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Transadas

histórias safadinhas para mulheres que amam


mulheres

Elea
Copyright © 2021 Elea

Ilustração da capa: Elea


Design miolo e capa: Clara Eyer
Tradução espanhol (conto Lua de Mel): Sara Rodrigues Lavandeira

Todos os direitos reservados.


Proibida reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios.
Produzido no Brasil.
Para Clara, meu amor.
E para todas as mulheres
que amam mulheres.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha irmã mais nova, leitora fiel, à querida (e 100 % hetero) amiga
Samira, que imprimiu o original registrado na Biblioteca Nacional, às amigas lindas
Jessica e Savina, pelas contribuições em Escaleno, à companheira sáfica Sara
Rodrigues Lavandeira, que revisou as falas em espanhol de Mercedes, Alba e Lupita, ao
Lincoln, amigo querido e doutor em linguística, que eu aluguei para tirar dúvidas, à
amiga virtual Damiana, pela leitura de um conto, aos meus pais, pela vida, e a Clara,
que leu tudo, palpitou, revisou junto comigo, diagramou o e-book, fez o design da capa,
aturou minhas crises existenciais e cuidou dos nossos três gatos enquanto eu escrevia.
Uma das possíveis origens da palavra “safada” é atribuída a Safo, poetisa grega
da Ilha de Lesbos. Versos mencionando suas amantes em contextos eróticos foram
encontrados em muitos fragmentos de sua obra.

#credoquedelícia
Contents
Title Page
Copyright
Dedication
Epigraph
FOGO
LUA DE MEL
ECLIPSE
ESCALENO
A EX
A MELHOR POUSADA DO MUNDO
A CARTOMANTE
PRINCESA
RETRATO
About The Author
CONHEÇA OS PRÓXIMOS LIVROS DA AUTORA
FOGO

— Como eu vim parar aqui?


— Você não se lembra?

Naquela manhã, como em tantas outras, Alice tinha saído cedo de


casa com sua bicicleta – uma hora e meia antes do horário da primeira aula
na faculdade. Era um caminho perigoso: ruas e avenidas muito
movimentadas, calçadas inexistentes em vários trechos, ônibus e caminhões
disputando com ela cada centímetro de asfalto. Ciclovia só existia a duas
quadras de onde estudava, num bairro nobre, desses que tem caminhos de
bicicleta mais para enfeitar do que por necessidade.
Chegava adiantada, tomava um banho de gato no banheiro da
universidade, um café e, finalmente, repousava 15 minutos antes da primeira
aula. Era assim de segunda à sexta. Às vezes, aos sábados. Gostava do
exercício matinal, dos desafios inesperados a cada dia, da atenção que
prestava no trânsito, de antecipar o movimento dos motoristas e transeuntes,
dos jogos de corpo que, vira e mexe, tinha de fazer para se desviar de um
obstáculo inesperado. A aventura diária oxigenava as ideias e a colocava
pronta para receber novas informações. Era uma aluna excelente. Mas se
sentia vazia.

Diante da desconhecida que a inquiria, Alice achava tudo estranho.


Até o cheiro do ar, antes imperceptível, agora carregava uma atmosfera que
suas entranhas rejeitavam com vontade. Olhou em volta, tentando se
familiarizar com qualquer coisa ao redor, mas tudo o que viu não se parecia
em nada com os objetos e cores aos quais estava acostumada.
Deitada sobre uma espécie de cama dura, parecia estar num quarto.
Exceto pelo fato de que, em volta, as paredes eram escuras, de madeira, e
muitas plantas em diferentes estágios de secagem pendulavam de cordas sob
o teto. Não tinha luz, a não ser a que entrava pelas frestas e pela janela,
igualmente de madeira e sem vidros. Os tecidos eram duros e sem cor,
manchados de amarelo pelo encardido do tempo. Na parede oposta à que se
encontrava deitada, havia uma espécie de mesa com uma bacia em cima.
Dava para ver a água se movimentando dentro dela, num bailado irregular
que indicava qualquer esbarrão de algo ou alguém ali há não muito tempo.
— Não, eu não me lembro. Onde estou?
— Na minha casa.
— E quem é você?
— Camille. Meu nome é Camille. Você chegou aqui tem três dias.
Estava machucada. Não se recorda?
— Já disse que não. Você disse três dias? – E, tentando se lembrar de
qualquer coisa que pudesse explicar o que fazia ali, achou que, em algum
momento, poderia ter caído da bicicleta.
— Onde está minha bicicleta?
— Bicicleta?
— Não cheguei aqui com ela?
— Não. Quando a trouxeram, estava sozinha.
— Quem me trouxe? E que lugar é esse? – Olhou pela janela e tudo o
que viu foi uma imensidão verde.
— Não conheço as pessoas que te trouxeram. Muita gente aqui sabe
que posso tratar de ferimentos, mas nem todas se apresentam. Talvez tenham
sido familiares? Primos, quem sabe?
Alice pensou um pouco. Não, não poderia ser ninguém da sua
família. Morava em São Paulo, capital, e eles no interior, há mais de 400
quilômetros de distância. Imaginou algum amigo a levando até a mulher.
Descartou a ideia. Não fazia sentido. Nada fazia sentido. Colocou-se de pé,
pronta para sair dali e encontrar o rumo de volta para sua vida.
— Ei, calma. Não pode andar ainda.
Achou que não podia mesmo. Sentiu-se tonta, o estômago revirando,
cheia de dor e morta de sede. Como se adivinhasse, Camille foi até a bacia,
serviu-se de um pouco daquela água e a misturou com algumas folhas,
fazendo exalar um cheiro bom. Entregou o recipiente feito de barro para que
bebesse. Alice relaxou imediatamente. Suas pálpebras pesaram e ela dormiu.
Quando abriu os olhos outra vez, reconheceu o ambiente estranho de
imediato. Devagar, tentou ficar de pé e conseguiu. Deu os primeiros passos
com cuidado, percebendo se poderia ir mais adiante. Achou que sim.
Caminhou até a porta e espiou para o outro lado. Estava escuro, mas uma luz
azulada, indicando a presença de uma enorme lua cheia, e os reflexos
bruxuleantes de uma fogueira, refletida na parede oposta à janela, permitiam
que desvendasse uma espécie de sala e cozinha. Avistou uma mesa de
madeira, uma cadeira, alguns bancos, uma cama improvisada no chão, uma
pia rudimentar e alguns tapetes empilhados, que pareciam servir como sofá.
Além deste cômodo e do quarto onde acordara, não havia mais nada. Nem
ninguém.
Achando que era hora de dar o fora dali, olhou para si mesma.
Descobriu que vestia uma espécie de camiseta velha e comprida, dessas que
a gente corta as mangas fora e abre um decotão para deixar confortável. Não
tinha nada por baixo e o tecido era meio transparente. Se saísse assim pela
noite, era bem capaz de ter que lidar com um problema maior. Resolveu
espiar o que havia do lado de fora.
Ajustando-se à claridade fornecida pelo fogo, seus olhos levaram
alguns segundos para compreender as duas figuras que dançavam, nuas, ao
redor de uma fogueira. Uma delas era Camille. A outra, de cabelos mais
escuros, não conhecia. Elas carregavam cuias estendidas para o céu e
Camille cantava uma canção cujas palavras não se pareciam com nenhuma
língua que já tivesse ouvido. Lançavam os corpos para frente e para trás,
aproximando-se e afastando-se do fogo, dando giros, dobrando os joelhos
como se estivessem parindo. Alice reparou que tomavam cuidado para não
derrubar o que quer que estivesse dentro dos recipientes. Completamente
hipnotizada pelos sons e movimentos, ficou assistindo, boquiaberta, sem
conseguir se desviar.
Camille parou de cantar e foi até a outra mulher. Ficaram frente a
frente. A dona do casebre enfiou os dedos na cumbuca e passou uma tinta
vermelha escura na pele da outra, fazendo um traço grosso na testa, outros
debaixo dos olhos, e mais um que ia do queixo até o umbigo. Derramou o
resto do líquido no fogo. A desconhecida, em seguida, fez o mesmo,
começando igualmente pela testa de Camille, mas utilizando-se de formas
enviesadas debaixo dos olhos e, depois, sem descer até o umbigo, molhou as
duas mãos na cuia e deixou que a tinta pintasse a mulher conhecida dos
ombros até os quadris, passando por cima dos seios. Alice sentiu um frio na
barriga e, quando voltou a prestar atenção, as duas se aproximavam.
Quase coladas uma na outra, os braços da estranha se ergueram para
segurar a cabeça de Camille. Puxou-a para si e, com urgência, beijaram-se.
As mãos de Camille desceram em direção às costas da mulher, apertando-a e
trazendo-a para perto de si, como se os corpos pudessem se atravessar. Alice
assistia às tranças da desconhecida se movimentarem, imaginando o desenho
que as línguas faziam. Era um beijo que não acabava e, por um momento,
desejou que não acabasse mesmo.
Cheias de um desejo que contaminava tudo ao redor – Alice estava
completamente inebriada – Camille e a mulher se olharam, respirando
sofregamente. As tintas em seus corpos tinham se misturado um pouco, mas
ainda conservavam os traços originais. Ali, naquela tensão, era quase como
presenciar um teste de resistência, como se esperassem para ver quem
aguentaria mais tempo antes de atacar a outra com toda a força libidinosa
que emanavam. Camille perdeu a batalha e agarrou o corpo da mulher de
tranças. Colocou um de seus seios para dentro da boca e a fez gemer.
Alice entrou na viagem com elas. Imaginou-se no meio das duas. A
volubilidade dos gestos sexuais era como uma nova dança, na qual ela
participava sempre entre a anfitriã e a mulher que não sabia quem era.
Quando Camille começou a fodê-la, a estranha se colocou para dentro de
Alice. As três mantiveram-se num bailado uniforme, entrecortado
unicamente pelos espasmos que apareciam em intervalos cada vez menores.
Da boca da mulher de cabelos escuros saiu uma língua imensa. Ela se
ajoelhou e a colocou entre as pernas de Camille e de Alice, que a receberam
em fila. Seus quadris sacolejavam, sem muito controle, enquanto esbarravam
uma na outra. Era um jogo interessante. Alice agarrava-se aos seios de
Camille que, por sua vez, recostava-se, derretendo, ao mesmo tempo em que
suas mãos se perdiam nos cabelos da desconhecida.
A estranha se deitou ao lado da fogueira. Camille foi por cima dela e
lhe retribuiu as carícias. Alice entrou no meio, ora de frente para uma, ora
para a outra. Sentia todas aquelas mãos e pernas e bocas a envolverem. Não
soube como aconteceu, mas gozou. E o grito de prazer a fez cair em si.
Estava com uma das mãos no seio, a outra no sexo, encharcando o que quer
que fosse a roupa que vestia. Recompôs-se e, antes que pudesse ser notada,
entrou na casa, querendo espiar pela janela o desfecho daquele ato de prazer.
Seu cérebro, no entanto, pôs-se a trabalhar e algo a inquietou. Voltou para a
cama. Estava exausta.
Camille a acordou com um chá quente e um pão caseiro. A visitante
sentia-se desnorteada.
— Gostaria de um pouco de leite também? Ou seu estômago ainda
não está receptivo?
Cheia de fome, Alice aceitou o leite e devorou tudo. Ficou com
vergonha de pedir mais pão. Achou que a prioridade era conversar com a
mulher e entender como fora parar ali. Abiu a boca para falar, quando foi
atraída pela mancha amarronzada em seu pescoço. Lembrou-se da noite
anterior. Um gemido – meio assustado, meio com tesão, atraiu a atenção de
Camille. Pensando que a hóspede sentia dor, aproximou-se.
Quando a viu mais de perto, Alice não teve dúvidas: a pintura da
anfitriã fora provocada não por tinta, mas por sangue. Estremeceu.
— Pode me contar como cheguei aqui? – Perguntou, elaborando uma
teoria tão assustadora quanto irreal para si mesma.
— Uns garotos a trouxeram. Fiquei na dúvida se estava inconsciente.
Você falava baixo e embolava as palavras, mas achei que tentava se
comunicar. Depois, desmaiou. Eu a coloquei na minha cama e, vendo-a
ferida, tratei de seus machucados e a mediquei. O que aconteceu com você?
Cheia de medo, Alice não via sentido em nada daquilo. Parecia um
sonho do qual, mesmo acordando, continuava nele. Tudo ao redor era
diferente de qualquer coisa com que se sentisse familiarizada. Sem querer
falar nada que a colocasse em perigo, respondeu:
— Não me lembro. Só sei que saí de bicicleta, como sempre faço, e
acho que caí. Mas entre isso e o momento em que acordei na sua casa...
— Bem, a julgar pelo que comeu agora e pela caminhada lá fora
ontem à noite, vejo que se encontra cheia de disposição.
Alice corou. Depois, ficou apavorada. A mulher a tinha visto
espiando seu ritual macabro, então.
— Quem era a moça que estava com você?
— Uma amiga.
Pensando que adoraria ter esse tipo de amizade com alguém, Alice
se censurou, em seguida, lembrando-se de que sua vida podia estar em risco.
— Esses garotos que me trouxeram não falaram nada?
— Eu esperava que pudesse se comunicar. Eles a deixaram e
partiram, como se estivessem diante das portas do inferno.
“E estavam?” – Quis perguntar. Guardou a desconfiança para si.
— Já me sinto em condições de ir embora. – Arriscou.
— Está bem. Mas não pode sair assim. Tive que descartar suas
roupas. Espere até que eu costure algo novo para vestir.
Guardando a vontade de perguntar para a mulher se não poderia
tomar uma de suas roupas emprestadas, notou que todo o guarda-roupas dela
era composto por apenas quatro peças. Uma, certamente, não servia para ir
às ruas. Como Camille não fez qualquer objeção à sua partida, achou que
poderia passar mais um dia ali, enquanto tentava descobrir o que acontecera
consigo mesma.
De dia, pôde mapear melhor aquela pequena habitação. Era uma casa
simples, formada pelos únicos cômodos que já conhecia, mas tudo parecia
especialmente limpo e, agora que seu estômago estava bem, percebeu que o
cheiro diferente que sentia vinha das ervas – espalhadas aos montes pela
residência. O perfume dessa mistura de aromas era bom.
O lado de fora era um enorme pátio de terra, gramado naturalmente
em alguns pontos. Mais para o fundo, árvores de grande porte cercavam o
terreno. Atrás da construção, havia outra menor, que Alice deduziu ser o
banheiro por conta de uma tina vazia ao lado do casebre. Na frente da casa,
os restos da fogueira da noite anterior não deixavam dúvidas do que
testemunhara. Sentiu um arrepio. Mas o que chamou sua atenção foi um
cavalo amarelo, de crina comprida e porte musculoso, que repousava, sem
qualquer coisa que o prendesse, à sombra de uma árvore.
Um cachorro saltitante apareceu para lhe dar algumas lambidas. Foi
quando notou que sua língua dava em cortes cuidadosamente limpos, com
algum resto de líquido esverdeado por cima. Olhou para os próprios braços
com atenção. Havia mais talhos ali e alguns ralados. Levantou a blusa e a
barriga estava marcada.
— Camille, que machucados são esses no meu corpo? – Perguntou,
sobressaltada, imaginando se seu sangue teria sido usado em alguma espécie
de ritual maligno.
Ela a olhou com a mesma indagação.
— Eu não sei. Esperava que me dissesse. Chegou aqui cheia deles,
veja. – Aproximou-se e levantou o camisão. – Esses eram maiores e mais
profundos, precisei suturar.
Alice olhou para o próprio corpo, torcendo o pescoço para trás e
notando os cortes cheios de pontos sobre as costelas, quase nas costas.
Perguntou-se que mulher era aquela, com sua casa tão peculiar, que dispunha
de materiais e conhecimentos para fazer uma sutura. Abalada pela
desconfiança do sangue, que talvez não fosse o seu, calou-se.
— Vou encontrar alguma coisa para comer. Gostaria de me
acompanhar?
Achando que se tratava de uma brincadeira de palavras, Alice riu. E a
seguiu, sem mais nada que pudesse fazer. Foram em direção às árvores,
traçando uma reta da lateral esquerda da casa até a floresta.
— Vi que você tem um cavalo. Ele não foge?
— É uma égua. Chama-se Yaga. Não, ela não foge. Eu a acompanho
desde que estava na barriga da mãe. Ajudei-a a vir ao mundo. Ela me
conhece tanto quanto a si mesma, não tem porque fugir.
A cada revelação, Alice ficava mais intrigada a respeito daquela
figura. Suas elucubrações pareciam não encontrar sustento nas palavras
gentis e no cuidado que ela lhe dirigia.
— Acho que se machucou. – Arriscou. – Seu pescoço está com
sangue.
Camille passou a mão no local indicado.
— Não é meu. Está tudo bem.
A resposta, tão natural quanto enigmática, deixou Alice mais
angustiada do que antes. Pensou em sair correndo numa direção que parecia
levar a uma estrada de terra. Teria como fazer isso. Camille estava alguns
passos à frente. Se corresse, quem sabe... Ao olhar novamente, não viu
estrada alguma.
Imersa em pensamentos, quando se deu conta, estava ajudando a
carregar para a casa mandioca, cenoura e inhame recém-colhidos, e uma
pequena codorna. Viu quando ela matou o bicho, torcendo seu pescoço. Um
golpe rápido e fatal, que a ave nem percebeu. Ofereceu ajuda quando
começou a depenar o bichinho.
— Se não estiver cansada, pode descascar esses legumes. Vou fazer
um cozido. Você precisa de um caldo bem vitaminado.
Camille indicou uma faca afiada e grande. Pegou-a e, durante alguns
segundos, com ela nas mãos, pensou se aquele objeto seria o responsável
pelos cortes que carregava nas pernas, braços, abdômen e costas. Alguns
eram bem pequenos, outros não passavam de arranhões. E tinha uma porção
de ralados entre eles.
“Não, isso não foi causado por uma faca”. – Respondeu a si mesma.
E começou a trabalhar.
Depois de depenar, Camille abriu a codorna do ânus até a garganta,
depositando seu sangue numa vasilha e jogando as tripas numa panela de
barro.
— A carne para nós, as tripas para os animais.
— Que animais?
— Você verá. – Sorriu, alcançando uma porção de temperos.
O cheiro do cozido era maravilhoso. Alice desconfiou de que não
comia comida de verdade, como chamava os almoços, desde o dia em que
chegara ali. Para sua satisfação, o sabor confirmava o que o olfato previu.
Era a primeira codorna que comia na vida. Achou a refeição tão saborosa
que repetiu mais duas vezes, diante dos olhos iluminados da anfitriã.
O sol estava quase se pondo quando terminaram de arrumar a
cozinha e alimentar dois cães enormes – que apareceram assim que Camille
os chamou com a comida pronta. Além deles, o saltitante lambedor também
se refestelou. A dona da casa acariciou os três e ficou com eles até que se
cansassem da vida mansa e retornassem a qualquer que fosse o lugar de onde
tinham saído. Alice percebeu que, até aquele momento, nenhuma roupa lhe
tinha sido providenciada e, se Camille fosse realmente costurar algo, já não
seria mais possível, pois não parecia haver qualquer fonte de energia elétrica
naquele lugar. Escureceu.
— Será que consegue me arranjar umas roupas amanhã?
— Alice, por que não me lembrou mais cedo? Fiquei tão preocupada
em lhe servir bons nutrientes, que o tempo passou e não comecei a costurar
sua vestimenta.
— Não tem problema. Talvez seja mais fácil me emprestar alguma
coisa sua. Eu a trarei de volta, é claro.
— Infelizmente, não tenho nada que possa lhe arranjar. Uso duas
trocas de roupa, apenas. Uma está em uso, enquanto a outra lava. Ficarei
sem ter o que vestir se lhe emprestar uma das minhas.
— Achei que tinha visto mais do que isso no quarto.
— Aqueles são trajes sagrados, usados somente em ocasiões... Ah,
você não precisa ouvir essas chateações. Venha, tenho uma surpresa para
você.
Receosa, Alice a acompanhou na direção dos fundos da propriedade.
A tina estava cheia de água e uma tocha, nas mãos de Camille, foi colocada
num suporte do casebre que servia como banheiro. A tocha inclinou-se para
frente, sem perigo de tocar na madeira ou no telhado de palha.
— Para você se lavar. Deve estar ansiosa por um banho.
— Obrigada, mas eu... E se alguém aparecer aqui? – Questionou,
perguntando-se em que momento Camille havia preparado a tina.
Camille deu uma gargalhada.
— Ora essa. Ninguém vai aparecer. Pode ficar tranquila.
— E a sua amiga?
— Hoje ela não vem. Mas, se viesse, seria uma mulher tanto quanto
nós.
Alice se despiu com um pouco de pudor, imaginando que já tinha
sido vista nua. Entrou na água e a encontrou numa temperatura agradável, de
acordo com a noite quente. Tomou um susto ao ser tocada nos ombros e,
quando se virou, Camille a olhava como quem dizia ser óbvio que a lavaria.
Tinha nas mãos um pouco de Aloe Vera e uma trouxinha com outra planta
dentro.
— Fruta-do-sabão. Misturada com babosa, faz uma espuma
analgésica e anti-inflamatória da melhor qualidade. Usei um pouco em você
nos dias em que dormiu, mas nada se compara ao poder de um banho com
elas.
E, como se fosse a coisa mais natural do mundo, começou a passar a
mistura que fazia na hora pelo corpo de Alice. Tinha um toque delicado e a
trouxinha, que se parecia com uma esponja, não machucava a pele, nem
mesmo onde estava ferida.
No começo, estava tensa e achando aquilo muito estranho. Depois,
foi se acostumando com a ideia e relaxou. Na verdade, Alice começou a
gostar demais daqueles toques, que nada tinham de sexuais, mas a fizeram se
lembrar da noite anterior. Sua respiração mudou, ficando mais acelerada.
Esforçando-se para que Camille não percebesse, quando ela desceu com as
mãos para o meio de suas pernas, não conseguiu se controlar e, de olhos
fechados, deixou escapar um gemido.
— Eu a machuquei? – Perguntou a mulher, virando-se para encará-la.
— Não, eu... Sim, senti um pouco de dor. – Mentiu, sem saber o que
fazer com aqueles olhos que a penetravam. Pensou ter visto uma centelha de
desconfiança na expressão da anfitriã, mas ela nada comentou. Retomou o
que estava fazendo, num toque ainda mais sutil. Alice precisou se esforçar
para parecer indiferente.
— Como se sente?
— Ótima. Relaxada. Fresca. Poderia passar a noite respondendo
coisas boas.
Camille deu um sorriso e pareceu à hóspede que tudo em volta
irradiava luz, como se a mulher carregasse uma tocha dentro da boca.
— Então aproveite mais um pouco. Já volto.
Claro que Alice aproveitou. Depois de alguns minutos, ela voltou
com uma tigela funda cheirando bem.
— Quando sair, derrame esta infusão de ervas do pescoço para baixo.
Obedeceu, curiosa para descobrir do que se tratava. Camille apenas
respondeu que a mistura a faria se sentir bem. E que, o resto, ela saberia em
algum momento. Depositou o camisão usado por cima da roupa suja da
anfitriã, que aguardava a lavagem ao lado do banheiro, e Camille não lhe
deu nada com que se vestir. Foram dormir.
Alice acordou sem se lembrar de uma noite em que dormira tão bem.
Foi até a cozinha. Encontrou um bule com chá no fogão e um pão cheirando
a fresco em cima da mesa. Ao lado, descansava um copo de leite e um
mingau que, ao provar, descobriu ser de arroz.
“De onde vêm isso? Será que ela sai para algum mercado enquanto
estou dormindo?”
Depois de se fartar, foi até o lado de fora da casa. A égua não estava
à vista. Achou que a anfitriã realmente tinha saído para algum compromisso
rotineiro da vida. Procurou por uma roupa e, não encontrando nada, foi até
onde deixara seu camisão na noite passada. Ele não estava ali.
Sem saber como se vestir, enrolou-se num lençol e aguardou. O
cachorro menor veio lhe dar bom dia e a lambeu até que o afastasse de si.
— Seu pulguento. Onde já se viu me lambuzar toda assim? –
Brincou.
Estava distraída, fazendo um afago no bicho, quando ouviu uma
trotada forte e levantou a cabeça na direção do som. Teria caído para trás se
não estivesse sentada. Em sua direção, Camille montava a égua sem cela ou
qualquer coisa com a qual pudesse guiá-la, completamente nua. Suas pernas
pressionavam a anca do bicho, fazendo os músculos das coxas saltarem. E
agarrava-se à crina com força, cerrando as mãos nela.
Resolvido o enigma da montaria, Alice abriu espaço para
pensamentos menos ortodoxos. Seus olhos percorreram cada centímetro
daquela mulher que vinha em sua direção. Camille tinha um brilho leve de
suor por toda a pele. Os músculos, firmes, eram ressaltados pelo esforço da
montaria. Arrepiada, sentiu que umedecia entre as pernas e agradeceu por
estar enrolada no lençol. Engolindo o ar, olhou para o chão, sem ver o que
havia ali.
“O que está acontecendo comigo?”
— Desculpe, Alice. Eu a deixei sem roupa. Como não tinha nada
limpo, lavei a minha que não estava em uso, e também a que estava. Com o
sol que está fazendo hoje, daqui umas horinhas já estarão secas. Você pode
usar uma delas, enquanto faço a que te prometi.
Entrou na casa, depositando uma cesta com as peças molhadas em
cima da mesa. Retirou-as, torcendo-as do lado de fora, e esticou as roupas
numa pedra, perto de onde a égua mastigava seu pasto. Agia nua com a
mesma naturalidade de quem anda vestido. Alice, desconcertada, evitava
olhar para ela.
— Como está se sentindo?
— Acho que nunca dormi tão bem.
— Que bom. Venha, vamos procurar um tecido para você.
Camille abriu um baú que guardava duas fazendas grandes de
algodão. Retirou uma e a desenrolou.
— Acho que é suficiente. Deixe-me ver. – Fez um sinal para que se
aproximasse. – Preciso que se desenrole deste lençol, Alice. – Tinha um tom
maroto na voz.
Engolindo em seco, Alice jogou o lençol na cama e chegou perto o
bastante de Camille para sentir seu calor. Não teve como disfarçar o arrepio
quando suas mãos a tocaram. Ouviu-a rindo e, constrangida, riu também. Era
o que podia fazer para desanuviar a tensão, afinal.
Depois de tomar as medidas, Camille cortou o tecido no formato de
um vestido. Não era exatamente o que Alice teria escolhido para si, mas
ficou agradecida. E respirou, aliviada, ao se afastarem, por não ter que se
esforçar para conter outros arrepios.
Para sua surpresa, Camille pegou uma agulha, como essas que se usa
para remendar meias, e um carretel pequeno de linha.
— Vai mesmo costurar isso à mão?
— E de que outra maneira eu o faria?
Alice não conseguiu responder. Estava atônita e com a certeza de que
o serviço não ficaria pronto naquele dia. Camille, no entanto, manejava a
agulha com agilidade e, ao dar uma pausa para fazer a comida, já tinha
costurado boa parte de uma das laterais. Lembrou-se dos próprios cortes e,
ao observá-los, notou que pareciam bem suturados. E menores do que antes.
— Você não ficará com nenhuma cicatriz.
— Como não? É impossível.
Camille respondeu com um gesto que podia ser lido como:
“Veremos”.
— Vamos procurar o que comer?
— Desculpe, Camille. Fiquei tão absorta vendo-a costurar que não
ofereci ajuda. Eu poderia ter adiantado o almoço.
— Gostei da sua companhia. Vamos, talvez as roupas já tenham
secado.
Não tinham. Ao passarem pela pedra, sentiram os tecidos ainda
úmidos. Poderiam tê-las vestido assim mesmo, mas como Camille avançou
na direção do mato em sua despida tranquilidade, Alice não quis criar caso.
— Minha amiga, Núbia, vem hoje de novo. Gostaria de se juntar a
nós na fogueira?
Alice ficou sem ar. O que significava aquela proposta?
— O que... – Engoliu, esticando o tempo, enquanto procurava pelas
palavras. – O que vocês farão na fogueira?
— Honraremos a terra e tudo o que ela nos dá.
— Esse é um dos rituais a que você se referiu?
— Um deles, sim.
— E vestirá uma das roupas que estão no quarto?
— Não. A terra nós honramos despidas.
Sem poder evitar, Alice jogou o pescoço para trás e, com a boca
aberta e as pernas moles, tragou uma lufada de ar. Seus pensamentos
estavam na noite que viveu com elas dias atrás. Camille a amparou de uma
queda iminente, que mal percebeu. Ao toque dela, todo seu corpo vibrou.
Sentia-se pronta para ser amada. Abriu os olhos, esperando por um beijo.
Estavam muito próximas e, de fato, com as bocas quase se tocando.
Os seios de Camille encostavam-se na lateral do corpo de Alice. Com braços
fortes, a anfitriã a colocou de pé outra vez.
— Cuidado. Essas pedrinhas aqui são danadas. – E se afastou, como
se, para ela, nada demais tivesse acontecido.
Voltaram para casa com um maço farto de couve e ovos que não
pareciam ser de galinha, mas que a hóspede, em sua luta contra a figura
estonteante de Camille, não imaginava de onde tinham saído.
Cozinhando juntas, Alice falava apenas quando a anfitriã lhe dirigia a
palavra. Comeram em silêncio e Camille, depois de alimentar e brincar com
os cachorros, voltou à costura. Mas estava na iminência do anoitecer e,
pouco depois, ela foi preparar um banho.
Alice se perguntou se a experiência da noite anterior se repetiria, mas
foi Camille quem entrou na tina. Lavou-se somente com a trouxinha de
fruta-do-sabão e, ao terminar, renovou a água para que Alice também se
lavasse. Finalmente, vestiu a roupa que já estava mais do que seca.
— Acha que consegue se banhar sozinha hoje?
— Claro. – Respondeu, tentando parecer educada, mas sem
conseguir disfarçar a frustação.
— Ótimo. Vou me arrumar fazendo-lhe companhia. Núbia chegará
em breve.
Entrou na casa e voltou de lá com um dos bancos de madeira da
cozinha e algo que se parecia com uma escova de cabelo. Pôs-se a
desembaraçá-los.
Alice, na tina, mal reparava se estava esfregando os joelhos pela
terceira vez, ou se tinha esquecido de lavar a barriga. Só tinha olhos para
Camille e para o movimento que seus cabelos faziam, redecorando seu rosto
ao sabor das sombras e luzes de um fogo crepitante. Era como estar diante
de uma deusa, uma imagem sagrada que gostaria muito de ter em seus
braços.
Camille falava coisas nas quais não conseguia se fixar. Tudo em
Alice era devaneio e ilusão. Somente quando a anfitriã se retirou, deixando-
lhe a escova e indicando que poderia usá-la, é que foi trazida de volta à
realidade. Penteou-se, descobrindo ser o objeto muito eficiente, e vestiu-se
com a roupa que, mesmo lavada, guardava o perfume de Camille. Ao toque
do tecido em sua pele, sentiu como se a dona das vestes a envolvesse.
O som de vozes conversando chamou sua atenção. Embora falassem
quase num cochicho, Alice percebeu que Núbia tinha chegado. À sua
aparição, como se tomassem um susto, as duas se afastaram e, com cara de
poucos amigos, Núbia lhe foi apresentada.
— Quer dizer que deseja participar do ritual conosco?
— Sim, se não for um problema. – Disse, num tom que já
compreendia sua indesejável presença. – Mas posso só assistir ou...
Núbia lhe deu as costas e se dirigiu à lateral da casa, levando algo
que carregava consigo para lá. Sacou uma pequena pá e pôs-se a cavar. Não
demorou muito a retirar uma cabaça do buraco, trabalhada de modo a ter
uma pequena abertura na parte de cima. Em seguida, desenrolou das coisas
que trouxera consigo um recipiente semelhante. Cheirou ambos.
— Estão bons.
A anfitriã assentiu. Alice ficou sem ter a menor ideia do que falavam.
Núbia deixou seu recipiente ali e foram para perto da fogueira. A um aceno
de cabeça de Camille, indicando que podia se juntar a elas, a hóspede se
aproximou.
Ao dar com a figura de Núbia finalmente iluminada, reparou que ela
era uns poucos anos mais jovem do que a mulher que a recebera em casa.
Tinha olhos amendoados e sobrancelhas marcantes. Usava um tipo de roupa
parecida com a de Camille e as tranças em seus cabelos, deixando o rosto
bem à mostra, exibiam feições simétricas e muito bem assentadas. Ela era
muito diferente da outra, e também era linda.
— O que está olhando?
— Nada, achei que te conhecesse.
Alice mentiu, evitando qualquer discussão. E, só ao ser inquirida,
percebeu que não tinha tirado os olhos da mulher de cabelos escuros desde
que chegara perto do fogo. As outras também notaram e se encararam,
travando algum tipo de comunicação sem fala que a excluía.
— A cerimônia de hoje é diferente da que você assistiu, Alice.
Entramos na lua minguante.
Núbia foi até as cabaças, trazendo-as com duas cuias para perto da
fogueira. Em cada recipiente, derramou o líquido vermelho e viscoso de uma
delas. Assustada, Alice não conseguiu segurar a pergunta:
— De onde veio esse sangue?
— Da nossa refeição, não se lembra? Separei o sangue da codorna
assim que a abri.
Alice se lembrava vagamente. E deduziu que o outro sangue
provinha de algo parecido. Ainda assim, sentiu-se tonta.
— Desculpe, Camille. Acho que eu não deveria participar. Não sei
nem do que se trata esse ritual.
Núbia olhou para a anfitriã como se concordasse. Camille, entretanto,
aproximou-se de Alice e sentou-se com ela, perto do fogo.
— O que acha que presenciou algumas noites atrás?
Núbia se aproximou.
— Você me disse que era um ritual para a terra.
— Sim, mas digo antes disso. O que sentiu quando nos viu
honrando-a?
Abriu a boca para responder e calou-se. Camille estaria mesmo
perguntando isso?
— Não sei.
— O que você viu? – Quis saber Núbia.
— Vi vocês dançando, eu acho.
— E depois?
— Vocês se pintaram e... – Precisou tomar uma quantidade de ar e
desviar os olhos delas. Suas memórias não permitiam que desse uma
resposta imparcial.
— O que sentiu, Alice?
— Eu não sei. – Respondeu, alterando-se, sem encará-las. – Quem
são vocês? Por que são diferentes de todos que conheço?
Ameaçava deixar a fogueira, quando as mãos de Camille a
impediram. Com um olhar, indicou a Núbia que devolvesse as cabaças ao
seu lugar. Quando retornou, foi até ela, fazendo sinal para que Alice
permanecesse onde estava. Passou as mãos pelo vestido de Núbia, erguendo-
o de baixo até a cabeça.
A hóspede, embaraçada e nervosa diante da proximidade da mulher
nua que a atraía, desviou o rosto para o lado. Camille a alcançou e,
engolindo em seco, sentiu suas mãos fazerem, com ela, o mesmo que
acabara de fazer com Núbia. Depois, enquanto Alice decidia sobre se cobrir
com as mãos, a anfitriã se afastou e tirou a própria roupa. Estendeu as vestes
num triângulo distante, de modo que sobrasse muito espaço em volta do
fogo.
— Faça os mesmos movimentos que eu fizer e me acompanhe na
música assim que aprendê-la.
Camille começou a entoar uma canção aguda e lamentosa, diferente
daquela que Alice ouvira. Seus movimentos eram mais lentos e fluidos e a
hóspede, embora um pouco desajeitada, não teve dificuldade em
acompanhá-las. Estava concentrada em aprender a letra e casá-la com o
gestual. Não percebeu quando o ritmo acelerou. Em volta da fogueira, mal
sentia o tempo passar.
Em algum momento, o controle da voz e dos movimentos se desfez.
Alice não estava mais prestando atenção, apenas vivendo. E, nessa
experiência, deu-se conta da presença daquelas mulheres nuas, com seus
corpos fortes e impudicos, dirigindo as cumbucas ao céu e olhando-se de
viés. Elas se comunicavam sem palavras e Alice quis participar daquilo.
Forçou as investidas contra elas, na esperança de se tornarem recíprocas.
Camille cedeu primeiro, comungando daquele ato profanamente sagrado
com sua hóspede. Mais resistente, Núbia condescendeu também e, aos
poucos, passaram a vibrar na mesma sintonia.
Ondas de calor percorriam o corpo de Alice. Excitada e derretendo
de suor e desejo, sentia a terra se desgarrando do solo e se fazendo cada vez
mais presente em seus pés e pernas. A energia que emanava de baixo a
atravessava e atingia as outras, indo e voltando em todas as direções. Então,
Camille se calou. A hóspede e Núbia silenciaram na mesma hora. A anfitriã
levou a cuia acima da cabeça, olhando para o céu. Disse algumas palavras
ininteligíveis e voltou-se para Núbia, que fez o mesmo. As duas, então,
encararam Alice e cercaram-na. Camille molhou dois dedos no sangue e
passou-o pela hóspede, traçando uma reta que ia do ponto mais alto e central
da testa, e descia até o sexo. Impossível controlar o gemido e o tremor que
escaparam de seu corpo. Ao retirar a mão, a anfitriã deixou Alice arfando e
sem nenhuma vontade de ocultar o que sentia.
Tão óbvio foi o seu desejo que Núbia, ao virá-la para si, não pôde
conter uma risada. Molhou a mão na cuia que carregava e, demorando um
pouco mais do que seria necessário, gozou da expectativa ansiosa de Alice e
do mistério sobre onde colocaria suas mãos. Tocou-a lá embaixo e, antes que
seus dedos traçassem o caminho ritualístico, deixou que eles se divertissem
com ela por um momento. Então, como se censurada por Camille, traçou
uma reta, fazendo o caminho inverso ao que a dona da casa percorrera. Tinha
os olhos brejeiros e não os tirou de Alice.
Camille e Núbia colocaram-se em triângulo com a hóspede. Fizeram,
uma na outra, pinturas semelhantes às que haviam usado no ritual anterior.
E, como daquela vez, as mãos de Núbia, ao passarem pelos seios de Camille,
provocaram reações no corpo de Alice. Com as barreiras arriadas, ela não
mais escondia as vontades que a dilaceravam.
As amigas encerraram a celebração com um beijo. Alice esperou que
fossem até ela. Em vez disso, Camille e Núbia dirigiram-se às roupas
estendidas sobre gramado. Sem vontade de se vestir, Alice o fez em respeito
à mulher que a recebera.
— Fique à vontade para se banhar. Eu e Núbia temos mais uma coisa
para resolver. – Disse, colocando as mãos no ombro da hóspede. Em
seguida, montou na égua com Núbia atrás de si e sumiram no meio da
floresta.
Alice não queria se lavar. Sentia-se estranhamente bem com a terra e
o sangue espalhados por seu corpo. Além disso, ainda conservava a sensação
dos toques de Camille e Núbia. Indignada pelo abandono, resolveu ir atrás
delas.
Já estava andando há algum tempo e quase sem esperança de
encontrá-las na escuridão da noite sob a copa das árvores. Assobios de
corujas e outros pássaros desconhecidos faziam seu corpo arrepiar. Olhou
para trás, na intenção de tomar o caminho de volta, e não soube para onde ir.
Desesperou-se apenas por um momento. Depois, aquietou os movimentos, a
respiração e o querer. Percebia a terra nova debaixo dos pés e a velha presa
às pernas. A vibração que emanava do solo foi subindo pelo seu corpo,
ativando uma sabedoria além dos sentidos. Sentiu que Yaga não estava
longe.

Camille estava sobre a égua, sentada de lado e com as pernas abertas.


As mãos atrás das costas a amparavam num delicado equilíbrio. Alice
contornou algumas árvores para vê-la melhor. Núbia, em frente a Camille,
debruçava-se sobre seu sexo, misturando as tranças escuras aos cabelos
longos da dona da casa quando, por vezes, ela se curvava para frente, a fim
de acariciar a amante.
A voyer sentiu o deleite logo abaixo do ventre e, incontida, montou
no animal, abraçando Camille por trás. A anfitriã retribuiu com um beijo
suculento e um carinho apaixonado pelo rosto. Quando Camille estava
prestes a atingir o ápice do prazer, desceu com as mãos para o sexo da
hóspede. Aqueles segundos foram tão esfuziantes que as duas gozaram ao
mesmo tempo, de corpos colados, tremendo sobre a anca da potra. As mãos
de Núbia deram a segurança para que se refestelassem sem cair, recolhendo-
as para o chão apenas quando demonstraram vontade.
A dona da égua abraçou a mulher de tranças num ósculo intenso.
Depois, acalmaram-se e deitaram-se sobre a terra. Núbia se espreguiçou
languidamente, gostando de esfregar a traseira toda do corpo na aspereza do
solo. Camille, com o olhar terno e apaixonado, a admirava, deixando que as
pontas dos dedos encontrassem seu caminho por entre pele e pelos, sem
pressa.
Alice observava as duas com a mesma contemplação. Desejava tocá-
las, com a boca, pelas mesmas estradas que a anfitriã percorria, e pelas que
Núbia já havia experimentado. Imaginou o encontro aveludado de suas mãos
com os seios, dos caminhos florestados que abriria até o centro do prazer,
dos pelos eriçados nas nucas e a sensação de uma brisa gelada subindo das
vísceras até o céu. Tocou em si mesma para atestar o que já sabia: dissolvia-
se na presença das delas.
A recepção de Núbia aos carinhos de Camille tornou-se mais intensa.
Seus peitos subiam e desciam, cada vez mais alvoroçados pela respiração
exigente do oxigênio que a mantinha viva. Alice inalava e soltava o ar junto
com ela. Beijou-a e, sentindo que as duas sufocavam, liberou os lábios dela
dos seus para encontrá-la em outro lugar. Núbia abriu as pernas, aprovando,
e, em troca, recomeçou a brincadeira feita na fogueira, sem ninguém para
interrompê-la desta vez. Sempre que as bocas estavam desimpedidas, as três
sorriam, extasiadas, admirando-se. Camille extraía palpitações de Núbia e
ela de Alice. As tranças escuras balançavam-se, chicoteando o vento. O fogo
atingiu o calor máximo. Camille precisou sentir seu gosto e misturar os
sexos, fundindo-as na energia do prazer.
Do seu ponto de observação, Alice também explodiu. As folhas,
desgarrando-se das árvores, caíam sobre ela como chuva, atravessando-lhe a
pele e as fáscias. A sensação se espalhava por cada milímetro do corpo.
Estava tomada por um prazer que a natureza fazia questão de acentuar em
sensações táteis, olfativas, sons e formas. Fechou os olhos para dar conta de
tudo o que vivia. Ao abri-los, tomou um susto ao se sentir observada. Núbia
teria mesmo olhado para ela? Foi tão rápido que descartou a possibilidade. E
descansou no torpor, assistindo ao namoro que não queria ter fim.
Estava quase dormindo, quando Camille e Núbia montaram na égua.
Ficou de pé, recolheu o vestido e, na preocupação em descobrir o caminho
de volta, não o colocou. Observava, atenta, a direção que as duas tomavam.
Yaga começou a galopar. Alice pensou em se esconder, mas elas
foram mais rápidas. Saltaram do bicho e a encararam. Núbia tinha um
sorriso indecente nos lábios.
— Pretende passar a noite toda aí ou vai voltar conosco?
Lembrou-se da sensação de ter sido vista quando gozava. E teve
certeza de que as duas haviam-na testemunhado tanto quanto ela o fizera. Os
olhos de Núbia não deixavam dúvidas e Camille, ainda que mais discreta,
deixou escapulir uma risada. Acanhada, Alice foi envolvida pelo abraço da
anfitriã em sua cintura. Caminharam de volta para casa, num silêncio
intervalado apenas pelos ruídos da noite, os cascos do cavalo no chão e suas
pisadas na terra.
Núbia partiu. Camille convidou a hóspede ao banho que ela não
tomara antes e, assim que o fez, Alice foi dormir.
Ao acordar, encontrou, ao lado da cama, o vestido costurado pela
anfitriã. Vestiu-se e foi procurá-la, parando antes para comer um mingau.
Camille, chegando de onde quer que fosse, a recebeu num caloroso abraço.
Mas as palavras que saíram de sua boca levaram todo o incêndio dos últimos
dias para longe.
— Você se recuperou, Alice. Está pronta para partir. Aqui tem
comida e algum dinheiro. Acredito que seja suficiente para voltar para casa.
Venha, vou levá-la até a estrada.

