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O PIOR PESADELO

DE UM HOMEM
Marina Feijóo
Copyright © 2021, Marina Feijóo

Leitura sensível: Karolyne T.


Leitura crítica e edição: G.G. Diniz
Diagramação digital: GL Editorial
Revisão: Marina Feijóo
Capa: Laís Lacet

Marina Feijóo
O pior pesadelo de um homem
1ª Ed.
São Paulo - SP, 2021

Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua


Portuguesa. Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra, de qualquer
forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de
processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem
permissão de seu editor.
A violação de direitos autorais é crime previsto na lei nº. 9.610, de
19 de fevereiro de 1998.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor,
qualquer semelhança com acontecimentos reais é mera coincidência.
Todos os direitos desta edição reservados pela autora.
ÍNDICE

O PIOR PESADELO DE UM HOMEM


DIREITOS AUTORAIS
NOTA DA AUTORA
AVISO DE GATILHO
SALAMANCA, ESPANHA. 2013.
DESERTO DAS TABERNAS, ESPANHA. 1820.
GÉRGAL, ESPANHA. 1822.
VERONA, ITÁLIA. 1895.
LISBOA, PORTUGAL. 1952.
CAIRO, EGITO. 1990.
DESERTO DAS TABERNAS, ESPANHA. 1995.
MADRID, ESPANHA. 1999.
PARIS, FRANÇA. 2008.
SALAMANCA, ESPANHA. 2013.
AGRADECIMENTOS
ESPERA AÍ, TEM MAIS...
SOBRE A AUTORA
NOTA DA AUTORA

Esse conto fala sobre assexualidade, mas não tem o menor intuito
de representar essa sexualidade ou a vivência como um todo, afinal, a
assexualidade é um espectro e tem diversas maneiras de ser entendida
e expressada. A história é focada em uma experiência particular de se
entender enquanto parte do espectro assexual. É importante lembrar
que cada pessoa (ou súcubo!) tem seu próprio processo de
autoconhecimento.
AVISO DE GATILHO

Esse conto aborda cultura de estupro e feminicídio. Tem cenas de


assédio, violência, "canibalismo", perseguição religiosa e internação
compulsória. Apesar de não ser muito gráfico, leia com cuidado.
Para todas as criaturas que não
se encaixam nas normas sexuais.
“O que é que pedimos ao sexo, além de seus prazeres possíveis,
para nos obstinarmos tanto? Que paciência, ou que avidez é essa em
constituí-lo como o segredo, a causa onipotente, o sentido oculto, o
medo sem trégua?” Michel Foucault — História da Sexualidade. Vol
1: A Vontade de Saber
SALAMANCA, ESPANHA. 2013.

– Morra, vagabunda!
O grito ecoou pelo edifício vazio e tudo que se pôde ouvir em
seguida foi o som baixo e úmido da lâmina penetrando a carne, bem
abaixo da caixa torácica. Assustado consigo mesmo, o garoto deixou de
se sentir homem e largou a faca, tombando no chão sujo. Ele nunca
tinha cometido ato tão violento. Ou ao menos, era isso que pensava de
si mesmo.
A garota, por sua vez, continuava de pé, encarando-o, sem
esbanjar reação.
O sangue nunca veio à superfície e a roupa dela continuou intacta;
exceto pelos botões da saia que tinham sido arrancados à força mais
cedo.
Mas isso não contava. Não para ele.
– Eu não entendo vocês, homens... – ela, enfim, resmungou,
puxando a faca do próprio corpo sem nenhum esforço. – Na verdade, eu
não entendo vocês humanos. Se uma mulher quer sexo, ela é
vagabunda. E se ela não quer sexo, ela também é vagabunda!
Em passos firmes, ela caminhou em direção ao garoto, ainda de
arma em punho.
– Existe saída para criaturas como eu? – ela continuou a falar,
mesmo que o garoto fosse incapaz de responder qualquer coisa. –
Existe um jeito de viver em paz? Existe um jeito de viver? Por que sexo
é mais importante pra você do que a vida de uma mulher, hein?
Ele tentou balbuciar mais uma vez, mas as palavras morreram na
garganta dele, que nunca esteve do outro lado da faca.
– Não precisa responder – ela disse, por fim. – Isso aqui é muito
maior que você. É uma resposta que eu busco há décadas e devo
continuar por toda a eternidade.
Inerte por medo e encantamento, o garoto permaneceu no chão,
apenas observando enquanto a criatura com aparência de mulher
sentava sobre seu colo. Um êxtase incomum tomou cada centímetro de
si, em uma necessidade urgente de tocá-la. Não era como com todas as
outras garotas que lhe despertavam intenso desejo sexual. Nenhuma
era como ela.
Ele soube, naquele momento, que se tornara a presa.
– Mas sabe o que eu aprendi nessa minha longa existência? – Ela
encostou a ponta da faca nos lábios dele. – O pior pesadelo de um
homem é uma mulher que não morre.
Então enfiou a faca na garganta dele.
DESERTO DAS TABERNAS, ESPANHA. 1820.

Dahlia nasceu durante uma noite limpa em pleno deserto.


A lua, cheia e vermelha, acompanhou o ritual que ocorria na Terra
em cumplicidade. As parideiras ficavam no meio da roda formada por
todas as outras mulheres nuas e pintadas por sangue de homens. Ao
som de cantos e gritos, elas dançavam em ritmo frenético, mas
harmonioso enquanto dividiam a dor que envolvia colocar uma nova
criatura no mundo. Foi em meio a mais pura união que Dahlia respirou
pela primeira vez o ar terreno.
Tinha cheiro de vida e de morte.
As primeiras décadas de sua vida foram as melhores. Antes de se
tornarem maduras para o despertar sexual, elas não caçavam ou
reproduziam. E enquanto ainda era uma não-mulher, Dahlia vivia em
pleno conforto entre as suas, sem preocupações. No entanto, o conforto
foi se dissipando com a passagem dos anos, conforme as irmãs da
mesma geração que ela iam despertando entre sonhos eróticos e
orgasmos para o chamado da natureza.
E Dahlia ficava para trás.
Naquela noite de lua cheia, a criatura-garota de cabelos
avermelhados e pele cor de areia branca adentrou na tenda já com um
mal pressentimento. A primeira coisa que avistou foi Sara, sua
companheira mais próxima. Ela estava no centro da roda formada pelas
mais velhas que, em ritmo de comemoração, pintavam o corpo nu dela
com sangue fresco.
A pele de tom amarronzado dela reluzia conforme era coberta pelos
desenhos. Os seios volumosos e caídos foram contornados por espirais
que terminavam nos mamilos. Nas pernas, as linhas circundavam as
coxas grossas como anéis. E, sobre o ventre, acima da virilha, uma
mulher pintava um triângulo invertido, ainda incompleto.
Sara estava linda, mais do que de costume. Radiante. O despertar
costumava causar esse efeito, mas aos olhos de Dahlia, Sara era ainda
mais especial. Ela sempre foi.
Dahlia se esgueirou, tentando passar despercebida. Só queria
entregar um presente para Sara, nada além disso. Contudo, ela logo foi
flagrada pelo olhar atento da companheira.
– Dahlia! Você veio! – Ela comemorou. – Veja só como estou!
Sara girou no centro da roda, exibindo os desenhos. As mulheres
ao redor dela, cobertas por véus coloridos, fizeram uma pausa na
pintura para observá-las com curiosidade.
– Está perfeita! – Dahlia comentou, sem conseguir conter um
sorriso que insistia em aparecer toda vez que via Sara feliz. – Tenho
certeza que conseguirá o melhor deles!
– Eu mal posso acreditar… Minha primeira caçada! Esperei tanto
por esta noite!
Dahlia não compartilhava do sentimento ou sequer o entendia. E
toda vez que o assunto surgia, um incômodo se alastrava por todo seu
corpo, lembrando-a que um dia seria a vez dela. Pelo bem de Sara, a
garota apenas concordou com a cabeça e disse:
– Vim te desejar uma boa caçada e te entregar um presente... É
para dar sorte.
Ela se aproximou, passando entre as mais velhas que a
encaravam. Ao chegar perto de Sara, abriu a mão direita, revelando um
colar trançado com uma pedra negra na ponta. Sara ficou tão animada
que a abraçou sem ligar para a pintura, deixando-a marcada em
vermelho
– Você me fez um amuleto? Obrigada, Dahlia! Eu queria tanto que
minha primeira caçada fosse junto de ti. Sempre achei que chegaríamos
ao nosso despertar juntas.
Surgia, então, aquele assunto que Dahlia tanto evitava. E desde
que Sara havia tido o primeiro sonho erótico, estava cada vez mais
difícil driblar aquela conversa.
– É… Uma pena… – murmurou, tentando sair do centro da roda,
mas as outras mulheres a cercaram, interessadas na conversa. Elas
sempre tinham comentários a fazer.
– Ainda não teve o sonho, Dahlia? – perguntou uma coberta por um
véu roxo.
– Talvez você precise de mais estímulo. – disse outra, vestida de
amarelo.
– Não é normal que na sua idade ainda não tenha despertado… –
opinou a mais experiente delas, Azahara, que usava um véu vermelho.
Todas concordaram. Exceto Dahlia.
No fundo, ela agradecia por não ter passado pela experiência. Não
gostava de pensar em línguas, mãos, saliva e outros fluídos. Via as
irmãs se contorcerem de prazer e achava bizarro, para dizer o mínimo.
Não entendia como poderia ser proveitoso sentir o ventre queimar de
excitação. No entanto, jamais poderia admitir isso em voz alta.
– Vamos, Dahlia, tem certeza que não quer vir conosco hoje? –
Sara perguntou, piscando os olhos amendoados. O efeito sedutor
deveria funcionar apenas em humanos, mas Dahlia engoliu em seco.
Dava mesmo vontade de atender aos desejos dela.
Ela titubeou, incerta.
– Não me sinto pronta... – murmurou. Porém, Sara segurou suas
mãos e insistiu:
– Eu estarei contigo. E você pode aprender sobre poder sexual
conosco.
– Sara está certa. – Azahara complementou. – Temos muito o que
te ensinar.
Diante dos olhares de expectativa, Dahlia acabou cedendo.
Não pelas mais velhas, que a julgavam, e sim pelos olhos doces de
Sara.

