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C om a manga de sua
camisa, Jimmy
Harrison esfregou a
janela embaçada da carruagem, procurando enxergar lá fora
qualquer coisa além da violenta tempestade que castigava a estrada
sombria e os campos silenciosos. Os relâmpagos pareciam querer
rachar os céus e, cada vez que um deles iluminava as trevas, o
moço tinha a impressão de ver espantalhos correndo pelas
plantações, como se misteriosamente tivessem sido despertados
para a vida e procurassem agarrar algum dos fazendeiros que os
haviam condenado àquela existência miseranda, fincados à terra
feito um indolente plátano, sujeitos aos rigores do sol, da chuva, do
vento, da concupiscência dos insetos e das bicadas dos corvos. Por
alguns instantes, Jimmy Harrison cochilou, embalado pelo canto
hipnótico dos cascos do cavalo ferindo o caminho repleto de lama,
único som que se podia ouvir, excetuando-se aqueles produzidos
pela chuva. Era tarde e ele achava-se por demais cansado, pois
passara toda a madrugada no hospital, operando os feridos de um
tiroteio e mal pôde pregar os olhos.
Mesmo sentindo-se esgotado, como médico não podia se
furtar a uma emergência. Fora chamado às pressas para fazer o
parto da jovem Anne Lohan, moradora na pequena Watford, aldeia
perto de Londres. Moravam em casas vizinhas na infância e haviam
sido amigos naquela época. Não só cresceram juntos, como
chegaram a ter um pequeno romance na adolescência. Tudo isto
agora era passado. Anne Lohan, porém, não queria outro médico
para o parto de seu filho e, mal começou a sentir as dores de praxe,
despachou um criado para a capital com um bilhete, pedindo para
que Jimmy viesse com urgência à sua residência.
Despertou assustado, como se não soubesse exatamente
em que local se encontrava. Embora estivesse vestindo um robusto
capote, o jovem médico sentia um frio terrível subindo pelas suas
pernas, vindo do assoalho. Não podia acreditar como o cocheiro
suportava toda aquela friagem lá fora, protegido apenas por um
sobretudo e um chapéu. “São os ossos do ofício”, pensou. Jimmy
Harrison enfiou sua mão direita em um dos bolsos do casaco e
retirou dele um velho relógio pendurado por uma corrente. Por
alguns segundos, fixou os olhos no mostrador, mas não conseguiu
ver nada, pois estava muito escuro dentro da carruagem. Pôs-se,
então, a tatear os outros bolsos, pois sempre trazia consigo uma
caixa de fósforos. Após encontrá-la, apanhou um dos palitos e o
acendeu. Um pálido e breve clarão iluminou o interior da cabine e o
jovem médico pôde constatar que era meia-noite.
- Mais rápido, cocheiro, estou atrasado! Gritou um tanto
nervoso, dando duas pancadas em uma das laterais da carruagem
com a ponta de sua bengala.
Ouviu o homem rosnar algo ininteligível, acompanhado pelo
som cavo do chicote no dorso do animal, e teve a impressão de que
as rodas passaram a avançar mais rápidas pelo barro escorregadio.
Porém, no instante seguinte, a carruagem reduziu bruscamente a
velocidade, terminando por parar por completo a sua marcha. Jimmy
Harrison abriu a porta para ver o que havia acontecido e sentiu a
chuva forte lavar a sua roupa. Encostando-a um pouco, bradou para
o cocheiro:
- O que aconteceu?
- Há um acidente bloqueando a estrada. Creio que estão
precisando do socorro de um médico...
Ao ouvir isso, o moço não se fez de rogado e desceu da
carruagem para ajudar as possíveis vítimas. Tão logo pôs os pés na
lama, encharcando-se completamente em virtude da tempestade,
Jimmy Harrison viu aquela cena pavorosa. Pouco adiante, havia
uma velha ponte de madeira sobre um rio, cujo volume das águas
se mostrava bastante encorpado. Dez jardas antes dela, achava-se
uma carruagem tombada, tendo uma roda partida. Um relâmpago
cortara um enorme galho de uma árvore, atingindo em cheio o pobre
cavalo, que se contorcia debaixo dele, estertorando de dor.
Desesperadamente, o cocheiro tentou livrar o animal daquele peso
que lhe comprimia as carnes, mas concluiu que se tratava de uma
tarefa inútil. O homem deu alguns passos até a ponte para ver se
descobria algum corpo por lá, talvez preso à vegetação das
margens. Porém, não encontrou ninguém. Nem sinal do cocheiro
que conduzia aquela carruagem.
Jimmy Harrison aproximou-se do local do acidente ainda um
pouco apavorado, sem saber direito o que fazer. Os gemidos do
cavalo angustiavam-lhe demais e, se ele estivesse carregando
consigo a sua arma, teria sacrificado o infeliz animal imediatamente.
Na certa, ao ver o imenso galho caindo na sua direção, o cocheiro
tentou desviar seu percurso de maneira brusca, tombando o veículo.
O jovem médico deu alguns passos até o desastre, que deveria ter
ocorrido quase naquele momento, pois uma das rodas ainda girava
em seu eixo. Um relâmpago violento explodiu do outro lado do rio,
provocando um susto terrível no moço, que havia caminhado ao
local onde o cavalo jazia agonizando. Incrivelmente, só neste
instante ele se deu conta de que alguém poderia estar preso dentro
da carruagem, necessitando de ajuda. Bastante aflito, escalou com
certa dificuldade a cabine escorregadia, pois esta ficara caída de
lado, com a porta lateral apontada para o céu. Após grande esforço,
ele conseguiu alcançar o topo; porém, no segundo em que ia abrir a
porta, outro relâmpago arrebentou no horizonte, revelando a silhueta
pálida de um homem misterioso, que ali aparecera como que por
encanto.
- Não perca seu tempo. Não há mais ninguém no interior da
carruagem.
Ao ouvir aquelas palavras, Jimmy Harrison pulou de cima da
cabine de maneira bastante desajeitada, mas não chegou a cair
estatelado no chão, como se poderia imaginar. Dirigindo-se ao
desconhecido, indagou:
- Precisa de ajuda, amigo?
- Agradeço muito se me levar até a aldeia de Watford. Tenho
um negócio urgente para resolver naquela localidade.
- Estamos indo justamente para lá e seria uma honra viajar
em sua companhia. Mas, antes, precisamos tirar a carruagem
acidentada do caminho.
O médico chamou o cocheiro e os três empurraram o
veículo tombado um pouco de lado, o suficiente para que eles
pudessem passar. Em seguida, entraram na cabine e recomeçaram
o percurso.
Após terem atravessado cuidadosamente a ponte, Jimmy
Harrison bateu outra vez em uma das laterais da carruagem com
sua bengala e bradou:
- Vamos, cocheiro! Tenho pressa de chegar a Watford!
Em seguida, dirigindo-se àquele homem misterioso, proferiu:
- Sou médico e estou indo fazer um parto. O senhor é de
Londres mesmo?
O sujeito permaneceu calado, limitando-se a endireitar o
chapéu com uma das mãos enluvadas. Depois, pronunciou com voz
lúgubre:
- Não adianta ter pressa agora...
- Por que diz isso?
- Porque tudo já está resolvido para você.
- Não estou entendendo aonde quer chegar...
- Vai entender...
Jimmy Harrison fixou os olhos no estranho companheiro de
viagem, mas estava por demais escuro no interior da cabine, de
maneira que ele não conseguiu ler as intenções que havia por trás
daquela face gelada. Passado alguns instantes de silêncio
incômodo, que pareceu ao jovem médico um imenso período
angustiante, ele bateu com mais fúria na parede da carruagem e
berrou:
- Eia, cocheiro, está surdo? Mais rápido, homem!
A carruagem permaneceu seguindo na mesma velocidade
para seu desagrado. Jimmy Harrison contemplou o sujeito sentado à
sua frente, o qual cofiava a barba rala e grisalha de maneira
irritante. O jovem passou a fitar o castão prateado de sua bengala,
talvez imaginando dar com ela no condutor do veículo, quando ouviu
a voz do seu interlocutor como se ele tivesse lido os seus
pensamentos.
- A culpa não é do cocheiro, pois não há mais ninguém
conduzindo esta carruagem.
Ao ouvir aquelas palavras, um calafrio gélido percorreu a
espinha cervical do médico. Com mil diabos! Já havia se
arrependido de ter lhe oferecido condução até a aldeia de Watford.
Com a voz um tanto aterrorizada, indagou:
- O que você quer dizer com isso?
- Exatamente o que ouviu.
Jimmy Harrison abriu a porta com cautela e esticou-se de
maneira perigosa para fora. O vento ardido arrancou-lhe o chapéu,
que ficou caído na lama da estrada e a chuva aproveitou para lhe
molhar os cabelos. Apenas então se deu conta do que acontecia.
Deus do céu! Não havia ninguém conduzindo o cavalo, como o
sujeito dissera.
Tomado por um terror indescritível, o médico bateu a porta e
retornou para o seu lugar no assento até onde estivera há pouco,
tendo os cabelos escorrendo. Tão logo recuperou o fôlego,
perguntou:
- Quem é você? Como podia saber disso?
O misterioso ser nada respondeu, apenas apanhou um
cigarro em um dos bolsos e o acendeu com um toque em sua
língua. Em seguida, soltou uma baforada na direção de Jimmy
Harrison, dizendo:
- Quem você acha que sou?
- O demônio?
Ele riu de modo debochado, chegando mesmo a engasgar
com a fumaça.
- Vocês humanos imaginam sempre o pior. Pense em mim
como um anjo que veio lhe ajudar...
- Ajudar-me?
- Exato! Na verdade, tenho uma proposta para você.
- O que quer de mim? Interrogou o médico apreensivo.
- Ainda não compreendeu? Não faz ideia de quem seguia
naquela carruagem acidentada?
Novamente, Jimmy Harrisson experimentou um arrepio nas
costas. A sua pele estava fria como uma truta e através de suas
têmporas escorriam gotas de suor gelado. Quis fugir dali, abrindo a
porta e se lançando através dela na estrada, mas a ideia lhe
pareceu bastante estúpida. Respirou fundo para tomar coragem e
proferiu:
- Pensei que fosse você quem seguia naquele veículo.
- Meu caro, eu não preciso de nenhum meio de transporte
para me locomover. Pense bem! Aquela carruagem não lhe pareceu
familiar?
- Talvez um pouco semelhante a esta...
- Um pouco semelhante?
- Sim. Quem sabe fora feita pelo mesmo construtor...
- Por que não aceita o óbvio? É tão difícil assim?
Jimmy Harrison respirava agora com dificuldade e a muito
custo conseguia engolir. Achava-se transido de pavor e não queria
acreditar nas evidências. Estaria morto? Esta ideia gelou todas as
gotas de sangue que lhe corriam nas veias. Horrorizado, afirmou a
seu interlocutor macabro:
- Agora me recordo bem. Era uma carruagem igual a esta...
- Pois lhe digo que era esta...
Tais palavras encheram-no de terror e Jimmy Harrison
agarrou o assento com força, como se procurasse se certificar de
que este era real e a carruagem ainda continuava lá. Diante do
médico, aquele ser abominável encarava-o com uns olhos vazios
feito um poço seco. Jimmy sentia tanto medo, que somente
conseguiu emitir duas palavras num tom muito baixo:
- Não entendo...
- Então vou lhe explicar, pois ainda temos alguns minutos.
Peço a gentileza de me dizer que horas são no seu relógio...
O rapaz apanhou-o em um dos bolsos, mas não encontrou
os fósforos em parte alguma. Após breves instantes apalpando-se,
disse um pouco constrangido:
- Não tenho fogo para iluminar o mostrador. Devo ter
deixado a caixinha cair quando desci...
- Isto não é problema.
Mal acabou de pronunciar tal frase, o homem estalou os
dedos e um relâmpago iluminou o interior da carruagem, mostrando
que faltavam cinco minutos para a meia-noite. A cada um destes
feitos extraordinários, Jimmy Harrison ia se tornando cada vez mais
aterrorizado. Amaldiçoava o nefasto minuto em que se oferecera
para levá-lo até a aldeia de Watford e, com toda certeza, aquele ser
infernal estava ali para lhe causar algum dano. Quanto a isso, o
jovem médico tinha certeza absoluta.
- Que estranho! Este relógio não deve estar funcionando
direito. Juro que antes de parar, vi os ponteiros dele marcando meia-
noite...
O sujeito descalçou as luvas e, através da penumbra
lúgubre que inundava o ambiente, Jimmy Harrison conseguiu
observar que a mão dele era descarnada, apresentando dedos
feitos apenas de ossos. Quis gritar de horror, mas a sua voz
permaneceu atada à garganta. Deus do céu! Que diabos seria
aquele ser horrendo?
- Não há nada para se estranhar. O relógio estava certo
antes do acidente e continua certo agora...
- Como pode ser isso?
O homem riu com seus dentes amarelados, recobertos por
uma camada espessa de um tártaro milenar. Depois, ajeitou a
gravata com os dedos ossudos e disse:
- Neste momento, estamos no que se pode ser chamado
uma fenda do tempo...
- Como assim?
- Houve uma regressão temporal. Na verdade, você
encontra-se agora a poucos minutos antes do acidente...
Bastante assombrado e quase sem poder respirar, Jimmy
Harrison indagou:
- Mas como isso é possível?
- Às vezes, acontece. Nem tudo é perfeito na engenharia
divina e é comum a falta de sincronia em dimensões temporais
paralelas. Não tente entender a morte se, enquanto vivo, você foi
incapaz de compreender a própria vida.
Aquela última frase caiu nos ouvidos do moço feito uma
martelada. Sentia o seu coração pulsando acelerado, como se
procurasse descobrir alguma brecha para escapar do peito. Com os
olhos esbugalhados, interrogou:
- Estou morto?
- Ainda não. A bem dizer, você vai morrer daqui a pouco,
quando o acidente ocorrer de fato. Mas ainda pode escapar, se
quiser. Por isto estou aqui, para lhe fazer este obséquio...
- Em troca de minha alma, Satanás?
- Já disse que não sou o demônio. Se deseja mesmo saber,
alguns me chamam de Morte, por falta de um nome melhor. Mas
prefiro ser visto como uma necessidade benéfica para a
humanidade na complexa arquitetura da criação, com funções
sanitárias e profiláticas bem definidas. Porém, isto não vem ao caso
agora. Está interessado na minha ajuda?
- Estou interessado em viver! Que vai acontecer comigo?