Na anca da égua, galopavam por uma via pavimentada, sem que a


hóspede percebesse o momento em que a égua deixou o chão de terra e o
trocou pelo asfalto. Não soube como chegou ali, nem saberia fazer o
percurso novamente sem Camille. Abraçada a ela, Alice quase podia fazer
amor com a mulher que a recebera e por quem se apaixonara.
Repassou na memória os últimos dias, perguntando-se quem eram
aquelas mulheres tão diferentes de todas que já conhecera. E, como se
tivesse falado em voz alta, a outra respondeu:
— Vocês nos chamam de bruxas.
Chegaram numa via movimentada. Alice desmontou e acariciou
Yaga. Não queria se despedir. A sensação era a de não pertencer mais ao
mundo do qual viera. Percebeu que não se sentia vazia como antes, mas a
iminência da partida arrancava-lhe um pedaço das entranhas. Subitamente,
lembrou-se do acidente. Um choque entre ônibus e caminhão a atirara longe.
Na confusão de veículos que tentavam se desviar, ela e a bicicleta foram
arrastadas. A coroa se soltou, provocando os cortes que a marcaram.
Recordou-se de pessoas querendo ajudar a acidentada, quando apareceram
três meninos e a carregaram para longe dali.
— Adeus. – Camille estava de frente para ela, os braços prontos para
recebê-la num abraço.
Alice se entregou, pensando em qualquer desculpa para não ir
embora. Demorou o quanto pôde nos braços da mulher, inspirando seu
perfume para nunca mais esquecê-lo. Quando se soltaram, confessou:
— Não quero ir.
— Você não pode ficar.
Camille aproximou-se. Colocou as mãos em volta de seu corpo e a
puxou para um beijo. Era uma despedida.
— Voltarei para devolver o vestido.
Sorrindo para ela de um jeito que fazia o sol parecer um abajur idoso,
Camille montou a égua e partiu. Sem olhar para trás.
Alice voltou para casa. Ainda digeria os últimos acontecimentos,
quando colocou o vestido para lavar. Depois, ao procurá-lo entre as roupas
limpas, não o encontrou. Tampouco ficou com alguma cicatriz, nem mesmo
onde havia sido suturada. Preferia que não tivesse sido assim, ao menos teria
uma recordação das mulheres que conhecera.
Com a bicicleta nova, tentou, muitas vezes, encontrar o caminho de
volta à casa de Camille. Arriscava-se por ruas movimentadas, na esperança
de ser levada a ela outra vez.
Terminou a faculdade e o destino fez com que fosse para longe da
capital. Com o tempo, desistiu de procurá-las. Mas sempre que fazia amor
consigo mesma ou com alguém, Alice não deixava de levar Camille e Núbia
para a cama com ela.
LUA DE MEL

Celeste e Mayara eram recém-casadas. Do jeito delas, claro. Casamento,


aliás, era um termo que nem gostavam de usar. Remetia a toda tradição cristã
que não contemplava o amor entre mulheres, entre outras coisas. Aliança?
Nem pensar. Para elas, aos vinte e poucos anos, eternidade era um conceito
que não fazia sentido. Seriam felizes juntas enquanto fizessem uma à outra
feliz. Torciam que fosse para sempre, sem ignorar o fato de que “para
sempre” podia ser tempo demais. E de que o mundo estava cheio de pessoas
interessantes. Nesse ponto, por sinal, concordavam com uma relação não
necessariamente exclusiva.
“Meu corpo, meus desejos, minhas regras. A gente fica junto por
amor, não por obrigação. E o amor não precisa ser possessivo ou
excludente”.
Uma sociedade que educava mais para a castração das mentes do que
para libertar indivíduos provocava alguns jovens a se rebelarem contra os
padrões impostos. Celeste e Mayara eram duas dessas pessoas para quem
muitas coisas não faziam o menor sentido.
Então, juntaram as escovas de dentes do jeito delas, numa cerimônia
com os melhores amigos e os familiares que se mostravam felizes pelo casal.
Trocaram palavras e símbolos que tinham mais significados pessoais do que
tradicionais, comunicaram a todos que continuariam se tratando por
namoradas – termo com o qual se sentiam mais à vontade – e curtiram uma
festa das mais divertidas, antes de partir em lua de mel. Ah, essa elas não
dispensaram, fosse ou não tradição. Embora o termo tenha sido cunhado por
costumes pouco favoráveis às mulheres, o significado atual, de passar um
tempo com a pessoa amada num lugar eleito por elas, não vinha
acompanhado de nada que considerassem insalubre.
Pois bem. Naquele mexe daqui, ajusta dali, juntaram uns pontos de
milhas com a grana que ganharam de presente dos amigos pela união e um
pouco das economias de ambas – o que foi mais difícil para Mayara, que não
sabia dizer não aos pequenos prazeres pagos da vida.
Partiriam numa viagem para as paradisíacas praias de Cabo Verde e,
na volta, por conta dos trâmites malucos dos voos, descobriram que saía
mais barato fazer uma escala na Espanha, antes de retornar ao Brasil. E mais,
se economizassem bastante, poderiam ficar dois dias por lá. Celeste era boa
com números. Mayara sempre dizia sim a qualquer aventura que pudesse
viver. Então, economizaram.
— Poxa, amor, não dá mesmo pra gente pedir uma pizza?
— Má, juro pra você que vamos comer coisas mais interessantes na
viagem. Aguenta aí, vai?
— Mas são só cinquenta reais. E ela dura dois dias.
— Cinquenta hoje, né? Soma com os vinte do café com a amiga, os
trinta do táxi, os quarenta da “blusinha que estava numa promoção
imperdível” e os 13 livros que você não podia deixar de ler e passou no
cartão.
— Ok, entendido. Mas vou querer ser recompensada pela pizza.
— Só se for agora.
— Eu estava falando de um sanduíche, mas pode ser você, claro. – E
agarrou a namorada, puxando-a sobre si no colchonete de um apê ainda sem
mobília. Transaram tanto que o sanduíche, mais tarde, teve de ser
acompanhado por um purê de batatas para repor as energias do casal.
Na lua de mel, depois de uma semana de águas transparentes,
comidas realmente maravilhosas, as fotos mais lindas de todas as suas
viagens e amigos que guardariam para sempre na memória, partiram para
Barcelona. Ansiosas por Gaudí, planejaram um roteiro rápido que incluía
muitas visitas e poucas paradas.
No primeiro dia, acordaram cedo. Depois de La Pedrera, correram
para a Casa Batlló. Como boas brasileiras, achavam que sabiam tudo sobre o
idioma irmão. Assim, pagaram por fones de ouvido que contavam sobre a
história do lugar. E, claro, como boas brasileiras, entenderam tudo. Ou
quase. O suficiente para saírem maravilhadas e com muitas histórias na
bagagem.
— Viu como valeu a pena a gente economizar?
Contavam com um almoço rápido e uma visita ao Park Güell ainda
no mesmo dia. À noite, passeariam pelo bairro gótico e, quem sabe, pelo
porto. Bem programadinhas por algum desses sites que indicava as atrações
imperdíveis da cidade.
No ritmo frenético que as embalava, subiram num ônibus em direção
ao parque. Andaram horrores, porque aquele autobús não era exatamente a
melhor opção para se chegar no ponto turístico. Mas Mayara garantiu ter
entendido a explicação em catalão da moça que as informara.
— Foi mal, amor.
— Está perdoada se me encher de beijos agora.
Para casais apaixonados, tudo se resolvia assim. Mayara foi
perdoada.
Voltaram do parque animadíssimas. Querendo ganhar tempo,
comeram sanduíches no ônibus da volta. E, no bairro gótico, encomendaram
cervejas de embalagem descartável para tomar enquanto caminhavam,
explorando as charmosas ruazinhas que destacavam aquele bairro dos
demais. Embora estivessem cansadas, a vontade de aproveitar ao máximo o
dia funcionava como combustível extra.
Dobraram uma esquina que levava a uma rua menor e, naquela
saudade gostosa que a gente sente o tempo inteiro quando está apaixonada,
mesmo ao lado da pessoa, pararam para dar uns amassos. A rua estreita e as
sombras projetadas pelas construções altas, somadas a um anoitecer quase
completo, faziam daquele pedaço de mundo o lugar perfeito para uns beijos
safadinhos. Apoiaram as cervejas numa das muitas reentrâncias das
construções antigas e olharam-se com um desejo que ameaçava jogar toda a
programação para o alto, só para poderem se amar madrugada adentro.
Estavam tão sedentas uma da outra que não perceberam o
aglomerado de gente alguns metros além – e toda a aparelhagem que
indicava uma produção cinematográfica das grandes: caminhões, vans,
pessoas com rádios andando agitadas de um lado para o outro, montes
imensos de fios enrolados e esticados, refletores, trilhos e câmeras.
Desmancharam-se num desses beijos de final de filme, como se aquela rua e
todo o mundo em volta fosse só delas; como se tempo e espaço congelassem
para que pudessem desfrutar unicamente do prazer de suas companhias.
Mayara sentiu vontade de despir Celeste ali mesmo. Suas mãos
valiam-se da amante num despudor que dividia a namorada entre a vontade
de correspondê-la e o bom senso de conter as exigências desvairadas.
Tomando as mãos dela entre as suas, riu. E Mayara riu também, porque sabia
que tinha passado do ponto e não se importava. Porque, ao vinte e poucos
anos, quando se ama como elas se amavam, o mundo deveria sorrir diante
desse tipo de manifestação. E, assim, inebriadas, nem perceberam quando
uma das apressadas figuras da vizinhança se aproximou.
— ¿Hola, que tal?
Depois do susto, responderam em portunhol fluente. Ou melhor,
Mayara respondeu.
— Hola. Estamos bien. ¿Que se passa?
— Vocês são brasileiras?
— Si, claro. – Mayara continuou empenhada no idioma.
— Você também? – Perguntou Celeste.
— Puta que pariu, que sorte! Sim, também sou brasileira. É o
seguinte: estamos no meio de uma filmagem e a Mercedes, nossa diretora,
viu vocês se beijando. Vocês sabem quem ela é? – Diante das caras
espantadas do casal, a moça tratou de se explicar. – Não, vocês não fizeram
nada de errado. É que a gente tem uma cena programada pra hoje, e a
Mercedes não gostou das figurantes. Estávamos num impasse quando ela
passou por vocês. Acontece que temos de filmar um momento no qual as
atrizes discutem e, no meio dessa discussão, um casal se beija. E esse beijo é
o catalisador da reconciliação das personagens, entendem? Trata-se de um
romance pós-moderno com toques de surrealismo. E esse é um momento
meio nonsense. As personagens vão se beijar, também, e todos os
transeuntes, idem. A cena é linda, são mais de trinta figurantes. E o filme é
da Mercedes, acho que eu já disse isso. Imagino que vocês saibam quem ela
é. Todo mundo sabe, ela é superfamosa no Brasil. Aliás, vocês moram lá ou
aqui?
— Pera aí, moça. Não estou entendo nada. Qual o seu nome e por
que está nos contando tudo isso?
— Ah, desculpa. Que falta a minha. Meu nome é Rafaela. Sou a
assistente de direção da Mercedes. É que esse é um projeto muito importante
pra mim, entendem? É o primeiro filme dela que faço como primeira “adê”.
Se alguma coisa der errada, eu... eu estou frita. Enfim, vocês não têm nada a
ver com isso, mas fui eu que aprovei as figurantes. E a Mercedes...
— Não, calma. Você não está fazendo o menor sentido. – Mayara
pegou seu copo de cerveja e o ofereceu a Rafaela. – Toma um gole, relaxa, e,
aí sim, com calma, explica pra gente onde é que nos encaixamos nessa
bagunça do seu elenco.
— Não é exatamente o elenco. As atrizes são maravilhosas. – Ela
tomou um gole da bebida. – O problema é com a figuração, especificamente
com essas duas que eu aprovei. É que as figurantes não estão se beijando
como a Mercedes gostaria. E, como esse beijo é o fator decisivo para que as
personagens da nossa história terminem juntas, a Mercedes disse que não
filma – ela enfatizou – enquanto não encontrar quem se beije de modo a
comovê-la tanto quanto as personagens precisam ser comovidas. Essa é a
última cena do dia, mas, se não filmarmos hoje, vai atrasar todo o nosso
cronograma. E a produção está na minha cola por causa do orçamento.
— E o que a gente tem com isso? – Mayara pegou sua cerveja de
volta e deu uma golada.
— Gente, pelo amor de Deus. A Mercedes ficou louca quando viu
vocês!
Celeste e Mayara trocaram um olhar zombeteiro.
— Ela quer dar uns beijos na gente?
— Beleza! Não querem ajudar, vou dar meu jeito. ¡Carajo! – E se
movimentou, na intenção de deixar as duas para trás.
Celeste, rapidamente, segurou seu braço.
— Ei, a gente só estava brincando. Fala aí, o que você precisa?
— Vocês não entenderam ainda?
— Não!
— Que coño! Ela quer que vocês se beijem na cena final do filme.
Podem fazer isso?
— Você está de sacanagem, né? A Mercedes, aquela Mercedes, a
Mercedes Luz, dos filmes que eu amo, quer que a gente participe do filme
dela?
— Exato.
Mayara olhou para Celeste. Não conseguiram conter o riso.
— Só um beijo?
— Um beijaço.
— Tá, e nada mais?
— Um beijo como esse que vocês deram agora há pouco. E nada
mais.
— Beleza.
— Beleza?!
— Beleza. – Diante da dúvida na voz de Rafaela, Mayara enfatizou a
confirmação.
— Vo... Vocês topam? Sério? Porque eu não posso dizer a ela que
consegui e depois vocês desist...
— Sério. A gente topa. – Falou Celeste, segurando as mãos frias da
primeira “adê”.
— Mas eu nem falei o cachê ainda...
Celeste era a mais pão-duro das duas. E Mayara a mais aventureira,
de modo que Mayara, antes de Rafaela terminar a explicação, já tinha
entendido tudo e achado a ideia de participar de um filme tão inusitada
quanto divertida. Aceitaria só pela farra – e porque adorava ter uma boa
história para contar. Mas a namorada era um pouco tímida e, embora seu
semblante tivesse dito sim quando se olharam, Celeste engolia em seco,
achando que deveria ter pensado melhor. Ao ouvir sobre o tal do cachê, no
entanto, o pagamento que receberiam pela participação na película de
Mercedes Luz, seus olhos brilharam, já imaginando em que experiências
gastaria aquele presente adicional de lua de mel.
— E quanto é o cachê? – Perguntou, sem muita intimidade com o
termo.
— Como é uma figuração especial, são 120 Euros. Sei que o valor
não é muito alto, mas a verba...
Celeste se perdeu no meio da explicação. Sua cabeça matemática
imediatamente tratou de converter o valor para a moeda brasileira. Com o
Euro a quase seis reais, ganhariam R$ 720,00 por um beijo. Sorriu para si
mesma.
— Então são 120 Euros para cada uma? – Ouviu Mayara perguntar.
— Sim, é o que dispomos.
“Mil e quatrocentos reais!”
Celeste estava feliz com 720 para as duas, mas agora... Sem perceber,
já caminhava na direção daquela confusão de pessoas e objetos enormes.
— Serei eternamente agradecida. Venham, vou apresentá-las a
Mercedes. E terminem logo a cerveja. É proibido beber na rua. Todo mundo
bebe, mas, se a polícia implicar, a multa pode ser maior que o valor do
cachê. Ah sim, produção vai falar com vocês sobre a questão dos contratos.
Vou mandar imprimirem com cópia em português. Então vocês passam no
figurino e...
Ela não parou mais de falar. Somente quando Mercedes sorriu de
orelha a orelha ao ver o casal, é que Celeste e Mayara desfrutaram do som de
outra voz.
A diretora do filme fez uma explicação passional da história, com
gestos hiperbólicos, enfatizando expressões que Mayara, mais tarde, garantiu
ter entendido. A cena de Mercedes enamorada de su película era uma
verdadeira obra de arte viva. E ela parecia fazer questão de impressionar as
mais novas contratadas exatamente assim.
— ¡Es una película intensa, dramática y apasionada! [É um filme
intenso, dramático e passional.]
Mercedes tinha o ar excêntrico dos artistas que costumava fascinar
pessoas comuns. Interessada, quis, também, saber um pouco da história
delas.
— Nos conhecemos en Brasil mismo, em la universidad. Yo
era una estudante de primero año de Psicologia y Celeste hacia pós
graduación en sexología. Pero, mira que cosa: yo también me interessava
por la sexologia. Acabamos estudando algunas materias juntas. Me
enamorei dela en la primera vez que la vi hablar en clase. Yo tinha
dezenueve años i ella vinte e dois. La convidei a sair no mismo dia. Y
Celeste aceitó, claro. No se puede resistir a mi encanto, diretora. –
Terminou de falar dando uma piscadela à diretora. [Nos conhecemos no
Brasil mesmo, na faculdade. Eu era caloura no curso de Psicologia e Celeste
fazia pós em sexologia. Mas olha só a coincidência: eu também me
interessava por sexologia. Acabamos estudando algumas matérias juntas. Me
apaixonei por ela na primeira vez que a vi falar em aula. Eu tinha dezenove
anos e ela vinte e dois. Eu a convidei para sair no mesmo dia. E Celeste
aceitou, é claro. Não se pode resistir ao meu charme, diretora.]
Mayara não tinha o menor pudor ao falar. Celeste a
encarava com um misto de admiração e vontade de rir, imaginando a
quantidade de palavras erradas que saíam de sua boca.
— ¡Perfecto! Pronto me di cuenta de tu carisma. ¡De eso
se trata Rafaela: carisma y pasión! ¿Das cuenta de la diferencia? [Perfeito!
Logo me dei conta do seu carisma. É disso que se trata Rafaela: carisma e
paixão! Percebe a diferença?]
— Claro, Mercedes. Estás absolutamente en lo correcto.
¿Puedo pedirle al equipo que se prepare? [Claro, Mercedes. Você está
absolutamente correta. Posso pedir à equipe que se prepare?]
— Lo antes posible. ¿No dijistes que vamos tarde? Podría
filmar toda la madrugada, pero vosotros, los jóvenes, ya no sienten el mismo
amor por el séptimo arte. [O quanto antes. Não disse que estamos atrasadas?
Eu poderia filmar a madrugada inteira, mas vocês, jovens, não têm mais o
mesmo amor pela sétima arte.]
Rafaela indicou o caminho a seguir. Mayara, vendo-se
privada do bate-papo que estava adorando, virou-se para Mercedes:
— Hasta la vista. – E deu um tchauzinho com a mão.
Depois do momento surpreendente, foram levadas ao camarim – uma
sala cheia de luzes, muitos produtos de maquiagem, araras de roupas e mais
uma quantidade de pessoas atarefadas andando de um lado a outro, falando,
sem parar, em seus rádios chiantes. Rafaela as deixou aos cuidados de dois
maquiadores de cabelos coloridos. As namoradas logo fizeram amizade com
a dupla LGBTfriendly.
Conversavam animadamente, quando Mercedes entrou no camarim.
— ¿Qué hacen aquí? – Chamou Rafaela pelo rádio. – Ellas
tienen que quedarse con las actrices... ¡Claro que sí! Cla... No, no, no...
Necesitamos involucrar a las actrices en el estado de ánimo sensual de la
escena. Lléva a las dos al camerino de Alba. ¡Ahora! [O que estão fazendo
aqui? – Chamou Rafaela pelo rádio. – Elas têm que ficar com as atrizes... É
claro. Cla... Não, não, não... Precisamos envolver as atrizes no clima sensual
da cena. Leve as duas para o camarim da Alba. Agora!]
Mayara entendeu tudo. Sempre entendia. E ficou chateada
por deixar seus dois novos melhores amigos para trás. Teria argumentado,
mas Mercedes saiu antes que pudesse lhe falar.
Rafaela chegou. Apressada e estressada. Deu algumas
ordens a uma dupla de maquiadores e se dirigiu ao casal. Celeste, mais
calma, também compreendera o teor da conversa e especulava quem seria
Alba.
“Será que...? Não, não pode ser”.
Tentou dividir a suposição com a namorada, mas Mayara
estava entretida conversando com uma das figurinistas. Dava palpite a
respeito dos brincos que deveria usar, dizendo que “rubros eram mais
passionales”. Dolores, a figurinista, concordou com ela. Vestidas,
maquiadas e lindas, seguiram com Rafaela até o tal camarim. A primeira
assistente de direção resmungava alguma coisa sobre essa não ser a sua
função, mas Mercedes tê-la compelido a cuidar das suas figurantes favoritas.
— Complicado. Ela me trata mais como assistente
pessoal do que como primeira “adê”. Eu não podia ter errado na escalação
das figurantes, sei disso. Mas vou provar meu valor.
Parou em frente a um ônibus e bateu duas vezes na
janela. De dentro, abriam a porta. Celeste, curiosa, espichou o pescoço para
ver quem estava lá. Rafaela conversou em tom de segredo com uma mulher
que parecia querer vetar a entrada das estranhas no camarim. Depois de
ouvir a assistente de direção, falou com alguém e, finalmente, abriu caminho
para que entrassem.
Como Mayara conversava alguma coisa com Rafaela,
Celeste entrou primeiro. Seu coração quase saiu pela boca ao ser recebida
pelo sorriso cheio de dentes que a encarava com recíproca curiosidade.
Sentada numa poltrona amarela, celular nas mãos, a musa inspiradora da sua
adolescência – e da vida adulta também, a estrela dos seus filmes favoritos (e
protagonista de muitos de seus sonhos eróticos) a cumprimentava,
perguntando seu nome. Sim, era aquela Alba.
— Celeste. Pra... Prazer.
— Alba Dominguez, encantada. – Levantou-se e foi até
ela. Trocaram dois beijinhos no rosto e Celeste tremeu ao sentir seu perfume.
“Ela é real.” – Pensou. E se demorou um pouco mais do
que seria necessário a um cumprimento, experimentando aquela pele
cheirosa com um roçar de lábios. Alba não fez por menos. Retribuiu,
levando sua mão a deslizar das costas de Celeste para os cabelos e, depois,
pelo rosto.
Mayara entrou no camarim. Sua reação, muito menos
discreta, não foi menos impactada do que a da namorada. E, apesar do
entusiasmo incontido, sabia exatamente o que Celeste estava sentindo.
Respirou fundo.
— ¡No acrédito! Mi actriz favorita. Alba, vi todas tus
películas. Es un placer indescritível te conocer. [Não acredito! Minha atriz
favorita. Alba, vi todos os seus filmes. É um prazer inenarrável conhecê-la.]
Alba sorriu, afetuosa, e, como fez com Celeste,
aproximou-se de Mayara e trocaram dois beijinhos. Mayara segurou suas
mãos e a encarou. A atitude, pouco usual entre indivíduos que acabam de ser
apresentados, poderia incomodar uma pessoa comum. Mas Alba não era
alguém comum – como a maioria dos artistas não eram. Sustentou o olhar de
Mayara e gostou mais ainda dela por isso, pela ousadia, pela ausência do
medo que muitos sentiam diante das celebridades.
— ¿Quiere decir que sois las responsables del beso que
enloqueció a nuestra directora? [Quer dizer que são as autoras do beijo que
enlouqueceu nossa diretora?]
Celeste, tímida, respondeu que sim.
Julgando que Alba estava entre pessoas confiáveis,
Carmen, a empresária, deixou o camarim e foi conversar com Rafaela.
Rapidamente, atriz e figurantes embalaram numa conversa agradável. Alba
queria saber mais a respeito do casal que se tornara a salvação do dia no set.
Falavam sobre o não-casamento das namoradas, quando
a porta foi aberta. Carmen entrou, acompanhada por ninguém menos que
Lupita Vázquez. Celeste e Mayara ficaram sem ar.
Lupita não era “somente” uma atriz conhecida na
Espanha e no Brasil. Ela era uma estrela internacional, tendo trabalhado com
diretoras e diretores do mundo inteiro. Diante de sua presença, até Mayara
titubeou, disfarçando antes que alguém percebesse. Celeste e a namorada já
haviam falado dela várias vezes. Admiravam-na por seus trabalhos, pelas
entrevistas, por ser uma pessoa tão divertida quanto cativante... e sim!
Achavam-na um tesão. Celeste agradeceu aos maquiadores, em pensamento,
ao se olhar no espelho e lembrar que estava arrumada. Gostou da própria
imagem e se sentiu tão linda quanto as musas diante de si.
Mayara foi até Lupita e se cumprimentaram com dois
beijinhos, como era comum naquele país. Lupita segurou seu rosto entre as
mãos e ficou a observá-la, como se pudesse conhecê-la mais a fundo. Celeste
sentiu um frio na barriga. Parecia que, a qualquer momento, Lupita tomaria
sua namorada num beijo – o que não aconteceu. Mas a imagem que se
formou em sua cabeça era o sonho de qualquer voyeur. Mayara se manteve
firme, embora, por dentro, desmanchasse em gotículas de suor. E,
exageradamente, narrou como se sentia.
— ¡No creo! ¡No creo! Viajávamos en luna de miel, o que
já era maravilloso. Pero ahora estamos aquí, contigo. Y vamos a participar
di una película con duas de las actrices que más queremos! Celeste, mi
amor, ¿acredita nisso? [Não acredito! Não acredito! Viajávamos em lua de
mel, o que já era maravilhoso. Mas agora estamos aqui, com vocês. E vamos
participar de um filme com duas das atrizes que mais amamos! Celeste, meu
amor, você acredita nisso?]
Respondeu num espanhol mais contido, trocando dois
beijos com Lupita, que, da mesma maneira como fez com Mayara, segurou-a
entre as mãos. Nervosa, Celeste admitiu:
— Pensé que ibas a besar a Mayara y ahora haces esto
conmigo. [Achei que fosse beijar Mayara e agora faz isso comigo.]
A estrela recém-chegada se contorceu numa gargalhada.
Todas riram. Depois, salpicou um selinho de três segundos em Celeste – o
suficiente para deixar as namoradas sem fôlego. Mayara pensou em exigir
tratamento igual, mas, extraordinariamente, refreou-se a tempo.
Percebendo a agitação que tomava conta do camarim, a
empresária tratou de intervir, lembrando-as de que estavam reunidas para
ensaiar.
— Si, si, claro. – Respondeu Alba, já se colocando de pé, o
roteiro nas mãos. Lupita a acompanhou e, imediatamente, Mayara e Celeste
fizeram o mesmo.
Gesticulando para que as quatro se sentassem, Carmen
pediu que, antes, lessem a cena para situar as figurantes. Explicou às
namoradas o momento em que deveriam se beijar e deixou que as atrizes
continuassem.
Parando algumas vezes para olhar o texto, Lupita o
xingava, dizendo que preferia falar com as próprias palavras. Alba arrancou
o roteiro das mãos dela e o jogou, junto com o seu, para um canto qualquer,
não sem antes amassá-los, numa cena digna de novela mexicana.
— Vayamos con nuestras palabras, cariño. Esta discusión
es muy íntima, es el momento en que estamos más conectadas. Olvida el
texto. Yo lo olvidé. [Vamos com as nossas palavras, querida. Essa discussão é
muito íntima, é o momento em que mais nos conectamos. Esqueça o texto.
Eu já o esqueci.]
Para desespero da empresária, as duas encarnaram as
personagens e começaram a discutir. A acalorada troca de palavras
encobriria a deixa para que as figurantes se beijassem. Percebendo que as
namoradas procuravam pelo momento de iniciar suas participações, Carmen
abriu a boca para interromper o ensaio quando Mayara, atenta, pescou uma
palavra do texto original e puxou Celeste para junto de si. A discussão
cessou.
“¡Perfecto!” – Pensou a empresária.
Alba e Lupita, depois de assistirem ao beijo apaixonado,
como estava escrito no roteiro, olharam-se e entregaram-se com a mesma
avidez com a qual as namoradas desempenhavam seu papel. Carmen
respirou, aliviada, e saiu do camarim. Pensou que Mercedes teria aprovado o
que viu.
— ¡Guau! ¡La escena quedo genial! Me sentí como Lucía,
mi personaje. Incluso estoy cachonda por ti, Alba. [Uau! A cena ficou
ótima! Me senti como Lucia, minha personagem. Estou até com tesão em
você, Alba.]
— Yo también, coño. Mis bragas están mojadas. [Eu
também, porra. Minha calcinha está molhada.]
Como fizera com Celeste, Lupita puxou Alba para si e a
espremeu num selinho. Riram.
Alba comentou sobre o beijo de Celeste e Mayara.
Concordou com a diretora ao ressaltar que a química entre elas tinha
imprimido uma qualidade completamente diferente às suas personagens. A
estrella do filme concordava, encarando as namoradas sem piedade. Quis
saber como tinham se conhecido. Mayara teve um pouco mais de dificuldade
de contar a história dessa vez, visto a quantidade de detalhes que as atrizes
exigiam em perguntas nada discretas.
— Yo soy casada, como sabes. Nunca he estado cachonda
con las mujeres hasta ahora, haciendo esta película. Y el beso de vosotras
ciertamente contribuyó a eso. Lo que pasó aquí fue una locura. Mercedes se
va a volver loca. [Eu sou casada, como vocês sabem. Nunca senti tesão por
mulheres até agora, fazendo esse filme. E o beijo de vocês certamente
contribuiu para isso. O que aconteceu aqui foi uma loucura. Mercedes vai
ficar louca.]
Alba concordou, falando mais do que Mayara poderia
compreender. A correria do dia começava a cobrar seu preço e, depois de
responder a tantas perguntas em portunhol fluente, o cérebro dava sinais de
cansaço.
Em sua agitação característica, Rafaela irrompeu pela
porta, perguntando se estavam prontas. Lupita pediu mais dez minutos, a fim
de repassar a cena outra vez. A primeira “adê” concordou e deixou o
camarim.
A cena recomeçou como antes, com Lupita e Alba
improvisando a discussão acalorada de suas personagens. Mayara esforçava-
se para não perder a deixa, que se dava mais através do entendimento do
bate-boca, do que pela frase planejada pelo roteiro. De repente, teve uma
epifania, vendo as atrizes se misturarem numa dança, cores se fundindo, um
azul estupidamente brilhante e...
Foi um momento rápido, como um piscar de olhos.
Celeste a puxou para si, num beijo que deixou qualquer possibilidade de não
estar presente de lado. Quase se esqueceram de que tinham assinado um
contrato. Beijaram-se como se fizessem amor com as bocas, como se o
contato entre as línguas pudesse levá-las a um orgasmo de horas. Não
perceberam quando a cena terminou. As atrizes saíram de seus personagens
para assisti-las. Só pararam ao ouvir os aplausos de Alba.
Celeste ficou com as bochechas rojas. Mayara, sem
nenhum pudor, secou a saliva em volta dos lábios, encarando as atrizes numa
expressão sacana. Não podia resistir aos encantos da namorada.
— Podría ver este beso durante horas. ¡Qué delicia!
Lupita, creo que aún no estamos en sintonía. ¿Sientes la diferencia entre
cómo ellas se besan y cómo nos besamos? [Eu poderia assistir a esse beijo
por horas. Que delícia! Lupita, acho que ainda não estamos afinadas. Sente a
diferença de como elas se beijam e como nós nos beijamos?]
— Si, cariño. Tienes razón. Nos falta algo. – Virou-se para
as namoradas e continuou. – ¿Les importaría volver a besarse para que
podamos aprender con vosotras? [Sim, querida. Você tem razão. Falta
alguma coisa. – Virou-se para as namoradas e continuou. – Importam-se de
se beijar outra vez para que aprendamos com vocês?]
Celeste e Mayara entreolharam-se.
— Por supuesto. – Dando de ombros, Mayara puxou Celeste
para si. Perceberam o quanto a ideia de se beijar para atrizes por quem
morriam de tesão podia ser excitante. Quando desfizeram o enlace, um
pouco da saliva de Mayara foi parar na boca de Celeste e, antes que se
decidisse por uma ou outra, aquele fio aguado ficou entre as duas, as bocas
abertas, numa imagem que embaraçou os sentidos da plateia. Por fim,
Celeste tomou para si a saliva da namorada. Seus olhos se perderam nos dela
e vice-versa.
A respiração irregular que saiu de Celeste, como o som de um
gemido, ecoou do outro lado do camarim, de onde eram observadas por
Lupita e Alba. Quase sem reação, as atrizes decidiam com qual expressão
deveriam encará-las, agradecendo a aula ou...
— ¡Guau!
Por fim, Lupita falou pelas duas. E respirou, em seguida,
quase desconcertada. Pediu ao casal que avaliasse se conseguiam chegar ao
mesmo clima que elas.
Trocaram um beijo apaixonado, tal qual o estado de suas
personagens. Mayara e Celeste dividiam-se entre o dever e o lazer. Se as
vissem assim num filme, certamente voltariam a cena para revê-la um
milhão de outras vezes.
— ¿Que tal? – Alba perguntou.
O beijo tinha sido ótimo, sem dúvida. Mas, tanto Mayara
quanto Celeste perceberam o porquê das atrizes insistirem no
perfeccionismo. Faltava alguma coisa, muito pouco, para que fosse tão real
para os espectadores quanto era, para todas, o encontro entre as brasileiras.
E, no seu portunhol mais do que perfeito, Mayara desenvolveu a explicação.
— Béijem-se como si fuesse la última vez que puderias
hacerlo. Y, al mismo tiempo, como si fuera la primera vez que sus bocas se
tocaran, como si tivessem enfrentado una vida de obstáculos hasta viveren
este encuentro. Como si sus espíritus se mezclassem en su boca, trenzando
colores a través del espacio. – Brincando de diretora, Mayara divertia-se,
imitando os movimentos exagerados de Mercedes. [Beijem-se como se
fosse a última vez que poderão fazê-lo. E, ao mesmo tempo, como se fosse a
primeira vez que suas bocas se encostassem, como se tivessem enfrentado
uma vida de obstáculos até viverem este encontro. Como se seus espíritos se
misturassem a partir da boca, fazendo uma trança de cores pelo espaço.]
Lupita e Alba pensaram um momento. Repetiram o beijo,
mas Mayara as interrompeu antes de terminarem.
— La diferencia está en como se miran antes, durante y
después. Es más lo que nos hace sentir que lo que nos hace ver. Como
espectadora, quiero desejarlas tanto como quiero verlas desejándose. [A
diferença está na maneira como se olham antes, durante e depois. É mais o
que vocês fazem a gente sentir do que o que nos fazem ver. Como
espectadora, quero desejá-las tanto quanto quero vê-las desejando uma à
outra.]
Foi até Lupita, na intenção de mostrar a Alba o que dizia.
Parou a poucos milímetros de tocá-la e olhou de seus olhos para sua boca e
vice-versa. Umedeceu os lábios e todo seu corpo se adiantou na direção da
atriz.
Sentindo o peito gelar quando Mayara passou a mão por seus
cabelos, Lupita inspirou, tomando o ar que seria necessário para sustentar o
beijo. Lupita – a atriz, não a personagem – ficou sem força nos braços. A
respiração saiu descontinuada e sua língua ameaçava fugir ao controle.
Moveu-se para agarrá-la.
—¿Que tal, Alba? – Mayara afastou-se.
— Fue como verte con Celeste, salvo que nos privó de la
mejor parte. [Foi como ver você com Celeste, exceto que nos privou da
melhor parte.]
— De acuerdo. – Falou Celeste.
— De acuerdo. – Entrando na brincadeira, Lupita repetiu a
frase levantando o braço.
As quatro riram. Não porque a situação fosse demasiado
engraçada, mas porque, por trás da brincadeira, Celeste e Mayara haviam
partilhado algo sobre a natureza do relacionamento que, por algum motivo,
agradou tanto Lupita quanto Alba.
— Celeste, ¿puedes enseñarme, como hizo Mayara con
Lupita? [Celeste, pode me ensinar, como Mayara fez com Lupita?]
Mayara encarou a namorada, desafiando-a. Celeste, rápida,
devolveu:
— Creo que Mayara lo hará mejor que yo. [Acho que
Mayara fará isso melhor do que eu.]
Pedindo licença a Celeste, Alba caminhou até Mayara. A atriz
esperava que ela fizesse o mesmo que havia feito com Lupita. Mas descobriu
que a figurante se deixava atravessar pela energia da pessoa à sua frente,
tornando cada encontro um momento único.
Permitindo que a atração fluísse entre elas como uma maçã
vermelha, suculenta e apetitosa entre duas famintas no deserto, Mayara
esperou que Alba estivesse prestes a abocanhá-la. Sentia o desejo da atriz
aumentar, quando foram surpreendidas por Rafaela entrando no camarim.
Ao se deparar com a cena, a assistente de direção piscou, atordoada, antes de
informar que Mercedes as aguardava.
Alba protestou, reclamando que não estavam prontas.
Carmen, na cola de Rafaela, argumentou que já tinham estourado o horário.
E que Mercedes repetiria a cena até que estivessem satisfeitas.

