
tinha nenhum desejo de ser despedaçado.
— Espero que você não seja necessário. Mas você pode ser.
Previsivelmente, Aaron o seguiu.
— Você vai me dizer alguma coisa sobre o que está acontecendo?
— Você saberá em breve.
A trilha de cheiro o estava levando para a torre de observação. Ele
tentou escalar o exterior algumas vezes por curiosidade, como uma aranha e
como um lobo. Mas por mais que tentasse, não conseguia alcançar a
estrutura. Parecia rejeitar todos os esforços de escalada. Não era natural; não
fazia sentido.
Mas isso era Harrow Faire.
E onde ele não era bem-vindo, ele nunca iria.
Ele nunca tinha visto o interior da torre. A maioria dos que puseram os
pés dentro da estrutura estava sendo torturada como punição por algum tipo
de crime. Ele nunca teve o desejo de espiar dentro apenas por esse motivo.
Vê-la significava problemas.
Portanto, ele tinha ainda menos vontade de entrar quando encontrou as
portas escancaradas e espalhadas na grama e sujeira como estilhaços. A porta
de madeira não era nada além de lascas, espalhadas como se uma explosão
tivesse acontecido. Um segundo conjunto de portas – metal sólido – estava
empenado e dobrado, um dos pares combinados estava de bruços na terra,
enegrecido e carbonizado. Como se o fogo tivesse sido o que o havia enviado
para lá.
Mas a torre em si estava intocada. Ele podia ver a madeira lá dentro.
Sem marcas. Não havia fogo para culpar. Ele não podia sentir cheiro de
fuligem ou carbonização. Ele cheirou o ar. O cheiro do novo predador era rico
no ar.
Ele rosnou baixo em seu peito. Era um barulho desumano.
Aaron estava boquiaberto com a porta.
— Oh... Oh, porra. O, porra. Oh, isso não é bom. Eu deveria chamar
Mestre de Cerimônias. — Ele se virou para sair. Rudy o agarrou pelas costas
do casaco.
— Não.
— Como assim não?
— Ele saberá em breve. Devemos deixá-la jogar a mão do jeito que ela
quer.
— Ela? Você quer dizer Cora?
— Humhum.
Rudy começou a se dirigir para o refeitório. Era hora do café da manhã.
Normalmente, ele pulava refeições com os outros. Eles tendiam a se opor ao
seu amor por carne crua. Mas desta vez, ele sabia que esta manhã seria
emocionante.
— O que você sabe, Domador de Animais? — Aaron seguiu o passo ao
lado dele. — O que você não está me dizendo?
— Nada que você não saiba dentro de uma hora.
— O que tudo isso significa?
Rudy zombou.
— Guerra. Significa guerra.

Simon acordou com a cabeça no colo de alguém. Ele murmurou em


apreciação. A pessoa estava acariciando seu cabelo, e era muito adorável. Era
muito melhor do que a dor cegante de ser suspenso pelos tornozelos.
Normalmente, ele preferia ser... Qual era a frase tola que Aaron sempre
acusava Jack de cobiçar? Colher grande? Ele preferia ser o controlador,
independentemente. Era apenas parte de sua natureza. Mas de vez em
quando, era muito bom ser mimado.
Suas pernas doíam. Sua coluna doía. Mas a dor estava desaparecendo
lentamente. Bem, a dor em seu corpo estava desaparecendo. Ele estava com
uma baita dor de cabeça.
Ele finalmente perdeu a cabeça?
Ele piscou os olhos abertos lentamente. Sua visão nadou por um longo
momento. Isso era um sonho? Não havia campo ensolarado. Não havia
nuvens no céu. O espaço estava iluminado com o sol da manhã entrando
pelas janelas, lançando sombras nas paredes ao redor dele. Paredes de
madeira. Ele ainda estava na torre de observação.
Ele estava deitado na escada, olhando para uma Cora muito manchada
de sangue e muito cansada.
Isso não era um sonho absolutamente.
Ele se sentou. Ele tentou, de qualquer forma. Ele grunhiu e caiu de volta
em seu colo. Seu corpo ainda estava se curando. Erguendo a mão trêmula, ele
tentou tocar o rosto dela. Ele só fez metade do caminho antes que ela tivesse
que ajudá-lo. Ela colocou a palma da mão em sua bochecha, fechando os
olhos e aninhando-se em seus dedos. O calor de sua pele trouxe-lhe uma
medida de paz instantânea. Seu rosto estava úmido. Não com sangue, mas
com lágrimas.
— Você está bem? — Ele franziu a testa. Ela estava tão sangrenta. Deus,
ele se sentiu tonto. Ele tentou se sentar de novo, mas o mundo balançou e
cambaleou ao seu redor, e ele caiu para trás. — Oh meu Deus. Acho que
estou contundido.
— Hum. Sim. Você provavelmente está. — Ela riu, sorrindo para ele
timidamente. — Eu meio que deixei você cair. Eu sinto muito. Eu não queria.
— Você me deixou cair? — Ele estreitou um olho para ela. — Como...
Exatamente você conseguiu me libertar em primeiro lugar? — Ele tentou se
sentar de novo, a sala girou perigosamente ao redor dele, e ele caiu de volta
no colo dela. Ele decidiu que depois de três tentativas, provavelmente era
melhor ficar parado. Pelo menos seu travesseiro era confortável. — Querida,
você não poderia me levantar, muito menos me soltar.
— Bem, sim. Claro. Hum. — Ela mordeu o lábio. Era uma coisa
adorável que ela fazia quando estava nervosa ou assustada. Ele sempre quis
beijá-la e mordiscar para ela. Mas sua concussão o manteve onde estava. — É
uma... É uma longa história.
— Parece que não estou indo a lugar nenhum com qualquer tipo de
pressa. E seja como for que você conseguiu nos libertar, estou grato, mas
ainda estamos presos nesta maldita torre. Como você se livrou daquela
estátua?
— Eu não acho que estamos presos aqui. Essa é a coisa. — Ela suspirou.
A dor atravessou seu rosto, e ela parecia prestes a começar a chorar
novamente. — E eu não desci daquela estátua sozinha. Você me salvou.
Ele sofria com sua dor emocional. Ele coçou o peito, encolhendo-se. Ele
odiava quando ela estava em agonia. Dava-lhe azia. Ele não se arrependia de
Patrocinar Cora – tão relutante quanto ele estava quando isso aconteceu –
mas ele ainda desprezava compartilhar sua angústia. Era uma emoção
dolorosamente comum para ela.
Algum dia, talvez, ela passe um dia sem sofrer algum tipo de terror existencial.
Algo me diz que hoje não vai ser esse dia.
Então suas palavras o atingiram. Ele odiava ter concussões. Elas sempre
transformavam seus pensamentos em pássaros. Facilmente distraído e
propenso a voar.
Gostaria de saber se há pombos aqui. Eu nunca vi nenhum. Isso é estranho.
Foco!
Ele piscou.
— Eu salvei você? Docinho, eu estava suspenso pelos tornozelos. Como
consegui isso? — E então ele se lembrou da visão. — Oh.
Olhando para a parede, esperava ver o que sempre via. Uma sombra
lançada contra a madeira por nenhuma fonte discernível. Uma com olhos
irregulares e rodopiantes e um sorriso demente e diabólico.
Não havia sorriso para ser visto.
Nenhuma garra desencarnada acenando para ele.
Nenhuma expressão irritante e apaixonada dirigida a Cora.
E mais importante, não havia voz em sua cabeça, repreendendo-o por
ser um monstro.
Havia apenas silêncio.
Ele pegou sua mão e a segurou sob a luz do sol e observou fascinado
enquanto via... Uma sombra normal lançada na parede ao lado dele. Ele
mexeu os dedos. A sombra obedeceu. Como toda sombra deveria. Normal.
Natural.
Seu coração apertou inesperadamente.
— Ele se foi — ela sussurrou. — Ele... Ele se esgotou, me puxando para
fora do metal. Acho que a Faire deu a ele um impulso suficiente para fazê-lo.
Depois de me salvar daquela tortura... Ele desapareceu.
Simon riu.
Quando Cora olhou para ele com horror e desgosto, ele riu ainda mais.
O que ele deveria fazer? Era engraçado.
— Pare com isso. — Ela deu um tapa no ombro dele. — Pare, pare de
rir. — Sua voz falhou. Lágrimas escorriam por suas bochechas, cortando as
manchas de sangue. A pobre menina estava perturbada.
— Oh, Cora, querida... — Ele estendeu a mão e acariciou suas lágrimas.
Sua mão ainda tremia e parecia estranhamente separada de seu corpo, mas
ele estava se curando. Ele só iria demorar um pouco. — Eu não estou rindo
porque ele se foi. Não é isso que é divertido. Eu sei o quanto você se
importava com essa parte de mim.
— Então por quê?
— Porque todo esse tempo... Por cento e trinta e cinco anos, eu pensei
que precisava dele. Que sem ele, eu estaria perdido nas fraturas em minha
mente. — Ele sorriu. — Eu estava errado. Ele era um cobertor que eu agarrei
como uma criança durante a noite. Estou rindo da minha própria tolice.
Era verdade. Ele havia criado aquela sombra dele por uma rejeição de
todas as coisas que ele acreditava que o tornavam fraco. Sua dor. Sua agonia.
Mas acima de tudo, sua sombra era uma criação de sua própria solidão
incapacitante.
O que sua sombra sempre foi, no final... Era um bicho de pelúcia. Uma
criatura demente com quem ele poderia discutir, desprezar e insultar. Mas
uma que sempre esteve lá.
Sua sombra era apenas mais uma parte do elaborado castelo de cartas
que ele construiu em torno de si na tentativa de afastar o Lobo Mau.
Uma rede de segurança esticada sob os trapezistas.
E agora... Sua sombra se foi.
Não houve nenhuma onda de angústia, nenhum ataque de emoções
espásticas e excessivamente exuberantes o inundou. Ele nem sentia que
faltava alguma coisa. Ele se sentia... Bem.
Bem, além da concussão.
Passei todos esses anos convencido de que não podia sentir essas coisas porque
as havia jogado fora. Passei todos esses anos convencido de que não poderia amar
porque isso me destruiria.
Meu Deus, eu realmente sou um megalomaníaco, não sou?
A Família estava certa sobre mim o tempo todo. Eu sou um louco egoísta. Acho
que eu deveria me desculpar com eles.
Pensando bem... Não. Eles podem apodrecer.
Ele riu novamente. Ele não podia evitar. Era histérico. Todos aqueles
anos! Todos aqueles anos passados longe do mundo porque ele acreditava
que isso estava protegendo sua sanidade. Ele gargalhou, batendo a mão nas
escadas. Ele devia parecer um lunático absoluto. O olhar no rosto de Cora
dizia que ele estava certo.
— Simon?
Ele riu e lutou para se sentar. Ela o ajudou, e ele conseguiu ficar ereto o
suficiente para que suas costas estivessem contra seu peito, e ele estava
aninhado entre seus joelhos. Ele encostou a cabeça no ombro dela.
— Estou bem. Estou melhor do que bem. Estou livre da corda. E estou
livre da minha sombra.
— Por favor, não se gabe. Eu sinto falta dele... Eu... — Ela enxugou a
bochecha. — Eu sei que você não se importa que ele se foi, mas eu me
importo.
Torcendo-se ligeiramente, ele enfiou a mão no cabelo na base do
pescoço dela e a puxou para um beijo. Ele foi terno no início, mas depois
aprofundou, pouco a pouco. Ele parou pouco antes de deixá-la ofegante.
Aqueles lindos e surpreendentes olhos cinza dela estavam escurecidos pela
luxúria. Apenas um pressentimento disso. Ele beijou sua bochecha, em
seguida, sorriu, deixando sua respiração fantasma sobre sua pele.
— Vou ter que trabalhar duro para compensar sua ausência, então.
Ela passou os braços ao redor dele e o segurou, inclinando a cabeça
para descansar contra seu ombro. Ele acariciou seu cabelo, beijando sua
têmpora.
— Agora, você pode me explicar como é que estou sentado aqui com
você? E como é que você me deu uma concussão?
— Eu deixei você cair de cabeça na escada — ela murmurou. — Eu
escorreguei.
— Você está evitando me dizer alguma coisa, Cora, querida. Algo
muito grande e importante. Como, exatamente, você me suspendeu no ar em
primeiro lugar?
Ela murmurou algo em seu casaco que era ininteligível. Ele deu uma
cotovelada nela. Ela resmungou, levantou a cabeça e, com um longo suspiro,
estendeu a mão à sua frente.
— Assim.
Os olhos de Simon se arregalaram.
Concussão ou não, não havia dúvidas sobre o que ele viu.
Ele pode ter perdido sua sombra bizarra...
Mas parecia que ela ganhou uma própria.
A escuridão rastejou ao longo da parede, estendendo-se da sombra
lançada por seu braço. Mas era mais escura do que qualquer outra sombra ao
redor deles. Era tão pura quanto o próprio vazio – como o nada que era o céu
da Inversão. Ela deslizou pela parede, envolvendo as janelas em espirais
preguiçosas e pontiagudas.
E então, ela não estava mais nas paredes. Ela se estendia no ar,
apagando as lâmpadas que queimavam bravamente contra a luz do sol.
Ela o lembrou das formas estranhas e bizarras de sua própria sombra.
Ele se perguntou se ela a fez assim em homenagem ou se era por causa
de uma ligação intrínseca com Harrow Faire. Mas ele não teve tempo para
considerar isso, pois os tentáculos de escuridão se enrolaram no corrimão ao
lado dele e subiram as escadas. Ele se esforçou para tirar os pés do nada
escuro, mas não tinha para onde ir.
Ele estava cercado.
A fonte disso estava sentada atrás dele, afinal. O braço dela estava
estendido sobre o ombro dele, o outro em volta do peito.
Ela relaxou a mão. A escuridão se dissipou como fumaça. Num
segundo estava lá, no seguinte, era uma imagem fugaz em sua visão. Se foi.
Ele estava tremendo.
— Cora... O que você fez?
Sua voz vacilou, mesmo quando ele se agarrou à fonte do poder que se
manifestou na frente dele.
— Eu fiz o que tinha que ser feito. — Ela fez uma pausa. — Você tem
medo de mim?
Ele abriu a boca para falar, fez uma pausa, fechou a boca, repetiu o
padrão novamente em silêncio, e então finalmente desviou o olhar da escada
– esperando que o vazio rastejante reaparecesse – e olhou para ela.
Seus olhos não eram prateados. Não eram os tons maravilhosos das
nuvens que ele adorava. Eles, como estavam em seu vagão quando ele
tolamente provocou sua ligação com Harrow Faire, se foram. A escuridão
vazia o saudou. Ela piscou, e assim, seus olhos voltaram ao normal.
E eles mostravam seu coração partido.
Eles o olharam com dor. Ela lamentava a perda de sua sombra. Ela
lamentava pelo que ela havia se tornado, talvez. E agora eles olhavam para
ele com cautela. Claramente ponderando, como se ela tivesse dito isso em voz
alta, se ele estava enojado ou muito assustado com ela.
— A Faire me mudou. — Sua voz era pouco mais que um sussurro. Ela
colocou a mão sobre o coração. — Me deu uma escolha. Eu poderia... Eu
poderia tomar mais dele em mim e nos salvar, ou eu poderia ficar aqui na
torre até morrermos... Enquanto você balançava lá, sofrendo. Que escolha eu
realmente tinha? Eu não sei o que isso fez com a minha cabeça. Eu sinto isso
lá, cantarolando ao fundo. — Ela se encolheu. — Como abelhas. Ou como se
eu estivesse sentada ao lado de um gerador. Ele diz que vou me acostumar,
que não vai me incomodar tanto com o passar do tempo. Mas ele está lá
agora, na minha cabeça. Eu não sei que partes de mim ele pegou e mudou –
como eu sou diferente... — Lágrimas brotaram em seus olhos novamente, e
ela não se incomodou em impedi-las de cair. — Você pode não... — Ela parou
e começou de novo. — Eu não sou a mesma pessoa. Eu não posso ser.
Pedaços de mim são Harrow Faire. Pedaços de mim são essa criatura. E se... E
se... — A voz dela falhou.
Ele se virou para se ajoelhar na escada entre os pés dela, de frente para
ela. Ele estendeu a mão e segurou sua bochecha.
— E se o quê, Cora, querida?
— Eu sei que você não pode me amar. Eu sei que você não quer. Isso é
bom. Mas eu... Isso não muda o que sinto por você. Quando saí daquele
buraco, me perguntei se havia perdido aquela parte de mim. Acho que quase
esperava que fosse embora. Teria feito você mais feliz no final. Mas ainda está
aqui. Ainda te amo. Eu sinto muito.
Ah, Cora...
— Mas agora, eu não sei quem eu sou. Eu não sei o que eu sou. Quanto
de mim pode ser tirado antes que eu não seja mais eu? Antes de eu ser outra
pessoa? Ou antes que eu esteja vazia como Ludwig? Antes... Que você não
me queira.
Ele a puxou para um beijo. Ele passou o braço ao redor de suas costas e
a puxou contra seu corpo. Ele derramou sua paixão em seu abraço. Ela se
agarrou ao paletó amarrotado dele. Ele sentiu um enorme rasgo em suas
roupas na parte de trás. Ela foi espetada em uma estátua de metal por quem
sabe quanto tempo. O sangue sob seus dedos estava crocante e seco.
Mas isso não o deteve.
Quando ele finalmente se afastou, ele podia sentir sua respiração contra
seu peito. Curta e rasa. Ela olhou para ele, os olhos esfumaçados e escuros.
Ela o observou, sem fôlego e extasiada. Presa em seu abraço e seu olhar da
mesma forma.
Ele se perguntou se seus olhos ainda tinham cores invertidas. Ele
esperava que sim. Ele gostava de aterrorizar as pessoas com eles, mesmo que
os óculos de sol fossem irritantes às vezes. Nada na vida era mais divertido
do que uma revelação dramática.
— O júri voltou, e o veredicto está dado. — Ele sorriu. Ele inclinou a
cabeça ligeiramente para trás e passou seus lábios sobre os dela. — Sim.
Tenho pavor de você, minha querida Contorcionista. Do que você se tornou.
Você é algo completamente novo. Algo que esses tolos da Família nunca
viram antes. Mas parece que toda vez que penso que não poderia te querer
mais, você procura provar que estou errado. — Ele sorriu. — Se eu não
tivesse sofrido uma concussão, acho que teria que tê-la aqui e agora.
Ela riu baixinho. Era um som triste e exausto. Ela o beijou. Ela se
separou um momento depois e descansou a cabeça em seu peito, buscando
seu abraço. Ele deu sem questionar.
Você me assusta até o centro do meu próprio ser, Cora Glass.
Você é perigosa. Você poderia acabar comigo com um pensamento. Minha vida,
e talvez a de todos os da Faire, paira na palma da sua mão.
E eu te amo de uma maneira que as palavras não poderiam descrever.
Ele a abraçou.
Mas ele ficou em silêncio.
Quando ela finalmente se afastou, ela sorriu para ele. Cansada e tensa,
mas resoluta.
— Vamos. Vamos explodir e acabar com esta situação.
— Com prazer. — Examinando sua roupa, ele se viu em uma desordem
inaceitável. Ele estava amarrotado, enrugado e quase suava através do paletó.
Seu relógio de bolso e óculos escuros estavam faltando. E ele não era o único
que estava em um estado. Cora estava coberta de sangue seco, mais escuro ao
redor dos cortes em suas roupas que revelavam onde ela havia sido
empalada. Ele estremeceu. Ele não tinha ideia de qual deles havia sofrido
pior. Ele supôs que eles estavam empatados. — Devemos ir nos trocar? Odeio
ofender você, meu querido amor, que agora é o avatar de um semideus
místico e poderia arrancar minha pele do meu corpo com um pensamento,
mas você parece positivamente atroz.
Ela riu.
— Não. Eu quero que eles vejam o que Mestre de Cerimônias fez
conosco.
Ela se levantou, ajudando-o a ficar de pé. Ele cambaleou e colocou a
mão contra a parede. Ela deslizou o braço por cima do ombro e o ajudou. Ele
aceitou o auxílio sem reclamar.
Ele olhou para o nascer do sol que agora estava apenas espreitando
sobre as janelas.
— Eu poderia tomar um café da manhã.
— Salsichas tornam tudo melhor.
Ele sorriu para a escuridão em sua voz.
Ele adorava uma revelação dramática.
E esta ia ser uma das boas.
Rudy estava sentado perto da extremidade da tenda, agachado sobre
seu prato de comida. Harrow Faire pareceu sentir sua chegada e lhe deu um
prato de costelas de porco cruas para que ele pudesse mastigar.
Ninguém sentou com ele.
Ele não se importou.
De vez em quando, ele era conhecido por ficar um pouco mal-
humorado com os outros quando tinha um prato de carne na frente dele. Não
era intencional. Ele tinha impulsos difíceis de controlar. Para ser justo, ele
raramente tentava abatê-los.
E assim, ele se sentou sozinho e puxou a carne dos ossos, apreciando
como a carne se esticava e rasgava entre os dentes. Ele apreciou o cheiro e o
gosto do sangue. Mas um novo cheiro juntou-se ao do porco morto.
O sangue de todas as criaturas tinha um cheiro único em seu nariz.
Porco ou vaca, predador ou presa, humano ou outro. Ele tinha visto muitas
criaturas irem e virem de Harrow Faire. Sejam elas desumanas, Família, ou
mesmo shifters como ele. Todos eles carregavam um sabor único para eles.
Ele podia sentir o cheiro de álcool ou drogas em humanos não apenas
porque impregnava sua respiração, mas porque saturava suas veias.
Foi o cheiro do novo predador – usando seu próprio sangue como uma
marca de orgulho e injúria – carregado pelo vento que o alertou. Ele largou a
comida e moveu as pernas para poder escapar ou lutar rapidamente, se
necessário.
Ele sabia que era verdade. Ele sabia disso quando viu as portas
explodirem na frente da torre de observação. Mas ele ainda olhava com
admiração para aqueles que se aproximavam.
O Marionetista e a Contorcionista.
Isso era quem ela tinha sido. O que ela era agora, ele não podia dizer.
Simon tinha um braço pendurado no ombro dela. Não por afeto, mas por
apoio. Ele mancava levemente na perna direita. Ela parecia exausta. Suas
feições estavam pálidas e sombrias, e o que não estava manchado de
vermelho estava manchado de lágrimas.
Sua roupa estava uma bagunça de lágrimas e encharcada de sangue.
Manchada com todos os tons de sangue que eram possíveis. Vermelho
brilhante, carmesim, vermelho, preto, marrom e laranja enferrujado.
Eles estavam trancados na torre por três semanas.
Mas sua cabeça estava erguida.
A tenda caiu instantaneamente, e mortalmente, em silêncio.
Todos olharam. Ele ouviu alguns talheres batendo nas mesas e depois
no chão, junto com uma caneca de café se estilhaçando.
Simon olhou para a multidão e sorriu, seus olhos preto-vermelho-
brancos orgulhosamente à mostra. Parecia que alguém o havia colocado em
uma betoneira e ligado por algumas horas. Mas Rudy sabia que não ficaria
melhor depois de três semanas suspenso pelos tornozelos.
Ele olhou para Cora.
— Waffles?
Ela o ignorou. Ela estava olhando para alguém no grupo.
Para Mestre de Cerimônias.
Simon deu de ombros e, tirando o braço do ombro dela, caminhou em
direção ao bufê como se nada estivesse acontecendo.
— Waffles será! — Assobiando alegremente, ele passou entre as fileiras
de mesas. — Bom dia a todos. Lindo dia, não é?
Turk levantou-se lentamente de sua mesa, movendo-se para ficar no
corredor em frente a Cora.
Ninguém disse uma palavra. A tenda estava silenciosa. Exceto pelo
Marionetista, alegremente servindo dois montes de comida de café da manhã
em pratos em uma bandeja, fingindo que não sabia o que estava acontecendo
nas suas costas.
Cora finalmente desviou o olhar de Turk para olhar as fileiras de
assentos da Família. Todos estavam boquiabertos para ela em um silêncio
atordoado. Ela estava inexpressiva enquanto observava a visão diante dela.
Ela se virou para Mestre de Cerimônias.
— Você contou a eles?
Silêncio.
Ela suspirou, seus ombros caindo.
— Você não contou. Por que não estou surpresa que você mentiu para
mim?
Mestre de Cerimônias foi para seu chicote, apenas para encontrá-lo
faltando e não pendurado em seu quadril. Por que ele estaria armado no café
da manhã? Por que ele suspeitaria que um novo predador de ponta havia
despertado dentro de Harrow Faire?
Rudy certamente não seria o único a avisá-lo.
Os dedos de Turk se agitaram ao seu lado.
— Não. Eu não contei. Cora... Vamos levar isso para outro lugar. Em
algum lugar privado.
— Não. — Cora riu. — Você realmente acha que eu vou falar com você
em particular? Você acha que eu sou uma idiota? — Ela deu um passo em
direção a ele. Não havia medo em seu rosto. Sem terror. — Depois do que
você fez comigo? Com nós? — Ela gesticulou para o sangue que a cobria. — E
você nem mesmo disse a eles por quê. Que desculpa você deu a eles? Que
tentativa meia-boca de proteger sua honra você usou?
Turk não respondeu. Sua mandíbula se contraiu.
Rudy se levantou e falou.
— Que você estava conspirando contra ele. Que Simon estava
controlando você.
— Por que diabos isso é minha culpa? Por que tudo é sempre minha
culpa? — Simon exclamou perto do bufê. Ele suspirou e olhou para o teto da
tenda. — Toda vez! — Ele caminhou até uma mesa nos fundos e sentou-se,
pegando um garfo, e furiosamente esfaqueou seu prato de comida,
resmungando baixinho sobre ser totalmente incompreendido.
Cora balançou a cabeça e passou a mão na testa. Ela olhou para seus
dedos manchados de sangue, em seguida, enxugou-os em um dos poucos
pedaços de tecido limpo em seu casaco. Não adiantou nada.
— Estou tentando impedi-lo, Turk? Claro. Isso é verdade. Mas você não
disse a eles por quê. Então eu irei.
— Cora... Pense no que você está fazendo.
Turk deu mais um passo à frente.
— Ah, acredite em mim. Eu pensei. — Ela olhou para ele, sem medo. —
Eu tive muito tempo para pensar naquele poço onde você me jogou. Onde
você me deixou, empalada naquela maldita estátua.
— Eu vou te parar. — Turk cerrou os punhos e deu outro passo em
direção a ela.
— Não. — Cora sorriu. Não era uma expressão amigável. Era raivosa.
Era perigosa. O ar ao redor dela escureceu. O próprio espaço ao redor dela
parecia se mover e mudar, como se algo estivesse coçando para se libertar. —
Você não vai.
O cabelo de Rudy se arrepiou na nuca e ele rosnou baixo em seu peito
sem querer. Ele não sabia no que ela havia se tornado, mas o que estava
muito claro para ele era que ela poderia matar todos eles. Facilmente.
Por mais forte que ele fosse, até Mestre de Cerimônias notou a mudança
no ar. Ele hesitou.
— O que você fez, Cora?
— O que eu tive que fazer para sobreviver. O que eu tive que fazer para
acabar com a tortura! Eu não queria nada disso. Eu não quero fazer nada
disso. Mas eu vou, se for preciso. E você não me deixou outra escolha. — Ela
respirou fundo e soltou. — Eu acho que é meu trabalho dizer a eles, hein?
— Nos dizer o quê, Cora?
Bertha foi a primeira corajosa o suficiente para entrar na troca. Claro
que ela foi. Muito pouco assustava a Mulher Barbada por muito tempo.
Cora sorriu tristemente para sua amiga.
— Que ele quer matar Harrow Faire. E todos vocês junto.
E foi aí que a gritaria começou.

