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DE UM HOMEM
Marina Feijóo
Copyright © 2021, Marina Feijóo
Marina Feijóo
O pior pesadelo de um homem
1ª Ed.
São Paulo - SP, 2021
Esse conto fala sobre assexualidade, mas não tem o menor intuito
de representar essa sexualidade ou a vivência como um todo, afinal, a
assexualidade é um espectro e tem diversas maneiras de ser entendida
e expressada. A história é focada em uma experiência particular de se
entender enquanto parte do espectro assexual. É importante lembrar
que cada pessoa (ou súcubo!) tem seu próprio processo de
autoconhecimento.
AVISO DE GATILHO
– Morra, vagabunda!
O grito ecoou pelo edifício vazio e tudo que se pôde ouvir em
seguida foi o som baixo e úmido da lâmina penetrando a carne, bem
abaixo da caixa torácica. Assustado consigo mesmo, o garoto deixou de
se sentir homem e largou a faca, tombando no chão sujo. Ele nunca
tinha cometido ato tão violento. Ou ao menos, era isso que pensava de
si mesmo.
A garota, por sua vez, continuava de pé, encarando-o, sem
esbanjar reação.
O sangue nunca veio à superfície e a roupa dela continuou intacta;
exceto pelos botões da saia que tinham sido arrancados à força mais
cedo.
Mas isso não contava. Não para ele.
– Eu não entendo vocês, homens... – ela, enfim, resmungou,
puxando a faca do próprio corpo sem nenhum esforço. – Na verdade, eu
não entendo vocês humanos. Se uma mulher quer sexo, ela é
vagabunda. E se ela não quer sexo, ela também é vagabunda!
Em passos firmes, ela caminhou em direção ao garoto, ainda de
arma em punho.
– Existe saída para criaturas como eu? – ela continuou a falar,
mesmo que o garoto fosse incapaz de responder qualquer coisa. –
Existe um jeito de viver em paz? Existe um jeito de viver? Por que sexo
é mais importante pra você do que a vida de uma mulher, hein?
Ele tentou balbuciar mais uma vez, mas as palavras morreram na
garganta dele, que nunca esteve do outro lado da faca.
– Não precisa responder – ela disse, por fim. – Isso aqui é muito
maior que você. É uma resposta que eu busco há décadas e devo
continuar por toda a eternidade.
Inerte por medo e encantamento, o garoto permaneceu no chão,
apenas observando enquanto a criatura com aparência de mulher
sentava sobre seu colo. Um êxtase incomum tomou cada centímetro de
si, em uma necessidade urgente de tocá-la. Não era como com todas as
outras garotas que lhe despertavam intenso desejo sexual. Nenhuma
era como ela.
Ele soube, naquele momento, que se tornara a presa.
– Mas sabe o que eu aprendi nessa minha longa existência? – Ela
encostou a ponta da faca nos lábios dele. – O pior pesadelo de um
homem é uma mulher que não morre.
Então enfiou a faca na garganta dele.
DESERTO DAS TABERNAS, ESPANHA. 1820.
– Por que está aqui? – perguntou o homem careca, com uma pele
branca rosada já envelhecida e marcada por rugas. Através dos óculos
grossos, ele examinava Dahlia a uma distância segura, como se não
bastasse a camisa de força que ela vestia.
– Eu é que pergunto isso! – Dahlia gritou. – Vocês me jogaram
nesse buraco!
O homem deu um passo para trás, mas em seguida ajeitou o
jaleco, tentando parecer confiante. Dahlia podia sentir o odor de medo
impregnando a minúscula cela onde ela estava enclausurada. Tinha
cheiro de suor frio. Se fosse somente ele a enfrentar, ela já teria
escapado do maldito hospital há semanas. Nem precisava dos braços
para destruí-lo, bastava avançar com uma mordida na jugular que ela
estaria alimentada e livre.
Infelizmente, haviam guardas. Além de outros médicos, enfermeiros
e os muros que cercavam o local. Violência não resolveria o problema
como de outras vezes. Ainda assim, ela mostrava os dentes para o
médico, como um felino antes de atacar, tentando intimidá-lo.
Ele pigarrou e anotou algo em uma prancheta.