No set, Mayara e Celeste aguardavam a diretora dizer


“acción”.
— Estamos sonhando ou isso tudo é real?
— A gente nem tirou uma foto com elas, Má.
— Pois é. Quem vai acreditar na gente?
— Bom, teremos o filme o prova.
— Vai que cortam a nossa parte...
— Vamos fazer a foto quando acabar.
Depois de uma longa espera – e de coisas que nunca
haviam imaginado no fazer cinematográfico, como a quantidade de
profissionais envolvido numa única cena, Rafaela, de um megafone,
anunciou que iam começar. À cada pessoa responsável por captar a cena, ela
perguntou se estava pronta.
Celeste correu os olhos pelo set, reparando que, entre os outros
figurantes, havia casais formados por homem e mulher, só mulheres e só
homens. Nem todos cisgêneros. Achou lindo.
Esperando a palavrinha mágica, o casal viu a movimentação
começar. Mercedes havia dito “ensayando”. Mayara cutucou a namorada e
apontou a dupla que, calorosamente, começava a discussão. Os figurantes
iam para lá e para cá, assim como as pessoas que operavam a câmera,
ajustavam o foco, desenrolavam fios e cercavam as atrizes. Sem perder
tempo, puxou a namorada para si ao ouvir Lupita gritar:
— “¡Todo ha terminado entre nosotros!” [Está tudo acabado entre
nós].
Lupita e Alba se beijaram, assim como cada casal que
povoava a cena. A câmera se movimentou através de uma engenhoca que
parecia uma montanha-russa. A diretora de fotografia fez um sinal de
positivo para Mercedes. Celeste ficou curiosa para saber o resultado daquilo
tudo.
Cruzando o set repetidas vezes, Mercedes falava com cada
um da equipe. Orientava, pedia modificações, exigia mais emoção. Chamou
Lupita e Alba para junto do monitor, cochichando alguma coisa que,
certamente, tinha a ver com as namoradas. Mercedes apontava para elas a
todo instante. Incomodada, Celeste perguntou a Mayara se haviam feito algo
errado.
— Não que eu tenha percebido.
Aguardaram. As pessoas voltaram aos lugares iniciais. Ao passar
pelo casal, Alba piscou para elas e fez um gesto que podia ser traduzido
como “vamos com tudo”. Lupita sorriu. Pareciam despreocupadas.
Percebendo que todos os corpos estavam um pouco mais tensos,
Mayara soube que, desta vez, não seria um ensaio. Fariam a cena valendo e
esperava-se que todos dessem o seu melhor. Respirou fundo. Celeste fez o
mesmo. Conferiu as atrizes e, com um sorriso interno, viu que elas trocavam
um olhar mais inflamado e visceral do que em todas as vezes que haviam
ensaiado. Lamentou não poder assistir ao beijo das duas.
— Acción. – A voz de Mercedes, como a de uma deusa, ecoou pelo
set.
Com o coração batendo mais forte pela adrenalina, Celeste prestava
atenção no diálogo das atrizes. Mayara, notando-a tensa, ficou aliviada pela
câmera ainda não ter apontado na direção delas. Roçou os dedos nas mãos da
namorada, trazendo o olhar dela para junto do seu. Sorriu só para ela,
lembrando-a de que estavam ali para se divertir. E porque davam o melhor
beijo do mundo. Celeste relaxou e se entregou ao sentimento – quase
palpável de tão intenso. Atenta, Mayara dividia a atenção entre seu amor e as
personagens. Desta vez, Lupita gritou para Alba:
— No quiero volver a verte. Desaparezca de mi vida. [Nunca mais
quero te ver. Suma da minha vida.]
Mayara e Celeste beijaram-se. Lembranças de todos os momentos
safadinhos vividos juntas povoaram a memória de cada uma, assim como as
fantasias que gostariam de realizar. Mal sabiam que o que uma pensava, a
outra completava, planejando o que fariam assim que o dever com a sétima
arte estivesse cumprido.
Uma voz distante falou alguma coisa. Depois, o beijo foi invadido
pelo som de pesadas gotas de chuva batendo contra o chão. Mas não chovia.
Celeste voltou ao momento presente antes de Mayara. Em volta delas, a
equipe aplaudia a cena que haviam acabado de gravar. Descobriu que a
chuva não passava do choque entre as mãos comemorando o primeiro take,
provavelmente bem-sucedido. No instante seguinte, sentiu a namorada
puxando-a até Mercedes.
Ao lado de Lupita e Alba, as figurantes especiais acomodavam-se em
volta do monitor para conferir a cena. A diretora apertou o play.
Mayara aprovou, feliz, sua participação e a de Celeste. A reação da
diretora e das parceiras de cena parecia corroborar com a sua. Inclinou o
corpo para frente, a fim de ver mais de perto o beijo das personagens que
ajudara a preparar. Viu os músculos faciais de Celeste se desmancharem
numa expressão libidinosa. Mayara sorriu. O beijo fora perfeito! Tinha
olhares, tensão, atitude e aquele brilho quase materializado no ar, como se as
expectadoras pudessem visualizar o que viria em seguida.
— ¡Bravo! – Mercedes gritou quando a cena terminou.
O set inteiro olhava para elas. E, assim que ouviram a diretora,
aplaudiram novamente. Tinha sido um longo dia e aquela era a última cena.
Felizes pelo resultado e comemorando o descanso próximo, cada um
começou a se recolher. Lupita e Alba conversavam com a diretora.
— Mayara, Celeste, venham trocar de roupa, vocês já estão liberadas.
– Rafaela avisou.
Celeste ficou sem jeito de pedir uma foto com as atrizes. Mayara
tampouco pareceu à vontade para interromper a conversa. Colocaram suas
roupas de viajantes e, quando estavam prontas para partir, indecisas entre
abordar as companheiras de cena ou mandar um abraço através da “adê”, a
diretora foi até elas.
— Muchas gracias por todo, cariños. Vosotras salvaron mi película.
Me encantaría llevarlas a cenar, pero mañana tendremos otro largo día.
Terminaremos de filmar en cinco días. Únanse a nosotros en la fiesta del
equipo. [Muito obrigada por tudo, queridinhas. Vocês salvaram meu filme.
Adoraria levá-las para jantar, mas amanhã teremos outro dia longo.
Encerraremos as filmagens em cinco dias. Juntem-se a nós na festa da
equipe.]
— Mercedes, querida... Nos gustaría mucho, pero lamentavelmiente
nos vamos amañana de regreso a Brasil. [Mercedes, querida... gostaríamos
muito, mas, infelizmente, partimos amanhã de volta ao Brasil.
A diretora lamentou. Tornou a agradecê-las com suas expressões e
gestos exagerados. Despediu-se com um abraço em cada uma e instruiu
Rafaela a fazer qualquer coisa que não parecia ser a função dela. A primeira
assistente de direção virou os olhos e puxou o rádio da cintura.
— Onde estão hospedadas?
Nessas de economizar, as namoradas reservaram um
apartamento em Badalona, município vizinho da cidade turística.
Transmitiram a informação e Rafaela pareceu mais irritada ainda. Depois de
algumas conversas pelo chiante rádio, perguntou:
— Não temos carro para levá-las de volta. Importam-se de
passar a noite no mesmo hotel em que Alba e Lupita estão hospedadas?
— Podemos voltar por conta próp...
Antes que Celeste terminasse, Mayara a cutucou.
– Está bem, pode ser. Teremos de sair cedo para fazer as malas, mas
aceitamos. – Celeste encarou a namorada, lembrando-a do compromisso
com o relógio e com um voo nada barato de volta para casa.
— Gracias. – Rafaela respondeu, afastando-se em seguida. Voltou
minutos depois para direcioná-las. Abriu a porta de uma van, deu boa noite e
liberou o caminho para que entrassem.
— Rafaela dijo que viene con nosotras. ¡Que bien! Podemos cenar
juntos. Mañana tendremos el día libre. El equipo va filmar todas las encenas
en que no aparecemos. [Rafaela disse que viram conosco. Que bom!
Podemos jantar juntas. Amanhã teremos um dia de folga. A equipe vai
filmar todas as cenas em que não aparecemos.]
Para surpresa das namoradas, a voz que ouviam na escuridão do
interior do veículo era a de Alba, que chegou para o lado, a fim de facilitar a
entrada das brasileiras no veículo.
— Claro. – Sem pensar duas vezes, Celeste falou pelas duas.
Encaminharam-se ao hotel numa divertida conversa. Lupita e
Alba não esperaram pelo check-in das figurantes. Combinaram de se
encontrar em duas horas no restaurante.
De posse dos cartões que davam acesso à suíte, as namoradas
foram para o quarto. Mayara foi a primeira a pular na cama, testando o
colchão.
— Que delícia, Cê!
A king size permitia que rolassem de um lado a outro,
espalhando-se e voltando a grudar em beijos e abraços. Celeste comentou
algo sobre estar cansada, mas não o suficiente para deixar de aproveitar
aquela cama perfeita. Mayara garantiu que, depois de um banho, estaria
renovada. E, curiosa, levantou-se para conferir o banheiro.
— Uau, corre aqui!
Celeste correu. Riram maliciosamente ao verem a banheira
que as aguardava. Sem perder tempo, Mayara a colocou para encher.
A temperatura da água estava deliciosa, segundo Celeste, que
entrou na banheira primeiro. Terminando de se despir, Mayara foi
interrompida pelo telefone do quarto. Olhou no celular. Ainda faltava 40
minutos para o horário combinado com as atrizes.
— ¿Hola?
— ¿Mayara? Es Lupita. ¿Les importa que cenemos en mi
habitación? Siempre que bajo al restaurante, tengo que parar varias veces
para hacer fotos con los fans y, como es tu último día en España, me
gustaría disfrutarlo sin que me interrumpan. ¿Qué piensan? [Mayara? É
Lupita. Importam-se de jantarmos no meu quarto? Sempre que desço ao
restaurante, tenho que parar várias vezes para tirar fotos com fãs e, como é o
último dia de vocês na Espanha, gostaria de aproveitar sem ser interrompida.
O que acham?]
— Si, si. Claro.
— Que bueno, gracias. Estamos en la suite veintiocho. Alba
ya ha subido. No se demore, nos morimos de hambre. [Que bom, obrigada.
Estamos na suíte vinte e oito. Alba já subiu. Não demorem, estamos
morrendo de fome.]
— Claro.
Mayara entrou na banheira e informou à namorada que teriam de
adiar os planos. Mesmo assim, não abriram mão de um banho delicioso,
relaxante e merecido. Quando chegaram à suíte vinte e oito, sentiam as
energias renovadas.
— Não acredito que a gente vai jantar com elas!
— Nem eu.
— Não vamos esquecer de fazer uma foto.
— Claro que não.
Riam quando a porta se abriu. Lupita estava magnífica e esvoaçante
num robe de seda azul. Os cabelos molhados caíam em ondas até a cintura.
Ela as recebeu indicando a mesa cheia de entradinhas espanholas, na qual a
outra atriz já se encontrava. Alba vestia o robe do hotel, as mangas dobradas
até a metade dos braços, bem no estilo despojado com o qual aparecia em
entrevistas mundo afora. Os cabelos, também molhados, estavam penteados
para trás, realçando um par de olhos castanhos naturalmente delineados.
Contrastando com elas, Mayara e Celeste vestiam os mesmos jeans
com as quais haviam passado o dia, assim como as camisas, a essa altura,
um tanto amassadas. Tentaram não pensar nisso e fingiram costume ao
sentarem-se à mesa com duas celebridades.
Foram apresentadas ao cardápio do hotel e deixaram que a anfitriã
escolhesse por elas, já que não conheciam quase nada da culinária local.
Divertiram-se com a discussão entre Lupita e Alba sobre que prato
gostariam mais. As atrizes davam explicações acaloradas para defender seus
pontos de vista.
— Por supuesto que no, Lupita. Ellas son brasileñas. Brasil tiene
una culinaria diversa y, debido a la personalidad de Mayara, apuesto mi
cabeza a que le gustará este plato más picante. [Claro que não, Lupita. O
Brasil tem uma culinária diversa e, pela personalidade da Mayara, aposto a
minha cabeça como ela vai gostar deste prato mais apimentado.]
— Pero estoy pensando en un sabor que guste a ambos paladares,
Alba. A Celeste, estoy seguro, le gustan los sabores exóticos y sofisticados. Y
la paella es un plato muy común para ella. [Mas estou pensando num sabor
que agrade ao paladar de ambas, Alba. Celeste, tenho certeza, gosta de
sabores exóticos e sofisticados. Paella é um prato muito comum para ela.]
O argumento fazia sentido. E Celeste não gostava de camarão.
Debateram prato por prato. Depois de 15 minutos, concluíram que um
ceviche de corvina com milho torrado e fatias de um melão que elas não
conheciam era a opção ideal. Seguindo a pontuação criada por Alba, o prato
serviria bem aos dois paladares.
Como elas já bebiam sangria, Celeste e Mayara
acompanharam. E provaram as tapas, enquanto esperavam pelo prato
principal, que não demorou muito.
O peixe foi aprovado pelas brasileiras – que já conheciam
ceviche, mas observaram algumas particularidades no preparo deste. Sem
descobrir todos os ingredientes do prato, fizeram as atrizes sorrirem,
cúmplices.
O assunto que as quatro tinham em comum era o dia vivido no set.
Ou melhor, a noite, já que as namoradas só haviam chegado lá depois do sol
se pôr. Falaram, portanto, sobre a cena e sobre os beijos.
Mayara ficou chocada ao descobrir que as atrizes tinham reparado
em cada casal da figuração, anotando os que tinham ou não química.
— El beso de vosotras es imbatible, chicas. Pero esa pareja
mayor me llamó la atención. [O beijo de vocês é imbatível, meninas. Mas
aquele casal mais velho chamou minha atenção.]
Mayara não tinha reparado em ninguém. Mas concordou com
a mesma cara de pau com a qual conversava como se fosse fluente no idioma
das companheiras de mesa. Celeste olhou para ela e engoliu o riso. Achou
melhor falar de outro beijo, um que realmente tivessem notado.
— Y ustedes, chicas, nos dejaron sin aliento. Un beso
espectacular. [E vocês, meninas, nos deixaram sem fôlego. Um beijo
espetacular.]
As atrizes trocaram um olhar antes de agradecer. Alba
encarou Mayara e, parando o movimento que levava a comida à boca,
creditou a ela o sucesso da cena. Confessou, ainda, que sentiu frio na barriga
quando a brasileira ensaiou com ela. E que foi importante ouvi-la para beijar
Lupita como sua personagem o faria.
Lambeando o polegar e o indicador, Lupita concordou,
completando que adoraria saber como seria a cena se Celeste as tivesse
preparado. Estavam próximas na mesa redonda. A atriz falou, olhando para
ela:
— No tengo ninguna duda de que daríamos un beso tan espléndido
como el que dimos, pero creo que usted agregaría otra cualidad a nuestras
entrelíneas, Celeste. [Não tenho dúvidas de que daríamos um beijo tão
esplêndido quanto o que demos, mas acho que você imprimiria outra
qualidade às nossas entrelinhas, Celeste.]
Celeste e Mayara ouviram Lupita. O tom de sua voz, nada casual, foi
anotado por ambas. Olharam-se apenas para confirmar o que já sabiam. Por
baixo da mesa, Celeste apertou a coxa de Mayara.
— Y creo, Lupita, que no tienes por qué ignorarlo. – Mayara
respondeu. [E eu acho, Lupita, que você não precisa ficar sem saber.]
Lupita não esperava o que foi dito. Especialmente, não
esperava ouvi-lo de Mayara. Seus olhos e os dela se encontraram. A
espanhola certificava-se de não estar inventando nada. Quando voltou a
encarar Celeste, ela já se inclinava em sua direção. Sem tirar a mão da coxa
de Mayara, beijou Lupita.
Sentada em frente à parceira de cena, Alba diminuiu a
velocidade com a qual mastigava sua última porção do ceviche. Mayara
percebeu. Deixou que as pernas relaxassem, tocando as dela por baixo da
mesa, de onde retribuía as carícias da namorada.
Alba virou-se para ela. Mayara respondeu de rabo de olho, a
boca entreaberta num riso mal dissimulado. Tomou um gole farto da bebida
e voltou a assistir ao beijo, que chegava ao fim. Quando Celeste e Lupita se
separaram, Mayara virou para Alba:
— ¿Que te pareció? [O que achou?]
Ela não respondeu. Pegou o guardanapo de pano e limpou a
boca. Em seguida, também bebeu uma golada da sangria.
— Me pareció delicioso, bien como el tuyo. No puedo esperar
para probarlo también. [Delicioso. Assim como o seu. Não vejo a hora de
prová-lo também.]
Alba ficou de pé e estendeu a mão a Mayara, que aceitou o
convite. A atriz era alta. Seu nariz ficava um pouco acima do nariz da
brasileira de cabelos cacheados e olhar atrevido. Inclinou-se para beijá-la,
mas Mayara recuou, provocando-lhe uma centelha de incredulidade.
Mayara encostou no rosto de Alba e deixou suas mãos sentirem a
pele. Fechou os olhos e respirou, absorvendo seu cheiro. Deslizando pelo
pescoço, foi para trás dela. Afastou os cabelos para o lado e a beijou ali,
onde ainda estava úmida do banho e rescendia ao seu perfume natural.
Abraçou-a pela cintura e olhou para as outras duas.
Celeste e Lupita se encararam. Era evidente que sentiam a mesma
vontade. A brasileira a puxou para si, trazendo-a aos seus lábios, num
evidente convite. A espanhola aceitou. Foram até as outras.
Mayara colou seu corpo no de Alba. Balançou-a para os lados, sem
encontrar resistência. Celeste e Lupita somaram-se à dança.
Sentindo o contato dos outros corpos, Alba amoleceu nas mãos de
Mayara. Deixou a cabeça pender para trás, procurando por sua boca. Mayara
aproximou-se devagar, fazendo seu desejo e o dela chegarem ao limite.
Quando suas boas se encontraram, era como se tivessem esperado por aquele
momento a vida inteira.
O beijo estendeu-se por alguns minutos. Quando escaparam dele,
Mayara virou-a para Celeste e sentiu as mãos de Lupita envolveram-na.
Trocaram carícias cheias de vontade. A anfitriã conduziu as três para a cama.
Mayara fez com que cada segundo do encontro fosse vivido à exaustão. Às
vezes, parava para olhar o trio. Como Celeste era linda! E se excitava vendo-
a com Lupita e Alba.
Beijaram-se. Era impressionante o que acontecia quando os corpos
de Celeste e da namorada se uniam. As atrizes também tiveram seu
momento. Depois, as mãos de Alba voltaram a procurar por Mayara.
Lupita se abriu para Celeste, engolindo em seco e não aguentando
mais esperar. Mayara, deitada de lado na cama, foi enlaçada por Alba, que,
por trás dela, alcançou seu sexo, abrindo-a e deslizando-se pelo caminho
molhado.
Mayara contorcia-se. Ao mesmo tempo, assistia Lupita ao lado. Viu
quando Celeste a beijou e deixou que a boca escorresse pelo corpo da atriz,
encontrando-a em sua vontade pulsante. Lupita estava pronta. Gritou de
prazer. Não resistiria por muito tempo. Abriu os olhos e fitou Mayara. A
brasileira, nas mãos de Alba, estava como ela, no limite. Assistindo-se,
ficaram ainda mais excitadas. Lupita puxou Mayara para si e a tomou num
beijo. Gozaram no mesmo instante. As bocas, coladas, foram perdendo o
controle das línguas. Nenhum comando do cérebro funcionava naquele
momento. Os corpos apenas reagiam ao mais primitivo dos prazeres.
Mataram a sede com mais sangria. Mayara se recuperava e Lupita
desmanchava-se na massagem que recebia da brasileira mais tímida. Aos
poucos, Alba a conduziu para a horizontal e se debruçou sobre Celeste,
beijando-a.
Mayara juntou-se a elas e as três línguas exploraram-se em busca de
novas sensações. Lupita, totalmente relaxada, assistia, apoiada sobre o
cotovelo. Os cabelos bagunçados, mais lindos do que nunca, emolduravam o
sorriso que lançava na direção delas.
Celeste estava por baixo das duas. Lupita roçou os dedos pelos seios
da brasileira. Sentiu vontade de tomar um deles na boca e Mayara a
acompanhou, fazendo o mesmo do outro lado.
Alba rolou para o lado e, por um momento, observou-as. Viu a mão
de Lupita aventurar-se numa procura instintiva pelo sexo de Celeste. Mayara
a guiou e, juntas, alcançaram o ponto mais sensível.
Alba gemeu, quase num grito. Enlouquecida pela cena, alcançou
mais um pouco da bebida. Derramou a sangria sobre si mesma e invadiu a
cama, colocando-se sobre Celeste, mais precisamente com o sexo em sua
boca.
Celeste gemeu. Uma gota da bebida escorreu do corpo da atriz e ela
sentiu o gosto fervilhante misturar-se ao sabor de Alba. Alguém a penetrou.
Não soube quem. Sentiu o toque levá-la ao delírio, alcançando seu ponto G
pelo lado de dentro, enquanto alguém a excitava por fora. Havia uma boca
chupando seus mamilos e uma boceta engalfinhada em sua língua,
desafiando-a se manter presente quando todo o resto trabalhava para tirá-la
de órbita. E tirou. Alba se afastou para deixá-la viver seu orgasmo. Celeste
gritou. Nunca tinha sentido aquilo. Levou alguns minutos para abrir os olhos
e, quando o fez, Lupita sorria para ela.
Mayara beijou a namorada. Partilharam o gosto de Alba e, com
vontade de provar ainda mais o sabor da atriz, escorregou de Celeste até ela,
beijando-a.
A noite seguiu com mais orgasmos. Alba explodiu nas mãos de
Mayara, depois do que pareceu uma eternidade de carícias a esgotarem todas
as suas forças. Gozou algumas vezes em sequência, com um prazer mais
forte a cada vez. Pediram mais comida e mais bebida. Alba cochilou nos
braços de Celeste. Mayara, deitada nas pernas de Lupita, ganhava carinhos
nos cabelos, no rosto e no pescoço. Depois de um tempo, estavam outra vez
num ritmo acelerado. Mayara se entregou a Lupita e a atriz a invadiu,
descobrindo o quanto se excitava ao possuir uma mulher.
Celeste acordou Alba como gostaria de ser acordada. Recomeçaram
uma aventura que se revelava cada vez mais prazerosa e envolvente.
Gritos, gemidos, mais sangria. Sede. Despediram-se sem querer que
o encontro acabasse. Mayara e Celeste saíram do quarto, deixando as atrizes
na cama, abraçadas.
Assim que pisaram na rua, foram cercadas por paparazzis insidiosos.
Certamente, algum funcionário, ciente dos pedidos para quatro pessoas no
quarto de Lupita, havia dado com a orelha na porta e a língua nos dentes,
revelando o que acontecera para a escória da imprensa.
Indagadas sobre uma suposta festinha particular, negaram,
veementemente, qualquer envolvimento com as atrizes.
— ¡Claro que no! Estábamos muy cansadas. Dormimos aquí porque
era más cerca que el hotel que estamos. – Mayara virou-se, indignada,
fazendo sinal para o primeiro táxi que apareceu. [Claro que não! Estávamos
muito cansadas. Dormimos aqui porque era mais perto do que o hotel em
que estamos.]
Ao embarcarem no voo de volta para casa, exaustas, com olheiras
que iam até o queixo, ainda se perguntavam se aquilo tinha mesmo
acontecido. E diziam a si mesmas que não poderia haver lua de mel melhor
do que a delas.
Bem que gostariam de espalhar aos quatro cantos que haviam feito
amor com suas atrizes favoritas. Mas sabiam que isso poderia prejudicar as
carreiras delas e o casamento de Lupita. Guardaram o segredo só para si,
divertindo-se a cada vez que alguém deixava escapar seu desejo por Alba ou
Lupita.
— Amor, a gente esqueceu de fazer uma foto com elas.
Foi o último comentário de Mayara para a namorada, com um sorriso
safadinho, antes de apagar nas doze horas de volta para casa.
ECLIPSE

O grupo de amigos da dança se conhecia há quase dois anos. Mas se viam


só às terças e quintas. Decidiram passar um tempo juntos e alugaram uma
casa de veraneio numa praia que ninguém conhecia muito bem. A casa era
linda, de frente para o mar, o preço estava ótimo e as fotos, my God, as fotos
eram o sonho de qualquer viajante estampado na tela. Dividiram-se em dois
carros e partiram para o lugar misterioso. Expectativa à toda e aquele frio na
barriga perguntando:
“Será que é tudo isso mesmo”?
Bom, na companhia de pessoas que se adoravam, nem se fosse ruim,
seria ruim. Levaram comida, água, muito álcool, repelente, remédios, kit de
primeiros socorros e esses apetrechos que todo mundo carrega em viagem. A
casa era isolada da civilização. Delícia.
Um pouco perdidos durante o caminho, acabaram chegando lá duas
horas depois do planejado. O entregador das chaves aguardava, impaciente.
Desculparam-se sem nenhuma culpa, loucos para explorar a região. A casa
era mesmo linda, um achado! E estavam ansiosos para se atirar ao mar.
Dividiram as cinco suítes entre os dez. Bete ficou com Paulo, o
namorado. Teresa e Tábata, irmãs, ocuparam outro. João e Roberto, o
namorado, que venceram no palitinho, foram para a suíte maior, com
varanda. Os solteiros que não tinham irmãos – Mônica, Aurora, Alana e
Dagoberto – discutiam com os demais, querendo ficar todos no mesmo
quarto. Achavam injusto o casal dos meninos ter levado a suíte maior,
quando eram só dois. E barganhavam a troca, tentando convencê-los de que
a vista de um dos quartos menores era mais bonita.
Não colou. Resolveram se apertar, levando os colchões do quarto
cinco para o quatro. Depois, organizaram as tarefas da casa. Mônica alegou
que não sabia cozinhar, portanto ficaria só na turma da limpeza. Roberto,
idem. E Bete também preferiu não se meter com panelas e temperos, mas
garantiu que Paulo era praticamente um chef e compensaria a sua ausência
na cozinha. Organizados, foram para a praia com latas de cerveja a tiracolo.
O mar estava calmo e os recebeu com a promessa de uma semana
para ser contada às próximas cinco gerações. E foi mesmo.
Fartaram-se de risadas e pegadinhas, dessas que fazemos para
quebrar a tensão agitada que se instala quando gente que não tem tanta
intimidade assim se vê confinada entre quatro paredes – ainda que
estivessem na praia, sem parede nenhuma em volta. Todo mundo teve o seu
momento bobo da corte. O Dagoberto era o cara que as pessoas se viravam
quando chegava perto, porque, de tão branco, refletia demasiado a luz. Bete
e Paulo eram Paulobete, o casal inseparável da novela das nove. Alana
ganhou o epíteto “quebunda” para dar vazão ao que todo mundo já sabia: a
bunda dela era um escândalo. Mônica já tinha o apelido de mulher elástica
por ser a mais alongada do grupo. A piada ali era a de pedir para ela alcançar
as coisas que estavam longe.
— Foi mal, deixei a bola escapar.
— Mônica, estica o braço aí e pega pra gente?
Ela ria e se exibia, aproveitando a areia para fazer acrobacias que não
tentaria com um chão duro por baixo.
— Paulobetê, façam uma foto minha nessa pose! Alana, tira a bunda
da frente.
— Ih, não deu. O Dagô apareceu bem na hora e refletiu na lente.
A Aurora já tinha um nome que pedia piada por causa do frango, do
suco e da marchinha.
— Amanhã o almoço é por conta da Aurora. Vai ter frango.
— E pra beber?
— Suco Aurora.
E cantavam a marchinha de carnaval, que não tinha o menor sentido
naquele contexto, só porque a euforia era muita e precisavam extravasá-la.
Com o casal de meninos, que estava junto há pouco mais de dois
meses, as tiradas envolviam cobranças para o casamento e os filhos. Era eles
passarem por alguém que o alguém cantarolava a marcha nupcial e
cumprimentava um dos filhos imaginários da dupla. E as irmãs, gêmeas
quase idênticas, eram frequentemente confundidas de propósito. A Alana
quebunda, sacana, ia até Teresa e tascava-lhe um selinho. Depois, se
desculpava.
— Fiquei com a Tábata ontem, ela não te contou? Desculpa, o beijo
era pra ser nela.
Aí, ia até Tábata e a pedia em namoro.
— Não foi com você que eu trepei ontem? Desculpa, confundi.
Alana era a amiga moderninha, a pansexual do rolê. Mas quase todo
mundo ali já tinha ficado com homem e com mulher. Um ou outro ainda não
tinha certeza da(s) sua(s) preferência(s). Paulobete, de vez em quando,
pegavam uma terceira pessoa. Boatos diziam que Alana já tinha ido para a
cama com eles. Ninguém confirmava. Ninguém negava.
De noite, Dagoberto acendeu um baseado e, num ritual inventado por
ele, proibiu todo mundo de acessar internet ou fazer ligações com o celular.
Mônica-alcança-lá-os-telefones-pra-mim encarregou-se de guardar todos os
aparelhos num esconderijo que só ela conhecia. Alana desafiou geral a saber
as horas pela posição do sol e sumiu com o único relógio da casa, que ficava
na parede da cozinha. Garantiu que podia se orientar só de olhar para o céu e
que, se o mundo acabasse, ela sobreviveria. Disse isso em volta de uma
fogueira meio capenga, na praia, que ela e os amigos demoraram uma
eternidade para acender. Dagoberto propôs de dormirem ali, mas os
pernilongos encerraram o desafio.
No dia seguinte, os mais animados já estavam de ressaca e juravam
nunca mais beber na vida. Pediam dispensa das tarefas de varrer a casa, tirar
a mesa e preparar o almoço. Mônica-alcançou-todo-mundo-lá-no-quarto e
obrigou os preguiçosos e cumprirem o combinado.
— Quem não aguenta, bebe leite. – E completou. – Não Dagô, não
estou falando de você.
O dia transcorreu mais calmo. A brincadeira na praia não foi tão
animada com metade da turma convalescendo dentro de casa. Mesmo assim,
como em qualquer viagem de amigos, foi bom. E, no terceiro dia, já estavam
todos recuperados e sem cumprir a promessa de nunca mais beber. Dagô
chamou as meninas para vasculhar um porão que prometia muitas aventuras.
Voltaram de lá com duas pranchas de surf, três pranchas de body board e
uma concorrida prancha de SUP, que era a única que sabiam usar. Mesmo
assim, Teresa – ou seria Tábata? – Paulobete e João colocaram na cabeça
que aprenderiam a surfar sozinhos e sairiam de lá prontos para arrasar
quando o esporte estreasse nos Jogos Olímpicos. Paulobete e João,
arrasados, desistiram na primeira tentativa. Mas Teresa levava jeito e até que
pegou umas ondinhas. Por outras, foi pega. E engoliu tanta água salgada que
achou que nunca mais comeria sal na vida. Jurou que era culpa da cólica e
do remédio que esquecera de tomar.
— Ih, que gosto de sal. Beijei a irmã errada de novo. Desculpa, Terê.
A prancha de stand up padlle foi experimentada por todos. No final
da tarde, Alana, que já estava se achando experiente nela e garantiu que o sol
ainda duraria duas horas, convenceu Teresa a acompanhá-la num passeio até
depois da rebentação. Queria nadar em alto mar. E precisava de alguém
cuidando da prancha e do remo.
— Vou com a minha prancha de surf.
— Mas não tem onda depois da rebentação.
Era verdade. E, embora não quisesse admitir, Teresa estava cansada
de engolir sal e não tinha certeza se o copinho, como chamava o coletor
menstrual, daria conta do excesso de movimentos. Estava aprendendo a usá-
lo e, não raro, vazava um pouco – o que já havia acontecido mais cedo. Sem
que ninguém percebesse, correu até o quarto e trocou o biquíni por um maiô.
Disse que era melhor para surfar.
Teresa subiu no pranchão dando um aperto na bunda de Alana. Mais
um, porque, vira-e-mexe, tinha umas coreografias cheias de toques nas aulas
e todo mundo já tinha apalpado o popô de todo mundo.
Alana, metida a sobrevivente do fim do mundo, levou uma lanterna
de testa – por precaução, porque o sol era garantido – e uma bússola
decorativa no pescoço. Era um pingente, mas ela jurou que funcionava.
Numa cápsula de plástico à prova d’água, do tipo que as pessoas usam para
guardar um dinheiro que ninguém quer roubar, carregou isqueiro para a
fogueira imaginária que faria, se precisasse, e um canivete suíço, comprado
pela internet, que ansiava por estrear. Prontas para a diversão, Teresa deu as
primeiras remadas, enquanto Alana gritava para Dagô fazer uma foto
esticando bem os braços para não estragar.
— A Mônica não devolveu os celulares. – Ele gritou, de longe.
Momento perdido. Aliás, muitas imagens perdidas naquele rolê. As
redes sociais da galera morriam de fome. Mas estava tão gostoso assim. Até
dava para aguentar mais quatro dias sem celular.
Alana e Terê falavam sem parar. A surfista insistia para a amiga
confessar se tinha ou não ido para a cama com o casal Paulobete. Alana ria
para caramba e desconversava. Aí, contava umas histórias sem pé nem
cabeça sobre a suposta noite de amor, revelando, no final, que era tudo
mentira. Nunca tinham transado. Mônica sim, ela é quem passara algumas
noites com os dois. Alana descobriu por acaso, porque nenhum deles jamais
revelaria qualquer coisa. Mas, um dia, Bete e Mônica-elástica entraram no
banheiro da escola de dança e, sem perceber que ela também estava lá,
conversaram sobre o acontecido. Bete terminava o romance, alegando que
ela e Paulo não estavam prontos para ir para a cama com uma amiga.
Poderia prejudicar a relação.
Alana não tinha a menor intenção de contar isso a alguém. Até
porque adorava a fantasia de pensarem nela como o terceiro travesseiro.
Quebunda nunca tinha feito sexo a três, mas, como todo mundo com uma
vida sexual que se preze, morria de curiosidade e esperava, um dia, saciá-la.
Falavam tanto que não perceberam o sol indo embora. Não de cara.
Até que Terê se deu conta.
— Porra, Alana! Você não disse que a gente tinha tempo?
— E a gente tem. – Respondeu, encarando o céu, achando que a
escuridão que avançava era culpa de alguma nuvem inesperada se
sobrepondo à claridade. Então notou. – O sol não está se pondo, Terê. É um
eclipse.
Uau, que viagem! Literalmente, a melhor viagem de todos os tempos.
Alana resolveu mergulhar no mar quase escuro e deu um pulo, espirrando
água por todos os lados, no maior estrondo. E ficou se sacolejando para não
afundar. Quando foi subir na prancha, pediu a mão de Terê, que se
prontificou a içá-la, e a puxou para junto de si.
— Foi mal, Terê. Achei que fosse a Tábata. Ela adora nadar aqui no
fundo também.
Quase perderam o remo. Terê, sentindo a cólica dar sinal de vida
outra vez, gesticulava, puta da vida, para a amiga.
— Não acredito, Alana. Se eu não alcançasse o remo, como é que a
gente ia voltar?
Estavam no calor da discussão – Alana tentando se desculpar a
tempo de não quebrar o clima, quando alguma coisa se chocou contra ela,
fazendo-a voar pelos ares e cair alguns metros adiante. Atordoada, recobrou-
se sem entender nada. Achou que tinha sido uma onda repentina e nadou
para perto da amiga. Ao se aproximar, enquanto recuperava a noção da
realidade, escutou Teresa gritando por socorro. Tremeu de medo, ainda sem
imaginar o motivo de tanto desespero. Viu quando ela conseguiu subir na
prancha e respirou, aliviada, chegando mais perto.
— Corre, Alana. É tubarão. Correeeeee!
Alana correu. Quer dizer, nadou. Não sabia o que mais poderia fazer.
Levou uma rabada do bicho e teve que se aprumar para voltar à direção da
amiga. Toda sem jeito, Teresa tentava se aproximar dela com o remo,
rezando para não acertar o bicho. Tremia-se toda. Alana conseguiu subir na
prancha. Estava se ajeitando para sentar, quando outro ataque da fera a
derrubou. O animal, que parecia bem maior do que ela, pelo pouco que podia
enxergar, abriu a boca em sua direção. Teresa, notando o ataque antes que
Alana tivesse tempo de decifrar o que acontecia, acertou-o no focinho com a
pá. Uma cagada, claro. Até parece que ela sabia alguma coisa sobre
tubarões. Teria sido um ataque fatal, mas o gigante se retraiu a tempo,
furioso, debatendo-se com a bocarra entreaberta.
Guiada pelo instinto de sobrevivência, Alana subiu no pranchão com
a agilidade de uma acrobata. E tomou a pá das mãos de Terê, que tremia que
nem vara verde, investindo na direção da primeira pedra que seus olhos
alcançaram em meio à escuridão. A praia e os amigos, infelizmente, estavam
longe demais. Teresa percebeu as intenções da amiga e forçou a velocidade
da embarcação com as próprias mãos, numa atitude irracional, sem pensar
que poderiam ser devoradas pela fera.
As duas e o bicho chegaram juntos na tal pedra. Alana se jogou de
qualquer jeito no paredão musguento, que parecia muito mais seguro do que
o mar, e esticou as mãos para Teresa, que a alcançou no mesmo instante, e,
servindo-se da sua habilidade nata para realizar grand jetés, deu um pulo,
lançando a perna da frente na direção da rocha e levantando a de trás, de
modo a livrá-la da investida do monstro do mar, que se preparava para um
novo bote. Escapou ilesa. Mas foi por pouco.
Respiravam, aliviadas, num abraço apertado, sem reparar, de
imediato, na proximidade dos corpos. Agradeceram a quaisquer que fossem
seus ou suas deusas pelas vidas preservadas. Alana, de frente para o mar,
abriu os olhos e viu o pranchão se transformar em pedaços, atirados ao longe
pela força das mandíbulas da besta. O tubarão ainda tentou alcançá-las, mas
Alana, ao perceber, recuou, puxando Teresa consigo. Desequilibraram-se e
rolaram pela lateral do paredão, indo dar com o mar, numa parte cercada por
corais e pedras menores.
Cheia de arranhões, Alana se levantou, desesperada, procurando um
lugar seguro fora d’água. Sob a noite trevosa, não percebeu que se achava
protegida pela barreira que o tubarão não conseguiria ultrapassar. As mãos
de Teresa alcançaram sua cintura e a conduziram para uma direção que
ninguém ainda entendia qual era. Atiraram-se no chão, sem fôlego,
produzindo um ruído alto enquanto recuperavam o oxigênio esgotado até as
últimas reservas. Uns minutos depois, ninguém saberia dizer quantos, Teresa
agarrou a mão de Alana, entrelaçando seus dedos nos dela.
Quando o vento começou a castigar os corpos molhados, atinaram
para o que tinha acontecido e abriram os olhos, desejosas de encontrar uma
realidade segura e confortável. Alana sentiu o corpo doer. Esticou-se para
ver o estrago. Na escuridão da noite antecipada, sem nenhuma luz artificial
por perto, achou que não estava tão mal assim. Mas, quando tentou se
levantar, sentiu a força da surra que havia tomado. Felizmente, escapara de
qualquer mordida.
Teresa, que também tinha se levantado e tomava consciência de tudo
à sua volta, cutucou os braços da amiga numa empolgação:
— Estamos na praia! Olha, a gente está na areia. – E, então, olhou
para a amiga, a cara de dor estampada em suas feições.
O semblante de Terê foi se transformando em câmera lenta. O sorriso
deu lugar a um ar de preocupação ao pensar na nas pancadas que atingiram
Alana.
— Onde dói?
— Acho que tudo. – Alana sentia mais os arranhões ardendo, com a
invasão do sal nas entranhas, do que o impacto dos golpes. Estes
demorariam um pouco mais para se fazerem notar.
Teresa se debruçou sobre ela, examinando-a. Com cuidado, tentava
tirar a areia grudada no corpo para entender a gravidade dos ferimentos. Não
viu nenhum corte profundo, mas sabia que os arranhões, causados pela
queda nos corais, podiam ser muito incômodos. Lembrou-se de um acidente
de bicicleta na qual deslizara alguns metros pelo asfalto. Fez uma careta de
dor.
Tratando de esquecer o passado e se concentrar na amiga, que a
encarava cheia de expectativa, apalpou seu corpo em busca de possíveis
lesões sérias. Alana até que reagiu bem e elas concluíram que tinham tido
muita sorte. Teresa também estava escoriada, mas seu temperamento a
empurrava para a ação.
Achando que o céu estava ficando mais claro, olharam para
cima. Deviam ter se acostumado à penumbra, porque, embora o eclipse
tivesse terminado, o tempo do sol iluminar aquele lado do mundo também
encerrara e ele partira para cumprir expediente do outro lado do planeta.
— Bem que a gente precisava daquela sua lanterna agora.
Alana nem se deu conta, mas, na confusão com o bicho, a lanterna
que carregava presa à testa tinha sido carregada pelas águas ou para o
estômago do animal. Com a mão na cabeça, sua expressão era a de quem
perdera um tesouro.
— E o isqueiro?
A cápsula hermética, assim como seu pingente-bússola, tinha sido
colocada no pescoço para maior conforto das mãos, que poderiam desfrutar,
livres, do remo. Sentindo-se aliviada, abriu-a, tirando de dentro tanto o
canivete quanto o objeto que a amiga esperava.
Teresa tentou acendê-lo. Estava molhado. Merda de cápsula. Não
sabia se, depois de seco, voltaria a funcionar e, achando que sim, devolveu-o
para a amiga, não sem antes avisar para colocá-lo a seco.
— Que merda, Terê. Estou morrendo de frio. Meu biquíni ainda não
secou. Acha que virão atrás da gente?
— Claro que sim. Vamos esperar. A gente não deve estar muito
longe.
— Que loucura tudo isso. A porra de um tubarão no meio do nosso
passeio!
A amiga menstruada se lembrou de que, mais cedo, o sangue vazara
no mar. Perguntou-se se teria atraído o bicho para perto da costa.
— Deve ter sido o eclipse. Os bichos ficam doidos, achando que a
noite chegou antes da hora. – Falou Alana, cheia de propriedade. – Dá pra
fazer fogo com dois palitos de madeira. – E alcançou uns gravetos que
estavam próximos, descartando-os em seguida, após parti-los com
facilidade.
Teresa riu.
— Nem toda estropiada você sossega?
Alana riu de volta.
— Deve ser o frio. – E encolheu-se, incomodada com a areia que
grudava na sua bunda espetacular.
— Vamos andar um pouco, ver se a gente acha o caminho de volta. –
Teresa falou, já se colocando de pé. Estendeu o braço à amiga, que o aceitou,
e se pôs ao lado dela. – Vai ser bom pra esquentar.
— Acho que a gente se afastou um bocado, Tê.
Caminharam em silêncio, sem muita noção da direção que seguiam.
Alana pensou na bússola, mas não sabia para qual lado da rosa dos ventos a
casa em que estavam hospedadas ficava. O frio foi se tornando suportável,
até ser substituído por um leve calor. Começavam a transpirar, mas o tempo
entre a mudança de temperaturas permitiu que a areia descolasse de suas
peles. Agora, ela grudava apenas nos pés e canelas. Que alívio.
O passeio esperançoso não durou muito. Estavam num local cercado
por dois paredões rochosos nas laterais e uma vegetação que se adensava
cada vez mais na direção oposta ao mar. Tentaram contornar as rochas, sem
sucesso. Não se arriscaram numa subida. A opção era o mato, mas, sem
qualquer coisa para iluminar o caminho, arriaram, desencorajadas, e
voltaram para a areia.
— Vamos descansar. Quando o sol chegar, a gente descobre como
sair daqui.
Teresa deitou-se na areia, fazendo um montinho mais alto para
acomodar a cabeça. Alana a imitou e, excitadas demais para dormir, ficaram
olhando o céu.
— É lindo sem nenhuma luz para atrapalhar.
— Nunca achei que desse para ver tantas estrelas.
— Olha, acho que ali é o Triângulo do Sul.
— Onde?
— Ali, perto daquela estrelinha que parece piscar.
— Como você sabe que é esse e não aquele outro?
— Não sei.
Riram. Uma risada cheia, boa, esperançosa. Então, Alana falou que
dava para se orientar pelas estrelas.
— Imagino que você faça isso tão bem quanto fez a fogueira, no
primeiro dia.
— Eu sei fazer fogueira. Paulobete e os meninos é que atrapalharam.
— Bem que podia fazer uma pra nós. Estou começando a ficar com
frio.
Num impulso, Alana a abraçou. Não soube o que a fez agir dessa
maneira, mas o fato é que, quando se deu conta, tiravam o excesso de areia
dos corpos e se aninhavam no abraço uma da outra. Teresa repousou a
cabeça sobre os ombros da amiga e, não muito tempo depois, adormeceram.
Acordaram com a claridade. Alana gemeu, sentindo o corpo dolorido
ao se mexer. Teresa afastou-se para dar espaço a ela.
— Caralho, Terê! Ninguém achou a gente. – E, pensando seriamente
em ter que colocar seus conhecimentos de sobrevivência em prática,
alcançou o isqueiro e o testou. Viu sair uma fagulha, mas não acendeu.
Tentou de novo. A mesma coisa. – Se a gente achar um pouco de palha ou
galhos secos bem fininhos, acho que dá pra pegar fogo.
— Bom dia pra você também.
— Foi mal. Bom dia. – Olhou em volta. – É lindo aqui. Será que o
tubarão foi embora?
— Não sei. – E foi se lavar na parte rasa da água, delimitada pela
barreira que a separava dos perigos do outro lado. Arrepiou no contato
gelado com a pele. Olhou além, procurando pela fera. Tudo parecia calmo.
Tirou o maiô, o coletor menstrual, e o lavou na água salgada mesmo, porque
era o que tinha. – Vem dar um mergulho, Alana. Está uma delícia.
— Sei. – Respondeu, aproximando-se. – Deve ser a minha presença
que te deixa arrepiada, então.
Riram. Alana entrou na água porque queria se livrar da areia. Limpas
e molhadas, sentiram os estômagos reclamarem.
— Duas palavras: sede e fome.
Teresa tinha um ar de preocupação.
— Não sei se a gente vai pro mato procurar água e comida, ou se
tento escalar essa pedra e descobrir como voltar pra casa. – Como se
decidisse sem esperar pela opinião da amiga, continuou. – Bom, saco vazio
não para em pé. – E se pôs a caminhar na direção do mato, a vegetação que
começava baixa e, mais para o fundo, ia aumentando de tamanho.
— E se a gente pescar?
Teresa gargalhou.
— Terei o maior prazer em voltar à pré-história com você, Alana.
Mas não conte comigo para limpar um peixe.
Riram mais um bocado. Mesmo naquela situação inesperada,
divertiam-se na companhia uma da outra. O perigo não era amedrontador, ao
contrário, excitava-as.
— Olha, coquinhos! – Teresa apontou para uma árvore da qual
pendia um cacho lotado de bolotinhas alaranjadas.
— E isso é de comer?
— Porra, Alana. Que sobrevivente de merda é você. Claro que sim.
Tem que bater para abrir – falou, já alcançando uma pedra do chão – e a
gente come essa castanha aqui de dentro. Dá pra comer a polpa também. É
meio gosmenta, mas, de barriga vazia, vira um banquete.
E se adiantou para o cacho, forçando-o a vir abaixo com o peso do
corpo. Não se lembrou do canivete suíço da amiga. Quando conseguiu
arrancá-lo, fartaram-se sem nem se importar com a baba que grudava nos
dentes. Só depois de saciadas é que sentiram o incômodo.
— Eu tinha que fazer uma foto sua, Terê.
— E você acha que está a musa do verão, por acaso?
Rasparam os dentes com as unhas, engolindo os restos do café da
manhã.
— Até que matou um pouco a minha sede, mas eu bem gostaria de
um copão de água gelada.
Embrenharam-se mais adentro no que parecia ser uma floresta.
Alana, a sobrevivente do fim do mundo, e sua bunda sugeriram de marcarem
os lugares por onde passavam para não se perderem. Teresa achou a
precaução importante e, com uma pedra que riscava colorido, escolhia
árvores nas quais pudessem grafar um “A” e um “T”.
— Põe um coraçãozinho em volta. Daqui cem anos, sábios em vão
tentarão decifrar... – Alana brincou, sem esperar que o comentário
provocasse alguma reação em Teresa.
— Ficou mesmo com a minha irmã?
— Como assim?
— Você falou que tinha ficado com ela.
— Eu estava brincando.
Silêncio.
— Acha ela bonita?
— Muito. Vocês são duas gatas.
— Ela me disse que sim, que vocês ficaram.
— Por que Tábata diria isso?
— Pra me sacanear.
— E por que ela te sacanearia?
Teresa não respondeu. Um pouco depois, numa outra árvore, fez o
coração em volta das iniciais de seus nomes.
— Assim?
Alana deu uma risada galhofeira.
— Na próxima, desenha duas bonequinhas trepando.
A amiga olhou para ela e foi como se fosse uma flecha atravessasse
Alana. Tropeçou e, dando uns passos errados para trás, escorou o corpo num
tronco largo. Sentiu tudo doer. Teresa avançou com dois passos firmes e
colocou os braços em volta, perdendo-a contra a árvore.
— Acho que você não foi pra cama com Paulobete. Duvido que
tenha ido.
— E o que te fez chegar a essa conclusão? – A proximidade de
Teresa a fez engolir em seco.
— Você brinca demais. Está sempre flertando com alguém. Mas não
percebe o óbvio.
— O que é que eu não percebo? – Respondeu, quase ofendida.
Num micro movimento, Teresa se aproximou ainda mais. Levou a
mão na direção do rosto dela, fazendo graça com seus cabelos, e pegou em
seu lábio, dando um puxão.
— Ai!
— Baba de coquinho. Está toda suja.
— Você também não está nenhuma lady. – Respondeu, afastando-se,
e compreendendo muito bem o que tinha rolado. Deu um sorriso escondido e
continuaram mata adentro.
Não andaram muito até avistar um filete de água correndo pelo chão.
Teresa provou e constatou se tratar de água doce. Alana fez cara de nojo e
viu a amiga rir dela, numa expressão que não deixava dúvidas do quanto a
achava despreparada para sobreviver ao fim do mundo. Caminharam na
direção contrária à do filete, vendo-o aumentar de tamanho. De fato, as
sortudas deram numa pequena queda d’água, onde puderam beber e se lavar.
Mergulhar não. Era pequena demais.
— Se a gente continuar subindo, pode ser que tenha um poço mais
adiante.
— Ah, sim, e você já desistiu de voltar pra civilização?
— Podemos construir nosso ninho de amor aqui.
Era uma provocação. Teresa percebeu. Voltou-se para ela e a
encontrou num beijo molhado, fazendo-a arrepiar de frio e excitação. As
mãos de Alana, desprevenidas, logo se aprumaram e agarraram o corpo
úmido da amiga, puxando seu maiô para baixo. Sentiram um calor que,
diante das gotículas geladas que ainda corriam por seus corpos, não parecia
fazer muito sentido. Na verdade, fazia sim.
Sem conseguir desfazer o nó que apertava o biquíni de Alana no
pescoço, Teresa, vencida, retirou-o por cima da cabeça, como um top. Os
seios se tocaram, gelados e encolhidos de frio e tesão. Um novo beijo, cheio
de mãos cariciosas, foi o suficiente para fazê-las vencer qualquer arrepio que
não fosse de prazer. Alana agarrou a cintura de Teresa, que devolveu o toque
firme apertando sua bunda espetacular. Escorregou por trás dela, abaixando-
se e metendo-se por dentro do biquíni. Ela já estava molhada – e não era da
queda d’água.
Toda prosa, Alana se desfez da parte de baixo e puxou Teresa pelo
maiô, forçando-o para baixo. Ela, sedenta, ajudou. Deixaram que os pelos
pubianos se encontrassem, enquanto as bocas e mãos passeavam pelos
corpos uma da outra. Olharam-se. Teresa não resistiu. Com as mãos nas
nádegas de Alana, exclamou:
— Que bunda.
E caíram numa gargalhada. Transar com a amiga podia ser assim.
Fazer o quê? O importante é que o clima não se rompeu. As risadas
transformaram-se num risinho sacana e depravado, cheio de vontade de
devorar a outra. Alana provou cada parte do corpo de Teresa. Chupou o
pescoço, os seios, mordiscou os bicos empinados, deu uma boa mordida nas
costas, voltou-se para frente, e sugou, um por um, os dedos das mãos.
Lambeu as dobras dos cotovelos e foi encaminhando-se para baixo, cada vez
mais excitada. Teresa deixava – seu riso sorrateiro aprovando e ela gemendo.
Alana passou pela região dos quadris sem tocá-la, mas chegando muito
perto.
Depois de uma espera sem fim, Alana, finalmente, colocou as mãos
em sua boceta. Avançou para ela, louca para senti-la por dentro. Teresa a
interrompeu, contraindo os músculos e fechando as pernas.
— A gente vai mesmo fazer isso? Estou menstruada.
— Foda-se. Quero você. – E a beijou.
Teresa não estava em condições objetar novamente.
— Espera um pouco. – Respondeu, sem ar – Vou tirar o copinho.
Foi até a pequena queda d’água e se resolveu. Alana a esperava
afogueada e, assim que ela voltou, pressionou-a contra o tronco da árvore e
entrou nela, sentindo-a inchada por dentro. Teresa reagiu, largando o
pescoço, num movimento que aprovava o contato e pedia mais. Quando
achou que ela estava quase lá, Alana abocanhou-a num beijo cheio de
vontade. E, entre línguas, dedos e lábios, Teresa derreteu-se para ela, dando
um grito alto e fazendo pássaros cuja companhia desconheciam ali alçarem
voo. Gozou olhando para o céu. Que viagem! Aquela era a viagem mais
emocionante da sua vida.
Arfavam. Alana carimbou o sangue de Terê nela mesma e na amiga,
como uma pintura. Recuperando as forças, Teresa a virou de costas para si,
colocando-a contra a casca da mesma árvore. As raízes se esparramavam
para fora da terra. Abriu caminho por entre as nádegas e encostou seus seios
nas costas de Alana, aproveitando que estavam suadas para deslizar pela
amiga. Entre os obstáculos que se interpunham sob seus pés,
experimentavam o prazer entre si e com a mãe natureza. Alana esfregava-se
toda no tronco, sentindo-o acariciar sua pele, ao mesmo tempo em que
Teresa vinha por trás, provocando seus sentidos. Mordeu o lóbulo da orelha,
contou segredos de liquidificador, brincou no pescoço e amou o perfume que
era só dela. A mão livre abriu caminho entre a amiga e a árvore. Alana era
toda linda. Virou-a de frente para si porque queria assisti-la. E a fez gozar.
Alana não gritou. Tremeu e sorriu, saciada. Os pássaros fujões
pousaram outra vez perto delas. E um deles, dando um rasante para bebericar
da mesma água com a qual haviam matado a sede, espirrou-a, fazendo
brotar, por instantes, gotículas de arco-íris que se refletiram nas mulheres
agarradas. Super romântico. Beijaram-se.
Teresa acomodou o maiô entre duas raízes grandes e sentou-se,
colocando Alana no colo. Ficaram um tempo se namorando em conversas
gostosinhas ao pé do ouvido. Depois, voltaram a sentir fome e beberam
muita água, na esperança de que ela aplacasse os estômagos reclamões.
— E aí, a gente faz nosso ninho de amor aqui ou volta pra areia e
descobre como retornar?
— Voto no ninho. Não quero saber de mais nada nesse mundo!
— O problema é que só você e a Bete dirigem. Como nossos amigos
voltarão para casa sem o seu carro?
— Eles que lutem.
Riram uma risada cheia de brilho nos olhos.
— Que horas você acha que são?
Alana olhou para o céu.
— Meio dia. O sol está a pino.
Teresa não tinha certeza, mas achou que era isso mesmo.
— A gente pode comer mais uns coquinhos e subir num daqueles
paredões para entender o quanto nos afastamos da casa.
Fizeram isso. A refeição repetida não foi tão prazerosa quanto
pareceu da primeira vez. Mas não se importaram. Subiram na rocha com a
agilidade de duas bailarinas. Lá de cima, puderam ver a casa.
— Daqui, nem parece tão longe assim. E se a gente nadasse até a
próxima pedra?
Alana levantou a mão carimbada a ela, lembrando-a de que,
menstruada, poderia atrair o tubarão de volta.
— E esses gravetos, será que acendem? – Teresa apontou galhos
secos que deviam ter pousado ali depois de carregados por alguma rajada de
vento. Alcançou o isqueiro que Alana lhe estendia e tentou botar fogo num
pauzinho que se parecia com um palito de fósforo. Não funcionou.
— Vamos juntas, eu faço uma cabaninha com as mãos.
Fracassaram novamente. Mas, na terceira tentativa, o isqueiro
resolveu colaborar e acenderam o pauzinho. Só que não deu tempo dele
chegar nos outros. Determinadas, prepararam-se melhor e acenderam um
montículo dos menores galhos que puderam juntar. Exultantes,
comemoravam, quando Alana informou a Teresa de que o combustível
acabava de ser devorado pelas chamas. Teresa a beijou.
— Você fica linda com essa carinha de brava.
A cara de brava desapareceu na hora. E Alana continuou linda.
— Bom, vamos ter que fazer fogo lá embaixo.
— Seria bom aqui em cima, pra verem a gente. Será que estão nos
procurando?
— Espero que sim. A menos que tenham brincado de “eu nunca” e
enchido tanto a cara que não deram pela nossa falta.
— Nesse caso, seria um sinal para eu e você vivermos felizes para
sempre aqui.
Teresa cantarolou a marcha nupcial e Alana deu bronca no filho
imaginário das duas, que repetiu o 5º ano pela segunda vez.
— A culpa é sua, Terê. Você mima demais esse menino.
Desceram a pedra e resolveram fazer a fogueira na praia mesmo.
Teresa foi até o início da vegetação, onde os gravetos pareciam bem secos, e
recolheu novas vítimas para a empreitada. Desta vez, pegou alguns galhos
maiores também. Finalmente, fizeram uma pequena fogueira. Alana achou
melhor se precaverem com mais restos de madeira para o fogo não apagar. E
assim foi. Passaram o dia namorando e na expectativa de um resgate.
Quando o sol estava para se pôr, subiram na rocha outra vez, levando parte
do fogo para lá. Alana e Teresa deixaram, no cume, o que consideravam ser
combustível suficiente para o fogo durar muitas horas.
— Terê, falei sério sobre o peixe. Estou com uma fome que nem sei.
Com uma tochinha que quase apagou, foram até a beirada do mar. Já
tinham reparado que ali estava cheio de peixinhos coloridos nadando e se
reproduzindo – não com tanto prazer quanto elas. Tentaram agarrar algum
com as mãos, sem sucesso. Voltaram para o fogo e Teresa sugeriu os
coquinhos, mas Alana lhe devolveu uma careta. Abraçaram-se e esperaram o
sono chegar.
Acordaram agarradinhas – Teresa com o maiô arriado até a cintura e
Alana sem a parte de cima do biquíni. De madrugada, sentindo-se apertadas,
afrouxaram o que deveriam ser os seus pijamas. Alana levou sua bunda
espetacular para um banho atrás dos corais, sentindo que o sal causava
menos incômodo do que no dia anterior. As pancadas do bicho, entretanto,
revelavam sua força e os roxos na pele estavam mais acentuados.
Teresa a acompanhou. Lavou o maiô e, antes de vesti-lo outra vez,
agarrou Alana, impedindo-a de sair da água. É claro que fizeram amor de
novo. Alana sentou-se numa pedra pequena e Teresa acabou com ela,
fazendo-a perder o equilíbrio de bailarina e amparando-a em seus braços.
Um ouriço-do-mar não saiu de perto das duas, espiando, “ouriçado”, o
namoro das amigas. Só quando Alana abriu espaço para receber Teresa na
mesma pedra, é que ele se tocou de que estava sobrando na brincadeira.
Estavam peladinhas se amando, quando Alana escutou o barulho.
— É um motor, Terê. Está ouvindo?
Teresa esticou o pescoço.
— Estou.
Deram um beijaço e correram para se vestir. Subiram o paredão outra
vez para acenar dali de cima. O fogo estava apagado e a ausência de
qualquer fumaça fez Teresa desconfiar de que a fogueira não tinha durado
muito tempo.
— Aqui!
Teresa se virou na direção do grito de Alana e somou forças.
— Tábataaaaaaaaaaaaaa!!! Aqui em cima!
A irmã a viu. Mais uns gritos e todos se entenderam. Elas desceram
da rocha e foram colocadas num bote do corpo de bombeiros. Paulobete e
Tábata abraçaram as amigas perdidas, querendo saber o que tinha
acontecido.