- Ainda não compreendeu? Daqui a instantes, exatamente à
meia-noite, um relâmpago atingirá o galho de uma árvore, que cairá
sobre a sua carruagem, matando-o.
Um terror supremo estampou-se na face gélida de Jimmy
Harrison. Suas mãos tremiam deveras e seus olhos haviam se
injetado para fora das órbitas. Fez um esforço terrível para controlar
suas emoções, de maneira que ainda conseguiu balbuciar algumas
palavras:
- Como pode me ajudar?
- Dando-lhe uma última oportunidade para salvar a sua vida.
- Ainda é possível mudar o que está escrito?
- Claro! Basta você assim desejar. Porém, deve saber que a
Morte nunca volta de mãos vazias. Proponho-lhe um acordo de
cavalheiros. Poupo a sua vida, em troca da vida de Anne Lohan, a
mulher com quem você iria se encontrar, e de seu filho. Basta você
apertar a minha mão, que o acordo será fechado. Você continua
vivo e eu ganho em dobro...
Aquela proposta deixou Jimmy Harrison atordoado. Sentia o
seu cérebro latejar, como se ele tivesse sido posto num moedor de
carne. Que fazer? Em poucos segundos estaria morto ou seria o
responsável pela morte de dois inocentes... A carruagem corria
célere em direção a seu destino fatal. Inclusive, o médico sentiu as
rodas acelerarem, como havia pedido ao cocheiro, instantes antes
do acidente. A Morte estendeu-lhe sua mão descarnada e bradou:
- Rápido! A ponte em que a carruagem se acidentou já está
se aproximando. Depois disso, nada mais poderá ser feito...
Jimmy Harrison abriu a porta e constatou aterrorizado que
era verdade. Tinham retornado para o mesmo local e não havia
nada mais que ele pudesse fazer para impedir a tragédia. Ou havia?
Aflito, sem mais pensar nas consequências, ele bateu a porta da
carruagem e regressou ao seu lugar. No exato instante em que iam
passar pela ponte, ele apertou a mão da Morte e um relâmpago
formidável explodiu nas proximidades, inundando tudo ao redor com
um clarão espetacular. Quando seus olhos passaram a enxergar
novamente, ele achava-se sozinho no interior da carruagem. Mais
uma vez, abriu a porta e verificou que o cocheiro se encontrava no
seu lugar de costume, chicoteando os animais.
- Falta muito para chegarmos?
- Estamos quase lá.
Vinte minutos depois, a carruagem parou diante do local
indicado pelo médico. Ele apanhou a sua maleta e despediu o
cocheiro, após lhe pagar a quantia combinada. A chuva havia
diminuído bastante e agora não passava de quase uma garoa.
Jimmy Harrison permaneceu algum tempo na rua, contemplando o
velho prédio de três andares e tijolos aparentes gastos pelo tempo.
Alguns ratos corriam por entre o lixo acumulado na calçada,
indiferentes aos olhares humanos. Por um instante, o jovem médico
sentiu as pernas bambas, temendo o que poderia descobrir no
quarto de Anne Lohan. Afinal, aquele encontro sinistro ocorrido há
pouco na carruagem teria acontecido de fato ou tudo não passara
de um sonho, um pesadelo, uma alucinação? Finalmente, ele tomou
coragem e, abrindo a porta do prédio, pôs-se a subir os degraus
gelados e desgastados pelos anos de uso. Uma escuridão
cadavérica deitava sombras funéreas sobre tudo, inclusive, sobre os
pensamentos do moço. A cada passo que ele dava, sentia o
remorso lhe roendo ainda mais o peito, feito uma ninhada de
ratazanas. Um cheiro terrível de coisa podre parecia exalar das
paredes. Um cheiro terrível de coisa podre parecia exalar de dentro
dele, de sua alma. E foi com a alma exalando sordidez e podridão,
que Jimmy Harrison colocou seus dedos sobre a maçaneta da porta
de Anne Lohan, que Jimmy Harrison girou-a de maneira decidida e
que Jimmy Harrison ali entrou para nunca mais ser visto.
Um drinque com Satanás
A o sentir os primeiros
pingos de chuva,
Mike cobriu
cabeça com o capuz de seu agasalho e atravessou correndo a
movimentada avenida. Como não olhou para os lados, quase foi
a
O velho médico
desligou o telefone e
caiu sobre o sofá,
pois sentia as pernas bastante fracas. Aquela notícia o pegara de
surpresa e, por alguns instantes, permaneceu meditando no escuro
a respeito da atitude que deveria tomar. Apanhou um dos charutos
num belo estojo de madeira lavrada que se achava na mesinha ao
lado, riscou um pau de fósforo e mascou o fumo, soltando ampla
baforada de fumaça. Talvez o telefonema recebido há pouco não
passasse de um trote. O seu nome constava das listas telefônicas e
era possível que alguém estivesse apenas querendo se divertir com
ele. Por outro lado, a voz que ouvira no aparelho lhe parecera séria
e sincera, como se já conhecesse seu interlocutor há muito tempo.
O médico ergueu-se com alguma dificuldade, seus joelhos
estalaram, e ele caminhou devagar até a janela da frente. Com uma
das mãos, abriu a cortina e ficou observando a tempestade lá fora
lavando as casas, os muros, as ruas. As águas transbordavam das
sarjetas e corriam encorpadas por sobre as calçadas. Já era muito
tarde e sair com aquele tempo horrível não lhe agradava em
hipótese alguma. Porém, o misterioso homem estava lhe oferecendo
trezentos mil dólares em dinheiro. E esta não era uma importância
para se jogar fora.
O sujeito dissera-lhe que pagaria trezentos mil dólares por
uma operação. Não quis entrar em detalhes por telefone, mas
afirmou que se tratava de um procedimento simples e corriqueiro.
Estaria aguardando o médico no local indicado dali a uma hora.
Nem havia necessidade de levar qualquer instrumento cirúrgico,
pois tinham à disposição tudo de que precisavam.
O doutor Matos puxou a cortina e subiu as escadas,
dirigindo-se para o seu quarto. Apanhou um relógio de pulso dentro
da gaveta da cômoda e viu que ainda restavam quarenta e cinco
minutos para o horário combinado. Se quisesse chegar a tempo,
deveria se apressar. Talvez o homem fosse fugitivo da polícia e, por
isso, não poderia procurar um hospital, pois seria obrigado a dar
muitas explicações embaraçosas. Quem sabe, a referida cirurgia
não passasse da extração de uma bala de revólver. Trezentos mil
dólares era muito dinheiro para um serviço tão trivial, que não
levaria mais do que quatro horas entre sair de seu domicílio e
retornar para ele. Se fosse um trote o que perderia? Além do seu
tempo, apanharia um pouco de chuva e teria o transtorno de sair do
aconchego de seu lar naquele horário avançado da noite. Na pior
das hipóteses, encontraria o lugar fechado e voltaria para casa fulo
da vida por ter caído em tal engodo.
Enfim, chegou à conclusão de que valeria a pena apostar
naquele serviço. Ele apanhou sua roupa branca no armário, vestiu-
se rapidamente e desceu as escadas do antigo sobrado vazio. Teve
de correr até o portão a fim de abri-lo, mas acabou se molhando
bastante por causa da chuva. Ligou o carro, acendeu as lanternas e
deu a ré para tirá-lo da garagem. Foi obrigado a descer do
automóvel mais uma vez para fechar o portão e amaldiçoou o dia
em que um vendedor lhe ofereceu um sistema elétrico de abertura e
fechamento automático, mas ele recusou.
O local indicado era um antigo hospital particular, que se
encontrava desativado há muitos anos em virtude da má
administração de seus proprietários. Com a morte destes, os filhos
não se interessaram pelo negócio, que acabou fechando as portas.
O prédio ainda conservava em seu interior todas as instalações,
mas permanecia abandonado, aguardando que a justiça decidisse o
que caberia a cada herdeiro.
O hospital ficava do outro lado da cidade e o doutor Matos
conhecia bem o caminho, pois ali trabalhara por mais de vinte anos.
Tão logo se formara em Medicina, fora convidado para ocupar uma
vaga de cirurgião geral naquele estabelecimento. Enquanto dirigia
pelas ruas alagadas da cidade, um filme começou a passar pela
cabeça do velho médico. Era muito moço, quando se formou e foi
contratado para trabalhar em tal centro cirúrgico. Naquele tempo,
embora ainda fosse um rapaz sonhador, já tinha o coração
endurecido pela vida. Inúmeros foram os pacientes seus que
acabaram falecendo em virtude dele não ter se dedicado tanto
quanto cada caso merecia. Muitos dos familiares o acusaram de
negligência. O jovem médico não se importava com a dor alheia,
pois sabia que ela fazia parte de sua profissão e, a cada novo óbito,
consolava-se com o pensamento de que aquela teria sido a vontade
de Deus.
Pouco mais de trinta minutos após de saído de sua casa, o
doutor Matos chegou ao velho hospital abandonado. O prédio
encontrava-se agora em muito mau estado de conservação e não
lembrava em nada os seus tempos de glória, quando ali eram
atendidas dezenas de pessoas todos os dias. A tempestade
continuava lavando tudo e a noite escura ajudava a criar um clima
sombrio. Tão logo o médico desligou o motor e apagou os faróis do
seu carro, percebeu que dentro do velho edifício não havia uma
única luz acesa. Com mil diabos! Teria sido de fato um trote?
Excetuando-se o ruído dos pingos da chuva sobre o capô do
automóvel, não era possível escutar mais qualquer som. Como se
achava um tanto nervoso, a sua testa tornara-se úmida e ele
aproveitou para enxugá-la com um lenço branco que retirou de um
bolso. Nesse meio tempo, refletiu sobre o que deveria fazer e
chegou à conclusão de que o melhor a ser feito seria descer para
verificar se encontrava alguém ali. Afinal, já havia saído de casa
mesmo e existia uma possibilidade, ainda que remota, dele
descobrir lá dentro o homem que lhe contratara para realizar o
serviço.
Desceu apressadamente do veículo, metendo os dois pés
numa poça de água suja. Merda! Ainda bem que não estava com
seus sapatos novos de cromo alemão. Correu até debaixo de uma
marquise, que dava acesso à porta principal do edifício e pôs-se a
observar o interior do velho hospital através das janelas de vidro
cobertas de pingos da chuva, que escorriam de cima a baixo. Lá
dentro, tudo se encontrava na mais completa escuridão, lembrando
uma cripta gelada e funérea. O doutor Matos forçou a maçaneta,
mas a porta estava trancada. Por várias vezes, bateu nela com os
punhos cerrados. Ninguém apareceu. Quando já tinha resolvido ir
embora, amaldiçoando aquele maldito sujeito que lhe passara o
trote, lembrou-se de que existia outra entrada na parte de trás do
prédio. Não custava nada tentar. Os trezentos mil dólares
continuavam lhe coçando seu espírito ganancioso. Movendo-se com
o corpo colado o máximo que podia junto às paredes do edifício,
para se molhar o mínimo possível, o médico chegou aos fundos do
velho hospital com a respiração um tanto alterada. Era já certo
medo que começava a lhe pesar sobre os ombros. Lá atrás,
diversas árvores cinzentas e pálidas farfalhavam suas folhas
molhadas ao sabor das rajadas de vento. Ele alcançou o pequeno
alpendre e, com algum receio, o coração batendo acelerado no
peito, girou a maçaneta. Para sua surpresa, as dobradiças chiaram
e a porta abriu-se lentamente, como se soprada por um fantasma.
Isto fez o doutor Matos chegar à conclusão de que o homem
que lhe telefonara poderia mesmo se encontrar lá dentro. Agora se
lembrava que o sujeito se chamava William. Ele deu dois ou três
passos para o interior escuro do prédio e passou a chamar por seu
nome. Não obteve qualquer resposta. Apenas o eco de sua voz
retornava aos seus ouvidos, apresentando um medonho timbre
metálico. O velho médico retirou os óculos e os enxugou na barra da
camisa, com esperança de enxergar melhor, mas não obteve
qualquer resultado satisfatório. Na verdade, procurava se
tranquilizar um pouco, pois se achava bastante nervoso. Em seu
íntimo, queria acreditar na história contada por seu interlocutor, ou
seja, que ele fora chamado até ali a fim de realizar uma cirurgia
trivial. Porém, aquele ambiente lúgubre inundava o seu espírito de
terror. Que o aguardava lá dentro? Talvez até mesmo marginais
armados com facas.
Enchendo-se de coragem, ele caminhou mais alguns passos
naquele ambiente tomado pelas trevas. De súbito, um carro passou
pela rua deserta, lançando as luzes do farol para o interior do
edifício. Foi tudo muito rápido, mas o doutor Matos pôde enxergar o
corredor bastante comprido, com inúmeras portas fechadas em
ambos os lados das paredes. Estas se encontravam bastante
marcadas pela umidade, exalando um cheiro fétido de bolor. Pouco
depois, as suas vistas começaram a se adaptar um pouco melhor à
escuridão, de maneira que ele passou a ver algumas sombras
pálidas, ainda que miseravelmente. Mesmo andando devagar, os
seus sapatos molhados iam produzindo sons tétricos e o eco dava-
lhe a impressão de que alguém estava caminhando atrás dele. Por
mais de uma vez, estacou os passos e, voltando sua cabeça,
permaneceu observando a chuva caindo lá fora, temeroso. De
repente, pensou ter ouvido qualquer coisa do outro lado de uma
porta e a possibilidade de ganhar os trezentos mil dólares o encheu
de coragem. A sua respiração tornou-se mais ofegante e ele dirigiu-
se até ela. Com o punho fechado, bateu com os nós dos dedos,
chamando:
- William, você está aí?
Como não obteve resposta, abriu a porta. No mesmo
instante, uma ratazana enorme saiu correndo de lá dentro e passou
por entre as suas pernas. Ele deu um pulo nada acrobático e só não
caiu no chão, porque conseguiu se apoiar na maçaneta. O susto
apanhado foi tão grande, que o doutor Matos ali permaneceu por
mais de cinco minutos, procurando recuperar o fôlego. Com mil
demônios! Mais uma desta e eu enfarto!
Tão logo se recompôs, decidiu seguir até o final do corredor.
Sabia que ali existia uma escada que levava ao segundo andar e
era provável que William o estivesse esperando lá em cima. Neste
instante, um tremendo relâmpago iluminou o recinto, acompanhado
por um violento trovão. O coração do velho médico disparou outra
vez, pois já se encontrava completamente aterrorizado pelo medo.
Por um momento, quis fugir dali, daquela catacumba macabra, e
retornar para o aconchego de seu lar. Mas os trezentos mil dólares
não saíam diante de seus olhos. Resolveu seguir em frente.