– Já vejo qual seu problema. Você é uma daquelas… – Hesitou. –
Histéricas.
Dahlia conhecia o termo. Era assim que chamavam mulheres como
ela, sem interesse sexual, e também mulheres como as suas irmãs,
com interesse “exagerado” no assunto. Ele era usado, na verdade, para
designar uma grande variedade de mulheres, taxando todas igualmente
de problemáticas e doentes. Dahlia não entendia a lógica dos homens.
Como qualquer uma das opções podia ser um problema? E se elas
não podiam desejar sexo, mas também não podiam se privar do
mesmo, o que lhes restava?
Descobriu que restava o cativeiro e a submissão.
– Nós vamos te consertar. – O médico afirmou. – De um jeito ou de
outro.
Só que Dahlia não tinha nascido uma mulher-demônia para
terminar daquele jeito.
— Nós temos que fazer alguma coisa — Sara dizia com fogo no
olhar.
Na mira, estava um garoto já muito conhecido na universidade por
ter estuprado seis meninas. Só que ele era estudante de medicina de
uma longa linhagem de médicos e nada era feito para impedi-lo. Ele
continuava caçando pelas festas como se nada tivesse acontecido.
Porém, se dependesse de Sara, ele logo deixaria de ser caçador
para tornar-se presa.
— Qual o plano? — Dahlia perguntou, segurando a mão da
namorada.
— O de sempre. Seduzir, conquistar e matar.
— Tem certeza? Quer que eu vá com você?
— Relaxa, amor, não vou precisar de muito — ela garantiu,
puxando Dahlia para um beijo rápido, mas carinhoso, antes de sair
andando pela pista de dança com o copo na mão.
A escuridão, a música alta e as luzes coloridas que piscavam na
cara dela não ajudaram Dahlia a acompanhar o que acontecia com
Sara. Em um momento ela estava sussurrando algo no ouvido do
garoto, no momento seguinte eles tinham sumido do campo de visão.
Um desespero tomou conta da Dahlia, como um mau
pressentimento que subia pela garganta em forma de grito por socorro.
Por mais que quisesse confiar que Sara era esperta e sabia bem o que
fazer, afinal tinha séculos de experiência nas costas, a sensação que
algo estava muito errado ainda martelava. Por isso, saiu correndo,
perguntando por todo lado se alguém sabia para onde tinha ido a garota
tatuada de turbante junto com o cara.
Não podiam ter ido muito longe, afinal tinham acabado de sumir.
Perguntando pela festa, Dahlia finalmente encontrou uma garota
que sabia para onde o garoto costumava levar as vítimas. Um prédio
abandonado perto dali, antigo auditório de palestras. Dahlia correu para
lá sem pensar duas vezes. Quando chegou no prédio, encontrou a porta
arrombada e o interior repleto de garrafas vazias espalhadas, que
provavelmente acumulavam-se pelos cantos há bastante tempo. Ela se
esgueirou pelas sombras, procurando pelos dois, e conforme avançava,
começou a ouvir vozes cada vez mais nítidas.
Reconheceu a de Sara, molenga e arrastada.
Ainda assim, era possível entender perfeitamente o que ela dizia:
não.
Dahlia seguiu o barulho, notando que vinham do segundo andar.
Subiu as escadas com rapidez e foi verificar as salas, escondendo-se
ao máximo contra as paredes. Foi quando ouviu um baque, como um
corpo caindo, que ela finalmente encontrou os dois.
Sara estava jogada no chão, claramente drogada, sem o brilho e o
instinto assassino que lhe era próprio. O copo de bebida caído ao lado
dela denunciava a tática de dopá-la para atacar. “Os métodos para calar
uma mulher são muitos.”, Fatin lhe dissera no dia em que se
conheceram e Dahlia podia ouvir a voz dela ressoar em seus ouvidos
enquanto avançava para cima do garoto, movida por fúria. Chutou ele
com força, jogando-o para longe de Sara.
Dahlia então se ajoelhou ao lado da amada para verificando se ela
estava bem. No entanto, o breve momento de cuidado e distração a
deixou vulnerável. O garoto aproveitou para revidar o golpe. Ele puxou
Dahlia pelos cabelos longos e jogou no chão, subindo em cima dela
para imobilizá-la. O cheiro de morte impregnou o ambiente.