Até hoje, o tubarão é motivo de piada. Sempre que um deles encontra


as namoradas, manda logo uma chacota envolvendo o animal. A maior delas
foi no carnaval do ano seguinte à melhor viagem de suas vidas. Todos se
fantasiaram da fera marinha e as pegaram desprevenidas. Aurora foi de
Tubarão Aurora e, claro, cantaram a marchinha. Paulobete eram as estrelas
do clássico de Spielberg. Mônica, cheia de seguidores nas redes sociais,
viralizou contando a história de amor com uma foto tirada no meio do
cordão do Boi Tolo. Terê e Alana deram algumas entrevistas e, quando
voltaram para as aulas de dança, ganharam destaque na apresentação de final
de ano, fazendo uma releitura lésbica de Romeu e Julieta.
A casa maravilhosa daquele verão se tornou o ponto de encontro dos
amigos uma vez por ano. A turma cresceu com a chegada de novos pares,
depois diminuiu com a debandada de alguns. João e Roberto terminaram
porque João foi dançar nos isteites. Mas Terê, Alana e sua bunda espetacular
permanecerem fiéis ao ninho de amor e a si mesmas.
Até hoje, Alana não fez sexo a três, mas se formou em sobrevivência
na selva e, daquele ano em diante, realmente sabia ensinar as horas pela
posição do sol e explicava aos amigos as utilidades de se ter em mãos um
canivete e uma bússola. Fez uma fogueira e brincaram de “eu nunca” pela
milésima vez – sem tubarões por perto.
ESCALENO

*Alerta de gatilho: ditadura da beleza e transfobia

Maria Luiza olhou-se no espelho retrovisor do Fusca azul. A cor preta dos
olhos, contornados com lápis de olho, começava a derreter. Secou o suor,
passando os dedos pelas pálpebras, e contou o dinheiro que tinha. Separando
o que restava de pedágio, sobravam oito reais. Desceu na lanchonete de beira
de estrada, atraindo olhares de todos os presentes, e saiu de lá com uma água
e um minúsculo pacote de biscoito superfaturado. De volta ao carro, ajeitou
a espuma do banco rasgado para dentro do couro e olhou o celular.
“Mãe, estou indo visitar vocês. Saudades. Te amo”.
Depois da sua mensagem, nenhuma resposta. Comeu o biscoito de
sabor duvidoso, engoliu a água e, antes de seguir pela Rio-Santos em direção
a Paraty, retocou o batom vermelho no único espelho de que dispunha.
Estava linda.

Na mesma estrada, um pouco mais à frente, Fernanda dirigia com


uma seleção de músicas românticas tocando alto. Olhou, orgulhosa, para o
banco do passageiro, que guardava o presente feito à mão por ela e
cuidadosamente embrulhado em celofane transparente – um perfeito
triângulo de tauari para ser pendurado na parede, cujo nicho continha três
bonecos articulados de madeira: o menor deles no centro e o da esquerda
com cabelos longos da cor do seu. Suspirou, numa expectativa ansiosa,
passou a mão pela barriga e continuou o caminho.
Na sala escura da casa que pertencera à avó, localizada na avenida
que ligava as zonas mais afastadas ao centro histórico de Paraty, Eduarda
terminava de tomar o café da manhã. Ouviu quando o celular vibrou e se
adiantou para ler a mensagem. No perfil da rede social, uma foto de natureza
ocupava o lugar que as pessoas, geralmente, preenchiam com retratos. Tocou
na tela e viu o nome da remetente: Marina.
“Com essa voz, você deve ser linda. Manda uma foto sua. Quem
sabe a gente não se vê mais tarde?”
Um autorretrato da interlocutora, numa pose sexy, tirada em frente ao
espelho de um banheiro, acompanhava o áudio. Eduarda trocou de
aplicativo, rolando suas fotos para cima e para baixo, numa insegura
indecisão. Escolheu uma e enviou, apagando-a em seguida.
“Estou horrível”.
Elegeu outra e mandou, desligando o aplicativo imediatamente, para
não ter de esperar pela resposta. Entre um pedaço de sonho de padaria e uma
golada de café-com-leite, desceu a mão por entre as pernas e se masturbou,
imaginando uma noite de amor com Marina. Ela se entregaria a alguém pela
primeira vez - um encontro romântico, num ato que incluía pétalas de rosas
vermelhas sobre os lençóis. Gozou depois de alguns minutos, mas o prazer
veio acompanhado do sabor da solidão. Seu corpo, fora dos padrões de
beleza, parecia destiná-la ao fracasso amoroso. Conferiu o celular.

Fernanda estacionou em frente a uma bela casa de veraneio, cujas


portas e janelas em peroba rosa e a arquitetura do início do século XVIII
contavam a história de uma residência de gerações que exploraram a região
desde o início das plantações de cana-de-açúcar. Abriu a porta do carro,
tirando de dentro uma pequena mala de rodinhas, jogou a bolsa de couro
sobre os ombros e pegou, cuidadosamente, o presente do banco do
passageiro, escondendo-o atrás das costas. Tocou o interfone, repassando
mentalmente o texto que ensaiara durante toda a semana.

Do outro lado da cidade, Maria Luiza atravessava, com dificuldade, a


esburacada estrada de terra que levava a uma das regiões mais afastadas de
Paraty. Dominada pelo tráfico e por “pequenas igrejas, grandes negócios”,
era um dos bairros a ser evitado pelos milhares de turistas que frequentavam
a cidade.
O velho Fusca cruzava a via sem chamar atenção. Mas uma vala de
garrafas usadas, em frente a um boteco, fez com que seu pneu dianteiro do
lado do passageiro furasse. Uma borracharia, avistada alguns metros atrás,
poderia ser a solução, exceto pelo fato de que Maria Luiza não tinha nenhum
dinheiro.

Fernanda foi recebida por Oswaldo. Ele abriu a porta e a


cumprimentou com um pouco de pressa, sem se atentar para o fato de que
ela tinha as mãos cheias. Estava sem camisa, os pés marcando pegadas
molhadas por onde passava. Vinha da piscina.
— Demorou hoje, hem!
Fernanda esperou pelo beijo que não aconteceu. Avançou para ele
sapecou-lhe um selinho.
— Não quis correr na estrada. Já almoçou?
— Só falta a sobremesa. – Respondeu, insinuando-se na direção dela.
As roupas de Fernanda ficaram molhadas. Oswaldo ignorava as
vozes que vinham dos fundos e que, a qualquer momento, poderiam cruzar a
sala.
— Espera. Para! Eu tenho uma coisa para te contar. O que acha de
me levar num restaurante?
— Depois você me conta.
Atirou-a no sofá, ignorando o presente que Fernanda mantinha atrás
das costas e derrubando-a sobre o pacote. Ela sentiu o cheiro ácido de álcool
em seu hálito e, com um leve enjoo, desviou de suas mãos, que insistiam em
despi-la longe de qualquer privacidade.
— O que eu tenho pra dizer é importante. Por que você não se
arruma e a gente sai pra comer?
— Gatinha, daqui a pouco tem jogo. – Respondeu, largando-se no
sofá, a voz na moleza de quem sabia conseguir o que queria.
Fernanda ajeitou o presente atrás de si, disfarçando a frustração.
— Será que esse jogo é tão imperdível assim?
— Que é que você quer me contar? Fala logo. Fechou outro
contrato? Vai fazer móvel pra quem agora, marceneira?
— Pra você. – Ela respondeu, revirando os olhos e decidindo
entregar o embrulho amassado.
— Que é isso?
— Abre.
Ele obedeceu e, ao retirar o conteúdo de dentro do celofane, voltou-
se para ela com cara de interrogação.
— É a gente. Eu de um lado, você do outro. E no meio... – Fernanda
olhou na direção da própria barriga.
— Que porra é essa, Fernanda?
— Eu estou grávida.
— Como assim?! De mim?
— Como assim, “de você”?
Ele passou as mãos pela boca, pelo pescoço e pelos ombros.
Fernanda assistia seus músculos se contraírem, enquanto ele se afastava para
falar, tentando controlar a respiração.
— Você me perguntou se eu quero ser pai? A resposta é não. De jeito
nenhum!
— Você me perguntou se eu quero ser mãe?
— Quer ter filho? Problema seu. Não quer? Tira.
Oswaldo respondeu num grito que chamou a atenção dos amigos.
Como ele, o grupo – três rapazes e uma moça – veio da piscina, molhando o
caminho por onde passava.
— Calma, Oswaldo! – Falou a mulher.
— Pro inferno vocês duas.
E, dizendo isso, pisou fundo até a porta, abriu-a e atirou o triângulo
perfeito para longe, indicando que Fernanda deveria seguir o mesmo
caminho do objeto. Ela encarou os amigos dele, constrangida. Sentindo que,
em breve, não conseguiria mais falar, murmurou:
— Minhas coisas.
A moça alcançou a bolsa e a mala de Fernanda, que estavam atrás de
Oswaldo. Encontrou-a no jardim impecável que ornava a fachada da
mansão, recolhendo o presente que se partira durante a queda.
— Ei, não fica chateada não.
Fernanda recebeu seus pertences, jogou-os de qualquer jeito no carro,
por cima do banco da motorista, e saiu dali o mais rápido que pôde. O som
dos pneus cantando e o rastro da borracha queimada no asfalto não bastaram
para demonstrar como ela se sentia. Descontando a raiva no acelerador,
revivia a discussão, pensando no que poderia ter feito diferente.

Maria Luiza caminhou, do alto de um salto de dez centímetros, até a


borracharia. Pediu ajuda a um homem de meia idade, que a olhou de cima a
baixo.
— Quatrocentos e cinquenta.
— Como?!
— Pra consertar o pneu.
— Por esse valor, troco os quatro por novos.
— O senhor fica à vontade. Tem uma oficina que faz isso há uns 15
quilômetros daqui.
— Senhorita.
O sujeito deu de ombros.
— Não tenho como chegar até lá. Estou indo visitar meus pais. Se o
senhor me ajudar, volto aqui amanhã e acertamos isso. Por favor.
— Tenho cara de quem vende fiado, senhor...ita? – Respondeu, num
tom repugnantemente irônico.
Maria Luiza pensou por um momento. Teria que negociar com o
homem desprezível.
— Escuta, tenho uma chave de roda e um macaco novinhos no porta-
malas. O que acha de me arranjar um pedaço de borracha e um pouco de
cola para eu fazer um remendo no pneu e, em troca, pago com as
ferramentas que lhe serão muito mais valiosas?
O sujeito sorriu com os dentes amarelados, apontando na direção de
uma prateleira.
— Meu estoque está em dia, amigo.
Ela reparou num porta-retrato quase escondido atrás do amontoado
de cacarecos na mesa dele.
— Que tal algumas roupas para sua esposa ou para sua filha? Tenho
um vestido de festa que...
Ele não a deixou terminar.
— Já que você falou em esposa, a minha está grávida e... sabe como
são as mulheres, não é? Elas ficam difíceis às vezes.
Esfregando a mão na genitália, o homem insinuava uma barganha
que levava Maria Luiza de volta às suas piores recordações, quando saíra de
casa aos 14 anos.
Tomada por uma onda de ódio, avançou contra ele, desferindo-lhe
chutes e socos. O sujeito revidou e ela sentiu o gosto de sangue quando uma
chave de fenda a atingiu no lábio. Maria Luiza alcançou uma roda e,
empregando toda a força que podia, golpeou-o no queixo, fazendo com que
o homem tombasse para o lado.
Com o corpo todo tremendo, roubou o primeiro pneu montado que
seus olhos avistaram. Retornou ao Fusca, rezando para que o borracheiro
não acordasse a tempo de alcançá-la.
Deu a partida, chorando de alívio, e seguiu por mais alguns minutos,
até virar numa ruela que não via há mais de vinte anos. Encostou o Fusca
atrás de uma árvore e secou as lágrimas. Retocou a maquiagem dos olhos e
da boca. Depois de respirar, avançou um pouco mais, estacionando perto de
uma casa simples. Um casal na casa dos setenta anos encontrava-se de pé, na
portinha de entrada.
Antes de descer do carro, conferiu-se no espelho. Ajeitou a roupa e
caminhou na direção dos senhores. A mulher mais velha tinha um livro
grosso nas mãos. O senhor, ao lado, descascava uma laranja com um facão
de tamanho desproporcional. Maria Luiza avançou, numa expectativa cheia
de esperança.
Estava a dois metros do casal, quando o senhor entregou a laranja à
esposa e apontou o facão em sua direção.
— Aqui não é casa de aberração.
— Pai, sou eu. – Como ele não mudou de atitude, ela baixou os olhos
e completou, com um fiapo de voz. – Luiz.
Procurou pelos olhos da mãe, que se desviaram para baixo, na
direção do livro.
— Agora eu posso ser a sua menininha.
Foi na direção dela, abrindo-se para um abraço. A senhora se
defendeu, usando o livro como escudo. Falou algumas palavras atropeladas,
das quais saltavam expressões que, mais tarde, ecoariam na mente de Maria
Luiza: “terrível abominação”, “não herdarás o reino dos céus”, “homem e
mulher”, “procriação”... Tinha os gestos exacerbados, como alguém que
executa um exorcismo.
Pega de surpresa, a filha recuou quando o pai investiu contra ela,
ameaçando atingi-la com o facão se, em nome de Jesus, ela não fosse
embora.
Retornando ao Fusca, a paisagem diante de si transformava-se num
borrão de verdes e marrons. Sem distinguir o que via, Maria Luiza tentava
encaixar a chave na ignição. Quando conseguiu, apertou o acelerador,
desviando-se dos buracos pelos quais passara pouco antes, numa velocidade
para a qual o velho carro não estava preparado.

De volta à mesa do café, que agora servia como suporte para os


pesados livros nos quais estudava Matemática Aplicada, Eduarda pegou o
celular e abriu o chat de mensagens. A foto tinha sido visualizada, conforme
atestavam os pauzinhos azuis, mas Marina não dissera mais nada. Eduarda
digitou alguma coisa, apagando logo depois. Reescreveu a frase
mentalmente algumas vezes e, finalmente, seus dedos ágeis anotaram:
“Pizza mais tarde?”
Uma carinha piscando acompanhava a sugestão. Esperou um pouco e
viu quando Marina ficou online. Ansiosa, abriu o jogo de paciência, dando o
tempo dela responder. Dois minutos depois, com o jogo ganho, voltou a
olhar o chat e não encontrou nada ali.
Decidida a retomar os estudos, mergulhou num cálculo complexo.
Desistiu em seguida. Passou as mãos por dentro da blusa, acariciou os seios,
desceu para o sexo e parou. Não estava com vontade. Fechou os livros e saiu
de casa, abandonando o celular sobre a mesa.

Eduarda caminhava sem destino pela avenida, quando o som de um


carro desproporcionalmente acelerado chamou sua atenção. Um SUV
prateado avançava rapidamente, parecendo não notar o semáforo vermelho
logo adiante.
O sol se despedia, projetando tons alaranjados sobre a cidade. Os
demais transeuntes também se adiantaram para acompanhar o destino do
carro que se aproximava do sinal indicando “pare”.
Como numa cena que se desenrola em câmera lenta, Eduarda ouviu o
som de uma buzina e olhou na direção de onde vinha. Avistou um Fusca
azul, também em alta velocidade, chegando pela rua lateral. A expressão da
plateia não deixava dúvidas. A menos que um dos carros freasse a tempo, a
colisão seria inevitável.
Quase na esquina do cruzamento, a condutora do carro azul buzinou
novamente, fazendo um sinal com as mãos para indicar, desesperada, que
estava sem freio. Eduarda virou-se para o outro carro, na intenção de
sinalizar o que acabara de compreender. Antes que tivesse tempo de erguer a
mão, ouviu o barulho do freio castigando a rua. Não a tempo. Os veículos se
chocaram. A frente do SUV acertando, por sorte, a lateral onde Maria Luiza
não se encontrava.
Pelo lado do passageiro, Eduarda viu uma figura toda borrada de
maquiagem, claudicando em cima de um salto quebrado, descer do Fusca
com a mão no quadril. Ao mesmo tempo em que os curiosos se
aproximavam, do outro carro saiu uma mulher cuja expressão sugeriu algo
entre a aflição e o desespero. Ela colocou as mãos na barriga e, enquanto
tentava entender o que seus olhos viam, notou a mulher do Fusca com cara
de dor. Eduarda e ela foram na direção da motorista machucada.
— Ah, meu Deus. Você está bem? Me desculpe, eu perdi o controle.
Maria Luiza ofegava, ainda sob efeito do trauma. Teve o ímpeto de
derramar sobre a desconhecida toda a revolta e tristeza de uma vida. Não
pôde. Seus olhos se cruzaram e o que sentiu diante da mulher tão atordoada
quanto ela, embora distante de uma explicação racional, a afastava de
qualquer confronto.
— Acho que foi só uma contusão. – Respondeu, apenas.
Eduarda esticou a mão para que ela se escorasse. Algumas pessoas,
com um sentido de solidária proatividade despertado pela ocasião,
organizaram-se para tirar os carros da pista. Fernanda se inclinava na direção
da mulher do Fusca, quando foi interrompida.
— Dona, a senhora tem seguro? Tem um mecânico aqui pertinho, é
só ligar que ele vem.
— O que aconteceu com o meu carro?
— Olha lá. A sua roda virou ao contrário.
Na tentativa de evitar o acidente, Fernanda se lembrou de torcer o
volante para os lados. Devia ter batido com as rodas lateralizadas e, com o
impacto, elas foram empurradas ainda mais.
— E o carro dela?
— Ainda anda, mas está ruim.
Preocupada, Fernanda adiantou-se para a outra motorista.
— Desculpa, eu... – Respirou fundo – Eu não vi o semáforo. –
Conteve as lágrimas. – Mas tenho seguro. Vou assumir toda a
responsabilidade.
Maria Luiza assentiu.
— Vai mesmo. Você avançou o sinal. – E, depois de pensar por um
momento, completou. – Moça, eu não moro aqui e estou sem dinheiro. Vou
precisar de uma refeição e de um lugar para dormir.
— Antes, precisa ir a um hospital. O resgate está a caminho. –
Interrompeu Eduarda.
— E você, também se machucou? – Maria Luiza perguntou a
Fernanda.
— Não... acho que não. – Respondeu, pousando uma das mãos sobre
a barriga.
— Você está grávida? – Desvencilhou-se de Eduarda e foi até ela. –
Precisa se sentar. – Virou-se para a multidão e gritou. – Alguém traga um
pouco de água, ela está grávida.
Fernanda não queria sentar. Mas alguma coisa fez com que
obedecesse à desconhecida, que tinha um corte na boca, ela reparou.
— Bateu o rosto também?
Maria Luiza colocou a mão sobre o machucado.
— Não. Isso foi outra coisa.
Eduarda conhecia a cidade na qual vivia desde que nascera.
Acompanhou as duas até o hospital, acalmando-as durante o trajeto. Com o
celular de Fernanda, adiantou o que podia em ligações para o seguro e o
mecânico da região.
Mais tarde, quando foram liberadas, Eduarda ainda se encontrava na
sala de espera.
— Que bom que nada grave aconteceu. Querem que eu as leve até
uma pousada?
Maria Luiza olhou para Fernanda, que se lembrou da conversa, mais
cedo, sobre a mulher não ter dinheiro.
— Pode ser. Agradeço.
Caminharam em direção ao centro histórico.
— Eu moro ali, naquela casa amarela. – E, como se tivesse tido uma
ideia, continuou. – Por que não passam a noite lá? Eu moro sozinha e tenho
espaço de sobra para acomodá-las.
Sem alternativa, Maria Luiza aceitou na hora. Fernanda mostrou-se
um pouco indecisa, mas, diante do cansaço e da maratona de check-ins e
checkouts que teria de enfrentar, além da recomendação da médica para que
não ficasse sozinha, acabou indo com elas.
Eduarda parou para comprar pizza. Percebendo que as convidadas
tinham fome, tratou de servir logo o que seria o jantar das três. Retirou os
livros da mesa, substituindo-os por pratos e talheres. Na estante, abriu
espaço para receber os objetos que carregavam. Fernanda colocou a bolsa ao
lado do triângulo capenga – o celofane amassado por baixo de tudo.
Na cozinha, Eduarda conferiu se recebera alguma mensagem. Nada.
O celular estava como antes. Voltou para a sala com uma garrafa de vinho e
outra de suco de uva, ciente de que a grávida não deveria beber. Fernanda
agradeceu, mas não tocou no suco. Maria Luiza abriu o vinho e serviu às
duas, grata pela hospitalidade.
— É bom ter companhia às vezes. Desde que minha avó faleceu,
quase nunca como com alguém.
Jantaram em silêncio. Maria Luiza tentava disfarçar as refeições
passadas em branco. Fernanda terminou, pediu licença e se isolou perto da
janela da sala, digitando alguma coisa no celular.
— Você e o bebê estão bem?
— Sim, estamos. Eu... Era o mecânico. – Respondeu, referindo-se à
troca de mensagens.
— E aí?
— O eixo das rodas quebrou e ele acabou de escrever que o conserto
não será rápido. Mas seu Fusca fica pronto amanhã. Pode fazer a funilaria no
Rio, se preferir. E me dar uma carona para voltar. – Completou, em tom de
brincadeira.
— Se não se importar de andar num carro velho...
Fernanda tentou sorrir. Encarou a estranha à sua frente e se perguntou
o porquê de propor uma carona, quando o seguro disponibilizaria um carro
muito mais confortável no qual viajar.
— Querem tomar banho? Acho que vai ser bom pra vocês relaxarem
um pouco.
Maria Luiza aceitou. Fernanda foi logo depois dela. E passaram um
bom tempo conversando, uma contando à outra o passado recente vivido
pouco antes de se conhecerem. Eduarda abriu a segunda garrafa de vinho e
continuou bebendo com Maria Luiza. Carregou dois colchões de solteiro
para a sala e os colocou no espaço entre o sofá e a estante antiga, que
abrigava livros, aparelho de som e televisão, entre outras coisas. Entregou
lençóis limpos às duas e aproveitou para ligar a vitrola que fora da avó.
— Uau! Que acervo é esse? – Perguntou Maria Luiza, encantada com
os discos da era de ouro brasileira.
— Por favor, coloca esse. – Pediu Fernanda, apontando o álbum de
1978 de Maria Bethânia, Álibi.
— Era o favorito da minha avó.
Eduarda o colocou para tocar. Sentadas de frente para os discos,
seguiram falando da vida, entrosadas como se fossem amigas que não se
viam há anos.
— Aqui, o impostor. – Maria Luiza mostrou a elas uma foto antiga:
Luiz, o filho renegado pela família por não ser como as outras meninas.
— Nossa, é outra pessoa. – Comentou Eduarda.
— Eu não sei o que me deu de procurar meus pais depois de todos
esses anos. Achei que eles poderiam me amar se me vissem assim, como eu
sou de verdade.
— Você é linda – Sem tirar os olhos da fotografia, Fernanda passou
as mãos pelos cabelos dela. Depois, seus olhos se encontraram e a grávida
não conseguiu se mover.
Eduarda foi até a vitrola ajeitar qualquer coisa desnecessária na
agulha. O movimento despertou as recém-conhecidas do estado de suspenso
no qual se encontravam. Censurando-se, Fernanda baixou as mãos.
— Você está bem?
Maria Luiza deu um suspiro profundo, fez uma careta sorridente,
franzindo o nariz, e respondeu:
— Vou ficar.
Fernanda sentia vontade de abraçá-la. Eduarda não sabia o que dizer.
Por fim, olhou para a grávida e, sem nenhum tato, perguntou sobre o pai da
criança. Ouviu um resumo do dia.
— Eu sabia que ele não queria nada sério. Mas achei que, com um
filho, as coisas poderiam ser diferentes.
— Então, engravidou de propósito? – Especulou.
— Sim.
Um silêncio se abateu sobre a sala, exceto pela vitrola na qual
Bethânia repetia: “Pai, afasta de mim esse cálice”.
Fernanda não sabia como explicar seus motivos. Passara os primeiros
anos de vida em um abrigo. A mãe era doente e, vendo-se abandonada pelo
pai, entregou a filha para que recebesse um cuidado melhor do que poderia
oferecer. Faleceu um tempo depois. Anos se passaram. Fernanda criava laços
com pessoas que iam e vinham, sem nunca tomar parte definitiva na vida de
alguém. Aos doze, foi adotada por uma mulher mais velha que se comoveu
com sua história. Foi a única mãe que ela conheceu. Perdeu-a para o câncer
dez anos depois. Tentou respirar, mas não pôde. Sentia-se sufocada.
Maria Luiza pousou sua mão de leve sobre a dela, levando-a a fechar
os olhos.
— Me senti uma qualquer sendo expulsa da casa dele. Achei que
fosse me bater. Ele tem um temperamento forte. – Tomou um pouco de ar,
enquanto ordenava os pensamentos. – Sei que o que fiz foi errado. Mas eu só
desejava ter uma família. Uma família de verdade, a minha família.
— E escolheu um homem que nunca quis o mesmo que você?
Alguém de quem sente medo de apanhar? – A dona do Fusca respondeu,
apertando a mão dela entre as suas.
— No fim das contas, vocês duas acharam que podiam mudar as
pessoas. – Comentou a anfitriã.
Maria Luiza a encarou. Um sorriso derrotado concordou com o que
dissera. Ergueu a própria taça.
— Um brinde a nós, que nos iludimos.
Eduarda fez questão de brindar também. E a companheira de vinho
se perguntou qual seria a ilusão dela. Tentava decifrá-la, quando Fernanda
tomou a garrafa para si, foi até a janela e deu várias goladas de uma só vez.
Maria Luiza se aproximou. Delicadamente, tirou a bebida de suas
mãos.
— Você não está mais sozinha.
Fernanda ainda não a conhecia – e talvez nem viesse a conhecê-la o
suficiente para ter certeza. Mas sentiu que suas palavras iam além de dizer
que ela “não estava mais sozinha” porque carregava um filho no ventre.
Sentiu vontade de desabar naqueles braços. E, no instante seguinte,
descartou a ideia absurda. Maria Luiza lhe deu as costas e a deixou perdida
em pensamentos.
Caminhando até o suco de uva, a dona do Fusca serviu um copo. Ao
fazer o caminho de volta, deteve-se no triângulo de madeira quebrado.
Alguma coisa naquele objeto a fascinava. Passou a mão pela madeira lisa,
admirando os veios. Ergueu o vértice caído, levando-o de volta ao lugar. O
triângulo se movimentou, angulando para um formato em que os lados
ficaram com tamanhos diferente. Ela o contemplou mais uma vez e seguiu
para encontrar a dona do objeto.
— Por ele. – Estendeu o copo a Fernanda, enquanto olhava para a
barriga dela.
— Não sei se vai ter ele. – Respondeu, elevando o tom.
— ... Você não precisa decidir isso agora.
Sua voz era doce e delicada. Fernanda aceitou o copo e tomou um
gole, permitindo-se respirar naquele cuidado.
Eduarda não tinha o costume de beber e, sentindo-se alta, anunciou
que era sua vez de tomar um banho.
— Sintam-se em casa. Tem mais vinho na cozinha. E, se alguém
quiser um docinho de sobremesa, tem minissonhos na prateleira de cima da
geladeira.
O silêncio e a falta de intimidade interpuseram-se. Quietas e
levemente constrangidas, fizeram as camas e se deitaram. Maria Luiza
encheu mais uma taça de vinho e, quando olhou para Fernanda, algo
aconteceu. Ou talvez já estivesse acontecendo desde que seus carros se
chocaram. Ninguém disse nada. A vitrola, em silêncio, anunciava o fim do
lado 1 do disco.
Primeiro, veio a curiosidade sobre o corpo da outra. A barriga que
continha uma vida dentro. Que, em breve, cresceria, mexeria de dentro para
fora. Os seios aumentariam de tamanho, derramariam leite. O sexo se abriria
para dar passagem a um ser. Um fio cheio de alimento seria cortado para
transformar um em dois.
Fernanda, por sua vez, perdia-se nos olhos tão diferentes daqueles
que vira na imagem de uma vida que era passado. Tinham brilho, vontade de
viver, de pertencer. Tinham pele, boca, luz. Eram olhos envoltos por um
corpo que ela, num ímpeto, desejou tocar.
Depois, veio o encantamento. Maria Luiza aproximou-se. Sentou na
beirada do colchão, meio de lado para Fernanda. Estendeu uma de suas mãos
na direção da barriga. Não fez nada. Fernanda pegou a mão no ar e a guiou
até seu ventre. Elas se encostaram.
Pele...
Troca de temperatura...
Texturas...
O tato provocou os cérebros. Um momento fugaz, no qual tudo o que
não pode ser traduzido em palavras se estabeleceu. O olhar que uma lançou
na direção da outra significou mais do que a qualquer descrição poderia
explicar
Fernanda deixou que as mãos de Maria Luiza encontrassem seu
caminho. O toque, intenso e delicado, descobria mais a cada investida. Um
seio. Uma mão no rosto. Uma pele diferente. Inalou o cheiro que se
desprendia dos cabelos dela e desejou seu beijo. Atraídas como ímã e metal,
sentiam o calor que saía da boca de uma invadir a respiração da outra. Os
lábios se tocaram, aos poucos. As línguas foram executando uma dança lenta
e improvisada. Tinham algo a oferecer, a trocar, a partilhar. Abriram-se ao
desconhecido, cedendo ao que pareceria inconcebível em qualquer outro
instante.
Sem lembrar que seriam flagradas em breve, exploravam-se na
ausência de qualquer censura. A boca de Maria Luiza alcançou os seios de
Fernanda. Ela gemeu alto, contorcendo-se. Seu pé acertou a vitrola, que
voltou a tocar, como se aquele momento merecesse uma trilha sonora.
Fernanda desceu com as mãos em busca do sexo da outra. Encontrou-a
pronta.
Na outra extremidade da sala, vinda do quarto, Eduarda deparou-se
com a cena e recuou imediatamente, sem fazer barulho, para um canto mais
escuro, onde a luz não a alcançava. Ficou assistindo ao que acontecia, sem
saber como reagir. Fernanda tirava a blusa de Maria Luiza e, por trás dela,
deslizando os cabelos para o lado, beijava seu pescoço, movimentando-se de
modo a estimular a parceira.
Eduarda ficou excitada. Com movimentos discretos, colocou as mãos
por dentro da roupa e se tocou. Minutos depois, entregue ao momento de
prazer, cambaleou para trás, derrubando uma reprodução de La Gioconda da
parede, que a encarou de volta com um sorriso sorrateiro.
Um baque. Maria Luiza e a grávida foram trazidas de volta à
realidade. Cobriram-se com os lençóis.
Percebendo onde estavam as mãos de Eduarda, a dona do Fusca
trocou um olhar com Fernanda e se levantou, caminhando na direção da
anfitriã. Era um convite.
Eduarda se retraiu, as mãos colocando a roupa de volta no lugar.
Escondeu-se dentro do próprio peito, quase um feto na vertical. A mulher
mais velha, entendendo tudo, apontou para o próprio corpo e, naqueles
segundos, o que uma disse à outra apenas com o olhar ressignificou a
existência de Eduarda.
“Todos os corpos têm direito ao prazer”.
Eduarda aceitou sua mão e, no caminho até os colchões, dispostos
lado a lado, ouviu o celular vibrar. Na tela do aparelho, uma mensagem que
ela não viu:
“Topo. <3 Que horas?”
Fernanda as recebeu afastando os lençóis. Deram as mãos e se
olharam. Era o desejo em sua forma mais racional, sabendo que uma escolha
havia sido feita. E por que não? Despiram Eduarda.
— Você é linda. – Maria Luiza verbalizou.
Na vitrola, começava a tocar O Meu Amor.
A vida de Eduarda se inaugurou com amor. Ainda que o para sempre
durasse segundos ou horas, elas se amaram. O gozo, pleno, consumava essa
verdade, transcendendo para as almas o poder que emanava de cada uma
delas e de todas. Pela primeira vez em muitos anos, Eduarda se sentiu bonita.
Sem conseguir se segurar por mais do que alguns minutos, explodiu
forte, selvagem, com tudo o que guardara por tanto tempo. Maria Luiza não
esperou que ela recuperasse o ar e a surpreendeu com um beijo carregado de
seu próprio sabor. Fernanda escorregou por entre os lençóis, juntando-se a
elas, e as línguas passearam umas pelas outras.
Depois, precisando retornar ao que havia surgido, Fernanda abriu-se,
molhada, para receber Maria Luiza, que a preencheu, enquanto se beijavam,
mais mulher do que nunca. Olharam-se, uma esperando pelo prazer da outra.
Fernanda puxou Eduarda e uniu as três num só ritmo.
Maria Bethânia cantava o sol que desvirgina a madrugada. Fernanda
olhou de uma para a outra, dizendo, com os espasmos de seu corpo, que não
podia mais esperar. Maria Luiza foi com ela. Chegaram ao orgasmo juntas.
E, tremendo, excitaram Eduarda, que gozou mais uma vez.
Entregaram-se aos lençóis, beijando-se até caírem num sono
profundo, enroscadas umas nas outras.
No dia seguinte, Fernanda despertou com o apito de uma chaleira.
Eduarda não estava com elas. Maria Luiza ainda dormia. Lembrou-se de
tudo o que acontecera no dia – e na noite anterior. Um turbilhão de
sentimentos, misturando-se ao som agudo que vinha da cozinha, suscitava
perguntas para as quais não tinha resposta. Família, filho, desejo, amor.
Colocou as mãos sobre os ouvidos, como se pudesse afastar os pensamentos,
e encolheu-se em volta das pernas.
Maria Luiza acordou e se deparou com a cena. Respirou fundo,
entendendo a gravidade do momento. Sem poder evitar, abraçou Fernanda
por trás e deixou um beijo delicado repousar em suas costas. Retirou-se para
o banheiro.
Na cozinha, Eduarda tinha os olhos vidrados no nada. Em suas mãos,
no celular, o encontro com Marina adiado para mais tarde. O som do
chuveiro misturou-se ao barulho da chaleira e Eduarda sorriu de orelha a
orelha.
A EX

— Fernando, coloca o tênis na varanda.


Fernando havia acabado de chegar em casa. Trocava a roupa do dia
por algo mais confortável. Tinha 31 anos e morava com os pais. Trabalhava
na administração de um pet shop, pequeno comércio que a família abriu
quando ele contava 12 anos. Passava mais tempo no caixa, cobrando ração e
vendendo vermífugo, do que lidando com o contador e a parte
administrativa, tarefas que preferia deixar a cargo da mãe.
Apesar das constantes reclamações dentro de casa, Fernando tinha
preguiça de usar talco. A mãe reclamava. Desde os seus 12 anos. Calçado,
no entanto, era um sujeito bem apessoado, de sorriso interessante e algum
traquejo com as mulheres. Tinha como passatempos favoritos o futebol e os
campeonatos de MMA. Interesses comuns a muitas pessoas. Não a Rosa, sua
ex.
Rosa tinha 28 anos. Era fotógrafa. Sua especialidade eram os
retratos. Além de atender às principais revistas do país, desenvolvia um
trabalho autoral ao redor do mundo. Estava prestes a publicar seu terceiro
livro. Após o término do namoro de seis meses com Fernando, passou os
outros seis na Austrália, vivendo com um clã aborígene. Tinha enorme
apreço pelas diversas culturas que conhecia através da profissão e uma
sabedoria interpessoal para se relacionar com grupos que levavam a vida de
maneiras diferentes da dela, respeitando hábitos e se fazendo bem recebida
em quase todas as situações. Fernando, não.
Fernando era um cara acomodado por natureza. Preferia um ambiente
conhecido e a tranquilidade das pessoas e costumes que não o desafiassem.
Seu prato favorito era a macarronada que a mãe fazia aos domingos. O
diferente lhe causava certa repulsa. Não compreendia e nem queria abrir mão
das certezas sobre seu universo ser o melhor, o mais evoluído e, portanto, o
único certo. Bem etnocêntrico. Rosa, não.
Para Rosa, tudo era mais relativo, como para os antropólogos do
século 20 em diante – que Fernando não tinha estudado no curso de
Administração. Ela, sim. Fizera Jornalismo. Uma mulher inquieta, certa de
haver tanta coisa no mundo como em seu coração. Gostava de conhecer
gente nova, diferente e de provar todos os sabores ofertados pelo cardápio
infinito que era o planeta. Sentia tesão em aprender e, todos os dias,
reconsiderar suas certezas sobre a vida, lançando-se, cada vez mais, na
direção de um abismo de perguntas que talvez nunca encontrassem
respostas. Fernando, não.
Fernando não lidava bem com dízimas periódicas e trigonometria.
Sua compreensão ia só até a álgebra de uma única incógnita. Rosa adorava
cálculos com mais letras do que números e via poesia quando o resultado do
x era igual a zero – o nada, a antimatéria. Antes de Fernando, já tinha
namorado com homens, mulheres e com mais de uma pessoa ao mesmo
tempo. Chegou até a viver um romance nada convencional, na época da
faculdade, com outras três moças. Fernando tinha tido três namoradas antes
de Rosa. Todas aprovadas pela família. Fernando e Rosa tiveram um
relacionamento curto. Um caso Eduardo e Mônica sem nenhuma harmonia.
Não poderia ter dado certo. E não deu.
Rosa tinha acabado de voltar ao Brasil. Combinara de jantar com
uma amiga. Entrava no restaurante, quando seu celular tocou.
— Querida, vou ter que cancelar. Pepino dos grandes aqui no
trabalho.
Bom, ela já estava no local. Achou que faria ótima companhia a si
mesma. Entrou. Deu de cara com Fernando e... a namorada nova dele.
“Que gata!” – Não, não foi ela quem pensou. Sou eu que estou
dizendo. Mas Rosa concordaria comigo.
— Nossa, tem uns bons meses que a gente não se vê...
— Seis.
— É? Não tinha contado.
— Essa aqui é a Lídia, minha namorada.
— Oi Lídia, tudo bem? Prazer, Rosa.
— Prazer. – Um intervalo meio constrangido no qual nenhum dos
três disse nada. – Vocês se conhecem de onde?
— A gente...
— Eu sou a gestão anterior.
— Ah sim, essa Rosa.
— Ele falou muito mal de mim?
— Um pouco. E esqueceu de mencionar o quanto você é bonita.
Rosa sorriu. Era bonita mesmo. Pensou em retribuir o elogio. Seria
sincero, mas achou que soaria pró-forma.
— É... você vai encontrar alguém? – Fernando não queria cruzar com
nenhum namorado de Rosa. Ou namorada. Quando a ideia lhe veio à cabeça,
ficou puto. Mas disfarçou. Ou tentou, porque Rosa percebeu.
— Ia, mas minha amiga desmarcou. Como eu já estava na porta...
Bom, vou deixar vocês à vontade. – Fez menção de se dirigir ao lado oposto
do salão, cujas colunas os protegeriam de uma desnecessária vigilância.
— Imagina, nada a ver jantar sozinha quando estamos aqui. Senta
com a gente. Acabamos de chegar.
Foi Lídia, a namorada, quem fez o convite.
Lídia era uma mulher aventureira. Gostava de Nina Simone, de Billie
Hollyday, de teatro, de dança, de artes performativas, interativas e de artes
visuais. Fernando, não. Fernando preferia os jogos clássicos de videogame
dos anos 80. Tinha Mario, Sonic, Pac Man e um minigame com mil
variações de tetris em casa. Mas Rosa, sim. Além de gostar de Nina Simone,
de Billie Hollyday, de teatro, de dança, de artes performativas, interativas e
de artes visuais, tinha o sexto sentido apurado e, por alguma razão que a sua
razão desconhecia, aceitou o convite. No mínimo, estava curiosa para
conhecer a gestão atual do ex.
Bebiam vinho. Rosa se espantou, porque Fernando nunca fora muito
dado às sutilezas das uvas. Preferia cerveja. E ficava chateado quando o
lugar não vendia a única marca que consumia. Mas aquele restaurante não
parecia ter, no cardápio, a combinação de água, malte e lúpulo com a qual
estava acostumado. A ex achou curioso. Lídia encomendou ao garçom mais
uma taça.
— Que delícia esse vinho.
— Um bom vinho verde. Pra abrir o apetite.
Com um sorriso de aprovação, Rosa olhou de Lídia para Fernando,
zombeteiramente.
— Quer dizer que agora você toma vinho?
Ele não respondeu. Mas a encarou com uma expressão que os meses
de intimidade partilhados indicavam não gostar do vinho, nem do
comentário. Como Lídia achou graça, Rosa não se importou.
— Fernando me disse que você é fotógrafa.
— Sou. Estou voltando de uma viagem de trabalho.
— E o que fotografa?
— Retratos. E você, trabalha com o quê?
— Claro, você fez aquele ensaio incrível na...
Fernando se irritou com o rumo da conversa, que desviava a atenção
da recém-namorada para um território que não lhe era familiar. Mas não
queria parecer chato. No começo dos relacionamentos, a gente tende a se
esforçar para agradar à parceira. Ou ao parceiro.
— A Lídia gosta de umas coisas esquisitas também. Que nem você.
O comentário foi esforçado, mas não soou bem. Na real, elas
preferiram fingir que nem tinha soado. Lídia, como designer, encontrava no
mundo da fotografia grande inspiração e material para seu trabalho.
Admirava os retratos de Rosa e tinha o primeiro livro dela na mesa de centro
de sua sala.
Lídia morava sozinha. Transava com Fernando no seu apartamento.
Não se sentia confortável tendo que sufocar os gritos de prazer por causa dos
pais dele. Se bem que, até aquele momento, não tinha encontrado muita
dificuldade de ser silenciosa na cama. O namorado fazia sexo como vivia a
vida. Tinha um roteiro pré-estabelecido e não sabia improvisar. Cacos,
jamais.
Sacando o celular do bolso, Lídia mostrou a Rosa um pouco do seu
portfólio. Interessadíssima, a ex achou o trabalho da atual super intrigante.
Era uma mulher que se colocava politicamente e falava mais através de
imagens do que um palestrante de Ted X em toda sua eloquência. Usava
cores, formas e letras de maneira simples, com a sabedoria de quem se
comunica universalmente. Rosa, conhecedora como era dos povos mais
diversos, compreendeu isso de cara. Fernando, não. Para ele, os contornos de
Lídia só faziam sentido depois da legenda.
— Quero que você faça o design do meu novo livro.
Entretidas, a atual e a ex engataram a segunda numa conversa que só
aumentava a distância entre elas e o carinha bem apessoado.
— Vamos fazer o pedido? Lídia, vamos pedir? – Falou mais alto.
— Oi?
— Você não disse que estava com fome?
— Ah, é.
Abriram o cardápio. Rosa bateu os olhos pelos pratos. Um deles
chamou sua atenção.
— O que acham deste arroz indiano com grão de bico?
Lídia olhou para Fernando. Tinham combinado de jantar risoto de
queijo – o mais longe que conseguira chegar com ele, que preferia ter ido
para a praça de alimentação de um shopping, onde encontraria um
hambúrguer com fritas dos bons. Nada contra, mas era sexta-feira e o jantar
era um dos primeiros do casal.
— Vamos, Fê? Quem sabe você gosta?
— Não sei... Essas coisas muito temperadas me enchem de espinhas.
Olha só – mostrou uma rodela vermelha cheia de pus para ela. – Minha mãe
resolveu apimentar o feijão agora.
Lídia ficou sem graça e olhou para Rosa.
— Posso pedir o prato individual, sem problema.
— Não, está bem. Vamos experimentar esse aí que você sugeriu. –
Ele falou.
A garrafa de vinho tinha chegado ao fim. Lídia, por cortesia, sugeriu
a Rosa que ela escolhesse o vinho seguinte. A ex elegeu um Riesling
refrescante e frutado para harmonizar com o tempero quente do prato.
Fernando comeu – e bebeu – com cara de quem não estava gostando. Elas
continuaram animadíssimas na conversa e na degustação do tempero
acalorado.
Em algum momento, Lídia olhou para Fernando, deslocado do papo.
— Você nunca me contou das exposições da Rosa.
— Eu só fui em uma. Não me lembro de muita coisa, pra dizer a
verdade.
— Ontem fomos ao Maracanã. – Ela falou para a ex, tentando incluí-
lo na conversa. – Viu a final do Brasileiro, que emoção?
— Vi e ouvi. Meia hora de fogos, parecia até Copa do Mundo.
— Jogaço. O drible do Dudu nos 45 do segundo e aquele golaço de
cabeça no ângulo... Não teve pra ninguém!
Lídia e Rosa sorriram. Era sempre uma manifestação bonita a alegria.
Mas não tinham muito mais o que dizer, além de concordar com a narração
que ele fazia dos passes mágicos do lateral esquerda e do impedimento
indevido que o juiz marcou.
— Tentaram ganhar no roubo, mas não conseguiram.
Não foi de propósito. Era um hiato mesmo entre os mundos dele e
delas que as conduziu para outro assunto. E o carinha bem apessoado, de
sorriso aprazível, no seu esquema escola-cinema-clube-televisão, não sabia o
que dizer quando elas falaram de magia, meditação e das bruxas queimadas
na fogueira. Fernando foi perdendo o traquejo.
— Vou ao banheiro. Licença.
— Toda.
— Essa foi num canyon perto da Califórnia. – Rosa mostrava uma
foto de viagem para Lídia.
— Quanto tempo vocês namoraram mesmo?
— ...
Rosa precisou pensar. Não era muito ligada em datas. Fernando
reclamava que ela se esquecia dos mesversários.
— Acho que uns seis meses.
— E ele foi com você pra lá?
— Não. Eu fui com uns amigos.
— E esse lugar lindo?
— Parque Nacional de Ásbyrgi, Islândia.
— Uau! Que delícia. – Lídia continuou passando as fotos.
— Você e o Fernando viajavam muito?
— Mais para a casa dos pais dele, em Araruama.
Lídia também gostava de conhecer o mundo. Até conseguia ver
poesia nos ventos e velas da cidade litorânea onde os pais de Fernando
tinham casa, mas fazia dois meses que esse era o único destino do casal. A
atual ansiava por explorar outros lugares, outros temperos, outras aventuras
e, quem sabe, descobrir, por si mesma, se existia, de fato, um monstro no
Lago Ness.
— Quero conhecer mais o seu trabalho.
— Podemos passar um final de semana em Araras. Uns amigos
acabaram de construir um chalé lá e me convidaram para conhecer.
— Você sabe que o Fernando odeia frio, né?
— Estou convidando você.
— Fim de semana das amigas?
— Não.
— Lídia, vamos pedir a conta? Queria voltar a tempo de ver a luta do
Selvagem com o Texas Boy.
Lídia foi embora com Fernando. Naquela noite, não transaram. Nem
depois. Ele voltou para a casa dos pais e ela passou boa parte da madrugada
revendo o livro que tinha em sua mesa de centro.
No dia seguinte, a designer continuou um papo que não tinha fim
com a fotógrafa. Foram para Araras. Lídia gritou no chalé, dentro da
banheira de hidromassagem, quando a ex antiga do Fernando abriu as pernas
da ex atual do Fernando e a colocou de frente para o jato forte de água. Lídia
pirava com a massagem no clitóris. Atrás dela, Rosa agarrava seus seios e
lhe mordiscava o pescoço, divertindo-se com as borbulhas que vinham de
todos os lados. Não tinha ninguém em volta para ouvir. Nem aquele, nem os
orgasmos que vieram depois.
O sexo com Rosa não tinha nada de convencional. Era uma loucura a
quantidade de informações e possibilidades. Um cálculo que, depois de
preencher as folhas de três cadernos, parecia dar numa dízima infinita.
O quarto livro de Rosa foi assinado por ela e Lídia. Uma obra que
subverteu os limites da fotografia para receber uma camada de colagens e
ilustrações digitais totalmente em sintonia com a geração Alpha de
Cingapura. No restaurante, brindavam com um tempranillo o sucesso do
lançamento, quando Fernando e a nova namorada entraram. Lídia e Rosa
acenaram. Pensavam em convidá-los para se juntarem a elas. Rosa, como
vocês já sabem, gostava de conhecer gente nova e de uma boa conversa.
Lídia também. Fernando, não. Fingiu que não era com ele e foi embora.
A MELHOR POUSADA DO MUNDO