Pé ante pé, começou a subir lentamente a funérea escada.
De vez em quando, apenas para ouvir uma voz humana, chamava
pelo nome do outro. Quando chegou ao piso superior, constatou que
o ambiente ali se achava ainda mais escuro do que lá embaixo.
Estava tão apavorado, que se alguém encostasse um dedo em suas
costas, morreria fulminado pelo terror. O doutor Matos viu que havia
dois caminhos a seguir. Continuar subindo as escadas para o
terceiro andar ou inspecionar aquele corredor escuro. Decidiu-se
pela segunda alternativa. Lembrava-se que ali era a ala da
enfermaria. Ele abriu uma das portas e viu que todos os móveis
estavam cobertos por lençóis brancos, lembrando fantasmas. Ao
entrar naquela sala, seus olhos perceberam que a escuridão ali não
era tão formidável quanto no corredor, pois existia uma janela que
dava para a rua, através da qual se coava uma luminosidade sinistra
e mórbida. Para matar sua curiosidade, levantou alguns dos panos
brancos, mas não encontrou nada além de velhos móveis, camas da
enfermaria e estantes baixas. Definitivamente, William não se
encontrava neste cômodo. Ele caminhou até a janela e permaneceu
alguns instantes observando a chuva caindo de maneira violenta lá
fora. Há tempos que não via uma tempestade malhar a cidade com
tamanha intensidade. As nuvens escuras congestionavam o céu
pesado e pareciam despejar uma enxurrada de pingos pretos sobre
os homens. Lá embaixo, o seu carro continuava estacionado no
mesmo lugar. Só então notara que tinha deixado uma das janelas
abertas. Inferno! A esta hora, o interior do veículo já estaria
completamente inundado. O velho médico virou-se e decidiu
procurar o sujeito em outra sala. Quando regressou para o corredor,
porém, deparou-se com um vulto sepulcral lhe espreitando os
passos. O susto apanhado assim de repente foi tão intenso, que ele
não conseguiu conter um grito gutural que lhe escapou das
entranhas da alma. Criatura das profundas, quer me matar do
coração? Contudo, nada conseguiu dizer e permaneceu observando
o indivíduo com as pernas tremendo.
- Desculpe-me se o assustei. Deve ser o doutor Matos. Sou
William e estávamos esperando por você... ansiosamente.
O médico estendeu-lhe a mão para cumprimentá-lo. Embora
continuasse escuro, teve a impressão de que já o conhecia de
algum lugar. Quis inquiri-lo a respeito disso, mas ainda se achava
com a voz amarrada ao peito em virtude do susto apanhado.
Portanto, limitou-se a sorrir e acompanhar o homem, que se dirigiu
ao terceiro andar.
Assim que subiram as escadas e chegaram ao último piso
do edifício, o doutor Matos ficou confuso com o que viu. Para sua
surpresa, havia ali naquele corredor lúgubre inúmeras pessoas
sentadas em bancos compridos, como se aguardassem na
escuridão o momento de serem chamadas. Lá no fundo, existia uma
única sala iluminada, cuja luminosidade se esparramava através da
porta, deixando aquele andar relativamente mais claro do que os
demais. Como não vira tal luz da rua? Enquanto caminhavam por
entre toda aquela gente, o médico teve a impressão de conhecer
muitos deles e, tomado por uma curiosidade insofismável, indagou:
- O que fazem estas pessoas num hospital abandonado?
- Estão aguardando a passagem. São espíritos
atormentados, que ainda não encontraram descanso, pois morreram
antes do tempo por negligência médica.
Os olhos do doutor Matos injetaram-se para fora das órbitas.
Sentiu um calafrio gélido escorrendo-lhe por dentro da medula, a
garganta seca, sem conseguir engolir. Como é que é? Com muita
dificuldade, pôde apenas balbuciar:
- Você disse “morreram”?
O homem não respondeu. Eles haviam chegado diante
daquela sala iluminada. Afastando algumas pessoas da frente,
William conduziu o médico para o seu interior.
- Por aqui, doutor...
Agora Matos se lembrava de forma bastante clara. Fora
naquele quarto que trabalhara por mais de vinte anos, operando
seus pacientes. Há quanto tempo não entrava ali. Surpreendeu-se
ao ver o grande número de pessoas que se aglomeravam lá dentro.
Eram rostos conhecidos, mas ele não conseguia se lembrar de onde
já os tinha visto. No centro da sala, existia uma cama com lençóis
brancos, como se já estivesse preparada para a cirurgia. William
conduziu o médico até aquele lugar sem dizer uma palavra.
Estranhando situação tão inusitada, o doutor Matos indagou:
- Toda essa gente vai assistir à cirurgia?
- Mais do que isso. Eles irão participar dela...
O médico não entendeu o que seu interlocutor quis dizer
com aquilo. De repente, porém, seu rosto confrangeu-se, contraiu-
se, congestionou-se, tornando-se lívido, como se o sangue do seu
corpo tivesse sido drenado. Deus do céu! Só agora ele havia
percebido que todos os presentes deslizavam no ar, flutuando feito
fantasmas. Subitamente, alguém veio por trás dele e lhe deu uma
violenta pancada na cabeça, de maneira que caiu no chão sem
sentidos.
Quando retornou a si, achava-se deitado naquela cama,
com muitas pessoas em volta a observá-lo. A sua primeira reação
foi tentar levantar-se dali, mas se encontrava muito bem amarrado
ao leito cirúrgico.
- Soltem-me daqui! Gritou enlouquecido.
- Não adianta continuar se debatendo, pois não vai
conseguir escapar. Agora, chegou o momento de ajustarmos as
contas com você.
- O que querem de mim, afinal?
Segurando um bisturi, um deles antecipou-se aos outros e
disse:
- Ainda não compreendeu? Cada um de nós morreu na
mesa de operação, ou poucos dias depois, por negligência sua.
Falecendo antes do tempo, fomos obrigados a permanecer errando
pelos campos da morte, sem termos um minuto de sossego desde
então. Agora, você irá pagar pelo mal que nos fez. Aqui viemos para
realizar em você as mesmas cirurgias que executou em nós sem
sucesso.
- Com a diferença que iremos fazer tudo sem anestesia.
Explicou um dos presentes.
Os olhos do velho médico esbugalharam-se de horror e ele
passou a se debater com todas as forças, procurando inutilmente se
livrar das cordas. Neste exato momento, vários homens agarraram-
lhe, enquanto outros começaram a proceder com as cirurgias. Um
deles cravou o bisturi no pescoço do miserável, que urrou de dor
desesperadamente. O sangue jorrou pelo talho de forma abundante.
Outros abriram-lhe a boca e lhe extirparam a língua. Enquanto lhe
arrancavam os olhos, fenderam-lhe o peito e o ventre, cujas
vísceras escorreram para o chão. Uns cortaram-lhe os dedos dos
pés, ao passo que outros começaram a lhe costurar a barrigada
aberta, já tendo sido extraído diversos órgãos. Em pouco tempo, os
gritos cessaram e a sala foi ficando vazia. Ao cabo de alguns
minutos, a luz se apagou misteriosamente e o velho hospital
abandonado tornou ao seu natural estado de letargia. Lá fora, a
chuva continuava lavando tudo, as casas, os prédios, as ruas, os
vivos e os mortos. Os mortos...
O cuco maldito
S imão, o
se sentado em sua
banqueta de trabalho, debruçado sobre um relógio de bolso com
velho
relojoeiro, encontrava-
Morte nihil certius est, nihil vero incerta quam ejus hora[1]
Não entendeu o sentido, mas anotou o texto em um pedaço
de papel para perguntar a um padre amigo seu, latinista emérito, o
que significavam aquelas palavras. Em seguida, colocou novamente
o relógio no prego da parede e foi lavar as mãos num banheiro que
havia ali ao lado. Quando retornou e já ia apagar a luz da loja para
subir, seus olhos colidiram ainda mais uma vez com o cuco. Por
alguns segundos, sua respiração estacou, seus olhos esbugalhados
por trás dos óculos de grossas lentes. O relógio estava funcionando!
E agora Simão se lembrava perfeitamente de que não havia lhe
dado corda. Ele caminhou até o local para pará-lo. Nesse instante, a
portinhola do cuco se abriu e o demônio saiu de seu recanto,
exibindo na face vermelha um olhar que parecia ainda mais maligno
do que aquele apresentado durante a tarde, quando o vira pela
primeira vez. Aquela figura diabólica riu por dez vezes de maneira
macabra, indicando as dez horas marcadas pelos ponteiros em
forma de tridente, e regressou para dentro do relógio. Ao contemplar
aquilo, o velho Simão assustou-se terrivelmente e seu coração
começou a bater acelerado dentro do peito. Não podia crer no que
acabara de observar. Como aquele demônio funéreo podia sair do
local onde se encontrava, se estava faltando a mola principal que
lhe permitia fazer tal movimento? De repente, o relógio parou
misteriosamente de funcionar. Isto deixou o relojoeiro ainda mais
desconcertado. Amanhã, teria de abri-lo outra vez, para ver se
descobria qual era o problema.
Tão logo subiu as escadas, Laura lhe perguntou:
- Deus do céu! Que risadas lúgubres foram estas? Só de
ouvi-las, senti um calafrio medonho escorrendo pela minha espinha
e tive um prenúncio de desgraça. Não vá me dizer que foi aquele
relógio maldito?
- Exato. É a maneira como ele marca as horas... no caso,
dez horas. Em seguida, parou de funcionar misteriosamente...
- Como acontece, quando morre alguém? Disse a mulher.
O marido riu:
- Já ouvi muitas histórias sobre isso, mas deixe para lá, é
crendice do povo...
E foram tomar um chá que Laura tinha feito.
Após ler durante algum tempo deitado na cama, Simão
virou-se de lado, acomodando melhor sua cabeça sobre o
travesseiro. Tinha o sono fácil e, em poucos minutos, já estava
sonhando. Subitamente, ouviu pancadas nervosas que pareciam vir
lá de baixo e acordou assustado. Sua mulher também escutou e,
acendendo a luz do quarto, indagou:
- O que foi isso?
O marido nem teve tempo de responder, quando o casal
ouviu novas batidas. Desta vez, tiveram certeza de que alguém
chamava lá na porta.
- Quem será a esta hora? Perguntou a mulher aflita.
- Vou ver! Respondeu o relojoeiro.
Ele calçou seus chinelos, vestiu um casaco e desceu.
Quando abriu a porta, viu que ali se encontravam os três amigos
com quem seu filho havia saído naquela noite. Todos se achavam
muito nervosos e tremiam apavorados, como se tivessem visto uma
assombração há pouco. O velho relojoeiro estendeu um sorriso
manso no rosto e disse:
- Ah, são vocês...
Um deles se adiantou ao grupo e afirmou que eles
precisavam lhe falar. O tom de sua voz era sério demais para um
jovem que vinha de uma noitada entre amigos, o que deixou Simão
um pouco apreensivo. Ele pôs-se ao lado da porta e convidou os
rapazes para entrarem, pois poderiam ficar resfriados naquela
friagem.
- Vou ser direto, pois nestas situações não há meio termo.
Não trazemos notícia boa e o senhor precisará ser forte. Houve uma
briga e seu filho foi esfaqueado...
Os olhos arregalados do velho cravaram-se em seu
interlocutor feito dois punhais, como se desejassem saltar para fora
das órbitas. Fez-se um silêncio angustiante, onde só se ouvia o
tiquetaquear de alguns relógios. Em seguida, Simão proferiu com
voz trêmula e minúscula:
- Que me diz?
O rapaz enxugou com os dedos as vistas molhadas e disse:
- Lamento... Tom perdeu muito sangue e morreu a caminho
do hospital...
Tão logo absorveu aquela notícia terrível, Simão caiu sobre
uma cadeira e cobriu os olhos com uma das mãos, como se
desejasse chorar escondido. No mesmo instante, sua mulher entrou
no recinto chorando histérica, pois estava ouvindo tudo lá no alto da
escada. O casal abraçou-se profundamente comovido e, por alguns
instantes, eles permaneceram lavando-se em lágrimas. Laura
soluçava inconsolável e batia com os punhos nas costas do marido,
que procurava confortá-la como podia. Ao cabo de algum tempo, os
ânimos serenaram um pouco, até que Simão perguntou:
- A que horas foi isso?
- Às dez horas, senhor. Respondeu um dos rapazes.
Instintivamente, os pais de Tom olharam ao mesmo tempo
para o antigo cuco, que permanecia pendurado na parede, calado
como uma cobra, marcando dez horas.
- Ele anunciou a morte de nosso filho! Exclamou Laura com
os lábios gelados de horror.
- Não diga tolices, você está nervosa...
E ela voltou a chorar.
Os três moços despediram-se e partiram, deixando-os a sós
com aquela dor exponencial. Pouco depois, Simão saiu de casa
para tomar todas as providências necessárias. O enterro aconteceu
dali a dois dias, após o corpo ter sido velado pelos amigos. Como
não podia deixar de ser, foi muito triste e bastante concorrido, pois
Tom era querido por toda gente. A primeira coisa que Simão fez,
quando voltou a trabalhar, foi tirar o pêndulo e os pesos da corda do
antigo cuco, para que ele não pudesse mais funcionar. Meteu tudo
dentro de uma gaveta, por via das dúvidas. Não que acreditasse
nestas superstições, mas não convinha arriscar.
Certa noite, tendo passado uma semana da morte do filho,
aconteceu nova tragédia. Simão e sua esposa ainda se
encontravam muito tristes, estraçalhados pela dor cabal que lhes
devorava a existência. Eles já haviam se deitado e estavam com a
luz apagada, conversando sobre o filho e relembrando as
travessuras que o menino costumava fazer nos tempos de criança,
quando ouviram lá embaixo a risada sinistra do velho cuco. Ao
escutar aquele som funéreo, o relojoeiro sentiu um arrepio na nuca
e Laura sobressaltou-se na cama, como se tivesse sido tocada pela
mão fria de um fantasma.
- Não compreendo... eu me recordo de ter retirado o pêndulo
deste relógio...
Eles contaram onze gargalhadas macabras, que
correspondiam às onze horas da noite. No momento em que aquele
flagelo angustiante cessou, o casal ouviu um ruído tenebroso,
pancadas secas e ocas, como um cavalo se debatendo nas
madeiras da baia de um estábulo. Isto os deixou terrivelmente
assustados, pois talvez fossem ladrões dentro da casa. Simão deu
um pulo da cama, enquanto que sua esposa apertou o interruptor,
acendendo a luz.