A areia ainda quente sob os pés descalços de Dahlia contrastavam


com o vento gelado da noite que soprava contra o caminho que elas
faziam, quase como se insistisse para que elas voltassem. Dahlia queria
voltar, porém já estava longe demais para retornar sozinha.
E as regras que Azahara ditava pelo caminho a desencorajavam
ainda mais.
– São três regras principais para a caçada que servem para a
nossa sobrevivência em qualquer outra situação. Por isso, ouçam bem!
– ela introduziu diante dos ouvidos atentos de Dahlia, Sara e mais cinco
iniciantes que as acompanhavam. – Nós nunca andamos sozinhas ou
em menor número que os humanos no vilarejo. Eles são fracos
fisicamente em comparação a nós, mas podem nos capturar facilmente
quando se juntam. Nunca se esqueçam que a grande vantagem da
humanidade é existir em grande quantidade.
Dahlia e Sara trocaram olhares. Nenhuma das duas vislumbrara a
humanidade em toda potência. Viva. Todos os homens que comeram já
estavam mortos quando chegaram até elas.
– A segunda regra é nunca fazer contato com um humano se não
tiver a intenção de matá-lo, pois, acreditem, ele não pensará duas vezes
antes de atacá-las. Eles são cruéis, sem nenhuma piedade, e não
podemos subestimá-los ou nós acabaremos como presas.
– É por isso que nós os matamos? – indagou uma jovem, de véu
azul escuro como o céu do deserto iluminado pela lua cheia. Dahlia
encolheu-se no véu tom de vinho.
– Sim, a nossa contribuição para a Terra é limpar o mundo dos
homens que se sentem no direito de dominar aquilo que nunca lhes
pertenceu… – Azahara respondeu com um tom saudoso, acompanhada
de murmúrios de concordância por parte das outras mais velhas. – Já
houve um tempo em que andávamos por todas as partes, cumprindo
essa missão, e éramos tão adoradas quanto temidas. Agora nos restam
apenas as caçadas como um lembrete de que resistimos aos séculos de
perseguição. E continuaremos a resistir, se seguirmos as regras.
Na distância marcada pela visão turva, Dahlia avistou casinhas de
pedra, barro e madeira que formavam um pequeno vilarejo tomado pelo
silêncio da madrugada.
O grupo de mulheres-demônias parou a uma proximidade que
ainda não denunciava a presença delas, camuflando-se entre arbustos
secos enquanto observavam a movimentação fraca no local. Dahlia
engoliu em seco, nitidamente nervosa, e Sara se aproximou dela,
abraçando-a por trás como uma forma de passar conforto. Em um
sussurro, disse:
– Eu estou aqui. Vai ser bom para você.
Dahlia retribuiu o gesto de carinho segurando as mãos dela entre
as suas.
Azahara, então, virou-se para as outras com a posição de
autoridade que invocava total atenção, até mesmo daquelas que eram
da mesma geração que ela.
– Por fim, a última regra – disse, levantando o dedo indicador. –
Nunca saiam do deserto. Esse é o nosso território, onde conseguimos
proteção da natureza e conhecemos melhor do que qualquer humano.
Fora daqui… É território que eles tomam pela força.
Houve um breve momento de silêncio no qual as iniciantes
assimilavam as novas informações, guardadas e reveladas somente
entre caçadoras, coisa que elas logo seriam.
– Estão prontas? – perguntou uma das mais velhas, com um
sorriso cheio de malícia.
Dahlia não estava nada pronta, porém claramente não tinha opção.
Todas as outras confirmaram com animação evidente, ansiosas
para tomar a carne humana direto da fonte, apimentando o próprio
prazer, tanto sexual quanto canibal. Elas partiram em direção ao
vilarejo, como um grupo organizado de animais selvagens, cercando as
casas e atraindo as presas com o próprio odor adocicado que exalavam.
Algumas delas riam, outras conversavam, nenhuma parecia aterrorizada
como Dahlia.
Talvez porque já tivessem sonhado com aquele momento.
Logo, os homens do vilarejo despertaram com as vozes femininas.
Ainda que embriagados de sono, eles não puderam resistir a tentação
de ver quem eram aquelas mulheres tão belas e encantadoras que
emitiam um magnetismo sobrenatural.
– E agora? O que fazemos? – Dahlia cochichou discretamente para
Sara, incomodada com a proximidade cada vez maior dos homens. A
outra garota abriu um sorriso maldoso.
– Agora a gente se diverte! – ela respondeu, soltando uma risada
alta.
As mulheres-demônias se espalharam pelo pequeno vilarejo, cada
uma puxando um homem para si enquanto despiam-se dos véus. Eles
as obedeciam sem resistência. Sara foi até o maior deles e se prendeu
ao tronco dele com as coxas fortes. Dahlia ficou parada enquanto
observava a companheira puxar o humano para um beijo luxurioso,
quase devorando a boca dele, e uma sensação desconfortável a
acometeu. Ela sentiu um frio na barriga ao invés do calor que devia
sentir e tudo que queria era sumir daquele ambiente.
Dahlia enrolou-se ainda mais no véu que a cobria e saiu correndo
para uma ruela, enfiando-se atrás de uma casa para se esconder dos
homens que a fitavam com desejo. Era a primeira vez que
experimentava o efeito que a própria existência causava nos outros.
Odiou a sensação. E odiou ainda mais quando um homem se
achou no direito de puxá-la contra sua vontade para um beijo.
– Me solta! – Dahlia gritou, batendo a cabeça contra o nariz dele
com força o suficiente para fazê-lo gritar de dor e cambalear. Ela tentou
se aproveitar do momento para fugir, porém ele a puxou pelo braço com
força, derrubando-a no chão. Dessa vez, a pegou pelo pescoço e
sentou-se sobre o tronco dela, usando o peso do próprio corpo para
prendê-la.
Ele parecia furioso, de uma natureza passional que Dahlia nunca
vira em outros animais. Predadores, inclusive ela, não matavam por
prazer e, sim, por necessidade.
As palavras de Azahara pairaram sobre Dahlia: “Eles são cruéis,
sem nenhuma piedade, e não podemos subestimá-los ou nós
acabaremos como presas.”.
Aquela foi a primeira vez que um homem tentou matá-la por
recusar sexo.
Sorte a de Dahlia que criaturas como ela não morriam.
– Ei! Venha até mim! – Sara chamou na entrada da ruela. Filetes de
sangue escorriam da boca até o queixo, pingando sobre o peito dela.
O homem prontamente se virou, largando Dahlia para trás como
um animal larga um osso roído que já não tem mais carne. O corpo de
Sara todo sujo de sangue fresco não foi sinal vermelho o suficiente para
que ele recuasse. Dahlia levantou-se com destreza e seguiu atrás dele.
Quando o homem alcançou e tocou Sara, com olhos e mãos famintas,
Dahlia o segurou pela cabeça e torceu o pescoço dele até fazer creck.
O corpo desprovido de vida caiu aos pés das duas.
– Você está bem? – Sara perguntou em tom preocupado, tentando
tocar o rosto da outra, porém, Dahlia desviou das mãos dela, arisca.
– Não, não estou nada bem! Eu te disse que não estava pronta!
– Eu achei que podia ajudar!
– Você achou que podia me consertar! – Dahlia rebateu, com a
garganta ardendo e as lágrimas pesadas despencando pelo rosto. Ela
era uma vergonha para a raça.
– Não, Dahlia, não foi nada disso. Eu só queria você aqui comigo e
pensei que talvez se você viesse, você sentisse o que eu sinto... Mas a
gente pode esperar o seu despertar!
– Sara, eu não acho que vou ter um despertar... – ela admitiu em
voz baixa.
– Claro que vai, todo mundo tem! Sexo é o que move o mundo e o
submundo! – O comentário só fez com que Dahlia se sentisse pior. Não
era o que a movia. E talvez ela fosse a única exceção, solitária. –
Vamos, acredite em mim, o seu momento vai chegar.
Dahlia se encolheu novamente, desviando o olhar antes de proferir:
– E se… Eu não quiser que chegue?
Sara a encarou como se ela falasse uma língua completamente
diferente.
– O problema são os homens? – ela perguntou.
– Não, Sara, o problema sou eu! – concluiu Dahlia, chegando a um
ponto que não dava mais para voltar atrás. – Eu vou embora. Acho que
preciso me encontrar para despertar.
– Embora? Você está maluca?! – Sara protestou. – Não ouviu as
regras?!
– Eu ouvi…
– Você não vai sobreviver lá fora!
– Também não acho que vou sobreviver aqui. Eu prefiro arriscar o
desconhecido, porque eu já sei o que esperar dessa nossa vida… E não
quero isso para mim.
Dahlia esperou uma rejeição que não veio e, no lugar disso,
recebeu um abraço apertado de Sara que se jogou contra ela, deixando
que algumas lágrimas pingassem sobre seu ombro nu. Quando se
afastaram, Sara tirou o amuleto que recebera de presente e o devolveu,
colocando-o no pescoço de Dahlia com delicadeza.
– Acho que você vai precisar de sorte mais do que eu – disse,
limpando as lágrimas do próprio rosto em seguida. – E leve um pedaço
deste homem, para não ficar com fome.
Sara se debruçou sobre o cadáver e arrancou um braço com
facilidade, deixando o sangue jorrar e manchar os pés de ambas.
– Então, você não vai me impedir? – Dahlia murmurou, abrindo um
sorriso em meio às lágrimas. Já sentia saudades de Sara antes mesmo
de partir. Do toque, da voz e do afeto.
– Você sabe tanto quanto eu sobre a vida… Não adianta querer te
impedir se está tão certa do que deseja e do que não deseja. Além
disso, nós somos eternas. – Sara segurou as mãos de Dahlia com
carinho e a puxou para um abraço apertado. – Ainda nos
encontraremos.
Quando se afastaram, Sara lhe deu um beijo de despedida na
boca. Saudoso, ainda que rápido. Dahlia passou a língua pelo lábio
inferior, sem nem perceber, saboreando o gosto de sangue e a
sensação de conforto antes de partir pelo deserto sem olhar para trás.
GÉRGAL, ESPANHA. 1822.