Quando Diana chegou na Pousada das Flores, não viu nada que a fizesse
merecedora do pretenso epíteto que lhe acompanhava o nome. Era um local
bonito, com muito verde, pássaros e, claro, flores; além da recepção
calorosa, quartos aconchegantes e um café da manhã que parecia ter sido
preparado por uma avó quituteira e amorosa. Como tantas outras. Cães e
gatos circulavam livremente entre as hóspedes. Sim, era uma pousada só
para mulheres e anunciava uma experiência segura – sobretudo para as
viajantes solos.
A propriedade contava com trilhas de dificuldades variadas, duas
cachoeiras, piscinas naturais, árvores centenárias com cipós convidativos às
mais aventureiras, um pomar farto, almoços preparados com folhas e
legumes orgânicos da horta, cavalos para passeios, galinhas felizes vivendo
em um espaço grande e com refeição de verdade. Os laticínios vinham do
leite de duas vaquinhas igualmente bem tratadas, que atendiam pelos nomes
de “Prin” e “Cesinha”. Os chalés eram espaçados, proporcionando
privacidade e silêncio às viajantes. A casa principal tinha dois andares: o
térreo abrigava as áreas comuns, com restaurante, sala de estar, uma saleta
menor para leitura, outra maior com um vasto catálogo de filmes, um ateliê
aberto a qualquer visitante e um aposento menor, onde repousavam diversos
instrumentos musicais. O andar de cima, único espaço vedado às
frequentadoras, parecia ser o local de descanso das mulheres que
trabalhavam na casa.
Tudo parecia harmonioso no lugar. No dia em que chegou, Diana foi
saudada por um pôr-do-sol alaranjado, que deu vazão a uma lua crescente
igualmente colorida. Ainda assim, não estava convencida de que aquela era a
“melhor pousada do mundo”. Depois de um sono restaurador, foi ter com
uma das mulheres que trabalhavam no local, a fim de escolher o passeio do
dia. Estava tentada a se arriscar na trilha do Pico do Jacaré.
— O que devo esperar de uma trilha “moderada superior”?
— Um passeio delicioso para mulheres experientes, com bom
condicionamento físico e equipamento adequado. – Respondeu Zoé.
— Talvez eu não deva me aventurar, então.
— Comece por um passeio mais leve e veja como se sai. Se, depois,
ainda estiver curiosa, posso guiá-la. Até quando ficará aqui?
— Passarei a semana. Já estou tentada a aceitar sua oferta. O que
quer dizer com equipamentos especiais?
— Se for comigo, um bom par de botas de trilha e calças flexíveis
serão suficientes. Eu me encarrego do resto. – Zoé deu uma pequena pausa.
– Você tem medo de altura?
Diana pensou um pouco, antes de responder.
— Deveria?
— Tem um trecho nesta trilha em que é necessário escalar. São
poucos metros e o visual é lindo. Se não quiser se aventurar, há um caminho
alternativo.
— Acho que posso sobreviver.
Zoé sorriu para ela e voltou aos afazeres. Diana optou por uma trilha
moderada e, como saía cedo, imaginou que voltaria a tempo de dar um
mergulho. Na mochila, levava água, lanches, protetor solar e repelente,
conforme indicação da pousada. Tinha um calçado adequado e não era tão
inexperiente assim, afinal de contas.
Quando retornou, no final do dia, encontrou um bolo com cheiro de
recém assado e uma mesa com vários tipos de chá, numa convidativa oferta
ao descanso. Sentou-se numa das mesas e viu a moça do café da manhã
decorando rodelas de abacaxi com raspas de limão. Zoé lavava a louça e, vez
ou outra, substituía os pratos usados por limpos. Numa dessas ocasiões, foi
até Diana.
— Como foi o passeio?
— Acho que me saí bem. Quando puder, ficarei feliz em subir o Pico
do Jacaré.
— Está bem. Te direi o melhor dia.
A hóspede observou a troca de olhares entre ela e Luna, a moça que
servira o desjejum e, agora, cuidava do lanche vespertino. Ficou curiosa ao
sentir que elas partilhavam algo além das tarefas diárias. Foi para seu chalé
e, depois de um bom banho, encontrou outras mulheres que trabalhavam na
pousada ao redor de uma fogueira. Duas delas tocavam e as visitantes
acompanhavam.
O clima anunciava outra noite estrelada e agradável. Zoé e Luna se
juntaram à roda. Algumas moças brincavam com pinceis em telas oferecidas
pela pousada, casais apaixonados namoravam em pontos mais distantes e
havia aquelas que apenas jogavam conversa fora. Diana caminhou na
direção da fogueira e encontrou um lugar para si. Olhou para as mulheres
que vira trabalhando desde que chegara e pensou em qual delas seria a
proprietária do local. Mais tarde, quando a música cessou e as conversas
paralelas ganharam força, perguntou à mulher de longas tranças, que parecia
ser a mais velha, embora não tivesse muita certeza, se a pousada era dela.
— Nós dividimos a propriedade, a administração e as tarefas deste
lugar. – Respondeu sorrindo e dando a questão por encerrada.
— Desculpe, não sei o seu nome.
— Ísis. Aquela que estava no violão é a Sara e a moça de cabelos
escuros, ao lado dela, é Penélope.
— Então a pousada é de todas vocês?
— Sim e não. Zoé e Luna fundaram esta casa e seu propósito.
Podemos dizer que elas detêm a posse legal. Ana Terra, que faz os melhores
almoços do mundo, veio para cá pouco depois. Eu me juntei em seguida e
começamos a construir os chalés. Até então, as salas do térreo – ela apontou
para a construção principal – eram os quartos e, no andar de cima, havia
algumas hospedagens também. Depois, vieram Penélope e Tulipa.
Terminamos os chalés e, quando Sara, que chegou há um ano, se juntou a
nós, fizemos o espaço para as galinhas, adotamos a Prin e a Cesinha e, como
era da vontade de todas, os cães e gatos. Mas vivemos aqui sem que o
conceito de propriedade nos atravesse. A casa é de todas nós, assim como
suas responsabilidades.
Diana deixou transparecer alguma desconfiança.
— Como fica a divisão dos lucros, se é que me permite a
intromissão?
— Lucro não é exatamente o que nos move, embora seja importante
ganharmos bem. Mensalmente, pagamos as contas e dividimos em partes
iguais o restante.
— Luna e Zoé não ganham mais do que vocês?
Ísis sorriu.
— Incrível, não é?
A mulher se levantou, cochichou alguma coisa com Sara e foram
atrás de dois filhotes que, aparentemente, tinham de dormir do lado de
dentro e já passava da hora de voltarem para casa. Recolheram-se com eles.
Ana Terra, a moça famosa pelos almoços deliciosos, sem qualquer
constrangimento, depositou um beijo no pescoço de outra e deixou que sua
mão escorregasse pelo braço dela, numa troca de olhares que não escondia
as intenções de nenhuma das duas. Diana sentiu um frio na barriga e foi
dormir.
O canto alegre dos pássaros saudou-a para o novo dia. Sentiu o
cheiro do café recém passado e deixou o quarto vestindo apenas a camisola
com a qual dormira – uma das vantagens de se estar num lugar frequentado
exclusivamente por mulheres. Ao passar pelo chalé Girassol, notou Zoé
entrando com lençóis limpos e entregando-os à moça que recebera a carícia
no pescoço na noite anterior. Deteve-se na fresta da janela e tomou um susto
ao registrar o beijo apaixonado que trocaram. Constrangida e certa de ter
testemunhado uma traição, já que a moça que preparava o chalé estava
claramente envolvida com Ana Terra, foi para o restaurante. Não deixou de
se surpreender, novamente, ao ver Zoé entrar na cozinha e cumprimentar
Luna com um selinho. Atordoada, serviu-se e foi comer do lado de fora.
A moça terminou de preparar o chalé e o deixou arejando. Ao passar
por Diana, sorriu. Foi até um pessegueiro carregado e apanhou alguns frutos.
Ao voltar, parou para lhe falar.
— Ainda não fomos apresentadas. Eu sou Tulipa. Prazer.
— Diana.
— Aceita? Estão deliciosos?
Tulipa mordeu um dos pêssegos, deixando que a língua escorregasse
pelo talho no meio da fruta. A visão provocou alguma coisa na hóspede que
a fez corar. Recebeu dois pêssegos das mãos dela, agradeceu e não disse
mais nada. Ainda pensava no envolvimento entre ela e Zoé e, decidida a não
se intrometer num problema que não era seu, vestiu um biquíni e saiu para
aproveitar a cachoeira. O dia prometia altas temperaturas.
Retornou pouco depois do meio-dia. O almoço tinha um aroma que a
hipnotizou até o restaurante. Ao entrar, avistou Ana Terra e Tulipa
trabalhando sem qualquer indício de animosidade entre as duas. Às 13hs,
ambas deixaram a cozinha e sentaram-se para comer, partilhando a mesa
com Luna, Penélope e Sara. Zoé e Ísis pararam para lavar o rosto e juntaram-
se a elas logo depois. Estavam suadas, nitidamente voltando de alguma
empreitada ao sol.
Depois do almoço, Diana deitou-se na rede em frente ao chalé e
pegou um livro. Não chegou a ler uma página completa. Sua atenção foi
desviada para o funcionamento da pousada. Luna e Penélope cuidavam do
jardim em seus mínimos detalhes. Recolhiam frutas do pomar e livravam-se
daquelas que já tinham passado do ponto e poderiam se tornar incômodas ao
apodrecer. Tulipa, depois de deixar a cozinha impecável, recolhia os dejetos,
levando-os para servir de compostagem na horta. Ísis e Zoé justificavam o
suor ao trabalhar num reparo da calha na casa principal. Sara chegava de
Saveiro, descarregando as compras que abasteciam o lugar, e Ana Terra
escovava os cavalos. Sara e Penélope, mais tarde, foram até ela e as três
saíram para cavalgar.
No final da tarde, os incensos de citronela tomavam conta do ar.
Diana ouviu alguém comentar que eram feitos por Penélope e que havia
alguns pacotinhos à venda. Tulipa preparava a fogueira e Zoé, com os
cabelos secando no sol do fim de tarde, pintava com algumas hóspedes.
Penélope e Ísis saíram da casa principal abraçadas e de banho tomado.
Tulipa afastou-se do fogo e entrou, seguida por Zoé, que voltou depois de
alguns minutos, retomando a pintura. As cavaleiras retornaram do passeio e
também adentraram na propriedade. Diana se sentou ao lado de Ísis.
— Teremos música de novo?
— Terá de perguntar a Sara ou Ana Terra. Luna também arrisca um
violão. Se quiser tocar, sinta-se à vontade para usar os instrumentos.
— Acho que, sóbria, não arrisco nada. – E riu.
— Podemos resolver isso. Venha comigo.
Foram para a cozinha. Ísis preparou duas caipirinhas. Diana aprovou
e, na sala de música, escolheu um cajon. Saíam para o jardim, quando
cruzaram com Sara e Luna descendo as escadas. Elas não fizeram nada, mas
a maneira como se olharam, carregada de tensão sexual, fez Diana sentir um
arrepio. Ísis também percebeu e riu, sem graça, apressando a ida da hóspede
para a fogueira.
Quando voltou a si, nada mais fazia sentido. Tinha resolvido a
equação das moradoras da pousada da seguinte maneira: Luna e Zoé eram
um casal. Ana Terra e Tulipa, outro. Zoé e Tulipa tinham um caso e eram
pessoas horríveis. Seria possível que Luna e Sara também fossem amantes?
Como conseguiam conviver na mesma residência e agir assim? Ísis, pelo
visto, sabia e acobertava.
O que quer que acontecesse entre aquelas mulheres, não lhe dizia
respeito. Mas Diana estava incomodada e não conseguia parar de pensar
nelas. O cajon foi deixado de lado e ela se envolveu numa conversa
desinteressada com outras visitantes.
De madrugada, foi assombrada pela insônia. Acordou com imagens
desconexas de um sonho do qual não conseguia se lembrar, mas que a
enchera de tesão. Lutou contra, tentando voltar a dormir, mas, depois de
rolar na cama por quase uma hora, rendeu-se, tirando a calcinha e colocando
o travesseiro entre as pernas. Foi invadida por imagens das mulheres da
pousada: Tulipa acariciando lascivamente o pêssego, a troca de olhares
desconcertante entre Sara e Luna, o beijo furtivo de Zoé e Tulipa no chalé,
as mãos de Ísis tocando-a na cintura quando saíam da cozinha, Ana Terra
deslizando seus dedos pelas costas de Tulipa, Penélope, em sua delicadeza
apenas aparente, empinando a égua mais feroz do lugar. De repente, o quarto
esquentou e Diana se contorceu na cama.
Relaxada, achou que voltaria a dormir, mas a temperatura se elevara
o suficiente para impeli-la ao lado de fora. Resolveu dar uma volta. E, para
sua surpresa, o termômetro, marcando 23 graus, não coincida com o calor
que a arrebatava. Mais alerta, recordou-se de como chegara ao orgasmo.
Engoliu em seco.
Diana havia se relacionado com mulheres somente em duas ocasiões.
Uma delas talvez nem contasse. Ainda adolescente, saiu escondido com uma
amiga para fumar e, na euforia provocada pelo ato proibido, acabaram se
beijando. A outra vez, mais intensa, aconteceu na viagem de formatura da
graduação em veterinária. Em um hotel charmoso, no coração de Punta
Ballena, foi para a cama com a orientadora. Passaram uma noite
maravilhosa, mas o dia seguinte e tornou uma crise de consciência ética,
sobretudo por parte da professora, que acabou com qualquer clima existente
entre as duas. Nunca mais se falaram. Diana sofreu e tratou de direcionar seu
interesse para os homens. O que acontecera no quarto, portanto, era
surpreendente e inquietante.
Caminhava pelo jardim quando ouviu vozes. Espichou o pescoço,
tentando identificar quem era, e avistou, ao longe, uma lanterna indo na
direção da cachoeira. Curiosa, foi atrás. A trilha era fácil e a noite estava
bem iluminada. Poderia ser divertido se juntar a alguma aventura noturna.
Como uma criança que faz algo errado, em vez de acusar sua
presença, caminhou em silêncio, espiando quem quer que fossem as
notívagas. A temperatura estava mais fria e Diana se surpreendeu com o
barulho de corpos na água. Escondida por trás das árvores, aproximou-se. As
sete mulheres da pousada nadavam completamente nuas e se tocavam em
carícias íntimas.
Diana paralisou ao ver Zoé e Tulipa se atracarem na frente de Luna.
A mulher que preparava seu café da manhã sorriu para elas e recebeu as
mãos de Sara em seu corpo. Penélope a beijou e, a menos de um metro de
distância, Zoé e Tulipa pareciam ter avançado no que faziam: claramente,
Tulipa a tocava por baixo d’água. Ísis e Ana Terra assistiam de longe. Ísis
nadou até Zoé e a agarrou, beijando seu corpo. A hóspede lembrou-se das
duas, mais cedo, debaixo do sol, consertando a calha. Toques sutis entre elas,
registrados apenas pelo seu inconsciente, vieram à tona, como se o que
estivesse acontecendo na água fosse óbvio a um olhar mais atento.
Ana Terra puxou Penélope para si. Naquele caos harmônico de
corpos e desejos se saciando, Diana sentiu um calafrio invadi-la. Notou que
estava molhada, um líquido que não vinha da cachoeira e que, em vez de
esfriar, a colocava febril outra vez.
Movida pela imagem gozosa da mulher que se oferecera para guiá-la
numa trilha, levantou a camisola e abriu caminho por entre os grandes e
pequenos lábios. Imaginou-se possuindo a anfitriã que era levada ao delírio
na água e, com a excitação crescente dela, a sua também aumentou.
Sufocando os gemidos e deliciando-se com a mistura da imaginação e da
realidade, encontrou sua satisfação logo depois de Zoé. Mas foi traída por
um grito que escapou à tentativa de contê-lo. Assustou as mulheres na água.
Suas pernas não obedeciam à vontade de sair dali antes de ser
descoberta. Sara e Ísis deixaram a cachoeira e se vestiram, acompanhadas
pelos olhares apreensivos das demais.
— Tem alguém aí? – Sara caminhou na direção de onde estava.
Diana não respondeu. Em seu lugar, dois cachorros latiram um para o
outro e atraíram as atenções para o lado oposto. Aproveitou a algazarra para
fazer o caminho de volta ao seu chalé.
Na cama, o corpo descansava saciado. Riu para si mesma da
travessura. Pelas frestas da janela, o dia deu as boas-vindas. Luna e Zoé
passaram, abraçadas, a caminho da cozinha.
Dormiu até tarde. Quando resolveu sair da cama, tomou um banho
refrescante. Tinha um sorriso mal contido toda vez que se deparava com uma
das donas – ou não donas – da pousada. Ao entrar no restaurante, a mesa de
café da manhã havia sido recolhida e Luna não estava na cozinha. Mas
Tulipa passou por ela e, embora o horário do desjejum já tivesse sido
ultrapassado em uma hora, ofereceu-lhe o que comer.
— Venha aqui na cozinha. – Abriu a geladeira e mostrou a ela. –
Luna fez um sorbet de banana que está divino. Quer experimentar? E acho
que ainda temos os brioches da padaria Santo Glúten.
Acompanhada pela mulher que não cessava de lhe oferecer mais e
mais quitutes, Diana comeu na cozinha mesmo.
— Precisamos de um limite para o café da manhã por conta do
horário de almoço. Já, já, a cozinha será de Ana Terra e ela não gosta de
nada, ou ninguém, atrapalhando.
— Eu estou satisfeita. – Falou, limpando a boca com um guardanapo.
– Acho que nunca comi tão bem.
— Se quiser, pode almoçar mais tarde também.
Caminhava em direção ao jardim, pensando com qual atividade
preencheria seu dia, quando cruzou com Zoé.
— Amanhã estou livre. Ainda quer fazer a trilha do Pico do Jacaré?
Diana a encarou e, por um segundo, lembrou-se de como, em sua
imaginação, a possuíra horas antes. Um frio na barriga não deixou que
respondesse de imediato.
— Se tiver outros planos, sem problema. Luna pode guiá-la outro
dia.
— Não, eu... – tomou uma respiração e se recompôs – Eu adoraria.
Que horas?
— Oito?
— Perfeito.
A manhã passou arrastada. Depois de um mergulho na cachoeira,
Diana saiu para um passeio no museu da cidade. Retornou antes do fim do
horário do almoço. Depois de fazer a digestão, perguntou se poderia dar uma
volta a cavalo.
A veterinária partiu com Sara. Não porque não soubesse conduzir o
animal, mas porque, dada experiência de montaria da hóspede, a anfitriã se
viu diante da perspectiva de uma deliciosa cavalgada, o que gostava de fazer
tendo alguém como companhia.
Galoparam alguns minutos até um bosque de árvores nativas que,
naquele horário, eram entremeadas por raios de sol alaranjados. Um visual à
altura de qualquer cenário de filme. Sem descer da montaria, conversaram a
respeito do local. Diana fez uma série de perguntas sobre a região, os
animais, a flora e a vida numa cidade pequena.
Sara respondia com satisfação. Tinha orgulho de pertencer àquele
lugar e de ter as outras mulheres da pousada como companheiras de vida.
— É verdade que a cidade é pequena. Mas há tantos eventos que ela
vive com mais turistas do que moradores. Então, ninguém perde muito
tempo com a vida alheia.
— Acredita que é minha primeira vez aqui?
— Não! Você tem que voltar. Diga o que gosta de fazer e eu te direi
quando.
Diana riu.
— Gosto dos prazeres da vida. Como todo mundo, eu acho. Comer
bem, boa música, literatura, natureza... e outras coisas.
Sara não pôde deixar de se perguntar que outras coisas seriam essas.
Diana era uma mulher interessante e, por um momento, pensou nela em um
contexto de intimidade. Disfarçou a tempo.
— Posso citar um evento para cada coisa que elencou. E a natureza
estará à sua espera sempre que desejar. – Falou, lançando-lhe um olhar
carregado de duplo sentido.
A hóspede a encarou, tentando decifrar o que havia por trás das
palavras. Não tinha muita intimidade com a sedução entre mulheres e, antes
que pudesse cometer uma gafe, calou-se. Diana se perguntava o quanto os
moradores vizinhos sabiam do relacionamento entre as mulheres. Como
qualquer cidade turística, deviam estar habituados a diversos tipos de casais.
Mas o que pensariam deste namoro que, até para ela, suscitava algum
estranhamento? Sem resposta para as perguntas não feitas, retornaram. A
noite ia alta quando terminaram de escovar os cavalos.
— Estava com saudades de montar um corcel. Desde a faculdade que
não fazia isso. Trabalho só com animais de pequeno porte. – Diana falou,
esfregando as pernas com as unhas.
A pele, fatigada pelo banquete que os pernilongos faziam no
estábulo, encontrou alívio imediato no unguento de óleo de andiroba, casca
de banana e manjericão oferecido pela companheira de cavalgada.
— Obrigada. É maravilhoso, veja como as picadas já desincharam. E
não coçam.
— Fique com ele.
— E você?
— Tenho outro lá em cima. – Indicou, com a cabeça, a área restrita
às hóspedes. – Se Tulipa fizer mais, te darei um pote novo. Deve durar até
seu retorno para cá.
Piscando para ela, Sara dirigiu-se à fogueira. A hóspede fez carinho
num cachorro, entreteve os filhotes com um pedaço de galho seco e, mais
tarde, deitou-se na rede, contemplando o que acontecia em volta: insetos
noturnos, casais apaixonados, a dança do fogo, grupos conversando e, como
sempre, a harmonia delicada entre as moradoras da casa. Com a perspectiva
renovada, percebia o quanto a relação entre elas era explícita nos detalhes de
como se olhavam, nos pequenos toques, nas palavras não ditas e, sobretudo,
na vontade uma da outra que, por vezes, deixavam escapar. Embora as mais
ousadas, como Ana Terra e Penélope, não parecessem preocupadas em
esconder o que viviam.
Diana foi dormir tarde. As poucas horas de sono cobraram seu preço
quando o despertador a tirou da cama às sete da manhã. Pensou em desistir
do passeio, mas um impulso misterioso a animou. Dirigiu-se ao café da
manhã com os cabelos lavados, um perfume suave e uma maquiagem leve,
só para realçar os olhos.
Zoé se sentou ao lado dela com uma mochila que parecia grande
demais para a empreitada à qual se propunham.
— Vamos acampar e não estou sabendo?
— Quem sabe? O visual lá em cima é lindo. Se quiser ficar para ver
o sol nascer, não me oponho.
Achando que era uma brincadeira, riu. Notou que Ana Terra a
substituía na cozinha e desejou conhecer a fórmula para o que considerava
um exemplo de relação interpessoal. Voltou ao quarto para escovar os dentes
e esperou por Zoé, que falava com Tulipa e Sara. Despediram-se com
discretos selinhos e a guia a chamou.
Adentraram na trilha conversando sobre uma infinidade de assuntos.
Quando começaram a subir, uma gata miou alto, assustando-as. Mais à
frente, um miado fininho se fez ouvir. Diana tocou na cintura de Zoé e
apontou para o alto de uma jabuticabeira.
— Como ele foi parar lá em cima?
— Certamente, movido pelo medo de alguma coisa.
A gata acercou-se das duas, como se pedisse ajuda. Zoé olhou a
configuração à sua volta. Testou um cipó e achou que era firme o bastante
para aguentar seu peso. Colocou a mochila no chão e brincou:
— Se eu cair, sabe voltar sozinha?
Diana riu. Apesar de intuir que a anfitriã não se colocaria em risco,
avaliou se poderia retornar sem ela. Achou que sim. Zoé apontara bem cada
bifurcação duvidosa, fazendo-a reparar nos detalhes que diferenciavam um
lado do outro.
Com os pés descalços, iniciou uma subida ágil, desacelerando
somente quando o ângulo do cipó a inclinou para trás, fazendo seus braços
trabalharem dobrado para sustentá-la. Ultrapassada a primeira dificuldade, a
anfitriã balançou a corda, forçando-a na direção do que parecia ser um
tronco seguro. Ao passar para a árvore, escorregou, assustando o filhote, que
se embrenhou ainda mais para o meio das folhas. Teria desistido, se não
fosse a expertise de Diana aconselhando que tivesse paciência. Quando o
bichano, finalmente, ficou ao seu alcance, deu um bote certeiro. Lá de baixo,
a hóspede sorriu, lindamente iluminada pelo sol que atravessava a folhagem.
— E agora, se eu o jogar, você apanha?
— Claro que não. Se fizer isso, é bem capaz dele sumir pra sempre.
— Como faço, então? – Perguntou, rindo da própria falta de
planejamento, que só resolvera metade do resgate.
— Envolva-o com sua camiseta. Faça uma bolsinha totalmente
fechada. E prepare-se para os arranhões.
— Só agora me conta isso?
Diana riu. Zoé agarrou o cipó e, ao deixar a jabuticabeira, sentiu os
primeiros arranhões da ferinha atingindo-a perto dos seios. Com uma careta,
continuou a descida, que era mais fácil por ter a gravidade a seu favor.
Percebendo as unhas do pequeno avançarem sem dó, revolveu acabar
com a aventura a um metro do chão. Soltou o cipó e amorteceu a queda com
as mãos, sentindo as garras afiadas se segurarem com força onde podiam.
Fez uma careta de dor, agora mais real do que a primeira, tirou os nós da
blusa e entregou o gatinho a Diana, que o aninhou em seus braços,
acalmando-o.
A hóspede esvaziou a mochila e acomodou o bichinho assustado
dentro dela. A gata, aliviada, enfiou-se para dentro e o encheu de lambidas,
lançando olhares para as mulheres que pareciam agradecê-las por trazerem
seu bebê de volta.
Diana olhou para Zoé e viu o estrago. Ela estava só de top e as alças
arriadas revelavam arranhões profundos e sangrentos. A hóspede alcançou o
estojo de primeiros socorros e limpou as feridas, tocando-a pela primeira
vez.
— Esse pequeno acabou comigo.
Olharam-se com cara de crianças travessas.
— Essa. A danadinha é uma fêmea. E das bravas. – Olhou para a
corda na mochila de Zoé e continuou. – Por que não a usou? Não seria mais
seguro?
— Mas não teria a mesma graça. Não é todo dia que posso brincar de
Tarzan e Jane na floresta.
— Seria muito engraçado se o Tarzan fosse parar no hospital. O que
Jane pensaria dele?
A provocação cafona foi retribuída por Zoé, que deixou reticências
no ar.
— O que faremos com elas?
— Teremos de voltar. Não posso doar minha mochila. E é bem
provável que o que fez a filhote se esconder tão alto a assuste outra vez.
— A veterinária é você. Vamos, então.
Zoé seguiu na frente, indicando a Diana os melhores locais onde
pisar. A subida podia ser mais cansativa, mas também se fazia mais segura.
Ao descer, conhecer o terreno se tornava uma grande vantagem.
Entraram no restaurante na hora do almoço. Cercadas pelas perguntas
curiosas que não as esperavam tão cedo, revelaram o motivo do retorno
atípico. Em poucos minutos, gata e gatinha estavam acomodadas e
desfrutavam de uma oferta de afagos nunca imaginada.
As aventureiras resolveram almoçar, já que o cheiro convidativo da
comida de Ana Terra e os estômagos vazios eram uma combinação
insuperável. A chef sorria, orgulhosa, diante dos elogios.
Diana dava a trilha por encerrada, lamentando o pouco tempo que
ficara na companhia de Zoé. Mas divertia-se com a gatinha peluda.
— Pronta para recomeçar a caminhada?
— Achei que a trilha fosse longa demais para ser iniciada depois do
almoço.
— Não se dormirmos lá.
Diana riu.
— Falei sério quando disse que o visual lá em cima vale cada
segundo. E hoje é noite de lua cheia, não quer arriscar?
— Não é perigoso? Há espaço suficiente para nós duas?
Foi a vez de Zoé cair numa gargalhada.
— Poderíamos acampar com mais 30 pessoas lá no alto. Tem até
uma fogueira de pedra com combustível suficiente para assarmos alguma
coisa.
Os olhos de Diana brilharam. Nunca passara a noite numa montanha
antes.
— Então vamos. O que preciso levar?
— O mesmo de antes.
Encaminharam-se para a trilha. Diana estava excitada. O percurso até
o local do resgate pareceu ser mais rápido do que na primeira vez.
Comentavam a aventura de trazer a bichana de volta, rindo dos arranhões em
Zoé e enumerando tudo o que poderia ter dado errado.
— Foi engraçado, mas confesso que fiquei comovida com a gata mãe
nos pedindo ajuda. E, depois, ela parecia nos agradecer.
O semblante de Diana se transformou.
— O instinto materno é... – Ela não completou a frase. Em vez disso,
deu um suspiro sofrido e seguiu em silêncio.
Reparando que alguma coisa tinha acontecido, Zoé pensava numa
maneira de abordar o assunto sem ser indelicada.
— Disse alguma coisa que te chateou?
A hóspede tomou seu tempo, antes de responder:
— Não, imagina. Tive uma lembrança dolorosa, só isso.
Zoé parou.
— Se precisar desabafar, sinta-se à vontade.
Diana suspirou. A guia tirou uma garrafa d’água da mochila e
estendeu a ela. Depois de alguns goles, a hóspede tomou coragem:
— Perdi um bebê num acidente de carro não faz muito tempo.
— Ah, Diana... eu sinto muito. Não tenho filhos, mas não posso
imaginar dor maior do que essa.
E, percebendo que ela precisava de amparo, ofereceu um abraço. As
duas permaneceram paradas e Diana deixou que as lágrimas a aliviassem.
— Tão difícil quanto a perda foi aceitar que meu tempo para ser mãe
já tinha passado.
— Por que diz isso? Muitas mulheres engravidam mais tarde. E
existe a possibilidade de adoção.
— Eu não posso mais engravidar. E adoção deixou de ser uma opção
depois que acompanhei o processo de um casal de amigos. A criança viveu
alguns anos com eles, estava feliz e bem cuidada. Mas a família teve seu
destino decidido por um juiz que considerou que o melhor para a criança
seria morar com uma avó que ela nunca tinha visto. A menina estava, então,
com cinco anos. Acho que só isso pode ser tão dolorido quanto perder um
filho para a morte – saber que a pessoinha que mais amo no mundo está
sofrendo, convivendo com desconhecidos e sendo privada do amor da
família que reconhece como sua. Sei que existe uma lei que entende o que é
melhor para as crianças, mas o que vi, na prática, não me pareceu bom para a
filha dos meus amigos, nem para eles.
— Esse não é um assunto sobre o qual eu me sinta com
conhecimento para opinar. Certa vez, recebemos uma assistente social que
insistia na ideia de que o melhor para a criança era sempre ficar com a
família biológica. Entendo essa postura como muito radical, sabendo como
são algumas famílias por aí. Mas compreendi o lado dela quando nos contou
sobre um casal que, apesar de viver na rua, criava dois filhos como muitas
famílias abastadas não o fazem. Falou coisas lindas sobre as crianças e a
respeito da batalha que os pais enfrentaram para continuar com guarda delas.
Acho que cada caso é um caso. Nem sempre as leis levam todas as nuances
em conta, pelo contrário. O que me faz entender sua decisão, mesmo
sabendo que a maioria dos casos têm um final feliz.
— Tenho me esforçado tanto para me acostumar à ideia de que não
serei mãe, que pensar o contrário, agora, é igualmente dolorido.
Sem saber o que dizer, Zoé se limitou a ouvi-la. Refletiu se, alguma
vez, vivera um dilema parecido.
Claro que sim. Sobretudo na decisão de partilhar a vida com outras
mulheres, num relacionamento em que era preciso reaprender diariamente
como conviver. Embora amasse cada uma de suas companheiras, não era
fácil vivenciar um namoro sem nenhum modelo para servir como parâmetro.
E numa sociedade predominantemente incapaz de aceitá-lo ou compreendê-
lo. Zoé, Luna e as outras tinham estabelecido as perguntas que as guiavam e
que precisavam ser respondidas diariamente: “Eu estou feliz? Há algo que
me machuque neste modo de amar? Eu seria mais feliz em outro formato de
relacionamento?”. Discutir a relação, para elas, não era um fardo, como
muitos casais tratavam a questão, mas uma necessidade de se
compreenderem, de cuidarem umas das outras e, sobretudo, de reescreverem
as próprias regras deste jogo em que esperavam não haver perdedoras.
Caminharam em silêncio durante a parte mais íngreme da subida. A
atividade obrigou o corpo a direcionar todos os seus esforços para músculos
e pulmões, aliviando o cérebro do peso dos sentimentos. Diana recuperou o
semblante com o qual desfrutara da pousada desde sua chegada e Zoé ficou
feliz.
O ritmo desacelerou quando precisaram das mãos para ultrapassar
pedras maiores. E, com isso, detalhes que antes passavam despercebidos,
agora eram elucidados pela anfitriã, que fazia questão de apontar um fungo
indicativo da boa qualidade do ar, uma espécie endêmica de lagarto ou,
simplesmente, a beleza de uma flor. Divertiam-se com trechos que Diana
jurava desafiarem a gravidade para, depois, perceber que não fora tão difícil
atravessá-los. Nos pontos mais íngremes, a guia subia primeiro, prendia a
corda nos ganchos da pedra, e Diana a usava como apoio. O efeito, talvez,
fosse mais psicológico – avaliou.
Finalmente, pararam diante de uma bifurcação. Depois de apreciarem
a vista, Zoé avisou:
— Se estiver mesmo disposta a fazer uma pequena escalada e chegar
ao topo pelo caminho mais bonito, vamos pela esquerda.
— Achei que isso já estava decidido. É claro que vamos escalando.
Só de chegar até aqui, já me sinto uma montanhista profissional.
— Sabia que estava guiando a pessoa certa. – Respondeu, piscando
para ela.
Chegaram num paredão maciço que pareceu a Diana muito mais alto
do que Zoé lhe contara.
— Está de sacanagem! É isso que vamos subir?
A anfitriã riu. Apesar da altura da rocha, e do espanto que ela
provocava em quem nunca tinha escalado antes, sabia que a pedra era
acidentada o bastante para oferecer um vasto cardápio de apoios para pés e
mãos.
— Não é tão difícil quanto parece. E você vai subir com todo o
equipamento de segurança. – Falou, tirando da mochila a corda, duas
cadeirinhas, uma porção de mosquetões e outros apetrechos.
— O que são esses tênis minúsculos?
— Sapatilhas de escalada. Têm de ser pequenas mesmo, para os pés
não sambarem. Proporcionam mais firmeza na hora de se apoiar, embora o
grau dessa pedra permita até que a subamos de botas mesmo.
— Quer dizer que trouxe uma sapatilha pra mim?
— É claro, você não disse que viria pelo caminho mais difícil?
Seguiu-se uma conversa agradável, enquanto a guia preparava os
equipamentos. Diana estava fascinada com as novidades, mas o que mais
mexia com ela era o fato de que, quanto mais tempo passava com Zoé, mais
se interessava por ela, reparando em cada gesto, admirando-a pelo
conhecimento do local, das técnicas de montanhismo e pela simplicidade de
estar em sua companhia. Inevitavelmente, comparou-a com o ex-marido e os
ex-namorados. Avaliou o quanto tinha se esforçado em cada uma dessas
relações, engolindo a própria espontaneidade em favor do que seriam regras
adequadas de conduta. No casamento breve, sabia que a vontade de ser mãe
a movera na direção de uma vida com alguém por quem seu coração não
vibrava. Separaram-se antes da Terra completar uma volta ao redor do sol.
Diana estava, então, com quatro meses de gestação. Seria feliz como mãe
solo. Fora uma decisão acertada – pensou.
— Agora preste atenção: vou subir, prendendo a corda em cada um
dos ganchos deste paredão. O magnésio nas minhas mãos marcará os
melhores apoios para você agarrar, mas não se preocupe em acertar todos,
pois essa rocha é cheia de possibilidades. Confie no seu instinto. Quando
começar a subir, estarei lá em cima fazendo a sua segurança. Caso você se
desequilibre, lembre-se de que estará presa à corda. Venha, vamos
experimentar um boulder primeiro.
Aproximaram-se do paredão maciço e Zoé mostrou a Diana como
encontrar apoios para os pés e agarras para as mãos. Na primeira tentativa,
ela deixou o pé escapar e achou que seria impossível se equilibrar numa
subida a 90 graus. A anfitriã, então, mostrou como fazia e, na vez seguinte,
Diana subiu rapidamente, passando por três apoios da via.
— Ei, não vá muito alto, ainda. Em vez de subir, caminhe para o
lado. O importante é compreender a pedra e sentir confiança.
Gostando a aventura, Diana fez como ela falou. Divertiu-se ao
perceber o quanto a escalada era mais fácil do que parecia.
— Tente agora com as sapatilhas. Quero que sinta a diferença.
Apesar do aperto nos pés, e da careta de dor quando ficou sobre eles,
a hóspede percebeu como o solado de borracha da sapatilha se agarrava à
pedra, de modo a proporcionar firmeza mesmo nos menores apoios. Foi de
um lado a outro e, antes que pudesse esgotar as energias, Zoé a chamou de
volta, orientando-a para os próximos passos, como “descosturar” a corda.
Caberia a Diana remover, sozinha, cada mosquetão que a segurava nos
ganchos fixos e prendê-los na própria cadeirinha, sem passar por cima do
freio ou enroscar a corda em si mesma, além de levar as mãos às costas
frequentemente, mergulhando-a na bolsinha de magnésio em pó, que servia
aos dedos como a borracha da sapatilha servia aos pés.
Além de todos os fatores novos, haveria também o emocional
envolvido. Zoé não sabia como a hóspede reagiria ao perceber que estavam
diante de um desfiladeiro de beleza única, porém causador de certas
vertigens e, às vezes, da desistência de novatas da empreitada.
Chamou Diana para perto de si e a ajudou a vestir a cadeirinha.
Quando puxou a corda para fazer o nó, a hóspede se desequilibrou e foi
amparada por Zoé de uma queda que derrubaria as duas. Encararam-se,
sentindo a tensão que a proximidade excessiva provocava. Instintivamente, a
guia desceu os olhos para os lábios de Diana e voltou a encará-la. A
deglutição, revelada nos movimentos do pescoço, denunciava a excitação
que se instalava. Diana, por sua vez, respirava de boca aberta, e precisou
umedecer os lábios ressecados, num movimento que insinuou sua língua
para fora da boca e, por pouco, não foi adiante.
Forçando-se na direção contrária à da própria vontade, Zoé se
afastou, com um riso sem graça. Diana tomou a atitude como uma negativa
e, constrangida, mal compreendeu as últimas explicações sobre a subida.
Quando se deu conta, Zoé a olhava do meio da pedra, perguntando se estava
tudo bem.
— Sim. Já devo subir?
— Ainda não, espere eu terminar. Vou gritar lá de cima.
— Está bem. – Fingiu para ela e para si mesma que sabia o que fazer.
Quando a guia atingiu o destino, Diana não se sentia preparada.
Todos os seus músculos tremiam. Pensou em desistir e só não o fez porque
não sabia se, no mundo da escalada, isso seria possível. Esquecera-se de
tudo o que Zoé lhe ensinara e, por alguns segundos, encarou a pedra sem
saber o que fazer.
— Está tudo bem aí?
— Sim. – Respondeu, rápido demais. – Não me lembro como
começar.
— Pise naquele ponto que se parece com um degrau e agarre, com a
mão direita, a fenda manchada de magnésio. Depois, leve o pé esquerdo no
ponto que usou no treino de boulder e se impulsione para cima.
— Vou tentar.
— Diana? Diana, olhe para mim.
A hóspede ergueu a cabeça.
— Você já fez isso antes. Sabe que não é difícil. Estou aqui te dando
segurança.
Diana aquiesceu. Deu um suspiro profundo e sentiu que voltava a
controlar a própria musculatura. Com a mochila nas costas, deu o primeiro
passo. Firme, seguro, sabendo o que tinha de fazer. Depois, mais um. E
outro. As mãos, como Zoé falara, encontravam sozinhas os melhores lugares
para se agarrar.
Descosturou o primeiro mosquetão e prosseguiu. Havia passado do
ponto em que treinara e, literalmente, sabia que pisava num terreno
desconhecido. Mas não lhe parecia muito diferente dos metros iniciais.
— Quando sentir que está firme, preciso que faça uma parada.
— Estou firme aqui.
— Um pouco abaixo de você, na sua diagonal esquerda, há uma
bromélia. A corda se enroscou lá e, daqui, não consigo ver se ficou presa.
Acha que pode soltar uma das mãos e sacudi-la?
Ela respirou fundo e olhou para baixo.
— Porra, Zoé, é alto pra cacete aqui.
— Sim, mas você está presa, lembra? – E, para não deixar dúvidas,
tensionou a corda entre elas, sabendo que Diana sentiria a força içando-a. –
Respira fundo. Você já fez a parte mais difícil.
— Não sei se posso me soltar.
— Tudo bem, então. Pode continuar subindo.
— Mas e a corda?
— Puxarei depois. Voltaremos pelo outro lado, então não tem
problema se ela danificar.
— Como assim?!
— Você está acima da parte que se prendeu à bromélia. Não há
perigo.
— Acho que estou tremendo.
— Olhe para mim, Diana. Diana?!
— Oi.
— Isso. Você está indo bem. Falta menos da metade agora. Dê mais
um passo.
— Não consigo.
— É claro que consegue. Confia em mim. – Zoé acompanhou sua
indecisão. Finalmente, Diana arriscou um movimento. – Isso. Perfeito.
— Estou mais firme agora. Posso puxar a corda.
— Não precisa.
— Eu consigo. – E, olhando para baixo sem a surpresa que a abalou,
liberou a mão esquerda e forçou a corda para longe do paredão o máximo
que pôde. O impulso fez com que se soltasse da planta. Olhou para cima e
contemplou o sorriso de Zoé parabenizando-a.
— Sabia que conseguiria! Você foi excelente. Obrigada. Agora deve
fazer o próximo passo para a direita e descosturar mais um mosquetão.
— Sem ter que olhar para baixo, tudo parece mais fácil.
O trecho final da subida era ainda mais simples do que o início. Mas
a altura podia trair o bom senso. A hóspede, no entanto, desfez a costura e,
rapidamente, chegou no próximo gancho. Com a confiança adquirida ao
longo da subida, realizou o movimento mais rápido do que deveria e deixou
o mosquetão cair. Na tentativa de pegá-lo, escorregou o pé e precisou da
força dos braços para se segurar. Zoé içou a corda para cima, dividindo o
peso entre ela e as articulações da hóspede. Mesmo assim, Diana gritou de
medo ou de dor.
— Há um apoio grande perto do seu pé direito. Dobre um pouco o
joelho e o encontrará. Isso. Agora traga o pé esquerdo, esse apoio é amplo.
Diana estava pálida.
— Você está presa, lembra?
— Mas derrubei seu equipamento.
— Acha que nunca perdi um mosquetão antes? Não se preocupe.
Podemos buscá-lo na volta. Você está bem? Se machucou?
— Não, acho que não. – Respondeu, movimentando um dos braços,
numa atitude que contradizia sua resposta.
— Ei, você desfez todas as costuras. Mais dois passos e estará aqui
comigo.
Estendendo a mão a ela, Zoé sorriu. Diana correspondeu e,
concentrada, executou o final da subida. A guia a segurou, dando o último
puxão até o ponto de onde prosseguiriam. Deixou que ela tomasse o tempo
que precisava para se se recompor com uma oferta de água, sanduíches e
chocolate.
— Você foi muito bem. Mais umas duas escaladas e terei uma
parceira de aventuras.
— Como assim? Só você escala?
— Sara e Ana Terra também, mas eu sou a mais animada e vivo sem
companhia.
Ela riu.
— Fiquei bem nervosa no começo. Uma coisa era me arriscar com
você do lado. Mas, quando me vi sozinha...
— Escalar é 50% técnica, 50% controle emocional. Perdi a conta de
quantas vezes tive de retornar e seguir pelo trajeto alternativo. Muita gente
desiste no meio.
— Confesso que pensei nisso quando olhei para baixo.
— Mas se controlou e seguiu em frente. Isso diz muito sobre você,
não acha?
Ela não respondeu, mas exprimiu um “quem sabe?” com o olhar.
Zoé guardou os equipamentos, trocaram as sapatilhas pelas botas, não sem
antes massagear os dedos espremidos, e continuaram pela trilha, agora já no
final. O sol se aproximava do ocaso e a paisagem diante delas era
deslumbrante.
Diana pensava na vida e em todos os acontecimentos que a haviam
levado até ali. O acidente no qual perdera o bebê fora o motivo que a fez
procurar por um local onde pudesse renovar suas forças.
— Vamos, vale a pena ver esse pôr-do-sol lá de cima.
Empenharam-se na reta final. Somente quando chegaram ao topo,
Diana compreendeu o que Zoé dissera sobre acampar com 30 pessoas lá em
cima. A pedra se alargava, fazendo um platô natural com mais de três metros
de comprimento. Havia uma caverna, também, que poderia acomodar de oito
a dez barracas de camping.
Zoé tirou da mochila um colchonete de ar, que inflou sozinho em
segundos. A guia se acomodou e chamou Diana para junto de si.
— Venha, está quase na hora.
Lado a lado, assistiram ao espetáculo da natureza de um lugar
privilegiado, para dizer o mínimo. Algumas vezes, olhavam-se, apenas
aumentar a emoção partilhada. A claridade foi sendo vencida pela noite, as
cores se transformaram e a ausência de luz tornou tudo mais sedutor. De
repente, a mão de Diana pousou sobre a de Zoé.
— Desculpa.
— Imagina.
Silêncio.
Olhares.
Diana deitou-se e deu um suspiro.
— Como o céu pode ser ainda mais bonito daqui de cima?
— Deve ser porque estamos mais perto dele. – Acomodou-se ao lado
dela. – Está com fome?
— Estou. Mas preciso contemplar esse visual mais um pouco.
— Não se preocupe, eu posso...
— Não, fique aqui. Me faça companhia.
Passaram um tempo sem dizer nada. Algumas nuvens surgiram,
ainda iluminadas por um raio mínimo de sol que as coloria de rosa. Uma
águia cruzou o céu e insetos iniciaram a cantoria noturna, misturando-se aos
piados e farfalhares, num concerto que encerrava, com louvor, a
apresentação da estrela mais brilhante da Terra.
Alguém se virou. Os braços se tocaram e a lembrança do quase beijo
veio à tona. Tentaram disfarçar, mas os corpos voltaram-se na direção um do
outro, como se o desejo ganhasse a disputa travada com a razão. Riram um
riso nervoso e sem graça, que lançava pensamentos à noite:
"Ela quer o mesmo que eu? Como ela é linda! Vontade de provar seu
beijo. E se ela me rejeitar? Será que me arrisco?” – E mais uma série de
nuances para as quais não havia palavras que pudessem descrevê-las.
Os peitos passaram a encher e esvaziar com mais ímpeto. As bocas,
entreabertas, ficaram secas pelo ar que entrava e saía. Olhares subiam e
desciam, fugindo e se entregando ao mesmo tempo.
Diana foi a primeira a forçar os músculos na direção de Zoé. Ergueu
a cabeça, fez um dos braços de base e moveu-se para ela. A montanhista
ativou os mesmos comandos centésimos de segundo depois, recebendo-a em
sua boca. Acolheu uma saliva que não era a sua, apertando a cintura que se
ajustava perfeitamente ao seu abraço. As pernas, tímidas, ansiavam
participar da brincadeira que ainda estava restrita ao hemisfério norte
daquele conjunto tátil a que chamavam de corpos.
Acima das árvores, era como se o tempo passasse mais devagar.
Tomadas por aquela lentidão, permaneceram com as bocas unidas até que a
densidade das salivas se tornasse mais tênue e outros fluidos se insinuassem.
Em vez de saciá-las, o encontro das bocas funcionou como um aperitivo que
as acalmou apenas por um instante.
Diana se impulsionou para cima de Zoé. Apoiou a mão livre no chão,
preparando-se para descer o tronco na direção dela. Foi interrompida pela
dor.
— Ai!
— Que aconteceu? – Zoé tomou um susto com a interrupção abrupta.
— Meu ombro. – Diana esfregava o local dolorido.
— Deixe-me ver. – Voltou ao personagem de guia e, sem qualquer
intenção maliciosa, ajudou-a a tirar a camiseta
Com as mãos sobre o ombro, apalpava-o em busca de algum inchaço
ou nódulo mais preocupante. Sabia que o susto da hóspede ao derrubar o
mosquetão tinha sido o responsável pela dor que, agora, com os músculos
frios, aparecia. Girou seu braço em vários sentidos, testando se havia
limitações. Num dos movimentos, ela gemeu. Ali estava a questão: devia ter
distendido o redondo menor ou o maior.
— Acho que não foi grave. Mas você terá que repousar esta
articulação por 15 dias, pelo menos.
Diana a encarou com um misto de desapontamento e desfrute.
— Acha que fará mal se eu começar o repouso depois dessa noite?
Zoé levou alguns segundos para pescar o que ela dizia. E sorriu
timidamente, mais pela falta de astúcia do que por recato.
— Infelizmente.
— Eu tinha outros planos.
— Nada que não possa ser contornado com outros artifícios.
Sobre o braço bom, Diana atirou-se por cima de Zoé. Beijou-a,
prenunciando como seria a noite. Puxou a camiseta da anfitriã para cima e o
top para baixo. Contemplou-a por alguns segundos, rindo dos arranhões.
Acariciou-a por cima das listrinhas vermelhas e pousou as mãos em seus
seios. Sem poder controlar a própria ânsia, abocanhou um dos mamilos,
degustando forma, volume e textura. Sua língua sentia-se massageada ao
lambê-lo.
Zoé respirou com mais força, somando seus ruídos aos de Diana e da
natureza. Gostou de inspirar o cheiro dela de perto – um agridoce sensual – e
do encaixe espontâneo entre seus corpos. Sentiu o outro seio ser devorado e
a avidez com que sua amante o tomava, derreteu-a.
Como se adivinhasse o que tinha acontecido, Diana escorregou com
o braço machucado para baixo e a pressionou, provocando gemidos em
ambas. Zoé respondeu trazendo-a mais perto de si. Agarrou-a na nuca,
sentindo a umidade por baixo dos cabelos fartos. Escorregou as mãos, como
se o vão no meio das costas fosse uma trilha a ser percorrida até as nádegas.
Diana estava arrepiada. Olhou-a, decorando cada detalhe de suas
expressões. De olhos fechados, beijou-a no rosto e permitiu que os lábios
deslizassem para o pescoço, perdendo-se na maciez cheirosa da pele. Com a
mão livre, explorava seu corpo em direção ao hemisfério sul, percebendo as
respostas permissivas com as quais era acolhida.
Zoé a deitou no pequeno colchão inflável. De onde estava, Diana a
admirava. A anfitriã puxou os cabelos para cima e os amarrou num coque
improvisado, permitindo à brisa noturna resfriar a pele. Seus quadris
iniciaram um movimento sobre o sexo da hóspede e elas fecharam os olhos,
dedicando-se a cada sensação.
Quando Zoé não pôde mais, relaxou o pescoço e se entregou,
encarando a lua cheia que se derramava sobre elas. Diana sentiu o gozo
escorrer. Com os olhos em chamas, encararam-se, vislumbrando o reflexo
das estrelas nas peles molhadas de suor – uma comunhão única com a
natureza. Levou a mão à boca para provar gosto da anfitriã e a beijou até os
corpos se aquietarem.
— Diana?
— Hum?
— Ainda está com fome?
— Agora que me lembrou, sim.
— Tenho uma surpresa pra você.
Zoé foi até a redoma de pedras e testou as toras deixadas ali em outra
ocasião. Buscou um machado na caverna e, afastando-se de Diana, cortou a
lenha em pedaços menores. Acendeu um montinho de galhos secos e
acomodou as toras mais grossas por cima.
Deitada de lado sobre o braço bom, Diana contemplava cada
movimento. À luz do fogo, a anfitriã era ainda mais bela. Seu desejo foi
despertado outra vez.
— O que está olhando?
— Você. Tem certeza de que está com fome?
Zoé respondeu indo até ela e a puxando para si num beijo ardente.
— Tenho. – E se afastou para armar um tipo de suporte por cima da
fogueira.
Curiosa, a hóspede acompanhou. Com um canivete, Zoé desgastou a
extremidade de um galho fino até obter uma ponta afiada, como um espeto
de churrasco. Tirou um pote de plástico da mochila, cujo conteúdo estava
oculto por papel laminado. Atravessou o que quer que fosse aquilo com o
espeto e o depositou sobre as escoras em torno do fogo. Diana sorriu.
— O que tem aí?
— Uma tainha temperada pelas mãos únicas de Ana Terra.
— Mentira! Como sabia que eu gostava de peixe?
— Reparei que repetiu quatro vezes ontem.
Diana riu. Foi até ela e a apertou contra si.
— Espera, acho que eu preciso me lavar. – E mostrou a mão suja de
tempero.
— Não me diga que essa caverna tem uma torneira e uma banheira
de hidromassagem.
— Não. Mas há uma queda d’água na descida que faz uma hidro
natural muito melhor do que essas que se pode comprar.
— Ah é? - Respondeu, com um sorriso insinuante.
Zoé lavou-se com uma garrafa d’água que estava na caverna – e que
explicou deixarem ali para esse fim, repondo-a sempre que necessário. Diana
fez o mesmo.
O peixe emanava um cheiro bom e aguçava as papilas gustativas das
famintas. Com um punhado de folhas que Diana não identificou de imediato,
Zoé preparou um chá e entregou a ela.
— Hum... pitanga. Que delícia.
— Trouxe um chá relaxante também, mas não sei... me deu vontade
de passar a noite acordada...
Sorriram libidinosamente. Zoé verificou o assado. Achou que estava
no ponto e serviu-as.
— Posso perguntar uma coisa?
Zoé deu de ombros.
— Pode.
— Já fez amor aqui antes?
A anfitriã lhe devolveu uma cara de culpada.
— Digamos que esse é um dos meus locais favoritos na Terra.
— Sei... – Diana a encarou. – Meu também, agora que o conheço.
Jantaram. A hóspede elogiou o peixe várias vezes, lambendo os
dedos ao terminar. Zoé disse que a essência do sabor se devia ao modo como
o tinha assado, tomando para si a responsabilidade pela comida deliciosa.
— Não duvido, embora acreditaria mais em você se dissesse que é a
sua companhia que faz tudo parecer tão bom.
— É, tem isso, também.
Diana deu um gole no chá e arriscou:
— Você está solteira, Zoé?
— Por quê? Pretende me pedir em namoro?
— Só se disser que aceitará.
A anfitriã olhou para o lado oposto. Tomou uma respiração longa.
Não era a primeira vez que se envolvia com alguém de fora do seu círculo
amoroso. Inclusive, algumas de suas namoradas tinham tomado parte no
relacionamento depois de ficar com ela ou com alguma das outras. Embora
tudo parecesse muito simples, não era fácil encontrar palavras com as quais
explicar a natureza do envolvimento que tinha com as mulheres da pousada.
A noite corria agradável, sobretudo, pela química existente entre ela
e Diana. Não querendo estragá-la, Zoé foi limpar os restos do jantar,
procurando em seu dicionário interno as melhores palavras para responder à
pergunta de sua companheira de aventura.
Diana foi atrás dela.
— Deve ser uma delícia se abrigar aqui num dia frio, ou mesmo de
chuva.
— Tomara que possa responder por si mesma. Em maio, o céu
consegue ser ainda mais bonito.
— Seu silêncio me deixou na dúvida quanto a haver outro encontro
possível entre nós.
Zoé engoliu em seco.
— Não é fácil responder ao que me perguntou.
— Acha que eu não daria da conta?
— Algumas pessoas não dão.
— O que te impede de tentar?
— Você. – Diante da incompreensão, Zoé continuou. – Quando me
ofereci para guiá-la, não tinha qualquer intenção de... Sabia, sim, desde que
começamos a caminhar, que seria um passeio agradável, porque nos demos
muito bem, mas isso era tudo o que eu presumia. No entanto, cá estamos e
acho que minha vontade de permanecer acordada é a mesma que você
demonstra. – Ela riu – Temo que, ao te responder, a conexão entre nós mude.
— Por quê? Está traindo alguém ao ficar comigo?
— Não, não é isso. Mas também não sou uma mulher solteira.
— Então você tem um relacionamento aberto?
— Por aí. – Zoé deixou no ar uma centelha de dúvida no ar.
— Bem, há algo que eu devo lhe contar. – Dirigiram-se ao
colchonete. – Dois dias atrás, fiquei insone. Achei que uns minutos de brisa
noturna eram o que eu precisava para voltar a dormir. Então, ouvi vozes indo
para a cachoeira e deduzi que se tratava de um grupo animado saindo para
passear. Fui atrás.
Narrava tentando decifrar a expressão Zoé. Mas ela devolvia um
olhar impenetrável. Resolveu não polir as palavras. Era uma mulher adulta,
afinal, e poderia dar conta de sua reação.
— Vi vocês na água... transando.
Silêncio.
— E?
— E o quê?
— O que fez quando nos viu? Voltou para o chalé?
— ...
Diana deteve-se no limbo entre a iminência de responder e a ausência
de palavras.
— Não. – Como se Zoé esperasse uma explicação mais detalhada,
continuou. – Fiquei excitada. E assisti vocês durante alguns minutos. Depois,
sim, voltei para o quarto.
— Então não se masturbou enquanto fazíamos amor? E gritou de
prazer?
— Você sabia?
— Não até começar a me contar. Mas sabia que não foi um latido o
que ouvi naquele dia.
Zoé não disse mais nada. Diana, tampouco, soube como continuar.
Tinha invadido a privacidade das anfitriãs e a guia tinha todo o direito de
repudiá-la por isso. Ao mesmo tempo, elas tinham ocupado um lugar
público. Depois do que pareceu uma eternidade, Zoé quebrou o silêncio.
— Não pensou em se fazer presente?
— Bem... não. Achei que seria constrangedor violar a privacidade de
vocês.
— E a violou, mesmo assim.
— Não tive a intenção.
— Não num primeiro momento.
— Exato. Depois, a imagem de vocês despertou algo dentro de mim
que – ela engoliu em seco – eu havia esquecido.
— O quê?
— Sinto atração por mulheres, Zoé. Acho que já deu para perceber.
A anfitriã não respondeu. Mas Diana achou sua expressão mais
suave. Zoé enrolou-se numa manta, deu as costas à hóspede e se afastou,
contemplando o horizonte.
Diana a observou, dando um tempo para que esfriasse a cabeça.
Como Zoé não disse nada, foi até ela e lhe deu um beijo demorado atrás da
orelha.
— Desculpa. Sei que agi mal. – Zoé ficou de frente para ela. – Mas,
em minha defesa, digo que poderiam ter sido flagradas por qualquer
visitante, talvez alguém que não estivesse preparada para o que acontecia ali.
– Aproximou-se para um beijo e, não encontrando objeção, colou seus lábios
nos dela. – Acha que alguém que as visse como estavam não teria parado, ao
menos por uns segundos, para admirá-las? Vocês estavam lindas, a
propósito. Só de lembrar...
Zoé a calou com um beijo. Um encontro de bocas feroz, ardente,
acusando a carência que o corpo da anfitriã sentia por Diana. Possuiu-a sem
dó, ali, de pé, a menos de um metro do fim do platô. Suas bocas não se
separaram nem por um segundo. As mãos de Zoé cumpriram turno dobrado
para dar conta da mulher que se desmanchava nelas.
Diana não deixou por menos. Depois de um orgasmo intenso, exigiu
sua boca no sexo de Zoé e a chupou sem que o ombro machucado ousasse se
intrometer. Erguendo os quadris, anfitriã entregava-se em delírio, até não
poder mais dar conta dos próprios músculos.
O movimento de uma provocava a resposta perfeita na outra.
Brincavam com a intensidade de cada gesto em recantos ainda
desconhecidos, numa química da qual nenhum cientista ousara falar. A noite
parecia pequena demais para dar conta do que poderiam fazer.
Quando o dia amanheceu, depois de testemunharem um sol
voluptuoso imperar sobre suas cabeças, recolheram-se para um cochilo.
Naquele instante, o epíteto da pousada não podia ser mais preciso para
Diana. Era, sem dúvida, a melhor do mundo.
Na descida de volta à realidade, pararam na hidromassagem natural
e, ali, amaram-se mais uma vez, trocando olhares que prometiam repetir
muito aquele encontro.