Cora precisava de uma soneca. Ela precisava de um maldito banho. Ela


realmente queria um pouco de comida. Ela ouviu a multidão ao seu redor
explodir em gritos enquanto todos tentavam gritar uns sobre os outros.
Ela ergueu a mão. O poder nela serpenteou para fora. Era invisível, mas
ainda podia ser sentido. Ela sabia que poderia porque todos ficaram em
silêncio e rapidamente se sentaram. Ela estalou o pescoço de um lado para o
outro.
Ela precisava de um banho, comida, um cochilo e uma ida ao
quiroprático. Ela ainda doía.
— Turk acha que Harrow Faire precisa morrer e vem trabalhando há
décadas para matá-la de fome. Ele está no comando de Harrow Faire e esteve
o tempo todo.
— Mas... — Louis começou. — E o Sr. Harrow?
Cora balançou a cabeça.
— Sr. Harrow não é real. Não há ninguém dentro do vagão número
vinte e um.
Ela fez uma pausa para deixar o murmúrio acontecer e morrer
lentamente.
— Harrow Faire precisa de um guardião. Alguém para guiá-la. Para ser
seu para-raios para a Terra. Turk deveria ser essa pessoa. Ele deveria assumir
a responsabilidade de Palhaço, mas ele não queria o fardo. Somente o poder.
Porque ele queria usar o poder para matá-la de fome.
— Por que eu não gostaria de ver esse demônio destruído? — Mestre de
Cerimônias gritou, sua voz profunda crescendo. — Por que eu não gostaria
de ver o fim de todas as terríveis atrocidades que cometeu? Destruiu tantas
vidas – tirou tantas almas. Somos coisas monstruosas que não deveriam
existir. Eu procuro curar uma praga que assombra a humanidade há milhares
de anos. Por que estou errado nisso?
— Porque você nunca os deixa escolher! — Cora apontou para uma
mesa lotada ao lado dela. Os Gêmeos, o Mecânico, o Maestro e a Diva
estavam todos sentados ali, observando-a com os olhos arregalados de
choque. — Porque você escolheu por eles. Porque você nunca os deixa decidir
se querem ou não viver. Eles não são crianças.
— A decisão não é deles, Cora. É fácil viver. É difícil escolher morrer.
Somos abominações. Não deveríamos estar vivos.
Mais murmúrios. Mais agitação. Cora balançou a cabeça.
— Harrow Faire não quer destruir o mundo. Ela quer viver aqui em
paz. Ela precisa comer, como qualquer outra pessoa. Você odeia Rudy porque
ele come carne crua? Você odeia algum de nós por precisar se alimentar?
— Não. Mas uma criatura normal não persiste em partes da alma
humana. — Turk estava olhando para ela, justo e firme.
Ela sentiu como se estivesse gritando com seu pai. Mas ela tinha que
segurar a linha.
— Ela pode sobreviver com o que equivale a um fio de cabelo na cabeça
de cada pessoa que passa por aqui. Você a forçou a pegar pedaços cada vez
maiores – como um dedão do pé, um dedo ou um braço. Se eu não tivesse
destruído Duncan, todos estaríamos mortos agora. — Isso gerou uma reação
da multidão. Aaron estava de pé agora, balançando a cabeça, a mão sobre a
boca. Os Gêmeos estavam abraçados com nervosismo, trocando olhares
assustados. — E você nunca teria dito a eles que eles estavam prestes a
morrer.
— Não. Teríamos entrado silenciosamente na Inversão e encontrado o
vazio que todos merecemos. Teria sido tranquilo. Sem dor. Por que assustá-
los?
— Porque eles têm o direito de saber. — Ela voltou sua atenção para os
outros. — Porque eles têm o direito de serem ouvidos e saberem a verdade.
Deveríamos poder viajar. Deveríamos ser autorizados a passear fora dos
portões. Escolher nossas próprias mortes, se quisermos. Não ser esta... Versão
aleijada de nós mesmos. Mas você tirou isso deles, Turk. Como você teria
tirado todo o resto.
— O que você pretende, Cora? Vamos batalhar? — Mestre de
Cerimônias puxou as pontas de seu casaco. — Você e eu? Ou devemos reunir
nossas facções e travar uma guerra sangrenta? Tudo porque você quer deixar
esse monstro continuar se alimentando de almas?
— Você sabe por que Harrow Faire tem um vagão? Você sabe por que o
número vinte e um existe, se não existe o Sr. Harrow? Porque quer estar perto
de nós. Porque quer ser Família. Ela nos ama. Cuida de nós. Nos dá tudo o
que poderíamos querer. Livros, ferramentas, brinquedos – tudo o que
precisamos para ser felizes. Até trouxe Amanda na esperança de que ela
pudesse acalmar qualquer insanidade que o inspirou a se voltar contra as
pessoas que você diz amar.
— Porque ela quer sobreviver! Isso é tudo! É um truque para nos levar à
complacência. Que você não pode ver isso fala de sua ingenuidade. Você é
uma criança, Cora. Você é jovem. Estou aqui há mais de duzentos anos.
Mestre de Cerimônias deu um passo em direção a ela novamente, com a
intenção de usar sua altura para intimidá-la.
Pela primeira vez, ela não estava com medo. Ela sorriu para ele.
— E eu vi o vazio que fica no coração da torre. Eu vi toda a sua história
neste planeta. Eu vi todo o dano que ela causou à humanidade, e eu prometo
a você – empalidece em comparação até mesmo com o mais benigno dos
países ou religiões. Não. Ela não faz essas coisas para ‘nos levar à
complacência’. Por que manter tantos de nós se isso fosse verdade? Ela só
precisa de um. Por que não dominar o mundo? Por que não comer pessoas
inteiras como fiz com Duncan?
Mestre de Cerimônias não respondeu. Suas mãos se fecharam em
punhos.
— Porque Harrow Faire, goste você ou não, tem mais empatia do que
você. — Ela olhou para Amanda e seu coração se partiu. — Diga-me que você
sabia o que ele estava fazendo... Por favor.
Turk suspirou de frustração.
— Muito bem. O segredo foi contado. Você contou a eles todo o destino
que os espera. Que eu verei este lugar arrancado da face da Terra. Você
pretende me impedir?
Cora enfiou as mãos nos bolsos e imediatamente se arrependeu. Eles
estavam crocantes, pegajosos ou ambos. Ela fez um ruído blechk e puxou as
mãos rapidamente de volta. Agora ela precisava de um guardanapo.
— Sabe o quê? Sim. Eu estava planejando marchar aqui, arrancar sua
cabeça e drenar o que resta de sua alma pútrida e usá-la para alimentar a
Faire. Mas eu não vou. Ainda não.
Turk franziu a testa em confusão.
— Por que?
— Porque não serei hipócrita ou covarde. Porque se vou condená-lo por
não dar voz à Família nos assuntos, então... Não posso dar meia-volta e fazer
a mesma coisa. Eles merecem uma chance de escolher. — Ela limpou a mão
na calça. Estava arruinada de qualquer maneira. Ela realmente precisava de
um maldito banho. — Aqui está o que vai acontecer. Vamos colocar em
votação. Todos aqui têm a chance de dizer se acham que devemos ter
permissão para existir – ou se todos devemos morrer. Se você ganhar? Você
ganha. Passamos fome e morremos. E eu vou ficar quieta sobre isso, ou você
pode me colocar de volta na torre. — Ela fez uma pausa pensativa. — Depois
que a Faire consertar as portas. Tanto faz. E se eu ganhar? — Ela sorriu para
Turk. Mestre de Cerimônias deu um passo para trás. Ah, isso era bom. Não
admira que Simon fosse uma aberração tão sádica. Isso era inebriante. —
Bem, vamos discutir o que acontece com você então.
— Você quer votar agora? — Turk arqueou uma grossa sobrancelha
negra.
— Não. Estou exausta. Eu realmente, realmente preciso da porra de um
banho, e acho que Simon comeu toda a salsicha.
— Não — Simon falou com a boca cheia. — Deixei o suficiente para
você.
Cora riu cansada.
— Vou dar a todos uma semana. Eles podem me fazer perguntas. Te
fazer perguntas. Decidirem por si mesmos. Pensarem bem. Então nos
encontraremos na grande tenda e votaremos. E vamos acabar com isso de
uma vez por todas.
Turk olhou para ela ao longo de seu nariz largo.
— E se eu recusar?
— Então eu vou rasgá-lo em pedaços e beber você como uma garrafa de
Gatorade, Mestre de Cerimônias. E farei o mesmo com qualquer um que
tentar me impedir. — Ela sentiu sua raiva aumentar. Com isso, a escuridão
nela borbulhou até a superfície. Algo em seu rosto deve ter mudado. Simon
olhou para ela com horror da última vez que isso aconteceu, e agora Mestre
de Cerimônias também. Também pareceu fantástico. — Você está desarmado.
Despreparado. E eu estou chateada pra caralho.
— Eu diria ‘sim’ se eu fosse você, homem gordo — Simon falou do
fundo da tenda. — Ela está de bom humor.
Turk gaguejou e olhou ao redor da tenda. Havia tantos rostos confusos
quanto zangados. Ela se perguntou quantas pessoas ficariam do seu lado. Ela
se perguntou se eles ganhariam a votação.
Ela saberia em breve, ela supôs.
— Eu prometo isso a você, Mestre de Cerimônias. Se eu ganhar, e se
você perder a votação... Não vou amarrá-lo pelos tornozelos ou jogá-lo em
um buraco. Eu não vou deixar você em agonia. Não vou torturá-lo porque
discordo de você. Você sabe que tipo de criatura faz isso? Um monstro.
Ela passou por ele com isso, empurrando a escuridão de volta para o
poço de onde veio. Era como um músculo que ela estava aprendendo a
flexionar. Como de repente ter crescido asas ou uma cauda, era preciso um
pouco de ajuste para não usá-la aleatoriamente. Ela caminhou até a mesa de
piquenique onde Simon estava sentado e desabou no banco, de costas para os
outros.
— Uma votação, hein? — Simon murmurou. — Eu teria simplesmente
matado ele agora.
— Eu sei que você teria. — Ela tomou um gole de seu café. Ela não se
importava com o quão quente estava. Oh, graças a Deus por essas coisas. — Mas
não vou me rebaixar ao nível dele.
— Difícil, quando ele é tão alto quanto eu.
Ela jogou o chantilly de seu waffle sobre a mesa e esparramou no rosto
dele.
Ele o encarou.
— Insulto a injúria. Eu vejo. — Ele o limpou com a palma da mão e o
jogou de volta para ela. — Não me faça pegar a lata e te segurar e te afogar
nela.
— Tenho certeza de que você não pode mais me vencer em uma luta
livre. — Ela pegou o café e tentou não engoli-lo. — Não, a menos que eu
deixe você ganhar.
— Sabe, eu pensei que poderia não gostar da ideia de namorar uma
mulher que poderia me quebrar como um galho e sugar a medula dos meus
ossos. — Ele murmurou pensativo. — É bastante excitante. Não tenho certeza
se gosto dessa nova descoberta sobre mim mesmo. Acho que odeio isso, na
verdade, mas o que mais há de novo ultimamente?
Cora riu e cutucou o pé debaixo da mesa. Ele enganchou seu tornozelo
atrás do dela.
— Você realmente vai entrar aqui, jogar uma verdadeira bomba no
meio da Família e depois comer seu café da manhã como se nada tivesse
acontecido? — Simon sorriu.
— Sim. Porque estou cansada, mal-humorada e com fome.
— Acho que você também é um pouco sádica e gosta do poder que
ganhou. — Simon cutucou a mão dela com a ponta do garfo. — Não é?
Ela lançou-lhe um olhar. — Vou esfaqueá-lo com este garfo.
— Você sempre fica tão agressiva quando estou certo. — Ele sorriu e
cortou outro pedaço de seu waffle. — É como eu sei quando estou ganhando.
— Cala a boca, seu idiota-babaca — ela resmungou em sua comida. Mas
ela não pôde deixar de sorrir. Ele estava certo. De novo. E ele estava certo
sobre estar certo. Mas ela não iria deixá-lo saber disso.
— O que, exatamente, é uma idiota-babaca, posso perguntar? Ou estou
mais feliz por não saber? — Simon ponderou em voz alta, girando uma fatia
de morango na ponta do garfo. — Agora que penso nisso, estou mais feliz
por não saber.
Uma sombra caiu sobre a mesa. Ela olhou para cima para ver Rudy
parado ao lado dela. Seus ombros estavam erguidos e sua linguagem
corporal estava tensa. Mas ele não parecia bravo. Ele parecia nervoso. Ela
ergueu a sobrancelha para ele.
— Oi, Rudy. O que há de errado?
— Você — veio a resposta simples e concisa.
— Oh. Certo. Eu esqueci. — Ela olhou de volta para sua comida. —
Quer sentar?
Silêncio. O Domador de Animais ficou congelado ao lado dela por um
longo momento antes de se sentar lentamente no banco ao lado dela. Ele se
sentou com as pernas do lado de fora da mesa, no entanto. Apenas no caso de
ele precisar fugir.
Ele tem medo de mim.
Estão todos com medo de mim. Ela olhou ao redor da tenda e, com certeza,
todos estavam olhando para ela. Amanda e Turk se foram. Ela não se
importava para onde. Jack também não estava lá. Ela estava feliz por isso. Ela
ficou magoada com a traição dele. Ela não tinha certeza se iria perdoá-lo.
Ela também não tinha certeza se o odiava por isso.
Mas ela tinha certeza de que ela podia se sentir traída.
Assustar Turk foi bom. Mas assustar todo mundo... Não.
Eles estavam olhando para ela como se não a conhecessem.
Eu sou diferente. Posso não ser mais Cora. Talvez eles possam ver. Ela franziu
a testa.
— Pessoal... Eu não vou machucar vocês. Não estou aqui para provocar
uma briga. Eu tive... Tive algumas semanas muito difíceis. Me desculpem se
eu assustei todos vocês. Eu não queria. É só que... Acho que vocês não sabem
como é naquela torre.
Silêncio por um longo momento, então Aaron foi o primeiro a quebrar o
gelo. Ele pegou sua bandeja de comida, caminhou até a mesa de piquenique
onde ela estava sentada e se sentou ao lado dela.
— Por que você matou aquele homem, Cora?
— Ele foi o homem que me estuprou cinco anos antes de eu vir para cá.
A garota com quem ele estava era minha amiga íntima. Ele estava prestes a
estuprá-la aqui no parque. Eu... Perdi a paciência.
Aaron olhou para ela; o branco de seus olhos era visível enquanto ele
olhava boquiaberto.
— Eu diria que você tem todo o direito de perder a calma, meu bem.
Merda, eu teria feito Simon amarrá-lo como uma pinata e deixar todo mundo
tentar com ele.
— Eu ofereci. — Simon deu de ombros. — Mas alguém disse nãooooo.
Me disse que não poderia me divertir.
— Não foi assim que aconteceu, e você sabe disso.
Ela balançou o garfo para ele pela primeira vez. Mas ela estava
sorrindo.
Bertha foi a próxima a se aproximar. Em seguida, Louis e Elena. Até
Anastasia, com seu casaco longo e peludo, veio falar com ela. Mantendo
distância, a Diva olhou para Cora com cautela.
— Você está tentando salvar nossas vidas, Contorcionista?
— Estou.
O arco de uma sobrancelha delicada e incrédula.
— Por que?
— Porque vocês são minha Família. Porque eu me importo com todos
vocês. Há amor, vida e alegria neste lugar. E... — Ela fez uma pausa.
Depois de um longo momento, ela finalmente ganhou coragem. Cora
disse as palavras que ela levou o que parecia uma eternidade para realmente
aceitar serem verdadeiras. Ela olhou para Simon e sorriu. Ele lhe ofereceu um
exausto em troca.
— E porque eu pertenço aqui. Esta é a minha casa.
O medo era bom. Mas isso também era bom.
Simon observou enquanto o pequeno grupo de membros da Família
enchia Cora com perguntas. Eles perguntaram tudo o que ele poderia ter
adivinhado que eles gostariam de saber – todos os o quês, quandos, por quês
e ondes de sua situação.
E Cora, exausta e esgotada como ela claramente estava, respondeu a
todos eles obedientemente. Mestre de Cerimônias os traiu e estava matando
lentamente a Faire. Palhaço costumava estar no comando há muitos anos,
mas foi traído. Não havia Sr. Harrow, e nunca houve. Ela até descreveu em
detalhes o que aconteceu com eles dentro da torre.
Tudo menos um detalhe.
A “morte” de sua sombra.
Essa parte ela guardou para si mesma. Alegou que concordou em
redobrar sua conexão com Harrow Faire para libertá-los. Não estava errado...
Apenas não era toda a verdade.
Ele ficaria orgulhoso dela se não estivesse apenas um pouco irritado
com sua decisão de poupar Mestre de Cerimônias. Ela deveria ter acabado
com Turk, ali mesmo, na frente de toda a Família.
Mas não. Ela tinha que ser nobre. Fazer a coisa certa.
Foi irritante.
Oh, ele entendia por que ela tinha feito isso em um nível superficial.
Mas por baixo disso, isso o incomodava do jeito errado. Ela teve a chance de
acabar com tudo. Claro, todos ficariam terrivelmente chateados com ela e
provavelmente tentariam dar um golpe, mas não havia nada que pudessem
fazer para detê-la. Então, por que se preocupar em tentar colocá-los do lado
dela?
Moral.
Foda-se a moral.
Era uma coisa chata. Não valia a pena. Ele tomou um gole de suco de
laranja, ouvindo a conversa se desenrolar. Ele estava bastante feliz por ter
visto “honra” e “dignidade” com o mesmo descaso que tinha antes de sua
viagem à torre. Parte dele esperava uma mudança.
Parecia que ele estava errado sobre a natureza de sua sombra
desencarnada em todos os aspectos. Ele temia que, com sua “morte” todos
aqueles sentimentos sangrentos de compaixão e simpatia tivessem voltado
para ele.
Felizmente, não era esse o caso. Sentia-se tão maravilhosamente cínico
como nunca.
Cora queria realizar uma votação. Ele manteve sua zombaria interna.
Quão adoravelmente ingênua e doce da parte dela. Ela ainda se importava
com o que os outros pensavam. Esperançosamente, ela deixaria aquela parte
irritante dela morrer mais cedo ou mais tarde.
Falando em querer morrer. Ele estalou o pescoço para a direita e depois
para a esquerda e grunhiu com o estalo doloroso que foi significativo o
suficiente para abalar sua visão.
— Você está bem aí, Marionetista?
Aaron ergueu uma sobrancelha para ele.
— Três semanas pelos meus tornozelos, Puxador. Eu sei que é difícil
para você – e você pode não ser capaz de qualquer outro tipo de investigação
– mas tente não fazer perguntas estúpidas. — Ele esfaqueou a comida em seu
prato com o garfo no lugar de Aaron. — Estou muito cansado.
— Nem me fale — Cora murmurou enquanto esfregava a parte de trás
de seu antebraço contra sua testa. — Mas acho que todo o sangue finalmente
secou agora.
— Ah merda. — Aaron grunhiu e se levantou. — Vocês dois precisam
descansar um pouco e se limpar. Estamos sendo egoístas. — Ele enxotou o
resto do grupo para longe. — Vão.
Simon se levantou da mesa e gemeu quando tudo em seu corpo ficou
rígido e estalou. Seria bom tomar um banho e descansar um pouco.
— Finalmente. A maioria dos idiotas se foi.
— O que ele quer dizer é ‘obrigado’. Só não acho que ele saiba que essa
palavra pode ser dita.
Cora também se levantou, estremecendo. Parecia que ia cair no sono em
pé. Não apenas de exaustão física, mas emocional também. Ele sabia pela dor
em seu coração que não lhe pertencia.
— O... Brigado? — Simon franziu a testa em confusão simulada. — Não
entendo. O quê?
Aaron realmente riu. Riu. Com uma das piadas de Simon.
Ele olhou para o homem mais baixo. Não. Ele não ia considerar nada
redimível sobre a criaturinha excessivamente de pomada, gordurosa e
revoltante. Nem mesmo apreciando o senso de humor de Simon.
— Eu desprezo você. Imensamente. Você entende isso?
Puxador recuou com os olhos arregalados de preocupação e confusão.
— O que eu fiz?
Cora balançou a cabeça e, pegando a mão de Simon, começou a puxá-lo
em direção aos vagões.
— Vamos, louco. Preciso de um banho e uma soneca. Vejo você mais
tarde, Aaron.
— Si-sim. Mais tarde.
Ficou claro que Puxador ainda não tinha certeza do que havia feito para
ofender Simon. Simon não tinha certeza sobre o quê Aaron estava tão
perplexo. Ele não precisa fazer nada de especial.
Foi quando eles estavam a seis metros de distância que Cora olhou para
ele.
— Tenho certeza de que você está chateado com o fato de eu estar
deixando as pessoas votarem.
— Um pouco. Por que se incomodar, Cora? Vamos levar Mestre de
Cerimônias para uma luta. Agora mesmo. Encontre-o onde quer que ele
esteja escondido e rasgue-o em pedaços. — Ele sorriu sombriamente. — Desta
vez... Você tem que me deixar me divertir também, hum? Por mais
sexualmente gratificante que tenha sido ver você drenar Duncan até secar, eu
também tenho uma vingança com o homem gordo.
— Você terá sua chance. Eu prometo. — A mandíbula de Cora apertou.
— Nós vamos vencer, Simon. Os outros ouvirão a razão e se juntarão ao meu
lado. Estou certa disso.
— E se eles te traírem como Jack e Amanda? — Simon suspirou. —
Você realmente não pode confiar em ninguém, Cora. Não até que esta guerra
termine.
Seus ombros caíram.
— Sim. Eu sei. Eu só... Estou tentando.
— Tentar pode não ser suficiente. — Ele estendeu a mão e acariciou o
cabelo dela. Estava emaranhado de sangue. — Mas vou manter essa
esperança com você por enquanto.
Ela parecia tão... Quebrada. Isso o fez querer empurrá-la ou provocá-la.
Ele não sabia ao certo por que sempre sentia a necessidade de atormentar as
pessoas cuja companhia ele gostava. Ele queria que ela risse. Sorrisse. Desse
um tapa nele e falasse para ele parar de ser tão ele mesmo. Mas ele também
sentiu como se alguém o tivesse atropelado e tivesse pouca energia para fazer
qualquer coisa além de colocar um pé na frente do outro.
Eles foram para o vagão dela. Ele supôs que eles deveriam verificar o
peixe dela. Ele não podia ter todos os pequenos Simons morrendo de
negligência. Oh. Bem. Foram três semanas, não foi? Eles provavelmente
estavam mortos.
Ela abriu a porta e entrou. Um momento depois, ela riu.
— O quê?
Ele fechou a porta atrás dele e a trancou, e então jogou a trava. Virando-
se, ele a viu perto de seu pequeno aquário borbulhante. Ela deve ter tido o
mesmo pensamento. Não estava marrom ou turvo, e para sua agradável
surpresa ele viu todos os pequenos animais basicamente sem cérebro
circulando ilesos.
Cora arrancou uma nota do vidro que havia sido colocado lá com um
pequeno pedaço de fita e entregou a ele.
Tomando-o, ele arqueou uma sobrancelha enquanto o lia. A caligrafia
era quase ilegível. Era na maior parte rabiscos arranhados. Mas ele conseguiu
apertar os olhos com força suficiente para entender depois de um momento.
“Eu os alimentei.” Seguido por uma simples letra R para uma assinatura.
Rudy. Ele balançou sua cabeça.
— Estou surpreso que ele não os comeu para um lanche rápido.
Ela sorriu levemente e se afastou, tirando o casaco arruinado e jogando-
o em uma bola no canto. Foi então que ele pôde ver a extensão do dano que
deve ter sido causado pela escultura sobre a qual ela foi jogada. Cortes em
sua camisa e manchas escuras de sangue eram as memórias de feridas que
haviam cicatrizado.
Mas ele sabia que a memória da dor perduraria por muito tempo
depois que a evidência física se fosse.
— Cora... Você está bem?
— Estou bem. Por que eu não estaria bem? — Ela foi em direção ao
banheiro. — Eu preciso de um banho.
— Eu...
Ele não teve a chance de dizer mais nada. Ela entrou no banheiro,
fechou a porta e... Trancou. Ele piscou, em seguida, fez uma careta para a
porta fechada. Por que diabos ela havia trancado a porta?
Ele foi até ela e bateu os dedos na superfície.
— Cora?
Ela não respondeu. Ele ouviu a água se abrir com uma pressa silenciosa.
— Cora?
Ainda sem resposta. Ele suspirou, beliscou a ponta do nariz e pensou
em ir embora. Se ela não tinha vontade de falar com ele ou explicar o que
estava acontecendo dentro daquela cabeça dela, ele não tinha obrigação de
ficar. Ele poderia voltar para seu próprio vagão, tomar banho e dormir. Ele
mal precisava dela para fazer tarefas tão simples.
Mas era isso o que o amor era. Era isso o que este faria com ele.
Deixaria-o parado ali na porta do banheiro, desejando poder arrancar seu
coração dolorido do peito e bater contra a parede.
De novo.
Tanto faz.
Mas ela estava com dor. E porque ela estava com dor, ele estava com
dor. Ociosamente, ele debateu quanto disso era por causa de seu patrocínio a
ela, e quanto disso era porque ele a amava.
De qualquer forma, ele sabia que odiava.
Verdadeira e inteiramente, odiava.
Mas não havia nada a ser feito sobre isso no momento.
Ele passou suas cordas pela fechadura da porta, usando-as para
pressionar os pinos e torcer o metal. Não era uma fechadura complicada de
abrir. Abrindo a porta, ele já estava na metade de seu discurso rápido quando
a deslizou para o compartimento dela.
— Eu deveria estar bastante zangado com você por me trancar do lado
de fora, Cora. Você nem me ofereceu nada para beber, ou se eu gostaria de
tomar banho antes de você – ou com você – e agora você está me ignorando?
Não consigo imaginar que seja uma maneira muito legal de tratar o homem
que...
Ele fez uma pausa.
Ele esperava ver uma linda garota nua de pé no chuveiro. Talvez
assustada. Talvez com raiva.
O que ele não esperava era ver Cora enrolada no canto do chuveiro...
Totalmente vestida. Seus joelhos dobrados contra o peito, os braços abraçados
ao redor deles, a cabeça baixa, o rosto escondido atrás de uma cortina de
cabelo escuro e molhado.
Ela estava soluçando.
Preguiçosamente girando em torno dela no azulejo branco, havia
sangue. Fluía de sua pele e roupas enquanto o fluxo de água diluía a
substância que endurecia cada centímetro dela e o enviava lentamente em
espiral pelo ralo.
E a água estava fria.
Seu discurso morreu. Assim como seu desejo de partir. Ele começou a
tirar suas próprias roupas, jogando tudo de lado, até ficar apenas de cueca.
Era estranho estar nu quando ela não estava. Uma compulsão estranha, mas
que ele não podia negar. Ele ligou a água a uma temperatura razoável e
entrou. Estremecendo com a rajada de água fria contra seu peito, ele se
ajoelhou no ladrilho ao lado dela.
— Cora...
Ela não respondeu. Com outro longo suspiro, ele lentamente puxou os
braços dela para longe de suas pernas. Enquanto ela gemia e tentava se
afastar dele, ele soltou um “shh” gentilmente e insistiu. Pouco a pouco, ela
ficou mole.
Ela é o avatar de uma criatura mística que poderia destruir a todos nós. Mas
ela estava vulnerável. Ferida. E ela não tinha mostrado nada disso para os
outros. Só para ele.
Ela confiava nele. Pelo menos um pouco.
Para melhor ou pior.
Ele começou a tirar as roupas encharcadas dela, enrolando-as e
jogando-as na pia. Elas estavam arruinadas, mas não havia razão para fazer
uma bagunça se ele pudesse evitar. Finalmente, a água estava quente e ela
estava devidamente despida para a situação.
Estendendo a mão, ele juntou o sabão e um pano e começou a cuidar
dela cuidadosamente. O pedaço de tecido azul ficou quase instantaneamente
manchado de roxo escuro pela quantidade de vermelho que ele estava
limpando da pele dela.
Pelo menos ela tinha parado de chorar. Mas seu olhar vazio para a
parede na frente deles o deixou igualmente preocupado. O vórtice em seu
coração doía não menos do que alguns minutos antes. Ela estava
simplesmente cansada demais para continuar soluçando.
Pela primeira vez, ele não tinha nenhum comentário idiota a fazer. Ele
cuidou dela obedientemente, lavando seu cabelo, enxaguando-a. Ele desligou
o chuveiro e, pegando-a em uma toalha em seus braços, ele a sentou na beira
da pia. Ele começou a secá-la.
— Cora.
Ela olhou fixamente para seu peito nu.
— Cora, olhe para mim.
Silêncio.
Ele curvou o dedo sob o queixo dela e inclinou a cabeça para trás.
Finalmente, olhos cinzentos e exaustos encontraram os dele. Ele passou o
polegar ao longo de sua mandíbula.
— Fale comigo.
— Não sei mais o que sou.
— Como isso é novidade? Você não sabe para que serve... Oh, quantos
meses se passaram desde que você chegou, agora. Isso não é nada mais
significativo do que o que aconteceu quando você pôs os pés aqui naquela
primeira noite. Para você, de qualquer forma.
— Já não sei quem sou.
— Acho que esse é um problema maior, sim. — Ele sorriu.
Isso foi um erro.
Com um suspiro atormentado e quebrado, ela deslizou da pia e para
fora de seu alcance. Ele a soltou. Talvez agora não fosse o melhor momento
para brincar com ela. Ele observou, sem palavras, enquanto ela colocava o
pijama. Ela jogou para ele calça seca de pijama que provavelmente serviria
nele.
Que estranhamente pensativo.
Ele tirou a cueca encharcada, trocou de roupa e a seguiu enquanto ela
se arrastava para a cama. Ele fechou as cortinas para ela e se enrolou de lado
em suas costas. Ele passou um braço ao redor dela e a puxou para perto e deu
um beijo na parte de trás de sua cabeça. O cabelo dela ainda estava
encharcado, assim como o dele. Mas isso pouco importava. Deslizando o
outro braço sob o travesseiro, ele dobrou os joelhos aos dela.
Ela estava sofrendo.
Isso o incomodava imensamente.
E ele desprezava isso.
— Eu nunca pensei que teria a chance de abraçá-la novamente — ele
murmurou. — Eu nunca pensei que teria a chance de te beijar... De ficar aqui
assim com você. De simplesmente estar com você. Achei que era o fim de
tudo. Eu teria dado qualquer coisa para salvá-la. Suponho que, no final, eu
dei.
Ela ficou ali, de olhos fechados, e não disse nada.
Ele beijou a parte de trás de sua cabeça novamente.
— Eu não me importo com quem você é agora, ou quanto de você foi
substituído pela Faire. Porque quem você teve que se tornar para salvar
nossas vidas é mais de você do que eu jamais teria novamente. Não vou, por
uma vez na vida, ser ganancioso. Serei feliz com qualquer parte de você que
me for permitido ter. Porque a alternativa é muito, muito pior.
Ela sorriu. Triste e cansado, mas um sorriso ao mesmo tempo.
— Eu te amo, Simon. Às vezes você não é um idiota total.
— Só às vezes? Devo trabalhar mais para manter minha má reputação.
Cora deu uma cotovelada nele, e ele grunhiu. Foi um tiro de uma
mulher que agora poderia esmagá-lo oficialmente. Ele aceitaria.
— Simon, não estrague seu belo discurso.
— Muito bem. — Ele se aninhou nela e fechou os olhos. O sono viria
para ele forte e rápido. Ele não disse a ela que a amava. Ele honestamente não
entendia o porquê. Parte de sua mente o incomodava, incomodando-o para
finalmente deixar escapar o que ele tentou dizer tantas vezes.
Sua sombra se foi. Mas ainda parecia que parte dele permanecia. Ou
nunca foi realmente separado dele. Era difícil dizer.
Mas por que não contar a ela?
Não era o momento certo, talvez.
Ele deveria confessar seus sentimentos de joelhos na frente dela,
segurando um anel na palma da mão. Ele teria que ter um novo – dar a ela o
que ele havia oferecido a Suzanna seria realmente muito brega.
Sim. Ele faria um anel. Talvez se ele pedisse à Faire uma pedra preciosa,
ela forneceria algo adequado. Um rubi seria muito mais adequado do que um
diamante, ele decidiu. Aquelas pedras eram clichês demais para ele. Rubi e
ônix. Ele não era muito joalheiro, mas era talentoso em tudo, então seria fácil
para ele.
Ele entrelaçou os dedos entre os dela e soltou um suspiro longo e
satisfeito. Ela apertou a mão dele brevemente, mas ele percebeu que ela já
estava meio adormecida.
— Eu vou sofrer muito, se isso significar que eu posso te abraçar,
docinho.
Ela soltou um pequeno zumbido, mas isso foi tudo. Pobre querida. Ele a
deixaria descansar um pouco. Ele precisava muito também.
Mas suas palavras eram verdadeiras.
Ele poderia suportar muitas coisas se isso significasse que ele poderia
tê-la.
Inclusive o amor.
Turk estava andando de um lado para o outro. Ele sabia que estava. E
ele sabia o quão maluca isso deixava Amanda. Mas ele não podia evitar. Ele
cruzou para frente e para trás ao longo da distância da parte do escritório de
sua tenda. Ele havia passado pela torre de observação apenas para descobrir
que as portas explodiram. Deformadas e queimadas como se algo as tivesse
explodido por dentro. Mas nenhum fogo danificou a estrutura em si.
Tinha sido Cora a culpada.
Cora, ou o que quer que ela tenha se tornado.
Turk passou a mão pelo cabelo. Já não estava bem alisado para trás.
Mas ele não se importou. Sua mente estava cambaleando. O impossível tinha
acontecido, e ele ainda estava tentando descobrir como isso poderia ter
acontecido.
Como ela se libertou da estátua?
Como ela saiu da torre?
A Faire deu a ela algum tipo de poder terrível. Mas o quê? E por que agora?
Ele a colocou lá na esperança de que pudesse evitar uma guerra. Parecia
que ela, e a própria Harrow Faire, tinham uma última carta para jogar. Ele
tinha visto a escuridão rastejando de sua própria sombra, buscando a outra
sombra da manhã como um relâmpago procurando uma haste para o chão.
Ela era um monstro. Ela havia se tornado a besta que ele procurava matar.
E agora, ela poderia muito bem ser ainda mais forte do que ele.
Mas por que ela não o atacou? Ela poderia tê-lo destruído, pego de
surpresa como ele estava. Em vez disso, ela escolheu contar a verdade à
Família... E convocar uma votação.
Ele fez uma careta. Isso o fez parecer terrível para os outros. Se nada
mais, ganharia sua simpatia. Ficou claro que Rudy já estava do lado dela.
Quem mais ficaria ao lado dela?
E se eles fizessem essa votação tola em uma semana? O quê então? Ele
gostaria de imaginar um mundo onde os outros vissem a nobreza em seu
sacrifício e concordassem em se juntar a ele para matar o monstro.
Mas ele não era um homem otimista por profissão. O otimismo levava
apenas à tolice em sua experiência. Não, ele assumiria que o pior resultado
seria aquele que aconteceria. Dessa forma, ele poderia estar adequadamente
preparado.
Além disso... Ele sabia que eles ficariam contra ele. Porque o medo da
morte e o desejo de permanecer vivo eram o motivador mais forte para a
maioria. Especialmente aqueles que não tinham nada além do vazio
prometido a eles. Não haveria Céu ou Inferno esperando por ninguém na
Família.
Havia apenas duas almas sentadas na tenda com ele. Duas que se
comprometeram com sua causa. Amanda e Jack. Jack estava sentado em uma
das cadeiras perto da parede de tecido, a cabeça enterrada nas mãos. O
homem parecia indigente, e Turk entendeu o porquê. Trair alguém era difícil
o suficiente para o estômago quando não era preciso olhar nos olhos do
traído. Era outra coisa completamente diferente quando alguém tinha que
olhar em seu rosto e tentar explicar suas ações.
A moral e os princípios eram coisas fáceis de manter quando não eram
contestados.
Amanda estava sentada em um banco, de pernas cruzadas, os
tornozelos quase embaixo das coxas enquanto olhava preocupada. Pela
primeira vez, ela estava tão absorta em seus pensamentos que não se distraiu
com o ritmo de Turk.
Ele tinha seus próprios pensamentos cambaleantes para enfrentar.
— Eu preciso de um plano — ele murmurou. Era mais para si mesmo
do que para Jack e Amanda.
— Que plano poderíamos bolar? — Jack resmungou e recostou-se na
cadeira, passando as mãos pelo rosto. — Vai haver uma votação. Nós vamos
perder. Então ela vai... Eu não sei. Nos colocar na torre.
— Você pode ir para a torre, amigo. — Turk soltou uma única risada
sombria. — Eu não.
— Eu não vou deixar ela te machucar. — Amanda fez o possível para
parecer assertiva. Mas sua voz vacilante a delatou. A Aerialista estava com
medo, e por uma boa razão. Era um sentimento doce. Mas um passivo.
Cora poderia destruir todos eles.
Ele caminhou até ela e, inclinando a cabeça dela para a dele, deu-lhe um
beijo gentil em agradecimento. Ele sabia que não havia nada que ela pudesse
fazer. No final, contra algo parecido com o que Cora se tornou, a Aerialista
não seria nada além de palha. Um soldado de infantaria em uma guerra,
destinado a morrer.
Beijando-a novamente, ele deixou isso durar. Ele a amava. Ele a
adorava com tudo o que tinha. Quantos soldados ele havia enviado para a
batalha em sua vida, sabendo que nunca retornariam? Ele não conseguia se
lembrar mais.
Talvez a perda da identidade tenha sido um presente a esse respeito.
Ele não era mais assombrado em seus sonhos por visões. Ele se lembrava de
ter pesadelos em seu passado, mas eles não o incomodavam mais. Engraçado
que ele pudesse se lembrar das consequências, mas não do assunto em si.
Ele só tinha seus diários como prova. Ele escrevia neles todos os dias,
registrando todos os eventos que ocorreram na Faire. Foi só olhando para trás
através deles que ele sabia alguma coisa sobre seu passado.
Mas não o nome dele.
Murad Atan.
Cora havia contado para ele, sussurrado para ela por Harrow Faire.
Isso era uma coisa que ele nunca havia escrito em seu diário. Por que
alguém escreveria seu próprio nome? Isso era tão importante para uma parte
da identidade de uma pessoa que certamente nunca desapareceria. Não
significava nada para ele agora.
E tal era a doença insidiosa que era Harrow Faire. Corroendo a
humanidade como ácido, lascando o bloco até que não restasse nada além de
poeira em ruínas.
Ele tinha que manter sua determinação. Era fácil jogar tudo fora se isso
significasse que ele poderia ficar com aqueles que amava. Essa foi a queda de
Cora, não dele. Além disso... Aquele navio havia partido dele há muito
tempo. Não haveria saída para ele. Sem liberdade. Sem piedade. Cora não lhe
daria trégua, mesmo que ele implorasse.
E ele não iria implorar.
Pois esta era uma causa nobre. E ele daria de bom grado sua vida por
isso. E de qualquer outra pessoa.
Ele tinha ido longe demais para parar agora.
Retomando seu ritmo, ele voltou a tentar formular um plano. Ele
poderia tentar armar uma armadilha para Cora. Mas que tipo de armadilha
ele poderia usar? A garota havia sido esperta ao declarar que haveria uma
votação aberta para o futuro de Harrow Faire. Se ela pretendia manter sua
palavra, ele não tinha certeza. Mas não era o ponto.
A questão era que qualquer tentativa de contornar – ou impedir – uma
votação seria vista como tática suja de sua parte. A Família já estava zangada
com ele por ter condenado Cora e Simon à torre sem julgamento. Agora eles
sabiam por quê. Arrombar a porta de seu vagão e tentar acabar com ela
reuniria todos ao seu lado.
E havia um problema maior na frente dele.
Mesmo se ele pudesse subjugar Simon e Cora...
Então o quê?
A torre provou ser ineficaz em mantê-los.
Ele não tinha outro meio de acabar com a vida dela.
Ninguém poderia destruir a Família, exceto Palhaço. E aquela porta se
fechou.
Talvez ele pudesse convencer um membro da Família que poderia
transmutar vítimas em outras formas. Simon estava fora de questão por
razões óbvias. Assim como Rudy, que já havia deixado dolorosamente claro
de que lado estava o predador Domador de Animais.
Bertha... Ele balançou a cabeça. Era improvável que Bertha pegasse
Cora e a transformasse em uma de suas aberrações. As duas pareciam ser
amigas, e Bertha era muito rigorosa em levar apenas aqueles que se
juntassem a ela de bom grado.
Assim como o Maestro. Maksim era um homem severo pela aparência,
mas sensível pelo ofício. Ele ficava consigo mesmo, falando pouco com
ninguém, exceto sua orquestra. Era um desafio de longa data entre a Família
tentar fazer Maksim rir. Meios pontos foram concedidos por um sorriso.
Poucos conseguiram.
Mas, das quatro almas da Família que podiam acrescentar outras a uma
coleção, Maksim era a única que podia simpatizar com o plano de Turk. O
único do grupo que poderia estar disposto a fazer de Cora uma adição à sua
orquestra. Turk naturalmente teria que lidar com Simon, mas uma vez que
Cora fosse lidada, o Marionetista só teria violência ociosa para prometer em
retaliação.
Maksim era sua melhor aposta. Correção – Maksim era sua única
aposta.
Ele vestiu seu fraque e pegou sua cartola. O belga era muito exigente
com boas maneiras e decoro, e sempre exigia que todos ao seu redor
estivessem vestidos com o seu melhor. Qualquer outra coisa seria vista como
um insulto.
— Onde você está indo? — Jack se levantou, mas Turk fez um gesto
para que ele se sentasse e o Aparelhador obedeceu. O menino era doce. Tolo,
mas doce.
— Ver um homem sobre uma solução para o nosso problema. Sozinho.
— Turk puxou a barra do casaco, endireitando-o. — Sobre a única esperança
que temos.
Quando ele saiu da tenda e se dirigiu para o espaço de ensaio de
Maksim, escondido perto da parte de trás da grande tenda, o sol estava alto e
lindo acima. Era um dia fresco de final de setembro. As folhas estavam
começando a ganhar suas cores de outono. Era raro que eles testemunhassem
o outono, ou mesmo qualquer outra estação além do verão. Poucas pessoas
eram tolas o suficiente para assistir a um circo no inverno na Nova Inglaterra.
Algo lhe dizia que o outono era a estação favorita de Cora. Que Harrow
Faire faria todos os esforços – que isso era realmente uma manobra explosiva.
Ele conhecia a frase, mesmo que nunca tivessem viajado como circo de
verdade.
Uma explosão tinha uma regra – pegue o máximo que puder, não
importa o quão obscuro ou errado seja. Qualquer circo que declarasse “bola
de fogo” provavelmente teria que fazer as malas e desocupar na manhã
seguinte, para que não fossem queimados até o chão pelos moradores
furiosos por terem sido enganados com cada centavo que tinham.
Queime tudo porque não haverá um amanhã.
E Harrow Faire não era nada senão um circo. E assim, ao que parece,
decidiu dobrar sua oferta pelo pote.
Quem sabia quantos anos Harrow Faire tinha deixado no tanque antes
que o motor secasse? Turk esteve tão perto do sucesso, apenas para ter a
vitória arrancada de seus dedos pela tola Contorcionista.
Quem sabia se Harrow Faire estava blefando, ou se eles tinham um
royal flush3?
Quem sabia que tipo de truque usaria para vencer? Havia mais na
manga? Turk mal podia imaginar um mundo onde a Faire tivesse outra carta
escondida na manga. Criar em Cora algum tipo de... Híbrido monstruoso foi
uma manobra bastante espetacular de sua parte. Ele tinha que tirar o chapéu
em relação a esse tipo de vilania.
Mas Turk venceria. Ele não aceitaria um mundo onde perdesse.
Eu não vou precisar.
Estarei morto se perder.
Ele riu morbidamente para si mesmo enquanto entrava na tenda do
Maestro. Ele podia ouvir música saindo de um piano. O homem em questão

3Mão imbatível no jogo de cartas. O jogador consegue uma sequência de Ás, Rei, Dama, Valete e
Dez do mesmo naipe.
estava sentado nas teclas, pressionando-as em uma sequência antes de
cantarolar a melodia e rabiscar notas freneticamente.
Um compositor mundialmente famoso.
Atingido do registro da humanidade. Tão bom quanto Beethoven,
Mozart e todo o resto. Relegado a escrever cantigas para atos de circo e
máquinas de hurdy-gurdy. Era um insulto para um homem de seu
brilhantismo.
E essa era a única linha de argumento que Turk apostava que poderia
usar para conquistá-lo. Ele tirou o chapéu da cabeça e colocou-o contra o
peito, curvando-se para o outro homem com um pigarrear alto.
— Monsieur Maestro. Uma palavra, se me permite?
— Estou muito ocupado, Mestre de Cerimônias. — Maksim rabiscou
mais notas na página à sua frente.
— Ah, eu posso ver isso. Lamento qualquer ofensa. Normalmente, eu
não o incomodaria quando sei que você está no trabalho... Mas temo que
tenho um assunto muito urgente para discutir com você.
— Sobre a Contorcionista e sua ascensão ao poder? — Maestro zombou.
Maksim adorava se referir a todos por seus títulos apenas.
— De fato. — Turk levantou-se de sua reverência.
— E como você acha que um músico humilde como eu poderia ajudá-lo
em problemas tão catastróficos como este em que você se encontra?
Ele colocou a pena entre os dentes. Seus dedos estavam manchados de
tinta. Ele vasculhou uma pilha de papéis em cima de seu piano, procurando
por uma página limpa de partituras em branco. Encontrando uma, ele a
colocou à direita da página ainda úmida e começou a trabalhar novamente,
habilmente acrescentando uma clave de sol à linha superior de linhas finas.
— Acho que esse ‘músico humilde’ para o qual estou olhando pode ser
nossa única esperança de superar esse novo perigo.
Isso chamou a atenção de Maksim. Ele se virou no banco, lançando-lhe
um olhar incrédulo e escrupuloso.
— Não me insulte depois de todos esses anos, Mestre de Cerimônias.
— Nenhum insulto pretendido. Eu falo a verdade. — Turk fez uma
pausa. — Preciso da sua ajuda para destruir a Contorcionista.