Dahlia vagou a esmo pelo deserto e depois pelas montanhas, por


mais tempo do que era capaz de mensurar com a passagem dos dias e
das noites. Não encontrou humanos vivendo em nenhuma dessas
paisagens: para criaturas cuja força residia na quantidade, até que eles
não pareciam tão poderosos assim. Ela só foi entender que a
quantidade era bastante localizada quando, enfim, se aproximou daquilo
que conheceria como “civilização”.
Por trás da Serra de los Filabres, ela encontrou campos, plantações
e casas. Não como aquelas do vilarejo no deserto, essas eram maiores,
mais bem acabadas e em maior quantidade. Ela as observou de longe,
do alto das montanhas rochosas por alguns dias. Sabia que uma hora
teria que descer, discretamente, para buscar alimento. Por mais que
sobrevivessem por longos períodos sem se alimentar de carne humana,
seu estômago começava a reclamar do vazio. Uma dor dilacerante que
a rasgava de dentro para fora.
Ela planejou o ataque para a próxima noite de lua cheia,
aproveitando o horário em que os humanos dormiam e baixavam a
guarda. Marcou um dia para testar a própria coragem e, assim que
escureceu, se aproximou da vila, tomando cuidado para não chamar a
atenção. Escondeu-se entre a vegetação local, na espreita do momento
de silêncio.
No entanto, o momento não chegou.
Pelo contrário, quando anoiteceu, os humanos saíram às ruas com
gritos regados à revolta e tochas elevadas aos céus, ofuscando o brilho
da lua com o fogo. Eles carregavam mulheres amarradas e
amordaçadas até um local onde havia uma pilha de lenha. Dahlia
assistiu impotente enquanto homens queimavam aquelas que eles
chamavam de “mouras” e “convertas”, termo que futuramente aprendeu
ser similar à “bruxa”, mas destinado à mulheres muçulmanas e judias.
Chorou por elas como se fossem da mesma raça, embora apenas uma
delas possuísse um brilho sobre a pele que indicava que era mais que
mera humana. Não que isso importasse, pois, entre elas, Dahlia não via
diferença alguma. E os homens que as queimavam tampouco viam.
Quando um deles notou a presença dela, engasgada entre um
soluço e outro, gritou:
– Deixamos uma escapar!
A comoção foi instantânea e alguns dos homens correram em
direção a vegetação atrás de Dahlia que partiu sem pensar duas vezes,
muito mais preparada para lidar com a natureza do que eles.
Atravessando por entre as árvores, ela largou o véu para trás, como
uma pista falsa enquanto seguia por outro caminho. Quando viu que
estava distante o suficiente, subiu em uma árvore com agilidade, à
espreita de qualquer um deles que se afastasse do grupo.
Ela podia fugir, sim, porém seu estômago pedia por comida e o
coração, por justiça.
As chamas das tochas tornavam os alvos fáceis de avistar, mesmo
longe, e as vozes revelavam as intenções de forma tão transparente
que tornava-se burra.
– Onde ela foi?
– Tinha mesmo que ser uma adoradora de demônios.
– Talvez seja melhor voltar e procurar quando amanhecer.
– Está louco? Até lá ela já vai ter fugido – insistiu aquele que
denunciou a presença dela. Um homem de pele rosada, cabelo loiro,
que carregava uma cruz no pescoço do mesmo jeito que ela carregava
o amuleto. O fogo tornava o rosto dele ainda mais assustador.
E Dahlia pensava como essa tinha sido a última coisa que aquelas
mulheres viram.
Quando os outros homens desistiram da busca, mesmo contra os
protestos deste que se colocava como chefe, Dahlia viu a chance
perfeita. Ela deslizou árvore abaixo, tomando cuidado para que seus
pés descalços não denunciassem sua localização, e o seguiu.
Ela só não contava com o fato de que aquele homem também era
um caçador experiente; a movimentação dela não passou despercebida.
Ele virou com tudo, encontrando-se diretamente com Dahlia, cujo olhar
profundo estava fixado nele, medindo a distância para um bote. Porém,
foi ele que atacou primeiro, empunhando uma lança afiada que
atravessou o estômago da criatura-mulher.
Impiedoso, como Azahara descrevera os humanos. Mas também
burro.
– Eu realmente adoro demônias... – Dahlia riu. – Pois elas são
minhas irmãs.
Então puxou a lança do próprio corpo, jogando-a para longe. Os
olhos do homem se arregalaram diante da cena, mas ele não tentou
fugir, hipnotizado pela criatura-mulher. Dahlia avançou em um pulo,
prendendo-se ao tronco dele com as pernas e as garras compridas
como um animal. Não deu sequer chance para que ele processasse o
que estava acontecendo antes de cravar os dentes no pescoço exposto,
arrancando um pedaço grande de carne que mastigou com facilidade
antes de engolir com gosto.
O corpo caiu com espasmos e Dahlia sentou-se sobre ele,
aproveitando para se esbaldar no banquete. Abriu o peito dele com as
próprias mãos, quebrando os ossos pelo caminho até encontrar os
órgãos. Quando encontrou o coração, mordeu como se fosse uma fruta
saborosa. Só depois reparou que os olhos dele ainda estavam abertos,
encarando-a. O choque cobria a íris em tom de azul claro, o que fez
Dahlia sorrir. Porque ela foi a última coisa que ele viu.
VERONA, ITÁLIA. 1895.