- Que pode ter sido isto? Indagou a mulher num sussurro
trêmulo.
O marido fez com o indicador um gesto de silêncio. Apanhou
sobre a cômoda uma estatueta de bronze, que poderia lhe ser útil
como arma e saiu do quarto caminhando em bicos de pés.
Atravessou o corredor e entrou na sala, onde não viu nada de
anormal. Dirigiu-se em seguida à cozinha, onde também tudo se
encontrava em perfeita ordem. Lembrou-se de verificar o dormitório
de Tom. De repente, um pensamento funesto veio-lhe à mente. Teria
o filho retornado das profundezas das trevas, com seu cadáver já
começando a ser devorado pelos vermes, meio gente, meio
monstro, como costumava ocorrer nas histórias de assombração?
Esta ideia encheu seu espírito de horror. Foi com mãos trêmulas
que abriu a porta do quarto, temendo pelo que poderia encontrar lá
dentro. Ele acendeu a luz e constatou, aliviado, que tudo estava
normal, arrumado como se o jovem continuasse morando ali. Só
restava inspecionar o dormitório de dona Honorata. Estranhamente,
a porta se encontrava aberta e Simão sabia que a velha sempre
dormia de porta fechada. Olhou o interior do cômodo e certificou-se
de que a mãe de sua esposa não se encontrava ali. A cama achava-
se toda desarrumada e nem sinal dos chinelos dela ao pé do leito.
Talvez tivesse ido ao banheiro. O relojoeiro caminhou até lá, mas
nada da sogra. Já um tanto aflito, regressou a seu quarto e disse
para Laura:
- Sua mãe desapareceu!
Ela o fitou com uns olhos assombrados e indagou:
- Como assim?
- Olhei toda a casa e ela não se encontra em parte alguma.
Só não fui à loja...
De repente, seus olhos iluminaram-se e ele interrompeu a
frase, como se tivesse compreendido tudo. Aquele ruído horrendo
que tinham ouvido após o cuco dar a sua gargalhada infernal...
Deus do céu! Tudo ficara claro em sua mente. Ainda sem entender,
a esposa perguntou aflita:
- Mas o que aconteceu afinal? Diga-me o que está
pensando!
- Venha comigo e torça para eu estar errado...
Eles atravessaram a sala, o velho relojoeiro na frente, e
começaram a descer a escada que dava na loja. A cada passo
dado, Simão reduzia a velocidade, como se não quisesse chegar lá
embaixo nunca, temendo pelo pior. Finalmente, não pôde mais se
enganar e viu umas pernas esticadas sobre o assoalho. Emitiu um
som gutural cavo e venceu os últimos degraus afobadamente. Dona
Honorata encontrava-se caída no chão, toda retorcida, envolta em
uma poça de sangue que lhe escorria da boca. Ao vê-la, Laura
desesperou-se e deu um grito de horror, sem poder acreditar no que
tinha acontecido. Simão agachou-se junto ao corpo da macróbia,
colocou dois dedos sobre a jugular dela e constatou que estava
morta. Ele levantou os olhos na direção da esposa e fez um gesto
negativo com a cabeça, arrebatando-lhe as últimas esperanças.
Sem forças, Laura agachou-se, cobriu a face com as mãos e se pôs
a chorar. O marido procurou confortá-la com seu ombro amigo,
acostumado a amparar lágrimas. Quando ela se acalmou um pouco,
Simão proferiu:
- Sua mãe caiu da escada e quebrou o pescoço. Só não
entendi o que ela queria fazer aqui embaixo, após ter ido se deitar.
Laura olhou para a parede e contemplou com ódio o antigo
cuco, que se achava parado, marcando onze horas.
- Foi ele! Foi este maldito relógio de Satã quem atraiu minha
mãe aqui para baixo...
O relojoeiro não disse nada, limitando-se a enxugar as
lágrimas dos olhos da mulher. Agora, estava cheio de dúvidas. A
vida inteira ouvira histórias sobre relógios amaldiçoados, que
paravam de funcionar exatamente no horário do óbito de seus
proprietários. Este era diferente, pois anunciava a morte de alguém
com sua gargalhada maldita. Talvez fosse coincidência, talvez não.
Seja como for, agora era ele próprio quem não queria ficar com
aquele cuco macabro em casa.
No dia seguinte ao sepultamento de dona Honorata, Simão
abriu a loja e a primeira coisa que fez foi colocar o cuco sobre o
balcão com preço muito baixo. Começou pedindo duzentos, mas
ninguém se interessou. De tarde, abaixou para cem. Mesmo assim,
todas as pessoas para quem ele mostrava o relógio ficavam
reticentes. Apesar de reconhecerem que se tratava de uma peça
antiga e rara, não gostavam das figuras entalhadas. Aqueles
demônios eram por demais assustadores e ninguém estava disposto
a colocar aquilo em suas salas de visitas. Por fim, como não
arranjou comprador e temia que o relógio tocasse novamente,
Simão colocou-o dentro de uma caixa de papelão, embrulhou-a com
papel e amarrou o pacote com barbante. Por fim, guardou em cima
de um armário, onde acumulava trastes e velharias, esperando
nunca mais pôr os olhos nele.
Já havia passado quase um mês desde aqueles
acontecimentos terríveis e a rotina do relojoeiro tornara à sua
normalidade, quando outra catástrofe abateu-se sobre a sua casa.
Como era seu costume, todo domigo pela manhã, Laura ia à missa.
Enquanto aguardava a esposa regressar, Simão permanecia no
sofá, lendo jornal e fumando seu charuto. Subitamente, ouviu aquela
gargalhada agourenta, feito um corvo crocitando no milharal a
anunciar tempestade. Por um instante, o seu coração parou de bater
e ele sentiu um vazio no ventre, como se tivessem lhe arrancado as
vísceras com as mãos. Largou o jornal de lado e correu escada
abaixo, tendo as pernas frouxas e a respiração ofegante. Ainda
conseguiu ver o detestável demônio do relógio, pendurado na
parede, estertorando suas últimas gargalhadas, como se estivesse
zombando do destino do relojoeiro. Como podia ser isto, se o
deixara dentro da caixa amarrada por um barbante? Olhou para
cima do armário e viu que a caixa estava aberta. Apavorou-se
terrivelmente. Aquilo tinha vida própria! De imediato, tirou o cuco da
parede e o colocou sobre o balcão. Durante alguns minutos, ficou
pensando o que deveria fazer com aquele ser amaldiçoado. Metê-lo
no fogo? Mas o fogo era o elemento primaz do demônio e talvez a
maldição não pudesse ser destruída dessa forma ou, ainda pior,
continuasse na casa. Aliás, não era impossível que migrasse para
algum de seus outros relógios. De qualquer forma, precisava fazer
alguma coisa, tomar uma medida mais drástica. Simão abriu seu
armário e apanhou uma marreta que guardava ali dentro. Iria
exterminar aquele maldito e seria agora! Porém, quando estava
pronto para desferir o primeiro golpe, o telefone tocou de maneira
funérea, abrindo um poço sem fundo no peito do pobre homem. Ele
atendeu com os olhos sangrando, já esperando pela fatídica notícia.
- Alô? É o senhor Simão?
Ele anuiu com um som gutural fraco, que mal lhe escapou
da garganta.
- Lamento não ter notícias agradáveis para lhe dar. Sua
esposa sofreu um acidente... foi atropelada por um automóvel na
saída da igreja e veio a falecer...
Oh, maldição das maldições! Ao ouvir aquelas palavras,
experimentou uma comoção tão profunda, como se tivessem
arrancado seu coração do peito com um garfo. Ele deixou o telefone
cair e atirou-se prostrado sobre uma banqueta. Simão sabia que
nada mais podia ser feito e sentia-se liquidado. Perdera tudo o que
mais amava na vida, a sua razão de viver, o seu norte. Achava-se
estraçalhado pela dor que o aniquilava, quando olhou para o
abominável relógio, que permanecia deitado sobre sua bancada de
trabalho. No fundo, imaginava que seria inútil destruí-lo, pois o mal
permanece além do suporte físico, além dos tempos. Já ouvira falar
muito sobre essas coisas demoníacas. Então, o velho relojoeiro fez
o que já deveria ter feito há muito. Com os olhos embaçados pelas
lágrimas, ele apanhou o cuco, abriu a porta da loja e simplesmente
o colocou na calçada. Em seguida, trancou-se em sua casa, como
se não desejasse mais ter parte com o mundo cá fora.
Pouco depois, um gaiato que passava por ali viu aquele belo
relógio dando sopa na rua. Aproximou-se dele cheio de curiosidade
e, olhando para os lados, observou que não havia ninguém por
perto. Abaixou-se ligeiro feito um gato, meteu-o debaixo de seu
capote e saiu dali com os passos acelerados, feliz da vida. Não via a
hora de chegar à sua residência para pendurá-lo na parede da sala.
Bem diziam os seus familiares que ele era mesmo um sujeito de
sorte.
Loretta
N icholas estacionou
o carro embaixo de
uma árvore que
deitava grande sombra no jardim e, durante alguns minutos,
permaneceu dentro do veículo, observando a casa deserta. Era,
realmente, um sobrado enorme, muito maior do que ele imaginava.
O velho edifício, pesado e sólido, ainda se mostrava imponente,
apesar dos anos ter marcado suas paredes e telhado com os sinais
do tempo. A grama achava-se alta, pois há muito não era aparada, e
algumas vidraças estavam partidas. Nick, como era chamado
carinhosamente por seus amigos íntimos, desceu do automóvel e
deu alguns passos na direção da varanda. Pensava em seu finado
tio, que ele mal conhecera, mas fizera a delicadeza de lhe deixar
como herança aquele imóvel extraordinário. Dele, sabia apenas que
era um homem solitário, de hábitos morigerados e graves, vivendo
recluso em sua mansão, onde não recebia ninguém.
A porta maciça gemeu de maneira irritante ao ser aberta,
despertando os fantasmas que, porventura, estivessem dormindo ali
dentro. Preciso lubrificar as dobradiças, pensou Nicholas. Um cheiro
forte de bolor e umidade inundou as narinas do rapaz e, tão logo ele
adentrou pela sala, abriu as janelas e correu as cortinas para arejar
o ambiente. O sol despejou seus raios por cima do assoalho de
madeira, lavando o recinto com sua luminosidade típica da
primavera. Havia diversos móveis no interior da casa, todos
cobertos por lençóis brancos, dando a impressão de que o tempo
estivesse hibernando nas entranhas daquele palacete. Um a um,
Nick foi retirando os panos de cima da mobília, acordando sofás,
poltronas, cadeiras, mesas, estantes e espelhos de novo para a
vida.
- Assim está melhor! Exclamou.
Depois, resolveu dar uma olhada geral na residência, pois
ainda não a conhecia. O sobrado possuía dois andares, além de um
sótão. No primeiro piso, ficava o enorme salão principal, sala de
música, sala de jantar, uma sala íntima, um escritório, uma bela
biblioteca com boa quantidade de livros antigos encadernados em
couro, cozinha, despensa e dois ou três toaletes. No piso superior,
localizavam-se os quartos, que eram muitos, cada qual com seu
respectivo banheiro. Enquanto percorria os diversos aposentos da
casa, Nicholas deparou-se com um quadro pintado a óleo, que
retratava o seu falecido tio. Por um momento, permaneceu com os
olhos cravados na pintura, surpreso. Na verdade, chegara mesmo a
assustar-se com o que via. Os traços fisionômicos de seu tio
lembravam deveras as suas próprias feições e, tirando certo ar
austero que possuía o finado, poder-se-ia dizer que ali estava
retratado o próprio Nicholas, trinta anos mais velho.
Após ter retirado sua bagagem do automóvel e comido um
lanche de pão de forma integral que ele comprara numa padaria
antes de chegar ao sobrado, Nicholas começou a fazer uma faxina
na casa, pois havia muito pó por toda parte. Durante a manhã inteira
e boa parte da tarde, o rapaz não fez outra coisa a não ser lavar o
chão dos aposentos, varrer, espanar, bater tapetes, limpar
banheiros, eliminar teias de aranhas e tudo o mais que foi preciso
para deixar a residência habitável outra vez. Por volta das cinco
horas, quando o sol começava a se pôr, deu a tarefa de limpeza por
encerrada e resolveu tomar um banho a fim de se refrescar. Dirigiu-
se a um dos banheiros do piso superior, encheu a banheira com
água e mergulhou seu corpo nu dentro dela. Ali permaneceu
relaxando por longo tempo, até que acabou cochilando.
Subitamente, despertou com a sensação de ter escutado passos
dentro da casa. Seria isto possível ou estivera sonhando? Por
alguns segundos, aguçou os ouvidos, procurando não fazer o menor
ruído para tentar ouvir qualquer coisa de estranho. Nada. Tudo
continuava em silêncio, como se o velho sobrado não passasse de
uma enorme tumba sombria.
O rapaz enxugara-se com uma toalha felpuda que encontrou
dentro de um armário e vestiu-se. Em seguida, resolveu sair para
fazer compras, pois não havia alimentos na casa, e aproveitou para
jantar fora. Nick somente se deu conta de que não havia energia
elétrica na residência, quando ele chegou carregando os pacotes e
foi acender o interruptor da sala. Maldição! O seu primeiro
pensamento foi de que a lâmpada pudesse estar queimada; porém,
como nenhuma lâmpada acendeu nos demais cômodos, chegou à
conclusão de que o fornecimento de energia fora cortado por falta
de pagamento. Com alguma dificuldade, tateando as paredes em
virtude da escuridão, conseguiu chegar à despensa, onde encontrou
velas e fósforos. Tão logo acendeu uma delas, sombras pálidas
começaram a dançar nas paredes e Nicholas sentiu um calafrio lhe
percorrendo a espinha. Embora não acreditasse em assombração
ou almas do outro mundo, aquela casa enorme e silenciosa
causava-lhe arrepios durante a noite. O melhor a fazer era ir dormir.
Subiu as escadas de madeira, cujos degraus começaram a ranger
de maneira macabra. Enquanto caminhava, tinha a sensação
angustiante de que estava sendo observado. Por mais de uma vez,
voltou-se para trás e ficou contemplando a sala vazia lá embaixo,
envolta nas trevas. Por fim, abriu a porta de um dos quartos, enfiou-
se debaixo dos lençóis de uma cama e dormiu feito uma pedra, pois
tinha trabalhado demais naquele dia.