Cora acordou sentindo que tinha a dor crônica e a exaustão de sua


Síndrome de Ehlers-Danlos de volta. Ela estava dolorida. Esgotada. E ela
queria tirar férias de seu próprio corpo. Simon ainda estava dormindo,
roncando baixinho com o braço pendurado sobre ela como se ela fosse um
ursinho de pelúcia. Ele realmente era adorável quando estava dormindo.
Sem o sorriso maníaco e o brilho sádico em seus olhos desumanos, ele
parecia quase angelical. Como uma escultura que deveria estar em uma igreja
em algum lugar. Isso a lembrou de sua sombra. Seu coração doeu, e ela lutou
contra as lágrimas novamente.
Ela cansou de chorar.
Inclinando-se, ela beijou sua bochecha suavemente no canto de seus
lábios. Ele soltou um pequeno ruído de contentamento e puxou o travesseiro
dela para ele, como se pensasse que era ela.
Realmente adorável.
Saindo da cama, ela se trocou. Estava escuro lá fora — e uma olhada no
relógio disse que eram seis horas. De manhã ou à noite, ela não sabia. Era
final de setembro, talvez a primeira semana de outubro, e estaria escurecendo
mais cedo. Realmente não importava para ela se era de manhã ou de noite.
Era tudo igual para ela.
A chuva batia nas janelas, as gotas escorriam pelo vidro. Ela as
observou cair por um longo momento enquanto se fundiam lentamente de
gotas individuais em uma única folha de líquido. Perdendo sua
individualidade para se tornar parte do todo.
Assim como eu.
Assim como todos na Família.
Mas ela deveria odiar a tempestade por roubar as gotas de água de sua
singularidade? Ela suspirou e vestiu uma capa de chuva fina. Saindo o mais
silenciosamente que pôde, ela parou nos degraus de seu vagão. Ela não podia
ver ninguém vagando, mas o meio do caminho estava em pleno andamento.
Luzes enchiam a escuridão, brilhando na luz. Ela podia ouvir o barulho dos
brinquedos e as risadas e gritos dos clientes.
Eram seis da tarde, então. Puxando o capuz para cima, ela entrou no
parque, atraída pelos sons do circo. Ela queria ver as pessoas se divertindo.
Curtindo. Vivendo. Ela seria capaz de fazer isso de novo? Ela honestamente
não sabia.
— Agora você está apenas sendo melodramática.
A voz ao seu lado a fez sorrir. Ela olhou para Lazarus, que caminhava
ao lado dela com as mãos enfiadas nos bolsos de um casaco grosso de lona
antigo. Parecia algo que os marinheiros teriam usado no século XVIII.
— Como estou sendo melodramática?
— Perguntando se você ainda é humana o suficiente para se divertir. —
Ele revirou os olhos. — Vamos. Eu sei que toda essa situação é um pouco
única, mas não é tão ruim. Sim, você ainda pode se divertir, sua criatura
boba. — Ele a empurrou, e ela cambaleou um ou dois passos antes de
retomar a caminhada.
— O que isso pareceria para todos os outros? — Ela atirou-lhe uma
sobrancelha levantada. — Eu pareço bêbada?
— Não, não. Os clientes podem me ver. — Ele sorriu e acenou para uma
garotinha esperando na fila para comer com seus pais, segurando um
guarda-chuva rosa translúcido sobre a cabeça. A garotinha sorriu de volta e
acenou. Laz virou-se para ela. — Viu? Você me dá a força para me
manifestar.
— Excelente. Pelo menos não pareço uma lunática completa. Apenas
metade de uma.
Ele riu.
— Então... Para onde estamos indo?
— Não sei. Só queria limpar minha cabeça. — Ela deu de ombros. —
Isso realmente importa?
— Suponho que não. — Lazarus olhou para a torre de observação
através da chuva. — Eu cobri as portas. Não podemos ter o público vagando
por lá e caindo em um buraco.
Cora esfregou o local em sua clavícula onde o metal perfurou seu corpo.
Ela ainda podia sentir isso, como uma dor fantasma. Ela se perguntou se
algum dia iria parar de assombrá-la. Provavelmente não.
— Eu estava errada em realizar uma votação?
— Não. Acho que você está fazendo a coisa certa. Turk vai trabalhar
contra você, no entanto. Você tem que tentar convencer a todos que você tem
seus melhores interesses no coração. Que você é a escolha certa. — Ele
balançou sua cabeça. — Vai ser difícil. Mas nada que valha a pena é fácil.
— Vou tentar. Eu posso falhar.
— Que assim seja. Essa é a última chance que temos.
Cora caminhou até uma árvore em uma pequena seção gramada entre
vários dos brinquedos. A chuva tinha diminuído para uma garoa, e debaixo
das folhas ainda estava bastante seco. Empurrando o capuz da cabeça, ela se
sentou com as costas contra a árvore.
Era a mesma onde ela conheceu Palhaço.
Senhor, isso parecia um século atrás.
Lazarus sentou-se ao lado dela, encostando as costas na casca também,
e olhou para o meio do caminho.
— Espero que ganhemos. Não só porque quero viver – eu quero – mas
porque quero viajar. Eu quero ser capaz de ver o mundo novamente. Quero
que todos vocês possam sair daqui e explorar. Comer em um restaurante. Ir
ver um filme. Qualquer coisa. Vocês todos seriam muito mais felizes.
— Nós seríamos. — Ela imaginou levar a Família a um shopping e
começou a rir da imagem mental. Aaron seria um desastre. Anastasia exigiria
todo o dinheiro para comprar roupas novas. Simon provavelmente se
perderia em uma loja da Apple. Rudy insistiria em deixar todos os animais
da loja de animais livres. Ou ele poderia tentar comê-los. Uma aposta de meio
a meio. Seu risinho se transformou em uma risada. Era catártica. Era triste.
Mas era uma risada do mesmo jeito.
— O quê?
— Apenas tentando imaginar esses esquisitos sendo soltos no mundo.
As coisas mudaram muito desde que qualquer um deles foi solto. Inferno,
faz, o quê, cinco anos desde que eu vim aqui? Quem sabe o que mudou?
Era uma coisa terrível de se considerar. Mesmo sabendo que todos na
Família haviam sofrido a mesma constatação, foi a primeira vez que isso
realmente a atingiu.
Todos ao seu redor eram do “futuro” para ela. Ela havia perdido
apenas alguns anos em comparação com tantos outros. Ela puxou os joelhos
até o queixo e descansou os braços em cima deles, observando as pessoas
passarem.
— Estou surpresa que as pessoas ainda queiram vir a um circo.
— As pessoas sempre vão querer ir a um circo. — Laz riu. — Elas
sempre vão querer ver maravilhas. Elas querem uma noite longe de suas
vidas normais. E aqui, neste lugar, podemos dar-lhes algo fantástico e novo.
Podemos dar-lhes algo que antes só podiam sonhar. Somos liberdade para
eles.
— Irônico.
— Não é? — Ele a cutucou com o cotovelo. — Acalme-se, Cora. Nós
vamos ganhar essa coisa. Eu sei isso.
— Mesmo? Ou você está apenas tentando me animar?
Ele virou a pergunta para ela.
— Isso realmente importa? — Quando ela olhou para ele, ele sorriu. —
Ainda uma criatura mística. Eu tenho que falar enigmas aleatórios de vez em
quando, ou eles vão revogar meu cartão de membro. Tenho uma cota a
cumprir.
Cora riu. Ela não queria. Mas ela riu. Ele era tão esquisito, mas ela
gostava dele. Ela honestamente gostava de sua companhia. E não era porque
ele tinha cavado seu caminho em sua cabeça, ela o achava engraçado antes
disso.
Ela fechou os olhos e encostou a cabeça na árvore. Apesar do casaco, ela
ainda estava úmida da chuva. Seu cabelo estava molhado. Ela não poderia se
importar menos. Algo sobre o frio da água a fez se sentir mais conectada ao
momento.
Isso a lembrou da primeira vez que ela ficou presa na chuva em Harrow
Faire. Embora desta vez, ela estava aqui de boa vontade.
E assim como antes, algo fofo pousou sobre sua cabeça. Ela gritou de
surpresa e o arrancou. Era uma toalha.
E, assim como antes, Simon estava de pé aos pés dela, pairando sobre
ela, um guarda-chuva sobre a cabeça. Óculos de sol bicolores brilhando em
laranja nas lâmpadas de filamento elétrico das luzes próximas.
Ele parecia imaculado, as linhas nítidas de seu terno perfeitamente
arrumadas. As riscas pretas no tecido carmesim acentuavam o quão alto e
anguloso ele era.
O quão ele era lindo.
O quão aterrorizante.
Mesmo agora, mesmo com seu sorrisinho cínico enquanto ele olhava
para ela conscientemente, ela estava com um pouco de medo dele. Ela sabia
que poderia destruí-lo – puxá-lo membro por membro, e então comer sua
identidade e destruí-lo. Ela sabia que seu medo era bobo agora. Mas como
assistir a um filme de terror, ela descobriu que gostava.
— O que há com você e sentar como uma idiota na chuva? — Ele se
virou para olhar para o parque. — Não consigo ver o apelo.
— É difícil de explicar. — Ela pegou a toalha e a esfregou no cabelo.
Lazarus provavelmente tinha desaparecido antes de Simon chegar. — Algo
sobre isso me lembra que sou menor que meus problemas. Que o mundo é
maior do que eu. E para ser franca, a primeira vez que fiquei presa na chuva,
não tive nada a ver com isso.
— Bem, agora você não tem desculpa. Estou com fome, e acho que
devemos ir ao jantar. Seria bom ser vista.
— Sim. Tenho certeza que eles têm mais perguntas.
Ela se levantou e se limpou. Ela ficou impressionada ao vê-lo
novamente. Ele realmente sabia como adaptar sua aparência para ser
impactante. Como uma cobra em estado selvagem com suas cores brilhantes,
alertando o mundo ao seu redor que ele era perigoso.
E ela o amava.
— Simon?
— Hum?
— Você realmente é alto e sexy.
Ele riu alto, sorrindo para ela, largo e perigoso, e se aproximou dela
ameaçadoramente. Ela deu um passo para trás e esbarrou na árvore. Simples
assim, ele acionou todos os interruptores que ela tinha.
Com a mão livre, ele pegou a garganta dela em seu aperto e pressionou
apenas o suficiente para fazer seu ponto.
— Não pense que eu esqueci. E não pense que esqueci o quanto você
gosta de ter um pouco de medo... — Ele inclinou a cabeça para o lado e se
inclinou para pressionar um beijo lento na cavidade de sua garganta abaixo
de sua orelha. — Por que o conhecimento de que você poderia me destruir a
qualquer momento torna isso muito mais emocionante? Que você desnudou
sua garganta para o lobo? É porque você quer o que eu posso fazer com você?
— Quando ela ficou em silêncio, sua cabeça girando, ele apertou a mão um
pouco. — Hum? Você quer?
— Sim — ela disse através de uma respiração.
— Bom. — Ele a soltou e deu um passo para trás. Em um segundo, ele
estava lá, e no seguinte ele se foi em um piscar de olhos. Sua súbita ausência
foi mais chocante do que sua aparência. Ele realmente poderia ir de zero a
cem e voltar sem aviso prévio. — Jantar! Estou faminto.
— Por que? Não faz tanto tempo desde o café da manhã.
— Cora, querida, você realmente deve usar um relógio. Hoje não é
ontem. É hoje. — Ele fez uma pausa, suas sobrancelhas franzindo juntas. —
Isso não fez sentido, não é? — Ele suspirou. — Dormimos um dia e meio. O
jantar de hoje não é o jantar de ontem. E estou morrendo de fome.
Com isso, ele pegou a mão dela e começou a arrastá-la pelo parque em
direção ao refeitório. Tudo o que ela podia fazer era rir e ser puxada ao lado
dele como se estivesse em suas cordas.
Quão longe eles chegaram. Quem poderia dizer até onde eles iriam?
Ou se eles sobreviveriam?
Isso era guerra.
E na guerra, sempre havia sacrifícios.
Ela entrelaçou os dedos nos dele e rezou para quem quisesse ouvir que
ela já havia perdido o suficiente.
Algo lhe dizia que as chances não eram boas.
Duas vezes agora, Cora entrou na tenda do refeitório e ouviu o disco
arranhar. Duas vezes seguidas, ela viu todos se virarem para encará-la
enquanto entravam. Pelo menos desta vez ela não estava coberta de sangue.
Desta vez, Turk, Jack e Amanda estavam faltando. Pequenos favores.
Isso significava que ela poderia ir um pouco mais sem ter que enfrentar duas
pessoas que ela acreditava serem amigas que a haviam traído.
Algo lhe disse que muito mais seria adicionado a essa lista antes que
toda essa bagunça terminasse, de uma forma ou de outra. Ela havia pedido às
pessoas que escolhessem lados. Nem todo mundo ia ver as coisas do jeito
dela. Ela tinha que esperar isso.
Mas a única coisa pior do que ter todo mundo em silêncio absoluto e se
virar para olhar para ela era o fato de que estava claro que eles esperavam
que ela fizesse alguma coisa. Dissesse alguma coisa. Ela estava no palco. Ela
poderia muito bem ter holofotes sobre ela.
— Oi.
Isso era tudo o que ela tinha.
Ela abaixou a cabeça e correu em direção à comida. Era noite tailandesa,
aparentemente. Difícil errar com molho de amendoim.
Simon cantarolou para si mesmo enquanto estava ao lado dela,
enchendo seu próprio prato.
— Se isso faz você se sentir melhor, é assim que eles sempre me
encaram. E eu não sou o avatar de um terrível semideus sobrenatural.
— Não. Não me faz sentir melhor.
Ela pescou uma cerveja do refrigerador e começou a caminhar para
uma mesa vazia, longe de todos os outros. Não porque ela não queria sentar
com ninguém, ela queria.
Mas ela tinha certeza de que não seria bem-vinda.
Simon caminhou ao lado dela até as mesas, ainda cantarolando uma
valsa calma enquanto se sentava em frente a ela e começava a comer seu
jantar. Ela pensaria que ele estava ignorando o quão terrivelmente estranho
isso era para ela, se não fosse pelo fato de que ele enganchou seu tornozelo
nos dela e puxou sua perna entre as dele. Foi um gesto bobo. Mas ela
apreciou imensamente.
Ela deu exatamente três mordidas em seu Beef Pad See Ew antes que
alguém do outro lado da sala gritasse uma pergunta para ela.
— Por que uma votação?
Era Jim, o Mecânico. Ela engoliu em seco, enxugou os lábios com o
guardanapo e virou a cabeça. Todos estavam olhando para ela. Suas
bochechas instantaneamente ficaram quentes. Ela não foi feita para essa
porcaria. Ela realmente não foi.
— Bem...
Ela se sentiu como uma idiota. Pegando sua garrafa de cerveja, ela a
torceu em seus dedos, precisando de algo para mexer. Parecia a coisa certa a
fazer. Não, não é bom o suficiente. Eu estava realmente cansada e não queria
brigar no momento. Não.
Depois de uma longa pausa, ela decidiu apenas puxar a corda e
começar a falar.
— Vocês são Família. Vocês devem ter uma palavra a dizer sobre isso.
Mestre de Cerimônias deveria ter contado tudo o que estava fazendo com
Harrow Faire. Ele deveria ter lhes contado a verdade. Decidir se todos nós
vivemos ou morremos – se este lugar merece continuar – não era sua decisão.
É de todos. Ele não é a única pessoa que perdeu a vida porque veio para cá.
Mas ele também não é a única pessoa que encontrou o amor. Que encontrou a
alegria. Que encontrou significado por causa disso.
Mas ainda estou escondendo algo deles, não estou? Ela se levantou do banco
e moveu-se para ficar contra a borda da mesa.
— Olha... Eu passei muito tempo conversando com Harrow Faire
recentemente. Está na minha cabeça agora. O que, acredite em mim, é muito...
Muito estranho. Por mais estranho que vocês achem que é? Dobre, e vocês
estão quase lá.
Isso fez algumas pessoas rirem.
Ela girou a garrafa em seus dedos novamente.
— Ela me disse algo que acho que todo mundo tem o direito de saber
antes de decidir se este lugar quer nos machucar ou não. Somos todos – cada
um de nós – assassinos. Ou matamos pessoas antes de virmos para cá, ou nos
tornaríamos assassinos se não viéssemos aqui. No meu outro futuro, eu ia
matar Duncan antes de comer a — ela gaguejou e se forçou a terminar a frase
— antes de comer a ponta de uma pistola.
— E eu ia matar minha família inteira, incluindo meus filhos pequenos,
e pintar uma obra-prima do pigmento que destilei do sangue deles que
inspiraria um culto a me adorar após minha inevitável execução — Simon
acrescentou alegremente. — Uma maldita perda, eu digo.
Silêncio.
— Vocês podem não acreditar em mim — continuou Cora. — Eu não
culpo vocês. Eu também não queria acreditar. Mas quando eu realmente olhei
para mim mesma... E realmente pensei se eu tinha coragem para fazer isso –
eu percebi que tinha.
Um murmúrio percorreu o grupo. Ela não ergueu os olhos de sua
garrafa de cerveja.
— Não sei se estou preparada para isso – seja o que for – mas sei que
acredito que vale a pena salvar Harrow Faire. Que merecemos estar nesta
Terra. Que ela, e todos vocês, valem mais do que os danos que podemos
causar. Que o que tiramos das pessoas para continuar vivendo não é pior, e
pode até ser melhor, do que o que elas tiram umas das outras todos os dias de
suas vidas.
Esfregando a nuca, ela fechou os olhos.
— Vocês se tornaram meus amigos neste curto espaço de tempo. Eu
quero conhecer todos vocês melhor. Eu quero pertencer a algum lugar –
importar a algum lugar. E eu nunca fiz antes de vir aqui.
— O que você é? — Louis perguntou. Ele tinha Elena curvada ao seu
lado, como se Cora fosse uma ameaça para eles. Isso a machucou mais do que
qualquer outra coisa.
Ela se encolheu. Ela sentiu como se tivesse levado um tapa.
— Eu não vou machucar vocês. Eu não vou machucar nenhum de
vocês.
— Exceto Turk. — Dessa vez foi Donna, a Trapezista. — E quanto a
Amanda e Jack? E qualquer um que fique do lado de Mestre de Cerimônias
se ele perder a votação?
Ela balançou a cabeça.
— Mestre de Cerimônias... Meio que tem que morrer para que isso
funcione. Mas quem está do lado dele? Entendo. Eu realmente entendo.
Ninguém mais se machuca. Ninguém mais tem que morrer. Não vou colocar
ninguém na torre. Nem mesmo depois do que eles ajudaram Turk a fazer. —
Ela esfregou a clavícula novamente. — Se as pessoas querem ser libertadas?
Okay. Mas não a menos que elas peçam.
— Mas o que você é? — insistiu Louis. — Eu vi seus olhos quando você
ficou brava. Eles estavam... Eles se foram. O que você se tornou?
— Algo no meio. — Ela olhou para o teto da tenda para não chorar. Ela
percebeu que estava balançando a perna nervosamente e se forçou a parar. —
Eu tive que me tornar essa... Coisa. Ou eu desisto de uma parte de mim, ou
eu passaria o próximo ano – ou o tempo que tivermos de vida – trancada
naquela torre, ouvindo Simon gritar de dor. Eu não conseguia soltá-lo. Eu
não poderia salvá-lo, ou a mim mesma... Eu tinha que fazer alguma coisa.
Então eu a deixei entrar.
— Você faz parecer que é uma coisa ruim. E não é nada disso que somos.
Ela olhou para o fantasma de Lazarus ao lado dela.
— Se você acha que pode explicar melhor, faça você mesmo.
Lazarus arregalou os olhos e olhou para ela em choque.
— Eu? Não. Não. Pensando bem, você se saiu muito bem.
— Você está se escondendo — ela acusou, apontando para ele. — Você
estava bem ali no parque ao meu lado. Você é muito tímido para vim dizer
oi? — Ela podia ouvir o grupo murmurando entre si. Ela devia parecer
maluca, falando com o ar.
— Não. — Ele manteve a cabeça erguida. Mas seu olhar vacilou. —
Talvez. Eles... Não gostam de mim, Cora.
— Você não sabe disso. Quem sabe? Você pode conquistá-los. Você
pode mostrar a eles que todos nós merecemos viver. Além disso, você disse
que queria ser um de nós. — Ela estendeu a mão para ele. — Então seja um
de nós.
Laz renunciou. Hesitou. E então colocou a mão na dela.