Desde que deixara o deserto, Dahlia permaneceu em constante


movimento, indo de vilarejo para vilarejo, o que aos poucos lhe rendeu
algum traquejo social que facilmente enganava os humanos.
Felizmente, eles não tinham um olhar apurado para aquilo que estava
além do plano físico e não eram capazes de ver o brilho que ela
emanava.
Ela conseguiu ajuda aqui e ali, sempre de mulheres e nunca de
homens. Para retribuir fez o mesmo por várias outras que cruzaram seu
caminho quando era possível, libertando diversas “adoradoras de
demônios” que não passavam de humanas que falavam outra língua e
cultuavam um Deus diferente. Inclusive, aprendeu muito sobre o poder
das religiões e descobriu que uma cruz sobre o peito abria muito mais
portas do que um pedido de socorro.
Por isso carregava aquela que roubara do homem que matou,
décadas antes.
A Santa Inquisição eventualmente teve fim. Ou era o que diziam,
pois na prática, ela ainda via muitos resquícios da violência deixada por
aqueles séculos sombrios. Mesmo com todas as críticas e receios,
Dahlia quis acreditar que era possível extrair o único aspecto que havia
de vantajoso no catolicismo para ela: o celibato. Juntou-se a um
convento quando cansou de correr. Não era o ideal, mas era mais
seguro que as andanças.
E entre freiras e padres, Dahlia podia largar suas preocupações a
respeito do seu despertar sexual que nunca chegara. Era uma tática
que aprendera com mulheres que amavam mulheres e recusavam-se a
dormir ao lado de um homem.
Naquela noite chuvosa, Dahlia esperava pela volta de um dos
padres que era enviado para tratar dos casos de possessão que
assolavam o vilarejo mais próximo.
– Irmã Dahlia, boa noite. – O padre a cumprimentou quando ela
abriu a porta.
– Padre Cláudio, boa noite – ela respondeu, esboçando um sorriso
simpático. Aproximou-se do homem alto e esbelto que, agora,
caminhava encharcado de chuva pelo corredor do convento. – Vejo que
o tempo não agraciou sua viagem ao povoado.
– Ao menos você agraciou a minha volta. – ele disse, retirando o
casaco que ia por cima do hábito. Gentil, como de costume. Era o que
Dahlia se forçava a acreditar, mesmo com o estranho calafrio que
tomava-lhe o corpo quando ele estava perto demais. – Ah, será que
você poderia me guiar até o meu quarto? Está muito escuro e minha
vista está cansada.
Os dois caminharam pelo longo corredor que levava até a outra
torre do convento, alojado em uma construção medieval. A única fonte
de luz era a chama bruxuleante da vela que Dahlia carregava num
castiçal e o único som que podiam ouvir eram os próprios passos,
sincronizados. Os outros moradores já dormiam um sono profundo.
Alcançaram o quarto do Padre Cláudio ainda em silêncio, onde
Dahlia prontamente se despediu dele. No entanto, quando ela estava
para partir, ele resolveu lhe perguntar:
– O que faz acordada tão tarde, Dahlia?
O tom na voz dele era um tanto maldoso e Dahlia não pôde deixar
de se sentir incomodada pela falta de respeito com que ele se referia à
ela. Não era a primeira vez que deixava o “Irmã” de lado. Ela se virou
para ele, tentando manter a calma.
– Bom, padre Cláudio, – Fez questão de acrescentar. – eu estava
te aguardando para garantir que chegaria em segurança da sua viagem.
Apenas isso.
– Muito doce da sua parte. – ele retrucou com um sorriso pouco
amigável nos lábios.
Não tinha nada de doce. Ela havia sido instruída e incumbida da
tarefa.
– Já que está aqui, – E começou novamente com os pedidos.
Dessa vez, ele se aproximou dela e tocou-lhe o rosto com a ponta dos
dedos. – pode me fazer outro favor?
Dahlia já estava irritada com tamanho abuso, mas sabia que não
tinha direito à escolha ou revolta. No fundo do coração, sentia a
decepção de seu povo, pois elas certamente a julgariam por estar
jogando fora toda a história de mulheres rebeldes que tinham vindo
antes dela para servir à Igreja. Por fim, ela concordou a contragosto,
afastando-se do padre.
– Esquente a água do meu banho, por favor – ele pediu. – Estou
congelando.
Dahlia assentiu e usou o pedido como desculpa para sair dali o
mais rápido possível. Dirigiu-se à cozinha para esquentar as chaleiras e
carregou-as, em seguida, até o banheiro particular de Cláudio; um
privilégio que os padres de posição mais alta possuíam. Ao terminar, se
virou e se deparou com o padre tapando a porta, sem as vestimentas.
Ela deu um passo para trás, desviando o olhar do corpo nu a sua
frente. Ainda assim, o padre assumiu que a existência dela era nada
mais que um convite, e disse:
– Eu vejo o modo como me olha, Dahlia.
– Não sei do que está falando! – ela retrucou com firmeza.
E somente diante dos olhos que a comiam por inteiro, Dahlia
entendeu que voto de castidade não implicava na ausência de atração
ou desejo sexual.
– Pode tentar enganar os outros com essa pose de boa moça, mas
no fundo do seu olhar tem luxúria pura. Não é possível que uma mulher
como você seja imaculada.
– Eu nunca fiz nada! – ela insistiu, a raiva borbulhando no seu
âmago.
– Você é como as outras que queimam na fogueira! Pecado em
forma de mulher! E não importa quantas vezes reze, nada é capaz de
limpá-la da sua essência.
Ele avançou para cima dela, mas em um movimento rápido Dahlia
conseguiu desviar, deixando que ele caísse na água fervente. Um grito
de dor ecoou pelos corredores escuros do convento, perdendo-se na
distância. Dahlia se aproximou do homem, com frieza ao dizer:
– Tem razão, eu sou feita de pecado. Mas não de luxúria. Eu sou
feita de ira!
E então empurrou o rosto dele para dentro da água, observando
enquanto o homem se debatia em busca de ar, agarrando-se às bordas
da banheira. A pele dele queimava pela temperatura alta enquanto o
pulmão queimava pela grande quantidade de água que entrava pela
boca e pelas narinas. Dahlia apreciou o desespero inebriante até que o
padre finalmente parou de lutar, rendendo-se à morte.
Padre Cláudio foi encontrado na manhã seguinte com pedaços
arrancados a dentadas, o pênis decepado e uma pequena cruz enfiada
goela abaixo. Outros padres do mesmo convento foram encontrados em
condições similares em seus aposentos.
Irmã Dahlia nunca foi encontrada.
LISBOA, PORTUGAL. 1952.

– Por que está aqui? – perguntou o homem careca, com uma pele
branca rosada já envelhecida e marcada por rugas. Através dos óculos
grossos, ele examinava Dahlia a uma distância segura, como se não
bastasse a camisa de força que ela vestia.
– Eu é que pergunto isso! – Dahlia gritou. – Vocês me jogaram
nesse buraco!
O homem deu um passo para trás, mas em seguida ajeitou o
jaleco, tentando parecer confiante. Dahlia podia sentir o odor de medo
impregnando a minúscula cela onde ela estava enclausurada. Tinha
cheiro de suor frio. Se fosse somente ele a enfrentar, ela já teria
escapado do maldito hospital há semanas. Nem precisava dos braços
para destruí-lo, bastava avançar com uma mordida na jugular que ela
estaria alimentada e livre.
Infelizmente, haviam guardas. Além de outros médicos, enfermeiros
e os muros que cercavam o local. Violência não resolveria o problema
como de outras vezes. Ainda assim, ela mostrava os dentes para o
médico, como um felino antes de atacar, tentando intimidá-lo.
Ele pigarrou e anotou algo em uma prancheta.
– Já vejo qual seu problema. Você é uma daquelas… – Hesitou. –
Histéricas.
Dahlia conhecia o termo. Era assim que chamavam mulheres como
ela, sem interesse sexual, e também mulheres como as suas irmãs,
com interesse “exagerado” no assunto. Ele era usado, na verdade, para
designar uma grande variedade de mulheres, taxando todas igualmente
de problemáticas e doentes. Dahlia não entendia a lógica dos homens.
Como qualquer uma das opções podia ser um problema? E se elas
não podiam desejar sexo, mas também não podiam se privar do
mesmo, o que lhes restava?
Descobriu que restava o cativeiro e a submissão.
– Nós vamos te consertar. – O médico afirmou. – De um jeito ou de
outro.
Só que Dahlia não tinha nascido uma mulher-demônia para
terminar daquele jeito.

– Soube que você está organizando uma rebelião.