Na manhã seguinte, acordou bem disposto e com uma ideia
fixa na cabeça. Sabia que seu tio era rico e, ao que constava,
sempre fora um homem de hábitos morigerados e parcimoniosos.
Não lhe parecia improvável que existisse, em algum lugar daquele
sobrado, joias e dinheiro escondidos. Por isto, estava decidido a
fazer uma busca por toda parte. Antes, porém, precisava ir à padaria
para comprar pão, pois se achava faminto. Nicholas dirigiu-se até o
seu carro, pisando a grama alta lavada pelo orvalho da madrugada
e sentindo o aroma campestre de flores e mato molhado inundando
os seus pulmões. O ar fresco da manhã deixou-o mais disposto e
ele já mal se lembrava de que, na noite anterior, à luz de velas, o
sobrado herdado de seu tio lhe pareceu um casarão bastante
macabro.
Ao retornar da padaria, tomou um café reforçado e se pôs a
procurar as joias e o dinheiro que imaginava existir ocultos em
algum canto dentro da casa. Naturalmente, começou pelo escritório
de seu tio. A primeira coisa que fez foi retirar os quadros das
paredes, imaginando que algum deles pudesse esconder um cofre
secreto. Equivocou-se quanto a isso. Depois, abriu arcas, remexeu
nas gavetas da escrivaninha, vasculhou as estantes, mas não
descobriu nada de valor. Resolveu então dar uma busca na
biblioteca. Ali permaneceu por mais de uma hora, folheando livros,
pois o dinheiro poderia ter sido guardado entre suas páginas, e
olhando atrás dos velhos volumes. Nada. Só conseguiu mesmo ficar
bastante sujo de poeira.
Subiu as escadas e passou a procurar nos aposentos de
cima. Ao entrar em um dos dormitórios no fundo do corredor,
surpreendeu-se deveras. Só agora ele havia se dado conta de que
se tratava de um quarto de mulher. Havia uma cômoda de mogno
num dos cantos, sobre a qual se achavam diversos frascos de
perfumes e batons. Ao lado, encontrava-se uma penteadeira com
um enorme espelho oval, envelhecido pelos anos. Nicholas abriu o
armário e descobriu em seu interior uma infinidade de roupas
femininas. Por um instante, ele quedou-se perplexo. Quem seria a
mulher que morava ali? Afinal de contas, seu tio era solteiro e não
possuía descendentes, quanto mais, uma filha. Aquele mistério
deixou Nick profundamente curioso.
Foi apenas quando estava revirando de pernas para o ar o
quarto de seu tio, que Nicholas resolveu tal enigma. Dentro do
guarda-roupa, no fundo da última gaveta que ele olhou, havia um
maço de cartas, enlaçado por uma fita amarela. Aquilo lhe chamou a
atenção. O rapaz sentou-se na cama e se pôs a ler uma delas
aleatoriamente. Era uma letra caprichada, caligrafia redonda de
adolescente, e ainda recendia a um leve perfume de flores
silvestres. O conteúdo da carta era banal e não deveria ser muito
diferente de outras cartas escritas por jovens enamoradas. A moça
confessava-se apaixonada pelo seu tio e falava das saudades que
sentia dele e como o seu mundo parecia triste, quando ela estava
longe do amado. Após algumas outras confissões, a garota
assinava: “da sua Loretta”.
Nicholas dobrou a velha carta e a colocou junto das outras,
enlaçando-as com a fita amarela. Em sua mente, os pensamentos
embaralhavam-se confusos. Teria Loretta sido amante de seu tio?
Ele que sempre fora visto pela família como um solteirão solitário e
recluso? Mais do que isso, teria Loretta morado naquele antigo
casarão, no quarto localizado ao fundo do corredor, onde Nick
encontrara tantas vestes femininas? Dominado por essa ideia, o
rapaz regressou àquele dormitório para ver se descobria mais
alguma pista de tal enigma. Abrindo as gavetas da cômoda,
encontrou diversas roupas íntimas, perfumadas por sabonetes que
ali se achavam esquecidos. Olhou novamente o armário, mas não
descobriu nada além de camisolas, saias e vestidos. Pouco depois,
quando o relógio carrilhão lá na sala, que ele pusera para funcionar,
deu meio-dia, Nicholas desceu para preparar o almoço. Só teve o
trabalho de esquentar, pois era tudo comida enlatada. Verdade que
comeu pouco e às pressas. Não porque estivesse sem fome ou a
refeição deixasse a desejar. O fato é que estava muito ansioso para
ler as demais cartas escritas por Loretta. Terminando de almoçar,
lavou o prato e as panelas rapidamente e subiu para o quarto de
seu tio, onde passou o restante da tarde mergulhado naquela
leitura.
Ainda faltava ler algumas cartas, quando começou a
escurecer. Nicholas decidiu tomar banho e se barbear, pois sua
barba já tinha três dias. Enquanto passava a navalha no rosto para
remover a espuma, só conseguia pensar em Loretta, naquela jovem
que parecia tão apaixonada pelo seu tio. Agora sabia muito mais
sobre ela, sobre eles. Já não tinha qualquer dúvida de que aquele
quarto de mulher pertencera à garota, pois a própria confessava em
uma das cartas que se achava muito feliz por, em breve, mudar-se
para o casarão. Quanto tempo viveram juntos ali? Teria a moça
falecido ou ainda era viva? Enleado por estes pensamentos,
Nicholas distraiu-se e acabou se cortando com a navalha. Um fio
vermelho passou a escorrer por entre a espuma do creme de
barbear, descendo por sua bochecha. Enxaguou o rosto e pôs um
pedacinho de papel higiênico sobre o corte. Em seguida, vestiu seu
pijama e decidiu se deitar, pois já estava escuro e ele ainda não
havia resolvido o problema da energia elétrica.
Antes, porém, dirigiu-se ao quarto do seu tio e apanhou as
últimas cartas que ainda não tinha lido. Acendeu uma vela que
colocou sobre o criado mudo ao lado de sua cama, ajeitou o grande
travesseiro atrás das costas e se pôs a lê-las com interesse
redobrado. Subitamente, ao abrir o último envelope, algo caiu no
chão. Nick virou-se para ver o que era e surpreendeu-se ao
constatar que se tratava de uma fotografia. Ele a aproximou da
chama da vela e viu retratada ali uma jovem muito bonita, com
lindos cabelos compridos e olhos claros. No verso, havia a seguinte
inscrição: “Para o meu amor, Loretta”.
Aquela era Loretta! Agora, a garota tinha um rosto para ele,
um rosto extraordinariamente belo, que parecia querer lhe enfeitiçar.
Quando resolveu dormir, por muito tempo permaneceu deitado no
escuro, sem conseguir pegar no sono, pois a imagem da jovem não
lhe saía da cabeça. Só adormeceu após a meia-noite e, como não
podia deixar de ser, sonhou com ela. Loretta vestia-se como uma
camponesa medieval, tendo os longos cabelos loiros unidos numa
trança. Trazia nas mãos uma bilha d´água, que ela acabara de
encher em uma fonte ali perto. O sol brilhava intensamente sobre os
campos repletos de flores e pássaros. A garota caminhava descalça
em uma trilha ladeada por canteiros de rosas e seguia cantando
uma canção popular muito bonita e terna. Ao vê-la assim tão linda e
sozinha, Nicholas achou que seria um bom momento para conversar
com a menina. Por diversas vezes, ele lhe chamou pelo nome, mas
a jovem parecia não querer falar com o rapaz, pois ignorava os seus
chamados. Nick passou a segui-la; porém, quanto mais apertava os
passos, mais distante os dois iam ficando. Por fim, pôs-se a correr,
alcançando-a próximo de um bosque. Quando ele lhe tocou o
ombro, a garota deixou cair no chão a bilha cheia d´água, que se
estilhaçou em centenas de caquinhos. Neste exato momento,
Loretta virou-se de frente para o moço, que levou um susto
violentíssimo. Os olhos dela pareciam ter sido arrancados da face e
podiam-se ver apenas as órbitas vazadas, coaguladas de sangue.
Um grito de horror escapou das entranhas do rapaz, enquanto a
jovem ria de maneira histérica e macabra...
Nicholas acordou com o próprio grito. A sua testa achava-se
úmida de suor e seu peito arfava intensamente em virtude do
sobressalto. Ele sentou-se na cama e acendeu a vela para ver as
horas no seu relógio de pulso que se encontrava dentro da gaveta
do criado-mudo. Três e meia da madrugada. Estava com a garganta
seca e decidiu tomar um pouco de água na cozinha. Desceu as
escadas segurando a vela, que deitava por toda parte um cheiro
enjoado de cera derretida. De repente, quando se aprontava para
regressar ao quarto, começou a ouvir uns ruídos estranhos dentro
da casa. Nick assustou-se deveras, imaginando que o sobrado
pudesse ter sido invadido por ladrões. Durante alguns segundos,
permaneceu em silêncio, aguçando os ouvidos. Não pareciam
passos humanos. Talvez fossem ratos no andar de cima. Dominado
por este pensamento, ele apanhou uma vassoura e, pé ante pé,
subiu as escadas. A vela ia desenhando sombras fantasmagóricas
pelas paredes, contribuindo para aumentar ainda mais o seu estado
de terror. Nicholas foi abrindo uma a uma as portas dos quartos,
mas não encontrou coisa alguma. Na verdade, os ruídos não
vinham dali. Só agora ele percebera que aquele misterioso barulho
provinha do sótão. Com certeza, eram ratos que se abrigavam lá em
cima. Ele deu algumas pancadas com a vassoura no teto e os
ruídos cessaram por completo. Porém, pouco depois do rapaz ter se
deitado, eles voltaram a se manifestar. Nick não conseguiu mais
adormecer e jurou acabar com aquilo de uma vez por todas:
- Inferno! Não perdem por esperar...
No dia seguinte, saiu logo cedo e se dirigiu a uma loja de
rações para animais, onde comprou boa quantidade de veneno para
ratos. Depois, passou numa loja de ferragens e adquiriu uma
lanterna. Chegando ao velho sobrado, Nicholas subiu ao segundo
andar e caminhou até o final do corredor. Ali no teto, havia uma
portinhola que dava acesso ao sótão. Equilibrando-se sobre uma
cadeira, que ele foi buscar num dos quartos, soltou a trava e a porta
se abriu, fazendo com que uma escada desdobrável escorregasse
lá de cima. Nick colocou a lanterna mais o veneno para ratos dentro
de um saco plástico, que segurou com uma das mãos, e se pôs a
escalar os degraus, sentindo o seu coração bater acelerado pela
aventura. Ao entrar no sótão, a primeira coisa que lhe chamou a
atenção foi um odor forte de mofo e coisa velha. Parecia que faltava
ar ali dentro. Como estava muito escuro, o rapaz acendeu sua
lanterna e começou a inspecionar aquele ambiente sinistro. A
primeira vista, não viu nenhum rato. Talvez eles tivessem
pressentido a presença de um intruso e resolveram se esconder em
suas tocas. As paredes eram de tijolos aparentes, o telhado baixo e
o chão coberto por tábuas compridas bastante desiguais. Nicholas
apontou o facho de sua lanterna para diversas partes e notou que o
sótão se achava entulhado com muitos trastes, como garrafas
vazias, latas de tinta, arcas de madeira apodrecida, estantes com
ferramentas enferrujadas e brinquedos muito antigos, como um
cavalinho de pau, talvez do tempo em que seu tio ainda fosse
criança. Ele abriu o pacote com veneno e passou a espalhá-lo por
alguns cantos estratégicos. Após quase ter esvaziado a embalagem,
Nick decidiu descer; porém, percebeu que ao fundo, do outro lado
do sótão, existia uma porta baixa, da altura de um homem mediano
em pé. Seria bom colocar um pouco de veneno também naquele
outro ambiente. Ele dirigiu-se até o local e empurrou devagar a
porta, que se abriu como se tivesse sido soprada por um fantasma.
Ao entrar ali dentro, Nicholas tomou um susto tremendo. A lanterna
começou a tremer em sua mão e suas pernas bambearam. Seus
olhos esbugalharam-se aterrorizados, enquanto sua respiração
havia se tornado ofegante. Deus do céu! Havia ali um caixão!
Naquele momento, inúmeros pensamentos atropelaram-se
em seu cérebro. Estaria vazio ou conteria os ossos de algum
defunto? Seria seu tio que ali descansava seu corpo despido de
vida? Até mesmo ideias mais lúgubres e estapafúrdias iam lhe
acudindo à mente. E se aquele féretro encerrasse um vampiro?
Não, tal ideia era absurda, ridícula. Quando recuperou o fôlego,
resolveu fazer a única coisa que lhe pareceu sensata no momento,
ou seja, destampar o caixão para conferir o que havia em seu
interior. Embora sua alma estivesse crivada pelo medo, Nick reuniu
toda coragem que possuía e levantou a tampa, colocando-a
encostada a uma das paredes. O pavor supremo estampou-se em
sua face, quando ele lançou um facho de luz dentro do féretro.
Cristo Jesus! Havia ali um cadáver! A sua primeira reação foi sair
correndo, mas seus pés pareciam ter sido pregados no assoalho. O
seu coração queria fugir pela boca e grossas bagas de suor lhe
escorriam pela nuca. Estava tão assombrado, que nem percebeu se
tratar de uma jovem. Apenas quando se acalmou, conseguiu prestar
mais atenção no defunto, iluminando-lhe melhor o rosto. Tinha a
impressão de que já conhecia aquela moça de algum lugar. De
repente, algo estalou dentro de seu cérebro e tudo ficou claro como
um dia ensolarado. Era Loretta!
Aquela descoberta deixou-o petrificado. Loretta, a garota
que fora a paixão de seu tio e que o amou deveras, ali se
encontrava como se estivesse apenas adormecida. Por alguns
instantes, Nicholas quedou-se sem mover um único músculo,
enfeitiçado diante de tamanha beleza. A natural jovialidade da
menina atraía-o, seduzia-o, desconcertava-o a tal ponto que ele não
se conteve e tocou-lhe de leve a pele delicada do rosto. Sabia que
se tratava de um cadáver e que ela se achava definitivamente
morta, mas a sua aparência fresca e angélica dava a impressão de
que a moça poderia despertar de um momento para outro. Este era
um dos mistérios que Nick não compreendia. Curiosamente, Loretta
se encontrava em perfeitas condições e até exalava um perfume
doce de flores. Talvez seu tio tivesse mandado embalsamá-la para
conservar o frescor de sua juventude.