Fascinante.
Simon assistiu enquanto “Palhaço” – ou pelo menos, Harrow Faire
usando o rosto do falecido Lazarus Harrow – apareceu do nada. A Família
reunida gritou de surpresa e recuou em seus assentos.
Isso o fez rir. Ele a enfiou no gargalo de sua garrafa de cerveja, feliz por
ter um lugar na primeira fila para esse show.
O homem ainda estava vestido com roupas antiquadas. Ele soltou a
mão de Cora, endireitou os ombros e ajustou seu lenço. Coisas bobas, lenços.
Simon estava feliz por vê-los sair de moda. Ele nunca tinha gostado das
coisas de babados. Mas talvez isso tenha significado a queda da moda
moderna – a morte do lenço. Ele os veria retornar se isso significasse que os
homens não andariam mais em jeans sujos e uma camisa de tecido fino como
se fossem um presente de Deus para as mulheres.
Muito menos jeans skinny.
Moda que não deveria existir nas mulheres, muito menos nos homens.
Ele voltou a se concentrar no momento.
Muitas pessoas se levantaram de seus assentos, com as mãos sobre a
boca, olhando para o homem que apareceu à existência. E que, se eles
pudessem imaginar seu rosto usando uma grande quantidade de tinta
mórbida, parecia surpreendentemente familiar.
Lazarus – a Faire – enquanto isso, estava olhando para eles com um
sorriso tenso e emocional.
— O... Olá, todo mundo.
Cora se aproximou dele e pegou sua mão novamente. Lazarus olhou
para a mão dela, como se estivesse surpreso por encontrá-la ali, e então olhou
para ela com outro sorriso fraco e hesitante.
Era tão doce que fez Simon querer engasgar.
Ele lavou a bile garganta abaixo com um gole de cerveja.
— Sua comida está esfriando, Cora. — Com sua interrupção, ela revirou
os olhos e olhou para ele. Ele encolheu os ombros. — Bem, está.
— Palhaço? — Aaron perguntou, dando um passo mais perto. Puxador
sempre foi o corajoso, mesmo que isso significasse que ele geralmente perdia
a vida por causa disso. — É... Você?
— Não. Bem, não exatamente. — Lazarus suspirou. — Quando todos
vocês... Desaparecem, vocês se tornam parte de mim. Lazarus, que era o seu
nome, juntou-se a mim quando morreu e passou a sua ligação para Cora.
Porque ela estava familiarizada com ele, e porque todos vocês também, eu
tomo esta forma para simplificar a forma como podemos nos comunicar. Não
tenho corpo, nem voz, nem nome. Eu simplesmente sou. Isso é apenas um...
Como dizer...
— Ele é um fantoche de meia — Cora forneceu secamente. — Caso
contrário, nossos débeis pequenos cérebros não conseguiriam lidar com sua
estupidez alucinante extradimensional.
Lazarus franziu o nariz e olhou para Cora como se ela tivesse dito a
coisa mais ofensiva do mundo.
— Estupidez? Você deve saber que eu existo desde o início dos tempos
e...
— Nem me fala, circo assassino devorador de humanos. — Cora
finalmente soltou a mão dele para pegar sua cerveja e bebeu. Ela sorriu para o
outro homem com conhecimento de causa.
A criatura disfarçada de homem puxou seu sobretudo, murmurando
baixinho. Ele olhou para a Família, e sua expressão indignada
instantaneamente se transformou em admiração. Em amor. Ele caminhou
entre as fileiras de bancos de piquenique e expressões assustadas. Quando ele
ficou de pé sozinho no meio deles, ele abriu um sorriso resplandecente e
transcendente. Simon não conseguia se lembrar de quando vira um homem
parecer mais feliz.
Ele não é um homem.
Mas pela primeira vez, ele consegue fingir ser um.
Por que alguém iria querer ser algo tão patético quanto uma criatura mortal?
Lá está uma criatura que poderia ter dizimado o mundo – colocado a humanidade de
joelhos – e escolheu ser tão pequena. Isso não faz sentido. É um insulto. Está errado.
Vai contra tudo em que acredito.
O poder deve ser exercido como uma arma. Usado para esmagar
aqueles que estavam no caminho. Não reduzido, embotado e amontoado em
um recipiente menor. Simon fez uma careta e bebeu sua cerveja novamente.
Rudy foi a primeira pessoa a reagir. O Domador de Animais avançou, a
cabeça baixa, cabelos ruivos soltos caindo sobre os olhos. Seus ombros
estavam levantados, e ele soltou um grunhido baixo e feroz. O som era
desumano. Ele mostrou os dentes, seus caninos longos e afiados. Não
chocante, vindo do homem que podia mudar de forma à vontade. Mas ele se
aproximou lentamente.
E Lazarus se manteve firme.
Rudy cheirou o ar enquanto se aproximava, aproximando-se do
fantasma. Ele finalmente se endireitou quando ficou a trinta centímetros do
outro pseudo-homem. Lazarus sorriu e estendeu a mão. Rudy estremeceu
como um animal assustado, alargou a careta e rosnou para Lazarus.
Mas como qualquer um que deseja fazer amizade com um animal,
Lazarus manteve a mão imóvel e então se aproximou. Rudy não era de
desistir de um desafio. Simon observou seus dedos se transformarem em
garras afiadas. Se Lazarus não tomasse cuidado, ele perderia o rosto.
Se o rosto dele fosse real.
Pensamento fascinante, esse.
Simon se perguntou se poderia desmembrar a memória-de-homem
para descobrir, ou se levaria um sermão.
Ele provavelmente receberia um sermão de qualquer maneira.
Lazarus inclinou a cabeça para mais perto de Rudy e fez sinal para que
o Domador de Animais se aproximasse. A curiosidade acabou conquistando
o animal selvagem. Lazarus sussurrou algo para Rudy. Simon podia ver sua
boca se movendo, mas estava muito obscurecida para ele dizer o que era.
Algo na expressão de Rudy mudou. Algo em todo o seu
comportamento. De repente, a raiva se foi. Seus ombros caíram de suas
orelhas, e ele jogou seus braços ao redor de Lazarus em um abraço feroz.
Lazarus grunhiu de surpresa e quase caiu com o impacto, mas
conseguiu manter o equilíbrio no último segundo. Ele riu e abraçou o
Domador de Animais, dando tapinhas nas costas do homem. Rudy o agarrou
com força por um segundo, e então o soltou tão rápido quanto o abraço
começou. Ele deu um passo para trás, balançou a cabeça e se afastou.
Acho que o Domador de Animais está prestes a chorar. O garfo de Simon
bateu no prato ruidosamente enquanto ele observava, agora tão atordoado
quanto todos os outros. O que diabos a Faire poderia ter sussurrado para
Rudy que o fez quase perder a cabeça?
Rudy nunca... Nunca chorou.
Mas com certeza, Domador de Animais fechou o rosto e saiu da tenda.
Mas não antes de inclinar a cabeça em respeito a Lazarus.
A tenda ficou lá em silêncio. Lazarus respirou fundo e soltou um
suspiro longo e oprimido.
— Oh, é tão bom ver todos vocês. Quero dizer... Vejo todos vocês como
vocês se veem. — Ele sorriu timidamente e enfiou as mãos nos bolsos do
sobretudo. — Tenho certeza de que todos vocês têm muitas perguntas para
mim. Eu ouço tudo o que vocês já perguntaram. Apenas não conseguia
responder. Murad — ele fez uma pausa e se corrigiu — Mestre de
Cerimônias queria manter todos vocês no escuro enquanto nós murchamos e
morríamos. Em tempos passados, eu nunca fui tão recluso. Só ultimamente,
quando fiquei fraco demais para falar sem queimar a pouca vida que me
restava, me isolei da minha Família.
Ninguém parecia saber o que dizer.
Simon não os culpava.
— Eu irei. Mas se vocês tiverem dúvidas... Venham bater no vagão
vinte e um. Eu farei o que puder. O Sr. Harrow pode não existir do jeito que
vocês acreditam... Mas isso não significa que eu não esteja lá para ouvir.
Lazarus sorriu para todos eles com lágrimas nos olhos, girando nos
calcanhares como se estivesse olhando para uma praia que estava se
afastando dele enquanto ele navegava para o mar. E com isso, ele
desapareceu no nada. Desapareceu como fumaça ao vento.
Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo.
A Adivinha riu. Cacarejou como a bruxa que ela era.
Várias pessoas gritaram e correram da tenda.
Aaron sentou-se e começou a esvaziar o conteúdo de seu frasco em sua
boca aberta.
E Cora, com um encolher de ombros, sentou-se à mesa.
— Sua comida está esfriando — Simon disse alegremente, gesticulando
para seu espetinho de frango com as pontas de seu garfo. — E que fique claro
que eu não comi um único pedaço enquanto você estava de costas.
O caos se seguiu na tenda, e pela primeira vez Cora parecia feliz o
suficiente para ignorá-lo. Ela sorriu para ele e voltou a comer sua refeição
interrompida.
— Eu não sei por que você sempre insiste em roubar minha comida
quando estamos em um maldito bufê. E um grátis, por sinal.
— Porque me diverte. E te frustra. E, mais importante, me diverte que
isso te frustre.
Ele sorriu para ela enquanto esfaqueava um pedaço de camarão no
prato dela com o garfo e dava uma mordida nele.
— Deus, eu odeio você às vezes.
Ele piscou para ela.
— Não, você não odeia. Você me ama. E esse é o problema.
Aaron desabou no banco ao lado deles, parecendo mais do que um
pouco tenso. — Isso foi...
— Sim — Cora afirmou categoricamente.
— Foi realmente...
— Sim.
— Mas ele...
— Sim.
— E...
— Sim. — Ela comeu um pedaço de seu espeto de frango. —
Estabelecendo um padrão?
— Como você... Como você é capaz de...
Aaron esfregou as duas mãos no rosto e terminou sua frase com um
gemido.
— Sinceramente, não sei. — Cora tomou um gole de sua cerveja. — Um
dia de cada vez. Isso é tudo que eu tenho agora. Um dia e um passo de cada
vez.
— Mas... Isso não é normal.
Cora lançou-lhe um olhar que dizia muito. Que nada em sua vida tinha
sido normal em muito tempo, e nada estava destinado a ser normal tão cedo.
E que Aaron, pela primeira vez na vida, deveria parar de dizer coisas
estúpidas.
Simon não poderia concordar mais com seu sentimento silencioso.
Pela primeira vez, Puxador captou o significado em seu olhar e tossiu.
— Eu vou... Deixar vocês dois comerem.
Ele se levantou e saiu, balançando a cabeça em confusão. Todos os
outros estavam com muito medo de se aproximar.
Bom.
Eles deveriam estar.
— Eu preciso de férias — Cora murmurou enquanto voltava para sua
comida pela segunda vez. — Eu preciso de uma pausa de toda essa merda.
— Bem, quando você finalmente assassinar Mestre de Cerimônias e nós
estivermos livres desta vista à beira do lago na agradável Nova Inglaterra,
nós podemos ir para onde você quiser. Norte, sul, leste, oeste... Você poderá
colocar um alfinete no mapa em qualquer lugar do mundo e lá vamos nós. —
Ele sorriu. — Eu, naturalmente, insistirei em irmos para a Inglaterra primeiro.
— Oh? Inglaterra? Por que?
— Para incendiar minha antiga casa de família, é claro. Que pergunta
boba.
Cora riu.
— Não. Vamos para o sul para Florida Keys. Quero um tempo na praia.
— Ugh. Luz solar. — Simon mostrou a língua. — Que desperdício de
viagem.
— Rudy pode adotar alguns crocodilos e talvez uma jiboia. Vai ser
ótimo. Mas depois que o Halloween acabar. Quero ver como será este parque
quando decidirmos ficar totalmente horrorizados. — Ela riu. Ele observou
como algo melancólico e distante veio sobre ela. — Aposto que Rudy vai
adorar a chance de colocar suas outras feras em exibição.
— Tenho certeza que sim. — Ele fez uma pausa e olhou ao redor da
tenda agora vazia. — Bem, você certamente causou um rebuliço. Mais comida
para nós, suponho.
— Aposto que vou ter problemas por deixar a Faire falar com eles. Mas
pelo menos agora, quando eu andar por aí conversando com o ar, eles
saberão que não sou totalmente maluca.
— Não totalmente. Esse é o meu trabalho.
Ele girou um pouco de seu macarrão no garfo. Ele gostava de um bom
prato de comida tailandesa. Ele supôs que estava em seu DNA apreciar a
culinária de outras culturas mais do que a sua. Não era tão bom quanto o
curry indiano, mas definitivamente era melhor do que qualquer resíduo que
passasse por comida inglesa nativa. Se pudesse ser chamado assim.
Não quer dizer que ele não gostasse de um bom peixe com batatas
fritas.
— Simon? Se nós... Algum dia conseguirmos pôr os pés fora do parque,
podemos ir colher maçãs juntos?
— Por que faríamos isso, quando a Faire pode simplesmente nos
convocar... — Ele interrompeu suas palavras na queda de seus ombros
cabisbaixos. — Ah. Você está me convidando para um encontro, Cora,
querida?
— Sim. Eu estou. Rosquinhas de cidra, abóboras e maçãs frescas. Eu
posso fazer uma torta.
— Bem, você nunca disse que havia torta envolvida! Considere isso um
acordo. — Ele cutucou o pé dela por baixo da mesa. — E um encontro parece
adorável.
Ela balançou a cabeça, provavelmente descartando o tom dele como
sarcasmo. Era. Ou pelo menos na superfície. Mas no fundo, ele percebeu... Ele
quis dizer isso. Parecia maravilhoso.
Parecia um veneno, quente e enjoativo, penetrando em suas veias.
Ele amava Cora. Ele queria protegê-la, fazê-la feliz, dar-lhe tudo o que
ela poderia querer e muito mais. Ele daria grande parte de sua vida para vê-
la colocada apenas um degrau acima.
E era errado. Isso eriçou cada nervo em sua psique. Ela o envenenou
como uma droga. O ópio estava espesso em seu sangue, sussurrando para ele
deitar a cabeça e desistir da luta. Entregar-se à felicidade.
A ideia de vagar pelas fileiras de macieiras, colhendo as frutas crocantes
dos galhos e rindo com ela, o deixou feliz. Ele queria matar Mestre de
Cerimônias para poder saborear aquele momento sozinho. Ele queria esculpir
abóboras com ela. Ele queria provocá-la por sua falta de habilidade na arte
enquanto ele fazia alguma obra-prima ao lado dela.
Ele queria provar a canela e o açúcar de algum deleite de outono em
seus lábios.
O que eu me tornei?
Me deixei me render a este vício.
Eu quero matar Mestre de Cerimônias. Não por mim... Mas por ela.
Frio, como água, desceu por sua espinha ao perceber.
Oh não.
Ele tinha que parar com isso.
De uma vez por todas.
Dizer que Mestre de Cerimônias estava lívido seria colocá-lo levemente.
Várias cadeiras e dois caixotes de madeira encontraram um fim violento
no beco atrás da grande tenda. Ele havia feito um buraco bastante grande em
um terceiro caixote de madeira e ainda estava andando de um lado para o
outro, imaginando o que mais ele poderia destruir em sua fúria.
Por que? Porque o Maestro disse não.
Que enquanto Maksim simpatizava com o desejo de Turk de livrar o
mundo de um monstro, ele não sujeitaria ninguém a uma transformação
involuntária em parte de sua orquestra. Que ele não sacrificaria sua própria
moral.
Mestre de Cerimônias rosnou e chutou um balde de lata com força
suficiente para enviá-lo pelo caminho de terra, fazendo barulho e rolando até
parar a uns quinze metros de distância. Não importa como ele tenha
argumentado, não importa como ele tenha defendido seu caso, Maksim
recusou.
De que serviria a moral quando não serviam ao quadro maior?
De que adiantava um pequeno ato de justiça quando ajudava um ato
maior de mal?
Maksim não conseguia entender como, às vezes, males menores devem
ser cometidos em nome de uma vitória maior. Não havia mundo em que
apenas atos puros resultassem na conquista de monstros. Não se podia lutar
contra a escuridão sem tocá-la. Sacrifícios devem ser feitos.
Mas não importava.
Maestro ainda se recusava a ajudar. Turk não perderia tempo falando
com Bertha ou Rudy. Seria inútil. Mas agora ele não tinha como parar Cora.
Não havia como contê-la. Ele estava sem opções.
Sim, ele poderia pedir aos outros que ficassem do seu lado da linha
durante a ridícula “votação”. Mas e se ela se recusasse a honrar sua metade
do acordo se perdesse? Ele não confiava em Cora. Ele não gostava de deixar
seu flanco desprotegido. Ele certamente não gostava de deixar as coisas ao
acaso.
Ele estava sem opções.
Ele foi encurralado.
Virando-se, ele deu um soco em um quinto caixote de madeira. A
madeira lascou e fraturou com o impacto. Ele foi puxar a mão. Estava presa.
Rosnando, ele puxou, e a madeira que havia afundado para dentro cavou
com força em seu pulso e nas costas de sua mão.
Ele começou a xingar em todas as línguas que conhecia. E eram várias.
— Sinceramente, vou ficar do lado da caixa neste caso.
A voz atrás dele gelou seu sangue. Ele finalmente conseguiu remover o
braço da caixa, mas não sem se cortar no processo. Iria curar. Ele se virou
para encarar o intruso que tinha vindo atrás dele.
Sorrindo loucamente ao sol do meio-dia, o outro homem parecia
deslocado. Criaturas como ele pertenciam a lugares escuros. Corredores e
cantos sombrios. Aqui, ele parecia como se alguém o tivesse tirado de um
pesadelo e o colocado na bela manhã de final de setembro como uma
caricatura de si mesmo.
Turk suspirou pesadamente.
— O que você quer, Marionetista?
— Quero dizer, aquela caixa realmente não fez nada para justificar um
comportamento tão violento. — Simon deu de ombros. — Embora eu
suponha que você seja famoso por esse tipo de coisa, não é? Punir aqueles
que não merecem? — Ele caminhou até um dos caixotes ainda intactos e
sentou-se casualmente sobre. — Eu vim para conversar, Mestre de
Cerimônias.
— Por que eu não acredito em você?
Marionetista riu.
— Porque você não é um tolo. Mas não, desta vez eu realmente não
planejo começar uma briga. Eu sei muito bem que você pode me vencer em
uma luta justa. E eu já desisti do elemento surpresa, não é?
Ele tinha um ponto. Turk odiava quando Simon fazia sentido. Sempre
avisava do perigo.
— Sobre o que você quer conversar?
— O fim do nosso mundo como o conhecemos.
Tirou os óculos escuros do rosto, examinou-os e, tirando o lenço do
bolso, começou a limpar as lentes. Aqueles olhos terríveis dele saltaram da
tarefa para se concentrar nele.
Turk fez uma careta. Ele fazia isso toda vez que via os olhos de Simon.
Eles eram tão monstruosos quanto o homem embaixo. E o fato de que Cora
alegou amá-lo traía tudo que Turk, ou qualquer outra pessoa, deveria saber
sobre a verdadeira natureza da Contorcionista.
Seu olhar de repulsa só aumentou o sorriso presunçoso de Simon.
— Gostaria de deixar uma coisa bem clara, Mestre de Cerimônias... Só
estou aqui para meus próprios fins. Agora, e para sempre, estou em primeiro
lugar em todas as coisas no que me diz respeito. — Ele colocou os óculos de
volta no rosto e empurrou-os para a ponta do nariz com o dedo anelar. —
Tenho certeza de que você está bem ciente desse fato.
— Sempre foi mais do que um pouco óbvio.
— Bom. Então você vai entender por que estou aqui. Não gosto de jogar
com a minha vida, homem gordo. Não quero colocar minha existência nas
mãos de ninguém. Nem você, nem Harrow Faire, nem mesmo Cora.
Mestre de Cerimônias inclinou a cabeça curiosamente. Ele estudou o
Marionetista em silêncio por um longo tempo. Afrouxando o colarinho um
pouco mais, a gravata borboleta já pendurada no pescoço, ele se moveu para
se sentar em frente ao Marionetista em outro caixote pintado de forma
espalhafatosa.
Ele não pode estar dizendo o que eu acho que ele está.
Isso é uma armadilha.
Mas eu tenho outras opções?
Não. Eu não tenho.
— Prossiga. — Mestre de Cerimônias colocou as mãos nos joelhos.
— Este conceito de ‘votação’ é um insulto ridículo a tudo o que sofri
para protegê-la e aos nossos interesses combinados. Ela deveria ter te matado
quando teve a chance. Mas não. Ela quer ser nobre. — Simon zombou. — Que
conceito infantil quando se trata de coisas como nós.
— O quê, então? Você sabe que procuro destruir Harrow Faire.
— Sim. E tudo bem. Eu não dou a mínima para o monstro ou qualquer
outra pessoa que vive dentro dele. Eu só me importo na medida em que tem
que existir para que eu exista. — Simon acenou com a mão com desdém para
o parque. — Todos eles podem apodrecer no vazio.
— O que você está propondo, Simon?
Turk estreitou os olhos para o outro homem, como se só por aquele
gesto escrupuloso pudesse descobrir que tipo de mentiras e trapaças o
Marionetista estava empregando.
— É bem simples. — Simon sorriu, uma expressão distorcida e cruel. —
Mantenha Harrow Faire viva enquanto eu andar nesta Terra. Mantenha-a à
beira da fome, não me importo. Mas deixe-a mancar por quantos anos levar
para eu queimar e desaparecer. Então, faça o que você quiser.
Turk balançou a cabeça.
— Você está me pedindo para deixar esta criatura sobreviver. Para
deixá-lo continuar a viver.
— Por enquanto.
— E o que eu ganho em troca?
— Cora Glass como uma boneca de porcelana. — O sorriso de Simon se
dividiu em um sorriso malicioso. — Como ela deveria ter sido desde o
momento em que a vi.
Turk sentiu o sangue sumir de seu rosto. Ele sentiu frio. Ele se recostou
na pilha de caixotes atrás dele.
— Mas... Ela te ama.
— E eu me importo com ela. E é aí que está o outro problema que
procuro resolver, Mestre de Cerimônias. Tenho sentimentos por ela e não
posso dizer o quanto os acho repugnantes. — Simon fez uma careta e desviou
o olhar. — Minha sombra, a criatura tola que era, se sacrificou por ela. Perdi
uma parte de mim quando você me fez Patrocinar ela. Perdi outra parte
quando minha sombra não suportou seu sofrimento. Não vou deixá-la levar
mais de mim. Então eu vou destruí-la em vez disso.
— Você é um monstro...
— Mas não é esse o ponto? — Simon lançou-lhe um sorriso malicioso.
— Não somos todos?
Turk ficou em silêncio por um longo tempo. Era uma armadilha. Ele
tinha certeza que era. Mas que outra escolha ele tinha? Nenhuma.
Absolutamente nenhuma.
— Diga-me como você acha que isso se desenrola.
— Muito bem. Jogamos durante a semana solicitada de Cora. Deixamos
os membros de Harrow Faire debaterem o valor de suas míseras existências.
Se você ganhar, vai condená-la a se tornar uma das minhas bonecas. Eu,
obedientemente aceitando a derrota, lamentarei o destino trágico da minha
amante.
Ele grudou as costas da mão na testa como uma estrela de cinema
mudo.
— E se ela ganhar?
— Eu vou quebrar o pescoço dela enquanto ela te derruba. Ela não vai
esperar que eu a traía. Eu me declararei justamente buscando a morte de
Harrow Faire, e vou transformá-la em meu brinquedo do mesmo jeito. —
Simon sorriu. — Inteligente, não?
Turk queria vomitar. Seu estômago revirou ao pensar nisso.
— Ela vai te odiar.
— Minhas bonecas nunca me odeiam. Não importa o quão cruel eu seja
com elas. Elas não têm escolha a não ser me obedecer. Além disso... O ato de
enfiar alguém em uma das minhas marionetes tende a rasgar grandes porções
de sua mente em pedaços. Duvido que ela ainda se lembre de como ficou
assim. — Simon encolheu um ombro. — Não é da sua conta de qualquer
maneira.
— Por que eu iria acreditar em você? Se você traísse a mulher que o
ama, a única pessoa que já pisou em Harrow Faire que pode até mesmo
tolerá-lo, por que eu confiaria em você?
— Duas razões. — Simon levantou um único dedo. — Um, você pode
confiar em minhas motivações. Eu sou minha única prioridade. Ao se recusar
a priorizar nossa existência sobre sua moralidade, Cora não é apenas uma
ameaça à minha vida continuada, mas ela está lentamente destruindo tudo o
que defendo. Ela é um veneno do qual eu gostaria de me livrar de uma vez
por todas.
Simon fez uma pausa e levantou um segundo dedo para se juntar ao
primeiro.
— E dois... — Ele sorriu. — Você não tem escolha. Você está sem
opções. Ouvi dizer que a sua pequena abertura ao nosso querido Maestro
correu mal. Duvido que Rudy ou Bertha sejam mais receptivos ao seu
esquema. Eu sou o único disposto a me rebaixar a tais atos perversos.
Turk praguejou e fechou os olhos, esfregando a mão no cavanhaque.
Ele realmente odiava quando Simon fazia sentido. E como todo predador
sádico, o Marionetista sabia quando tinha sua presa presa sem escapatória.
O que seriam mais cem ou duzentos anos se isso significasse que ele
poderia livrar o mundo do monstro pelos próximos cem mil? Sua guerra
terminaria com Cora Glass em fracasso, ou terminaria no dia em que Simon
Waite finalmente desistisse do que restava de sua identidade para o vazio.
— Agora, não há como dizer o que acontecerá com o vínculo de Cora
com Harrow Faire quando ela morrer. O dom que Palhaço recebeu – para
drenar a identidade dos outros à vontade. — Simon riu. — Espero que venha
para mim. — E como o toque de um interruptor, sua expressão ficou sombria.
— Deveria ter sido meu desde o início.
— Você está com inveja dela.
— Claro que estou! — O lábio de Simon se curvou de raiva e desgosto.
— Por que a Faire a escolheria? Se quisesse viver, deveria ter me escolhido!
— Pelo que vale, estou muito feliz que não tenha acontecido. — Turk
bufou uma única risada. — Eu estaria morto há muito tempo.
— Precisamente.
Turk olhou para o parque. Ainda era tarde da manhã e os portões ainda
não estavam abertos. Em breve, outubro chegaria a eles, e Harrow Faire iria
decorar para o Halloween. Era raro que o parque estivesse “em cima”
durante o outono, mas quando estava, era algo para se ver. Os monstros mais
únicos de Rudy eram autorizados a serem exibidos, e as aberrações de Bertha
vagavam livremente pelo parque.
E os clientes vinham em massa, sem saber que os monstros que os
aterrorizavam não eram truques de ilusões e mecânica. Que eles eram muito
reais, assim como o perigo que representavam.
Monstros e demônios. Criaturas famintas que se alimentavam de mais
do que carne e sangue.
E aqui estava ele, à beira de fazer um acordo com um diabrete para
matar o diabo. Um pequeno pecado cometido em nome de um bem maior.
Sua alma já estava perdida. Ele não visitaria o reino do Profeta quando ele
deixasse de existir. Ele sabia disso há muito tempo.
O que era mais um ato de crueldade?
Mas ainda assim, ele não podia deixar de simpatizar com Cora. Uma
coisa era ser traída pela Família – Jack, Amanda e ele mesmo – mas outra
coisa era ser esfaqueada pelas costas pela pessoa que amava.
Cora Glass não escolheu nada disso. Não se tornar a Contorcionista.
Não se tornar a conexão para Harrow Faire. Nem mesmo se tornar a
abominação que ela era agora. Turk entendia, e de fato simpatizava, com
cada escolha que ela fizera. Mesmo tendo relações com Simon. Ela estava
sozinha, com medo, desesperada por afeto e amizade. Simon não era nada
além de habilidoso em fazer acordos com aqueles famintos por opções.
Caso em questão.
Turk assentiu uma vez. Fracamente. Ele sentiu um peso pesado cair
sobre seus ombros, como se o próprio Alá tivesse colocado tijolos sobre ele.
Talvez ele tivesse. Ele merecia.
— Muito bem, Marionetista. Você conseguiu um acordo.
— Fantástico! — Simon bateu em suas coxas com ambas as palmas e se
levantou. — Oh! — Ele estalou os dedos. — Eu quase esqueci. Há apenas
uma outra coisa. Você vê... Você sabe que pode confiar em mim, cidadão
honesto que eu sou. — Ele sorriu. — Mas como eu sei que posso confiar em
você?
— O quê? — Turk balançou a cabeça. — Só pode estar brincando
comigo. De nós dois, sou eu quem cumpre a palavra.
— Oh, homem gordo, eu sempre cumpro minha palavra. Você
simplesmente não tende a gostar do que eu digo. Mas isso é irrelevante. —
Simon acenou com desdém novamente. — Não, Turk. Eu conheço você. Eu
conheço o seu tipo. Aqueles que quebrarão qualquer voto, quebrarão
qualquer amizade, sacrificarão qualquer aparência de honra em nome do
chamado ‘bem maior’.
Turk tentou não se ofender com as aspas sarcásticas que Simon colocou
em torno dessas duas últimas palavras.
— Você vai se voltar contra mim no segundo em que Cora for lidada.
Você vai matar a Faire de fome e acabar com todos nós. Você me odeia. Você
sempre odiou. Promessas de você para mim valem menos do que palitos de
picolé usados. — Simon inclinou a cabeça ligeiramente para trás, observando
Mestre de Cerimônias ao longo de seu nariz. — Olhe na minha cara e diga
que estou errado.
Mestre de Cerimônias realmente odiava quando Simon estava certo. Sua
mandíbula se contraiu.
— Eu te dou meu voto. Vou manter este acordo com você, Marionetista.
Harrow Faire viverá tanto quanto você.
— Você diz isso. Mas como você vai provar para mim que você quer
dizer isso? O que você está disposto a sacrificar para me mostrar que fala a
verdade? — Simon fungou com desdém. — Eu quero algo de você. Um gesto
de amizade. De boa fé.
— Como isso vai me impedir de quebrar minha palavra para você
depois que tudo estiver dito e feito?
— Ah, não vai. Não de verdade. Mas, infelizmente, não há nada a ser
feito sobre isso. Vou ter que confiar em você e em sua honra. Isso é... A menos
que eu tivesse algo com o qual você se importasse. — O tom de Simon caiu,
não mais cordial e brincalhão, mas sombrio e sádico. Seu sorriso nunca
vacilou. Apenas mudou o contexto. — E se eu tivesse algo seu? Algo que eu
poderia torturar se você me traísse. Algo cuja dor eu poderia tornar terrível,
excruciante e completa por cada fração de segundo de existência antes de
todos nós desaparecermos do mundo. E confie em mim... Eu sou bastante
habilidoso em fazer outras coisas sentirem dor.
Turk sentiu o sangue gelar, como se água gelada corresse em suas veias.
— O que você está sugerindo, Marionetista?
— Eu acho que você sabe. Mas! Apenas no caso de você ser tão
estúpido quanto afirma ser, permita-me iluminá-lo. — Simon caminhou em
direção a Mestre de Cerimônias até que ele pairou sobre ele, obscurecendo o
sol da visão de Turk.
E então, o dia de Turk foi de mal a pior.
Assim como sua náusea.
Simon sorriu.
— Se você quer matar Harrow Faire... Você vai me dar a mulher que
você ama.
Cora saiu das tendas de comida no meio do caminho com um punhado
de cenouras. Era extremamente – extremamente – difícil encontrar cenouras
em um circo. Ela tinha ido ao refeitório, às cozinhas e quase duas dúzias de
tendas de comida antes de encontrar uma que vendia “frituras vegetarianas”.
Parecia tão nojento quanto parecia. Mas ela finalmente teve o que ela veio
buscar. Uma dúzia de cenouras inteiras, sem casca, com as folhas ainda
presas, pendia de suas mãos.
Ela tinha uma missão em mente. Era estúpida, mas ela precisava de
uma distração. Ela precisava de algo para animá-la. Simon tinha uma
apresentação para se preparar. Ela não se apresentaria até a noite seguinte.
Parecia estranho subir ao palco com tudo o que estava acontecendo, mas...
Negócios eram negócios.
Qual era a frase?
O show tem que continuar.
Um debate existencial completo entre dois monstros em guerra presos
dentro de um circo assassino devorador de humanos provavelmente não era
o que eles tinham em mente quando alguém cunhou essa frase. Ela se
perguntou de onde a frase realmente veio, agora que ela pensou sobre isso.
Ela suspirou. Sem telefone significava sem internet. Sem internet significava
sem mecanismos de busca. Sem mecanismos de busca significava que ela
teria que se contentar em não saber a resposta.
Cara, a vida deve ter sido uma droga antes da internet existir.
Talvez se ela ganhasse, ela pudesse introduzir alguma tecnologia
moderna na Faire.
Ela não queria matar Mestre de Cerimônias. Ela iria. Ela estava
comprometida agora. Mesmo que ela o odiasse pelo que ele tinha feito com
ela e Simon, ela entendia por que ele tinha feito isso. Uma coisa era concordar
com as pessoas. Outra era compreender o raciocínio delas.
Ela podia entender como Turk tinha ido do ponto A ao ponto B e
depois ao C. Ela discordava. Com veemência. Mas em cinco dias, o debate
estaria encerrado. Os votos seriam lançados e a Família decidiria se
continuariam a viver ou morreriam.
Ela não tinha intenção de quebrar sua promessa. Se eles votassem para
deixar a Faire morrer, ela deixaria acontecer. Quem era ela para decidir? Ela
não era ninguém. Ela era apenas Cora. Uma garota estúpida da Nova
Inglaterra que se formou em fotografia, teve seu corpo perdido e trabalhou
no maldito banco por sete anos desperdiçados de sua vida.
Havia uma lista muito pequena de decisões que ela estava qualificada
para tomar. Nela havia coisas como “em que ordem o troco deve ser
contado” e “qual configuração em uma câmera obteria uma foto melhor”.
Decididamente, não estavam na lista tópicos que incluíam se um maldito
monstro sobrenatural deveria ter permissão para vagar pelo mundo.
Ela queria que a resposta fosse “sim, deveria”. Mas havia sabedoria no
grupo. Se quisessem viver, viveriam. Se eles quisessem morrer... Todos
morreriam. Ela não sabia quanto tempo Harrow Faire tinha restante – talvez
um ano, no máximo. Ela sabia que se a Família ficasse do lado de Turk, ela
teria que ouvir Lazarus e Simon reclamarem disso o tempo todo.
Mas ela manteria sua palavra.
Às vezes, isso era tudo que uma pessoa tinha. Ou um horror-parte-
pessoa-parte-sobrenatural.
Puxando para trás a aba da tenda onde Rudy mantinha seus animais
estranhos e não naturais, ela olhou ao redor do espaço escuro. Era enorme, e
ela podia ver as diferentes criaturas bizarras se movendo em suas jaulas ou
cercados.
— Rudy?
Silêncio.
— Ei, Rudy, você está aqui?
Nada.
Com um encolher de ombros, ela caminhou mais para dentro da tenda.
Ela tinha certeza que ele não se importaria. Ela realmente precisava sorrir. Ela
se sentia tão quebrada sobre a coisa toda. Tão sobrecarregada. E apesar de
tudo, ela só queria gritar e quebrar alguma coisa. Mas isso dificilmente seria
produtivo.
Além disso, quem sabia o que aconteceria se ela perdesse a paciência
agora que ela era parte Cora, parte quem-sabe-que-porcentagem-extra-
dimensional, provavelmente-ser maligno? Então, em vez disso, ela caminhou
em direção aos fundos da tenda, onde encontrou o grande cercado que
continha três animais que instantaneamente a fizeram sorrir.
— Ei, família esquisita de alce-tigre — ela disse enquanto caminhava
até a beirada do cercado.
O macho dos três grunhiu e pisou com o casco dianteiro direito no
chão, tentando parecer intimidador. Mas quando ele cheirou o ar, sentindo o
cheiro dela, o pelo de suas costas baixou. Ele soltou um suspiro silencioso e
caminhou em direção a ela, enfiando a cabeça sobre a borda da cerca e
farejando seu ombro. Se porque a reconheceu de antes, ou porque ela era
parte de Harrow Faire e ele também, ela não sabia. Mas ela aceitaria.
— Bem, tudo bem, então. — Ela riu e acariciou o pescoço da criatura. —
Bom te ver também. — Quando o alce-tigre baixou a cabeça para tentar
roubar uma cenoura, ela riu de novo e as segurou fora do alcance dele. — Boa
tentativa! Seu bicho sorrateiro.
A mãe e o bebê também estavam no portão agora, cada um deles
cutucando-a e pedindo guloseimas como cavalos. Ela sorriu. Este era um dos
prazeres simples da vida. Alimentar animais sempre a animava. Ela ofereceu
uma cenoura a cada um e observou enquanto eles mastigavam alegremente.
Ela teve que segurar a cenoura para o bebê, pois não cabia uma cenoura
inteira na boca como seus pais.
— Espero que você não esteja em uma dieta especial maluca e Rudy
fique bravo comigo.
— Eles não estão.
Ela gritou e se virou. Lá estava o Domador de Animais, observando-a
com uma expressão plana. Ele estava em forma humana, mas seus olhos eram
amarelos e brilhavam como os de um lobo na penumbra.
— Maldição, não se aproxime de mim na surdina.
— Eu não me aproximei. — Ele caminhou até a beirada do cercado e
estendeu a mão para acariciar o pescoço do alce-tigre macho. — Eu grunhi.
— Tanto faz. Não grunha atrás de mim. E não seja pedante.
— Ela empurrou seu ombro.
Rudy sorriu brevemente e, pegando uma de suas cenouras, ergueu-a
para o grande animal mastigar.
— Por que você está aqui, Cora?
— Eu amo animais. Eu gosto de alimentá-los para me animar.
— Eu faço a mesma coisa.
— Você fica alegre? — Ela lançou-lhe um olhar incrédulo. — Besteira.
Isso o fez sorrir. Desapareceu rapidamente, mas estava lá.
— Eu nem sempre fui assim. Mas a Faire cheira a morte, e isso...
Arruína meu humor. Vamos colocar assim. — Ele fez uma careta e então
suspirou. — Ficarei feliz em terminar tudo isso em breve. De uma forma ou
de outra. Não gosto da incerteza.
— Eu também.
— Então por que a votação? Você poderia vencer Mestre de Cerimônias
em uma luta. Especialmente com Simon e eu atrás de você, ele não teria
chance. — Rudy virou-se para ela. — Não entendo.
— Eu sei. Nem Simon. — Ela fez uma pausa. — Mas é sobre ter a
chance de escolher. Muitos de nós foram levados contra a nossa vontade. Nós
fomos feitos parte de Harrow Faire por nenhuma escolha nossa. É justo que
todos tenham uma palavra a dizer sobre algo pelo menos uma vez.
Ela coçou entre as orelhas do filhote de alce-tigre, sorrindo enquanto
fazia um estranho, presumivelmente feliz, grunhido. Ela ergueu outra
cenoura para ele mordiscar.
Eles ficaram em silêncio por um longo tempo. Finalmente, ela teve
coragem de perguntar.
— O que foi que Lazarus disse a você ontem no jantar?
Rudy estremeceu.
— Se é pessoal, você não precisa me dizer. Me desculpe.
Domador de Animais balançou a cabeça.
— Engraçado que você deseja dar a todos aqui uma escolha. Eu
preferiria que a minha fosse tirada de mim. É por isso que eu vim aqui. Por
isso escolhi me tornar o que sou. Os animais são simples. Primitivos. Eles
fazem o que precisam para preencher suas necessidades e impulsos mais
básicos. Eles fazem o que gostam. Eles não debatem ou escolhem. Eles
simplesmente são. E você vê como eles podem ser felizes? Quão contentes em
suas vidas?
— Sim.
— Eu tive uma irmã gêmea, há muito tempo. Ela e eu éramos
inseparáveis. A vida era difícil para um irlandês em Boston nos anos trinta.
Cruzei o grupo errado de homens. Ameaçaram minha vida. Esse era o meu
fardo para carregar. Mas então, eles foram atrás de Isa. E isso... Eu não podia
suportar. Corri para o norte, esperando atraí-los para longe de Boston.
Funcionou. Eles me perseguiram. Eu vim aqui, e um homem se aproximou de
mim. Ele era o velho Domador de Animais. Ele me disse o que eu me
tornaria. E mais importante, ele me disse que eu não existiria mais. Que Isa
nunca saberia que tinha um gêmeo. Que os homens que cruzei nunca viriam
por ela. Eu não hesitei. Eu disse sim. Porque eu não tinha escolha a fazer.
Fazemos o que devemos para proteger nossa matilha.
Cora assentiu e bagunçou a crina do filhote de alce-tigre.
— Eu sinto muito.
— Eu não. Eu faria isso de novo em um piscar de olhos. — Rudy fechou
os olhos por um momento. — Você chama Harrow Faire de ‘Lazarus’. Por
que?
— Esse era o antigo nome de Palhaço. Se a Faire quer andar por aí
usando a memória de Palhaço como um traje de homem, ela também pode
lidar com o nome antigo de Palhaço.
Rudy deu de ombros.
— Eu suponho que sim. — Ele fez uma pausa. — No jantar, me disse
que Isa viveu uma vida longa e feliz. Que ela teve três filhos, que passaram a
ter filhos, que ainda estão vivos. Em algum lugar lá fora... Eu tenho sobrinhos
e sobrinhas bisnetos. Sangue do meu sangue caminha nesta Terra, e eles
prosperam. E me disse isso não querendo nada em troca. Ele sabe que já tem
minha lealdade. Ele fez isso para ser... Gentil. Para me dar paz.
— Eu realmente esperava que Harrow Faire fosse muito mais diabólica.
Muito mais cruel. — Cora riu. — Acho que não devo reclamar.
— A Faire não é humana. E a verdadeira crueldade é uma faceta da
humanidade. Os únicos animais que se machucam por esporte são aqueles
que se aproximam perigosamente de nossa própria natureza.
Ela olhou para Rudy por um longo tempo. O estudou.
— Você é um homem estranho.
Ele sorriu.
— Eu posso ver como você ganhou Simon.
— Eu não ganhei Simon. Ninguém ganha Simon. Eu o enganei para
desfrutar da minha companhia por enquanto. Isso é tudo.
Ela se voltou para os animais. Ela já estava ficando sem cenouras e
queria aproveitar o momento.
— Você acredita nisso?
— Estou em um triângulo amoroso com o ego de Simon e Simon. — Ela
sorriu. Era uma expressão cínica e autodepreciativa. Ela estava fazendo
pouco caso de algo que a machucava. Era um mecanismo de autodefesa ruim,
mas que ela usava desde criança. — Eu sei quem vai ganhar.
— E você está bem com isso?
— Você já amou, Rudy?
— Só no sentido familiar. Então não. Acho que tive sorte. Eu vejo o que
isso faz com os outros. Não tenho certeza se estou perdendo muito.
Cora riu. A risada terminou em um suspiro longo e sentimental. Era
disso que se tratava essa coisa toda. Auto-piedade. Mais tarde, ela ia ficar
bêbada para encerrar seu dia, mas parecia estranho ficar bêbada às dez da
manhã. Mesmo que ela tivesse certeza de que Bertha estava sempre no meio
do caminho.
— Amor é estranho. Eu pensei que sabia o que era antes, com Duncan...
E talvez eu o amasse. Talvez eu esteja me enganando. Talvez eu tenha um
péssimo gosto para homens.
Rudy riu. Riu de verdade.
Cora tentou não levar isso para o lado pessoal. E falhou. Ela revirou os
olhos.
— Mas Simon... Ele me faz rir. Ele me faz sorrir. Ele pode ser doce. Seu
sarcasmo é viciante, uma vez que você se acostuma. Ele não é tão abrasivo
quanto parece na superfície.
— Vou ter que aceitar sua palavra.
— Eu vou te dizer isso. Se você tiver a chance de amar alguém – não
apesar de quem eles são, mas por causa disso? Faça isso. Largue tudo e faça.
Ela deu sua última cenoura para a mãe alce-tigre. O animal tinha sido
muito paciente o tempo todo, sendo o menos agressivo dos três pelas
guloseimas. Cora não ficou surpresa. A criatura mãe inclinou a cabeça para
baixo e mordiscou seu ombro quando terminou de mastigar a cenoura.
— Porque confie em mim... Vale a pena.
— Vou levar esse conselho a sério. — Rudy suspirou. — Só espero ter a
oportunidade, Cora. Este jogo que você escolheu jogar nos colocou em uma
situação precária.
— Eu sei. — Ela descansou a cabeça contra a têmpora da grande coisa-
tigre-alce. Cheirava almiscarado como a maioria dos animais. Mas ela não se
importou. Ela coçou o pelo da criatura mãe e tentou reunir todo o conforto
que podia com o simples gesto. O animal enganchou a cabeça por cima do
ombro dela e soltou aquele resmungo que pareciam fazer quando estavam
felizes.
— Eu poderia ter matado Mestre de Cerimônias no momento em que
pus os pés fora da torre. Eu poderia. Mas... Às vezes como fazemos algo é
mais importante do que o que fazemos. Se eu o matasse então, o que restaria
a fazer? Assustar todos em obediência? Matar todos que discordaram de mim
e começar do zero? Que tipo de monstro eu seria então?
Ela beijou o animal na testa entre os olhos. A criatura a cheirou
novamente. Provavelmente apenas pedindo mais cenouras, mas ela preferia
imaginar que se importava, mesmo que só um pouco.
— Quero que as pessoas aqui sejam minhas amigas. Minha Família.
Quero que este lugar seja minha casa. E se eu deveria... Ser responsável por
isso... — Ela não pôde deixar de rir da ideia ridícula. — Então eu quero
começar com o pé direito. Quero que as pessoas saibam que suas opiniões são
importantes para mim. Que importam para mim. Que não vou jogar tudo fora
porque tenho uma cruzada idiota.
E lá foi ela, chorando novamente. Ela rosnou em frustração e bateu em
seu rosto. Se ela não se curasse rapidamente, ela teria facilmente esfregado o
rosto em carne viva agora.
A mão de Rudy caiu em seu ombro e apertou. Quando ela se recusou a
olhar para ele, ele a virou para encará-lo e a puxou com força para um abraço.
— E é por isso que eu vou seguir você, não Mestre de Cerimônias. Você
é capaz de ouvir aqueles ao seu redor. Você não escolheu se apegar à sua
visão de mundo como se fosse a única realidade.
Ele não cheirava muito diferente do animal.
Ela não se importou.
Ela se forçou a não fungar enquanto murmurava em sua camisa
esfarrapada.
— Eu não quero fazer isso...
— Eu sei. — Ele a segurou um pouco mais apertado. — Mas eu sei que
você vai. Porque é o que precisa ser feito. E é por isso que você deve liderar.
Ela o teria xingado por falar mais besteira. Mas ela simplesmente não
conseguia encontrar a força.
— Você é um bom amigo, Rudy.
Ele se separou dela um segundo depois e deu um beijo em sua testa. Foi
um gesto entre irmãos. Entre Família.
— Agora, vá atrás daquele seu cretino. Deixado desacompanhado, não
consigo imaginar o problema em que ele se meterá.
Ela riu uma vez, derrotada, e assentiu. — Sim. — Ela olhou para a
família de alces-tigre. Eles já estavam entediados com Cora e Rudy e
voltaram a mastigar feno e fazer coisas de animais. — Tenho que fazer uma
coleira para ele algum dia. Ajudá-lo a ficar longe de travessuras.
Rudy fez uma careta. — Por favor, não me conte os detalhes.
Ela riu. — Eu quis dizer isso retoricamente, não... Oh, não importa. —
Ela começou a se afastar. — Obrigada novamente, Rudy.
— A qualquer hora, Cora.
A vinte passos de distância, ela parou e se virou para ele.
— Se vencermos – se sairmos vivos disso – eu quero aquele dragão de
estimação, Rudy.
Ele riu. Uma verdadeira risada. Isso a fez sorrir.
— Considere feito.
Ele inclinou a cabeça para ela e se afastou, pegando uma vassoura que
estava encostada na parede de uma grade enquanto passava.
Homem estranho. Homem bizarro. Mas o mundo era um lugar melhor
por tê-lo nele. Ela se afastou com um leve sorriso no rosto. E certamente era
melhor do que a expressão com que ela chegou.
Ela realmente deveria ir encontrar o Marionetista antes que ele se
metesse em muitos problemas.
Se já não fosse tarde demais.

Onde ela estava?


Quem era ela?
Seus dedos estavam dobrados. Peças de metal unidas de madeira
pintada e cuidadosamente polida. Ela os flexionou de novo e de novo,
observando-os dobrar. Ela tinha mãos. Ela costumava ter mãos. Mas não
estas. Estas eram diferentes.
Mas como? Por que elas eram diferentes?
Ela não se lembrava.
Ela não se lembrava de muitas coisas.
— Bem-vinda de volta, pequena.
Dedos roçaram sua bochecha. Ela os viu, mas não os sentiu. Ela não
sentiu nada. Ela estava entorpecida. Ela sentiu... Como se estivesse sonhando.
Deve ser isso.
Ela estava sonhando.
Ela se virou para olhar para o homem que estava de pé sobre ela. Foi só
então que ela percebeu que estava deitada. Sim, estou dormindo. Ele era um
homem estranho. Alto, anguloso, com cabelo preto ondulado que cobria o
rosto em cachos selvagens e despenteados. Ele usava óculos de sol. Uma lente
era vermelha, a outra era preta.
Quem era ele?
Ela sentiu como se o conhecesse.
Ela sentiu que deveria se lembrar.
Mas os sonhos eram engraçados assim.
— Você perdeu um pouco de si mesma na transferência. — Ele
acariciou o cabelo dela com a mão. E ainda assim, ela não sentiu nada. —
Parece que você era um castelo de cartas. Um iglu. Você parecia forte do lado
de fora, mas... Em um exame mais atento, parecia que não havia muito lá. —
Ele zombou. — Vocês bonitas são todas iguais. Vazias.
Ela não entendeu. Ela tentou se mover. Seus membros pareciam
estranhos – separados. Ela não podia senti-los. O braço dela subiu
inesperadamente, e ele pegou seu antebraço e o pressionou de volta na mesa.
— Agora. Não seja precipitada. Uma coisa de cada vez. Vá devagar.
Você terá que aprender a se mover novamente.
Ela obedientemente se deitou na mesa e o observou. Ele era a única
coisa que parecia real. A âncora no sonho.
— Quem é você?
Ele sorriu como se algo que ela disse o agradasse. Ela não sabia por quê.
Ela não reconheceu sua própria voz. Mas ele parecia saber muito mais do que
ela.
Muito mais.
Ele era um homem muito importante neste sonho.
Talvez este fosse o sonho dele, e ela fosse apenas uma pequena parte
dele.
Sim.
Deve ser isso. Ela era apenas uma invenção de sua imaginação. Isso
fazia muito mais sentido. Isso parecia natural.
— Ora, minha querida Amanda... — Ele bateu o dedo na ponta do nariz
dela. Ela não sentiu nada. — Eu sou seu pai.
Pela primeira vez, Cora assistiu a um dos espetáculos de marionetes de
Simon. Oh, ela o tinha visto usar suas marionetes. Mas nunca na frente de
uma plateia ao vivo. Ela nunca o tinha visto no trabalho. E agora ela sabia
que estava perdendo. De pé na parte de trás da tenda para não se sentar no
espaço lotado, ela se viu sorrindo.
Ele era um bom contador de histórias.
Muito bom.
Criaturas e personagens lutavam no palco enquanto Simon contava
suas histórias. Alguns eram contos de fadas. Alguns não. Na superfície,
parecia que deveria ser para crianças. Mas, como o próprio homem, eles eram
retorcidos e um pouco fora do lugar. Como um filme antigo de Jim Henson. Se
Henson tivesse feito uma linha de cocaína com Clive Barker.
A maior parte do público era composta por adultos. E ela não ficou
surpresa. As marionetes que vagavam pelos corredores ou sobrevoavam
eram maravilhas. Cora ouviu as pessoas sussurrando umas para as outras,
perguntando como isso era possível.
A multidão ofegou quando o enorme dragão entrou no palco. As cordas
que operavam a criatura eram quase invisíveis de onde ela estava atrás. Ele
abriu a boca, rugiu e... Cuspiu fogo sobre as cabeças da multidão. Todos
gritaram e pularam para trás, depois aplaudiram.
Cora riu. Ele tem pirotecnia. Claro que ele tem pirotecnia. Este é Simon.
— Agora! — O Marionetista foi para o centro do palco. Carismático e
imponente, aterrorizante e sedutor ao mesmo tempo. — Chegamos à minha
parte favorita da noite. — Ele deu um tapinha no pescoço do dragão. Este
roncou alto. — Nossa última história começa como todas as melhores histórias
– no interior da Inglaterra.
O cenário mudou. A cena que estava lá voou para o cordame e outra
caiu em seu lugar. Eram campos ondulados, com nuvens brancas e inchadas,
e uma floresta à esquerda da casa. A construção plana de uma torre de pedra,
cuidadosamente pintada em trompe l’oeil4 para parecer dimensional, deslizou
da esquerda. Em cima dela estava empoleirada a pequena estatueta de uma
princesa arquetípica, completa com um chapéu rosa pontudo, apertando as
mãozinhas de madeira contra o peito com preocupação.
O dragão rugiu e se arrastou pelo palco, enrolando-se ao redor do
castelo.
— Aqui temos uma história tão antiga quanto a civilização. A princesa
assustada, roubada e ameaçada por uma fera terrível e perversa. — Simon
sorriu. O dragão cuspiu outro jato de fogo no ar sobre a multidão. — O que
vamos fazer? Quem virá para salvá-la?
Na hora, do lado esquerdo do palco surgiu um cavaleiro de armadura
brilhante. Os bonecos só chegavam até a cintura de Simon. Ele deu um passo
para trás para fora do caminho do cavaleiro enquanto ele avançava
corajosamente pelo palco, erguendo sua espada em desafio ao dragão.
A fera não gostou da presença do herói e abriu sua boca em um rugido
dentuço.

4 Uma pintura ou desenho destinado a criar a ilusão de um objeto tridimensional


— E assim, nosso valente herói lutou contra o poderoso dragão para
salvar a pobre e indefesa princesa. — Simon suspirou dramaticamente. —
Que chato.
Assim que o cavaleiro atacou o dragão, a cena congelou. Simon cruzou
as mãos atrás das costas.
— Por que é sempre assim? Por que é sempre tão simples? Que o bem e
o mal são fáceis de entender? Que seus motivos são sempre puros ou vis? Eu
vou lhes dizer a resposta. É porque queremos que as coisas sejam preto no
branco. Dá-nos conforto não conhecer os detalhes. Não conhecer o contexto.
A cena recomeçou, e o cavaleiro cravou sua espada na garra dianteira
do dragão. O dragão inclinou a cabeça para trás e gemeu de dor.
— Mas as coisas que são tão diretas na superfície são sempre uma
mentira.
Simon gesticulou para a princesa, que agora tinha um arco e flecha
erguidos em suas mãos. Ela mirou e atirou. A flecha voou pelo ar em câmera
lenta.
Por um segundo, não ficou claro para onde a flecha iria. Ela congelou
no espaço quando a cena mais uma vez hesitou.
— E aqui estamos em um precipício. Aceitamos a mentira monótona
porque ela nos consola? Porque podemos segurá-la como um cobertor em
uma noite fria e escura? Ou olhamos para baixo e vemos mais da história,
mesmo que isso nos incomode?
A cena recomeçou em câmera lenta. A flecha voou pelo ar... E passou
pelo dragão. Ela raspou sua cabeça por um centímetro e continuou sua
viagem.
Direto no pescoço do cavaleiro.
Simon continuou a narrar enquanto o pequeno boneco de madeira
jorrou sangue falso entre as placas de armadura de aço polido e caiu no chão.
— O dragão era seu captor, ou seu salvador? O cavaleiro era seu
amante ou seu perseguidor? A princesa era virtuosa ou assassina?
A princesa desapareceu na torre apenas para ressurgir de uma porta na
base. O dragão baixou a cabeça para a boneca da mulher. Não para ameaçá-
la, mas para acariciá-la.
— Basta uma pessoa na história para mudar a narrativa. Uma escolha
de sua parte poderia ter feito esta história como qualquer outra. O herói salva
o dia e derrota o monstro. Talvez esse resumo ainda seja verdadeiro neste
caso. Mas qual é qual? Quem é o herói? O dragão, a princesa ou o cavaleiro?
E quem é o monstro?
A princesa puxou a espada da garra do dragão e estendeu a mão para
acariciar sua bochecha. O dragão soltou um ruído satisfeito e deitou-se no
palco, enrolando a cauda protetoramente em torno da princesa.
— Não há heróis nesta história ou em qualquer outra. Não há monstros.
Não há princesas bonitas e indefesas que adorariam quem as resgatou das
garras da derrota. — Simon olhou incisivamente para a marionete
ensanguentada do cavaleiro. — Somos apenas as escolhas que fazemos.
Ele abriu um sorriso largo e se curvou dramaticamente com um braço
cruzado na frente dele.
— O fim. E isso conclui minha apresentação para a noite. Obrigado a
todos por terem vindo.
A multidão aplaudiu. Todos pareciam bastante impressionados, mas
também mais do que um pouco confusos. Cora se juntou a eles nos aplausos,
mesmo que ela tenha revirado os olhos.
Simon se endireitou, sorriu novamente e se virou do palco quando as
cortinas se fecharam no palco, escondendo a cena da vista.
Bastardo melodramático. Ela sabia por que ele havia contado aquela
história. Ele deve tê-la visto na plateia. Ela caminhou pelo corredor,
ziguezagueando entre as pessoas enquanto elas pegavam suas coisas e
começavam a sair. Saltando para o palco, ela vagou para a esquerda.
Ninguém a questionou, embora ela se parecesse com qualquer outra pessoa.
Ninguém questionava ninguém que andava com propósito suficiente.
Às vezes, tudo o que uma pessoa precisava fazer era fingir que pertencia
àquele lugar, e isso bastava. Ela havia se infiltrado em alguns shows dessa
maneira quando estava na faculdade.
Abaixando-se pelo lado esquerdo da cortina, ela foi para os bastidores.
— Simon?
Ele estava limpando a pequena poça de sangue falso no centro do palco.
— Oh, olá, Cora, querida. Eu não sabia que você estava na plateia.
— Humhum. Claro que não. — Ela caminhou até ele e o cutucou nas
costelas. — Mentiroso.
— Eu? Nunca. — Ele bufou em falsa indignação. — Eu não posso ver a
plateia com as luzes do palco e óculos de sol. O Pé-grande poderia ter estado
lá, pelo que sei. — Ele arqueou uma sobrancelha para ela e sorriu. — Por que,
eu disse algo que tocou uma corda, talvez?
Ela o cutucou nas costelas novamente.
— Toda essa porcaria sobre escolhas.
— É verdade, não é? Ninguém é inerentemente bom ou mau. E as
escolhas que fazemos também não são. Não sem entender mais o contexto
por trás de tudo. — Ele terminou de limpar a poça e pegou o balde de água e
saiu do palco. Ela o seguiu. — Certamente, você de todas as pessoas deveria
entender isso. E com sua escolha de matar Duncan, e logo Mestre de
Cerimônias.
— Sim, sim. — Ela estendeu a mão para ele.
Ele a olhou com curiosidade. — O que é, Cora?
— Eu só... — Ela suspirou. — Não sei.
— Você precisa de algum conforto e distração, e você veio até mim. Fico
lisonjeado. — Ele riu e a puxou em seus braços. — Venha. Vamos dar um
passeio. — Sua voz baixou, tornando-se rouca, pingando com o pecado como
cera quente. — E então eu vou deixar você cair bêbada, levá-la de volta para o
meu vagão e, usando minhas cordas, dobrá-la em formas não naturais e fazer
coisas indescritíveis em seu corpo caído e indefeso.
Seu rosto ficou quente. Ela reuniu seu melhor olhar.
— Eu poderia rasgar você em pedaços. Você sabe disso.
— Mas você gosta quando eu faço coisas terríveis com você. — Ele
sorriu maliciosamente. — E é uma maneira tão infalível de distraí-la, não é?
— Eu... Eu...
— Mas sorvete vem em primeiro lugar!
Ele atacou de repente na outra direção, puxando-a pela mão.
Ele assobiou uma melodia alegre quando eles saíram da entrada de sua
tenda. Ela apertou os olhos contra a luz do sol quando ele colocou um braço
em volta de seu ombro e começou a passear no parque.
— Você está de bom humor.
— Por que eu não estaria? Nós vamos ganhar essa sua votação boba,
Mestre de Cerimônias morrerá, Harrow Faire será libertada e poderemos
explorar o mundo! Tenho uma linda mulher ao meu lado que diz que me
ama. Está um dia lindo, é quase outubro, e tenho a promessa de sorvete,
álcool e sexo pervertido e bizarro pela frente. Por que eu estaria mal-
humorado?
Ela revirou os olhos novamente.
— Você não entende.
— Ah, eu entendo. Mas acredite em mim, docinho, se eu passasse cada
momento do meu dia me preocupando com sua crise existencial du jour5, eu
explodiria em chamas. — Ele sorriu. — Eu honestamente não entendo como
você faz isso, sendo tão dramática o tempo todo.
— Eu não estou... — Ela o empurrou. — Não estou sendo dramática.
Troquei uma parte da minha personalidade por Harrow Faire e...
— Qual parte? Você já descobriu algo sobre isso? Porque eu certamente
não notei diferença. Bem, exceto pelo fato de que você esteve terrivelmente
mal-humorada nos últimos dois dias. — Ele bateu o dedo no queixo. — Foi
necessário seu senso de humor, eu me pergunto?
— Me escuta, seu idiota, bunda seca, cafetão, não me faça pegar o poste
da cerca e transformá-lo no espantalho mais vestido do mundo.
Ela apontou para ele acusadoramente.
Ele gargalhou.
— Ah, essa é boa! Estou feliz que um pouco de você ainda está aí. E, na
verdade, você gosta da minha bunda seca.
Ele sorriu e pulou para ela. Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa,
ele a pegou em seus braços.
— Ah! Simon! Me solta!