As horas prenunciavam o fim de mais um dia na Pousada das Flores.


Ísis e Luna ensaiavam procurar pelas aventureiras, quando as viram
caminhando na direção do restaurante em sorrisos e reboleios. Souberam, no
mesmo instante, o que havia acontecido. Luna olhou para Ísis e recebeu um
comentário elogioso a respeito da hóspede.
— Gosto dela.
— Eu sei. – Luna sorriu.

Encarando a vida real, Diana olhava para as sete mulheres,


perguntando-se como seria viver ali. Conseguiria sentir por elas o mesmo
que sentia por Zoé? Sara e ela teriam vivido o início de algo parecido?
As dúvidas que a atravessavam, certamente, não podiam ser
respondidas só por ela. Sua única certeza era a de que não teria como voltar
à vida que levava antes, pois não fazia mais sentido. Compreendeu como a
existência, mesmo em suas mais dolorosas passagens, a levara até ali.
Dias depois, quando se despediu da Pousada das Flores, levou apenas
a mala vazia.
A CARTOMANTE

Chegou na cartomante fazendo um barulho tremendo com a moto. Era


assim: leonina, ascendente e lua em áries. Impetuosa. Tocou o sino, num
puta estardalhaço.
Do outro lado da porta, Cacilda, a cara amassada pelo travesseiro,
recebeu-a sem muita vontade.
— Só atendo a partir das dez.
Colocou-se para dentro – sem sutileza.
— Eu espero. Falta só uma hora e quinze.
E sentou-se numa antiga poltrona Berger coberta por uma manta de
oncinha.
Cacilda virou os olhos e retirou-se para o banheiro. Voltou para
buscar a toalha, pendurada no mesmo cabideiro que sustentava as bolsas, na
sala.
A não convidada digitava sem parar no celular. Olhou de relance para
a cartomante, como se dissesse a ela para se apressar. Tinha as unhas
pintadas de rosa choque – Cacilda achou cafona – e martelava no aparelho
com força, produzindo um ruído enervante. Estava discutindo com alguém,
fato. Se fosse por telefone, seria um barraco. Cacilda achou melhor assim,
embora os gestos afetados a irritassem.
Ligou o chuveiro e depois abriu ainda mais torneira, desejando que a
força da água tampasse as bufadas da cliente do lado de fora. Quase gostou
quando a obra de esgoto, na rua, começou, e uma britadeira penetrou a
calçada sem piedade.
Saiu do banheiro 15 minutos antes do expediente. Na sala, a mulher
andava de um lado para o outro, sentava, ficava de pé, mexia nos cabelos,
tirava foto, postava e continuava digitando.
Cacilda sentou-se em frente à penteadeira, olhando para um espelho
que cobria quase toda a parede do quarto. Deixou a porta propositalmente
entreaberta para que pudesse ser vista pela mulher que a tirara da cama mais
cedo do que gostaria.
Lentamente, colocou os produtos de beleza sobre a madeira. Passou
base, pó, lápis de olho, rímel, blush e finalizou com batom vermelho. Tudo
na tranquilidade de uma encenação. Depois, seguiu para a cozinha e voltou
de lá com um café – só para si mesma. Não ofereceu à outra. Postou-se na
mesa de trabalho e chamou pela cliente.
— Seu nome?
— Matilde.
— Em que posso ser útil? – Bebeu um gole do café.
— Quero minha ex de volta.
Cacilda não prestou atenção. Era sempre isso: todo mundo queria
voltar com o ex, ferrar com o ex, acabar com o relacionamento atual do ex.
Achava o trabalho enfadonho. Fazia só pela grana e, nessas ocasiões,
cobrava o dobro, não sem antes explicar que as cartas só tinham o poder de
prever acontecimentos futuros, nunca de interferir neles. Não adiantava.
Todo mundo pagava por um produto que ela informava não entregar. Deu
outro gole no café e, com uma caneta Bic sem tampa, a tinta nas últimas,
rabiscava qualquer coisa num papelzinho, apenas para dissipar o tédio
assonado.
— Qual o nome do ex?
— A ex. Lucrécia.
Cacilda olhou para ela. Bem nos olhos. Escorregou para as unhas
cafonas e voltou a encará-la. Achou Matilde bonita pra caramba, embora não
fizesse seu tipo.
— Não trago ex de volta. Quer perguntar alguma coisa pras cartas?
— Pergunta se ela vai voltar pra mim.
Cacilda embaralhou o tarô cigano. Cortou em três partes. De cada
uma, virou uma carta. Matilde esperava ansiosa. Respiração curta no peito.
— Não.
— Não o quê?
— Ela não vai voltar pra você.
— Por que não?
— Está perguntando pra mim ou pro baralho?
— Não sei. Foda-se! Que bosta de tarô! Não acredito nessa merda!
— Quer encerrar a consulta? O valor é o mesmo agora ou... – ela
olhou no relógio, torcendo para a mulher ir embora – daqui 50 minutos.
— Não vou pagar por essa merda.
— Vai sim.
Cacilda reparou, naquele momento, que a mesa de trabalho tinha a
cadeira da cliente mais próxima da saída do que a sua. Pensou que deveria
mudar a disposição dos móveis, impedindo quem quer que fosse de sair sem
pagar. Bloquearia a passagem.
Matilde se levantou. Cacilda achou que vinha escândalo. Ficou de pé
também, pronta para exigir seu pagamento. A não-convidada entrou no
banheiro – sem pedir licença – e assoou o nariz. Voltou com cara de choro.
— Pergunte ao baralho por que ela não vai voltar pra mim.
— Não é assim que funciona. Você tem que ser mais específica.
Pergunta alguma coisa que a resposta seja simples, como sim ou não.
Preparou-se para a retaliação. Matilde sentou-se e apoiou os
cotovelos sobre a mesa. Abriu a boca para falar e desistiu. Tinha cara de
sofrimento e Cacilda, pela primeira vez naquela manhã, empatizou com ela.
Suspirou fundo.
— Quer café?
— Quero.
A cartomante foi até a cozinha e voltou de lá com uma xícara já
adoçada. Matilde aprovou.
— Obrigada, está ótimo.
Silêncio.
— Eu sabia que ela não ia voltar.
Silêncio.
— Tudo bem, você é bonita pra caramba, vai arranjar outro, quer
dizer, outra, logo. – Falou, esticando as mãos sobre a mesa e encostando nas
mãos dela.
— Você também é bonita. Adorei o batom. É de farmácia?
— São dois, na verdade. De camelô. Eu uso misturados. Um mate e
um brilho.
— Tem acetona aí?
— Oi?
— Acetona. Quero tirar esse esmalte.
Cacilda hesitou. Depois, levantou-se para o quarto e voltou de lá com
a encomenda.
— Por que vai tirar? Não está descascando.
— Vi como você olhou pras minhas unhas. Também não gosto do
rosa. Usava por causa da ex. Fiz as unhas ontem, fui no bar que ela
costumava ir e...
— E?
— Ela não estava. – Silêncio. – Sou uma puta idiota mesmo.
— Você não é idiota. Só se apaixonou pela pessoa errada. Acontece o
tempo todo.
Matilde tirava o esmalte.
— Eu me apaixono mais do que todo mundo, certeza. É uma coisa
louca, sabe? Um troço que toma conta de mim e me pira.
— Gata, sinceramente? Em vez de gastar seu dinheiro aqui, você
devia procurar uma terapia.
Silêncio. Matilde terminou o café. Cacilda também.
— Pergunta pro baralho se eu vou encontrar o amor.
Cacilda perguntou. Abriu as cartas e se espantou com a resposta.
Engoliu em seco.
— Já encontrou. Só não sabe que é seu amor ainda.
— Como assim? É alguma amiga?
— Está perguntando pra mim ou pras cartas?
— Porra, faz diferença? Se a resposta estiver aí, é pra você. Se não,
pras cartas.
Cacilda embaralhou novamente. Mas já sabia a resposta.
— Não é amiga.
— Então, como posso já ter encontrado? É alguém do trabalho?
— Não.
— Então quem, cacete?
— É alguém que acabou de conhecer.
Matilde calou-se. Mas dava para ouvir mil vozes passeando pela sua
cabeça. Os olhos iam de um lado para o outro, sem encarar nada do que
estava ali.
— Não tem ninguém que eu tenha conhecido recentem...
Olhou para Cacilda. Sentiu o peito gelar. Deu mais um gole no café
inexistente, só porque não sabia o que fazer com as mãos. Já tinha tirado
todo o esmalte. Depois, pediu um cigarro. Cacilda abriu uma lata que ficava
na estante, à esquerda de Matilde, e tirou um baseado de dentro. Acendeu.
Puxou. Segurou. Estendeu a ela.
— Eu não fumo tabaco. – Soltou a fumaça.
Matilde também não fumava tabaco. Nem maconha. Só bebia, mas
era cedo e dia útil. Ainda teria de ir para o trabalho. Achou nada a ver pedir
– ou comprar – uma cerveja. Pegou o cigarro da mão dela, levou à boca e
tragou com força. Tossiu pacas. Cacilda riu. Mais de nervoso do que por
achar graça. Mas até que achou um pouco. A cliente devolveu-lhe o cigarro.
Silêncio.
Cacilda fumou mais um pouco. E estendeu a Matilde.
— Quer tentar de novo? Vai na manha, puxa menos.
Dessa vez, ela acertou. Mais uns traguinhos e sentiram a tensão ceder
um pouco. Encararam-se.
Matilde abriu a boca para falar várias vezes. Desistiu de todas.
Cacilda não sabia o que dizer.
— Que mais café?
— Quero.
Deu as costas à cliente, que aproveitou para reparar na cartomante.
Avaliou o que achava da figura.
“Gosto” – pensou.
Depois, apoiou os braços na mesa e deitou a cabeça sobre eles.
“Que loucura!”
Cacilda, na cozinha, enrolava para retornar à sala. Sacou uns pães de
queijo velhos da geladeira e comeu, não porque estivesse com fome, mas
para acalmar o lado de dentro do corpo. Pensou em oferecer um à cliente,
mas já estavam duros. Serviu o café, adoçou e voltou para a sala.
Matilde ouviu seus passos e a encarou no desfile pelo corredor que
ligava os ambientes. Confirmou a avaliação, sentindo a respiração ofegante
ao notar um volume que não imaginava entre as pernas. Olhou de volta para
os olhos de Cacilda, que sacou na hora o que a cliente percebera. Sentou-se
de frente para ela, estendendo-lhe a xícara.
Matilde recebeu e encarou o líquido. Depois, voltou a olhar para a
cartomante.
— Esse baralho aí... ele fala a real mesmo? Ou é só um lance que
você faz pela grana?
Cacilda bufou. Se não confiavam, por que iam até ela?
— Vou te pagar de qualquer jeito. – E mexeu na bolsa, já sacando a
carteira.
— Faço pela grana. – Aceitou os 100 reais da outra. – O que não
significa que o baralho minta.
Cacilda embaralhou as cartas outra vez. Sacou três e virou-as para
cima. Olhou das cartas para a mulher à sua frente. Respirou fundo. Matilde
também.
— É você? – Perguntou, sabendo a resposta.
— Sim.
— Mas...
— Mas?
— ... Nada. Acho melhor eu ir.
— Você tem meu telefone. Qualquer coisa, só mandar mensagem.
— Beleza. – Levantou-se e caminhou na direção da saída.
— Só um segundo.
Cacilda foi até o quarto e voltou de lá com dois batons. Aproximou-
se da porta.
— Quer experimentar?
A cliente deu um passo na direção dela. Olhou para a boca de
Cacilda. Desta vez, não reparava no batom. Na rua, a britadeira disparou de
novo. Tomaram um susto. Riram. Matilde deu mais um passo na direção da
cartomante. Pegou um batom com cada mão, fazendo questão de se encostar
nela. Demoradamente. Era uma sedutora.
Cacilda engoliu em seco. Fazia uns meses que não ficava com
ninguém. O coração deu uma acelerada.
Matilde sentiu a familiar sensação de paixão invadi-la. De repente,
esqueceu-se do nome da ex. Cacilda ficava mais encantadora a cada vez que
pensava nela como amante. Sem tirar os olhos de sua boca, abriu um dos
batons. Passou em si mesma, deixando de cuidar para que não borrasse.
Depois, passou o segundo. Esfregou os lábios um no outro e estendeu a mão
direita para devolver o primeiro.
A cartomante pegou o batom de volta. Os olhos da cliente não saíam
de cima dela e, nervosa, abriu a boca para fazer algum comentário sobre
como a cor tinha combinado com a pele, mas Matilde a interrompeu,
estendendo-lhe o batom que estava na mão esquerda. Cacilda foi pegar e ela
recuou o braço, forçando-a a dar um passo em sua direção. Ficaram muito
próximas. Quando foi até o batom novamente, Matilde e a puxou para junto
de si. Invadiu sua boca com uma língua completamente apaixonada.
Cacilda tomou um susto. Depois achou uma delícia, um beijo bom,
desses que a gente sente com o corpo inteiro. Jogou o batom em cima da
poltrona Berger, abrindo um dos olhos rapidamente, só para mirar. E voltou
a curtir a sensação.
Matilde jogou o batom no chão mesmo, sem olhar, e, com as mãos
livres, apertou Cacilda. A mochila, nas costas, vibrava com mensagens no
celular. Ela nem percebia. Ou, se percebia, não se importava.
A britadeira fez outro estrondo. Os corpos, assustados,
sobressaltaram-se um no outro, interrompendo o beijo. Olharam-se. Um riso
sem graça deu lugar ao desejo que que vinha subindo pelas pernas e fazendo
cócegas embaixo do umbigo. Das duas. Ao mesmo tempo. Cacilda tinha a
respiração curta e Matilde, ansiosa, esperava por uma solução, já que ela era
a dona da casa.
Foram para o quarto. A cartomante arrastou Matilde para lá. Com
fome e pressa, despiram-se. A cliente ficou um pouco nervosa porque não
sabia exatamente o que fazer. Cacilda era a primeira mulher de pau com
quem transava. Deixou que ela tomasse a inciativa.
Uns minutos depois, tudo já tinha se resolvido. Impressionante como
o pudor sempre perde pro desejo, né? Entenderam-se na mistura de corpos,
descobrindo-se com as mãos e as bocas. Chuparam-se, provando dos sabores
que, quando Matilde tocou a campainha de Cacilda, pela manhã, nenhuma
das duas poderia imaginar que sentiria – e gostaria. Matilde a abocanhou
com vontade e não imaginou que isso a deixaria com tanto tesão.
A ex-cliente, atual amante, desmanchava-se entre as pernas. Cacilda
avançou para lá com as mãos, depois de já tê-la chupado um monte também.
Brincou com o clitóris e meteu-se para dentro – com os dedos. Matilde, por
sua vez, meio desajeitadamente, já que não era uma expert no assunto,
massageava-lhe o sexo, tentando decifrar se Cacilda estava gostando tanto
quanto ela. Achou que sim.
O lance durou uns bons minutos. E, aí, veio aquela vontade
incontrolável de se entregarem aos orgasmos. Elas se olharam e Cacilda
meio que perguntou a Matilde se podia entrar nela, mas não com as mãos.
Matilde meio que aceitou. Cacilda sacou uma camisinha da mesa de
cabeceira e foi recebida de um jeito gostoso pela amante ensopada, que se
sentou por cima dela, deslizando os quadris para frente e para trás, numa
dança toda sensual. E, talvez por isso, pelos movimentos sinuosos que ela
fazia, do nada, Cacilda pensou em Luz Del Fuego. Gostou mais ainda da
parceira com quem se encontrava.
A ex-cliente agarrou os lábios de Cacilda com os seus e, enquanto se
movimentava, sentia o balanço dela por baixo. Estava muito gostoso. Fechou
os olhos, sabendo que não demoraria a explodir. Cacilda gemia alto e ela
também. A britadeira, coitada, estaria tampando os ouvidos se os tivesse. Ou
não. Talvez britasse com mais paixão, desvirginando as calçadas e trazendo
sol para aquela manhã cinzenta.
Matilde gozou loucamente, tão escandalosa quanto chegou com sua
moto barulhenta às 8:45 da manhã. Cacilda gozou logo em seguida, na
mesma turbulência que a amante. Caíram, exaustas, na cama decorada com
umas almofadas bordôs, que contrastavam com a colcha de cor creme. A ex-
cliente achou cafona.
Uns dez minutos de respiro depois, Cacilda foi até a sala e voltou
com um copo d’água e o baseado aceso. Deu um tapa e os passou para
Matilde. Ela bebeu todo o líquido e deu um traguinho, lembrando-se, só
depois de tossir, que não sabia muito bem como fumar. Cacilda riu.
— Que mais diziam as cartas?
Cacilda deu de ombros.
— Tua consulta já acabou faz mais de uma hora.
Riram. E ficaram em silêncio depois, meio sem saber como
continuar.
— Vou ao banheiro.
Matilde fez xixi, lavou as mãos e o rosto suado. Voltou para o quarto,
desfilando sua nudez para Cacilda que, na mesma falta de pudor, falou:
— Você é gostosa pacas, sabia?
Matilde riu. Claro que ela sabia.
— Você também.
Cacilda também sabia disso.
— Estou com fome. Tem alguma coisa pra comer aí?
— Não.
— Vamos sair para almoçar, então?
— Vamos.
Vestiram-se. Saíram. Matilde sacou um capacete rosa de dentro do
banco da moto e entregou a Cacilda. Ela olhou, com desdém. Matilde deu de
ombros.
— Era da ex.
Cacilda cheirou o troço. Tinha nojinho de suor e não se encostava em
qualquer coisa sem verificar antes.
— Ela só usou uma vez. Depois, terminou comigo. Foda-se. Não
estou mais a fim dela. Fala uma cor que você gosta e eu troco na loja por
outro.
— Amarelo.
— Fechado.
Subiram na moto. Matilde deu a partida e a britadeira também.
Andaram uns 15 minutos. Estacionou em frente a um restaurante de comida
italiana. Cacilda pediu uma garrafa de vinho. Até parece. As duas eram
duras e tomavam cerveja mesmo. Mas, naquele dia, depois de uma transa
gostosa e da previsão das cartas, queriam causar boa impressão para repetir o
feito. Não era só Matilde que já estava apaixonada. Cacilda também.
Comeram demoradamente. Matilde ligou no trabalho e inventou que
estava passando mal. Aproveitou o celular nas mãos para bloquear a ex. Não
leu nenhuma das 87 mensagens dela. Cacilda desmarcou os outros clientes,
alegando uma urgência a resolver – o que não deixava de ser verdade.
Voltaram para a casa dela e treparam até de madrugada. Depois, procuraram
um filme. Descobriram que seus gostos combinavam; que, além do sexo, o
papo era bom, a companhia da outra agradava, tinham sintonia.
Foi uma puta história de amor. Casaram-se um ano depois, as duas de
vestido branco, num sítio todo decorado de um jeito meio hippie. A grana
veio da vaquinha de amigues mesmo, porque as duas continuavam duras.
Com o que sobrou da festa, passaram uns dias em Búzios, lua de mel delícia,
provando o que as cartas disseram naquele fatídico dia em que Matilde
queria voltar com a ex. Nunca mais se separaram, apesar do temperamento
esquentado de Matilde e do deboche deselegante de Cacilda. A ex-cliente
nunca fez terapia. A cartomante sempre reclamou disso.
A morte só as separou quando Cacilda fez 78. No dia seguinte ao seu
aniversário, faleceu dormindo. Matilde sofreu pacas e bateu as botas para
encontrar com ela do outro lado três meses depois. Amigues enterraram as
duas uma ao lado da outra. A história delas virou livro pelas mãos de Daniel,
uma bicha escritora com quem dividiram o segundo apê em que moraram,
numa época de vacas magras para os três. Cacilda abriu o tarô para ele e
disse que Dani ia escrever um livro que o lançaria ao sucesso. Quem diria
que seria logo esse. Digitou tudo sentado na antiga Berger que herdara delas.
Estava nas cartas. E elas não mentiam.
PRINCESA