Uma mulher sussurrou com a boca colada no ouvido de Dahlia que,
pega desprevenida, estremeceu. Estava acostumada a viver em estado
de alerta dentro do hospital, mesmo depois de ser liberada da solitária
por bom comportamento. Sabia que a qualquer momento, eles podiam
decidir que ela era um perigo novamente e trancafiá-la. As paredes do
local tinham os olhos dos guardas e ouvidos dos enfermeiros. Mas
quem a encarava, ali, totalmente vulnerável no banheiro, era uma
mulher. Ou melhor, uma criatura-mulher como ela.
– Me chamo Fatin. E vim oferecer meu corpo à luta.
A voz dela era encantadora, de forma bastante literal, e o brilho
característico das criaturas mágicas cobria a pele marrom e escura. O
cabelo, entre o cacheado e o crespo, estava solto caindo sobre os
ombros. E os lábios grossos formaram um sorriso traiçoeiro.
Dahlia precisou de um momento para se recompor.
– Você é… – Fez menção de deixar a afirmação no ar, mas a outra
respondeu:
– Sim, sou uma súcubo. Como você.
Estava mais chocada por descobrir que havia um nome para o que
elas eram do que por encontrá-la ali. Sempre tinha sido chamada de
“bruxa” e os humanos que conhecera pela vida pareciam alheios à
verdadeira natureza dela. Era reconfortante ter um nome para se
agarrar.
– Eu me chamo Dahlia. – Ela se apresentou, enfim.
– É um grande prazer te conhecer, Dahlia. Se importa de me contar
os planos? Quero te ajudar do começo ao fim. Este lugar… ele é
terrível. Adoraria destruí-lo com você.
Dahlia abriu um sorriso e nem ao menos percebeu. A nova
companheira lhe inspirava uma confiança única. Talvez fosse efeito do
charme natural de súcubo, mas Dahlia sentia que tinha muito mais a ver
com o olhar profundo que não desviava do seu próprio.
Ela puxou Fatin para uma cabine e fechou. As duas, comprimidas
naquele local minúsculo, ficaram a uma distância mínima uma da outra.
Então, Dahlia explicou o plano:
– Eu estava organizando as humanas, muitas delas estão dispostas
a lutar para se libertar. Estamos juntando objetos cortantes, qualquer
coisa que sirva de arma.
– Hmmm, e o que acha da minha boca? – Fatin perguntou, abrindo
um sorriso que mostrava os dentes brancos. – Tenho certeza que meus
dentes são muito mais eficientes. E você sabe que não somos as únicas
da nossa espécie presas nesse cativeiro, né?
– Como assim? Onde estão as outras? Por que ainda não
destruíram este lugar?
Fatin soltou um suspiro pesado diante da pergunta, balançando a
cabeça negativamente.
– Porque a maioria de nós está dopada, ou permanentemente
danificada, seja por drogas, terapia de choque, lobotomia… Os métodos
para calar uma mulher são muitos. E como eles sabem que não podem
nos matar, inventam motivos para nos internar.
– Eles sabem sobre nós…?
O brilho que envolvia Fatin tornou-se escuro, como o olhar dela.
– Sabem o suficiente para criar meios de nos prender.
Houve um momento de silêncio, enquanto Dahlia processava as
informações.
Eles sabiam. E não só sabiam quem elas eram, mas como
aprisioná-las. Seu sangue ferveu de raiva. Mais uma prova de que não
tinha para onde escapar.
O único caminho era enfrentá-los.
– Pois vamos ajudar nossas irmãs! A gente precisa se reunir para
tomar esse lugar! – Dahlia esbravejou, empolgando-se além da conta e
Fatin tapou a boca dela com a ponta dos dedos, em um pedido de
silêncio. O toque, apesar de autoritário, era suave.
– Desculpa, – Fatin disse. – mas você precisa tomar cuidado se
deseja ser nossa líder.
– Não é bem uma questão de desejo… – Dahlia rapidamente
retrucou. – Eu não queria esse papel, ele só caiu no meu colo porque eu
achava que era a única imortal aqui.
– Bom, ele combina com você. Te seguiria sem pensar duas vezes.
Dahlia sentiu um rubor tomar o rosto, num misto de vergonha e
apreço. Se Fatin achava que o papel de líder lhe cabia, ela faria o
melhor para corresponder às expectativas.
– Vai ter uma lua cheia daqui a duas semanas. É a nossa melhor
chance – disse, por fim retomando os planos. – Você consegue juntar as
nossas irmãs nessa missão?
– Acho que sim. Também tem bruxas por aqui, e elas adoram uma
boa confusão.
– Ótimo. Então, vamos continuar a organização. Juntas, faremos
história.
Fatin sorriu e balançou a cabeça em concordância, antes de
murmurar:
– Sim, juntas.
A revolta que ocorreu sob o testemunho da lua cheia foi bem
sucedida.
Lideradas por Dahlia e Fatin, mulheres humanas e não-humanas se
reuniram no pátio com pedaços de madeira, objetos cortantes e vozes
potentes. Os guardas e enfermeiros rapidamente interviram,
respondendo com violência exacerbada e armas letais. Nos momentos
de conflito direto, as súcubos se colocavam à frente e partiam para o
confronto, pois não temiam a morte. Não importava quantas balas ou
facadas levassem, jamais cairiam.
No final, conseguiram abrir os portões do hospital.
Primeiro libertaram as humanas, depois as bruxas e então as
outras mulheres-demônias. Fatin e Dahlia permaneceram juntas,
lutando até que o último guarda caiu morto no chão, com a garganta
dilacerada. Apesar do sucesso, a revolta foi apagada da história. Afinal,
os homens nunca permitiriam que mulheres rebeldes fossem
eternizadas.
CAIRO, EGITO. 1990.

— Não acredito que você nunca pensou em sair da Europa. Como


pôde ficar tanto tempo em um lugar minúsculo e terrível como aquele?
— Fatin comentava toda vez que se deparava com o olhar deslumbrado
de Dahlia diante de alguma outra cultura. — É possível enxergar o
mundo por lentes menos colonizadoras, sabia? É infinitamente melhor!
Na verdade, Dahlia não sabia. Assim como não sabia muito sobre
as “ciências humanas” que, comparadas às "ciências da natureza”,
pareciam muito menos agressivas. Ela achava o nome irônico porque,
no seu vocabulário, “humano” era sinônimo de agressividade.
Fatin a levou Europa afora, passando por diversos países da África
e da Ásia para lhe provar que existia muito mais além das versões da
história que Dahlia conhecia. As duas visitaram praias, florestas e
desertos, como também impérios marcados pelo tempo e construções
modernas. Fatin gostava especialmente de museus. Ela dizia que eles
concentravam um pouco de tudo que havia no mundo e mesmo quando
as peças eram roubadas de outros países, porque aparentemente
humanos não conseguiam respeitar nem mesmo divisões criadas por
eles, as obras ainda contavam uma história.
— E não me deixe começar a falar sobre arte! Você sabe que me
empolgo!
— Ah, mas pode começar. Você sabe que amo te ver empolgada.
E Fatin explicava sobre diversos movimentos artísticos, de vários
países e até continentes, e como cada um deles expressava algum
aspecto da humanidade e de tudo que pensavam sobre o mundo. Não
importava quantas obras conhecesse, Fatin sempre seria a arte mais
pura e bela que os olhos de Dahlia tinham a honra de apreciar.
Claramente ela não era a única que pensava assim. Os humanos
também se encantavam por Fatin, no sentido literal da palavra, e
atendiam a qualquer ordem dela sem questionar.
Dahlia testemunhou o poder de uma súcubo madura andando entre
os homens.
Naquela tarde em particular, elas estavam passeando calmamente
pelo Museu do Cairo quando Fatin lhe estendeu a mão para guiá-la e
disse:
— Venha, tem alguém que eu preciso te mostrar!
Dahlia aceitou o convite e elas atravessaram os longos corredores,
até que se aproximaram de uma pequena multidão concentrada ao
redor de uma estátua. A figura esculpida em pedra negra, tinha cabeça
de leão e o corpo seminu de uma mulher.
Com um simples movimento de mãos, Fatin afastou as pessoas e o
caminho se abriu.
— Esta é Sekhmet, "Aquela que é poderosa"! — ela a introduziu. —
Deusa do sol do deserto, do caos, da guerra, mas também da cura.
Como nós. Ela não é linda?
Dahlia encarou a estátua por um longo momento de contemplação,
viajando por memórias sobre a própria origem. Lembrou-se de Azahara,
das outras irmãs e, claro, de Sara.
Por fim, seu olhar voltou-se para Fatin novamente, admirando-a.
— É sim — concordou. — Muito linda.
– Soube que você está apaixonada por mim. Vim oferecer o meu
corpo. – Dahlia ouviu Fatin sussurrar antes de roçar os lábios em sua
orelha, mordiscando-a em seguida.
O corpo todo de Dahlia se arrepiou ao contato e, só então, ela
notou que estava nua.
As mãos de Fatin passearam pelo seu torso, tocando os seios com
delicadeza antes de descer pela barriga até a virilha. Cada parte de pele
tocada por ela queimava, como Dahlia nunca sentira na vida. Ela fechou
os olhos e deixou a cabeça tombar para trás, apoiando-a no ombro de
Fatin que a abraçava contra o próprio corpo nu. A boca dela deslizou
pelo pescoço exposto de Dahlia, beijando-o, e ela foi incapaz de conter
um gemido baixo quando os dedos de Fatin lhe tocaram entre as
pernas.
Então, sentiu mais um par de mãos, puxando seu rosto para um
beijo quente. Lento, mas intenso, como duas criaturas que precisavam
desfrutar de cada toque e sensação para compensar a saudade que
sentiram uma da outra na ausência. Um beijo de quem queria engolir
Dahlia, parte por parte começando pelas mordidas nos lábios macios,
até tê-la por completo e para sempre dentro de si. Quando Dahlia abriu
os olhos, encontrou Sara, encarando-a com luxúria nos olhos e os
lábios carnudos levemente inchados. Ela mordiscou o lábio inferior,
passando a língua por ele antes de sussurrar:
– Eu te disse que chegaríamos ao despertar juntas.
Então levou aqueles mesmos lábios cheios de malícia até os
mamilos de Dahlia.