5Usado para descrever algo que está desfrutando de grande popularidade ou publicidade, mas
provavelmente de curta duração.
— Por que? — Ele a jogou no ar uma polegada e a pegou novamente.
Ela gritou e jogou os braços em volta do pescoço dele. — Com medo de que
eu vá te deixar cair?
— Sim! Ou me jogar em alguma coisa.
— Você não confia em mim? — Ele fez beicinho. — Estou insultado.
— Onde estamos indo?
— Hum. Veja, eu tive uma mudança de planos. Um pequeno desvio. Eu
sei o que vai te animar. Mas eu quero que você feche os olhos.
— Por que? — Ela lançou-lhe um olhar cauteloso. — O que você está
fazendo?
— Nada. — Ele sorriu inocentemente. Ou pelo menos, ele tentou. Foi
uma tentativa patética. — Apenas feche os olhos. Estamos quase lá. É uma
surpresa.
Com um suspiro longo e atormentado, ela fez o que ele pediu e fechou
os olhos.
— Não faça nada estúpido, Simon.
— Eu? Nunca. — Ele caminhou em silêncio por mais alguns momentos
antes de subir em algo que parecia uma escada de madeira. Ela o segurou um
pouco mais apertado. — Pronta?
— Para quê?
— Opa!
E com isso, ele a jogou. Ela gritou enquanto se arremessava pelo ar e
descia e...
Respingo.
A água fria a atingiu como um tapa na cara. Ela afundou no líquido. Ela
abriu os olhos e lutou para se endireitar. Seus pés encontraram o fundo, e ela
se levantou. Rompendo a superfície, ela ofegou por ar. Ela estava em uma
poça de água, a meio caminho de seu peito. Era o tanque de imersão.
Simon estava gargalhando em histeria.
— Vai se foder. — Ela estava encharcada. Ela enxugou a água do rosto e
alisou o cabelo para trás. — Isso não é engraçado.
— Claramente, é. — Ele sorriu para ela. — Eu sei o quanto você gosta
de passear na chuva quando está de mau humor. Achei que isso deve ser tão
eficaz quanto. Agora, você está adequadamente fria e molhada? Você tem me
dado azia a semana toda, e isso acaba aqui. Você se animou?
— Ainda não. — Ela caminhou até o lado do tanque, mais perto dele. —
Eu sei o que vai fazer isso, no entanto.
— Oh?
Ele ergueu uma sobrancelha.
Ela sorriu maliciosamente para ele. Ela deixou sua escuridão se
estender pelo chão do palco do tanque de imersão. Antes que ele pudesse
reagir, a gavinha sombria envolveu seu tornozelo e puxou, tirando-o do
equilíbrio.
Simon gritou, agitando os braços para tentar se segurar. Mas um
empurrão por trás de outra sombra o lançou no ar. Respingo.
O Marionetista subiu para respirar um momento depois, cuspindo e
tossindo. Ele olhou para seu terno encharcado e arruinado e lamentou.
— Isso é veludo!
Cora riu.
Muito mais do que ela tinha em muito tempo.
— Você parece ridículo. — Ela riu. — Você está certo, isso está me
animando.
Ela espirrou água nele. Ele rosnou e foi atrás dela. Depois de uma breve
luta, ele a pressionou ao lado do tanque, seus lábios colidindo contra os dela
em uma necessidade desesperada. Ele torceu a mão em seu cabelo molhado e
o agarrou, puxando sua cabeça mais para trás.
Quando ele finalmente quebrou o abraço, ele estava olhando para ela
em uma mistura de frustração, diversão e luxúria. Seus óculos de sol tinham
caído em algum lugar da piscina.
— A caminhada de volta ao meu vagão vai ser miserável, Cora. Você
sabe como os sapatos sociais são horríveis quando estão cheios de água?
— Estou ansiosa para ouvir você lamentar sobre isso o tempo todo.
— Eu vou fazer você pagar por isso, você percebe.
— Bom. — Ela sorriu para ele, igualando sua maldade pela primeira
vez. — Esse era o ponto.
Cora mal conseguia recuperar o fôlego. Ou Simon estava tentando
roubá-lo beijando-a, ou ele estava arrancando suas roupas encharcadas muito
rápido para ela descobrir qual caminho estava para cima. Ele conseguiu se
manter sob controle até o momento exato em que a porta se fechou atrás dele
em seu vagão.
Ele a empurrou contra a porta do armário, sacudindo a madeira nas
dobradiças. Ele ainda estava quase todo vestido – e encharcado. Ela adorava
quando o cabelo dele estava molhado. Ele alisou os cachos, revelando que seu
cabelo apenas atingia o maxilar, e os fios pretos brilhavam na luz.
Ele a pegou pelas coxas, deslizando suas costas nuas pela porta de
madeira, e entrou nela. Ela rapidamente envolveu suas pernas ao redor de
sua cintura, enganchando seus tornozelos atrás de suas coxas, e o puxou
contra ela. Mais uma vez, ele a estava beijando como se estivesse planejando
comê-la inteira.
Ela sabia que poderia detê-lo se ele ficasse muito áspero.
Mas de alguma forma, ela não achava que muito áspero era uma
possibilidade naquele momento. Ela colocou os braços em volta do pescoço
dele e o beijou de volta, tentando igualá-lo.
Ele agarrou seu cabelo novamente e puxou com força o suficiente para
que ela ofegasse, rompendo com seu beijo quando ele inclinou a cabeça dela
para longe dele.
— Não. Você está à minha mercê desta vez. — Sua voz era um grunhido
baixo. Ela sentiu vibrar através dela. Ela torceu os dedos na gola de sua
camisa encharcada. — E você vai levar cada grama do que eu pretendo dar a
você. — Ele baixou a cabeça para sua garganta, e ela o sentiu sorrir contra sua
pele. — Cada grama.
Quando a língua dele arrastou a linha tensa do tendão em sua garganta,
ela gemeu. Ele tomou seu tempo doce. Quando ela passou os dedos pelo
cabelo dele, ele rosnou. De repente, ela estava em movimento novamente. Ele
deu um passo para trás da parede, levando-a com ele. E então ela estava
caindo. Desta vez, ela pousou em sua cama.
Fios finos, quase invisíveis, agarraram seus pulsos e os puxaram sobre
sua cabeça. Ela gritou de surpresa.
— Simon!
— Silêncio. Não me faça amordaçar você.
Ele sacudiu o pulso.
Cordas a prenderam em torno de sua garganta – sua cintura, seus
joelhos, seus tornozelos, em todos os lugares. Ela podia fazer pouco mais do
que choramingar quando elas a levantaram da cama, suspendendo-a alguns
centímetros sobre ela, os joelhos dobrados e bem abertos.
— Simon, me abaixa agora mesmo.,
— Que olhar! — Ele riu, mostrando a ela seu melhor e mais diabólico
sorriso. Lentamente, ele começou a desfazer a gravata. Ele estava tomando
seu tempo novamente. Fazendo-a assistir enquanto ele se despia, deixando-a
suspensa sobre sua cama como um brinquedo. — Que olhar... E que vista.
Ela rosnou e cerrou os punhos com força. Ela poderia se libertar. Ela
podia. O poder que veio com sua ligação com Harrow Faire estava bem ali –
bem nos limites de sua mente. Se ela estendesse a mão, poderia arrancar seus
membros.
Eu tenho problemas. Problemas profundos e muito complicados.
Porque ela não queria que ele parasse.
Porque era assustador, estar à sua mercê. Ela não tinha ideia do que ele
estava planejando fazer. E ainda... Maldito seja se não fosse excitante. Se ela
não amava o medo.
Ela desviou o olhar. Ele cantarolou.
— Oh, não fique tão indignada. Você terá muito mais do que reclamar
em alguns minutos.
Ele tirou a camisa e a jogou de lado. Ela ouviu a fivela do cinto dele
chacoalhar, e um segundo depois ele deslizou na cama entre suas pernas. Ele
apoiou seu peso em sua mão ao lado dela enquanto inclinou a cabeça,
capturando um de seus mamilos já empinados em sua boca.
Ela gemeu quando ele começou a brincar com ela, rolando a língua
lentamente ao redor dele apenas para morder, enviando uma sacudida de
algo que não era exatamente dor através dela. Com a mão livre, ele pegou seu
outro seio e começou a torturá-lo também.
Ela inclinou a cabeça para trás, suspensa como estava, e estremeceu. E
ainda... Ele não estava com pressa. Ele a enchia de atenção como se tivesse
todo o tempo do mundo. Ela só podia gemer e ofegar cada vez que ele
trocava de lado, amassando e tateando sua carne macia, beliscando os botões
entre o polegar e o indicador ou os dentes.
Ela estava se contorcendo, se contorcendo contra as cordas tanto quanto
podia. Ela não estava mais com frio da água do tanque de imersão. Ela estava
pegando fogo. Tudo o que ela podia fazer era implorar a ele em uma única
palavra sem fôlego.
— Simon...
Ele ergueu os olhos de seu trabalho e sorriu de orelha a orelha. — Por
que tanta pressa? — Ele riu. Ajoelhando-se entre suas coxas, ele vagou as
mãos sobre seu corpo. — Tão linda você é... Tão ágil. Tão terna. Tão flexível.
— Ele agitou seu pulso, e ela soltou um som assustado quando as cordas se
moveram, puxando suas pernas ainda mais. Ele se abaixou para ela
novamente e começou a beijar uma trilha lenta por seu corpo. — Eu amo o
quão flexível você é.
Quando ele passou a língua em seu núcleo, ela jogou a cabeça para trás
e engoliu um grito. Ele riu e mais uma vez começou a atormentá-la com a
língua e os dedos. Mas ele nunca acelerou. Ele nunca ficou mais intenso. Ele
deixou sua necessidade crescer e crescer. Deixou crescer, apenas para parar
antes que seu prazer atingisse a nota alta.
— Simon, por favor...
— Não. — Ele beijou o interior de sua coxa. — Eu disse que você ia
pagar. Você achou que não ia sofrer? Este é apenas o começo de sua
penitência.
Ele mergulhou dois dedos nela, e ela gemeu, arqueando as costas contra
as cordas. Ele os enviou o mais fundo que pôde, mas depois os manteve lá,
imóveis.
Seu grito de prazer se transformou em frustração.
Simon riu.
— Pobrezinha. Pobre coisinha frustrada. O que você quer? Hum? Diga-
me.
Ela rosnou e suspirou em derrota.
— Eu quero que você me foda.
— Muito bem. Farei o que a Rainha de Harrow Faire ordena. — Ele
abaixou a cabeça novamente, passando a língua por ela em um gesto longo e
lânguido. Principalmente só para irritá-la, ela tinha certeza. — Apenas não da
maneira que você poderia estar esperando.
Ele se sentou. E com outro movimento de seus pulsos, seu mundo girou
ao redor dela. De repente, ela estava de bruços nos lençóis sobre os joelhos, os
ombros pressionados contra o colchão, presos ali por cordas invisíveis. Seus
pulsos ainda estavam sobre sua cabeça. Ela tentou chutar. Tentou fazer
qualquer coisa. Mas ela não podia fazer muito mais do que se contorcer.
Simon grunhiu atrás dela.
— Não me encoraje. Isto já é um show e tanto sem você se contorcendo.
— O que você...
Ele enrolou a gravata em volta da cabeça dela. Apertou-a em sua boca
aberta, amordaçando-a. Ela ainda podia gritar, ou fazer barulho, mas ele
interrompeu suas palavras.
— Eu te avisei. Agora, cale-se e deixe um homem trabalhar, sim?
Ela rosnou com raiva contra o tecido de sua gravata e lutou contra as
cordas, mas ela estava presa. E agora ela não podia nem dizer a ele
exatamente onde ela iria enfiar uma frigideira quando ele a soltasse.
Mas ainda assim, a verdade irritante pairava no fundo de sua mente. Eu
posso impedi-lo. Eu posso ficar livre.
Suas mãos deslizaram sobre os globos de sua bunda, antes de uma
vagar de volta ao seu núcleo para brincar com ela, enviando choques de
prazer por sua espinha.
Ela gemeu contra a mordaça quando ele começou a empregar sua
considerável destreza tanto em seu corpo quanto dentro. Ela fechou os olhos,
estremecendo, precisando de mais. E cada vez que ela se aproximava, ele
recuava. E cada vez, ela gemia em frustração desesperada.
E cada vez ele ria.
Quanto tempo ele continuou, ela não podia nem dizer. Minutos? Uma
hora? Como ele não tinha desistido e a fodido já, ela não tinha ideia. Ele
nunca foi tão paciente. Ela sentiu como se lava tivesse substituído seu sangue.
Ela sabia que estava coberta por uma fina camada de suor.
A voz de Simon era grossa e rouca com a necessidade enquanto ele
falava. Ela não foi a única afetada.
— Você é minha, Cora. Cada parte de você. Seu coração, seu corpo, sua
alma. Minha.
Uma de suas mãos a deixou. Ela ouviu um estalo baixo, como o som de
uma rolha, e ela estremeceu quando algo líquido derramou em sua bunda.
Ela choramingou. Era frio e parecia... Estranho. O que ele está...?
Quando ele começou a esfregar a substância nela com uma mão, ela
percebeu que era algum tipo de óleo. E quando ele pressionou um dedo em
uma parte dela que não era onde ela estava esperando, ela pulou contra as
cordas e lutou.
Ela lamentou.
— Mmff! — Não! Não... Não... Por favor!
— Sshhhh. — Ele se inclinou sobre ela, girando a ponta de seu dedo
lubrificado ao redor daquele ponto. Com a outra mão, ele acariciou o cabelo
dela suavemente, em seguida, esfregou o polegar ao longo de sua bochecha.
Sua voz era suave e terna. — Eu não sou Duncan. Eu não vou te machucar.
Vamos com calma e devagar, você e eu...
Ela estava tremendo.
— Você acha que eu vou deixar um homem ter uma parte de você que
eu também não compartilhei? — Ele sorriu para ela, seu dedo escorregadio
de óleo ainda a provocando. — Respire. Se isso doer, vamos parar. Confie em
mim, Cora.
Ela fechou os olhos com força e lutou para recuperar o controle de sua
respiração. Ela lentamente soltou os lençóis que estava apertando em seus
punhos. Ela assentiu. Por muito pouco. Mas ela fez.
— Bom. Agora... Relaxe, sim?
Ele se sentou sobre os calcanhares atrás dela.
Ela fez o seu melhor para fazer exatamente isso. Ela ainda estava
tremendo. Mas quando ele sacudiu sua sensível bola de nervos com o
polegar, enviando prazer através dela, era difícil manter o foco em seu medo.
Enquanto ela choramingava, dessa vez em êxtase, ele pressionou o
dedo dentro dela. Seu som engasgou de surpresa, e ela esperou pela dor
pungente, ardente e agonizante que a perseguiu por tantos anos de sua vida.
Mas não estava lá.
Não doeu.
— Bom... Muito bom. — A voz de Simon estava tensa quando ele
começou a trabalhar seu dedo lentamente mais fundo. — É isso. Oh, Cora...
Por todos os deuses do inferno, você é tão linda. Acho que poderia gozar
assim, vendo você se render a mim.
Mais uma vez, ele tomou seu tempo. Um pouco mais fundo, depois a
meio caminho. Um pouco mais fundo e recuando pela metade. Mais óleo foi
adicionado a cada curso lento. E tudo o que ela podia fazer era ficar ali e
sentir.
Não era dor. Mas o que era, ela ainda não sabia. Era cru, primitivo,
como tocar um fio vivo. Como se estivesse tocando em algo imensamente
erótico. De vez em quando, ele brincava com o resto dela, fazendo-a
estremecer e apertar ao redor dele, fazendo-a ofegar enquanto as sensações
colidiam e guerreavam umas com as outras.
Sua pele parecia elétrica. Como se algo estivesse rastejando sobre ela.
Ela mal conseguia respirar. Ela mal conseguia pensar. Tudo o que ela podia
fazer era senti-lo. E ele estava apenas começando.
— Pronta para mais?
Ela assentiu novamente. Talvez um pouco ansiosa demais dessa vez.
Ela esperava que ele risse. Em vez disso, ela recebeu um grunhido
apreciativo.
— Sim, Cora... É isso.
Um segundo dedo juntou-se ao primeiro.
Ela ofegou e exalou um ruído que não era de choque ou dor. Ela fechou
os olhos, descansando o rosto na cama. Ele começou a esticá-la lentamente
enquanto trabalhava cada vez mais lentamente mais fundo. Ela sentiu como
se estivesse na beira de um penhasco. Que de alguma forma, de alguma
forma que ela não entendia, se ele apenas acelerasse um pouco, ela poderia
encontrar êxtase apenas com isso.
Para frente e para trás, devagar, com cuidado, ele trabalhou nela por
mais alguns minutos. Ele derramou um pouco mais de óleo.
— Aqui vem três.
Desta vez ele não esperou que ela assentisse. Ele não precisava. Ela já
estava gemendo com cada pressão em seu corpo. Ela havia parado de lutar há
muito tempo. E quando seu terceiro dedo se juntou aos outros dois, ela
arqueou as costas, gemendo alto contra a mordaça.
O som que Simon fez atrás dela foi igualmente profano. Desta vez, ele
acelerou um pouco. Ela se encontrou encostada nele, querendo mais.
Querendo que ele fosse um pouco mais longe.
— Acho que está na hora, não acha? — Ele puxou a mão dela. Ele
estava sobre ela então, sua mão contra a cama perto de sua cabeça, sua outra
mão segurando-se naquela parte dela. Ele se inclinou e beijou sua bochecha.
— Você quer isso, Cora, querida?
Ela engoliu contra a mordaça em sua boca. Ela assentiu. Mesmo. Ela
assentiu muito.
— Respire fundo.
Ele pressionou contra ela. Ele era certamente mais do que apenas
alguns dedos! Não parecia possível... Ia doer!
A pressão aumentou, e então ele estava lá. Apenas o começo. Só um
pouco. Ela esperou pela picada. A dor. O grito que ele arrancaria de sua
garganta. Mas nada disso aconteceu. Ela se forçou a respirar.
Simon estava ofegante sobre ela, a cabeça baixa, a testa contra a
têmpora dela.
— Caramba. Isso foi quase o limite para mim, bem ali. Caramba. — Ele
riu sem fôlego. — Eu nunca fiz isso antes, eu admito. Eu não esperava isso. —
Ele pressionou seus quadris para baixo sobre ela, afundando um pouco mais
fundo, e soltou um gemido baixo. — Oh, Cora... Se você vai me dizer para
parar, faça isso agora antes que seja tarde demais.
Ela murmurou algo contra a mordaça.
— Hum? Oh. Sim. — Ele puxou a gravata da boca dela. — Eu esqueci.
— Ele sorriu e beijou sua bochecha. — Olá, querida. Como você está indo lá
embaixo? Eu estou muito bem aqui.
— Deus, eu odeio você às vezes.
— Humhum, não, você não odeia. — Ele empurrou para frente,
colocando outro centímetro dele dentro dela. Seus sons de prazer eram
mútuos, entrelaçados tanto quanto seus corpos. — Eu não acho que você me
odeia, ou isso, de forma alguma. Bem? Quer que eu pare?
Ele estendeu a mão debaixo dela, brincando com seu botão sensível de
nervos.
Ela mordeu o lábio, sufocando o grito. Ela se sentia tão não-natural e
impossivelmente cheia. E ele não estava nem perto de estar dentro dela. E ela
queria mais.
— Pare de se vangloriar.
— Desmancha-prazeres. — Ele se endireitou novamente, tomando seus
quadris em suas mãos. As cordas que a seguravam no lugar afrouxaram
apenas o suficiente para que ele pudesse puxá-la para baixo para encontrar
seu lento movimento para frente. — Embora... Eu suponho que eu não
deveria re... Ah... Reclamar.
Ele repetiu o padrão que tinha feito com ela com os dedos. Avançando,
recuando pela metade, apenas para se aventurar um pouco mais fundo e
recuar. Cada vez que ele ia um pouco mais longe, ela sentia seu corpo se
iluminar em êxtase, ameaçando enviá-la para o precipício em êxtase. Seu
corpo estava zumbindo como se fosse elétrico.
— Essa é uma expressão muito mais agradável. Você está gostando
disso, não está? — Quando ela olhou de volta para ele, ele riu. — Eu não
estou tentando esfregar minha vitória. Pensando bem... Isso é, suponho,
literalmente o que estou tentando fazer, bem... Nngh... — Ele fez uma pausa e
abaixou a cabeça, respirando fundo e soltando o ar. Ele estremeceu enquanto
claramente lutava para manter o controle de si mesmo. Ele soltou uma longa
lufada de ar. — Você é excelente, Cora. E este... Este pode ser o momento
mais erótico da minha vida. Eu simplesmente quero ter certeza de que você
está gostando disso tanto quanto eu.
Ele pressionou-se mais contra ela, e desta vez ela podia senti-lo contra
ela, enterrado até o fundo. Ele inclinou seu peso sobre ela, puxando-a para
enfrentar suas tentativas de ir um pouco mais fundo.
E isso foi demais para ela. Ela ofegou e gemeu, enterrando o rosto na
dobra de seu braço enquanto o êxtase a percorria, inundando seu corpo em
sua liberação. Ela pode ter gritado seu nome. Ela não tinha certeza. Sua
cabeça estava girando.
Quando ela finalmente desceu de sua nuvem, ele estava beijando seus
ombros, sua nuca, seus braços, o que quer que pudesse alcançar. Ela virou a
cabeça para ele, e ele capturou seus lábios com os dele, lento e apaixonado.
Ela podia senti-lo dentro dela, se contorcendo, necessitado, desesperado por
mais.
E ela também.
— Vou tomar isso como um sim? — Ele sorriu e apoiou seus quadris
nos dela, aumentando a pressão. Ela quase viu estrelas, e seus pequenos
ruídos de prazer eram tudo o que ele precisava como prova. Ele riu. — Bom.
Agora, por favor. Se está bem para você... Posso finalmente começar?
Ela assentiu. Ela não conseguia formar palavras. E ela não ia encontrar
mais nenhuma delas quando ele começou a saqueá-la. Não forte. Não rápido.
Pelo menos... Não a princípio.
A última vez que isso aconteceu com ela, foi um pesadelo. Isso
despedaçou sua alma. Partiu-a em cem pedacinhos e deixou-a imaginando
quem ela era em seu rastro. Ela ficou sentada lá com todos aqueles pequenos
cacos e tentando descobrir como se recompor novamente. Quem ela poderia
ser com todas as pequenas lascas e poeira faltando nas costuras e rachaduras.
Toda vez que ela pensava que tinha colado tudo de volta depois
daquela noite terrível, onde sua confiança em um homem que ela amava foi o
que causou sua queda, Simon foi e provou que ela estava errada.
Ela pensou que quando ela deixou o Marionetista tocá-la, ela foi curada.
Ela pensou que quando ela o deixou amarrá-la, ela estava curada.
Ela pensou que quando ela tinha matado Duncan, ela estava curada.
Mesmo agora, não era o ato em si que estava reescrevendo o dano que
havia sido feito a ela. Não era o fato de que cada impulso profundo nela
enviava prazer, não agonia, atravessando-a. Não era a felicidade que ela
alcançava uma e outra vez enquanto ele acelerava, trabalhando-se como um
pistão dentro de seu corpo ansioso.
Era a confiança.
Duncan havia tirado isso dela.
E Simon tinha devolvido.
Era por isso que ela o amava.
Não as risadas, não as piadas, não o sarcasmo e as palhaçadas bobas.
Não sua bela obra de arte, não o quão doce ele parecia quando estava
dormindo, e não a parte sombria de sua alma que se sacrificou por ela. Claro,
tudo isso fazia parte.
Mas se alguém perguntasse a ela novamente por que ela amava Simon
Waite, o terrível e temível Marionetista, não seria por nenhuma dessas
razões.
Era porque ele a ensinou a confiar em alguém com seu coração
novamente.
Quando ele desmoronou sobre ela, ofegando por ar, o corpo se
contraindo em sua liberação enquanto a inundava, a sensação do calor dentro
dela a enviou em espiral de felicidade mais uma vez. Mas desta vez, ela fez
isso com os dedos dele entrelaçados nos dela. As cordas se foram. Ele a estava
segurando perto, beijando seu ombro lentamente, de novo e de novo, em
adoração.
Quando ela conseguiu respirar o suficiente para falar, ela sussurrou:
— Eu te amo, Simon...
Ele sorriu contra seu ombro e se aninhou nela e murmurou algo em seu
cabelo que ela não pegou. Ela estava bem sem ouvir sua resposta sarcástica.
Ele levantou a cabeça.
— Eu preciso de um banho, um uísque e uma soneca. Provavelmente
nessa ordem.
Ela sorriu. — Eu vou primeiro.
Ele beijou sua bochecha. — Acho que isso é justo. — Ele desceu dela,
pegou suas roupas da cama e gemeu. — Senhor do inferno, acho que você me
fez distender um músculo.
Ela deitou de lado e se espreguiçou.
— Nem pense em reclamar, ou eu vou te mostrar que a reviravolta é
realmente um jogo limpo.
Os olhos de Simon se arregalaram um pouco. — Touché, madame. —
Ele estremeceu. — Embora você pareça gostar bastante disso, eu gostaria de
proteger meus quartos traseiros da invasão por pelo menos mais cem anos
antes de ficar entediado o suficiente para tentar.
— Nota para mim mesma – verificar com Simon em cem anos.
Ele engasgou dramaticamente. — Talvez duzentos.
Ela riu de seu melodrama. Ele realmente sempre soube como fazê-la rir.
Ela sabia que Simon não poderia amá-la de volta. E estava tudo bem.
Porque ela sabia que ele ainda era dela de qualquer maneira.
Naquela noite, no jantar, a conversa na tenda não parou quando eles
entraram. Cora ficaria grata por quaisquer pequenos favores. Era noite de
lasanha, e Simon não parava de reclamar sobre o quanto ele desprezava
ricota. Ela não sabia qual era o problema dele – ela adorava a coisa.
Quando ela se virou do bufê com sua bandeja de comida, ficou chocada
ao ver alguém em uma mesa saudando-a. Era Bertha. Ela estava sentada lá
com Bruce, Aaron, Donna e Rick. Com um sorriso fraco e incerto, ela
caminhou até eles.
Parecia o primeiro dia de aula de novo, e ela odiava. Mas ela se forçou a
sorrir.
— Oi, gente... Hum...
— Sente-se, estúpida. — Bertha balançou a cabeça. — Senhor, às vezes
você é muito tímida para o seu próprio bem. Senta. — Ela olhou para Simon.
— Quanto a você? Fique ou vá, eu não me importo.
Simon bufou e colocou na mesa e se sentou.
— Então eu quero ficar simplesmente para irritar você.
Balançando a cabeça, Cora se sentou ao lado dele.
— Seja legal. Estamos aqui há quinze segundos.
— Não me culpe! Ela começou. — Ele pegou seu garfo e faca e, olhando
para sua lasanha com total desprezo, começou a cortá-la em pedaços. —
Ugh... E é recheada com vegetais, nada menos. Nem mesmo qualquer carne
para dar uma textura real. — Ele torceu o nariz, em seguida, olhou para Cora
pensativo. — Você pode escolher jantares, agora? Se eu exigir ‘não mais a
noite da lasanha de vegetais’, na verdade, ‘não mais ricota em nada’, isso
pode se tornar uma lei?
— Primeiro, você não faz as regras. — Cora revirou os olhos. —
Segundo, não. Eu acho que não. Mestre de Cerimônias ainda tem a Chave, e
ele ainda está no comando.
— Bah. Outra razão para matá-lo. Queijo ricota. — Ele pegou sua taça
de vinho tinto e bebeu. — Como se eu precisasse de outra desculpa.
— Você é um maldito esquisito, Simon. — Ela suspirou e olhou para
todos os outros. — Desculpe.
Bruce, o Cuspidor de Fogo, a observava com cautela.
— O que diabos é ‘a chave?’
— Pense sobre isso desta forma — Cora começou, recolhendo um
pouco da lasanha em seu garfo. Ela gostava de lasanha de vegetais. — Eu sou
o tradutor. O navegador. Eu tenho o mapa, mas Turk ainda tem o controle do
mastro. Posso dizer a ele para onde ir o quanto quiser, mas ele não precisa me
ouvir. Até eu pegar o mastro – a Chave – não posso fazer nada para controlar
Harrow Faire.
— Oh. — Bruce esfregou a mão na cabeça. — Acho que entendi... E a
Chave existe?
— Sim. Não pode ser roubada. Tem que ser dada ou recebida na morte.
E ele não vai desistir. — Cora fez uma pausa para dar uma mordida na
comida. A lasanha ficava estranha quando estava fria. — Eu gostaria que ele
desistisse.
— Por que? Você não quer a votação?
Rick perguntou. Ele e Donna geralmente eram pessoas bem quietas.
Cora não podia dizer se havia julgamento em sua voz ou não.
— Não. Eu quero que haja uma votação, senão eu o teria matado
quando tive a chance. Eu gostaria que ele entregasse a Chave especificamente
para que eu não tivesse que matá-lo. — Ela suspirou. — Olha. Eu não quero
matar pessoas. Eu não quero. Mesmo depois do que ele fez conosco. — Ela
esfregou aquele ponto em sua clavícula que ainda doía quando pensava
nisso. Ela se perguntou quanto tempo levaria para a dor fantasma
desaparecer. — Eu particularmente não gosto da ideia de andar por aí
matando pessoas.
— Por que estou com você, mesmo?
Simon a olhou estreitamente.
Ela lhe deu uma cotovelada nas costelas.
A mesa riu. Era bom tê-los rindo de suas travessuras novamente,
mesmo que fosse com a situação atual em mente. Ela sorriu.
— Eu senti falta de vocês.
Isso pareceu pegá-los desprevenidos. Bertha estendeu a mão por cima
da mesa e pegou a mão dela.
— Nós também sentimos sua falta, meu bem. Todos nós tentamos fazer
com que Mestre de Cerimônias deixasse você sair. Mas... Você sabe como ele
pode ser.
Cora apertou sua mão.
— Sim. Eu sei.
— O que acontece se você ganhar, então? Nós votamos em você, e então
você mata Mestre de Cerimônias e se torna nossa líder?
Donna a observava com a mesma expressão cautelosa do marido.
Cora largou o garfo. Ela realmente não tinha pensado nisso. Ela pegou o
vinho tinto de Simon – ela só pegou uma lata de refrigerante – e bebeu. Isso
fez a mesa rir novamente, assim como o barulho ofendido de Simon.
— Okay. Está bem. Seja assim. — Simon pegou sua taça vazia e se
levantou, saindo para enchê-la novamente, resmungando o tempo todo.
Cora sorriu para ele antes de olhar de volta para Donna depois de um
momento.
— Eu quero liderar? Não. Não sei o que estou fazendo. Eu me formei em
fotografia e trabalhei em um banco. Eu joguei The Sims, eu sei o quão ruim eu
seria em ser um deus. — Ela balançou a cabeça ao ver suas expressões vazias
e lembrou que ela era a única em Harrow Faire que já havia tocado em um
videogame. — Desculpe. De qualquer forma. Não fiz nada digno desse tipo
de responsabilidade. Não há nenhuma razão para alguém ter que me ouvir.
Exceto pelo fato de que quero nos proteger... Quero proteger este lugar.
Quero que tenhamos a chance de viver do jeito que devemos viver. Não
presos aqui por este lago, nunca autorizados a sair, mas no mundo. E... — Ela
fez uma pausa enquanto reunia suas palavras. — Quero proteger o amor e a
amizade que encontramos juntos.
Rick e Donna se entreolharam.
Aaron deu um tapinha no ombro dela e sorriu largamente para ela.
— Você tem meu voto, então, boneca. Não é como se você já não
tivesse. Tentando matar todos nós sem a honra de nos dizer a verdade... Nos
tratando como crianças. Isso, eu não posso ficar parado. Nós não somos seus
filhos. Então. Digamos que você ganhou. Digamos que todos nós podemos ir
embora daqui. Para onde vamos?
Cora deu de ombros.
— O sul pode ser bom. Eu estava pensando em Florida Keys. Eu
gostaria de ir a uma praia. Eu não sei o que vocês pensam, no entanto. Eu
definitivamente estaria aberta a sugestões.
— Iríamos, tipo... À praia? — Bruce se inclinou para frente sobre os
cotovelos. — Tipo, deixar Harrow Faire? Ir nadar?
— Assim ela disse, sim. Devemos ser capazes de sair daqui por um
tempo. Explorar o mundo ao nosso redor. Quanto mais vamos, mais
desvanecemos. Lazarus disse que várias pessoas cometeram suicídio dessa
maneira no passado. Que as pessoas que queriam uma saída não precisavam
recorrer a... Você sabe... — Ela apontou o polegar no ar em direção a Simon,
que estava voltando. — Aquele cara.
— O que tem eu? Que eu sou alto e sexy? Legal da sua parte me
lembrar, mas eu já sei disso. — Simon voltou com duas taças de vinho vazias
e uma garrafa de vinho. Ele a colocou entre eles, em seguida, colocou uma
taça na frente dela. — Aqui.
— Você não vai servir para mim? — Ela torceu o nariz em fingida
pretensão. — Absurdo.
— Se você entrou nesse relacionamento pensando que eu sou um
cavalheiro, Srta. Glass, você deveria repensar suas escolhas.
Ele sorriu e intencionalmente se serviu de uma taça de vinho e colocou
a garrafa de volta na frente dela.
Ela riu e serviu-se de uma taça. — Idiota.
— Humhum. — Ele sorriu.
— A praia. — Bruce soltou um longo suspiro. — Cara. Eu quero ir à
praia. Pegar um pouco... Espere, podemos sair e, tipo, ir a shoppings, ou
clubes, e essas merdas?
Ela sorriu para ele. Ele parecia tão esperançoso.
— Sim.
Ele sorriu amplamente.
— Ah, porra, sim.
— Finalmente teríamos um lugar para gastar todo aquele maldito
dinheiro que estamos acumulando — Aaron interrompeu. — Nós
poderíamos ir... Comer em restaurantes? Ver um filme?
Cora assentiu. — Estaríamos livres. Mais ou menos.
— Amarrados juntos e perambular pelo mundo é melhor do que ficar
amarrados juntos e presos aqui. — Bertha ergueu sua bebida em um brinde a
todos eles. Parecia refrigerante, mas provavelmente tinha uma grande
quantidade de álcool. — Conte comigo.
Donna e Rick sussurraram um para o outro por um momento antes de
Rick falar.
— Sim. Nós também.
Cora sorriu para eles. Ela não sabia se eles ganhariam a votação – ela
não sabia se importava se eles ganhassem – mas era bom ter amigos. Era bom
não estar sozinha.
Eles facilmente passaram uma hora lá, muito depois de terminarem de
comer. Ela estava gostando da companhia. Em algum momento, ela acabou
encostada em Simon, o braço dele sobre ela, ouvindo Aaron e Bertha
contarem mais histórias. Aqueles dois realmente tinham as melhores histórias
loucas. Simon, por sua vez, até sorria e ria junto de vez em quando.
A garrafa de vinho pode ter sido parcialmente culpada por isso – ela
adoraria ver Simon bêbado – mas ela não reclamaria. Progresso era progresso,
e ele até parecia gostar um pouco de estar lá.
Não que alguém fosse corajoso o suficiente para apontar isso para ele.
Ela mesma incluída.
Eu quero que esta seja a minha vida. Quero que esta seja a minha Família. Eu
quero ganhar essa coisa.
— Simon! — Alguém gritou, rompendo as gargalhadas como um tijolo
atravessando uma vidraça. — Onde ela está?
Todos se viraram. Era Jack. O Aparelhador estava parado a cerca de dez
passos de distância, os punhos cerrados, olhando ferozmente para o
Marionetista.
— Onde está quem? — Simon arqueou uma sobrancelha. — E pare com
sua arrogância, sim? Esse é o trabalho de Aaron.
Cora se levantou, encarando Jack. Era a primeira vez que ela o via
desde... Bem, desde que ele ajudou a jogá-la no poço da torre. Desde que ele a
traiu e a sua amizade. Machucou. Machucou muito. Mas ao mesmo tempo...
Ela entendia.
Jack deu uma olhada nela, e seus olhos se arregalaram um pouco. Ele se
encolheu por um momento, arrependimento cruzando suas feições, antes que
o medo tomasse conta. Ele deu um passo para trás deles.
— Não estou aqui para lutar.
— Então eu sugiro que você vá embora. — Simon zombou. — Eu tenho
razões para ir atrás de você, Aparelhador... E acho que sei como começaria.
Cora colocou a mão no ombro de Simon, pedindo que ele esperasse.
Surpreendentemente, ele fez. Ela tentou assumir a conversa. Poderia terminar
com menos sangue no chão se ela o fizesse.
— Quem está desaparecida, Jack?
— Amanda. — A mandíbula de Aparelhador apertou. — Ela perdeu
duas apresentações hoje. Duas. Passei os últimos setenta e tantos anos
puxando cordas para ela. Nenhuma vez ela faltou – ela nunca perdeu uma
única apresentação. Então eu sei que você fez alguma coisa, Simon. Onde ela
está?
— Por que isso é minha culpa? — Simon suspirou e revirou os olhos. —
Cora é quem aqui pode dissolver as pessoas. Por que eu sou o suposto
culpado? Você perguntou a Mestre de Cerimônias onde está sua preciosa
dama?
— Ele não atende sua porta. Eu sei que ele está lá, mas ele não sai. — A
voz de Jack vacilou e chegou perto de rachar. Ele engoliu e balançou a cabeça.
— Algo aconteceu. Eu sei disso. Onde ela está, Simon? O que é que você fez?
— Talvez você devesse checar a torre. — Simon finalmente se levantou,
afastando a mão de Cora, e se moveu para ficar ao lado dela. — Onde você
nos abandonou ao nosso destino. Onde você ajudou aquele pedaço de pão
com larvas a nos torturar. Agora, eu, eu entendo — ele colocou a palma da
mão no peito — já que não há um pingo de amor perdido entre nós. Mas
Cora? — Ele emituiu um tsk e balançou a cabeça. — Que vergonha,
Aparelhador. Que vergonha. Como você ainda pode manter a cabeça erguida
quando traiu um amigo de uma maneira tão terrível? — Simon deu um passo
lento em direção a Jack.
O Aparelhador deu um passo para trás. Simon tinha pago com sucesso
seu blefe.
— Tinha que ser feito.
— Tinha? — Simon riu. — Oh sim. É claro. Me perdoe. Para salvar o
mundo de um monstro. Por favor. Ah... A propósito! Eu quase esqueci. — Ele
se virou para encarar os outros na mesa. — Jack sabia que Mestre de
Cerimônias planejava matar a todos nós. Que ele ia ficar feliz enquanto todos
vocês murchavam e morriam.
— Nós não deveríamos existir! — Jack gritou com raiva. — Nós somos
abominações. Devíamos ter morrido há muito tempo. Não é porque eu não
me importo com todo mundo – eu me importo – mas somos errados.
— Hum. E assim como Mestre de Cerimônias, você acha que sua
opinião vale mais do que a de todos os outros? — Simon tirou os óculos de
sol para limpá-los com o lenço. Ele olhou para Jack com aqueles olhos preto-
vermelho-branco dele. O Aparelhador recuou. Cora tinha esquecido como os
olhos de Simon eram inquietantes para a maioria das pessoas. Há muito
tempo ela se acostumou com eles. — E você me chama de mal.
Jack passou a mão no rosto.
— Onde está Amanda? O que você fez com ela?
— Você continua perguntando, e eu continuo respondendo. Eu não sei
onde ela está. Verifique minha tenda se você não acredita em mim. — Simon
deu de ombros com desdém.
— Eu vou encontrá-la. Eu vou descobrir o que você fez. Eu não vou
deixar você se safar com isso. — Jack saiu furioso.
— Eu... Eu preciso falar com ele. — Ela colocou a mão no braço de
Simon. — Sozinha.
— Você vai matá-lo? — Ele sorriu esperançoso. — Eu realmente espero
que sim. Posso assistir? Por favor? Por favorzinho? Foi tão excitante da última
vez.
Ela olhou para ele, e isso foi uma resposta suficiente.
Ele suspirou tristemente e caiu de volta no banco, derramando o vinho
restante na garrafa.
— Muito bem. Você acabou não sendo nada divertida.
Ela teria feito algum comentário sarcástico de volta para ele, mas ela
não queria que Jack desaparecesse. Virando-se, ela correu para alcançar o
Aparelhador.
— Jack, espere.
Ele girou, levantando os punhos para uma luta, os olhos arregalados
em pânico.
— Para trás!
Ela parou e olhou para trás. Não havia nada lá. Oh. Certo. Ele tem medo
de mim. Ela olhou de volta para ele e sentiu seus ombros caírem.
— Jack... Eu não vou te machucar.
— Onde está Amanda? O que vocês dois fizeram com ela?
— Eu não sei onde ela está. Eu realmente não sei. — Ela fez uma pausa.
— É estranho que eu esteja preocupada? Eu realmente sou péssima com essa
coisa de ser uma vilã, não é? Não estou aqui para te machucar.
Jack baixou as mãos.
— Eu deixei você para morrer. Ajudei Turk a amarrá-la e jogá-la
naquele lugar.
— Eu sei. Confie em mim, eu sei. — Ela se encolheu e esfregou a
clavícula. — Ainda posso sentir. Como se o metal ainda estivesse lá. Passei
três semanas naquela coisa – e pareceram trezentos anos. Eu me pergunto se
algum dia vai embora, ou se vai ser assim para sempre.
— Desculpe... Eu não queria te machucar. — Ele franziu a testa. — Eu
não sabia mais o que fazer. Este lugar é mau, Cora. Veja o que isso fez com
você. Isso mudou você – manipulou e corrompeu você. Você não pode ver
isso? Pense em quem você era quando chegou aqui. Como você estava com
medo. Tudo que ela tirou de você. — Ele deu um passo em direção a ela
cautelosamente. — Você nunca teria concordado em ajudar este lugar a
sobreviver.
— Quando cheguei aqui, estava sozinha, miserável e com dores
constantes. Minha vida era... Triste. Eu mal importava para as pessoas. Eu
tinha meus amigos e meu peixe. Mas eu não tinha nenhum propósito e
nenhum significado. Harrow Faire não estava errada quando me disse que eu
acabaria me matando. Quando eu realmente penso sobre isso – quando eu
realmente deixo isso afundar – eu posso ver o porquê.
— Simon não te ama.
— Eu sei. — Ela sorriu tristemente. — Ele não pode. Mais importante,
ele não quer. E tudo bem. Ele se importa comigo à sua maneira. Ele me ama
tanto quanto é capaz de amar qualquer pessoa ou qualquer coisa, exceto a si
mesmo. E isso é mais do que algumas pessoas neste mundo têm. Eu tenho
que estar feliz com isso. — Ela olhou para a torre de observação, com suas
luzes brancas brilhantes destacando-se contra o céu escuro. — Sua sombra
estava viva, você sabe.
— O quê?
— Sua sombra esquisita. — Ela mexeu os dedos e fez um sorriso
estúpido. — Sabe.
— Eu sei do que você está falando – mas – estava viva?
Jack franziu o nariz.
— Bem, não literalmente. Mas ele podia pensar, agir e... — Ela fechou
os olhos e tentou não chorar. Ela sentia falta daquela sombra. Ela sentia muita
falta dele. — Ele era uma parte de Simon. A parte dele que poderia amar. E
essa parte dele me amava.
— Amava? Pretérito? O que aconteceu?
— Ele... — Ela fez uma pausa. — Ele morreu. — Ela olhou de volta para
Jack. — Ele se sacrificou para me salvar daquela estátua. Eu não me libertei.
Ele se esgotou quando o fez. — Ela sorriu tristemente. — E ele fez isso porque
me amava. Eu mudei? Sim. Eu mudei. Perdi um pedaço de mim no momento
em que pus os pés aqui. Perdi um pedaço de mim quando Palhaço morreu e
transferiu o vínculo para mim. Perdi um pedaço de mim quando concordei
em me tornar o que quer que eu seja agora. — Ela gesticulou para si mesma.
— Vocês não são abominações, Jack. Mas eu sou.
— E é por isso que este lugar tem que ser parado, Cora. É por isso que
este lugar tem que ser destruído. Porque vai continuar tirando de todo
mundo. Assim como aconteceu com você.
— Não, Jack. Você não me deixou terminar. Perdi pedaços de mim
mesma. Mas me deram muito mais em troca.
— Tipo poder? — Jack grunhiu de desgosto.
— Eu não dou a mínima para o poder, Jack. — Ela deu um passo suave
em direção a ele, não querendo assustá-lo. — Eu não quero o poder. Eu vou
assumi-lo, eu acho, porque eu tenho que fazer. Mas só estou lutando para nos
manter vivos porque acho que valemos a pena. Mesmo ignorando Simon e o
que estamos acontecendo, olho para todos aqui – Rudy, Bertha, Aaron, Louis,
Elena, Bruce e todos vocês – e vejo beleza. Vejo pessoas felizes e que riem
juntas. Vejo como Rudy cuida de seus animais. Vejo como Donna e Rick se
olham com tanto amor que me dá vontade de chorar. Quem sou eu para
chamar essas pessoas de monstros? Quem sou eu para dizer que eles não
merecem viver? Até você, Jack... Você se importou comigo desde o momento
em que pus os pés neste lugar. Você cuidou de mim. Tentou me proteger.
Você é meu amigo.
Jack olhou para seus pés.
— Tenho certeza que perdi o direito de te chamar de amiga quando
ajudei Turk a amarrar você em correntes e jogá-la por cima de uma grade.
— Não. Você não perdeu. — Ela pegou a mão dele. Ele pulou,
assustado, e estremeceu como se esperasse por algo. Pelo quê? Certo. Eu posso
drenar almas. Eu esqueci disso. — Eu não vou te machucar, Jack. Eu prometo.
— Nós roubamos a alma de outras pessoas para viver.
Cora sorriu.
— Não almas. As almas são baratas. — Quando Jack olhou para cima,
confuso, ela balançou a cabeça. — Deixa para lá. Eu sei o que você está
dizendo. E sim... Nós fazemos isso. Mas poderíamos estar levando muito
menos do que fazemos agora. Estamos destinados a sobreviver de aparas de
cabelo, não dos dedos das mãos e dos pés. Todo mundo se alimenta de todo
mundo na vida. Eles tiram de todos ao seu redor e retribuem quando
querem. Somos realmente melhores ou piores do que isso?
A mandíbula de Jack se contraiu, mas ele permaneceu em silêncio.
Ela pegou as mãos dele nas suas.
— Quando você estava naquelas instituições psiquiátricas, aposto que
você tinha muitos médicos e enfermeiras que gostavam do que faziam com
você um pouco demais. Eles tiraram de você porque pensaram que era para
isso que você estava lá. Que você merecia. Mais importante, eles fizeram isso
porque podiam. O mundo inteiro está cheio de pessoas assim. Subindo nos
outros para chegar à frente. Empurrando as pessoas mais para baixo na
escada para que elas possam levantar a cabeça um pouco mais.
— Nós somos monstros. Não importa se outras pessoas também são
monstros.
— Talvez. — Ela se aproximou um pouco e apertou as mãos dele. —
Talvez você esteja certo e nós não merecemos existir. Mas eu vi... Olhei bem
no centro de Harrow Faire. Eu pulei em um buraco de nada, e posso te dizer
que ela se importa conosco. Realmente, honestamente se importa. Quer que
sejamos felizes. Ela quer ver o mundo. Ela quer ser humana. Tem boas
intenções. E isso é mais do que posso dizer da maioria das pessoas neste
mundo.
— Isso é apenas o que é mostrado a você. E se estiver mentindo?
Cora deu de ombros.
— Não sei. Mas se exigíssemos provas concretas dos sentimentos de
todos o tempo todo, estaríamos sempre sozinhos.
Jack afastou as mãos dela. — Não importa se um monstro é menos
maligno que outro. Ainda é mau. E ainda deve ser destruído. Só porque você
acha que algumas pessoas são piores não significa que estamos bem. Dizer
que este mundo é uma fossa de crueldade não torna o que fazemos certo. —
Ele balançou a cabeça e deu um passo para trás. — E se você não pode ver
isso, então... Então não há esperança para você. Você já foi muito longe.
— E a sua mãe? E quanto a Maggie? A Adivinha não merece viver? O
que ela tem a dizer sobre isso?
Jack estremeceu como se ela o tivesse esbofeteado.
— Ela é neutra. Ela é sempre neutra. E ela... — Jack suspirou
pesadamente. — Ela é minha mãe. E eu a amo. Mas eu não vim aqui por
causa disso. Eu vim aqui porque não tinha para onde ir. Porque este lugar
tirou tudo de mim. Já arruinou minha vida, e achei melhor deixar que me
levasse do que viver uma mentira. Mas... Temos que ser maiores do que as
pessoas que amamos. Como Turk e Amanda. Eles estão dispostos a se
sacrificar para derrotar a criatura.
— Estou dizendo que acho que a beleza que podemos criar excede em
muito o mal que fazemos. Estou dizendo que, se pudermos inspirar outras
pessoas que vêm ver nossas apresentações para criar sua própria arte, ou
aspirar a ser algo mais, então devolvemos mais do que recebemos.
Ela honestamente não sabia de onde vinha metade desse discurso.
Não soava como ela.
Ela não discordava, mas... Não eram coisas que ela normalmente falava.
Lazarus?
— O quê?
Você está me possuindo?
— Não posso possuir você, querida. É como uma lasanha. Depois de juntar
todos os ingredientes, você não pode obter um sem um pouco de todo o resto. Somos
um e o mesmo. — A voz fez uma pausa. — O que há com o ódio de Simon por
ricota, afinal? Eu gosto de ricota.
Ela suspirou e fechou os olhos.
— Eu mudei. Você tem razão. — Ela passou as mãos pelos cabelos,
penteando os fios. — E correndo o risco de soar pedante, é o que é. Eu vou
lutar por nós. Incluindo você.
— O que você quer dizer? — Jack a observou confuso. — Incluindo eu?
— Se a votação vier e eu ganhar, e eu assumir, não vou matar você,
Amanda, ou qualquer outra pessoa que vote contra mim. Não, a menos que
vocês queiram ser libertados.
A expressão perplexa de Jack se transformou em surpresa brevemente
antes de retornar novamente.
— Por que? Nós... Teríamos ficado contra você.
— Se eu não tolerasse outras opiniões, seria tão ruim quanto Turk. E
isso não é algo que eu estou interessada em me tornar. — Ela se virou para ir
embora. — Não tenho interesse em ser uma tirana, Jack. Nem agora, nem
nunca. Eu só quero ser uma Família. E as Famílias às vezes brigam. Boa noite,
Jack. Vou buscar Simon antes que ele mate Aaron de tédio.
Houve uma longa pausa atrás dela antes de Jack responder.
— Boa noite, Cora.
Os dias passaram.
Na maioria das vezes, era como se nada estivesse acontecendo. Que seu
mundo inteiro não estava prestes a mudar... Ou acabar. Alguns membros da
Família lhe lançaram olhares estranhos. Mas quando ficou claro que ela não
estava prestes a queimar o lugar e gargalhar sadicamente sobre seus
cadáveres – como Simon estava pedindo para ela fazer – eles se acalmaram
um pouco.
Amanhã era o “grande dia”. Ela resistiu ao impulso de perguntar a
todos como votariam. Não era educado. Ela saberia em breve.
E ninguém ainda tinha visto Amanda. Cora não tinha ideia do que
poderia ter acontecido com a Aerialista. Turk e Jack praticamente se
esconderam. Isso foi bom para ela.
Apesar de tudo o que havia acontecido e estava prestes a acontecer, o
“show tem que continuar”. E continuar, ele fez. Os clientes se reuniram, os
ingressos foram vendidos e uma comida terrível foi comida.
E ela se apresentou.
Era tão bizarro para ela que ela iria subir naquele palco e fazer uma
rotina com o destino de todas as suas vidas pairando sobre sua cabeça. Ela
não tinha certeza se poderia continuar com isso. Mas uma vez que ela ficava
ali no centro daquela espiral e ouvia a multidão suspirar enquanto ela se
contorcia em formas estranhas, ela estava feliz por ter feito isso.
Deu-lhe paz. Isso deu a ela algum tipo de base. Ouvir seus aplausos e
sons de admiração iluminou seu coração.
Esta é a minha casa. Esta é quem eu sou.
Isto é o que eu estava destinada a me tornar.
Foi depois de uma de suas apresentações que ela decidiu que queria ir
na roda gigante. Não andar. Escalar. Ela queria uma vista, e o último andar da
torre exigia a chave para destrancá-la. Além disso, entrar na torre não era
algo que ela queria fazer tão cedo.
Depois de trocar de roupa, ela puxou o cabelo para cima em um rabo de
cavalo, vestiu o casaco e saiu.
Simon tinha duas apresentações consecutivas naquela tarde, então ele
estava ocupado. Ela não se importava de ficar sozinha. Sozinha como se
podia estar, quando se andava com uma criatura dentro da cabeça tão velha
quanto o próprio tempo. Ela tentou não insistir nisso.
No caminho, ela parou em uma tenda de comida e pegou um grande
recipiente de suco de lima. Ela riu. Para mim? Você não deveria.
— De nada. Não sei do que se trata o alarde.
É melhor que limonada. Desculpe. Ela tomou um gole da bebida pelo
canudo enquanto se dirigia para a roda-gigante. Ela deu a volta por trás, do
outro lado da fila de pessoas que esperavam para andar nela, e passou por
alguns dos pseudo-funcionários que administravam o parque. Eles eram
todos... Fantasmas. Apenas pedaços de pessoas, coladas pela Faire. Eles não
eram reais.
E todos eles agora sabiam sair de seu caminho ou abrir portas para ela.
Era estranho pensar que eles eram um pouco como seu exército. A ideia a fez
rir.
— O que é engraçado?
Ela não se importava em falar com a voz em voz alta, já que não havia
ninguém por perto para ouvi-la. — Tema a mim e meu exército de danação. —
Ela riu. — Tema o circo assustador da morte e meus substitutos desmiolados
para funcionários de salário mínimo!
— Bem, isso é apenas rude. — Lazarus apareceu ao lado dela. — Eu
pagaria a eles pelo menos um centavo acima do salário mínimo.
Cora riu novamente enquanto olhava para a escada que levava ao
mecanismo principal no centro da roda gigante.
— Que generoso.
— O quê? Um centavo é generoso. Não é?
— A inflação é uma vadia, querido. — Ela estendeu sua limonada. —
Segure isso.
— Suponho que se eu tivesse que pagar a alguém, eu poderia me
importar. — Ele pegou, deu de ombros e, abrindo a tampa de plástico, tomou
um gole. — Nada mal.
Cora virou-se para a escada e começou a subir. Ela costumava ter medo
de cair. Mas não mais. Agora ela sabia como era cair e que a aterrissagem era
sempre pior. Também ajudou que ela soubesse que se ela escorregasse e
respingasse por todo o chão, ela se levantaria uma ou duas horas depois.
Isso tornou a coisa toda muito menos estressante quando ela fez seu
caminho para o topo. Havia um pequeno patamar ali, destinado a quem
estivesse trabalhando na manutenção do grande rolamento no centro. Os dois
motores estavam mais próximos do fundo, presos ao aro de acionamento da
roda. Isso significava que não havia ruídos altos, exceto o zumbido silencioso
do rolamento girando. Ela se sentou na beirada do patamar, apoiando os
braços no primeiro degrau do corrimão, e olhou para Harrow Faire. Ela
estava a cerca de trinta metros de altura e quase alinhada com o deque
superior da torre de observação do outro lado do parque.
Ela podia ver tudo daqui de cima. Os vagões, as tendas, os brinquedos...
Tudo. O som da música e os gritos e berros da multidão a fizeram sorrir. Era
bonito.
Alguém cutucou seu cotovelo, e ela pegou seu suco de lima sem olhar.
Lazarus a devolveu. Ela tomou um gole pelo canudo.
— Amanhã é o grande dia.
— Sim. — Ele fez uma pausa. — É estranho que eu esteja um pouco
nervoso.
— Você não sabe o que todo mundo está pensando? E o que eles vão
fazer amanhã?
— Não. Se eu soubesse o que as pessoas estão pensando, minha
existência seria muito mais fácil. — Ele apoiou os braços no parapeito
também e apoiou o queixo neles. — Vocês humanos ainda são tão estranhos
para mim. Por mais que tente, o ditado ‘você é o que você come’ não parece
ter nenhum mérito.
Ela riu, e eles mergulharam em um silêncio amigável por um longo
momento.
— Eu estou assustada. Eu não quero perder. E eu... Também não quero
matar Turk. Quando ele não está me jogando por cima de uma grade para a
minha destruição, eu meio que gosto do grande homem.
Laz estendeu a mão e colocou um braço em volta dela, abraçando-a ao
seu lado.
— Aconteça o que acontecer, você me terá.
— E Simon.
Ele sorriu tristemente. Havia algo estranho em seus olhos, mas
desapareceu um segundo depois. Ele se inclinou e beijou o topo de sua
cabeça como um pai faria com sua filha.
— Você não estará sozinha.