Vinte reais. Era o que precisava para a noite. Podia gastar parte de seu
dinheiro, desde que lhe sobrassem vinte reais.
Naquela manhã, Dionísia acordou cedo. Estava muito ansiosa e
igualmente feliz. Tanto que não se importou ao ver Cabaço usando seu papel
higiênico pela terceira vez na semana. Brigou com ele mais por costume do
que por brabeza. Juntou seus pertences no mochilão puído, recolheu,
cuidadosamente, um vestido lavado que tinha terminado de secar, enrolou o
colchãozinho e o deixou aos cuidados de Paulete por uma noite.
— Vou dormir fora hoje. – Confidenciou-lhe, com um sorriso de
orelha a orelha.
Deixou a marquise do prédio empresarial, no centro do Rio de
Janeiro, e partiu em direção à Avenida Rio Branco. No ombro, carregava o
kit de engraxate: uma caixinha de madeira, latinhas de graxa de cores
variadas, escovinhas e panos.
Trabalhava com vontade, não perdendo tempo entre um “não” e a
próxima possibilidade de um “sim”. Precisava comprar uma porção de
coisas e, no que dependesse dela, ainda teria seus vinte reais garantidos.
Parou apenas para almoçar. Uma moça fina, que deixava o Starbucks
para trás na companhia de um amigo, entregou-lhe uma sacola de papel
contendo dois pães de queijo e uma bebida meio aguada, mas que desceu
legal porque estava supergelada e o dia era quente.
— Valeu, tia. – Agradeceu com a voz um pouco rouca. Fazia frio à
noite e ela tinha a garganta sensível.
A moça lhe sorriu de volta. Almoço bacaninha assim só podia ser
sinal de sorte. Animada, entrou na farmácia, a contragosto do segurança.
— “Tô” de cliente, tio. Olha aqui meu dinheiro. – E mostrou ao
sujeito sisudo algumas notas amassadas de dois reais.
Escolheu uma escova de dentes amarela estampada com
coraçõezinhos, a pasta de dentes mais barata e um sabonete. Cheirou várias
opções, atraindo a companhia do vigia para o corredor no qual se demorava.
Optou por um Phebo tradicional, mais porque combinava com a escova de
dentes, do que pelo cheiro. Foi para o caixa e, quando chegou sua vez, a
conta excedeu o que tinha em cédulas.
— “Pera” só um minutinho que eu tenho mais dinheiro aqui. – Abriu
o mochilão e travou a fila, catando moedas. O espetáculo atraiu olhares
tortos da clientela apressada e do vigilante mal-encarado.
— Volta pro final enquanto procura. – Ele falou.
Dionísia estava de bom humor. Foi. Quando chegou sua vez
novamente, com um sorriso cheio de dentes, entregou tudo à moça que fazia
a cobrança. Deixou que ela resolvesse por si mesma. Sem dizer nada, a
mulher colocou suas aquisições numa sacola verde e lhe devolveu uma
moeda de dez centavos.
— Brigada, tia.
Deu uma piscadinha marota para o segurança antes de sair. Na
calçada, olhou, orgulhosa, para suas compras. E deu um tapa na testa.
— Bora trabalhar! – Ainda precisava de grana para o ônibus e para o
banheiro. Se desse sorte, poderia até fazer um jantarzinho especial para a
noite.
— Tio, bora engraxar o sapato hoje?
— Tia, tem uma moedinha sobrando?
— Moça, posso engraxar suas botinhas?
— Tia, onde compro um laço igual a esse da senhora?
— Um laço? Pra que você quer um laço?
— Pra ficar bonita, tia. Que nem você. Hoje é um dia especial.
A tia pensou...
— Quantos anos você tem?
— Dezessete.
— Você é muito bonita.
— A senhora também.
— Não me lembro onde comprei o laço. Mas toma, fica com o meu
de presente.
Os olhos de Dionísia brilharam.
— Ah, que lindo, tia. Amei! Brigada.
Despediram-se com um abraço. – A vida e seus encontros!
Trabalhou mais algumas horas e, quando contava quarenta e seis
reais, achou que bastava. Foi para a Avenida Presidente Vargas e entrou num
ônibus em direção a Rodoviária Novo Rio. Pagou com cédulas de dois reais
e jogou o troco na mochila.
Chegou com dor de barriga. Achou que era por causa da bebida
aguada do almoço. Mas também podia ser de nervoso. Pagou dois reais para
fazer suas necessidades e mais oito para tomar banho. Abriu o sabonete com
cuidado, para não estragar a embalagem que combinava tão bem com a
escova de dentes. Lavou-se duas vezes, dando especial atenção às
reentrâncias do corpo, e removeu a espuma a tempo. A água cessou logo em
seguida. Secou-se, guardou a toalha molhada na sacola da farmácia, escovou
os dentes, achando-se linda no espelho, e penteou os cabelos. Ao lado, outra
moça também se arrumava. Ela abriu um vidrinho cheiroso.
— Moça, será que eu posso usar uma gotinha do seu perfume?
— É colônia. – Respondeu, entregando o vidro a ela.
Dionísia se arrumou toda. Tirou o vestido da mochila e, com gotinhas
d’água, ia molhando as partes amassadas e esticando-as com as mãos.
Colocou o laço de fita no cabelo. Olhou-se no espelho uma última vez e
bateu na testa.
— Esqueci a maquiagem.
Pegou seu batom vermelho nas últimas e cavoucou o finalzinho.
Passou nos lábios. Depois, com o dedo mindinho, extraiu o que restava e
espalhou pelas bochechas. Sorriu, toda prosa. Estava linda.
Tomou um ônibus em direção a São Cristóvão. Foi de pé para não
amassar a roupa, nem se sujar. Alguns metros antes do seu destino, tirou um
lenço da mochila e secou o suor. Revirou os bolsos e juntou todo o dinheiro
que tinha. Parou no vendedor de cachorro-quente, encomendou dois hot dogs
completos, duas Coca-Colas geladas e um bem-casado de sobremesa. Com
as moedas, deu certinho. Sobrou o que precisava. Caminhou para a frente do
hotel onde se pernoitava por vinte reais e aguardou.
E aguardou.
E aguardou.
E caminhou até a esquina.
E aguardou.
E voltou à frente do hotel.
E aguardou.
E andou até uma mureta para se recostar.
E aguardou.
Sentiu o cachorro gelado e a coca quente.
E aguardou.
Seu coração se encheu de medo e seus olhos de lágrimas.
E cochilou. Com o rosto molhado.
— Diô? Acorda, Diô!
Dionísia abriu os olhos e desfrutou da imagem mais bonita do
mundo. Achou que estava sonhando.
— Caramba, pensei que tinha desistido. – Secou as lágrimas com as
costas da mão.
— Claro que não. Só que eu tive um problema com o Salgado. Ele
queria dormir comigo de qualquer jeito ontem. Acabou que eu fugi pro outro
lado da cidade. Demorei um tempão até conseguir chegar aqui. Ele me
deixou lisa, Diô.
— E seus documentos?
Julieta levantou a blusa.
— Foi só o que eu consegui pegar.
— Então não se preocupa com mais nada. Agora eu vou cuidar de
você, princesa.
Passou o braço por cima dos ombros da noiva. Ela também estava
cheirosa, linda, com camisa de botão, bermuda e até sapato no pé. Trocaram
um selinho e entraram abraçadas no hotel. No quartinho apertado, atiraram-
se na cama. Beijaram-se mais um pouco.
— Espera aí, Ju. Vamos fazer isso direito.
Dionísia arrumou os hot dogs frios em cima de uma mesinha de
plástico. Tomou o cuidado de manter as embalagens servindo como pratos e
de dispor as bebidas quentes numa arrumação harmoniosa, completada pelo
docinho entre o lado de uma e o lado da outra. Julieta, da cama, assistia toda
se derretendo pela namorada romântica.
— Vem, amor, vamos jantar. – Estendendo a mão a ela, Dionísia a
recebeu num beijo rodopiante. Puxou a cadeira para trás, fazendo com
Julieta como se faz nos filmes de princesa. Comeram, beberam e dividiram o
bem-casado. Beijaram-se mais e, antes que o fogo de Julieta devolvesse as
duas para a cama, Dionísia bateu na testa.
— Você me põe doida. Quase esqueço o mais importante.
Foi até o mochilão e tirou uma caixinha de dentro. Ajoelhada na
frente do seu amor, linda com os lábios desbotados após a janta, Dionísia
estendeu a caixinha a ela e, toda se tremendo, falou:
— Casa comigo?
Julieta, quase levantando voo, suspirou. Era toda amor. Abriu a
caixinha e tirou de dentro um par de anéis de coquinho.
— Caso. Claro que eu caso. – Pendurou-se no pescoço de Dionísia e
a encheu de beijos.
Antes de trocarem as alianças, repetiram as frases que se diz nas
novelas, prometendo-se amar na saúde e na doença, na alegria e na tristeza,
na riqueza e na pobreza, até que a morte as separasse.
— Tomara que a gente fique ricas, Diô. Quero morar numa casa com
você.
— Eu também quero, princesa.
Finalmente, como não dava mais para esperar, foram para a cama.
Era a primeira vez que faziam amor e as duas estavam tão excitadas quanto
nervosas. Despiram-se um pouco rápido demais. Mesmo assim, Dionísia
parou para olhar a esposa e achou Julieta a mulher mais linda do mundo. Ju
discordou, dizendo que a mais linda era a mulher com quem tinha se casado.
E, entre declarações e carícias, foram explorando seus corpos em
descobertas inéditas e afobadas.
Sabendo que aquele quarto tinha hora para ser desocupado no dia
seguinte, o encontro era um pouco atravessado pela pressa de se amarem de
todas as maneiras possíveis. Não queriam desperdiçar um segundo. Os beijos
na boca alternavam-se com beijocas nos seios, mãos apertando a bunda,
chupões no pescoço, mãos ligeirinhas lá embaixo, lambidas na orelha, mãos
no cangote, vinte e dois, mordidinhas nas costas, meia nove, beijos atrás do
joelho, chupada nos dedos, tesourinha, lambidas no cu, beijos na preciosa. O
lençol de poliéster pegava fogo com o calor das bem-casadas.
— Eu te amo, Diô.
— Eu também. Você é o amor da minha vida.
Somente uma hora antes do café da manhã, tiraram um cochilo,
abraçadas e apaixonadas. Quando acordaram, fartaram-se no buffet
oferecido pela hospedagem do lugar. Tinha café-com-leite, maçãs, pão com
margarina e, sabendo que se tratava de uma lua de mel, ofertaram um pedaço
de pudim às enamoradas, como cortesia da casa. A recepcionista bateu uma
foto das duas e prometeu imprimir o retrato para elas. Presente de
casamento.
— Voltem semana que vem. Pego sábado, de meia-noite às oito.
Elas prometeram voltar. Retornaram ao endereço de Dionísia.
— Paulete, essa é minha esposa, Julieta. Ela vai morar comigo, tá?
A bicha amiga depositou-lhe um beijo nas costas da mão e Julieta
inclinou a cabeça para o lado ao sorrir-lhe.
— Seja bem-vinda.
— Obrigada.
Dionísia desenrolou seu colchonete e se espremeu para dividir a
cama com a mulher amada.
RETRATO