Quando abriu os olhos novamente, dessa vez no mundo real,


Dahlia ainda sentia as pernas trêmulas, a pele quente e a respiração
ofegante. Ela levou um momento para se acostumar à sensação. Então,
virou-se na cama de hotel e encontrou Fatin dormindo ao seu lado.
Finalmente reconheceu a atração que agora pulsava dentro dela. Um
acúmulo de todos os anos que passara na companhia da outra súcubo,
admirando-a em uma paixão latente.
Agora, a paixão estava exposta e Dahlia não conseguia ignorá-la.
Na companhia de Fatin, seu corpo pedia por contato próximo.
Mas Dahlia não sabia lidar bem com isso, ainda levaria algum
tempo até que se sentisse confortável com tocar a si mesma quando
tivesse esse tipo de sonho. Sabia, porém, que Fatin não hesitaria em
oferecer uma mão amiga, ou bem mais que amiga, se soubesse do fogo
que Dahlia sentia por ela. Fatin não fazia muita distinção quando o
assunto era atração e, certamente, Dahlia seria uma adição especial à
lista de experiências sexuais que colecionava. Ainda assim, Dahlia não
conseguiu lidar com tantos sentimentos.
A aflição venceu. E ela partiu durante a madrugada, sem sequer se
despedir daquela que tanto desejava ter por perto, no sentido carnal,
mas principalmente emocional.
DESERTO DAS TABERNAS, ESPANHA. 1995.

A sensação da areia contra a sola dos pés descalços era


nostálgica. Ela podia ter andado por outros países e continentes,
conhecido praias e desertos diferentes, mas nada podia ser comparado
com o lugar em que nascera, pois compartilhavam a mesma energia.
Ela caminhou por dias a fio em busca das irmãs que, há mais de
um século, deixara para trás. Foi diretamente ao local onde se lembrava
de viver, seguindo a própria intuição, porém logo descobriu que elas
tinham mudado de lugar. Era de se esperar. Nem mesmo criaturas de
hábito como elas ficavam confinadas por tanto tempo a um só local. Por
isso, varreu o resto do deserto. Com os sapatos nas mãos e uma
barraca na mochila, Dahlia sentia-se uma traidora da própria natureza.
Poderia ser facilmente confundida com uma turista humana, de tantos
artifícios que agora faziam parte de sua existência. A assimilação da
cultura humana era inevitável, no entanto, não impedia os olhares de
julgamento.
Assim ela foi recepcionada quando finalmente encontrou o que
tanto procurava: as tendas coloridas em meio ao deserto. Suas irmãs,
as que ali restaram, conversavam ao redor das tendas e se calaram ao
avistar Dahlia. Não demorou para que fossem ao encontro da
recém-chegada, dando início a uma longa sequência de perguntas e
comentários.
Azahara logo apareceu, saindo da tenda.
Ela continuava a mesma, com a beleza eterna que a natureza lhe
concedera e a autoridade inescapável que o próprio povo lhe dera. O
véu vermelho cobria a pele marrom e os cabelos crespos, indomáveis.
Ao contrário dela, Dahlia tinha mudado completamente.
— Ora ora, quem está viva, sempre volta… — ela comentou. — E
vejo que está radiante.
Claro que a primeira coisa que ela comentaria seria sobre o
despertar. Dahlia já devia estar esperando isso, porém não conteve o
grunhido de leve irritação.
Era por isso mesmo que havia fugido.
— Ainda não acho que sou como vocês. Tem algo de diferente no
jeito que eu sinto.
— E você voltou para me explicar isso? Ou para justificar a sua
fuga?
Dahlia hesitou por um momento antes de proferir em voz alta:
— Eu voltei por causa da Sara.
O que ela esperava que causasse certo rebuliço teve efeito
contrário. A mais velha abriu um sorriso satisfeito, como quem entendia
exatamente como Dahlia se sentia. Porém, o sorriso dela murchou
quando se viu obrigada a dar as más notícias.
— Sinto te informar, mas ela não está aqui.
— O que aconteceu com ela? Não me diga que… — indagou com
temor.
— Não, ela não foi capturada. Pelo menos, não que eu saiba… Eu
achava que você tinha caído nas garras dos humanos. — Azahara
contou, retomando memórias distantes de quando terminou a caçada,
naquela noite de lua cheia há 175 anos, e percebeu que tinha perdido
uma das mais novas. Justamente aquela que forçara a ir contra a
vontade dela. Era um arrependimento que agora se desfazia. — Sara
seguiu o seu exemplo e partiu. Muitas seguiram, na verdade, por isso
restaram tão poucas de nós aqui no deserto.
Dahlia olhou ao redor. De fato, era um grupo muito menor do que
antes.
Estremeceu de culpa, mesmo debaixo do sol a pino.
— Me desculpe por isso, eu não queria ser o fim do nosso povo…
— Ah, Dahlia, você não foi o fim — Azahara se apressou em dizer
em tom de voz manso que não lhe era costumeiro. — Ele já estava
previsto antes mesmo de você nascer, por culpa dos humanos. Nossa
extinção nunca poderia se dar pelas próprias mãos... Você foi um
recomeço. O impulso para que muitas de nós voltássemos a desbravar
o mundo.
— E por que você ficou aqui?
— Porque eu já conheci o mundo, muito antes dos humanos
dominarem — ela respondeu, com nostalgia palpável no olhar. Só então
Dahlia entendeu porque Azahara tinha regras tão absolutas: ela
conhecia as consequências em primeira mão. — Está na hora da
geração mais nova explorar. Só não deixe que eles tirem de você o que
te faz uma de nós.
Azahara mirou no fundo dos olhos de Dahlia e levou o indicador ao
peito dela.
— O sexo e a violência. Ou apenas o último, se assim desejar…
E pela primeira vez, Dahlia se sentiu aceita entre as suas.
MADRID, ESPANHA. 1999.

Dahlia continuou a viagem pela Espanha, em busca de Sara e em


busca de si mesma.
No entanto, encontrou pelo caminho uma nova paixão, muito
diferente daquela que fazia seu coração palpitar só de pensar em Fatin,
mas ainda assim intensa e especial. Foi a Biblioteca Nacional, situada
em Madrid, que lhe abriu as portas para tal mudança de rumo.
A construção medieval esculpida em pedra com enormes portões e
longas colunas a lembrava de alguns dos museus que Fatin a levou
para conhecer. Dahlia adentrou pela nostalgia, mas ficou pela
curiosidade. Deparou-se com inúmeros corredores cheios de livros e
uma camada de silêncio que a fazia se sentir segura em meio ao caos
do mundo humano. Encontrou livros sobre lugares que tinha visitado,
acontecimentos históricos que tinha testemunhado com os próprios
olhos e sobre criaturas como ela, na parte de “mitologia”.
Até aquele momento, Dahlia nunca tinha realmente parado para ler.
Ela sabia ler, claro, aprendera com a experiência e até mesmo em
várias línguas, porém com tanta coisa para vivenciar, nunca tinha
cogitado a ideia de simplesmente se sentar a sós com um livro.
Depois daquela descoberta, ela passou alguns anos dedicando sua
vida a essa experiência. Visitou a biblioteca mais vezes do que poderia
contar, com o mesmo fascínio da primeira, pois cada um daqueles livros
era novo e totalmente único. Mas das histórias ficcionais aos relatos
verídicos, nada a emocionou tanto quanto a História da Sexualidade.
Era uma coleção de livros teóricos de um filósofo chamado Michel
Foucault.
Um homem humano, veja só, falando sobre como sexo era algo
construído tanto pelos discursos da igreja quanto da medicina. A
reflexão finalmente colocou nuances naquilo que sempre lhe pareceu
tão direto, simples e natural para qualquer outra criatura além dela.
Dahlia deixou que algumas lágrimas pingassem sobre as páginas
amareladas durante a leitura do primeiro livro da coleção. No segundo,
ela passou a anotar coisas e o terceiro foi o empurrão que lhe faltava
para decidir estudar mais sobre o tema. Depois de tanto tempo tentando
se encontrar no mundo físico, pela experiência pura, Dahlia percebeu
que ela precisava olhar para além do que estava no alcance das mãos e
dos olhos.
Ela precisava também olhar para dentro.
PARIS, FRANÇA. 2008.