Simon cantarolou para si mesmo quando finalmente – finalmente –


terminou a boneca. Ele tinha começado o que parecia ser anos atrás. Antes,
foi apressado. Desta vez, ele teve uma semana para terminar de polir e pintar.
Tinha que ser perfeita.
Ele a vestiu com uma das fantasias de Cora. Pintou os lábios de
porcelana do mesmo tom de carmesim que ela preferia quando se
apresentava. Ela realmente era uma obra de arte, e agora sua boneca também
era.
Amanhã seria um grande dia.
Um grande, muito emocionante, muito importante dia. Seria um
momento importante que mudaria tudo para sempre. E como qualquer noite
de estreia de uma nova apresentação, ele estava estressado com os detalhes.
Porque cada detalhe tinha que ser impecável.
O som de alguém se aproximando o fez virar a cabeça. Mas foi apenas a
mudança de sua última criação. Ela ainda estava aprendendo as pernas e
estava um pouco desengonçada e desajeitada. Todos eram quando
começaram.
Ah, Amanda. Tão ousada e corajosa por fora... Tão vazia por dentro. Sempre o
surpreendia quão pouca substância havia para algumas pessoas no mundo.
Amanda foi uma daquelas que brilhou como um diamante na areia, apenas
para ser revelado como um pedaço de vidro quebrado quando levado na
palma da mão.
Rasgá-la involuntariamente de seu corpo e enfiá-la em sua boneca tinha
causado sérios danos, ele tinha que admitir. Quase não restava nada da ex-
Aerialista queimando dentro daquele pedaço de madeira pintada. Uma pena,
mas provavelmente era melhor que Amanda não gritasse constantemente
com ele, lamentando a injustiça de sua situação atual.
Porque ela não se lembrava de quem ela era. Nem um pingo. Nem um
único maldito suspiro de sua memória foi deixado.
Mas como foi delicioso vê-la olhar para Turk com olhos vidrados e cegos
e sussurrar:
— Desculpe, senhor, eu o conheço?
Essa foi a vingança mais doce que Simon poderia ter imaginado. Ele
pensou que talvez Mestre de Cerimônias tivesse morrido naquele momento.
Ele caiu de joelhos e chorou aos pés da boneca. Ele implorou a ela por perdão.
E ainda assim, ela só podia professar sua ignorância.
Restava apenas uma pessoa sobre quem sua vingança precisava ser
decretada. Uma pessoa que merecia pagar pelo que fizeram com ele. Seu
plano entraria em vigor muito em breve.
— Pai? — A marionete sussurrou, tirando-o de seus pensamentos
felizes.
— Sim, querida?
— Estou me sentindo sozinha...
— Não se preocupe, querida. — Simon sorriu lentamente. — Você não
vai ficar sozinha por muito tempo.
Era o grande dia. Cora se escondeu em seu vagão. Ela honestamente
não via Simon desde o café da manhã. Ela estava muito nervosa. Harrow
Faire fechou cedo, e a reunião da Família foi marcada para a grande tenda ao
pôr do sol.
O meio-dia provavelmente era um pouco demais. Ela alimentou seus
peixes, sorrindo para eles enquanto nadavam, completamente alheios ao que
estava acontecendo. Talvez fosse por isso que ela gostava de peixe. Eles
apenas seguiam suas alegres vidinhas aquáticas sem nenhuma pista do que
estava acontecendo no mundo ao seu redor.
Ela se vestiu. Ela não fez nada extravagante, mas ela tentou parecer
respeitável. Ela também tentou usar roupas com as quais pudesse lutar. E isso
poderia não ser muito desconfortável se elas ficassem cobertas de sangue.
Não havia como dizer como seria a noite.
Ela pulou quando houve uma batida na porta, e ela riu de sua própria
reação boba. Ela atendeu e sorriu para Simon, vestido com suas melhores
roupas, parado no topo da escada.
— Ei, alto e sexy.
Ele sorriu e se inclinou para beijá-la. — É realmente isso que você vai
usar? Venha, agora, Cora, querida. Você está prestes a subir ao trono! — Ele
passou por ela, deixando-a fechar a porta atrás dele enquanto ele
imediatamente foi para o armário dela e começou a fuçar nele. — Realmente,
você não possui nada mais dramático do que isso?
— Eu não quero entrar lá parecendo alguma louca saída de um
programa de desenho animado de sábado de manhã como algumas pessoas.
Ela nunca se cansaria de provocá-lo. Ela adorava como ele parecia,
mesmo que ele fosse exagerado o tempo todo.
— Estou fantástico. Você sabe disso, eu sei disso, todo mundo sabe
disso. — Ele puxou um casaco na altura do joelho de algum lugar na parte de
trás do armário dela. Era preto, com largas listras azuis escuras. Ela nunca
tinha visto isso antes. — Ah-rá! Isso vai ter que servir, suponho. Também não
devemos nos atrasar. Aqui. Ponha isto. — Ele empurrou para ela.
— Mas...
— Cora.
Ela conhecia aquele tom de voz. Ela não ia ganhar esta. E não valia a
pena discutir sobre um maldito casaco. Ela o pegou, suspirou e se trocou. Era
confortável, mas ela provavelmente parecia ridícula.
— Melhor?
— Um pouco. Vai ter que servir. Anda, anda. — Ele saiu do vagão,
sorrindo de orelha a orelha. — Você não está tão animada?
— Não. Estou com medo, nervosa e sinto que vou vomitar.
— Bah! — Ele caminhou ao lado dela, claramente exultante. Ele parecia
uma criança no Natal. — Hoje à noite, vamos ser libertados. Esta noite,
começamos um novo capítulo. Você, como a Rainha de Harrow Faire, e eu,
seu Rei.
Ela revirou os olhos.
— Poderíamos muito bem perder a votação, Simon.
— Nós não vamos. E não importa se perdermos. Eu vou convencê-la a
matar Mestre de Cerimônias de qualquer maneira. — Ele sorriu para ela. —
Nós vamos ganhar. Você vai ver. Confie em mim.
Não valia a pena discutir com ele sobre algo que poderia não acontecer.
Se eles perdessem a votação, ele poderia reclamar com ela o quanto quisesse
sobre matar Mestre de Cerimônias. Ele ficaria desapontado, zangado, e
poderia deixá-la. Mas ela iria manter sua palavra, de uma forma ou de outra.
Quer Simon gostasse ou não.
Simon assobiou alegremente até a tenda. Ela não poderia ter sentido
mais o oposto. Cada passo em direção à tenda a deixava mais nervosa. Cada
passo a deixava um pouco mais assustada. Ela odiava coisas assim. Ela sentiu
que ia fazer um teste. Que este era seu exame final na aula que ela precisava
para se formar, e ela não tinha estudado.
Harrow Faire estava linda no sol poente, mesmo que fosse um pouco
assustador com todos os brinquedos desligados e o parque vazio.
Normalmente, eles ficavam abertos até tarde da noite, mas todos
concordaram que seria melhor não ter clientes correndo sob os pés em uma
noite em que tudo poderia mudar.
Quando poderia haver uma guerra.
Ela realmente, realmente esperava que não houvesse.
Ah, ela queria ganhar. Mas ela queria que fosse tranquilo. Ela nunca
tinha estado em uma briga antes, e mesmo que ela tivesse poderes de sombra
estranhos, ela tinha certeza que levaria apenas um soco de Mestre de
Cerimônias para colocá-la no chão.
Ei. Laz. Todo esse poder vem com o efeito colateral de ser um artista marcial de
chutar traseiros?
— Não.
Droga. No que diabos você é bom, então?
— Vou registrar sua reclamação com a gerência.
Ela riu.
— O quê? — Simon olhou para ela com uma sobrancelha levantada.
— Nada.
— Hum. A voz na sua cabeça? — Ele a cutucou na têmpora. Ela deu um
tapa na mão dele, e ele sorriu em vitória. — É bom ser a pessoa sã pelo menos
uma vez. Mais sã, de qualquer maneira.
— Eu não sou louca.
— Humhum. — Ele se inclinou em direção a ela. — Claro, você não é.
Está tudo bem. Eu gosto de louco. É sexy. — Ele beijou sua têmpora.
Ela sentiu seu rosto esquentar e o enxotou para longe dela um passo.
— Para com isso.
— Você vai parar de fingir que não gosta da minha malícia? — Ele
passou o braço em volta da cintura dela enquanto caminhavam juntos. — Ou
é parte da diversão para você?
— Parte da diversão, eu acho. — Eles estavam chegando perto da
entrada da grande tenda. Ela olhou para o tecido listrado arqueado e os fios
com todas as bandeiras e as lâmpadas, começando a ser visível no pôr do sol.
Ela parou e se virou para encará-lo.
— Simon?
— Sim, madame?
Ela correu os dedos ao longo das lapelas de seu terno. Ela se pegou
examinando a gravata dele.
— Eu te amo. Eu sei que você não pode dizer isso de volta para mim.
Eu nunca espero que você faça isso. Eu queria te dizer que... Está tudo bem.
Que estou feliz assim. Que se isso é tudo o que você sempre será para mim, se
isso é tudo o que poderíamos ter juntos, ainda vale mais do que qualquer
coisa que já tive antes.
Ele curvou um dedo sob o queixo dela. A luz do sol brilhou em seus
óculos de sol incompatíveis.
— Você poderia ser feliz pelo resto da eternidade estando com um
homem que não te ama – nem deseja te amar? Mesmo quando você lamenta a
perda da parte de mim que disse e poderia dizer essas palavras para você?
— Eu sei que sou uma idiota. Mas sim. Eu penso que sim.
— Por que?
— Porque minha vida com parte de Simon Waite é melhor do que
minha vida sem nada dele.
Ele sorriu para ela, desprovido de sua mania habitual. Era uma
expressão terna. Quente e doce. Ele se inclinou e a beijou. Quando ele se
separou, ele descansou sua testa contra a dela.
— Eu suponho que eu deveria estar feliz por você não estar usando
aquele seu batom vermelho — ele murmurou, um sorriso diabólico
reaparecendo em seu rosto.
Ela lhe deu um tapa na lateral. Tanto para um momento romântico.
— Vamos, estúpido.
Quando ela foi sair, ele pegou seu pulso e a puxou de volta para ele. Ele
a beijou novamente. Desta vez foi como se algo tivesse mudado. Parecia
como ele a beijou no patamar da torre de observação, quando eles pensaram
que nunca mais se veriam.
Como se ele estivesse tentando dizer algo com um gesto em vez de com
palavras.
Como se ele estivesse sussurrando algo para ela enquanto embalava sua
cabeça em sua mão. Quando ele finalmente se separou dela, ela estava sem
fôlego, e ela podia ver que seus olhos estavam fechados atrás dos óculos. Eles
ficaram em silêncio por um longo momento.
Finalmente, Simon o quebrou.
— Pensando bem, estou bastante triste por você não estar usando seu
batom. Oh! Ouvi falar de Aaron de um jogo que envolve mulheres e batom
multicolorido. Algo sobre ver o quanto eles conseguem grudar num
cavalheiro...
Ela lhe deu um tapa forte no peito e se virou para a tenda.
— Eu repito. Vamos, estúpido.
Ele gargalhou atrás dela e a seguiu para dentro.
Não havia como voltar atrás.
Não havia fuga.
Enquanto seus olhos se ajustavam ao interior da tenda, ela viu uma
dúzia de pessoas reunidas na areia do palco central. E ela conhecia todos eles.
Eles eram Família.
E ali, o mais alto do grupo, estava Mestre de Cerimônias.
— Olá, Cora.
— Turk.
Ela desceu as escadas em direção ao ringue e atravessou o portão aberto
na areia.
Mestre de Cerimônias estava lá em seus trajes completos. Ele tinha um
chicote em seu quadril, mas não estava em sua mão, pelo menos. Ele a
observou, feições severas, mas não zangadas.
Cora lutou contra o desejo de se virar e encontrar um lugar para se
esconder.
Não. Ela terminou com tudo isso.
Este lugar era sua casa, também.
Ela ergueu o queixo. Endireitou os ombros. E tentou parecer mais
corajosa do que se sentia.
— Vamos começar?
Cora olhou ao redor do círculo de areia. Deveria haver vinte e um deles
lá. Bem, fisicamente presentes e contabilizados, de qualquer forma. Ela ainda
não tinha certeza se Harrow Faire contava como um indivíduo, mesmo que
tivesse um vagão e estivesse se esforçando muito.
Vinte e um.
Mas havia apenas dezessete.
Palhaço estava morto. Assim como Ludwig. Mas isso deveria tê-los
deixado apenas com dezenove. Dois estavam faltando. Amanda... E Jack.
— Simon...? — Ela se virou lentamente para o Marionetista. — Onde
estão Jack e Amanda? O que você fez com eles?
Ele apontou para si mesmo.
— Quem, eu? Por que! Estou insultado. — Ele bufou e cruzou os braços.
— Se Jack não quer mostrar seu rosto e trair a Família que ele diz amar, não é
minha culpa. E por que me importunar com perguntas sobre Amanda?
Pergunte ao seu grande e gordo amante. — Ele apontou para Turk. — Ele
deve saber o que aconteceu com ela. Ele está no comando, não está?
Mestre de Cerimônias suspirou pesadamente.
— Devemos continuar sem eles. Seus votos estarão do meu lado. Você
sabe como ambos se sentiam sobre o assunto. Você contesta isso?
— Não. Eu não contesto. — Cora observou o homem enorme com
curiosidade por um momento. — Você não está preocupado com eles?
— Eu estou. Estou doente de preocupação. Não durmo desde que
Amanda se foi. — Ele fez uma careta. — E eu não vou parar de procurá-los
quando toda essa bagunça for colocada para trás. Mas tenho um dever a
cumprir. Um dever para o bem do mundo. Eu vou atravessar isso.
— Eu acho. — Cora deu de ombros e suspirou. — Se eu vencer, Turk...
Eu os encontrarei. Vou me certificar de que eles estão seguros.
— Você vai matá-los, assim como planeja me matar.
Turk caminhou até a borda do ringue e pegou um cabo de vassoura. Ele
desenhou uma longa linha na areia entre eles. Era lindamente literal e clichê,
ela tinha que admitir. Os circos eram cheios de clichês, no entanto, e ela não
conseguia pensar em uma maneira melhor de fazer isso.
Quando ele terminou, Cora respondeu.
— Não. Eu não vou. Não vou matar pessoas só porque estão do seu
lado. Estou fazendo isso para proteger a Família. Não governar. Você
realmente acha que eu sou um monstro assim?
— Sim. Não por sua causa, Cora. Mas por causa do que você deixou
entrar em seu coração.
Ele olhou para Simon, mas ela sabia que seu significado era duplo.
— Por que todo mundo sempre pega no meu pé? — Simon murmurou
ao lado dela. — Nunca falha. Eu poderia muito bem me amarrar e deixar
todos vocês me usarem como uma piñata.
Mantendo a voz baixa para que os outros não ouvissem, ela deu um
sorriso para ele.
— Não me ameace com diversão.
— Perverso. — Ele sorriu e limpou a garganta. — Agora provavelmente
não é a hora.
Ela se virou para encarar os outros que estavam ali, observando-os.
— Façam o que vocês acham certo. Se isso significa ficar do lado de
Turk, que assim seja. Se eu vencer e vocês ficarem daquele lado da areia,
vocês ainda são minha Família. Se vocês querem ir, se vocês querem paz,
então vocês a terão. Isso é seu direito. Mas se vocês quiserem ficar, quando
tudo isso acabar, vocês ainda serão amados. E este lugar ainda é sua casa.
— E se eu ganhar, Cora? Você planeja manter sua promessa de ficar de
braços cruzados enquanto eu deixo a fera morrer de fome?
Cora respondeu “sim” exatamente ao mesmo tempo em que Simon
respondeu “não”.
Ela lhe deu uma cotovelada forte nas costelas.
Ele se dobrou, colocando uma mão em seu estômago, e gemeu de dor
legítima.
— Você está ciente de que bate muito mais forte agora?
— Sim. Eu estou. — Ela lançou-lhe outro olhar, silenciosamente
ameaçando pior, antes de voltar seu foco para Mestre de Cerimônias. — Eu te
dei minha palavra. E a sua?
— Sou um homem de dever e honra, Cora. — Ele puxou seu paletó,
endireitando-o. — E eu ficarei orgulhoso de levar isso para o meu túmulo.
Cora assentiu.
— Então, vamos continuar com isso.
O primeiro a dar um passo à frente foi Rudy. Ele cuspiu na areia do
lado de Turk e se moveu para ficar à direita de Cora. Ela sorriu para ele, e ele
sorriu de volta. Então Bertha ficou do lado dela também.
Maggie, a Adivinha, ficou na arquibancada, sorrindo tristemente. Ela
não votaria. Nem Cora pediria a ela.
Lauren e Phil, os Gêmeos siameses, olharam um para o outro por um
momento, depois para ela.
— Cora? — Lauren perguntou.
— Nós... — Phil continuou.
— ...contamos como um voto... — Suas sentenças saltavam para frente e
para trás entre eles.
— ...ou dois? — Phil terminou.
Cora sorriu levemente para eles.
— Dois.
Eles sorriram com uma expressão que era ao mesmo tempo alegre e
triste. Como amigos em um funeral, felizes por se verem, mas tristes pela
ocasião. Eles caminharam para ficar ao lado de Turk.
— Esperamos... — Phil começou.
— ...que você entenda. — Lauren terminou.
Cora assentiu e manteve o mesmo sorriso fraco.
— Eu entendo. Claro que eu entendo.
Agora que os Gêmeos haviam quebrado o selo, mais algumas pessoas
se moveram para ficar ao lado de Turk. Pierre, o Malabarista, e Jim, o
Mecânico. Turk agora estava vencendo Cora, quatro a cinco.
Louis e Elena deram um passo à frente. O Mágico virou-se para a
Costureira e a beijou. Eles se abraçaram por um longo momento. Quando
Louis se separou, ele sorriu gentilmente para sua esposa e sussurrou
claramente as palavras:
— Está tudo bem. Eu te amo.
Elena enxugou as lágrimas e assentiu fracamente. Louis se moveu para
ficar com Cora... E Elena ficou com Turk.
Elena estava fungando alto, enxugando as lágrimas. Cora não ficou
surpresa. A ruiva era um amor. Ela não faria mal a uma mosca. Cora assumiu
que a única razão pela qual Elena estava feliz na Faire era por causa de Louis.
Maksim silenciosamente juntou-se a Turk, e Mestre de Cerimônias
estava ganhando com sete contra seus cinco. Restou Bruce, Donna, Rick,
Anastasia e Aaron.
Sem muito barulho, Donna e Rick se juntaram a ela. Ela sorriu para eles
e estendeu a mão para pegar a mão de Donna. A pequena mulher de cabelos
escuros se aproximou e a abraçou com força o suficiente para que ela sentisse
sua espinha quebrar. A Trapezista era terrivelmente forte.
Bruce deu um passo à frente. Ele passou as mãos sobre a cabeça.
— Ah, merda. — Ele caminhou até o lado de Cora. — Quem estou
enganando? Vamos dar o fora daqui, garota.
Cora teve que rir. Ela estava ganhando por um, com Anastasia e Aaron
saindo. Mas com os votos de Amanda e Jack automaticamente do lado de
Turk, isso ainda a deixava em apuros. Ela precisava tanto da Diva quanto do
Puxador para ficar do lado dela, ou então seria tão bom quanto um empate.
E um empate provavelmente significava uma briga.
E ela realmente, realmente, realmente não queria entrar em uma briga
com um homem que tinha estado em guerras reais.
Aaron deu um passo à frente, desatarraxou a tampa de sua garrafa e
tomou um gole forte. Ele recolocou a tampa e a enfiou no bolso do casaco. Ele
olhou para Turk, e ela viu como seus ombros caíram.
— Trabalhamos juntos há muito tempo, chefe. Você e eu temos sido
bons amigos.
— Nós temos. — A expressão de Mestre de Cerimônias não vacilou,
embora sua voz fosse mais suave. — Foram bons anos.
Aaron assentiu e ofegou. — Foi uma honra, chefe. Uma verdadeira
honra. Mas... Mas eu sinto muito. Isso não está certo. Mentir para nós assim
não foi certo. Não somos seus soldados. Nós somos sua família.
E com isso, Aaron caminhou para o lado de Cora. Cora o abraçou, e ele
enterrou a cabeça em seu ombro por um momento, fungou, e então caminhou
em direção a parte de trás do pequeno grupo, enxugando os olhos. Ele
chutou com raiva na areia.
Seu coração se partiu por ele.
E só restou a Diva. De pé ali, resplandecente em seu melhor vestido. Ela
era Hedy Lamar, Lana Turner e Elizabeth Taylor, todas juntas. Ela estava
fumando um cigarro colocado na ponta de um daqueles suportes de cigarros
compridos. Ela segurou o momento por um longo tempo, antes de levantar o
queixo e desfilar com toda a elegância do mundo... Para o lado de Cora.
Anastasia olhou para Cora suavemente.
— Por que parece tão surpresa, querida? Você acha que eu quero
morrer? Por favor. — Ela encolheu um ombro coberto por uma estola de pele.
— Eu só gosto de ser dramática.
Cora colocou a palma da mão sobre os olhos.
— Bem, homem gordo — Simon cantarolou e colocou os braços sobre
os ombros de Cora, de pé atrás dela. — Parece que você perdeu. Mesmo se
contarmos com Amanda e Jack a seu favor, você está perdendo por um.
Mestre de Cerimônias respirou fundo e soltou com um suspiro.
— Assim parece.
Cora não podia acreditar. Ela sorriu. Ela tinha vencido? Sério? Ela quase
não acreditou. Mas a realidade do que estava prestes a seguir drenou o
prazer de sua vitória tão rapidamente quanto veio.
Isso não era ganhar uma partida de beisebol. Esta não era uma liga de
boliche.
Isso era assassinato.
Ela estava prestes a puxar a corda da vida de alguém. Seu estômago
revirou.
— Você quer ir a algum lugar privado, Turk?
Mestre de Cerimônias ficou quieto por um longo tempo.
— Sim. Não vamos fazer isso aqui.
Elena começou a chorar e correu sobre a linha na areia para Louis, que a
pegou em seus braços e a segurou, calando-a em silêncio. — Não quero que
ninguém morra — lamentou a Costureira. — Só não quero que mais ninguém
morra.
— Eu também não. — Cora suspirou. — Mas não tem outro jeito.
Ela se afastou da multidão. Simon a seguiu, seu ansioso cão de guarda.
— Para onde você quer ir, Turk?
Mestre de Cerimônias estalou o pescoço de um lado para o outro e
olhou para Simon.
— Pensando bem... Não.
— Você quer terminar aqui com todo mundo? — Ela piscou, surpresa.
— Você entendeu errado. — Ele ajeitou a gravata borboleta. —
Pensando bem — ele tirou o chicote do quadril e o entalou ao lado dele com
facilidade praticada — não.
As esperanças de Cora de um fim pacífico para todo o sofrimento e
drama caíram no abismo como um saco de tijolos no oceano.
— Achei que você tinha me dado sua palavra.
— Você confia muito facilmente, Cora. — Turk a observou com tristeza.
— Você deve acreditar nos motivos de uma pessoa antes de acreditar em suas
palavras. É uma pena que você não viva o suficiente para apreciar a lição.
— Você não pode me matar, Turk. — Ela balançou a cabeça. — Nós
vamos lutar. Rudy, Simon e eu vamos acabar com você, e então você vai
morrer de qualquer jeito. É apenas um sofrimento sem sentido. Eu não quero
tornar isso mais sangrento do que já é.
— Eu não posso te matar, isso é verdade. — O olhar de Mestre de
Cerimônias passou por cima do ombro dela. Dela... Para Simon.
Cora estava preocupada com uma briga.
Ela esteve estressada o dia todo sobre o que aconteceria se houvesse
uma guerra total. Como ela se sairia em uma briga contra Turk e quem quer
que decidisse lutar com ele.
Ela não deveria estar.
Ela deveria estar preocupada com algo completamente diferente.
Mãos agarraram sua cabeça por trás. Mãos que ela conhecia.
— Simon...
— Ele não pode te matar, docinho — o Marionetista cantarolou em seu
ouvido. — Mas eu posso.
Cora tinha experienciado muitas coisas desde que chegou a Harrow
Faire. Ela teve um pedaço de sua identidade devorado por um circo assassino
devorador de humanos. Ela tinha sido assombrada pelo referido circo. Ela
tinha sido perseguida pelo Marionetista. Ela foi transformada na
Contorcionista. Ela havia sido baleada no peito. Ela se apresentou no palco e
aprendeu a amá-lo. Ela tinha aprendido a amar Simon – não apesar de quem
ele era, mas por causa disso.
Ela foi transformada no porta-voz de Harrow Faire contra sua vontade.
Ela foi jogada em um poço e deixada empalada em uma estátua de
metal por três semanas.
Ela tinha se tornado o que quer que fosse agora.
E agora...
Ela sabia como era ter seu pescoço quebrado.
Simon virou a cabeça dela para a direita, e ela sentiu o estalo nauseante.
Não era nada como quebrar suas costas. Isso foi esmagador. Totalmente.
Completamente. E roubou todo o resto dela. Era como se alguém tivesse
acabado de pegar a agulha do disco de vinil.
Ela caiu na areia, mas não sentiu. Ela ficou deitada ali, olhando para as
listras da tenda e as formas sobre ela.
Ela não sentiu nada.
Ela não conseguia se mexer.
Seus pensamentos estavam... Confusos. Sua visão estava começando a
embaçar. Ela podia ver as pessoas correndo e gritando. Mas ela não podia
ouvi-las. Ela só podia ouvir um zumbido agudo em sua cabeça que parecia
apagar todo o resto.
E tudo o que ela podia ver era a silhueta de um homem de cartola
parado sobre ela.
Eu lembro deste sonho.
Eu já vi isso uma vez antes.
Você tentou me avisar.
— Sinto muito, Cora...
Quem disse isso? Mestre de Cerimônias? Lazarus? Simon?
Não importava.
Nada importava.
A escuridão a levou.
Cora acordou amarrada a uma cadeira.
Uma maneira meio estranha de acordar, considerando todas as coisas.
De repente, como se alguém tivesse acabado de acender a luz, ela estava viva
novamente. Viva, acordada e amarrada a uma porra de uma cadeira.
Ela não conseguia ver o que estava mantendo seus pulsos presos aos
braços, ou suas pernas à estrutura da cadeira. Ela sabia exatamente o que a
estava mantendo ali. As cordas de Simon.
De repente, ela se lembrou do que tinha acontecido.
— Si...
Uma mão se fechou sobre sua boca. Uma cabeça estava perto dela,
sussurrando em seu ouvido.
— Silêncio agora, docinho.
Ela cerrou os punhos. Instantaneamente, sua escuridão estava lá ao seu
comando, fervendo apenas na superfície. Ela ia rasgá-lo em pedacinhos. Ela
ia rasgar ele, e Turk, em picadinho! Ela...
— Ah-ah, querida. — Simon se endireitou. Ela o viu sacudir o pulso
com o canto do olho, e algo pequeno, apertado e provavelmente invisível
apertou dolorosamente em torno de sua garganta. — Você está na minha teia,
querida. Um movimento errado seu – um pouquinho de tinta pinga em seus
olhos – e você finalmente aprenderá como é ser morta pelas minhas cordas.
Não preciso de você viva para arrancar sua identidade. É apenas mais
divertido se eu puder observar seus olhos quando isso acontecer.
Maldição.
Maldito seja ele.
Eu deveria saber.
Eu sou uma tola.
Todo homem que já amei me traiu. E eu sou o denominador comum.
Lágrimas picaram seus olhos. A traição dele a apunhalou como facas.
Ela relaxou as mãos e deixou a escuridão ferver. A corda ao redor de sua
garganta afrouxou o suficiente para que ela pudesse respirar.
— Agora, essa é uma boa menina.
Ela conteve um soluço. Ela finalmente percebeu através das luzes
brilhantes em seus olhos que ela estava no palco de Simon em sua tenda.
Mestre de Cerimônias estava de pé ao pé do palco, observando a cena com
desgosto e determinação em medidas iguais.
Olhando para a esquerda, ela sacudiu em choque. Havia outra cadeira
ao lado dela, e... Uma boneca estava sentada nela. Uma boneca que se parecia
exatamente com ela.
O terror ferveu dentro dela, e ela empurrou contra as cordas que a
seguravam no lugar sem querer. Ela soltou um gemido assustado. Suas
cordas se apertaram instantaneamente, e ela ofegou de dor.
— Fique quieta, Cora, querida. Não se preocupe. Tudo vai acabar em
breve. — Ele acariciou seu cabelo, e ela tentou o seu melhor para puxar a
cabeça para longe dele. Ele resmungou e caminhou na frente dela,
agachando-se a seus pés. — Oh, agora... Não seja assim. Você sabia que isso
estava prestes a acontecer. Você sabe quem eu sou. Eu nunca fui nada além
de honesto com você.
Ela estava tremendo. A adrenalina estava atravessando-a como fogo, e
ela não queria nada mais do que arrebentar as cordas e pular nele
ferozmente. Ela não viu nada além de diversão sombria e sádica em seu
rosto.
— Por que, Simon?
— Achei que você nunca fosse perguntar! — Ele se sentou de volta em
seus tornozelos. — Bem. Isso é simples. A bola de banha atrás de mim disse
isso melhor. Confie nos motivos, não nas palavras. E meus motivos são muito
simples, querida. Minha vida era boa antes de você chegar. Era simples.
Descomplicada. E inteiramente sobre mim. Você entrou e mudou tudo isso.
Ela o observou, sentindo seu coração virar pó em seu peito.
— Mas... Ele quer nos matar.
— Ele quer, e tudo bem. Eu não me importo se todo mundo morrer. Eu
quero sobreviver. Então eu fiz um acordo. Bem simples, realmente. Ele e eu
conseguimos o que queremos. Ele pode matar Harrow Faire de fome – um
dia depois de eu me esgotar e morrer. Ele concordou em manter este lugar
vivo e funcionando por quanto tempo levasse. E concordei em me livrar do
pequeno problema dele. — Simon descansou a mão no joelho dela, e ela
estremeceu, mas não havia como fugir dele. Ele sorriu e deslizou a mão até a
coxa dela. — Um problema que eu compartilhei também. Você mudou tudo
na minha vida, Cora. Tudo.
Ela fechou os olhos e perdeu a batalha com as lágrimas. Ela não queria
chorar por ele. Mas ela não sabia como não fazer isso. Ela sentiu o líquido
escorrer por suas bochechas.
— Maldito seja você, Simon... Maldito seja você para o inferno.
Ele se levantou e se inclinou sobre ela, uma mão nas costas da cadeira e
a outra ao redor de sua garganta. Ele inclinou sua cabeça para trás para olhar
para ele. Sua voz baixou para um grunhido rouco. Era sexual, mesmo sendo
perversa.
— Você me ama, Cora? Tudo o que eu sou? Simon, o Marionetista? O
diabo, o louco, o demônio? Mesmo agora? Mesmo quando estou prestes a
arrancar sua identidade e enfiá-la em uma obra de arte? Mesmo depois de ter
traído você?
Ela olhou para aqueles olhos preto-vermelho-branco dele... E sabia que
ela era uma causa perdida. Ela sabia que merecia morrer porque era estúpida
demais para viver. Ela sussurrou para ele, incapaz de falar muito mais alto
através da pedra em sua garganta.
— Se eu sobreviver a isso, vou bater em você até a morte. Vou esmagar
sua cabeça com uma pedra. Farei isso uma centena de vezes se for preciso. Eu
sou uma tola por não ter previsto isso... Mas isso não muda o que eu sinto. —
Ela engoliu em seco. — Eu vou te amar para sempre.
Ele sorriu ternamente, e algo cintilou em seus olhos. Ele a beijou. Ela
tentou virar a cabeça, mas o aperto dele não permitiu. Então ela fez a próxima
melhor coisa. Ela mordeu o lábio dele o mais forte que pôde.
Ele puxou a cabeça para trás, grunhindo de dor, e soltou sua garganta
para tocar seu lábio. Ela não tinha tirado sangue. Droga. Simon riu e inclinou
a cabeça para perto dela novamente. Ela se virou, e ele beijou sua bochecha
perto da orelha antes de sussurrar:
— Você confia em mim, Cora? Você realmente confia em mim? Você
disse que sim. Agora... Eu quero descobrir.
Ele a deixou de repente, deixando-a sem poder fazer nada além de
observá-lo em um silêncio atordoado enquanto ele se endireitava, enxugava o
lábio com o lenço e enfiava o pedaço de tecido dobrado de volta no bolso do
casaco. Ele se virou para Mestre de Cerimônias.
— Agora, Cora, você deve estar se perguntando: ‘Simon, seu demônio
sexy, como você pode confiar nessa bola de massa à prova de excesso? O que
o impede de quebrar sua palavra com você, assim como quebrou sua palavra
comigo?’ Essa é uma pergunta muito boa, docinho. Eu sei que você estava
prestes a perguntar. Você é apenas um pouco lenta na absorção. — Simon
acenou com a mão com desdém. — Está tudo bem. Eu superei isso.
— Eu te odeio tanto, Simon.
— Humhum. Você também pode estar lamentando ser a boneca
solitária da minha coleção, já que destruí todos os meus projetos anteriores.
— Ele cruzou a mão atrás das costas e se virou para o lado para que pudesse
ver tanto Mestre de Cerimônias quanto ela. — Aqui está a resposta para suas
duas perguntas muito pertinentes. Eu precisava de um refém, sabe. Algo
muito precioso para ele que ele sabia que eu poderia fazer sofrer muito por
qualquer traição de sua parte. — Ele gesticulou, chamando alguém até ele. —
Venha aqui, querida. Não seja tímida. Estes são seus amigos.
Um movimento pelo canto do olho chamou sua atenção. Virando-se, ela
ofegou. Uma boneca entrou no palco. Uma linda mulher loira esculpida em
madeira e cuidadosamente pintada. E vestindo uma roupa descombinada de
meias chamativas, polainas e outras peças de roupas mais do que chamativas.
— Amanda...?
Cora não podia acreditar no que estava vendo.
A boneca levantou a cabeça e olhos pintados e cegos apontaram em sua
direção.
— Eu conheço você?
Mestre de Cerimônias fez um som indescritível. Algo que era uma dor
tão pura e absoluta que ela se perguntou se ele não tinha morrido de um
ataque cardíaco exatamente onde estava. Ele se afastou da cena e colocou a
cabeça entre as mãos.
— Esta é Cora, minha querida — Simon a apresentou à boneca. — Ela
vai ser sua nova amiga. Sua nova irmã.
— Ah, que bom! Obrigada, pai! Estou tão solitária. Eu sinto que deveria ter
algo aqui. — A boneca colocou uma mão de madeira sobre o coração. — Mas
está vazio em vez disso. Como se eu estivesse sentindo falta de alguém. Mas não sei
quem.
Turk gemeu e meio caiu, meio sentou em um banco.
Simon riu. Um som cruel, perverso e vitorioso. Ele estava radiante de
orgulho, e a expressão em seu rosto só poderia ser descrita como perturbada.
— Ah, isso é simplesmente lindo, não é?
— Onde está Jack, sua aberração doente? Você...
Cora puxou as cordas, mas elas se apertaram mais ao redor dela,
cortando seu ar e suas palavras.
— Jack está vivo. Ou talvez não. — Ele inclinou a cabeça pensativo. —
Jack está experimentando seu próprio remédio. Eu o pendurei na torre pelos
tornozelos. Eu tive que amordaçá-lo, no entanto. Com apenas um pedaço de
compensado cobrindo as portas, ele seria ouvido. Eu realmente odiaria que
uma pessoa infeliz fosse atrás dele, ouvindo seus choros e gritos patéticos. —
Simon sorriu. — Olho por olho, e tudo mais. Achei justo.
As cordas ao redor de sua garganta afrouxaram pouco antes de ela
começar a desmaiar, e ela tossiu, ofegando por ar. As lágrimas ainda
escorriam por suas bochechas.
— Então faça já. Acabe com isso. Faça o que você queria fazer desde o
momento em que me viu.
Ele a observou em silêncio por um longo momento antes de sorrir.
— Como quiser. Suponho que minha vingança e humilhação de Mestre
de Cerimônias e seus comparsas já duraram o suficiente.
Ele deu um passo em direção a ela e se inclinou para perto mais uma
vez. — Beije-me uma última vez antes de eu ‘fazer o que eu quero desde o
momento em que te vi’. — Quando ela rosnou para ele, ele sorriu. — Por
favor? Você me ama, não é?
Deus a ajude.
Ela amava.
Ela o odiava. Ela queria arrancar o rosto dele. Mas ela, de fato, ainda o
amava.
Eu sou um monstro como eles disseram.
Ela não lutou quando ele a beijou. Desta vez foi suave e quente. Se ela
fechasse os olhos, poderia fingir que não estava amarrada a uma cadeira,
prestes a ser transformada em boneca. Ela poderia fingir que Amanda não era
uma boneca, e Mestre de Cerimônias não estava chorando de tristeza pelo
que ele tinha feito.
Ela poderia fingir que era apenas ela e Simon.
Ele quebrou o beijo lentamente e moveu os lábios para o ouvido dela e
sussurrou:
— O que eu queria fazer desde o momento em que te vi, docinho... É
isso. — As cordas ao redor dela se soltaram e desapareceram. — Era te
dizer... Que eu te amo.
Ele se afastou dela, apenas o suficiente para que ela pudesse se virar
para olhá-lo em estado de choque. Ele gentilmente enxugou as lágrimas dela.
— Agora... Seja doce, e sente-se como se nada tivesse mudado por
apenas um segundo a mais, certo? Planejei tudo isso com muito cuidado e
ficarei muito aborrecido se não conseguir reproduzir minhas falas
exatamente como as escrevi. — Ele murmurou. — Por favor, finja que acabei
de dizer algo terrível.
Como ele ousa! Isso tudo é apenas um jogo? Ela apertou a mandíbula com
tanta força que começou a se contorcer. Ela grunhiu suas palavras entre os
dentes.
— Eu quero arrancar suas bolas, fazer um sanduíche de almôndega com
elas e dar de comer para você, Simon Waite.
Ele gargalhou.
— Ah, Cora. Espero que você nunca perca a língua. — Ele se levantou e
caminhou atrás dela, colocando as mãos em seus ombros. — Turk, preste
atenção, sim? Este momento é tudo culpa sua, lembra?
— Não. Não é. — Mestre de Cerimônias se levantou do banco, virando-
se para encará-los. Seu rosto estava molhado de lágrimas. Ele estava
tremendo. Cada vez que olhava para Amanda, fazia uma careta de agonia e
tinha que olhar para outro lugar. — Mande-a embora. Por favor.
— Por que? Com vergonha do que você fez? Do que você fez? Você
assistiu enquanto eu a transformava em uma das minhas bonecas. Que
covarde para um homem de honra! — Simon gargalhou.
— Estou disposto a sacrificar o que for necessário para salvar o mundo
desta fera. — Mestre de Cerimônias subiu no palco, evitando Amanda.
— O problema é que, querido menino, você cometeu um erro terrível.
Simon estalou atrás de Cora.
— E o que é isso? — Mestre de Cerimônias franziu a testa.
— Você e eu nos sentamos para jogar xadrez. E com seu primeiro
movimento... Você sacrificou sua rainha, pensando que ela era apenas um
peão. — Simon tirou as mãos dos ombros dela. — Mas você esqueceu a
primeira regra do xadrez. — Ele riu. — Você nunca, jamais sacrifica sua
rainha sem lutar.
Cora se levantou da cadeira.
E deixou sua escuridão levá-la.
As luzes piscaram e se apagaram.
Mestre de Cerimônias gritou.