— Não precisa ficar com ciúmes, não — ele disse em tom de
deboche, tentando arrancar a saia de Dahlia com uma mão. — Eu tenho
o suficiente pra você também.
Dahlia cuspiu na cara dele, debatendo-se. O garoto puxou uma
faca do bolso, com ainda mais ódio no olhar, apontando a lâmina no
rosto dela. Porém, foi a vez de Sara defender a amada. Mesmo grogue,
ela conseguiu se levantar e jogar o corpo por cima dele, enrolando o
braço ao redor do pescoço dele com força o suficiente para fazê-lo
engasgar. Dahlia aproveitou para se soltar das garras do garoto, por
muito pouco, pois uma vez que derrubou Sara das próprias costas com
uma cotovelada, ele empunhou a faca e gritou:
— Morra, vagabunda!
AGRADECIMENTOS
Você achou que essa era a única história que preparei para
Outubro?
Se enganou! Logo mais lançarei outra história com protagonismo
assexual, mortes e sangue para comemorar o mês da Visibilidade
Assexual e o Halloween! Enquanto isso, deixo aqui um trecho para dar
um gostinho de “quero mais”...
— Eu sei que você vai me julgar, mas sabe aquela lista que tá
rolando de melhores lugares pra se pegar no campus?
A voz de Bárbara ressoava na cabeça de Alice, repetindo a mesma
frase várias e várias vezes. Era a melhor pista que tinha sobre o
paradeiro da amiga, por isso entrou nos grupos de WhatsApp da
faculdade até encontrar a maldita lista. Eram cinco lugares: o mato ao
redor da Faculdade de Enfermagem, o vão embaixo do Bandejão da
Química, o antigo prédio abandonado da Arquitetura, a arquibancada do
Centro Esportivo e o “Lago da Morte”.
Esse último ficava num desvio de caminho entre a Educação Física
e o Instituto de Artes, o que significava ter que passar pelo corpo de
******. Achou melhor ir para o outro lado. Até porque Bárbara não iria
para o local mais próximo da Educação Física se estava justamente
tentando fugir dos olhares curiosos de conhecidos.
Decidiu, então, pelo prédio de Arquitetura, era o menos pior das
opções.
Alice caminhou pelas ruas em estado de alerta. A ponta do taco de
beisebol metálico que carregava ia arrastando contra o concreto e
produzia um som irritante que, no momento, sumia entre os
pensamentos nervosos. Pandora tinha roubado de um amigo que
também estava à caráter com uma máscara de filme de terror e o taco
ensanguentado. Não era a arma mais eficiente, mas era melhor que
nada. Pesado o suficiente para derrubar alguém.
Algumas pessoas passaram por ela no caminho, rindo
despreocupadas, o que deixou Alice com vontade de gritar e mandar
que fossem embora. E ela de fato gritou uma vez quando um grupo de
amigos parou de carro para perguntar onde era o Instituto de Artes.
— NÃO VÃO PARA LÁ! Tem um assassino a solta! Fiquem no
carro, peçam ajuda!
— Uau, bem que me disseram que o pessoal de Artes adorava um
tema elaborado, mas ó, vocês se superaram! Vai ter tipo uma gincana
pra achar o assassino ou algo assim? — o garoto que estava dirigindo
perguntou. Ele estava vestido de Fred do Scooby-Doo e Alice acharia o
conceito todo bem engraçado em outro momento, se não estivesse
desesperada.
— Não tem gincana, eu nem sou de Artes, tem mesmo um
assassino no campus!
— Ih, acho que a mina tá surtada… — o Salsicha comentou do
banco de trás e todos riram da cara dela antes de partir com o carro. Até
mesmo a Velma. Alice bufou, frustrada.
Não conseguia deixar de pensar que talvez devesse ter tirado uma
foto do corpo todo ensanguentado para ver se alguém acreditava, mas
não tinha pensado nisso no momento de desespero. De qualquer jeito,
era bem capaz que ainda duvidassem, julgando ser uma pegadinha. Ela
julgaria. O Halloween camuflava o perigo verdadeiro com sangue falso.
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