Quando o rapaz conseguiu retornar do transe em que tal
surpresa o mergulhara, uma dúvida meteu-se em seu cérebro. Que
fazer com aquele corpo? Deveria enterrá-lo no fundo do quintal ou
comunicar o seu achado à polícia? Afinal, havia um defunto em sua
casa e isto poderia lhe causar problemas. Agora que via a sua
descoberta através de outro ângulo, Nicholas sentia a cabeça
pesada e um vazio no peito. Ele desceu a escadinha, fechou o sótão
e se dirigiu ao banheiro, onde enfiou o rosto na pia, debaixo da
torneira aberta. A água gelada ajudou a recompor os seus
pensamentos. Enquanto se enxugava, teve a impressão de ter visto
Loretta observando-o atrás de si, através do espelho. Nick virou-se
imediatamente, mas não viu nada. Tal incidente ajudou-o a se
decidir. Iria à delegacia mais próxima para contar tudo. Era o mais
correto a ser feito.
Porém, não chegou a consumar o seu intento. Nicholas até
se dirigiu à delegacia e, por mais de uma hora, permaneceu
aguardando a sua vez de ser atendido. Contudo, como havia muita
gente, decidiu ir embora sem comunicar nada a ninguém. Enquanto
regressava para casa, ouvindo música country no rádio de seu
carro, o rapaz ia pensando o que deveria fazer. Deixar a moça morta
no sótão do sobrado é que não parecia uma ideia muito boa.
Enterrá-la no quintal apresentava-se como uma possibilidade
interessante, pois ninguém jamais ficaria sabendo de coisa alguma,
mas certamente isto iria contra a vontade de seu tio. Nicholas
acendeu um cigarro e jogou o palito pela janela. Ajudava a pensar
melhor. Pouco tempo depois, estacionou o seu carro debaixo de
outra grande árvore no jardim. Curiosamente, esta se achava tão
perto da casa, que seus galhos se estendiam acima do telhado. Nick
desceu do veículo decidido que o melhor a ser feito era mesmo
enterrá-la o mais rápido possível.
Pouco antes de escurecer, ele resolveu trazer o corpo da
jovem para baixo. Subiu outra vez ao sótão e caminhou até o local
onde a morta dormia o seu sono eterno. Para clarear um pouco o
ambiente, Nicholas abriu uma janela de madeira que havia ali e os
últimos raios de sol do entardecer invadiram o recinto. Loretta
parecia ainda mais bela e seus cabelos loiros brilhavam
intensamente. O rapaz apanhou-a meio sem jeito e, com alguma
dificuldade, conseguiu descer a escadinha do sótão com ela no colo.
Nick levou-a para o quarto que fora dela e a ajeitou com delicadeza
sobre a cama. Em seguida, procurou no armário um travesseiro e o
pôs debaixo da cabeça da garota. Quem a visse ali, repousando
tranquila, jamais poderia dizer que se tratava de um cadáver.
Pouco antes de ir para a cama, Nicholas apanhou uma vela
e se dirigiu para o quarto de Loretta. O pretexto era lhe dar “boa-
noite”, mas, no fundo, ele queria contemplá-la por mais alguns
momentos, antes de enterrá-la no dia seguinte. Como era bela! No
fundo, estava fascinado por aquela garota extraordinária. Enquanto
a admirava, pensando em como seu tio havia sido venturoso por ter
desfrutado os prazeres que ela pôde oferecer em vida, um
pensamento golpeou-lhe a mente. E se a beijasse? Que sabor
teriam os lábios de uma morta? Pensando nisso, o moço estendeu
as suas mãos e acariciou de leve aqueles seios túrgidos, que
pareciam querer rasgar o tecido do vestido. Então, lentamente, ele
foi aproximando a sua boca do rosto da jovem. De repente, estacou,
apresentando a face congestionada, perplexo. Por um breve
segundo, teve a nítida impressão de que Loretta abrira os olhos. O
susto apanhado ali no escuro foi tão grande, que Nicholas deu um
grito de horror e afastou-se dela imediatamente. O movimento
brusco do seu corpo derrubou a vela, que se achava equilibrada
sobre um pires no criado-mudo. A chama tocou um paninho bordado
debaixo do abajur, dando início a um princípio de incêndio, que o
rapaz apagou rapidamente, com o auxílio de uma toalha de banho
úmida.
Depois disso, seguiu para o seu quarto, enfiou-se debaixo
das cobertas e cobriu a cabeça. A presença daquele cadáver em
sua casa começava a lhe apavorar. No dia seguinte, iria abrir um
buraco no fundo do quintal e enterrar definitivamente Loretta, seu tio
gostando ou não. Durante a madrugada, sonhou com a garota. Ela o
abraçava e o beijava e pedia para se amarem, como se ele fosse o
seu próprio tio. Os seus olhos eram verdes muito claros, seus
cabelos compridos brilhavam feito trigo tostado ao sol e seu hálito
recendia ao aroma doce da framboesa. A jovem tocou-lhe uma das
orelhas com os lábios e sussurrou:
- Não me enterre, meu amor! Se persistir com esta ideia,
terei de matá-lo!
Ao ouvir isto, Nicholas abriu os olhos e viu aterrorizado que
Loretta se encontrava de pé, encostada a sua cama, segurando
uma faca com a lâmina ensanguentada. Aquela visão macabra
encheu-lhe de pavor, de maneira que Nick começou a gritar e gritar
e gritar e tanto gritou que acabou despertando de seu pesadelo.
Com a respiração ofegante e as mãos trêmulas, sentou-se na cama
e acendeu a vela sobre o criado-mudo. Olhou ao redor. Nada. Nem
sombra de fantasmas. Às vezes, os sonhos parecem tão reais,
pensou. Mesmo assim, para tirar qualquer dúvida, levantou-se e se
dirigiu ao dormitório da garota, para se certificar de que ela
continuava deitada onde a deixara. Pé ante pé, caminhou pelo
corredor escuro e, durante alguns segundos, hesitou se deveria
levar adiante aquela ideia um tanto insana. Respirou fundo e seguiu
em frente. Encostou o ouvido na porta, mas não ouviu ruído algum.
Abriu-a lentamente. Loretta permanecia na mesma posição, como
se estivesse dormindo. Um pouco aliviado, o rapaz regressou para
sua cama. Afinal, tudo não passara de um terrível pesadelo.
Durante o restante da noite, voltou a sonhar com ela. Loretta
estava em uma estação de metrô, deserta e gelada. Nicholas descia
por uma escada rolante e a via em pé na plataforma, olhando aflita
para o túnel vazio, aguardando a chegada do metrô. O rapaz
aproximou-se da moça e ela lhe disse que queria fazer amor em
cima de um daqueles bancos compridos de cimento. Enquanto se
despia, um mendigo apareceu comendo um lanche e foi urinar sobre
os trilhos. Loretta não se importou com o sujeito e continuou
abraçando Nick. Porém, confiou-lhe num murmúrio que ele só
alcançaria a ventura suprema de possuí-la, se desistisse da ideia de
enterrá-la. O moço respondeu que isto era impossível. Neste
instante, o metrô chegou à plataforma e ela empurrou-lhe diante
dele. Imediatamente, Nicholas acordou, banhado em suor.
O sol já havia despontado no céu, quando ele tomou seu
café reforçado. Achava-se decidido a abrir uma cova no fundo do
quintal e sepultar de uma vez por todas aquele cadáver que estava
lhe atormentando a existência, deixando-o louco. Quando subira ao
sótão pela primeira vez, Nicholas reparou que seu tio guardava ali
diversas ferramentas, inclusive uma velha pá enferrujada, entre
outros tantos trastes. Apanhou-a logo após ter se barbeado e seguiu
para o quintal, decidido a realizar aquela tarefa. Escolheu um bom
lugar embaixo de uma grande árvore e se pôs a cavar. O trabalho
não era fácil e durou muito mais tempo do que Nick imaginava. Os
seus músculos doíam, o suor escorria através de seu pescoço, indo
empapar a camiseta branca, e seu corpo sentia um cansaço terrível.
Mesmo assim, ele não desanimou e permaneceu cavando o dia
inteiro, parando apenas para beber água de vez em quando numa
torneira que havia no jardim e comer um lanche de atum que
preparou durante a hora do almoço. Por volta do final da tarde,
nuvens negras começaram a se amontoar pelo céu, anunciando
uma tempestade. A cova ia crescendo cada vez mais, enquanto
uma montanha de terra foi se acumulando ao seu lado. A certa
altura, enquanto Nick parou um instante para retomar o fôlego e
enxugar a testa com a manga da camisa, algo inesperado
aconteceu. Ele olhou para uma das janelas do primeiro andar e teve
a nítida impressão de ter visto um vulto espiando-lhe atrás da
cortina. Teria Loretta retornado dos campos da morte para vir
assombrar os vivos? Imediatamente, jogou a pá no chão e saiu
correndo em direção ao sobrado. Estava decidido a esclarecer
aquele mistério de uma vez por todas. Quando abriu a porta da sala,
ouviu ruído de passos subindo correndo as escadas.
- Loretta! Gritou apavorado.
Não obteve resposta. Apenas ouviu uma porta batendo no
andar de cima. Teria sido o vento? O rapaz escalou velozmente os
degraus, vencendo-os de três em três, e entrou aflito no quarto da
garota, que se encontrava com a porta fechada. Estacou a alguns
passos da cama, perplexo, ofegante. Nicholas podia jurar que a
posição do corpo dela havia mudado um pouco de lugar sobre o
colchão. As pernas pareciam agora mais afastadas e os cabelos um
tanto revoltos. Seria possível uma coisa desta? Com mil demônios!
Loretta havia caminhado pela casa! Ou tudo não passaria de fruto
da sua imaginação perturbada em virtude dos seus nervos
abalados? Apenas para tirar a dúvida, Nick tomou-lhe o pulso e
constatou que não havia pulsação alguma. Talvez, tenha sido todo o
sol que apanhei na cabeça, pensou. Uma coisa era certa. Aquele
cadáver não ficaria mais na casa um minuto além do necessário. O
rapaz dirigiu-se até a cozinha e bebeu um copo de água com açúcar
para se acalmar. Depois, voltou ao quintal e se pôs a cavar mais um
pouco.
Já havia anoitecido, quando ele terminou de abrir a cova.
Ventava bastante, relâmpagos arrebentavam no céu por todos os
lados e os primeiros pingos de chuva começavam a cair. Nicholas
dirigiu-se ao sótão para buscar o caixão. Evidentemente, teve
grande dificuldade para conseguir trazê-lo até o quintal. Não foram
poucos os esbarrões que deu com ele na escada e também em
portas e paredes, arranhando o verniz brilhante da madeira em
diversos pontos. Agora, a chuva havia se tornado tempestade, mas
ele estava decidido a ir até o fim com aquilo. Após colocar o féretro
dentro do buraco, Nick subiu ao quarto de Loretta e a apanhou no
colo. O seu corpo estava todo encharcado e seus sapatos cheios de
barro. Por onde passou, o piso de madeira ficou marcado com
vestígios d´água e lama. Dirigiu-se correndo até o fundo do quintal,
deitou Loretta ao lado da cova e pulou dentro dela. Em seguida,
apanhou a garota novamente, meteu-a no interior do caixão e o
fechou. Ali permaneceu por um bom tempo, cobrindo o buraco.
Assim que terminou o trabalho, entrou em casa e só então notou
toda a sujeira que havia feito. Para não aumentá-la ainda mais, tirou
os sapatos cobertos de lama, despiu-se e atirou toda a roupa suja
no tanque. Limparia tudo amanhã. No momento, pensava apenas
em tomar um banho, gelado que fosse, comer alguma coisa e ir se
deitar.
Porém, enquanto estava deitado na banheira, relaxando
com os olhos fechados, Nicholas ouviu o ruído de passos subindo
as escadas. Aquilo o encheu de terror e seu coração começou a
bater enlouquecido. No mesmo instante, saiu do banho, amarrou
uma toalha em torno da cintura e se pôs no encalço de quem quer
que fosse. Quando saiu do banheiro, escutou um barulho de porta
batendo e teve a certeza de que alguém estava se escondendo
dentro da casa. Pensou ter visto um vulto passando no final do
corredor escuro e, por isso, regressou ao quarto para apanhar um
revólver que possuía, embora, em seu íntimo, imaginava que ele
seria inútil. Abriu a porta de todos os dormitórios, mas não descobriu
nada. A criatura só poderia ter se escondido no sótão! Aflito e
resfolegante, Nick abaixou a escadinha e subiu por ela. A cada
passo que dava, ouvia a madeira do assoalho gemendo debaixo de
seus pés. Embora estivesse bastante escuro, ainda podia se
enxergar alguma coisa no meio das sombras. Vasculhou todos os
cantos, mas não encontrou ninguém. Subitamente, observou que a
porta que dava para o ambiente onde descobrira o caixão de Loretta
se encontrava encostada. Teria ele a fechado, quando viera buscar
o féretro? Dominado pelo terror, empurrou-a com a mão trêmula. A
porta rangeu nos gonzos enferrujados e Nicholas entrou ali com o
coração batendo desesperadamente dentro do peito. Apontou o
revólver para ambos os lados do recinto vazio. Então, constatou
assombrado que a janela de madeira estava aberta, balançando de
forma macabra ao sabor do vento. Havia se esquecido de fechá-la?
Em seu íntimo, tinha certeza de que era Loretta quem acabara de
sair por ali. Espremeu-se através da janela e, com todo cuidado,
subiu no telhado. A noite achava terrivelmente escura e a
tempestade continuava caindo de maneira impetuosa. Pé ante pé,
Nick caminhou na direção do outro lado do telhado, que ficava
parcialmente encoberto pelo sótão. De repente, ele sentiu algo
como uma garra tocando-lhe de leve o pescoço e os ombros por
trás. O susto que levou foi tamanho, que o rapaz quase teve um
ataque fulminante do coração. Virou-se de costas desajeitadamente
e disparou três tiros na escuridão. Desgraçadamente, um de seus
pés resvalou no telhado escorregadio e ele perdeu o equilíbrio,
precipitando-se lá de cima no exato momento em que um relâmpago
lhe mostrava o galho de árvore que tocara as suas costas. Enquanto
caía para a morte, pois quebraria o pescoço, teve a nítida impressão
de ver Loretta sorrindo atrás de uma das janelas do sobrado.
Criaturas da escuridão
A cordou sentindo
uma dor terrível pelo
corpo e a cabeça
pesada, como se fosse explodir. Olhou para os braços e viu que
seus pulsos sangravam no local onde as cordas estavam
amarradas. Baixou os olhos. Seus tornozelos também se achavam
presos por grossas cordas, bem como o seu pescoço. Por alguns
momentos, debateu-se feito um peixe que acabou de ser pescado,
ainda fincado num anzol, com esperanças de se livrar daquelas
amarras que o atavam a argolas de ferro na parede de pedras. Tudo
em vão. O esforço só fez aumentar a dor que ele sentia.