A palestra terminou em aplausos. Sentada na primeira fileira,


Dahlia acompanhou com animação enquanto admirava a professora.
Faziam bons anos desde que começara a acompanhar palestras de
diversos pesquisadores da área. Já que a eternidade permitia que
pudesse aprender sobre tudo, decidiu estudar sobre sexo e a relação
dele com o mundo.
Essa missão ficava cada vez mais fácil com o avanço das
tecnologias. Dahlia sempre se impressionava com quão rápido a tal da
internet se espalhava, até que ela mesma não conseguiu resistir quando
lhe disseram que era como ter uma pequena biblioteca à mão.
Começou a usar computadores para organizar os estudos, depois para
acompanhar os autores que gostava e de repente ela já tinha se enfiado
em fóruns dedicados a discutir sexualidade.
Ainda se lembrava nitidamente do dia em que descobriu que havia
toda uma comunidade para celebrar as diferentes formas de expressar
a própria sexualidade. Naquele dia, ela se sentiu abraçada por nomes
estranhos em uma tela. E era até engraçado que ela, que vivera por
tantas décadas buscando respostas, não soubesse da existência de
algo tão simples chamado demissexualidade. Uma categoria no
espectro da assexualidade, na qual prevalecia a ausência de atração
sexual, exceto quando existia conexão emocional com outra pessoa.
Ou com outra súcubo, no caso dela.
Depois de se emocionar com a definição, fez questão de mandar
uma mensagem para o usuário KateLovesCake agradecendo por
compartilhar sobre isso. Ainda conversava com a Kate de vez em
quando, mas agora ela tinha um namorado e demorava mais para
responder.
Dahlia não podia deixar de se perguntar se um dia se permitiria
viver isso com alguém, ou se tinha perdido a chance quando deixou
Sara e Fatin para trás. O pensamento veio enquanto ela estava na fila
para agradecer a palestrante, mas se forçou a afastá-lo.
Porém, como se ela fosse uma bruxa capaz de atrair coisas com o
pensamento, ela sentiu uma mão pousar no seu ombro. Quando se
virou, mal pôde crer nos olhos que encontraram os seus. O mesmo
olhar doce, cor de mel, que deixara no deserto.
— Sara?! — Dahlia gritou em surpresa e foi respondida com um
abraço apertado, repleto de saudades. Com o rosto enfiado no pescoço
da outra, ela respirou fundo, absorvendo o cheiro adocicado dela que a
levava para um passeio na própria memória. Só então rompeu com o
abraço e murmurou: — Não acredito que finalmente nos reencontramos.
— Eu disse! — Sara respondeu com uma risada leve. — A
eternidade é tempo demais para que nossos caminhos não se
cruzassem novamente. Só demorou dois séculos.
Dahlia ficou tão desnorteada com o encontro que até se esqueceu
de ir falar com a palestrante. Ao invés disso, ela segurou a mão de Sara
com carinho, como um convite.
— Temos muito papo para colocar em dia, não é?
— Ah, mas com certeza. E felizmente, temos todo o tempo do
mundo.
Sara abriu um sorriso largo e entrelaçou os dedos aos de Dahlia.

As duas optaram por tomar um café no campus da universidade.


Na verdade, Dahlia sugeriu e Sara aceitou sem mais delongas. Durante
a conversa, Dahlia analisava cada detalhe da companheira com
nostalgia. Sara tinha engordado e agora usava o cabelo curto com um
lenço cobrindo a cabeça. Nos braços expostos, Dahlia pôde ver vários
desenhos, dessa vez permanentes em belas tatuagens de animais e
plantas.
– Teria sido muito mais legal estudar sobre a História da
Sexualidade enquanto o Foucault ainda estava vivo. Soube que ele
dava aulas no Collège de France, mas tudo bem. É o preço que eu pago
por ter demorado demais para começar a questionar o que nossas
irmãs nos ensinaram sobre sexo… Um século de negação e confusão é
tempo demais. Sabia que até criaram um nome para isso?
Heterossexualidade compulsória.
Dahlia ouviu o desabafo da outra com atenção, esperando que ela
terminasse para comentar qualquer coisa. Estava chocada com o fato
de que não era a única que sentia-se deslocada pela cultura das
súcubos, porém a primeira pergunta que lhe escapou foi:
– Então, você não transa mais com homens?
– Não, só mato eles. E como, claro. – Sara respondeu com uma
risada, sem medo de atrair olhares. – Inclusive achei que você ia me
convidar para dividir uma refeição mais tradicional, não um café.
Homens franceses têm um sabor bem particular de misoginia.
Lembrando do café, Dahlia bebericou o líquido quente antes de
comentar:
– Posso te levar para caçar outro dia.
— Bom saber que já estamos fazendo planos juntas. Quase como
nos velhos tempos.
— Mas muito diferente também... — ela murmurou correspondendo
o sorriso de Sara. — Quem diria que você acabaria como eu… Sabe,
nunca inclui o sexo nas minhas caçadas.
— Estranho, mas justo. — A outra comentou, balançando a cabeça
positivamente. — Mas e fora das caçadas? Quero dizer, você já transou,
né? — O silêncio de Dahlia foi resposta suficiente e Sara arregalou os
olhos. — Nunquinha mesmo? Nem com mulheres?
— Não. Nunca — respondeu com certo orgulho de admitir a
própria natureza em voz alta. Em tempos mais longínquos, teria se
envergonhado deste fato.
— Uau. Talvez você seja a súcubo mais rebelde que existe. — A
outra brincou com uma risadinha. — E me desculpe perguntar, mas
você não tem curiosidade?
Em outras circunstâncias, se a pergunta fosse feita por outra
pessoa, ela certamente se incomodaria. Porém, diante dos olhos
curiosos de Sara que agora a analisavam com tanto interesse quanto
ela fizera, Dahlia se lembrou do sonho com Fatin e Sara.
No final balançou a cabeça negativamente e respondeu:
— É melhor assim. Sexo me parece mais destrutivo que qualquer
outra coisa.
— Ah, mas vamos com calma que não é algo intrinsicamente
ruim... — Sara argumentou, inclinando-se sobre a mesa. — Existe muita
coisa boa no sexo. E posso te mostrar, se quiser.
Um calor subiu pelo corpo de Dahlia, e não era do café.
— Não se diz isso pra alguém que acabou de te contar que é
assexual.
— Opa, desculpa. — Sara respondeu e Dahlia riu, ponderando a
oferta em silêncio. Terminou o café, ainda observando Sara, antes de
responder:
— Mas sabe que... Eu vou pensar com no seu caso com bastante
carinho.
SALAMANCA, ESPANHA. 2013.