Ele sentiu isso acontecendo.


Era como se ele tivesse um corte no braço. Ou talvez fosse sua garganta.
Ele foi amarrado como um animal para o abate.
E sua vida estava lentamente pingando no chão abaixo dele.
Pling.
Pling.
Pling.
Mas não era seu sangue. Não era algo que pudesse ser substituído, e
seu corpo poderia se regenerar com o tempo. O que pingava dele era algo
muito mais valioso. Como ouro nas rochas, uma vez extraído, desaparecia
para sempre.
Turk estava desaparecendo.
E era uma fera que o estava bebendo até secar.
Ele havia perdido.
Ele podia sentir seus tentáculos dentro dele. Como uma verme em sua
mente, deslizando pelos corredores e rachaduras. E em todos os lugares que
tocava, ele derretia e se esvaia. Como o veneno de uma aranha
transformando as vísceras de suas vítimas em líquido e bebendo-as até secar.
A morte era inevitável quando se lutava pelo bem.
Eu tentei tanto salvar o mundo.
Eu tentei tanto derrotar o monstro.
Mas no final... Eu falhei.
Perdoe-me, todos. Perdoe-me, Amanda.
Ele tinha vivido uma vida tão longa. Ele podia se lembrar de sua
primeira esposa e seus filhos, deixados para trás quando ele partiu para a
guerra. Deixados em casa enquanto servia aos nobres que precisavam dele.
Lembrou-se de seus soldados. Lembrou-se de enviá-los para morrer, apenas
para ser condecorado por ter vencido a guerra.
A morte era inevitável quando se lutava.
Havia tanto dele para beber, não havia? Ele sentiu isso puxando-o,
dissolvendo-o em areia. Areia. Areia entre os dedos, nos cortes, nas feridas.
Onde ele conseguiu essas feridas? Por que ele estava segurando uma arma?
Ele tinha sido um soldado uma vez?
Ele não conseguia se lembrar... Estava bem no limite de sua mente.
Apenas fora de alcance.
Ele viu uma mulher segurando uma criança nos braços. Ele a conhecia.
E ele sabia que a amava. Aquela era a mãe dele?
Rir com os amigos. Com a família. Com as pessoas que passavam
diante de seus olhos agora. Ludwig, o Homem Mais Forte. Donna e o resto.
Até Palhaço tinha sido um mentor para ele. Lazarus tinha sido um homem
gentil, mas tolo. Lazarus havia confiado nele. Tinha olhado para Turk como
um filho. E Turk havia traído essa confiança.
A morte era inevitável.
Amanda.
Sua risada. Seu sorriso. Seu cabelo. Seus beijos doces. Sua bondade. Seu
amor. Quem era ele? Nada. Ninguém. Ninguém sem ela. Um circo. Rostos
passaram por ele. Ninguém que ele reconheceu. Quem era ele? Ninguém.
Vazio. Ele ficou em uma caverna de sua mente e não viu nada além do vazio.
Ninguém.
Ninguém além de Amanda.
Ela estendeu a mão para ele. Segurou sua mão. Sorriu docemente para
ele.
Ninguém além da mulher que ele amava.
O nome dela estava na ponta da língua. Ele não conseguia se lembrar.
Ele simplesmente não sabia? Não importava. Porque ela estava lá.
Ele sabia que a amava.
Morte.
As luzes da tenda de Simon piscaram novamente.
Mestre de Cerimônias se foi.
Se foi totalmente.
Cora estava lá em seu palco, e ele assistiu enquanto as sombras ao redor
dela se enrolavam e se moviam. Elas eram coisas vivas ao redor dela. Muito
mais do que seu próprio reflexo jamais fora. Elas se retorceram e se
contorceram, e então desapareceram de volta em sua sombra normal como se
nada tivesse acontecido.
Simon ficou perfeitamente imóvel. Mais uma vez ele olhou Harrow
Faire nos olhos e a desafiou a matá-lo. Ele tentou convencer Cora a matá-lo
no momento em que ela recebeu o dom de Palhaço. E agora... Ele tinha ido e
jogado um jogo muito, muito perigoso.
Agora ele teria que ver se sobreviveria.
— Pai? — A marionete de Amanda sussurrou alto. — O que está
acontecendo?
Cora se virou para olhar a boneca. Seus olhos eram tão negros quanto o
vazio. Ela ergueu a mão e, com uma torção do pulso, Amanda caiu no chão.
Simon sabia, sem dúvida, que ela havia drenado o que restava da Aerialista.
Simon endireitou os ombros, endireitou a gravata e se preparou para
saudar o fim de sua vida.
— Eu suponho que você deve estar com raiva de...
Ele estava no ar.
Coisa curiosa. Ele nem sentiu o impacto no começo. Ele só notou o chão
passando zunindo por ele enquanto ele era arremessado no ar. Agora ele
estava do lado de fora. Como isso aconteceu? Ele bateu no asfalto com um
grunhido e rolou. Céu, chão, céu, chão, céu, chão. Finalmente, ele parou cerca
de seis metros fora de sua tenda.
Ela o jogou como um brinquedo de criança.
Acho que me fodi muito bem. Ele riu fracamente e tossiu um pouco de
sangue no chão. Olhando para cima, ele viu o resto da Família, reunido e
assistindo.
— Eu sugiro que talvez todos vocês devam correr, a menos que... — Ele
grunhiu quando um pé desceu em sua nuca, prendendo-o na calçada. — Olá,
querida.
— Mestre de Cerimônias está morto — Cora anunciou. — Assim como
Amanda.
Silêncio. Rudy falou.
— Jack?
— Na torre. Importa-se de tirá-lo de lá?
O Domador de Animais soltou um gaguejante
— Cla-claro.
Cora chutou Simon rudemente em suas costas e colocou o pé de volta
em sua garganta. Ele tossiu e agarrou o sapato dela. Pelo menos ela usava
tênis bobos de sola plana e não os saltos altos que Diva preferia. Ela olhou
para ele com olhos cinza que eram tão escuros quanto o céu do oceano em
uma tempestade. Mas eles eram seus próprios olhos, pelo menos.
Ela estava furiosa.
Ele supôs que talvez merecesse. Só um pouquinho. Só um pouco. Isso
não o impediu de sorrir inocentemente para ela.
— O quê? Eu fiz tudo por — ele tossiu — por você. Porque é que está
zangada comigo?
Cora riu. Uma risada sombria e sarcástica.
— Oh? Por mim? Não me diga! Explique como me enganar, me trair e
jogar aquele jogo doentio de merda foi por mim?
Ele sussurrou. Ofegou.
— Ar. Não posso... Não posso defender ações se... Não consigo...
Respirar...
Com um revirar de olhos exasperado, ela tirou o pé de sua garganta.
Simon ofegou. Ele ficou no chão. Ele tinha a sensação de que se ele se
levantasse, ela simplesmente o colocaria de volta no chão, de qualquer
maneira.
— Eu sabia que você seria muito boa para se vingar. Eles precisavam
pagar pelo que fizeram. Amanda e Jack traíram sua amizade. Turk quebrou
suas próprias regras quando jogou você naquele poço. Eles precisavam sofrer,
Cora. Você é muito doce para isso.
— Eu pensei... Você me fez pensar... — Ela olhou para o céu e soltou
um suspiro longo e vacilante. Ela enxugou o rosto. — Você é um idiota do
caralho, Simon. E o que você fez com eles foi errado. Amanda não merecia
isso! — Cora o chutou forte nas costelas, e Simon grunhiu e rolou para o lado.
Ela se virou e foi embora, indo em direção à torre. — Vou buscar Jack, Rudy.
Não se preocupe com isso. Eu preciso dar uma volta antes que eu acabe com
esse idiota.
Aaron se afastou da multidão.
— Eu preciso ficar bêbado. Muito bêbado. Quem vem?
Todos foram embora.
Apenas foram embora e o deixaram ali na calçada.
Simon rolou de costas e olhou para o céu estrelado da noite.
— Não recebo amor. Não recebo amor e não recebo respeito!
Ele suspirou.
— Por que todos me odeiam?

Jack estava inconsciente quando Cora o puxou para baixo. Pelo menos
desta vez ela não deixou cair seu resgate de cabeça. Ela estava muito feliz por
Simon não ter acordado quando ela sem cerimônia o deixou cair em seu
pescoço na escada. Desta vez, ela tinha um pouco mais de controle sobre seu
poder. Ela ordenou aos tentáculos sombrios que abaixassem Jack até o
patamar da torre.
Ela se sentou no chão ao lado dele, de costas contra o batente
explodido, e esperou. A Faire havia fechado a porta com tábuas para impedir
que qualquer cliente entrasse, mas saiu com bastante facilidade quando ela
podia simplesmente rasgar as coisas pelas costuras.
É estranho ser um monstro sobrenatural. Mas também é muito conveniente.
Ela tomou um gole da garrafa de uísque que tinha pegado a caminho
da torre. Ela tinha toda a intenção de terminá-la. Ela estava cerca de um
centímetro e meio no vidro quando Jack sacudiu, se debateu e gritou.
— Ei-ei... — Ela estendeu a mão e colocou a mão em seu braço. — Você
está bem. Você está no chão.
Jack estava hiperventilando e rolou para o lado, vomitou – embora
nada tenha acontecido – e caiu de volta na madeira.
— O que aconteceu?
— Turk está morto. Amanda também. Simon pendurou você pelos
tornozelos.
— Eu sei sobre essa última parte. — Ele grunhiu e meio se impulsionou,
meio rastejou até o batente da porta e se encostou nele. Ele estava tremendo,
sua pele coberta de suor.
— Amanda... Amanda está morta? Você a matou?
— Não. Para encurtar uma história dolorosamente longa, Simon me
enganou. Fez um acordo com Mestre de Cerimônias para deixar a Faire viver
um pouco mais se ele me destruísse. Parte do acordo era Turk deixar Simon
transformar Amanda em uma boneca para mantê-la refém. Simon se virou
contra mim na votação, mas era tudo mentira. Só para fazer você, Amanda e
Turk sofrerem o máximo possível.
Jack estendeu a mão para a garrafa, e ela passou para ele. Ele bebeu
avidamente antes de ter que parar e tossir. Ele a devolveu, limpando a boca
com as costas da mão.
— Porra. Porra. Amanda? Turk apenas... Apenas a entregou?
— Sim.
— E foi tudo um jogo doentio da parte de Simon.
— Sim. — Ela fez uma pausa. — E o que torna pior é que eu ainda o
amo. E... Ele disse que me ama. — Ela riu secamente e bebeu da garrafa. —
Então, sim. Porra.
— Você ganhou. — Jack fez uma pausa. — Turk está morto, e então
você...
Cora pescou algo de seu bolso. Era uma pequena crista de metal. Era
feita de todo tipo de metal que ela pudesse imaginar. Ouro, latão, prata,
bronze, ferro, aço, cobre e vários que ela nem sabia nomear. Eles foram todos
torcidos juntos em uma escultura imensamente detalhada. Parecia antigo –
tipo, seriamente antigo – mas estava em perfeitas condições, talvez um pouco
manchado aqui ou ali.
Era a Chave.
Era dela agora.
— Sim. — Isso foi tudo o que ela conseguiu reunir. Ela virou o pequeno
disco na mão e o colocou de volta no bolso. — Não parece ganhar. Parece
terrível.
— Bom. — Jack bufou uma risada. — Desculpe. Isso não deveria ser tão
idiota quanto pareceu. — Ele pegou a garrafa. Ela passou. — Eu só. Estou
feliz que você não esteja feliz que Turk e Amanda estejam mortos.
— Eu gostava de Turk e adorava Amanda. Sério. E Turk não estava
totalmente errado nas coisas em que acreditava, mas também não estava
totalmente certo. Acho que ninguém nunca está. — Ela pegou a garrafa de
volta e tomou um gole e colocou entre eles. — E o que aconteceu com
Amanda... — Ela se encolheu. — A parte doente disso é que Simon fez isso
por amor. Ele queria que todos vocês pagassem por causa do que fizeram
conosco.
— Eu merecia isso. — Jack gesticulou na direção do topo da torre. —
Amanda... Não.
— Não. Ela não merecia. — Cora fechou os olhos e inclinou a cabeça
para trás no batente. — Ele também fez isso para ver se ele poderia me trair –
machucar pessoas assim – e se eu ainda o amaria apesar de tudo.
— E você?
Ela riu tristemente de quão patética ela era.
— Sim. Eu amo. É errado, é estúpido, e isso me deixa fraca... Mas eu
amo.
— Não te faz fraca. É errado, com certeza. Isso a torna estúpida? Talvez.
Você tem um péssimo gosto para homens. Mas faz você forte ser capaz de
suportar tanta loucura e levá-la com calma. Ele não te merece. — Jack
cutucou seu pé. — Então... Você vai me matar agora?
— Não. Cansei de matar a Família. Não quero fazer isso nunca mais.
— Você acabou com Amanda?
— Eu não ia deixá-la daquele jeito. Ela mal estava lá. Ela mesma não se
conhecia... Nem mesmo reconheceu Turk.
Jack repetiu a palavra de cinco letras da noite.
— Porra. — Ele tomou outro grande gole da garrafa. — Eu... Eu não sei
se posso ficar aqui agora, Cora.
— Eu sei. — Ela se levantou e resmungou. Ela estava um pouco tonta.
Bom. — Se você quer que eu acabe com você, eu vou. Não quero, mas não
vou obrigar ninguém a ficar. Você também pode simplesmente... Sair. Você
vai desaparecer eventualmente. Você pode ver um pouco do mundo antes de
ir, talvez. Então você estará realmente livre.
Jack olhou para ela por um momento antes de olhar para o circo. Ele se
levantou também, um pouco mais trêmulo do que ela, mas por motivos
diferentes.
— Posso sair da Faire? Eu posso simplesmente... Sair?
Cora assentiu e colocou a mão em seu ombro.
— Sinto muito que as coisas tenham estragado. Você era um bom
amigo, Jack... Você se esforçou ao máximo para fazer a coisa certa. E às vezes
isso é tudo o que importa.
Jack a abraçou. Ela ficou lá atordoada por um momento antes de
abraçá-lo de volta.
— Faça o certo pela Família, Cora. Seja gentil com eles. Não... Deixe
Simon corromper você. E não destrua o mundo, sim?
Ela riu.
— Vou tentar.
— Às vezes, isso é tudo o que importa. — Ele beijou a bochecha dela e
foi embora. A uns vinte passos de distância, ela viu Maggie se levantar de um
banco e se aproximar de Jack. Mãe e filho se abraçaram. Os ombros de Jack
tremeram, e ele enxugou o rosto com a manga. Maggie deu um tapinha em
seu braço e caminhou até Cora.
— Olá, Adivinha. — Cora se inclinou contra o batente da porta
novamente. — Um aviso teria sido bom.
— Humpf. Eu avisei bastante. Você simplesmente não ouviu. — Ela
pescou em seus bolsos e tirou um baralho de cartas. — Eu queria te dar isso.
Ela as estendeu.
Cora as pegou e franziu a testa. Eram o estranho baralho de cartas de
tarô que ela viu A Adivinha usar na primeira noite em que chegou a Harrow
Faire. A carta no topo era o número zero. A Contorcionista. A pequena versão
de desenho animado de si mesma era exatamente como ela se lembrava.
— Por que?
— Elas são suas agora. Isto é, até você encontrar outro perdedor para
tomar o meu lugar.
Maggie riu.
— Você também vai embora.
Era uma afirmação, não uma pergunta.
— Mães nunca devem viver mais que seus filhos. — A velha deu de
ombros e se virou. — Você vai se sair bem, garota. Eu sei que você vai.
Mantenha esse seu idiota sob seu controle, hein? Ele já fez travessuras
suficientes para um século.
Cora riu e os observou partir. E ela sabia que seria a última vez que os
veria. Com um aceno de cabeça, ela pegou sua garrafa de uísque e subiu as
escadas de madeira para o deque de observação. O som da madeira rangendo
e seus passos foram tudo o que a saudou enquanto ela caminhava para o
topo. Ela olhou para a estátua grotesca e monstruosa que quase enchia a
grade de metal acima. Era um espelho perfeito para uma que ainda
assombrava seus sonhos.
Ela alcançou a escotilha trancada na grade. Tirando a chave do bolso,
ela a pressionou na abertura. Por um segundo, ela se perguntou se ia
funcionar.
Clique.
Balançando a grade aberta sobre sua cabeça, ela terminou de subir as
escadas até o último andar da torre. Estava vazio. Ela não tinha certeza do
que estava esperando. Um pedestal com algum tipo de coração pulsante
bizarro? Um cristal flutuante roxo e alguns abutres monstros crescidos?
Ela suspirou. A própria torre era o Coração. Ela sabia disso. Mas ainda
assim, o lugar estar vazio parecia, na melhor das hipóteses, um anticlímax.
Abrindo a porta para o patamar exterior, ela saiu para o clima frio e
descansou os braços no parapeito. Em poucos dias, seria outubro. Era uma
bela noite. A lua estava alta e cheia, e lançou o circo fechado em uma luz
branca fantasmagórica. Os brinquedos estavam desligados, os portões
estavam trancados e o ar estava silencioso, exceto pelo som dos insetos do
final da estação e o sussurro do vento.
Ela fechou os olhos e se permitiu desfrutar da sensação do ar contra seu
rosto e em seu cabelo. Ela sentiu alguém ao seu lado. Não alguém – alguma
coisa.
— Você deve estar feliz.
Ela não se incomodou em olhar para Lazarus.
— Eu estou. Mas também estou de luto pela perda de muitos membros
da Família que amo. Uma vitória que termina em morte nunca deve ser
celebrada. — Ele esfregou suas costas suavemente. — Você teve um dia
difícil.
— Não brinca.
— Acho que devo me desculpar.
— Você sabia o que Simon estava fazendo. Você tinha que saber. Você
está em todos os lugares.
Lazarus limpou a garganta.
— Ele me fez prometer não contar. Ele deu um sermão para uma
parede por uma hora, tentando me convencer a não avisá-la.
Ela tentou não rir da imagem e falhou. Ela suspirou tristemente depois
de rir e balançou a cabeça.
— Ele é um idiota.
— Ele é. Mas você está certa, ele estava testando sua confiança e seu
amor. Eu não aprovei. Mas não é realmente meu lugar para intervir. O que
você disse sobre ele e bater em uma colmeia com um galho? Acho que você
provou sua teoria hoje.
— Ele é um bastardo imensamente estúpido. A massa de sua cabeça de
merda agora eclipsou a da maioria dos buracos negros. — Ela apoiou os
cotovelos no parapeito e esfregou as têmporas com as palmas das mãos. —
Acho que você não entende o quão profundamente eu quero enfiar um poste
de telefone na bunda daquele cafetão vestido demais e enfiá-lo como um
maldito flamingo rosa no meu gramado como um aviso para todos os outros.
— Não é um bom momento, eu acho?
A voz inesperada a fez olhar para cima e se virar. Lazarus se foi, mas
Simon estava parado na porta, observando-a com um leve sorriso.
E segurando uma dúzia de rosas. Vermelhas, claro.
Ela colocou a mão sobre os olhos.
— Você está brincando comigo.
— O quê? — Ela ouviu seus sapatos caros clicarem no piso de tábuas de
madeira. Ele pegou seu pulso e gentilmente o abaixou de seu rosto. — Pensei
que bastardos deveriam comprar flores quando faziam algo imensamente
estúpido com a pessoa que amam.
Ela riu. Foi fraco. Foi cansado e exausto, mas ela riu.
— Você...
— Ouvi. Não tenho certeza de como você vai superar esse sentimento
agora, então deixe-o aí. — Ele estendeu a mão para tocá-la, hesitou, e então
gentilmente colocou a palma da mão na bochecha dela quando ela não se
afastou. — Cora... Me desculpe. Eu não confiava em você. Eu precisava
descobrir a verdade.
Ela olhou para ele.
— Você não confiava em mim?
Ele franziu a testa e olhou para o circo.
— Por que você me amaria? Por que? Você poderia escolher todos os
miseráveis disponíveis na Família e, mesmo assim, provavelmente poderia
convencer os indisponíveis. Sou um homem terrível, Cora. Fiz essas coisas
com Turk, Amanda e Jack porque queria. Porque eu gostava do sofrimento
deles.
— Eu pensei que era porque você queria vingança por nós dois?
— Isso também. — Ele fungou com desdém, e ainda manteve seu olhar
no circo. — Mas principalmente porque foi muito divertido.
— Eu deveria matá-lo por me trair.
— É estranho eu achar o fato de que você pode acabar comigo bastante
excitante? — Ele sorriu, e quando ela não sorriu, sua expressão caiu. — E
você deveria me matar. Você estaria certa. Ninguém nem piscaria se você
descesse desta torre sozinha. Eles celebrariam minha morte. Eles
provavelmente te levantariam nos ombros e te carregariam pela Faire,
torcendo por você.
— Você está tentando me convencer?
— Apenas espere. — Ele se ajoelhou diante dela e se recostou nos
tornozelos, olhando para ela com um sorriso fraco e terno. — Eu te amo,
Cora. Eu te amo mais do que eu me amo. E eu tenho amado por um longo
tempo... Eu só não sabia como dizer as palavras. E se você decidir que eu
devo morrer? Isso é seu direito. Eu traí você. Eu joguei um jogo doentio.
Provavelmente farei isso de novo algum dia.
Ele pegou sua mão e beijou sua palma antes de colocá-la em sua
bochecha. Ele fechou os olhos.
— Vá em frente. Salve-se da dor que continuarei causando a você.
Porque eu sou o que sou, Cora, querida. Eu sempre serei assim. Eu sempre
serei o Marionetista.
Ela acariciou o polegar ao longo de sua bochecha.
— Levante-se, estúpido.
Ele piscou os olhos abertos.
— Hum?
— Levante-se. Eu não vou te matar. Eu quero empurrá-lo sobre o
parapeito, com certeza. Mas... Não consigo imaginar meu mundo sem você.
Eu te amo. Você sabe que eu amo. E você precisa parar de tentar tanto provar
que eu não amo.
Ele beijou seus dedos e cuidadosamente colocou as rosas no chão.
— Bem, se é assim que você realmente se sente... — Ele puxou uma
pequena caixa do bolso. — Por que não tornamos este dia um pouco mais
avassalador para você?
Seu coração se alojou em sua garganta.
— Você está brincando...
Ele abriu a caixa e a segurou para ela. Era um anel. Uma peça delicada e
de aparência antiga feita em prata ou ouro branco. A pedra central era um
rubi, cercado de ônix. Preto e vermelho. Era impressionante.
Silêncio. Ela olhou para o rosto dele, e ele ergueu a sobrancelha.
— O quê? — Ele fez uma pausa. — Você vai me fazer dizer isso? — Ele
gemeu e jogou a cabeça para trás em aborrecimento dramático. — Eu tenho
que dizer? Okayyy.
Ela riu incrédula.
Ele olhou para ela com um sorriso brincalhão.
— Cora Glass, você quer se casar comigo?
Ela nem conseguiu tirar a única sílaba de sua boca antes que ele
estivesse de pé e a beijasse.
Tem sido um inferno de um dia.
Eu ainda quero realmente empurrá-lo sobre a porra do corrimão.
Isso provavelmente seria rude agora.
Eu acho.
Ela pensou por um longo tempo e imaginou o quanto ele reclamaria
mais tarde. Não valeria a pena. Ela quebrou o beijo e o observou por um
longo momento.
— Diga de novo, Simon. Diga que me ama.
— Dizer o quê? — Ele piscou, então franziu a testa. — Por que?
— Eu gosto do som disso.
Ele respirou fundo, prendeu e soltou suas palavras em uma longa
corrida.
— Por-que-você-tem-que-se-deleitar-me-degradando?
— Porque você merece. — Ela o espetou nas costelas. — Diga, ou eu
vou te jogar do parapeito.
— Eu... — Ele engasgou. — Eu teee... — Ele cortou dramaticamente. —
Eu te-teeee a... — Ele soltou um hurk, tossiu, e bateu no peito com o punho
como se para limpá-lo. — Desculpe. Me dê um momento.
Ela o espetou com força nas costelas novamente e riu. Mais uma vez...
Apesar de todas as probabilidades, suas travessuras a estavam animando. E
ela sabia que esse era o ponto.
— Okay, okay, okay. — Ele acenou com as mãos, limpou a garganta,
endireitou a roupa e suavizou sua expressão em uma séria. — Cora Glass...
Desde o momento em que sua frigideira encontrou meu rosto, você fez o
impensável. Você cometeu um pecado grave. Você quebrou meu nariz e
roubou meu coração em um golpe de utensílios de cozinha de ferro fundido.
Ela riu, e a expressão dele cintilou e ameaçou quebrar. Ele curvou o
dedo sob o queixo dela. Sua voz era suave quando ele falou novamente.
— Eu a seguirei até os confins da Terra. Ficarei ao seu lado até virarmos
pó. Vou protegê-la o melhor que puder, até mesmo de mim mesmo. E
quando não puder, só posso rezar para que você rasgue o que sobrou de
mim. Porque eu nunca, nunca desejo te machucar. E eu nunca, jamais desejo
falhar com você. — Ele embalou seu rosto em suas mãos e se aproximou dela.
— Cora Glass, minha monstruosa e vilã Rainha de Harrow Faire... Eu te amo.
Ela ficou na ponta dos pés e o beijou, envolvendo os braços em volta do
pescoço dele. Ela sentiu cada emoção que uma pessoa poderia sentir. Alegria.
Tristeza. Pesar. Euforia. Raiva.
Mas acima de tudo, ela sentiu amor.
Ele tinha jogado um jogo distorcido. Ela havia drenado a força vital de
um homem. Ambos tinham feito coisas terríveis. Pessoas haviam morrido.
Ela amava um monstro.
E estava tudo bem.
Porque ela também era um.
Simon estava deitado na cama de Cora, abraçando-a. Ela estava
dormindo, aninhada contra seu peito.
Ele deveria estar dormindo. Ele estava exausto.
Mas ele não conseguia fazer seu cérebro parar de girar em círculos.
Eu venci. Ganhei tudo o que eu poderia querer. Mestre de Cerimônias está
morto. Cora tem a Chave, e a Faire agora é dela para comandar. Eu me vinguei e fiz
com que os traidores sofressem. E eu tenho Cora. Ela ainda me ama...
E eu a amo.
Não era a culpa que o mantinha acordado. Não era arrependimento. Ele
repetiria tudo o que fez naquele dia se tivesse a chance. Mas ainda assim,
seus pensamentos giravam, repetindo o dia repetidamente em sua cabeça.
Talvez a adrenalina fosse a culpada.
Jack tinha saído da Faire com sua mãe, a Adivinha. Turk estava morto.
E Aaron era um pouco menos insuportável. A maioria de seus principais
aborrecimentos se resolveram. Cora usava seu anel de noivado. Ela havia
concordado em se casar com ele. Ela confiava nele – ela o amava.
Ele sorriu.
E ele a amava de volta. Ele podia admitir isso agora. Não apenas para si
mesmo, mas em voz alta. Ele estava feliz. Ele não conseguia dormir porque
estava feliz.
Fechou os olhos e desejou que sua felicidade tivesse garantia. Mas, mais
uma vez do alto, tudo se repetiu em sua mente, a adrenalina e a animação do
dia ainda se extinguindo como os últimos pedaços de uma vela gasta
crepitando no fundo de uma poça de cera.
Mestre de Cerimônias havia jogado lindamente e previsivelmente em
suas mãos. Simon não sabia o que esperar quando lhe pediu que sacrificasse
Amanda. Quando ele disse sim, ele sabia que o desejo de justiça do homem
gordo o faria pensar que ainda poderia vencer. Que gloriosa vingança ele
tomou contra os dois. Assistir Mestre de Cerimônias chorar pela perda de seu
amor encheria seu coração de alegria por muitos e muitos anos.
Ouvir Jack gritar de dor, abafado pela mordaça em sua boca, foi
perfeito.
Simon não precisava removê-los da votação. Esse não era o ponto. O
objetivo era machucá-los. Porque eles machucaram a mulher que ele amava.
Ele teria de bom grado arrancado a carne de Jack de seus ossos se tivesse
tempo.
Mas ele tinha um show para fazer.
E saiu sem problemas.
Mestre de Cerimônias tinha sido poderoso em uma luta. Teria sido
bastante fácil para ele dominar qualquer um deles por conta própria. Era uma
aposta ter uma votação sem ele encurralado. Era uma questão de saber se ele
poderia ser derrotado, mesmo com Simon, Rudy e Cora trabalhando juntos.
Quem sabia quem mais iria lutar com Turk?
Simon não queria correr esse risco.
Portanto, ele só tinha uma opção – convencer o rei a dar xeque-mate ele
mesmo. E como o idiota inchado que ele era, Turk voluntariamente se
colocou em uma situação em que ele era vulnerável, e sua guarda baixa.
Ninguém deve confiar em mim. Nunca. Muito menos você, seu gordo fodido,
onde quer que esteja agora.
Ele não sabia o que esperar de Cora quando ela soube a verdade. Ela o
mataria? Ela se recusaria a vê-lo novamente? Iria rejeitá-lo? Denunciar seu
amor? Ele deu a ela a chance de provar que ele estava certo. Naquele
momento, quando a mentira ainda era verdade, ele pediu seu amor.
E ela tinha dado.
Ele não a merecia. Ele sabia disso. Mas quando alguma coisa o impediu
de pegar o que ele não ganhou e mantê-lo? Ele era uma criatura cobiçosa. E
Cora Glass era dele.
E ele queimaria o mundo para protegê-la.