Quando serenou um pouco o espírito, procurou entender o
que estava acontecendo. Não se lembrava como tinha vindo parar
ali, muito menos conseguia imaginar o motivo pelo qual o
mantinham preso. Lentamente, seus olhos começaram a se
acostumar melhor com o recinto sombrio e sinistro daquela
masmorra. Do outro lado, existia uma tocha ardendo na parede, que
iluminava um pouco o calabouço. Um cheiro fétido de urina e
excrementos exalava por toda parte e viam-se ratazanas e baratas
correndo pelo chão de pedras úmidas. Ao longe, um ruído irritante e
quase hipnótico de alguma coisa parecida com um motor, zumbia
numa espécie de assobio contínuo. O que poderia ser aquilo? Na
certa, indicava a presença de pessoas ali por perto.
Subitamente, ele olhou para um dos lados e constatou,
estarrecido, que não se encontrava sozinho. Pouco adiante, achava-
se amarrada como ele uma mulher com pouco mais de vinte anos.
Era morena e trazia a pele e os cabelos sujos. Estava vestindo
apenas um tipo de túnica esfarrapada e encardida, indicando que a
infeliz deveria estar presa ali há muito tempo. Contemplou a sua
própria túnica larga, única peça de vestuário que lhe cobria o corpo,
e notou que ela parecia bem mais limpa e sem rasgos, embora
existissem manchas escuras de sangue em algumas partes.
Indicaria que ele teria lutado contra alguém? Puxando a túnica um
pouco de lado, observou que havia cicatrizes em seu tórax e ventre.
Teria sido torturado?
O seu impulso seguinte foi tentar estabelecer comunicação
com a mulher que parecia resignada em seu canto, olhos mortiços
de quem havia se entregado e não possuía mais forças para lutar.
Ele acenou-lhe com um dos braços e bradou:
- Ei, moça, onde estamos? Por que estão nos mantendo
presos aqui?
A jovem ergueu a cabeça e encarou o companheiro sem
nada responder. A sua face encovada apresentava fundas olheiras e
marcas de lágrimas secas escorridas pelas bochechas. Como ela
permanecia calada, o homem insistiu:
- Diga-me, mulher, por que estamos presos nesta
masmorra?
Não houve resposta. Ela virou o rosto de lado e ficou
observando a pesada porta de madeira que havia encravada em
uma das paredes de pedra. O calor escaldava e aquele ambiente
abafado e úmido fazia os corpos suarem dentro das túnicas. Não
dava para saber se era noite ou dia e ele só se lembrava de estar
num bar do vilarejo, bebendo cerveja e discutindo qualquer coisa
com um sujeito chamado Jack Scott. Depois disso, não se
recordava de mais nada e não fazia a mínima ideia de como tinha
vindo parar ali.
Subitamente, o motor parou de assobiar. A mulher pareceu
ficar ansiosa e tornou-se um tanto irrequieta, dando passos agitados
para os lados e para frente, o tanto quanto as cordas permitiam.
Parecia um bicho acuado diante do predador. O silêncio tomou
conta do calabouço e só se ouviam pingos d´água vertendo do teto
de pedra sobre uma poça. De repente, ele escutou passos do lado
de fora, mas tão leves, que pareciam deslizar sobre flanela. Sentiu o
seu coração acelerar dentro do peito e um calafrio gelado lhe
escorreu pela coluna cervical. Grudou os olhos na porta, bastante
aterrorizado. Pouco depois, ouviu alguém enfiar uma chave na velha
fechadura e correr a tranca. No mesmo instante, observou a porta
se abrindo com um gemido funéreo e, mais uma vez, tentou se livrar
das cordas que o prendiam.
A visão que teve assustou-o tremendamente. Uma criatura
encapuzada, coberta da cabeça aos pés por uma espécie de
cobertor grosso, rastejou lentamente em sua direção. Não dava para
lhe ver as feições, mas pelo seu talhe se inferia que poderia ser
qualquer coisa, menos um ser humano. O que lhe chamou mais a
atenção foi que o monstro possuía dois pares de braços muito finos,
marrons, cobertos por um tipo de carapaça lustrosa. A criatura
colocou diante dele um prato de barro e, metendo uma concha
dentro de um pequeno caldeirão que trouxera, despejou algo em
forma de papa que lembrava mingau. Em seguida, encheu uma
caneca de lata com água de uma bilha. Feito isso, dirigiu-se para o
local onde a moça se achava presa e repetiu a operação. Depois,
saiu silenciosamente, correu a tranca e fechou a porta com a chave.
O motor voltou a assobiar aquela melodia irritante e
macabra. Aflita, a jovem aproximou-se do prato e começou a
devorar todo o seu conteúdo, feito uma cadela que há muito não via
comida. Imediatamente, ele inclinou-se, apanhou o prato e se pôs a
comer a papa. O sabor era incrivelmente ruim. Aquele mingau
parecia ter sido feito com pus, mas ele comeu tudo, pois se achava
com uma fome de mamute. Teve certa dificuldade em segurar o
prato, uma vez que as cordas que amarravam os seus braços
limitavam-lhe os movimentos e só lhe permitiam chegar até certo
ponto. Depois, pegou a caneca e bebeu a água suja, água que
certamente fora colhida do chão por aquela criatura hedionda.
Saciada a fome, ele tentou novamente se comunicar com a
jovem, que agora o contemplava com olhos curiosos.
- Moça, quem são estes seres horripilantes?
Dessa vez, ela respondeu, mas numa língua
incompreensível. Evidentemente, ele não compreendeu nada, mas
chegou à conclusão que ela também não sabia coisa alguma. Falou
algo mais e começou a erguer um pouco a sua túnica. Em seguida,
agachou-se e se pôs a fazer as suas necessidades. Não havia outra
forma. Agora ele tinha certeza de que ela se encontrava ali há
muitos dias, pois a área ao redor da jovem se achava entulhada de
fezes secas.
Ele perdeu a conta de quantos dias se passaram. Já não
mais suportava aquele sofrimento terrível e, se pudesse, teria dado
cabo de sua vida. Achava-se esgotado, sem forças, sem vontade de
viver. O ritual era sempre o mesmo. Uma vez por dia, o motor
parava de assobiar, uma criatura entrava e lhes dava comida.
Depois disso, mais nada, nenhum contato. O que aqueles monstros
queriam com eles? Talvez fossem parte de alguma experiência ou,
quem sabe, como no conto infantil de João e Maria, desejavam
engordá-los para os devorar. E o que seria aquele maldito motor,
que sempre parava de assobiar, quando uma das criaturas vinha
lhes trazer a miserável refeição?
Um dia, logo após ele ter acordado, aconteceu algo
surpreendente. Não sabia como, mas a mulher havia conseguido
soltar das cordas um de seus braços. Aquilo poderia ser a chave
para escaparem dali. Por um momento, pensou que também ele
pudesse se livrar e debateu-se furiosamente até seus pulsos
sangrarem. Tudo inútil. Continuava muito bem amarrado. Por sua
vez, a garota tentava, de todas as formas, com a mão livre e com os
dentes, soltar o outro pulso. A sua luta foi extraordinária e sem
descanso. Ela gemia, arfava e guinchava de maneira alucinada até
que, finalmente, conseguiu liberar o outro braço. Com ambos soltos,
pôde desamarrar todos os nós das cordas sem muita dificuldade e,
em pouco tempo, havia escapado delas.
A sua primeira reação foi correr até a porta para ver se
conseguia fugir dali. Inútil, estava trancada por fora, como de
costume. Ele a observou ansiosamente durante todo esse tempo,
até que bradou:
- Ei, moça, venha me soltar.
A jovem o contemplou como se não tivesse compreendido
uma única palavra e respondeu em sua língua enviesada. Não se
entendiam. Sem perder um único segundo, pois o motor poderia
parar de assobiar a qualquer momento e uma das criaturas ali
entraria a fim de lhes trazer a refeição, ele fez um gesto, indicando
as cordas, para que ela o libertasse. Isto a garota compreendeu e se
pôs a executar a tarefa. Levou quase dez minutos para lhe soltar os
pulsos, pois os nós estavam muito bem apertados. Depois disso, ele
mesmo desamarrou seu pescoço e suas pernas.
Enfim, achavam-se livres. Porém, ao mesmo tempo,
continuavam presos no calabouço escuro. Sabiam que a única
oportunidade de escaparem dali seria quando um daqueles seres
monstruosos viesse para lhes trazer comida. Haveria muitos deles?
Pelo menos, tinham contato com apenas um, se é que se tratasse
do mesmo indivíduo. Talvez fosse possível dominá-lo, atacando-o
de surpresa. Esse era o plano. Ele explicou com gestos para a
garota que a sua ideia era prender aquela criatura medonha assim
que ela abrisse a porta, mas não teve certeza se ela havia
compreendido tudo. Por horas, ficaram aguardando. Ele achou
melhor apagar a pequena tocha que iluminava parcamente a
masmorra, pois acreditava que, dessa forma, a criatura não os
surpreenderia de imediato, ao abrir a porta. Apanhou a tocha com
uma das mãos e a apagou numa poça de água suja. Uma escuridão
completa tomou conta do ambiente e, tateando no escuro,
colocaram-se junto à pesada porta de madeira.
Finalmente, o motor parou de tocar aquela melodia lúgubre.
Os dois achavam-se muito tensos. Uma agonia terrível inundou-lhe
o espírito e bagos de suor gelado escorriam-lhe pelas têmporas.
Seria agora ou nunca. Fizeram o máximo de silêncio e ouviram
aqueles passos que pareciam rastejar com mocassim feito com sola
de corda. Em seguida, perceberam que a criatura colocara a chave
na fechadura e correra a tranca. No exato momento em que o
monstro começou a abrir a porta, mal conseguindo entrever uma
pequena fresta, eles agarraram-na pela lateral e se puseram a puxá-
la com todas as forças que possuíam. A ideia não era bem essa,
mas foi o que o nervosismo do momento permitiu. Ao ser apanhado
assim de surpresa, a criatura largou toda tralha que trazia ali mesmo
e se pôs a correr pelo corredor, lançando grunhidos guturais
incompreensíveis, certamente para alertar seus companheiros.
Eles abriram a pesada porta da masmorra totalmente e
constataram que ali existia um corredor comprido e sinistro. Não
podiam perder um segundo sequer. A garota tropeçou sobre a
panela que continha a papa, espalhando-a sobre uma de suas
pernas e se pôs a correr para o lado oposto ao que o monstro
seguira. Ele meteu-se no encalço dela e os dois iam tão próximos e
aflitos, que mais de uma vez um quase tropeçou no outro. O túnel
parecia muito comprido, estreito e com teto bastante baixo, podendo
facilmente ser tocado com as mãos. Certamente, as criaturas o
haviam escavado naquele barro úmido. Se dessem sorte, muita
sorte, aquela galeria escura e lúgubre os conduziria para a
liberdade.
Os dois suavam em bicas e resfolegavam terrivelmente, pois
o ar ali dentro era muito rarefeito. Tinham dificuldade para respirar,
fazendo-o com a boca aberta e de forma aflitiva, como se os
pulmões fossem escalar suas gargantas a qualquer momento. A
certa altura, chegaram a uma bifurcação e o túnel se dividiu em
dois. A garota, que ia à frente, tomou o caminho da esquerda,
enquanto que ele acabou seguindo pela direita. Correu cerca de
trinta metros e parou, imaginando que seria melhor e mais seguro
não se separar da jovem. Voltou atrás e pegou a outra bifurcação,
mas já não mais podia ver a moça, uma vez que a iluminação ali era
nenhuma. Apenas ouvia os passos dela golpeando o chão de barro
já muito distante. De repente, escutou um grito lancinante de horror
e o ruído dos passos cessou. Ele também parou de correr e
permaneceu em silêncio, mão no ouvido, procurando distinguir
qualquer som.
Por breves instantes, não escutou mais nada. Depois,
guinchos tenebrosos e urros de dor passaram a encher aquele
ambiente abafado. Deus do céu, as criaturas haviam apanhado a
garota! Ela gemia, chorava e berrava desesperadamente, enquanto
sons de mandíbulas mastigando ossos chegavam também a seus
ouvidos, como quem devora biscoitos crocantes. Que ele podia
fazer pela jovem contra seres tão poderosos? Nada, absolutamente,
nada. Pouco durou a agonia dela, pois logo não se escutava mais a
sua voz, apenas ruídos de carnes sendo chupadas pelos monstros.
Ele teve a sensação de que também não escaparia
daquelas criaturas pavorosas e, por alguns segundos, ficou
pensando no destino funéreo que o aguardava. Ser devorado vivo
por criaturas da escuridão, não conseguia imaginar morte mais
horrível e dolorosa. As suas pernas tremiam, o seu coração batia
enlouquecido dentro do peito e ele sentia uma fraqueza enorme por
todo o corpo. Mas precisava lutar pela sua vida! Quando conseguiu
recuperar-se um pouco do terror que o dominava, saiu correndo e
regressou ao túnel da direita. Sabia que ainda tinha uma boa
vantagem para aqueles monstros que haviam devorado sua
companheira de masmorra e o seu maior medo era deparar-se com
outra leva de criaturas pela frente. Correu por mais de cinco minutos
e o túnel parecia não acabar nunca, como se ele estivesse dentro
de um imenso formigueiro. Tão logo parou um pouco para recobrar
o fôlego, escutou ruídos medonhos atrás de si. Eram os monstros
que vinham para devorá-lo!
Imediatamente, pôs-se a correr, já quase sem forças. Ia
tropeçando, cambaleando, arrastando-se o mais rápido que podia. À
medida que avançava, tinha a absoluta certeza de que aqueles
seres infernais iam diminuindo a distância, pois os seus grunhidos
tornavam-se mais intensos. A qualquer momento, esperava receber
o toque de um braço pelas costas, ser agarrado por eles e
devorado. Olhou para trás e viu que vinham com tochas e eram
muitos. Apressou o passo o mais que pôde, embora seus músculos
doessem e suas pernas quase já não respondiam. Quando se
achava esgotado e prestes a desistir, viu uma pequenina luz
brilhando adiante. O que seria? Reuniu as últimas forças que
possuía e, desesperado, acelerou ao máximo a corrida. Os
monstros haviam retirado boa parte de sua vantagem e tinham
diminuído muito a distância que os separava. Quanto mais ele
corria, mais a luz aumentava de tamanho. Mais as criaturas dele se
aproximavam. Era uma luta inglória e parecia fadada à derrota.