Verônica era pintora, famosa, lésbica e linda. Era o que diziam. Vivia entre
artistas, jornalistas, fotógrafos, escritores, amantes das artes e pessoas
poderosas. Tinha fama de conquistadora – o que considerava uma tremenda
bobagem. Mas a verdade é que seu trabalho erótico despertava os sentidos e,
como não podia deixar de ser, paixões. Pintava nus e tinha preferência por
modelos vivos em poses que sempre remetiam às nossas mais inconfessáveis
fantasias.
Na última Bienal, resolveu pintar ao vivo. Como Brecht, o autor de
teatro que desnudou o palco e as hipocrisias da sociedade, ela também
resolveu despir o processo. Anunciou que performaria tirando do público
seus modelos e fazendo dele a sua plateia.
Foi um escândalo. A fila de pessoas dispostas a tirar a roupa e
improvisar uma cena com desconhecidos para, depois, permanecerem
estáticas até que ela finalizasse a obra, diante de multidões que
acompanhavam de pé cada segundo, era imensa. A maioria não conseguiu
um lugar ao sol. Sua assistente, Begônia, com quem tinha um caso,
selecionava os participantes. O critério? Não existia. Tinham que bater os
olhos na pessoa e sentir que ela despertava alguma coisa especial, que se
destacava em meio a tantos iguais. Claro que, diante das filas, e de gente que
madrugava para ficar nas primeiras posições, os que não eram escolhidos,
muitas vezes, faziam uma algazarra no evento.
— É a natureza humana – Verônica dizia aos seguranças. – Faz parte.
Ninguém está preparado para ser rejeitado. – E contornava com maestria
situações que poderiam se tornar um problema para a maioria das pessoas.
Begônia a admirava por isso, pelo seu trabalho que, desde o Ensino
Médio, tocava-a profundamente, e pelos ensinamentos sempre tão ricos. Era
oito anos mais nova que a mestra, mas já tinha um trabalho maduro e,
segundo Verônica, bom o bastante para que alçasse voos solos, o que
recomendava com frequência. Mas Begônia era devota, apaixonada, e amava
estar com ela todos os dias, acompanhando e palpitando em cada criação.
De vez em quando, como não podia deixar de ser com uma pessoa
cheia de fãs endinheirados, surgia uma proposta para que pintasse um retrato
aqui, outro ali. Os mais ousados queriam posar nus para ela – e pagavam
bem por isso. Verônica aceitava pelo dinheiro, é claro. Gostava dos seus
confortos e eles não eram baratos. Na real, como criadora, ganhava bem
menos do que por encomenda. E tudo bem. Para cada cinco, seis criações,
fazia uns dois trabalhos pagos. De vez em quando, passava uns para Begônia
e, apesar de ter que convencer os clientes da qualidade do trabalho da
assistente, sabia que ela tinha fôlego para inventar qualquer coisa original,
mesmo nas encomendas mais caretas. E o fazia muito melhor do que ela,
inclusive. Verônica tinha ciência de que Beg era sua fã, mas também
admirava muito o trabalho dela. Achava a assistente inteligente, sagaz, cheia
de malícia e com traços únicos. Gostava de tê-la por perto, mas sabia que a
artista estava mais do que pronta para se tornar mestra de algum aprendiz.
No último dia da Bienal, saíram com amigos para comemorar.
Beberam e comeram no iate de Carlos. Uma madrugada em alto mar com
todos os confortos que se têm direito. Quando quis se recolher, Verônica
convidou Begônia para uma das quatro suítes da embarcação e se trancaram
lá dentro. Fizeram um sexo gostoso, como outros tantos que já tinham
provado na companhia uma da outra. Verônica gostava de transar com
mulheres inteligentes, lindas e de personalidade forte. Begônia tinha tudo
isso, além da sensualidade escandalosa e de ser uma das melhores parceiras
com quem já tinha dividido as cobertas. E o melhor: era um relacionamento
sem cobranças ou exclusividade.
No dia seguinte, mais champagne no café da manhã, a mesa lotada de
frutas vermelhas e umas miudezas mais enfeitadas do que gostosas. Adélia,
uma mulher por volta dos 40, não tirava os olhos da pintora. Ela percebeu,
claro. Begônia, idem. A cada aparição pública da artista apareciam figuras
misteriosas e apaixonadas. Verônica trocou alguns olhares com ela. Gostava
do flerte. Era algo que a excitava. Preparava-se para sair da mesa, quando o
marido de Adélia marcou presença, fazendo questão de encarar a esposa e a
artista. Deixou claro que não aprovava a paquera das duas. Verônica pediu
licença, carregou uma garrafa de champagne e duas taças. Foi com Begônia
para uma espreguiçadeira dupla na parte superior do barco. Begônia estava
linda num maiô de estampa e cores tropicais, realçando sua pele. Os cabelos
curtos e despenteados despontavam por baixo de um chapéu de abas longas.
Verônica usava um biquíni amarelo gema com estampas geométricas pretas.
Por cima, uma camisa de algodão finíssima completava o look. Além dos
óculos de sol.
Estavam curtindo o momento, trocando uns beijos gostosos entre um
gole e outro do líquido espumante, quando Adélia apareceu.
— Coincidência estarmos no mesmo iate.
— Pois é.
— Adélia, prazer. – Estendeu a mão a Verônica.
— Verônica. – Cumprimentou. – E essa é Begônia, minha...
— Assistente, eu sei. Prazer – olhou rapidamente para ela, sem
estender-lhe a mão.
— Eu ia dizer parceira, na verdade.
— Ah, sim... – Adélia gaguejou um pouco. – É que eu vi vocês
trabalhando na Bienal. Achei que...
— Tudo bem. – Respondeu Begônia.
— Posso falar com você um minuto? – Adélia encarava Verônica.
— Claro. E não se preocupe, não temos segredos. – Indicou a
parceira.
— Bem, é que... – Engoliu em seco – Carlos me disse que você pinta
por encomenda.
— Às vezes. Mas ela é melhor nisso do que eu. – Respondeu,
apontando para Begônia.
— Na verdade, eu fiquei na fila da Bienal, cheguei cedo e... bem,
vocês não me escolheram, então...
— Eu sinto muito.
— Não, eu entendo. Eram muitas pessoas. Otávio, meu marido, não
queria que eu fosse. Eu fui mesmo assim. Ele não gosta de arte, mas eu
acompanho seu trabalho desde a exposição em Paris, dois anos atrás. Sempre
quis posar para você.
— E o que você tem em mente?
— Quero um retrato meu. Nua. Em tamanho natural.
Begônia engoliu o riso. Alarme de perigo na certa. Marido ciumento,
mulher apaixonada pela pintora. Um clichê que nunca resultava em coisa
boa.
— E quanto está disposta a pagar por isso?
Adélia olhou de relance para Begônia antes de responder.
— O que você quiser cobrar e mais um pouco.
Begônia a encarou com um sorriso de canto de boca, sabendo que
Verônica, provavelmente, também carregava um assim nos lábios.
— Sabe onde fica meu ateliê?
— Sei.
— Te espero segunda pela manhã. Deixe a semana livre para nós.
Adélia sorriu. Agradeceu e foi encontrar o marido. As pintoras se
olharam com um sorriso maroto.
— Você gostou dela.
— Sim.
— Mas não quis que eu a escolhesse na Bienal. Nem no terceiro dia
que ela encarou a fila.
— Vai entender o destino...
Riram. Beijaram-se. Beberam mais um pouco. No final da tarde,
despediram-se do anfitrião rico e cada uma foi para sua casa.
Verônica morava no andar de cima do ateliê, uma casa ampla, com
poucas paredes e três andares. No térreo, o pé direito duplo e as janelas que
cercavam o espaço faziam o ambiente muito bem iluminado pela luz natural.
Muitos cavaletes, telas de tamanhos variados, uma mesa de dois metros com
rodízios industriais, cheia de tintas, pinceis e outros materiais de trabalho,
arrastava-se para onde a artista desejasse. Sofás e poltronas de estilos
completamente distintos delimitavam pequenas salas sob o piso de cimento
queimado, numa decoração extravagantemente elegante, que só alguém
como ela seria capaz de fazer. Numa das salas, acomodava-se a vitrola e uma
coleção de discos de vinil herdados da família. No segundo andar, um
mezanino em volta do térreo, ficava seu quarto. Um closet cheio de roupas
penduradas separava-se da cama king size por um enorme biombo trazido do
Japão. Algumas telas decoravam as paredes, e o chão, igual ao do ateliê,
destacava as portas e janelas em pinho de riga. O banheiro era quase do
tamanho do quarto, com uma das paredes de vidro temperado, dando vista
para a montanha que ficava atrás da propriedade. Uma construção de tijolos
de vidro em linhas curvas isolava o chuveiro da banheira. Fora os dois
aposentos, o resto do espaço era uma amplidão de corredores que davam
vista para o ateliê. No andar superior, Verônica tinha construído uma área de
lazer com tudo o que a agradava. Cozinha, forno à lenha, piscina, sauna,
espreguiçadeiras e um jardim para acomodar plantas, flores e redes.
Guardou alguns materiais de trabalho, subiu até a cozinha e preparou
um suco verde. Depois, foi até o ateliê e separou uma tela em branco. Como
sempre, ligou os alarmes e foi se deitar.
Na segunda-feira, Begônia chegou com o café da manhã e a
encontrou dormindo. Comeram no quarto e Verônica correu para o banho,
enquanto Beg aprontava o ateliê para receber a cliente que chegaria em
breve.
Adélia tocou a campainha. Verônica ainda estava com os cabelos
molhados, mas já tinha passado uma maquiagem leve no rosto. Adélia a
olhou com encantamento e uma visível ansiedade. Begônia providenciou uns
drinques sem álcool coloridos, quitutes apetitosos para degustarem durante o
trabalho e perguntou a ela:
— O que gostaria de ouvir?
A cliente – quem diria – escolheu Exile on Main St. e Verônica
aprovou. Gostava de rock e aquele, sem dúvida, era um dos melhores discos
de todos os tempos. Era mais difícil trabalhar quando o gosto do retratado
não combinava com o seu. A música a inspirava, ditando o ritmo e a
intensidade das pinceladas. Era como se Verônica fizesse amor com as notas.
Entravam em sintonia.
Begônia preparou o ateliê e, com discreta elegância, retirou-se,
dizendo que voltaria algumas horas mais tarde. Quando Verônica pintava
nus, à exceção de modelos contratados para este fim, a assistente mantinha a
privacidade dos retratados somente entre eles e a artista.
Sentindo que Adélia estava um pouco tensa – o que era comum, por
sinal, diante da tarefa de se despir para uma pessoa quase desconhecida,
Verônica ofereceu um pouco de álcool. Ela aceitou. Na primeira hora,
conversaram trivialidades. Verônica aproveitava para estudar as formas da
mulher que pintaria em breve, seus melhores ângulos, como a luz incidia
sobre ela, que desenhos as sombras lhe faziam, etc. Com isso, também
ganhava a confiança da pessoa que a contratara.
Na hora seguinte, a pintora teceu uma série de elogios sinceros à
cliente. Uma parte do seu trabalho consistia em encontrar o melhor de cada
pessoa e dizer isso a ela, fazendo-a ganhar a confiança necessária para o que
viria em seguida. O disco foi substituído por outro, desta vez escolhido pela
artista, e, sabendo que começaria a pintar em breve, foi até Adélia com uma
desculpa qualquer e tocou em seus cabelos. Era a última investida. O efeito
psicológico deste ato terminava, quase sempre, com a pessoa pronta para
fazer o que pedisse. E Verônica gostava que fosse assim, afinal, era, acima
de tudo, uma criadora diante de suas criações. Moldava seus modelos desde
o princípio.
— Vamos começar? – Falou, sabendo que o seu trabalho já tinha
iniciado quando Adélia chegou.
A cliente engoliu em seco.
— Vamos.
Verônica aproximou-se de uma tela enorme e puxou e mesa de
trabalho para perto de si.
— Pode se despir no banheiro. Caso se sinta mais confortável, pedi a
Begônia que deixasse um roupão separado para você.
A mulher foi até o banheiro e voltou de lá com o roupão enrolado no
corpo.
— Gostaria que se sentasse aqui. – E indicou um divã roxo a ela.
Adélia se sentou e Verônica a instruiu a procurar uma posição
confortável, na qual pudesse permanecer sem se movimentar. Ao mesmo
tempo, avaliava se a pose favoreceria a cliente quando ela se desnudasse.
Fez alguns ajustes e encontrou o que procurava.
— Está maravilhosa, Adélia. Podemos deixar este roupão de lado
agora?
— Claro. – E se movimentou desajeitadamente, tentando tirá-lo sem
desfazer a pose.
— Não se preocupe. Pode ficar de pé, se ajudar. – E virou-se de
costas, fingindo preparar uma tinta.
Adélia se despiu e, quando percebeu que estava de volta ao divã,
Verônica colocou-se de frente para ela. A tela estava fixada numa estrutura
de madeira cuja engenharia tinha sido desenvolvida pela artista e realizada
por um marceneiro experiente. Ficava entre ela e a cliente. Verônica fez os
primeiros rabiscos com carvão, enrolando até sentir que Adélia relaxava as
feições. E adentraram numa conversa mais profunda.
— Você e sua assistente são... casadas?
— Não.
— Achei que tinha dito que ela era sua parceira.
— Exato. Uma parceria de trabalho, de amizade e... sim, nós nos
relacionamos sexualmente também.
— Carlos me contou da sua preferência por mulheres.
— E você, Adélia, qual a sua preferência?
— Eu sou casada. Com um homem. – Respondeu, quase ofendida.
— Conheço pessoas que, apesar de casadas com um gênero,
preferem outros. Algumas traem, há as que amam platonicamente. Acontece.
Adélia suspirou.
— Eu e meu marido estamos casados há 24 anos. Mas faz tempo que
não me sinto mulher ao lado dele.
— E vocês já conversaram sobre isso?
— Otávio não parece querer ter esse tipo de discussão comigo. Sei
que ele tem amantes e, sinceramente, não me importo. Acho melhor assim.
Não sinto vontade de ir para a cama com ele.
— Posso perguntar por que continuam casados?
— Pedi o divórcio muitas vezes, Verônica. Ele não aceita. Sempre dá
um jeito de me calar e faz parecer que estamos enfrentando uma crise.
— E o que você diz a si mesma?
— Que sou uma covarde. A verdade é essa.
Verônica reparou que Adélia tinha os olhos marejados. Não queria
causar uma comoção que não sabia se poderia controlar. Mudou de assunto.
— E esta obra, por que a encomendou? Vai presentear alguém?
— Não sei o que farei com o quadro ainda. Otávio nem imagina que
estou aqui. Ele me mataria se soubesse que tirei a roupa para uma artista.
Ainda mais você...
— Qual o problema comigo? – Perguntou, rindo.
— Desculpa, eu não...
— Ora, por favor. Acha que seu marido é a única pessoa a criticar
meu trabalho? Diga, quero saber.
— Bem, ele acha imoral. Não quis me acompanhar na Bienal e nem
sonha que tentei posar para você lá.
— Imagino que ele também não fique muito satisfeito com seu
apreço pelo meu trabalho.
— Não. – Ela riu, disfarçando uma pontada de melancolia.
— Então você não levará a obra para casa.
— Verônica, eu... não sei como dizer. Não estou aqui pelo quadro,
mas pelo processo, entende? Pela oportunidade de passar algum tempo com
você e...
— E?
— Pela fantasia, eu acho, – estava visivelmente constrangida ao
afirmar isso – de posar para você, que alimento há anos.
Verônica suspirou.
— É uma expectativa e tanto. Espero corresponder à altura. – E
bebeu um gole de seu drink, que agora carregava uma boa dose de gim
misturado ao suco de frutas, imaginando diversas possibilidades de como a
cliente poderia ter idealizado este encontro. De repente, captou algo que não
havia notado. Sentiu aquele frio na barriga que sempre aparecia quando seu
desejo era despertado. Passou a língua pelos lábios e aproveitou a sensação
para sintonizar-se com ela e com a música. Um calor começava a aquecê-la,
provocando o estado de transe no qual gostava de trabalhar.
A hora seguinte transcorreu quase em silêncio. Depois, Adélia a
interrompeu para comer e ir ao banheiro. Quando retomaram, Verônica já
não estava mais com a mesma disposição. Percebeu que era hora de parar.
Fez mais algumas pinceladas, apenas para dar conta dos detalhes
coadjuvantes da pintura, mas parou a tempo de pecar nas expressões. Adélia
vestiu o roupão e seguiram numa conversa bem mais descontraída e íntima.
— Você e sua assistente estavam bem animadas no iate. Não fui a
única a ouvi-las quando foram para a suíte.
— Uau! Espero que nossos ruídos tenham servido para excitar a
libido de vocês. – E deu um riso que tentava parecer sem graça.
— Sem dúvida. Mas, infelizmente, não saciei minha vontade.
— Se você e seu marido não vão para a cama há tanto tempo,
suponho que tenha amantes.
— Só nos meus sonhos, querida. – Ela ficou em silêncio por um
momento. Verônica, tampouco, soube o que dizer. – Diga uma coisa: sou
uma mulher desejável?
A pintora não estava preparada para a pergunta, mas não se
intimidou.
— Muito, Adélia. Mais do que pude imaginar ao conhecê-la.
— Por que não me escolheu na Bienal?
— Porque você... – Verônica procurou pelas palavras certas,
enquanto se sentava ao lado dela – é uma mulher que se esconde atrás da
própria sombra. O que vi aqui, hoje, não é o que costuma mostrar à primeira
vista.
— E o que é que escondo tão bem assim?
Verônica a encarou mais tempo do que seria confortável.
— Você tem sede de viver, de amar e ser amada. É uma mulher linda,
sensual e cheia de vitalidade.
Adélia se aproximou e Verônica não teve dificuldade em identificar e
conceder o beijo que estava por vir. A campainha, no entanto, soou.
Hesitando em atender, a dona da casa acabou se levantando e, surpresa, ao
olhar pela câmera que filmava a entrada do ateliê, informou à convidada que
seu marido estava na porta.
— Preciso me esconder, Verônica. Otávio não pode saber que estou
aqui. Por favor, me dê cobertura. Tenho medo dele.
— Está bem. Suba as escadas e me espere no quarto. Vou mandá-lo
embora. – Falou, com os gestos um pouco perdidos. – Espere, suas roupas. –
Foi até o banheiro e apanhou os pertences de Adélia, entregando-os antes
que ela sumisse. Atendeu Otávio.
— Boa tarde. É uma surpresa vê-lo aqui. Não costumo abrir o ateliê
nas segundas. Em que posso ser útil?
— Carlos me deu sem endereço. Espero que não se incomode em me
receber. – E se colocou para dentro, antes que ela pudesse dar uma desculpa.
– Está sozinha?
— Estou. Mas minha assistente chegará em breve.
— Você tem um trabalho belíssimo. – Começou a andar pelo espaço,
observando as telas. Verônica tratou de recolher a pintura de Adélia e a
colocar rente a uma parede, de costas para o intruso.
— Um trabalho em fase de criação, imagino.
— Exato. Comecei um pouco antes da Bienal e voltei a estudá-lo
hoje. Não passa de um esboço. – Mentiu, sentindo que os elogios dele para
com seu trabalho também não soavam verdadeiros.
— Bem, não quero atrapalhá-la. Vim em busca de uma tela para
presentear um amigo. O que sugere?
— Não sei... Me fale um pouco sobre ele. Seu amigo gosta da minha
arte erótica? – Respondeu, fingindo surpresa.
— E alguém não gosta?
Ela apenas o encarou e sorriu.
— Bobagem. Seus trabalhos mexem com a gente. Meu amigo tem a
minha idade, é casado, festeiro e amante das mulheres e da boa vida. Tem
muitos quadros de colegas seus, mas falta-lhe a melhor obra de sua coleção.
— Fico lisonjeada. – Caminhou para longe dele. – Venha até aqui,
veja estes trabalhos.
— Excelente. Gosto do manejo que faz das cores. Este é
impressionante. – Deteve-se no terceiro quadro. – Os azuis, quantos tons de
azul. Não fosse pelo tamanho, é o que levaria.
— Prefere um menor?
— Pelo contrário. Queria um que fosse o dobro desse.
— Um díptico, então? Não tenho telas tão grandes.
— Que seja. Deixe-me ver.
Verônica mostrou algumas composições que se formavam com a
junção de duas telas. Otávio escolheu uma quase sem azuis e não titubeou
quando ela aumentou em 20% o valor das peças.
— Perfeito. Farei uma transferência. Antes, se me permite, posso ir
ao banheiro?
— Claro. À vontade. – Respondeu, torcendo para não haver qualquer
indício da presença de Adélia ali.
O homem retornou.
— Curioso. Seu ateliê tem um odor familiar.
— Vou embrulhar as telas. Aceita uma bebida? – Ignorou o
comentário porque, sim, seu ateliê estava impregnado do perfume de Adélia.
— Vejo que alguém já passou por aqui e bebeu com você. Seria a
pessoa do quadro que escondeu quando cheguei?
— Minha assistente esteve aqui mais cedo. – Falou, tentando manter
um sorriso convincente nos lábios.
E dirigiu-se para a grande mesa, aproximando-a de rolos de plástico
bolha e papel pardo que ficavam pendurados em enormes estruturas na
parede oposta à porta. Empacotou as telas.
— Aceito uma bebida. Vamos brindar a esta compra.
Verônica queria que o sujeito fosse embora. Mas, por educação, foi
até o bar, numa das saletas do ateliê, delimitadas apenas pelo mobiliário, e
voltou de lá com duas taças de espumante cheias.
— A você.
— Ao seu amigo.
Beberam. Otávio ainda teve disposição para prosseguir com
conversas que não a interessavam e das quais ela tentava escapar pela
tangente. Foi salva pela chegada de Begônia, quase duas horas depois do
sujeito ter entrado em sua casa.
— Boa noite. Não sabia que tinha visita, Verônica. Como vai,
Otávio? Nos conhecemos no navio, está lembrado?
— Como poderia não estar? – Pegou a mão dela e a levou à boca,
depositando um beijo mais demorado do que o necessário. – Do que era o
drink que tomaram mais cedo?
Begônia olhou de relance para Verônica antes de responder.
— De frutas. Eu mesma os preparei.
— Pena eu ter chegado tarde. Teremos outras oportunidades para que
eu prove da sua bebida. – Antes de continuar, encarou-a. – Bom, ainda falta
o pagamento, Verônica. – Fez a transferência do celular e enviou o
comprovante ao telefone da pintora. – Foi um prazer fazer negócios com
você.
— O prazer foi meu – Verônica respondeu.
Begônia o acompanhou até saída, recebendo mais um beijo
demorado e molhado nas costas da mão.
— O que ele fazia aqui?
— Não tenho a menor ideia.
— Adélia já foi?
Verônica indicou o andar de cima com a cabeça, ao mesmo tempo em
que a cliente descia as escadas.
— Ele veio atrás de mim, Verônica. Sabe que estive aqui.
— E isso é um problema? Não achei, pelo que me contou, que seu
marido fosse um homem ciumento.
— Ele é possessivo, o que é diferente. Peço desculpas pelo
aparecimento dele. Eu não fazia ideia.
— Imagina. Fiz uma boa venda. Sabe que amigo é esse de quem ele
falou?
— Não. Mas a descrição parecia com ele mesmo.
Verônica deu de ombros.
— Você deve estar com fome. Podemos sair para comer, o que
acham?
— Melhor eu ir embora. Amanhã continuamos?
— Como quiser.
— Até, então. – Despediu-se das duas a partiu.
— O que ela fazia no seu quarto? – Begônia perguntou, rindo com
malícia.
— Nada tão bom quanto o que está pensando. Ficou desesperada
quando o marido chegou e pediu para se esconder.
— Mentira! Achei que o sujeito tivesse interrompido vocês na cama.
Verônica, isso está com cara de problema. Um marido de quem a esposa tem
medo vindo atrás dela, o ciúme que ele demonstrou no navio... O que achou
de tudo isso?
— Não sei, querida. Não acreditei no que ele me disse, mas ganhei
uma bagatela com a venda do díptico. E Adélia já é minha cliente. Gostei de
pintá-la e quero terminar o trabalho. Depois, espero nunca mais ver os dois
na minha frente. – Foi até Begônia e depositou um beijo em seus lábios.
Passaram a noite juntas. No dia seguinte, Begônia preparou o ateliê e,
antes de sair, falou:
— Hoje tenho vernissage de um amigo. Quer me acompanhar?
— É um amigo talentoso como você?
— Nem tanto. – Respondeu, rindo. Verônica riu também.
— Então acho que não. Estou com preguiça da vida social.
— Está bem. Quer que eu passe aqui mais tarde?
— Não precisa.
Despediram-se. Adélia chegou uma hora atrasada e se desculpou,
dizendo que Otávio demorou a sair. Esperou que ele estivesse fora de casa
para ir ao encontro de Verônica.
— Não se preocupe comigo. Adiantei bem o trabalho ontem. Mas
não posso deixar de dizer que seu medo de Otávio me contamina. O que
acha que ele poderia fazer se descobrisse que está posando para mim?
Adélia não respondeu. Mas a encarou, visivelmente acuada.
— Desculpe. Não sei se hoje é um bom dia para... Verônica, acho que
essa encomenda foi um erro. Permita-me pagá-la conforme combinamos e
partirei.
— Por favor, Adélia. Fui sincera em tudo o que lhe disse ontem.
Gostei de pintá-la e me dará extrema satisfação concluir este trabalho. Pose
para mim.
A expressão da cliente amoleceu.
— Está bem. – E, com mais intimidade do que no dia anterior, foi até
o banheiro e voltou de lá envolta pelo roupão.
— O que ouviremos hoje?
— Decida você, Verônica. Me agrada descobri-la através das coisas
que a interessam.
De costas, Verônica deixou escapar um sorriso. O flerte a excitava e
ela sabia que essa energia sexual contribuía para o sucesso de suas
pinceladas. Escolheu Madame Butterfly e colocou a ópera de Giacomo
Puccini para tocar. Uma trágica história de amor.
Virou-se para Adélia, que a esperava despida, na mesma pose do dia
anterior, deslumbrante em seu divã roxo. E com um sorriso que demonstrava
aprovação à escolha da música. Verônica estremeceu. E começou a trabalhar.
Falaram pouco. A artista entrara em seu transe habitual e deliciava-se
com a infinidade de cores que enxergava na modelo. Gostava das luzes
incidindo através das janelas, dos flares, dos reflexos, do sol vermelho que
invadia, fogoso, o ateliê nos finais de tarde. E apreciava todas essas luzes
variando-se na pele de Adélia. O disco voltou ao início e, sem que nenhuma
das duas percebesse, tocou outra vez. Estavam unidas no ritmo dos pinceis,
sem falar e sem parar para matar a sede ou a fome. Verônica teria continuado
assim até anoitecer, como já o fizera muitas vezes. Mas, quando o sol
colocava seus raios mais bonitos para dentro do ateliê, Adélia a interrompeu.
— Querida, acho que minha hora se aproxima.
Verônica levou alguns segundos para entender o que ela estava
dizendo.
— É claro. Você deve estar com fome também. – Falou, notando o
próprio estômago reclamar.
— Estou, na verdade.
— Por favor, Begônia preparou algumas coisas para nós. – Foi até o
bar, voltando de lá com canapés, porções individuais de salada, sucos, chás e
docinhos de sobremesa.
Depois de saciarem a fome, conversaram um pouco.
— Estou curiosa para ver o quadro, Verônica. Não vai me mostrar?
— Gostaria que o visse finalizado. Mas se não estiver se aguentando
de curiosidade, vá em frente.
— Eu espero, então. Só mais três dias.
— Talvez eu termine antes.
— O que seria uma pena. – Diante do olhar inquiridor da artista,
continuou. – Gosto de estar aqui com você. Prolongaria este contrato por
muito mais tempo, se pudesse.
— Sinta-se convidada a me visitar quando quiser. E a posar para mim
também. Como modelo, não como cliente. Gostaria de pintá-la em cena com
mais algumas pessoas. – Falou, esquecendo-se do que disse na noite anterior
sobre não querer mais ver Adélia depois de concluir a encomenda.
— Como fez na Bienal?
— Não exatamente. Lá eu estava performando. Meu trabalho é
diferente, mais lento. Levo dias até dispensar os modelos e, muitas vezes,
continuo trabalhando na tela por mais um mês ou dois.
— Talvez eu aceite seu convite. Não será tão bom quanto estar
sozinha com você, mas melhor do que não voltar a vê-la.
Verônica não pôde disfarçar o sorriso de satisfação.
— Está apaixonada por mim?
Adélia engoliu em seco.
— Estou.
— Não sou uma mulher de quem se possa esperar algum
compromisso. Eu e Begônia nos damos bem porque ela entende isso e é livre
para viver histórias que não me incluem, assim como não sou exclusiva dela.
— O que a faz pensar que eu a pediria em casamento?
Verônica soltou uma gargalhada.
— Que pretensão a minha.
— Muita. – Adélia se aproximou e, não podendo se conter, avançou
para a boca da pintora. Sugaram-se. As mãos de Verônica abriram caminho
por entre o tecido felpudo do roupão, desejosas do corpo que a motivara nas
horas anteriores.
— Não posso. Já está tarde e...
— Passe a noite comigo.
— Amanhã. Pode me esperar até amanhã?
— Não. Mas vá. Faça o que tem de fazer. – E a puxou para um beijo
de despedida. Depois, como Adélia estava decidida, acompanhou-a até a
saída. Pensou em ligar para Begônia e encontrá-la no vernissage. Desistiu.
Jantou cedo e foi dormir.
Foi acordada pela língua da assistente em seu sexo. No auge do
relaxamento, precisou de poucos minutos para chegar a um orgasmo forte e
explodir. Quando se recuperou, retribuiu, fazendo cada pedaço do corpo da
assistente passar por sua boca. Sabia que a excitava ao beijar-lhe os pés.
Depois, foi para cima dela com um dildo que haviam comprado juntas,
mexendo-se sinuosamente. A parceira gemia e suas reações a condenavam a
um delicioso jorro, que aconteceu quando os dedos de Verônica a tocaram.
Saciadas e famintas, tomaram o café da manhã na beira da piscina.
Como sempre, Begônia preparou o ateliê, aprovando a pintura inacabada de
Adélia, e despediu-se da mestra.
— Te vejo mais tarde?
— Não. Bella chegou de Milão ontem e combinei de passar a noite
com ela. Aliás, pode ser que eu não apareça nos próximos dias. Acha que
pode sobreviver sem mim?
Verônica a encarou.
— Não acredito que me deu esse bom dia para, em seguida, dizer que
me trocará por aquela italiana maravilhosa com quem eu adoraria dividir a
cama. – E atirou uma almofada da espreguiçadeira na assistente. – Não sei se
tenho mais inveja dela ou de você.
Begônia riu.
— Não seria uma má ideia ficar com vocês duas ao mesmo tempo.
— Pois trate de providenciar isso.
Riram. E Begônia se despediu deixando saudades. Adélia chegou
pouco depois. Estava radiante. Cumprimentou a pintora com um beijo
ardente.
Mal entraram, e a cliente tirou a roupa e se colocou no divã. A
anfitriã a olhou, indecisa. Foi até a vitrola e escolheu um disco. The Dark
Side of the Moon. Tinham o dia todo, afinal. Não se apressaria. Começou a
pintar, mas sentiu que Adélia estava inquieta. A artista, saciada,
aproveitando cada segundo da música e da tensão entre ela e a modelo, não
se importou. Vivia o calor percorrendo seu corpo e regalava-se com a
maneira pela qual as cores e as pinceladas se escancaravam na tela, como se
tivessem vida própria. Ficou excitada e, quando olhou para Adélia, para sua
surpresa, ela a encarava de volta, se masturbando.
Achou a cena linda. Enlouqueceu. Das suas mãos saíam tintas
espalhafatosas, esparramando-se pela tela e respigando em seu rosto, mãos e
braços. Misturavam-se ao suor, escorriam pelo corpo e quase se juntaram ao
líquido que sentia escorrer do meio de suas pernas. Quando Adélia teve um
orgasmo, era como se Verônica a sentisse e, de onde estava, o que derramava
na tela não poderia ser muito diferente do próprio gozo diante do que
considerava a verdadeira definição de arte.
As pinceladas respiraram, recobrando o fôlego. A artista recomeçou,
tendo, diante de si, uma nova mulher para retratar. Camadas de tinta se
sobrepunham, como se ela pudesse captar cada variação das feições de
Adélia desde o primeiro momento até agora. Dos seus olhos brotavam todas
as cores. Verdes, azuis, lilases, vermelhos, amarelos... Quando o sol a
atingiu, impedindo que enxergasse, sabia que passava das 14hs. O disco já
tinha tocado três vezes. Estava faminta. Colocou os pinceis de molho e
caminhou até a modelo, num desfile no qual, a cada passo, arrancava uma
peça de roupa. Deitou-se sobre ela, nua, suja de tinta e molhada. De suor e
tesão.
Fez do corpo de Adélia a sua tela. E, juntas, redecoraram o estofado
do divã e quebraram a monotonia cinza de um bom pedaço de chão. A
modelo arqueava-se para Verônica, sentindo seu corpo pulsar por inteiro.
Estava viva, feroz, mulher. Gritou de prazer. Muitas vezes. Seus cabelos
desprenderam-se do penteado bem-comportado e, molhados, ondularam-se,
selvagens, enroscando-se pelo corpo de Verônica. Estava pronta para morrer
e se entregou completamente. O som visceral que saiu de dentro dela não
deixava dúvidas. Renasceu em seguida e Verônica a colocou para dentro de
si, esfregando-se até não ter mais o controle dos próprios movimentos.
Beijaram-se e a artista gozou, sentindo o gosto dos lábios lascivos da outra.
Rolou para o lado e a olhou. Adélia tinha tantas camadas, uma mais bonita
do que a outra. E, agora, mais uma se revelava. Puxou-a para perto da tela e
passou o pincel por seu rosto. O anil combinava com o tom da pele e dos
cabelos. Beijou-a. E levou o pincel à tela em seguida. Desenhava seu corpo
e, para cada traço que os pelos riscavam no quadro, Verônica praticava,
antes, no molde real.
A brincadeira as excitou outra vez e fizeram amor na mesa de
trabalho de Verônica, derrubando tintas pelo chão e ao redor. Uma outra tela
que estava próxima, “Amoras”, ganhou um respingo de tinta vermelha e a
artista não se importou. Diria ao comprador que a obra era viva. A noite
começou a cair e Adélia se desvencilhou dos braços de Verônica.
— Preciso ir.
— Por favor, passe a noite comigo.
— Não posso.
— Não quero que vá.
— Sabe que não posso ficar. Posso tomar um banho antes de sair?
— Claro. – A dona da casa respondeu, visivelmente desanimada.
Tentou seduzi-la com um banho de banheira, mas Adélia foi
implacável. No chuveiro, Verônica a ajudava a se livrar das tintas.
— Está sangrando, Adélia.
— Acho que me cortei e não percebi. Não é nada grave.
— Devia ter tirado os objetos afiados da mesa, mas, na hora, nem me
lembrei.
Adélia riu.
— Uma lembrança do nosso dia. Me arranje um Band-Aid e amanhã
estarei nova.
Beijaram-se. Verônica tentou fazer amor mais uma vez. Não
conseguiu. Despediu-se de Adélia prometendo-lhe um café da manhã
especial para compensar o dia em jejum. Foi para a cama sozinha.
Acordou, de madrugada, com um apito que indicava intrusos no
local. Chamou a polícia. Não encontraram nada. Achou que algum animal da
vizinhança tinha feito o alarme soar. Voltou a dormir. No dia seguinte, saiu
mais cedo da cama, foi até a padaria e trouxe tudo o que lhe pareceu
apetitoso para o desjejum na companhia da sua modelo preferida. Preparou a
mesa e aguardou. Adélia não apareceu. Tentou falar com ela diversas vezes
ao longo do dia, sem sucesso. À noite, pensou em ligar para Begônia e se
convidar para sair com ela e a italiana. Não o fez. Perdeu-se na pintura de
Adélia até de madrugada. Esperava encontrá-la no dia seguinte, alegando
qualquer problema com o marido. Mas, na sexta-feira, a cliente também não
apareceu. Pensou procurar por Otávio. Tinha seu número. Achou melhor
não. Se a esposa tinha tanto medo que ele soubesse da sua relação com a
artista, devia ter um motivo.
Na madrugada insone, foi até a tela e tentou pincelar alguma coisa,
lembrando-se dela. Impossível. Dormiu.
Begônia ligou no dia seguinte, convidando Verônica para um
desjejum na companhia de Bella. Sem ter o que fazer, aceitou. No quarto de
hotel da italiana, deliciou-se com as aventuras da artista europeia, enquanto
se imaginava numa noite com ela e Begônia. Não demorou muito para que
seus sonhos se realizassem. Esticou a tarde na companhia das duas e, depois
de visitarem o Museu de Arte Contemporânea, almoçaram, beberam e...
voltaram ao quarto de Bella. O domingo se desenrolou libidinoso. As três
permaneceram no quarto até a hora do voo da italiana de volta a Milão.
Despediram-se no aeroporto e Begônia foi para casa. A semana seguinte
seria cheia e precisava descansar.
Estava no ateliê com Verônica e duas modelos, quando a campainha
soou. Não recebiam visitas às segundas, como a artista dissera a Otávio. Mas
atenderam mesmo assim. As modelos vestiram roupões. Era a polícia.
Manuela e Ancelmo gostariam de falar com a dona do local.
— Em que posso ser útil? – Verônica perguntou, indicando uma das
saletas para que se acomodassem.
— Me diga você. – Ancelmo respondeu. Estamos investigando um
assassinato. Conhece uma mulher chamada Adélia Aparecida da Costa
Ferreira?
Verônica gelou.
— O que aconteceu com ela?
— É o que gostaríamos de saber. – Respondeu Manuela. Seu corpo
foi encontrado numa mala de couro ontem à tarde. Pode nos dizer que tipo
de relação tinha com ela?
— Eu... Adélia e eu nos conhecemos há poucos dias, através de um
amigo em comum. Éramos convidadas no iate de Carlos Gaspar Martins.
— E essa foi a única ocasião em que se viram?
A artista hesitou. Não sabia o que dizer. Queria respeitar a
privacidade da amante.
— Desculpem. Não estou entendendo o que vieram fazer aqui. Sou
suspeita do que aconteceu com ela?
— Não.
— Ainda não. – A policial completou.
— Nós mal nos conhecíamos. Isso é um absurdo.
— Adélia esteve na sua exposição durante três dias. Parece que ficou
chateada por não ter sido escolhida.
— Não é verdade. Nós conversamos a respeito e, bem, acredito ser
melhor eu procurar uma advogada antes de ter qualquer conversa com vocês.
Begônia dispensou as modelos.
— Estávamos só querendo refazer seus últimos passos. Se tiver algo
a acrescentar, ficaremos agradecidos.
A dona do ateliê assentiu e olhou para a assistente, indicando que era
chegado o momento de acompanhá-los até a saída. Antes de partir, Manuela
a encarou.
— Não entendo muito de arte. Que tipo de negócio você faz aqui?
— Quer saber o que eu pinto?
— Por aí.
— Trabalho com arte erótica.
Ela deu uma olhada em volta do ateliê.
— Interessante. Ouvi dizer que muitas pessoas quiseram posar para
você recentemente.
— Sim, Veronica é uma artista reconhecida. – Respondeu a
assistente.
— Você aceita encomendas? – Perguntou a policial, ignorando o
comentário de Begônia.
— Imagino que seja uma pergunta retórica, uma vez que já deve
saber que sim, aceito.
— E quanto cobra por isso?
— Depende do trabalho.
— Quando cobrou de Adélia?
Verônica não respondeu. Manuela a encarou por um momento, sem
dizer nada.
— Voltaremos a conversar. Passar bem.
Begônia fechou os portões e abriu duas garrafas de cerveja. A pintora
estava abalada.
— Por que não contou a eles sobre Adélia?
— Não sei, Beg. Sinceramente, não sei. Que loucura isso. Adélia e
eu...
— É claro que foram para a cama. Seus traços não deixam dúvidas.
— Sim, fomos. Mas só na quarta-feira. O último dia em que a vi.
Meu Deus, ela foi assassinada.
— Acha que podem suspeitar de você?
— Aquela mulher, certamente, queria que eu achasse que sim.
— Não é mais sensato contar tudo a eles o quanto antes?
— Talvez. Mas me sinto traindo Adélia. Ela não queria que o marido
soubesse.
— Ela está morta, Vê. E esse marido pode ter alguma coisa a ver
com isso.
Verônica suspirou. Beg passou a noite com ela. Estava nervosa. Na
terça, dispensaram as modelos e Verônica ligou para Ancelmo, querendo
conversar.
— Farei o possível para ir até sua casa.
Algumas horas depois, Manuela tocou a campainha. Estava sozinha.
— Resolveu nos ajudar?
— Espero que sim. Alguma ideia de quem pode ter feito isso com
ela?
— Algumas. Vocês moram juntas?
— Não – Begônia adiantou-se. – Sou assistente de Verônica.
— Mas passou a noite aqui.
— Isso tem alguma relevância para a investigação?
— Talvez.
— Begônia e eu... Nosso relacionamento não é segredo para
ninguém.
— Mas não são exclusivas.
— É uma pergunta?
Manuela não respondeu.
— O que tem a dizer sobre Adélia?
Verônica contou tudo. Ou quase. Preservando a intimidade do último
encontro, narrou desde a estadia no iate de Carlos até a última vez esteve
com a cliente. Não deixou de demonstrar preocupação quando contou à
policial sobre o medo que Adélia tinha do marido descobri-la.
— Posso ver a pintura?
Verônica sinalizou para que Beg trouxesse a tela. Manuela encarou o
trabalho de Verônica. Levantou-se para observar mais de perto. Passou o
dedo pelas tintas, detendo-se numa porção de vermelho.
— Tem certeza de que não aconteceu nada mais íntimo entre vocês?
Begônia encarou a artista, encorajando-a a prosseguir. Verônica
tragou o ar, tomando coragem.
— Adélia não estava feliz no casamento. Fazia tempo que ela e o
marido... Sim, nós transamos.
— Quando foi isso?
— Da última vez que nos vimos. Depois, ela não apareceu. A
pintura, como pode ver, está inconclusa.
— Talvez eu não entenda de arte, afinal. Para mim, parece pronta.
Verônica quase se ofendeu. Begônia olhou para ela, pedindo que
ignorasse a provocação. Manuela quis conhecer o resto da propriedade e a
dona da casa a acompanhou.
— Foi aqui que fizeram sexo? – Perguntou, quando estavam no
quarto da artista.
Verônica estava incomodada com as perguntas invasivas.
— Não. Fizemos amor – ela enfatizou a palavra – no divã, onde a
pintei, no chão do ateliê e na minha mesa de trabalho. Adélia só veio ao meu
quarto quando se escondeu do marido.
— Que romântico.
Saiu do quarto para ter uma visão de cima do ateliê. Reparou que as
cores da tela estavam estampadas no divã e espalhadas ao redor. Voltou ao
térreo, examinando mais de perto as superfícies. Fez algumas fotos com o
celular. Agradeceu a conversa e partiu.
Alguns dias se passarem. Verônica estava inquieta e desmarcou os
compromissos, inclusive com Begônia, esperando notícias da investigação.
No sábado, Ancelmo telefonou, perguntando se poderiam conversar.
— Claro. Estou em casa. Espero vocês.
A policial chegou, novamente desacompanhada. Verônica estava
sozinha e a recebeu pessoalmente.
— Alguma novidade?
— Hipóteses. E você, já providenciou um advogado?
— Deveria?
Manuela caminhou pelas saletas do ateliê, observando as bebidas no
bar, os discos próximos da vitrola e as obras.
— O que Adélia gostava de ouvir?
— Você supõe mais intimidade do que tivemos. Ela escolheu um
disco de rock no nosso primeiro encontro. Depois, eu selecionei as músicas
que nos acompanharam durante o trabalho.
— Se importa de colocar para tocar o mesmo que escolheu quando
ela estava aqui?
Verônica obedeceu, sem entender o propósito do pedido.
— Encontramos o celular de Adélia. Há várias ligações do seu
número para ela.
— Eu a esperava na quinta-feira. Como ela não apareceu, tentei
contato. E no dia seguinte, de novo.
— Depois desistiu.
Verônica respirou fundo.
— Pensei em falar com Otávio. Mas Adélia não queria que ele
soubesse que estava posando para mim. Então, sim, desisti e fui viver a
minha vida. Achei que ela fosse entrar em contato com alguma desculpa.
— Ainda não perguntei o que fez na noite da quarta-feira.
— Nada. Fiquei em casa. Por quê?
— Não chamou a polícia?
— Ah, sim. Meu alarme disparou, mas não era nada.
— Está me dizendo que, na noite em que Adélia foi assassinada,
você chamou a polícia à toa?
— Estou dizendo que meu alarme disparou. Deve ter sido algum
animal da vizinhança. Chamei a polícia porque queria ter certeza de que
estava em segurança.
— Begônia não estava com você na ocasião?
— Já disse que estava só.
— Posso pedir que refaçamos seus passos com Adélia?
— Como assim?
— Gostaria de reconstituir o que aconteceu entre vocês. Quer dizer, o
que se lembrar, é claro. Finja que eu sou ela e me receba como a recebeu no
primeiro dia.
Verônica ficou atordoada com o pedido. Resolveu aceitar porque não
sabia o que responder e a policial a intimidava.
— Begônia estava aqui. Ela recebeu Adélia e foi embora logo depois.
Conversamos um bocado. Então falei que ela podia se despir no banheiro.
Manuela a interrompeu. Não queria ouvir a história, mas revivê-la.
Foi até o banheiro e, como a vítima assassinada, voltou de lá somente com o
roupão. Verônica engoliu em seco, sem saber o que esperar daquela
encenação.
— Eu a conduzi ao divã.
— Não conte. Faça comigo como fez com ela. Se eu tiver alguma
dúvida, a interromperei.
Veronica obedeceu e a elogiou, como fizera com a cliente da semana
anterior. Lembrou-se de mexer em seus cabelos e fez menção de tocar na
policial, mas, antes, seu olhar pediu permissão. Manuela consentiu. Quando
retornou à tela improvisada, a pintora pediu que tirasse o roupão. E ficou na
expectativa.
— Não está se esquecendo de nada?
Pega de surpresa, Verônica desconcentrou-se.
— Perdão?
— Entre o momento em que ela saiu do banheiro e instante em que
pediu que se despisse, nada mais aconteceu?
— Nós combinamos a pose que ela faria.
— E era essa a música que tocava em sua vitrola?
— Era esse disco. Não me lembro da música.
— E aí você começou a pintá-la.
— Exato.
— Até que o marido chegou.
— Sim.
— Pode me contar, novamente, como foi a visita dele aqui?
Verônica obedeceu. Quando terminou, passaram ao segundo dia.
Manuela fez como Adélia e dirigiu-se ao divã só de roupão.
— Eu me virei para colocar Madame Butterfly na vitrola. Quando
olhei de volta, Adélia me esperava nua. – Narrou, executando os mesmos
movimentos que fizera com a ex-cliente. Ao olhar de volta para o divã, a
ópera anunciando suas primeiras notas, encontrou a policial despida, na
mesma pose da modelo que a contratara. Derrubou vários pinceis,
visivelmente nervosa.
— Achei que estivesse acostumada com pessoas nuas.
— Não quando elas me investigam.
— Reagiu assim quando Adélia se despiu?
— Não. – Respondeu, sem desviar de seus olhos.
— O que sentiu ao vê-la?
Verônica estava desconcertada. Imaginava uma questão ética séria se
alguém descobrisse o que se passava em seu ateliê naquele momento. Achou
que as coisas poderiam piorar e sofrer um processo por assédio. Mas não era
só isso. A policial despertava em Verônica algo que ela não se lembrava de
já ter experimentado. Era uma sensação incômoda, invasiva e assustadora.
Desejou acabar com tudo o quanto antes.
— Adélia era uma mulher mais interessante do que parecia. Eu a
achei linda e foi excitante pintá-la.
— Foi neste dia que conversaram sobre seu casamento?
— Quase não conversamos. Não enquanto eu a retratava. No final da
tarde, paramos para comer e Adélia confessou estar apaixonada por mim.
— E o que disse a ela?
— Eu a beijei. Quer que encenemos isso também?
Manuela permaneceu impassível. A artista sentiu-se vulnerável.
Estava acostumada a ter o controle das situações.
— E depois do beijo?
— Ela foi embora. Devia investigar seu marido. Adélia tinha muito
medo dele. Insisti para que passasse a noite comigo, mas a existência de
Otávio a impedia.
— Estava apaixonada por ela?
Verônica preparou-se para falar, mas não sabia o que dizer. Engoliu o
ar e foi até o bar. Precisava de um pouco de álcool. Serviu-se de uma dose de
uísque.
— Devo oferecer bebida alcoólica a uma policial? – Perguntou, de
costas para Manuela.
— Eu a deixo nervosa?
— Sim. – Virou-se para ela. – Sobretudo pelo fato de querer me
incriminar por um assassinato que não cometi.
— Não respondeu à minha pergunta. Estava apaixonada por Adélia?
Verônica puxou o ar lentamente, precisando se acalmar.
— Eu fiquei envolvida. Mais do que poderia imaginar. Mas não acho
que estivesse apaixonada.
— Sua assistente sabe que foi para a cama com Adélia?
— Sabe, claro. Não tenho nenhum tipo de exclusividade com... O
que está insinuando? Begônia jamais...
— Eu não disse nada. Mas, já que mencionou, onde ela estava na
madrugada de quarta para quinta?
— Com uma amiga, eu acho. Acredito que estivesse no hotel com
ela.
— Sente ciúmes dela? Sentia ciúmes de Adélia?
O volume de uísque no copo de Verônica diminuiu mais um pouco.
— Begônia estava com uma mulher por quem me sinto atraída.
Estive com elas no sábado e ficamos. Nós três. Não sinto ciúmes dela e não
senti ciúmes de Adélia. Não havia motivo para isso.
— Você tem uma vida sexual bem agitada.
— Tenho. Gosto de sexo, de mulheres e da minha liberdade de estar
com quem me dá vontade. Isso faz de mim alguém capaz de cometer um
crime?
— Quanto cobrou pela pintura?
— Não fechamos um valor. Mas eu sabia que Adélia pagaria bem.
— Quero que me pinte como a pintou. Quanto isso vai me custar?
— Não aceito todos os interessados que me procuram.
— Está me recusando?
— Talvez. Volte aqui quando tiver solucionado o caso e
conversaremos sobre sua proposta. – Irritada, foi até o roupão e o jogou por
cima dela.
— Acho que acabamos por hoje. – Indicou, com a mão que segurava
a bebida, a direção da saída.
— Falta o terceiro dia. E, para mim, ele é o mais importante.
Podemos?
Verônica serviu-se de mais uísque. Colocou o disco do Pink Floyd na
vitrola e pegou uma tela em branco. Desenhou o contorno do corpo de
Manuela.
— Eu estava absorta com a música. Por alguns minutos, não olhei
para ela. Deixava a melodia e a memória guiarem meus movimentos. –
Encarou a policial. – Mas quando a olhei, Adélia me fitava, se masturbando.
Por um segundo, Verônica achou ter vislumbrado uma expressão
desconcertada no rosto da mulher que investigava o crime. Foi tão rápido
que não teve certeza. Mas resolveu arriscar.
— Fiquei extremamente excitada. Seu ritmo me envolveu e, junto
com a música, desenhei novas camadas de tinta sobre o retrato. Me sujei
nesse momento. O sol incidiu sobre os meus olhos e, faminta, fui até ela. –
Caminhou na direção do divã, de onde Manuela a encarava.
Como no encontro com a ex cliente, Verônica se despiu. E teve
certeza de que a policial não estava mais no controle. Aproximou-se
lentamente, seu corpo vindo por cima e acuando-a. Deitou-se no divã sem
tocá-la, sustentando-se nos braços. Os cabelos pendiam e, ao sabor do vento,
roçavam na pele de Manuela. – Tive vontade de devorar seus lábios e senti
que era recíproco. – Numa flexão, dobrou os cotovelos, ficando a milímetros
de tocar a boca da policial com a sua. – Nos beijamos. A tinta se espalhou e
fez uma obra de arte neste divã. Rolamos pelo chão, em êxtase. Ela gozou
primeiro. Eu sentei sobre Adélia e gozei em seguida.
Disse tudo isso sem se encostar na mulher que a investigava. Mas
ambas podiam sentir a troca de calor entre os corpos e o hálito da pintora,
que se colocava, sem piedade, para dentro dos lábios de Manuela. Ergueu-se
e a puxou para perto da tela, de onde a policial contemplou as próprias
formas estampadas.
— Estávamos recuperando o fôlego. Mas a expressão que vi nos
olhos de Adélia era tão linda que não resisti ao pincel e o derramei sobre seu
rosto. – Alcançou um pincel carregado de tinta preta e o esfregou na
investigadora. Sabia que ela estava tão vulnerável quanto a modelo dias
atrás. Em seguida, levou o mesmo pincel à tela e fez mais algumas
investidas. Manuela a encarava, sem poder reagir. – Então, fizemos amor
outra vez. Eu a puxei para cima de mim, nesta mesa. – Arrastou-a para junto
de si, mas manteve a distância mínima entre seus corpos. – O cheiro da tinta
misturava-se ao dos nossos sexos cansados e sedentos por mais. O som que
guiara meus braços, agora conduzia nossas bocas, mãos, línguas e pulsações.
Explodimos outra vez.
Verônica tinha a respiração curta, excitada e nervosa. Manuela, sobre
a pintora, tentava sustentar o próprio corpo, lutando contra a força que a
artista fazia na direção contrária. Travaram o duelo durante alguns minutos,
encarando-se, sem que nenhuma das duas falasse nada. A artista sentia seu
sexo molhado e, sem saber o porquê, desejou aquela mulher que em nada se
parecia com as que costumavam lhe interessar. Abriu a boca e deixou que a
língua ultrapassasse os lábios. Estavam tão perto. Só alguns milímetros. A
cabeça desencostou-se levemente do tampo da mesa, enrijecendo o pescoço,
na preparação para movê-lo. Os cotovelos de Manuela dobraram-se
imperceptivelmente, querendo ceder à tentação. Os pelos se encostaram
antes das peles fazerem qualquer contato. Verônica ficou arrepiada e gemeu.
A policial já não existia mais. Era apenas uma mulher à serviço da natureza.
De suas têmporas, uma gota de suor escapou, obrigando a pintora a fechar os
olhos. Não os abriu mais. Tudo o que veio depois foi a sensação de toques
que a subjugavam, pressionando-a contra a mesa de trabalho, revirando-a
sobre tintas e pinceis. Uma língua molhada a invadiu, ao mesmo tempo em
que mãos firmes agarraram-se ao seu pescoço e nuca, forçando-a para frente
e para trás. Manuela dominava seus movimentos e quereres. Verônica
experimentou-se tomada por aquela mulher, incapaz de demonstrar qualquer
sinal de controle sobre si mesma, a não ser satisfazer os desejos dela.
Manuela invadiu seu corpo sem pedir permissão, colocando-se em
todos os lugares. Completamente entregue, Verônica tremeu inteira. Abriu os
olhos, mas não estava ali. Gozou nas mãos da policial. Estava acabada e
adormeceu.
Quando acordou, sentia-se dolorida, como se tivesse tomado uma
surra. Ao mesmo tempo, era como se seu corpo, inebriado, experimentasse
uma sensação de plenitude. Aos poucos, a memória dos acontecimentos
recentes foi se revelando. Verônica tomou um susto e abriu os olhos,
procurando por Manuela. Estava sozinha. Levantou-se, precisando ir ao
banheiro. Não era surra o que sentia. Era como se tivesse passado os últimos
dias correndo uma maratona sem intervalos. Estava dolorida, exausta e,
contraditoriamente, cheia de disposição. A sensação do último orgasmo a
invadiu e colocou as mãos sobre o abdômen, tentando revivê-lo. No caminho
até o banheiro do ateliê, desistiu. Preparou um drink e subiu. Encheu a
banheira e adormeceu ali.
Um zumbido insistente invadiu seus sonhos. Escorregou, engolindo
água, e acordou assustada, afogada pelo engasgo. O barulho persistiu,
transformando-se no som da campainha que castigava, impiedosa, as paredes
dos três andares da residência. Enrolou-se numa toalha e vestiu a primeira
roupa que seus olhos encontraram. Descendo ao ateliê, encontrou-o revirado
pela bagunça do dia anterior.
Abriu a porta e encarou Manuela. Atrás dela, Ancelmo e um grupo
de policiais com cara de poucos amigos.
— Temos uma ordem judicial para revistar sua casa, Verônica. –
Informou-lhe a policial, sem dar o menor indício da intimidade que haviam
partilhado algumas horas atrás.
Atônita, Verônica abriu caminho. Passaram por ela sem qualquer
consideração, como se fosse a autora do crime que investigavam. Tentou
contato visual com a mulher a quem se entregou, mas Manuela fazia questão
de ignorá-la. Resolveu esperar do lado de fora e ligou para Begônia, que a
encontrou vinte minutos depois.
— Isso não faz o menor sentido. Mas acho que é a hora de procurar
uma advogada. Quer que eu fale com a Duda? Ela pode indicar alguém.
— Não sei. Me sinto desnorteada. – E narrou à assistente o encontro
que tivera com a policial na noite anterior.
— Céus, Verônica. Tinha que ir para a cama com ela?
— Não sei como aconteceu. Eu estava me sentindo acuada,
completamente incomodada com a situação... Acha que isso pode tê-la feito
me ver como suspeita?
Begônia deu de ombros.
— Não faço ideia. Acho que não. Tem que existir um motivo
concreto para expedirem um mandado de busca. Tem certeza de que não
aconteceu mais nada entre você e Adélia?
— O que poderia ter acontecido?
A dupla de investigadores e seus comparsas passaram por elas,
deixando a residência. Begônia interpelou-os, questionando a razão do
evento. Ancelmo respondeu apenas que sentia muito, mas que havia motivos
para desconfiarem que Adélia havia sido morta ali. E recomendou que
Verônica procurasse um advogado. Manuela passou direto e o esperou no
carro. Partiram.
Verônica estava arrasada. Arriou no divã e chorou. Pela primeira vez,
o mundo escapava de suas mãos e ela não sabia como reagir.
Tarde da noite, a campainha soou outra vez. Begônia foi atender e
voltou acompanhada pela policial. Conduziu-a até a piscina, onde Verônica
tentava relaxar ouvindo música. Saiu de dentro d’água. Não vestia nada.
Begônia entregou uma toalha a ela, enquanto Manuela esperava, encarando-
as. A dona da casa indicou uma mesa e as três se sentaram.
— Encontramos o sangue de Adélia aqui, Verônica. Tem alguma a
coisa dizer em sua defesa?
— O quê? Isso é um absurdo, Manuela. Nós... – Então se lembrou. E
sua expressão passou da incredulidade à compreensão e, em seguida, ao
pânico. O que aquilo poderia significar? Verônica era uma mulher das artes,
não sabia nada do mundo do crime. – Adélia deve ter se cortado quando
fazíamos amor. Estávamos sujas de tinta e só percebemos depois, quando
tomávamos banho. Não foi nada demais, um corte no braço. Dei um Band-
Aid a ela.
— Encontramos o sangue dela na pintura, na mesa, no chão e em
outra tela. Esse corte pequeno deve ter sangrado um bocado.
Verônica olhava para ela com uma mistura de raiva e angústia. O
sentimento mais primitivo prevaleceu.
— Se recordar um pouco da reconstituição que fizemos ontem – ela
tinha um tom ironicamente histérico na voz – lembrará que transamos em
cima da mesa, em meio a tintas, pinceis e outros objetos. E que tínhamos
uma tela muito próxima dos nossos fluidos. – Tomou uma respiração – Não
sou uma especialista em fisiologia humana, policial, mas acredito que
quando nosso corpo está em plena atividade física, uma quantidade maior de
oxigênio se faz necessária, impelindo o sangue correr com mais intensidade.
Verônica a encarava, sabendo que suas palavras faziam sentido. E
que Manuela tinha experimentado a sensação de latejar no dia anterior. A
policial, inabalável, continuou:
— E quanto a esta carta?
Tomando um papel de suas mãos, a pintora o abriu para ler. Era uma
carta assinada por Adélia, cujo conteúdo confessava a Verônica estar
apaixonada, mas não ter coragem de colocar um ponto final em seu
casamento.
— Como se sentiu quando Adélia lhe entregou isto?
Verônica não estava entendendo.
— Adélia nunca me deu essa carta.
— Não?
— Claro que não. Acho que eu me lembraria. Sequer, chegamos ao
ponto de ter uma conversa na qual eu a incentivasse a largar o casamento.
No máximo, perguntei se tinha amantes quando ela confessou que não ia
para a cama com o marido há anos.
— E ela tinha?
— Não.
— Só você.
— Não éramos amantes. Fomos para a cama uma única vez. Um
acontecimento extraordinário. Eu não a conhecia antes da festa no iate.
— E você, Begônia? Sabia do relacionamento de sua... como devo
chamá-la? Mestra? Sabia do envolvimento entre sua mestra e Adélia?
— Eu soube depois. As pessoas com quem Verônica faz amor são
problema dela, não meu.
— A menos que levem alguém para a cama juntas.
— ... Exato.
Begônia era uma mulher extremamente sensual, com lábios
carnudos, cabelos rebeldes e uma pele aveludada. E, assim como Verônica,
não tinha meias palavras para falar de assuntos que, à maioria das pessoas,
seriam tabus.
— Onde passou a noite de quarta para quinta-feira?
— No Unique, com uma amiga que veio de Milão.
— Amiga?
— Vocês, da polícia, não fazem sexo com amigos?
Manuela não se abalou.
— E na madrugada de sexta para sábado, pode me dizer o que fazia?
— Dormia no mesmo quarto de hotel, na companhia de Bella e de
Verônica.
— Por que está perguntando a ela o que já lhe disse? – Quis saber a
artista.
A policial a ignorou.
— Sabem quais são os meus palpites? Tenho dois: no primeiro deles,
Verônica, você cometeu um crime passional ao saber que Adélia não
deixaria o marido. No segundo, Begônia, você, sem conseguir lidar com o
envolvimento que arrebatou Verônica e Adélia, assassinou-a.
— Nesse caso, você está correndo um risco tremendo aqui. –
Respondeu a assistente.
Manuela encarou as duas. O silêncio era tomado pela agitação
interna e a confusão de sentimentos que se espalhava pelas três.
— Vai passar a noite aqui?
Begônia olhou para Verônica.
— Não decidimos ainda. Por que a pergunta?
A mulher que investigava o crime não respondeu.
— Como explica o fato de termos encontrado a carta, que você nega
se recordar, na sua casa?
— Na minha casa?
— Sim, no meio dos seus discos.
Aquilo não fazia o menor sentido. Adélia teria deixado a carta lá para
que encontrasse? Levantava essa hipótese, quando um pensamento lhe
ocorreu. Vago, disforme, demorando mais do que gostaria para se
concretizar. Então, lembrou-se da noite em que o alarme disparou. Na
madrugada, assonada, não se atentou ao detalhe, tão óbvio agora. Quando
Verônica se levantou para chamar a polícia, as luzes do ateliê estavam
acesas.
— Está me dizendo que alguém invadiu sua casa para plantar uma
falsa prova?
— Não sabia que a carta era prova de alguma coisa. – Levou alguns
segundos, antes de continuar. – Estou dizendo que suspeito de Otávio. Ele
esteve aqui dois dias antes. Adélia morria de medo dele e, quando confessei
a ela que seu temor me contaminava, ela quase desistiu da encomenda.
Insisti para que ficasse e me deixasse terminar um trabalho que estava
gostando de fazer. Não matei Adélia, Manuela. Sequer, tinha motivos para
isso, mas você parece decidida a incriminar uma de nós duas e descarta a
hipótese do crime ter sido cometido pelo marido, ele sim uma pessoa
ciumenta – ela se corrigiu – possessiva, segundo minha cliente. Otávio pode
ter colocado esta carta aqui depois de cometer o crime.
Manuela não informou à investigada – ou à sua assistente – do
andamento da investigação. Mas absorvia o relato, fazendo anotações
mentais, e comparava-as ao que a perícia já tinha apurado, como a hora da
morte e o provável momento em que o assassinato se consumou. Ancelmo
devia estar fazendo ao marido da vítima o mesmo tipo de interrogatório que
conduzia na casa da artista. Depois de conjecturar por um momento, falou:
— Begônia, se não se importa, gostaria que fosse embora.
— Tem uma ordem judicial que me obrigue a isso?
A policial a encarou.
— Não. É só um pedido.
— Não tem esse direito. – Verônica rebateu.
— Gostaria de passar a noite com você. – A policial devolveu,
invadindo-a com os olhos. – Como uma amiga. – Completou, dando uma
piscada irônica a Begônia.
Verônica e a assistente se olharam.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Vou deixar o celular ligado.
Verônica a acompanhou e fechou a porta. Antes, despediram-se com
um beijo na boca. Manuela, do mezanino, assistiu às duas. E foi ao encontro
da artista no ateliê.
— Gostaria de dar uma olhada no seu alarme, se não se importa.
A dona da casa obedeceu, mostrando a ela onde ficava a central. Seus
gestos comunicaram o quanto se sentia desconfortável com a situação.
Manuela, imperturbável, mexeu nos controles e no próprio celular,
examinando tudo com atenção. Verônica, incomodada, deu-lhe as costas e
esperou que terminasse o que quer que estivesse fazendo.
— Estou com fome. Vou comer alguma coisa. Quer me acompanhar?
— Sim, estou faminta também.
Foram até a cozinha. Verônica preparou uma salada de folhas, frutas,
castanhas e parmesão. Abriu um Chardonnay amadeirado. Jantaram num
silêncio entrecortado unicamente pelos insetos, que se faziam ouvir nas
bromélias da montanha em frente. O clima era de desconforto, mas Verônica
sentiu-se relaxar um pouco depois de matar a fome, e do álcool – que ingeria
sem moderação.
— Minha presença a incomoda? – Manuela quebrou o silêncio,
alcançando a mão de Verônica com a sua.
— O que espera de mim? – Retirou a mão.
— Podemos refazer os passos de Adélia outra vez.
Verônica emitiu um som que registrava seu desapreço.
— Receio ter me encontrado num dia em que não estou dispost...
Manuela não deixou que terminasse. Interrompeu-a com um beijo
ávido. A pintora tentou recuar, empurrou-a para longe. Mas, quando se
olharam, a atração foi fatal. Atiraram-se uma na outra.
Não era uma policial, não era alguém que investigava um crime.
Tampouco, estava diante da suspeita. Eram apenas duas fêmeas humanas
atraídas pela necessidade de saciar um desejo primitivo e inadiável. A
policial ameaçava tomar o controle novamente, mas Verônica se esforçou e a
colocou sob si, no deque de madeira que contornava a piscina. Pressionou
suas mãos contra os braços dela e, com a boca, atingiu-a em todos os lugares
que a envergadura de seu corpo permitiu. Mordeu seus mamilos
intumescidos e passeou pelas auréolas, de leve. Depois, chupou cada um de
seus seios como se pudesse tomá-los para si. E, então, escorregou para
baixo, traçando o destino de Manuela. Mergulhou para dentro daquela
mulher por quem se sentia assustadoramente atraída. A policial tremia,
derretendo-se a cada investida que a consumia. E, como um raio escapando à
tempestade, arqueou, gritando de prazer.
Caíram na piscina e deixaram que água lavasse os corpos suados. Em
êxtase, Manuela foi até Verônica e a beijou. Não como das outras vezes, mas
olhando-a de verdade pela primeira vez antes de tocar seus lábios.
Verônica recuou, sentindo-se privada de todas as suas defesas.
Porque já não era ela quem seduzia ou se deixava seduzir. Era a caça,
acuada, indefesa, mas inconformada ao perceber o abate. E não sabia o que
fazer com isso. Deixou que a língua da policial a atravessasse e, aos poucos,
concedeu a sua, agora consciente de seus atos. Subitamente, pensou nas
consequências daquele envolvimento. Estava pronta para escapar, quando
Manuela alcançou o par de algemas que carregava consigo e aprisionou seu
punho esquerdo, fixando a outra ponta em volta de uma das tábuas do deque,
cujo vão permitia a passagem da argola.
Verônica tomou um susto. O movimento ágil e preciso a pego
desprevenida. Sentia como se pudesse ser levada de seu familiar aconchego
para um desconhecido universo atrás das grades. Mas não era essa a intenção
da policial. Ao perceber onde a outra a tinha prendido, quase pôde relaxar.
Antes que desse um suspiro de alívio, um par de mãos fortes afastou suas
coxas para os lados e sentiu uma língua invadi-la por baixo d’água. Não
soube quanto tempo durou. Mas, antes de perder a noção da realidade,
pensou que Manuela tinha mais fôlego do que qualquer uma que já
conhecera na vida. A sensação entre as pernas tomava seu corpo e fazia os
músculos desmancharem. Por vezes, notava o punho apertado, lutando para
sustentar um peso que não encontrava o devido apoio na base. Quando não
pôde mais aguentar, Manuela voltou à superfície, ofegante, substituindo a
boca por dedos maliciosos.
Verônica era uma mulher de vasta experiência sexual. Colecionava
tantas amantes que seu julgamento, pretensioso, não podia imaginar que a
ela tantas sensações novas pudessem ser reveladas. Manuela brincava com
seu corpo, sabendo que o faria implorar para ser saciado. E a pintora,
receosa, entregava-se ao desconhecido.
A policial a torturou por muito tempo. Quando, finalmente, permitiu
que Verônica chegasse ao ápice do prazer, teve de segurá-la em seus braços
para que não se ferisse onde a algema a prendia. Todo seu corpo ficara
sustentado por aquele pequeno pedaço encarcerado.
Aos poucos, o êxtase foi cedendo espaço ao estado de consciência.
Verônica pôde sentir o corpo macio de Manuela apertando o seu,
sustentando-a na pressão contra a parede da piscina. A coxa da policial
colocava-se sob seu sexo e a artista confrontou-se com o atrito entre as peles,
amansado ali pelo gozo, que ainda não tinha sido lavado pela água.
Sorrateiramente, pôs-se a movimentar os quadris para frente e para trás,
numa inútil tentativa de voltar no tempo e ser arrebatada novamente.
Manuela riu, sacana.
— Achei que fosse querer descansar.
Verônica ligou um foda-se para tudo o que poderia advir daquela
aventura inconsequente e aumentou a intensidade dos movimentos, adiando
qualquer repouso. Sua mão livre desceu para encontrar o sexo da outra
inchado e quente. E, com as pernas falhando vez ou outra, empenhou-se em
retribuir o que acabara de receber, sem se desfazer do balanço que a levava a
uma nova explosão.
A madrugada ia alta quando atirou-se na cama. Manuela foi embora e
a deixou marcada e com vontade de prolongar um encontro que sabia não ser
duradouro.
Mal dormiu e foi arrancada da cama pelo alarme insistente que se
sobrepunha ao sono pesado. Demorou mais do que gostaria para abrir os
olhos, descontentes com a invasão da luz golpeando-os. Sentindo que
alguma coisa não estava certa, abriu-os mais um pouco para confirmar o que
já sabia. Não tinha se deitado com as luzes acesas. Encarou o teto, certa de
que, quando o pescoço a fizesse olhar para frente, não encontraria o quarto
como o deixou.
Respirou fundo e aceitou o inadiável. Diante dela, a visão de um
cano fino e escuro revelava-se, à medida que os olhos ajustavam o foco,
como uma arma apontada em sua direção. Atrás do revólver, o marido de
Adélia e a pintura inacabada da mulher que amara dias atrás.
— Boa noite, Otávio. A que devo a honra da sua inesperada visita?
Ele riu, desdenhosamente.
— Acha que vou para a cadeia, quando você é a responsável pelo que
aconteceu com a minha esposa?
— Eu não matei Adélia.
— Você a seduziu.
Verônica engoliu em seco.
— Não é verdade. Adélia veio até mim. Ela contratou meus serviços.
— Nega que foi para a cama com a minha mulher?
Sabendo que qualquer resposta poderia condená-la, procurava uma
estratégia para ganhar tempo. Tentou se lembrar onde tinha deixado o
celular.
“Deve estar na piscina. Droga”.
— Otávio, preciso desligar o alarme, ou os vizinhos não tardarão a
chamar a polícia.
Pego desprevenido, o homem titubeou e ordenou que o fizesse sob a
mira atenta de seu revólver.
— Estou nua. Seria demais pedir um pouco de cavalheirismo para
que eu pudesse me vestir?
— Não sou um cavalheiro, nem você é uma dama, Verônica.
Levante-se. – E, como se ela o obedecesse vagarosamente, a puxou pelo
braço machucado e a empurrou à frente.
Sem alternativa, desceu as escadas que conduziam ao ateliê. Apertou
os botões que cessaram a sirene desagradável. Verônica, os seios cobertos
pelos braços, numa tentativa inútil de se proteger, aguardava o que viria em
seguida.
— Suba.
Ela obedeceu, desejando chegar a qualquer lugar onde encontrasse
uma peça de roupa jogada. Voltaram para o quarto. Ele a jogou na cama e se
atirou sobre ela, golpeando-a com a coronha da arma. O gosto de ferrugem
do sangue invadiu as papilas gustativas. Olhou para ele, desamparada e, pela
primeira vez, com medo real do que poderia acontecer.
— Foi aqui que se deitou com ela?
— Não fui para a cama com Adélia.
— Mentira! – Ele desferiu outro golpe, desta vez com as costas da
mão. Verônica sentiu o queixo esquentar.
— Estou dizendo a verdade. Ela queria presenteá-lo, por isso
encomendou a pintura. – Mentiu, numa tentativa desesperada de se safar.
— Acha que eu desconhecia as intenções dela? Adélia estava
obcecada por você desde aquela maldita exposição em Paris. Essa sua arte
erótica a enlouqueceu. – Gritou, dando um soco na tela e fazendo-a ir ao
chão.
Verônica adiantou-se, num reflexo, tentando chegar a tempo de
impedir a queda da pintura que adorava. Otávio a empurrou de volta para a
cama.
— Otávio, você está fora de seu juízo. Pense nas consequências do
que está fazendo. Se for embora, prometo que ninguém saberá o que
aconteceu aqui.
— A polícia já sabe que o que eu fiz, Verônica. Sou um homem sem
nada a perder.
Contra toda a sua vontade de permanecer calma, seus olhos
encheram-se d’água. Verônica temeu o pior.
— Abra as pernas!
— Não faça isso.
— Abra as pernas – ele gritou, encolerizado.
Ela não obedeceu. Não podia. A vontade de seu corpo impunha-se
sobre todas as outras. Acuada, encolheu-se quando ele se aproximou. Seus
olhos percorreram o quarto, procurando qualquer coisa com a qual pudesse
se defender. Não encontrou. Mas a agitação atraiu os olhos do assassino para
a marca em seu braço.
— O que é isso?
Não podia responder. Ele a odiava e a verdade só aumentaria sua
fúria.
— Eu me machuquei.
Era uma resposta inútil. A marca não deixava dúvidas. Ele a golpeou
com força e repetidas vezes.
— Cretina! Nem enterrou Adélia e já se deita com outra? – Ele
desferia socos no seu rosto, colo, abdômen. De repente, Verônica o sentiu
inchar. Estremeceu. Tentou sair da cama, mirando os espaços que a levariam
até a escada e, finalmente, para fora do ateliê. Não deu tempo. Otávio a
segurou e, tendo a gravidade para ajudá-lo, sobrepôs seu peso sobre o dela.
Verônica tentou se desvencilhar, mas o sujeito era musculoso, corpulento, de
ombros largos e pernas igualmente fortes, embora um pouco finas, em
desproporção à largura do tronco. Sua pele brilhava pelo excesso de
oleosidade e era inchado pela bebida, que consumia numa quantidade
exagerada. O estômago, em proeminente desalinho, encostava-se no corpo
da artista, enquanto ele lutava para mantê-la sob si, ao mesmo tempo em que
abria as calças.
Verônica cerrou as pernas e soube, naquele momento, que lutaria
com todas as suas forças para impedi-lo. Motivada pelo instinto de
preservação de si mesma, atirou-se sobre ele com as mandíbulas
escancaradas, pronta para mordê-lo onde imaginava ser a jugular.
— Para trás, Otávio!
A voz levou alguns segundos para chegar ao cérebro e ser
reconhecida.
— Coloque as mãos para o alto e saia de cima dela. Devagar.
O homem obedeceu. Aliviada, Verônica desviou a atenção, tentando
fazer contato com a policial. Manuela, por um segundo, desviou-se dele para
Verônica. Percebendo a oportunidade, o viúvo agarrou-se à sua arma e
passou os braços pelo pescoço da artista, antes que Manuela pudesse contê-
lo. Atrás dela, Otávio mirou a cabeça de Verônica.
— Largue você a arma, ou eu atiro. – Suas mãos amassavam os seios
de Verônica, que se debatia, impedindo a policial de tomar uma atitude
drástica.
— Está bem. Está bem. Vou colocar minha arma no chão. –
Lentamente, tentando desviar a atenção dele de suas intenções, levava o
revólver na direção do piso de cimento queimado. – Pode se acalmar? – Ela
olhou para Verônica, não para ele.
Não foram as palavras em si, mas a força do olhar que a atingiu.
Verônica aquietou os movimentos, sabendo que podia confiar naquela
mulher. A policial, concentrada, esperou a menor desatenção de Otávio. Ele
acompanhava sua mão. Quando a arma tocou o solo, o assassino desviou-se
para os olhos da policial. E Manuela, atenta, como se enxergasse em câmera
lenta, aproveitou o hiato provocado pelo trajeto do olhar de Otávio, sem
deixar de se comunicar com Verônica. A pintora soube que deveria se
impulsionar para longe. Manuela voltou com a 9mm, que não chegou a
largar, e disparou a duas vezes no sujeito. Com a agilidade dos anos em
campo, alcançou a arma do crime antes que Otávio caísse sobre os lençóis.
Imobilizado pela dor, a policial não teve dificuldades em passar as algemas
por seus punhos, fazendo-o esperar pela ambulância com os braços atrás das
costas.
Enquanto aguardavam as viaturas do corpo de bombeiros e da
polícia, Verônica atirou-se nos braços da policial, implorando pelo seu calor.
Estava com sangue coagulando em vários pontos do rosto e as marcas
avermelhadas começavam a aumentar de tamanho.
— Ei! – Afastou-se. – Você precisa passar pelo exame de corpo de
delito, não posso abraçá-la.
Indignada e exausta, Verônica a encarou.
— Foda-se, Manuela. Não estou pedindo um abraço da policial, mas
um pouco de acolhimento da mulher com quem fiz amor algumas horas
atrás. – E virou-se, enfurecida, para alcançar uma roupa qualquer no closet.
Passou por ela e foi até a piscina procurar pelo celular. Queria ligar para
Begônia e desfrutar de abrigo em braços conhecidos. Tentava encontrar seu
nome na tela, diante da qual, nervosa e com lágrimas escapando dos olhos,
não conseguia identificar o que lia.
O celular foi retirado de suas mãos. Sentiu um par de braços a
evolverem pela cintura. Virou-se. De frente para Manuela, permitiu que os
lábios dela encontrassem os seus, num beijo breve.
— Seu corpo é prova da agressão que sofreu. Minha vontade não
pode passar por cima da obrigação que tenho de cumprir. – E, passando os
dedos pela tela do celular de Verônica, encontrou o nome de Begônia e
entregou-lhe o aparelho.
— Ligue para ela.
Verônica o fez e, em poucos minutos, estava ao lado da assistente,
narrando os últimos acontecimentos. Manuela acompanhava a remoção de
Otávio e conversava com Ancelmo, enquanto outros agentes examinavam o
quarto, fotografando provas e recolhendo evidências. Quando acabaram, a
policial foi até elas e as conduziu para seu carro. Foram para o Instituto
Médico Legal e, depois, para a delegacia. Manuela acompanhou Verônica
em todas as etapas burocráticas e invasivas que ela, inevitavelmente, teve de
enfrentar.
O dia já tinha amanhecido há algumas horas, quando a policial a
levou de volta para casa. Begônia tratou de sumir com a existência de
qualquer indício do ocorrido, desfazendo-se do que restara no quarto da
artista. Foram para a piscina e, lá, a dona da casa se banhou e trocou de
roupa. Desabou sobre uma das cadeiras, esgotada. Begônia e Manuela, numa
situação embaraçosa, não sabiam muito bem que palavras dirigir uma à
outra.
— O que vai acontecer agora?
— Otávio aguardará o julgamento preso. Será indiciado por
homicídio culposo, ocultação de cadáver, tentativa de homicídio e tentativa
de estupro. Na melhor das hipóteses, passará os próximos oito anos preso.
Verônica estremeceu. Esperava se ver livre dele para sempre.
— Como soube que eu estava em perigo?
— Nunca achei que tivesse matado Adélia. Sua hipótese sobre como
a carta dela chegou até aqui me convenceu de que, de fato, alguém tinha
invadido a sua casa.
A expressão de Verônica era de raiva. Seus últimos dias tinham sido
consumidos pelo medo de pagar por um crime que não cometera. Begônia a
confortou, encarando a policial na espera de uma explicação.
— Minha opinião não encontrava respaldo nas evidências, pelo
contrário. O sangue de Adélia no seu ateliê teria sido suficiente para
incriminá-la, se a perícia não atestasse que a carta não tinha sido escrita por
ela.
A conversa não se estendeu por muito tempo. Manuela foi embora.
Verônica e a assistente adormeceram na sombra que, àquele horário, a
montanha projetava sobre as espreguiçadeiras.
Uma semana depois, Verônica e Begônia retomavam os
compromissos do ateliê. A dona da casa já tinha providenciado a
substituição da cama, manchada pelo sangue do assassino de Adélia, e novas
fechaduras guarneciam as portas e portões com mais eficiência contra
visitantes indesejados. Organizando os materiais e abrindo espaço para
começar um novo trabalho, Verônica deteve-se na tela de Adélia. O ar ficou
em suspenso durante alguns segundos ao se lembrar das últimas pinceladas
que fizera dela. Manuela tinha razão: a tela estava pronta. Era um trabalho
belíssimo. Levaria Adélia para a próxima exposição.
O dia de trabalho não rendeu. Verônica decidiu não exigir muito de si
mesma naquele momento. Ao final do expediente, pela primeira vez desde o
incidente, disse a Begônia que queria passar a noite sozinha. A assistente foi
para casa, adiando a conversa que gostaria de ter com ela há dias e que,
diante dos acontecimentos recentes, esperava pelo momento adequado.
Verônica estava inquieta, tentando fazer coisas que costumavam
acalmá-la, como cozinhar ou cuidar do jardim, sem sucesso. Atirou-se na
piscina de roupa, esperando que a água gelada clareasse seus pensamentos.
Saiu de lá e seus dedos digitaram o nome da policial no celular. Sem que se
desse conta do que estava fazendo, ouviu a voz dela responder do outro lado
da chamada.
— Verônica?
— Pode vir até a minha casa?
— Aconteceu alguma coisa?
— Não.
Minutos depois, saía outra vez da piscina, o único lugar onde se
sentia um pouco mais calma, para atender à porta. Manuela entrou sem pedir
licença, invadindo os espaços entre as roupas encharcadas com suas mãos
ágeis. Verônica compreendeu, imediatamente, que não poderia mais viver
sem aquela fúria que se impunha com violência e regozijo sobre a sua.
Naquela noite, fizeram amor e gozaram sucessivas vezes, tendo as telas de
Verônicas a encará-las, invejosas da saciedade das amantes.

Begônia foi para a Itália, a convite de Bella, fazer uma exposição da


qual nunca mais retornou. Manuela e a artista encontravam-se quase todos os
dias. Mas a policial sabia que Verônica nunca seria uma amante exclusiva.
Deixava que ela gozasse dessa liberdade como gostava de desfrutar da sua.
Mesmo assim, eram inseparáveis, unidas por uma força maior do que
qualquer outro vínculo que pudessem ter. Maior até do que a conexão SP x
Milão, que insistia em se manter ativa.

Na casa do cliente que comprara a tela “Amoras”, a mancha


vermelha eternizada escurecia. Era o sangue de Adélia, tão vivo em suas
reações com o oxigênio quanto o ar que Verônica inspirava, naquele
momento, para recuperar o fôlego. Manuela não permitiu, engolindo-a num
beijo do qual a artista não pôde escapar.
About The Author
Elea
Elea é criadora por essência, atriz e roteirista por formação, pintora nas
horas vagas, filha, irmã e tia apaixonada. Namora, assim como Celeste e
Mayara, há 13 anos com a Clara.
Feminista e sapatão, luta, através de seus trabalhos, pelas causas que
acredita. Já fez cinema, novela, teatro, escreveu filmes e peças.
Sente falta de conteúdos lésbicos com finais felizes e quer saber qual
história safadinha mais te cativou. ;)

@elea_mrcr | elea_o@yahoo.com.br
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pessoal; Olívia, repórter e lésbica assumida, que quase viu sua carreira ir
pelo ralo e, há anos, não se relaciona com ninguém; e Jordana Terra, uma
modelo que abala as estruturas por onde passa, denunciando condições
degradantes de trabalho na indústria da moda e falando abertamente sobre
temas considerados tabus.
Passados cinco anos, e com uma amizade que esfriou por conta da
distância, Olívia e Theo se reencontram no Rio de Janeiro. O que Olívia não
esperava era ver a amiga, por quem sempre foi apaixonada, envolvida com
outra mulher, a irresistível Jordana Terra.
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Epigraph
FOGO
LUA DE MEL
ECLIPSE
ESCALENO
A EX
A MELHOR POUSADA DO MUNDO
A CARTOMANTE
PRINCESA
RETRATO
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