— Nós temos que fazer alguma coisa — Sara dizia com fogo no
olhar.
Na mira, estava um garoto já muito conhecido na universidade por
ter estuprado seis meninas. Só que ele era estudante de medicina de
uma longa linhagem de médicos e nada era feito para impedi-lo. Ele
continuava caçando pelas festas como se nada tivesse acontecido.
Porém, se dependesse de Sara, ele logo deixaria de ser caçador
para tornar-se presa.
— Qual o plano? — Dahlia perguntou, segurando a mão da
namorada.
— O de sempre. Seduzir, conquistar e matar.
— Tem certeza? Quer que eu vá com você?
— Relaxa, amor, não vou precisar de muito — ela garantiu,
puxando Dahlia para um beijo rápido, mas carinhoso, antes de sair
andando pela pista de dança com o copo na mão.
A escuridão, a música alta e as luzes coloridas que piscavam na
cara dela não ajudaram Dahlia a acompanhar o que acontecia com
Sara. Em um momento ela estava sussurrando algo no ouvido do
garoto, no momento seguinte eles tinham sumido do campo de visão.
Um desespero tomou conta da Dahlia, como um mau
pressentimento que subia pela garganta em forma de grito por socorro.
Por mais que quisesse confiar que Sara era esperta e sabia bem o que
fazer, afinal tinha séculos de experiência nas costas, a sensação que
algo estava muito errado ainda martelava. Por isso, saiu correndo,
perguntando por todo lado se alguém sabia para onde tinha ido a garota
tatuada de turbante junto com o cara.
Não podiam ter ido muito longe, afinal tinham acabado de sumir.
Perguntando pela festa, Dahlia finalmente encontrou uma garota
que sabia para onde o garoto costumava levar as vítimas. Um prédio
abandonado perto dali, antigo auditório de palestras. Dahlia correu para
lá sem pensar duas vezes. Quando chegou no prédio, encontrou a porta
arrombada e o interior repleto de garrafas vazias espalhadas, que
provavelmente acumulavam-se pelos cantos há bastante tempo. Ela se
esgueirou pelas sombras, procurando pelos dois, e conforme avançava,
começou a ouvir vozes cada vez mais nítidas.
Reconheceu a de Sara, molenga e arrastada.
Ainda assim, era possível entender perfeitamente o que ela dizia:
não.
Dahlia seguiu o barulho, notando que vinham do segundo andar.
Subiu as escadas com rapidez e foi verificar as salas, escondendo-se
ao máximo contra as paredes. Foi quando ouviu um baque, como um
corpo caindo, que ela finalmente encontrou os dois.
Sara estava jogada no chão, claramente drogada, sem o brilho e o
instinto assassino que lhe era próprio. O copo de bebida caído ao lado
dela denunciava a tática de dopá-la para atacar. “Os métodos para calar
uma mulher são muitos.”, Fatin lhe dissera no dia em que se
conheceram e Dahlia podia ouvir a voz dela ressoar em seus ouvidos
enquanto avançava para cima do garoto, movida por fúria. Chutou ele
com força, jogando-o para longe de Sara.
Dahlia então se ajoelhou ao lado da amada para verificando se ela
estava bem. No entanto, o breve momento de cuidado e distração a
deixou vulnerável. O garoto aproveitou para revidar o golpe. Ele puxou
Dahlia pelos cabelos longos e jogou no chão, subindo em cima dela
para imobilizá-la. O cheiro de morte impregnou o ambiente.
— Não precisa ficar com ciúmes, não — ele disse em tom de
deboche, tentando arrancar a saia de Dahlia com uma mão. — Eu tenho
o suficiente pra você também.
Dahlia cuspiu na cara dele, debatendo-se. O garoto puxou uma
faca do bolso, com ainda mais ódio no olhar, apontando a lâmina no
rosto dela. Porém, foi a vez de Sara defender a amada. Mesmo grogue,
ela conseguiu se levantar e jogar o corpo por cima dele, enrolando o
braço ao redor do pescoço dele com força o suficiente para fazê-lo
engasgar. Dahlia aproveitou para se soltar das garras do garoto, por
muito pouco, pois uma vez que derrubou Sara das próprias costas com
uma cotovelada, ele empunhou a faca e gritou:
— Morra, vagabunda!
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, obrigada a todo mundo que leu até aqui! Aprecio


muito quem tira um tempinho para ler minhas histórias. Vocês me
incentivam a continuar escrevendo.
Quero agradecer também a minha namorada, Daniela, por sempre
me apoiar em tudo que me proponho a fazer e por ler cada linha que eu
escrevo, às vezes várias vezes porque sempre mudo alguma coisa e
peço opinião novamente. Também sou muito grata por todo o
acolhimento nesses anos de vida compartilhada, por ter me dado
espaço e respeitado todos os processos de autoconhecimento pelo qual
passei. Você é uma namorada incrível.
Depois, quero agradecer a Laís Lacet que não só fez a capa
maravilhosa desse conto, mas me ajudou a desenvolver ele desde o
conceito, lá em 2019, e foi uma das primeiras pessoas a ler a versão
antiga. Se não fosse pelo seu apoio e por todo o carinho que você deu à
essa história, talvez eu não tivesse terminado de escrever. Obrigada por
acreditar em mim.
Um agradecimento especial ao Ítalo também por sempre me
inspirar e me apoiar com histórias fantásticas. Você me encorajou
bastante para publicar esse conto.
Obrigada à G. G. Diniz por fazer a leitura crítica e me ajudar a
lapidar o conto para que ele chegasse nas mãos de vocês em sua
melhor forma. Seus apontamentos sempre são ótimos.
Também agradeço a todo mundo que leu a primeira versão dela no
Wattpad ou por e-mail, quando eu pedi por opiniões e sai mandando
para quem se ofereceu a ler.
ESPERA AÍ, TEM MAIS...

Você achou que essa era a única história que preparei para
Outubro?
Se enganou! Logo mais lançarei outra história com protagonismo
assexual, mortes e sangue para comemorar o mês da Visibilidade
Assexual e o Halloween! Enquanto isso, deixo aqui um trecho para dar
um gostinho de “quero mais”...

— Eu sei que você vai me julgar, mas sabe aquela lista que tá
rolando de melhores lugares pra se pegar no campus?
A voz de Bárbara ressoava na cabeça de Alice, repetindo a mesma
frase várias e várias vezes. Era a melhor pista que tinha sobre o
paradeiro da amiga, por isso entrou nos grupos de WhatsApp da
faculdade até encontrar a maldita lista. Eram cinco lugares: o mato ao
redor da Faculdade de Enfermagem, o vão embaixo do Bandejão da
Química, o antigo prédio abandonado da Arquitetura, a arquibancada do
Centro Esportivo e o “Lago da Morte”.
Esse último ficava num desvio de caminho entre a Educação Física
e o Instituto de Artes, o que significava ter que passar pelo corpo de
******. Achou melhor ir para o outro lado. Até porque Bárbara não iria
para o local mais próximo da Educação Física se estava justamente
tentando fugir dos olhares curiosos de conhecidos.
Decidiu, então, pelo prédio de Arquitetura, era o menos pior das
opções.
Alice caminhou pelas ruas em estado de alerta. A ponta do taco de
beisebol metálico que carregava ia arrastando contra o concreto e
produzia um som irritante que, no momento, sumia entre os
pensamentos nervosos. Pandora tinha roubado de um amigo que
também estava à caráter com uma máscara de filme de terror e o taco
ensanguentado. Não era a arma mais eficiente, mas era melhor que
nada. Pesado o suficiente para derrubar alguém.
Algumas pessoas passaram por ela no caminho, rindo
despreocupadas, o que deixou Alice com vontade de gritar e mandar
que fossem embora. E ela de fato gritou uma vez quando um grupo de
amigos parou de carro para perguntar onde era o Instituto de Artes.
— NÃO VÃO PARA LÁ! Tem um assassino a solta! Fiquem no
carro, peçam ajuda!
— Uau, bem que me disseram que o pessoal de Artes adorava um
tema elaborado, mas ó, vocês se superaram! Vai ter tipo uma gincana
pra achar o assassino ou algo assim? — o garoto que estava dirigindo
perguntou. Ele estava vestido de Fred do Scooby-Doo e Alice acharia o
conceito todo bem engraçado em outro momento, se não estivesse
desesperada.
— Não tem gincana, eu nem sou de Artes, tem mesmo um
assassino no campus!
— Ih, acho que a mina tá surtada… — o Salsicha comentou do
banco de trás e todos riram da cara dela antes de partir com o carro. Até
mesmo a Velma. Alice bufou, frustrada.
Não conseguia deixar de pensar que talvez devesse ter tirado uma
foto do corpo todo ensanguentado para ver se alguém acreditava, mas
não tinha pensado nisso no momento de desespero. De qualquer jeito,
era bem capaz que ainda duvidassem, julgando ser uma pegadinha. Ela
julgaria. O Halloween camuflava o perigo verdadeiro com sangue falso.
SOBRE A AUTORA

Nascida em 1995, Marina Feijóo mora em São Paulo, é formada


em Ciências Sociais pela USP e ama todo tipo de escrita, inclusive a
acadêmica. Atualmente estuda antropologia com o foco em questões de
gênero, sexualidade, raça e mídia, o que se reflete também em seus
textos literários. Já publicou alguns contos que estão espalhados por aí
em antologias e outros que estão enterrados na gaveta. O Centro de
Todo o Caos, originalmente parte da Coleção Todas as Letras do
Arco-Íris (organizada pela Editora Resistência em 2019), foi sua estreia
como escritora independente.
Você pode acompanhar a autora pelo twitter: @marinafeijoooo

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