Cora não tinha ideia do que esperar quando se vestiu e foi almoçar com
Simon no dia seguinte. Ela tinha dormido direto durante o café da manhã.
Simon fez uma piada sobre como ela não deveria estar com fome depois
de comer Mestre de Cerimônias inteiro.
Ela deu um tapa no peito dele por isso.
Quantas pessoas ainda estariam lá? Quantos teriam partido durante a
noite, escolhendo a morte em vez de Harrow Faire?
— Por quê tão quieta? — Simon colocou uma mecha do cabelo dela
atrás da orelha. — Alegre-se. Hoje é um bom dia.
Ela balançou a cabeça.
— Eu simplesmente não posso acreditar que acabou.
— Oh querida. Não acabou. Está apenas começando.
— Pela primeira vez, ele não está errado.
Lazarus apareceu do outro lado dela.
— Gá! — Simon pulou quase trinta centímetros no ar e então rosnou
para o fantasma de Palhaço. — Jesus Cristo em um pula-pula, eu desprezo
quando você faz isso. Você não vai aprender a ir e vir como uma pessoa
normal?
— Não. Não pense que vou. — Lazarus sorriu para Simon, em seguida,
olhou para Cora, sua testa franzida em preocupação. — Como você está?
— Tudo bem. Sobrecarregada. Mas quando eu não fiquei
sobrecarregada? — Ela riu secamente. — Vocês, filhos da puta, gostam de
empilhar merda.
— Não, nós não gostamos.
Simon fez o possível para parecer indignado.
— Nós meio que gostamos.
Laz sorriu.
— Eu suponho que sim.
O Marionetista deu de ombros.
— Se importa se eu... Uh... Me juntar a vocês? — Laz se encolheu. —
Para o almoço?
Cora riu do quão tímido ele estava sendo.
— De forma alguma.
Quando os três entraram na tenda, ela não sabia o que esperar. A
votação estava quase empatada. Quem sabia quantos deles se foram agora?
A tenda ficou quieta. Ela fez uma varredura rápida e encontrou apenas
uma pessoa desaparecida. Correção – duas. Os gêmeos. Lauren e Phil. Ela
sorriu tristemente.
— Não estou surpresa que eles se foram.
— Eles deixaram um bilhete — Lazarus disse calmamente. — No vagão
deles. Eles esperavam que você não levasse para o lado pessoal. Mas eles
cansaram de sofrer.
Ela assentiu.
— Eu...
Ela se interrompeu. Todos estavam se levantando. Ela congelou quando
todos se aproximaram dela. Simon pegou a mão dela, e ela o sentiu ficar
rígido ao seu lado. Até Lazarus parecia nervoso. Enquanto a multidão se
formava na frente dela, Aaron deu um passo à frente.
Eles iriam lutar com ela? Levantar-se contra ela? Denunciar o que ela
fez e exigir que ela destruísse Harrow Faire? Seu coração batia forte em seu
peito. Os segundos passaram como horas.
Aaron sorriu aquele sorriso torto dele.
— Para onde, chefe?

O último caminhão estava lotado. Os trens não eram realmente o


melhor meio de transporte desde que as rodovias modernas foram
inventadas. Ela parou na porta do caminhão principal, olhando para a fila
atrás dela. Os vagões foram trocados por veículos, mas isso não significava
que eles pareciam modernos de forma alguma.
A vibe vintage de Harrow Faire era muito divertida para desistir.
Jack teria adorado esses carros. Eles pareciam novos, apesar dos faróis
redondos e detalhes cromados brilhantes. As laterais dos caminhões
anunciavam ruidosamente Harrow Faire e os atos e criaturas dentro dela.
Havia mais caminhões do que pessoas para conduzi-los, mas ela supôs que
era aí que comandar um exército de funcionários-fantasmas-com-pouco-
mais-que-o-salário-mínimo era útil.
Pelo menos eles nunca podem atacar.
Os fantasmas têm sindicatos?
— Não.
Ela riu da interjeição de uma sílaba de Lazarus em sua cabeça. Ele vinha
assumindo um papel mais ativo na Família na última semana. Ele tinha feito
a maior parte das malas e gostava de anunciar isso a todos quando o olhavam
de forma estranha.
Isso, e listar todos os pedidos estranhos e provavelmente escandalosos
que eles fizeram nos últimos anos e que ele havia atendido.
Isso geralmente os calava bem rápido.
Especialmente Aaron.
No entanto, quando Lazarus tentou esse truque com Bertha, a Mulher
Barbada apenas riu e disse à personificação de Harrow Faire para “pular para
as coisas boas”. Cora não teria pensado que um monstro sobrenatural era
capaz de corar se ela mesma não tivesse visto.
— Por que a demora?
Simon falou do banco do passageiro. Ele insistiu em dirigir até
descobrir que a caminhonete vinha com uma tela de toque digital brilhante
no painel. Então ele ficou mais do que feliz em fugir para poder brincar com
todos os recursos.
— Só pensando.
— Pense enquanto dirige. Vamos lá. Estou preso neste inferno
esquecido por Deus conhecido como Nova Inglaterra há cento e quarenta
anos!
— É tudo sempre sobre você?
Ela lançou-lhe um olhar.
Ele sorriu para ela e empurrou seus óculos escuros incompatíveis no
nariz.
— Oh, docinho, por que você sempre faz perguntas estúpidas? Claro
que é.
Ela revirou os olhos e, com um aceno de braço, ouviu os motores
ligarem. Rudy estava até dirigindo um. Ela teve que ensinar o homem a
dirigir. Por sorte, os caminhões eram todos de transmissão automática. A
última coisa que ela queria era fazer com que o Domador de Animais pusesse
a ré na estrada.
— Tudo bem, tudo bem...
Ela subiu no banco do motorista, fechou a porta e afivelou o cinto. Não
é como se ela continuasse morta se morresse em um acidente de carro, mas
ela também não tinha vontade de aprender como era morrer batendo no
para-brisa.
Pescando no bolso, ela pegou as chaves do caminhão. Delas pendia um
chaveiro. Nele havia um brasão que caberia na palma de sua mão, feito de
todo tipo de metal conhecido pelo homem, e alguns, ela tinha certeza, haviam
se perdido no tempo.
— Você transformou a chave em um chaveiro?
Laz perguntou quando ele apareceu de repente entre eles.
Simon gritou.
Cora riu.
— Estou vagamente insultado pelo trocadilho6.
Laz ignorou o grito de Simon e revirou os olhos.

6 Chaveiro no original ‘Keychain’, é a junção das palavras chave e corrente.


Ela ligou o caminhão e deu uma última olhada no campo vazio onde
Harrow Faire esteve por tanto tempo. Ela sorriu. Depois de uma longa
discussão com Simon e outra votação da Família, a escolha foi ir para o sul no
inverno. Eles desceriam a costa, veriam a Virgínia e as Carolinas, e então
iriam para o oeste. Elena queria ver seu estado natal do Texas novamente.
Depois disso, eles voltariam para o norte na primavera.
— Você está pronta? — Perguntou Lazarus.
— Sim.
Ela colocou o caminhão em movimento e voltou seus pensamentos para
o futuro. Ela sorriu para os dois homens ao seu lado.
— Vamos colocar esse show na estrada.
Qualquer um que dissesse que as ilhas Florida Keys eram
desagradáveis no inverno nunca passara muito tempo na Nova Inglaterra.
Cora estava sentada na beira de um dos palcos de apresentação que
pontilhavam o caminho principal do meio do caminho. Era a mesma onde ela
conheceu Ludwig pela primeira vez, embora ela nunca tenha sentido como se
tivesse conhecido o velho Homem Mais Forte.
A lembrança de estar de pé em seus ombros com Amanda enquanto a
Aerialista a animava era dolorosa. Mas ela deixou a dor seguir seu curso. Ela
se sentiu responsável pela morte de Amanda. Ela merecia se sentir mal por
isso.
A Faire havia parado em cinco cidades ao longo da costa e agora
planejava passar um mês inteiro ao longo da praia.
E ela nunca tinha visto um grupo de pessoas mais feliz do que a Família
estava agora. O olhar de admiração e alegria em seus rostos toda vez que eles
se estabeleciam em uma nova cidade a fez sorrir. Sempre que eles tinham
permissão para pegar um maço de dinheiro da horda gigante de Aaron para
visitar as lojas ou comer, eles eram como crianças animadas.
Simon tinha um tablet no qual ele podia desenhar. Ela teve que lembrá-
lo quando era hora de dormir ou comer por semanas depois que ele
conseguiu o tablet. Apesar do fato de que a Faire poderia convocar o que
quer que alguém quisesse, parecia que a Família estava mais do que animada
para fazer compras para si pelo menos uma vez.
Anastasia já teve que receber uma mesada. A mulher não parava de
reclamar da “farsa da moda moderna” e ainda assim sentia a necessidade
irresistível de comprar tudo. Aparentemente, a Sephora ainda era uma coisa,
e foi no momento da descoberta de Anastasia em que Cora ficou feliz por não
terem cartões de crédito. Mas Elena e a Diva finalmente tinham algo para se
unir.
— Você viu Bruce? — Aaron perguntou enquanto se aproximava,
tirando-a de seus pensamentos. — Oh, desculpe. O que eu interrompi que
estava acontecendo lá em cima? — Ele gesticulou para a cabeça dela.
— Nada demais. Apenas o habitual. Me perguntando o que diabos eu
fiz com a minha vida. — Ela deu um tapinha no palco ao lado dela. Aaron
sentou-se e sorriu, as lâmpadas fazendo seu topete de cabelo excessivamente
com pomada brilhar. Poucas pessoas atualizaram seus guarda-roupas.
Mesmo Anastasia só usava suas roupas novas de vez em quando. Ela
entendia. Era uma parte de suas personalidades. E isso era tudo que eles
tinham no final, não era? — Quanto a Bruce? Eu o vi entrar aqui cerca de uma
hora atrás com três mulheres.
— Três? — Aaron gemeu. — Desgraçado! Tentando me bater. Eu sei
que ele está trapaceando neste concurso. Tenho certeza de que ele está
pagando.
— Vencer você em quê? Não, não, pensando bem — ela acenou com as
mãos — eu realmente não quero saber.
— Bem, veja bem, ele disse que poderia conseguir mais...
— Eu disse não! — Ela riu e empurrou Aaron, que estava sorrindo para
suas próprias travessuras. — De qualquer forma. Aposto que ele está
distraído agora.
— Bem, acho que vou interromper sua pequena diversão. Vim aqui
para lhe dizer que acho que podemos ter um novo Homem Mais Forte. E é a
vez dele ser o Patrocinador.
— É por isso que estou sentada aqui. — Cora sorriu. Quando Aaron
pareceu confuso, ela bateu na testa.
— Ah. Certo. Sim. Ligada à Faire e tal. — Ele fez uma careta. — Deve
ser terrivelmente desconfortável.
— Não mais do que o balde de plástico que você usa no cabelo.
Ele soltou uma risada alta e, balançando a cabeça, deu um tapinha no
ombro dela.
— Muito bem, Cora. Muito bem. Tudo bem. Bem, eu vou buscar Bruce.
Você faz... O que quer que você vá fazer. — Ele fez uma pausa. — O que você
vai fazer, afinal? Arrastar o novo Homem Mais Forte? Derrubá-lo
inconsciente? Fazer Simon amarrá-lo?
— Vou perguntar a ele se ele quer se juntar à Família, Aaron. — Ela
estendeu a mão. — Frasco.
Aaron tirou o frasco do bolso e o entregou a ela. Ela o abriu, tomou um
gole, ofegou e assentiu. Sim. Isso serviria. Ela esfregou os olhos. Seu
moonshine sempre fazia seus olhos lacrimejarem.
— Obrigada, Aaron.
— Vou deixá-la com isso, então.
Ele balançou a cabeça e foi embora, resmungando sobre as táticas de
trapaça de Bruce.
Ela girou o líquido no frasco e esperou. Ela esperou por Peter.
Peter adorava álcool forte. Ou pelo menos, assim Harrow Faire
aprendeu quando se lembrou de uma bebida em particular que o grandalhão
havia tomado em um bar em particular, no meio de várias outras bebidas,
aquela vez no Arizona há vários anos. A memória não era nada mais
importante do que um pequeno fio de cabelo.
Assim como o pequeno fio de cabelo que tirou de todos que passaram
por seus portões. O Caminho das Trevas foi desmontado e jogado fora. Não
havia mais necessidade dele.
Harrow Faire estava alimentada. Estava feliz.
E também a Família que ela tanto amava.
Por causa disso... Não precisava roubar grandes pedaços de identidade.
Levava os pedaços que eram tão pequenos, tão insignificantes, que ninguém
jamais sentiria falta deles.
Mas, mais importante, não precisava mais roubar pessoas inteiras. Ela
cuidou disso. Isso tornava o preenchimento dos espaços vazios da Família
um processo mais lento, mas eles tinham todo o tempo do mundo agora, não
tinham?
Ela observou como uma montanha de um homem desceu o caminho.
Ele estava sozinho. Ele estava olhando para seus pés, não para o mundo ao
seu redor. O cara era claramente um fisiculturista. Ele estava muito
bronzeado e tinha músculos em lugares que provavelmente dificultavam as
funções básicas, como tocar os cotovelos nas laterais do corpo.
As mulheres o olhavam boquiabertas. Ele era extremamente atraente,
daquele jeito que deveria estar na capa de um dos livros favoritos de Bertha.
Abdominais, mandíbula definida, cabelo curto, nariz perfeito. Lábios
perfeitos.
Ele também parecia perfeitamente miserável.
E ela sabia que ele estava.
— Sua namorada o traiu com seu melhor amigo. Ele tem o anel de noivado no
bolso. Gastou seu último centavo nisso porque estava esperando para conseguir
aquele trabalho de ator que tinha certeza que conseguiria. Ele não conseguiu. Ele
perdeu tudo.
— Ei, Peter — ela gritou para o grande homem.
O homem olhou para cima e procurou quem havia falado, surpreso.
— Oi — Cora disse com um sorriso, e acenou. — Não, você não me
conhece. Você teve um dia de merda, não foi?
— Como você... — Ele piscou novamente em confusão. Ele não parecia
preocupado. Por que ele iria? Ele era provavelmente três de Cora juntos e dez
vezes mais forte. Por que um cara desse porte teria medo de uma garotinha
em um collant de circo de lantejoulas e um casaco fino? — Quem é você?
— Meu nome é Cora. — Ela ergueu o frasco para ele. — Eu posso
consertar seu dia de merda. E o resto da sua vida de merda.
— Minha vida não é uma merda. — Ele deu um passo em direção a ela
de qualquer maneira. — Só estou passando por uma fase difícil. — Ele pegou
o frasco dela, cheirou, riu e bebeu metade. — Droga, você bebe essa merda?
— Não se eu puder evitar. Pertence a um colega de trabalho. Você quer
me contar sobre sua fase difícil?
Peter sentou-se no palco ao lado dela. Ele olhou para seus sapatos. Eles
estavam em péssimo estado. Eles estavam desgastados nos calcanhares. Seu
jeans não estava em muito melhor condição.
— Não tenho mais ninguém para conversar além de uma estranha. Que
triste?
— Eu não tenho que ser uma estranha, Peter. — Ela sorriu para ele
gentilmente e colocou a mão em cima da dele. — Eu poderia ser Família.
Rudy fez uma careta.
— Não.
— Mas é um casamento, Rudy! — Elena choramingou. Ela ergueu a
camisa preta de botão. — É toda preta, no entanto. Eu a adaptei só para você.
Ele rosnou baixo em sua garganta para a Costureira.
— Não.
A ruiva de olhos de corça olhou para ele, fazendo sua melhor imitação
de um cachorrinho carente, e segurou a camisa com força nas mãos.
— Mas é um casamento... Cora e Simon vão ficar tão lindos. Todo
mundo vai ficar todo arrumado. Até Bertha vai usar um vestido. Rudy... Por
favor?
Rudy respirou fundo, prendeu o ar, e lentamente expirou, rosnando
novamente enquanto o fazia.
— Vou ver como fica.
Elena gritou alegremente e o puxou para ficar na frente do espelho. Ele
olhou para seu reflexo severo, carrancudo para si mesmo, enquanto ela
voltava a vesti-lo. Quando ela abaixou sua calça para que ele entrasse em
uma nova, ele nem sequer vacilou. Ele tinha muito menos escrúpulos em
estar nu do que a maioria das pessoas.
Não que ele não tenha percebido a risadinha e o sorriso tímido da
Costureira. Ela obedientemente evitou olhar diretamente para ele, no entanto,
enquanto puxava uma nova calça preta para cima de suas pernas.
— Vai ser uma noite tão bonita.
Rudy tirou a camisa pela cabeça e aceitou a camisa limpa que ela lhe
ofereceu. Cheirava a sabão em pó e produtos químicos. Ele tentou não torcer
o nariz com o cheiro. Ela iria entender errado.
— Você votou contra a Família. Contra Harrow Faire. Por que você está
feliz?
— Eu não queria que mais pessoas morressem. — Elena franziu a testa
e começou a ajudá-lo a vestir a camisa. — Isso é tudo... Eu amo isso aqui. Eu
amo todos aqui. Mas... Sinto falta de Turk. Saudades de Amanda. Sinto falta
de Jack e dos outros.
Rudy ficou em silêncio e fechou os olhos.
— Eu sinto falta deles também. Mas é por causa desse sentimento que
não pude deixar a Faire morrer. Eu não podia deixar o resto da minha
matilha ir também.
Elena estava na frente dele, abotoando sua camisa. Ela a enfiou em sua
calça. Ele a tirou. Ela lançou-lhe um olhar – o que era bastante patético em
uma garota do tamanho dela – e enfiou a camisa dele de volta. Quando ele
pegou o tecido, ela deu um tapa nas costas da mão dele.
Ele tentou não sorrir.
Ele falhou.
Ela sorriu para ele e foi buscar um colete.
— Agora, mais uma coisa...
— Não. Sem coletes. — Ele mostrou os dentes para a Costureira e
recuou como se ela estivesse segurando um atiçador de ferro quente. — Você
disse camisa. Você nunca disse colete.
— Mas eu tenho uma gravata tão bonita! E não dá para usar gravata
sem colete. Isso é... Isso é sacrilégio!
Ela foi atrás dele.
O caos se seguiu.
— Cão velho, você parece positivamente miserável. — Simon riu de
Rudy quando o Domador de Animais se aproximou dele. — Ou você está
apenas mudando de forma para um pinguim esta noite?
Rudy franziu o cenho. Ele estava vestido com uma bela calça preta, uma
camisa, um colete e uma gravata. Mesmo que o colete estivesse desabotoado e
a gravata afrouxada. Até parecia que seu cabelo tinha sido escovado.
— Cala a boca, Marionetista.
Simon tomou um gole de vinho com um sorriso irônico. Ele mal havia
comido naquela noite – ninguém o avisou que, como noivo, ele não teria
tempo para comer – mas certamente havia bebida suficiente para todos. Ele
podia estar um pouco bêbado. Ele não tinha certeza.
— Elena?
— Elena.
Simon riu. Ele ergueu a taça de vinho para o Domador de Animais, que
ergueu a cerveja em resposta.
— Às mulheres corajosas. Que você encontre a sua própria um dia,
cachorro velho.
Rudy foi embora resmungando. Ele deu dez passos antes de parar e se
virar para ele.
— Parabéns pela sua noite de núpcias.
— E aqui eu pensei que era eu quem tinha os maus modos. — Simon
sorriu. — Agora, vá se trocar antes que você pegue fogo com essa roupa.
O alívio de Rudy era palpável.
— Obrigado.
— É... Você não fez. Como? — Cora segurou o ovo em suas mãos. Preto
com pequenas manchas brancas como um ovo de tordo, pareceria um típico
ovo de pássaro, se não fosse do tamanho de uma bola de softball.
Também estava em movimento.
O que quer que estivesse vivo dentro dele estava ansioso para sair. Ela
se sentou na beirada da cama em seu vagão transformado em caminhão e o
segurou no colo. Talvez o calor de suas mãos ajudasse a pequena criatura.
— Você queria um dragão. — Rudy grunhiu perto da porta. — Não é
um dragão. Mas é o melhor que consegui. Considere isso um presente de
casamento muito tardio.
— Se ele cuspir fogo e chamuscar minha roupa, eu vou ficar
terrivelmente irritado — Simon murmurou de onde estava, inclinando-se
contra o balcão da cozinha.
Rudy bufou uma única risada.
— Aproveite, Cora.
— Obrigada, Rudy!
— Sim — veio a resposta simples.
— T... — Ela olhou para cima. Rudy já tinha ido embora. — ...chau. —
Ela suspirou e revirou os olhos. Ela deslizou um pouco mais para trás na
cama e segurou o ovo cuidadosamente no colo. Havia rachaduras começando
a se formar. — Ele fez isso. Ele realmente fez isso.
— É melhor não cuspir fogo — Simon resmungou enquanto se
aproximava. Ele estava agindo irritado, mas estava sorrindo do mesmo jeito.
Cora assistiu com admiração enquanto pequenas garras quebravam o
ovo. Em seguida, um nariz. Em seguida, o piscar de um olho de lagarto.
Logo, uma cabecinha saiu do buraco. Era um lagarto... Com penas. Parecia
mais um dinossauro que ela tinha visto em um museu do que um dragão,
mas – ei – Rudy fez o melhor com o que tinha para trabalhar. Cora não ia
reclamar.
Ele soltou um pequeno “Scree!” enquanto olhava para ela. Era da cor de
ônix. Até a língua que saía de sua boca era preta como azeviche. Seus olhos
eram de um belo tom de azul, e eles a observavam atentamente.
— Oi, amiguinho — ela sussurrou para a criatura, estendendo a mão
para acariciar suavemente sua cabeça. — Eu sou Cora. Bem-vindo ao mundo.
Ele se inclinou em seus dedos, chilreando e arrulhando, envolvendo as
garras de uma de suas asas em torno de seu dedo e mastigando-o
experimentalmente. Tinha pequenos dentes afiados, mas não estava
mordendo com força.
— Você vai chamá-lo de Simon?
O Marionetista perguntou com um sorriso brincalhão.
— Não. — Ela ainda estava sorrindo para o pequeno lagarto
emplumado e alado. Ele estava lentamente saindo mais de sua concha, e uma
longa cauda estava agora enrolada em seu pulso. Ele rastejou em sua palma.
Suas asas também eram suas patas dianteiras. Ele se espreguiçou, bocejou e
gorjeou para ela novamente.
Cora se apaixonou instantaneamente. Ela não conseguia parar de sorrir.
— Acho que vou chamá-lo de Sombra.

Foi na segunda semana de dezembro que Louis voou para o vagão de


Cora com um laptop debaixo do braço. Eles ainda os chamavam de vagões,
mesmo que tecnicamente não fossem mais isso. A palavra estava muito
enraizada na cabeça de todos.
De todos os que adotaram a nova tecnologia, Bruce e Louis ficaram
empatados em primeiro lugar. Ela se omitiu da corrida, pois tinha apenas seis
anos para recuperar o atraso.
— Cora!
— Bata na próxima vez? — Ela riu. Pelo menos ela estava vestida.
Sombra, que agora era do tamanho de um grande papagaio de arara, estava
empoleirado em seu ombro, sua longa cauda enrolada em volta do pescoço
para ajudar a mantê-lo firme. Ele deu um alô para Louis. Seu “dragão” se
afeiçoou instantaneamente ao Mágico no momento em que o homem
inteligente criou o hábito de alimentá-lo com pedaços de carne crua no jantar.
Louis a ignorou e estava falando a mil por hora.
— Cora, eu-eu sei que você disse Texas em seguida, mas eu falei com
Elena, e ela entende. Temos que ir para Wisconsin. Nós temos de ir agora!
Louis colocou o laptop na mesa da cozinha e abriu a tampa, batendo
freneticamente na barra de espaço para acordá-lo.
— É dezembro, Louis. Ninguém visita Wisconsin em dezembro a
menos que tenha família lá. Você é insano.
Ela nunca tinha visto Louis impaciente por nada, mas parecia que ele
estava prestes a explodir.
— Mas... É exatamente isso. — Ele virou a tela. — Tenho família lá.
Cora teve que fazer um duplo exame. O rosto estampado na tela,
embora ilustrado, parecia notavelmente familiar. Até os olhos. Um azul, um
marrom. “Venha se maravilhar com a mansão do Impossível Julian Strande!”
Cora apenas olhou para ele em um silêncio atordoado.
— Bem... Tudo bem, então. Wisconsin será.
Rudy cheirou o ar. Alguém estava rondando. Alguém que ele não
reconheceu. Eles foram parados durante a noite fora de Nashville. Ele já teve
que afugentar alguns baderneiros que procuravam pintar com spray a lateral
dos caminhões ou quebrar algumas janelas.
Ele teria soltado alguns de seus animais mais cruéis, mas Cora deixou
bem claro que nem ele, nem suas criaturas, tinham permissão para comer
pessoas dentro de Harrow Faire.
Então, ele só tinha permissão para assustar.
Mas ele era muito bom em assustar as pessoas. Ele pulou no topo dos
caminhões e correu por vagões silenciosamente. Como meio lobo, ele não
fazia barulho. Ele encontrou a estranha em um de seus próprios carros. Ele
podia ouvir os animais dentro movendo-se inquietos, sentindo o cheiro
desconhecido.
Uma pessoa. Sozinha.
Com alicates na mão.
Rudy aterrissou sobre a pessoa sem sequer sacudir o caminhão ou dar
um solavanco suficiente para alertar o vândalo.
Era uma mulher.
Ela quebrou a corrente e a soltou, colocando o pedaço de metal e a
fechadura silenciosamente no chão.
Quando ela foi para a maçaneta, Rudy rosnou.
A mulher congelou. Ela olhou para ele. Os olhos âmbar de repente se
arregalaram, emoldurados por cabelos que eram quase pretos, tão escuros na
luz.
Ele se abaixou, cravando suas garras nas chapas de metal do caminhão,
perfurando o aço sem nenhum esforço. A mulher deu um passo para trás.
Depois um segundo.
E então ela o esmagou no rosto com os alicates como se fossem um taco
de beisebol e ela estava balançando para as arquibancadas.
O golpe foi mais chocante do que doloroso. Oh, doeu, quando ela o
acertou bem no olho. Ele estava sangrando. Mas ele não poderia se importar
menos. Ela tinha dado o primeiro golpe. Eu vou matá-la agora.
Ele a perseguiu, ansioso pela caçada, rosnando e estalando em seus
calcanhares enquanto ela corria. Seu andar era estranho. Um pouco irregular.
Mas ele não poderia se importar menos.
Sangue. Carne. Matar.
Rudy a encurralou em um canto.
Sua presa recuou contra a parede, sem ver escapatória. Ela ergueu os
alicates como um taco de beisebol.
— Fique longe de mim, ouviu? Eu não me importo com que tipo de
merda mutante eles injetaram em você, cachorrinho. Eu não quero te
machucar, mas eu vou.
Ele se aproximou dela, abaixando-se de quatro, e ainda era quase tão
alto quanto ela. Ele era enorme nesta forma. Facilmente 3,5 metros de altura
se ele ficasse ereto. Ele podia sentir a saliva pingando de sua boca. Ele estava
tão ansioso para quebrá-la em pedacinhos.
— Rudy. Chega.
Ele girou e rosnou para a intrusa. Cora. Ele abriu a mandíbula em
ameaça, mostrando os dentes para ela.
— Entendo. Você está chateado.
A Contorcionista apertou mais o casaco. Ela estava de sandálias e
parecia ainda estar de pijama. A líder de Harrow Faire olhou para a mulher
aterrorizada com o alicate.
— Os animais aqui não são maltratados, você sabe. Eu aprecio o
sentimento. Mas eles são todos bem-amados e cuidados. Você deveria ver o
que Rudy aqui fez com aquela PetSmart7 em Atlanta.
Rudy rosnou baixo.
Cora o olhou friamente.
— Eu disse chega.
O tom em sua voz o fez estremecer. Ele fechou os dentes com um estalo.
Ele obedeceria. Mas isso não significava que ele ficaria feliz com isso.
— Eu sei que você tem péssimas maneiras Rudy, mas realmente... —
Cora sorriu conscientemente. — Isso é jeito de cumprimentar nossa nova
Mestra de Cerimônias?

Família.
Não é com quem você nasceu. Não é quem te criou. É quem você escolhe. É seu
clã, seus amigos, as pessoas pelas quais você morreria antes de deixá-las sofrer. É com
quem você ri, com quem você chora, e com quem você ajudaria a esconder um corpo se
eles pedissem.
Também não significa que sejam boas pessoas.
Com o passar dos anos, percebi que “bom” e “mal” não existem. São palavras
falsas dadas a conceitos falsos que deveriam nos ajudar a dormir bem à noite. Assim,

7 Rede de petshops que trabalham com venda de animais pequenos e seus produtos.
podemos apontar o dedo para as pessoas de quem discordamos e dizer que suas ações
foram erradas.
Existem pessoas que fazem coisas más? Sim. Eles fazem. Eu deveria saber.
Confie em mim. Eu provavelmente sou uma eu mesmo. Por quê?
Porque eu tiro do mundo para ajudar minha Família. Eu os ajudo quando eles
precisam. Eu sorrio quando eles sorriem. Eles são as únicas coisas neste mundo que
importam para mim. E eu destruiria qualquer um – incluindo você – se eu achasse
que você poderia machucá-los.
Isso provavelmente me torna uma daquelas pessoas “más” mencionadas acima.
Pergunte-me se eu me importo. Por que não importa?
Porque eu sei que você faria a mesma coisa pelas pessoas que você gosta. Pelas
pessoas que você chama de Família. Por quem você realmente ama.
E se você não iria? Se você não atiraria em um estranho se isso significasse
salvar a vida de alguém importante para você?
Então eu tenho pena de você. E acho que está na hora de encontrar uma nova
Família.

Se todas as luzes do dia acordado,


Apenas se desviassem,
As esperanças e sonhos que você orou para manter,
E os fizesse nada além de ovelhas rebeldes.
Eu digo a você, que a liberdade chama.
Encontre sua casa onde a escuridão cai.
Não temas a voz que te chama aqui,
Por Homens Mais Fortes, Palhaços e Marionetistas.
Venha tomar o seu lugar aqui ao nosso lado,
E recupere tudo o que lhe foi negado.
Pois Família é onde podemos encontrar,
O que não podemos deixar para trás.
Venha um, venham todos,
Para Harrow Faire.
E cumprimentem seu mais doce pesadelo.

- Cora Waite
0. A Contorcionista
1. O Mágico
2. A Trapezista
3. A Aerialista Vago.
4. Mestre de Cerimônias Vago.
5. O Pegador
6. Os Gêmeos Vago.
7. O Domador de Animais
8. O Homem Mais Forte Vago.
9. A Mulher Barbada
10. O Malabarista
11. O Cuspidor de Fogo
12. O Aparelhador Vago.
13. O Palhaço Vago.
14. A Costureira
15. O Marionetista
16. A Adivinha Vago.
17. A Diva
18. O Puxador
19. O Mecânico
20. O Maestro
21. A Faire

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