Finalmente, ele chegara ao final do túnel. Havia ali um
pequeno orifício no alto da parede, por onde um raio de sol entrava
e ia iluminar parte do chão úmido de terra. O buraco era minúsculo,
mas o bastante para passar um homem por ele. Sem perder tempo,
conseguiu trepar ali e passou a se espremer pela cavidade.
Alucinadamente. Agora, as criaturas se achavam a menos de dez
metros de distância. No exato segundo em que um deles esticou
sua garra tentacular para prendê-lo, ele recolheu o seu pé e saltou
lá do alto para a desejada liberdade.
Lá embaixo, o oceano azul formava uma pequena baía. Ele
mergulhou de cabeça e observou o espelho das águas se
aproximando de seu rosto. Quando caiu no mar, nadou rapidamente
para a outra margem e se escondeu por entre as árvores da
floresta. Estava esgotado. Sentou-se sobre uma pedra e ali
permaneceu por poucos minutos, recuperando o fôlego. Queria
descansar; porém, os monstros poderiam aparecer a qualquer
momento e ele achou mais prudente sair dali. Meteu-se pelos matos
densos da floresta e caminhou por mais de duas horas, sem destino
certo, apenas seguindo a vontade de suas pernas.
O sol já havia se posto, quando ele chegou a uma pequena
aldeia. Havia poucas casas e quase ninguém pelas ruas. Precisava
de ajuda e decidiu pedir socorro para a primeira pessoa que
encontrasse. Ao dobrar uma das esquinas, viu uma mulher gorda, já
de certa idade, carregando um pacote de compras. Ele correu até
ela e lhe suplicou:
- Senhora, ajude-me, por tudo que lhe é mais sagrado!
A mulher contemplou-lhe a túnica imunda e o fitou
horrorizada. Ele explicou-lhe resumidamente tudo o que sofrera e
dissera que precisava de um lugar onde passar a noite. A velha
apiedou-se dele e lhe disse que poderia ficar esta noite em sua
casa. Havia um quarto de hóspedes vazio e seria uma honra
recebê-lo.
- Agradeço-lhe muito a gentileza. Salvou a minha vida.
Seguiram calados até a casa dela. Tão logo chegaram, a
mulher apanhou uma roupa limpa do marido e lhe entregou,
dizendo:
- Suba para tomar um banho. Daqui a pouco, servirei o
jantar.
Ele encheu a banheira com água morna e mergulhou em
seu interior. Há quanto tempo não relaxava, tranquilo, gozando
satisfeito o prazer de um bom banho! Ali permaneceu por longo
tempo, refletindo como havia tido sorte em escapar daquela
masmorra nefanda. Quem seriam tais criaturas abomináveis? Não
tinha mais importância. Agora estava livre, pronto para regressar a
sua casa, para a sua vida antiga.
Enquanto ele se banhava, a velha havia instruído o filho
para que fosse chamar seu marido na taverna da aldeia, onde
costumava beber cerveja com os amigos todas as tardes. Quando
ele saiu do banho e veio até a sala, encontrou ali a mulher falando
baixo com um homem estranho. Logo, a esposa fez as devidas
apresentações. Ele agradeceu muito a hospitalidade e começou a
narrar a sua fantástica história para o sujeito, que o ouvia calado. A
anciã retirara-se para a cozinha, talvez para preparar a comida.
Subitamente, ele calou-se, aterrorizado, dominado por um pavor
extremo, tomado por um susto formidável, que lhe gelou a espinha.
Aquele maldito motor! Aquele maldito motor começara a assobiar a
sua lutuosa cantilena em algum lugar ali por perto! A sua voz travou-
se na garganta e ele não conseguiu dizer mais nada. O homem
levantou-se muito naturalmente, abriu a porta da casa e disse para
os que chegavam:
- Ele está aqui, entrem!
E sorrindo, encostou-se de lado na parede, para lhes dar
passagem.
O morto-vivo
V ou lhes contar um
caso assombroso e
verdadeiro. Hoje, faz
dez anos que morri e, ainda assim, continuo habitando o mundo dos
vivos. Não, vocês não ouviram mal. Por que essas caras de
espanto? Todos encontrarão a sua hora um dia e a minha já chegou.
Não se assustem, sou o mesmo camarada de sempre. A única
diferença entre nós é que eu já estou morto, enquanto que cada um
de vocês aguarda a sua vez de mergulhar naquele poço negro e
desconhecido. Não acreditam? Apertem a minha mão, vocês verão
que ela está fria como uma barra de ferro. Se ainda tiverem alguma
dúvida, encostem o ouvido no meu peito. Um dia, dentro dele bateu
um coração e hoje só é possível ouvir um vazio macabro ecoando
em silêncio feito um abismo eterno. Ruggiero, sente-se mais um
pouco. Para que a pressa? Ainda é cedo e não há nada lá fora que
valha mais do que uma boa história dos mortos. Além do mais, a
chuva continua caindo com violência e você pode apanhar um
resfriado. Taverneiro! Ô, taverneiro! Traga mais uma garrafa de rum,
que a bebida hoje é por minha conta. Afinal, não é todo dia que um
defunto reencontra os amigos. Este ambiente escuro e enfumaçado
me recorda os anos da minha juventude. Ah, tempos ditosos e
queridos! Os mortos também sentem saudades. Arnold, não me
oferece um de seus cigarros? Obrigado! O fumo ajuda meu cérebro
a raciocinar melhor. Somos só nós seis e este maldito taverneiro
que tem o péssimo costume de misturar água ao vinho. Sete
pessoas numa bodega imunda, isoladas do resto do mundo por esta
tempestade torrencial. Sete almas miseráveis, sendo que uma delas
já está condenada a padecer para sempre nas fornalhas do inferno.
Não peço comiseração de ninguém, pois eu sabia bem o que estava
fazendo, quando aceitei os termos do acordo. O que vou lhes
contar, por mais terrível e assustador que possa parecer, serve
apenas para passar o tempo e divertir nossos espíritos
embriagados. Vamos encher mais uma vez os copos...
Pois é uma história de amor que vou lhes contar. Não um
romance qualquer, mas o maior caso de amor que já existiu sobre
esta terra ungida de flores e estrume. Alguns de vocês podem achar
que a morte me deixou com uns ressaibos de megalomania ou que
estou apenas fazendo estilo para acender o pavio da curiosidade
que vejo em seus rostos. Lembrem-se, em geral, os mortos são
serenos e comedidos por natureza e eu não fujo à regra. A verdade
é que Romeu algum jamais amou tanto quanto eu amei e nenhuma
Julieta mereceu ser tão amada, quanto esta que chamarei de
Caroline, para lhe preservar a verdadeira identidade.
Não me perguntem em que rua da cidade nossos olhos
tropeçaram uns nos outros pela primeira vez. Creio que foi na
infância ou pouco depois. Seja como for, era como se eu
conhecesse Caroline desde sempre. Certo mesmo, só posso afirmar
que ela era a mais linda criatura que já vicejou debaixo das arcadas
do sol. E também a mais graciosa, a mais formosa, a mais
exuberante fêmea já lapidada pelos cinzéis divinos, onde Deus
mostrou o que é ser Deus. Desculpem os adjetivos babados, é que
o amor vai muito além da morte. E eu idolatrei esta mulher como
uma autêntica deusa.
Lembro-me de tê-la visto, certa vez, saindo da biblioteca
com algumas amigas. Vestia um vestidinho xadrez sem graça,
desses de escola, que descia abaixo do joelho, mas que nela caía
tão bem quanto numa princesa de conto de fadas. Foi quando
percebi que já não poderia mais viver sem aquela garota. Por vários
meses, passei a frequentar a biblioteca, sem jamais a ter
encontrado novamente. Eu a amava de maneira ensandecida,
doentia. Amava uma imagem, uma lembrança que vinha da infância
e que, depois disso, eu só tinha visto mais uma vez. Durante anos,
permaneci agrilhoado a este amor brutal como um condenado numa
masmorra sombria. Até que um dia, os conchavos divinos
colocaram Caroline outra vez em meu caminho. Gelásio, meu velho,
vejo que seu copo está vazio. Empurre-o para cá... isso! Deixe-me
cobri-lo com rum. Aí está! Brindemos ao amor e aos mortos...
Como eu ia dizendo, um dia, esses deuses chacoteiros que
se refestelam nas moitas dos céus calharam de entrelaçar as linhas
de nossos destinos. Alguns de vocês talvez ainda se lembrem do
Giácomo. Num sábado de tarde, eu e ele combinamos de ir a uma
sorveteria no centro da cidade. Havíamos acabado de fazer nosso
pedido e nos dirigíamos para uma mesa, quando ouvimos uma voz
dizendo: “Olá, Giácomo, não conhece mais as amigas?” Olhei para
trás e quase tive uma síncope. Meu coração transformou-se numa
britadeira e creio que fiquei mais gelado do que o sorvete que trazia
nas mãos. Ali estava a garota dos meus sonhos, ao lado da amiga
de Giácomo. Elas nos convidaram para sentar e ficamos
conversando com as duas por mais de uma hora. Verdade seja dita
que nunca o tempo me pareceu escorrer tão veloz como naqueles
doces momentos em que estive ao lado de minha amada. Depois,
Giácomo as convidou para dar um passeio em seu carro
conversível. Sentei no banco de trás, junto de Caroline, e eu me
sentia como se tivesse encontrado as chaves do céu. Ela mostrava-
se bastante interessada em tudo que eu dizia e ria com aqueles
lábios escarlates que pareciam prometer prazeres infinitos. Pouco
antes de anoitecer, levamos as duas jovens para suas casas e
combinamos nos encontrar no dia seguinte para um piquenique.
Não dormi aquela noite, tamanha era a minha ansiedade, o meu
desejo de me encontrar outra vez com Caroline. Durante toda a
madrugada, fiquei recordando cada uma das palavras que ela me
dissera ao longo da tarde, procurando descobrir os silêncios latentes
nas entrelinhas. Meus caros, vocês também já tiveram vinte anos e
sabem bem como funciona o coração dos enamorados. Por volta
das dez horas, apanhamos as meninas e nos dirigimos para o
campo. Como não podia deixar de ser, Caroline achava-se
estupendamente linda enfiada em seu shortinho rosa, exibindo
pernas bronzeadas que deixavam até os anjos tontos. Tão logo
chegamos a um local que nos pareceu adequado, embaixo de uma
árvore robusta, estendemos uma toalha sobre o chão e começamos
a tirar de dentro da cesta todas as iguarias trazidas. Havia frutas,
doces, bolos e pães de forma com queijo. Logo, as formigas
apareceram para almoçar conosco, mas nem isso atrapalhou o
nosso divertimento. Algum tempo depois, convidei Caroline para dar
um passeio e deixamos Giácomo e sua garota para trás. Na
verdade, eu queria me livrar deles, para ficar mais à vontade com a
minha amada. Caminhamos durante uns vinte minutos pela
estradinha de terra, até que ouvimos o ruído de água caindo e
entramos num bosque. Nunca, o aroma das folhas das árvores me
pareceu tão intenso, fresco e delicioso. Pouco adiante, havia uma
cachoeira despencando sobre um pequeno lago e algumas pedras.
Caroline ficou maravilhada diante daquela paisagem extraordinária
e, talvez porque tivesse bebido mais vinho do que deveria durante o
almoço, indagou:
- Vamos entrar?
Não esperou pela minha resposta e já começou a se despir.
Ao vê-la assim ao natural, o sol encoxando seu corpo tenro e
perfumado, a brisa brincando em seus cabelos macios, juro que
experimentei uma das sensações mais extraordinárias de minha
vida e que nunca pude compreender direito. Sentia um furacão me
rasgando as entranhas e a minha cabeça girava de excitação, como
se fosse rebentar num delírio extremo. Ela deu um mergulho
impressionante sobre o espelho das águas e desapareceu por
alguns instantes. Quando veio à tona, jogou seus cabelos molhados
sobre um dos ombros e acenou para que eu também entrasse na
lagoa. Evidentemente, não esperei por outro convite. Tirei minhas
roupas de maneira um tanto atabalhoada e pulei dentro do laguinho
esbanjando falta de graciosidade. A água estava gelada, mas não o
suficiente para arrefecer o fogo que me incendiava os poros.
Enquanto eu caminhava para a sua direção, Caroline começou a
espirrar jatos d´água sobre mim. Comprei a brincadeira e passei a
fazer o mesmo. Ela ria exultante e fingia fugir de mim, até que eu a
alcancei e a estreitei entre meus braços. Nossos corpos colaram-se
num abraço delicioso e eu tive a impressão de que anjos soltavam
rojões no céu. Cravei meus olhos nos dela, que ferviam de
excitação. Então, sem esperar mais nenhum instante, dei um beijo
voluptuoso em seus lábios, o beijo que eu havia guardado por tanto
tempo.
O sol já estava quase se pondo, quando decidimos retornar.
Depois de brincarmos na lagoa e debaixo da cachoeira,
permanecemos um bom tempo tomando sol sobre uma grande
pedra, trocando carícias e beijinhos apaixonados. Vestimos nossas
roupas e caminhamos de volta para o local do piquenique.
Encontramos Giácomo mais sua garota no banco de trás do carro
conversível, os dois bastante despenteados. Caroline perguntou se
havíamos chegado em má hora. Sua amiga riu maliciosamente e
disse que não. Ela afirmou que tinham passado uma tarde
maravilhosa e estavam apenas nos aguardando para ir embora.
No sábado seguinte, combinamos ir ao cinema. A semana
custou a passar e eu não via a hora de ter a minha amada nos
braços outra vez. Fui buscá-la em sua casa, dessa vez de moto.
Obviamente, ela estava deslumbrante em seu vestidinho preto
colado ao corpo. Dei-lhe um beijo na boca e lhe pedi para subir na
garupa. Chegamos ao cinema em cima da hora, quando a sessão já
estava começando. Era um filme de terror, que eu não vi
absolutamente nada. Só tinha olhos para Caroline e a devorava
extasiado com todos os meus sentidos. Abraçá-la, degustá-la em
toda sua essência ali no escurinho da sala me fazia estalar de
felicidade. Foi uma paixão tão avassaladora, que resolvemos nos
casar em menos de seis meses. Eu não podia ficar nem mais um
segundo longe daquela garota extraordinária, que arrebatara meu
coração de maneira tão vertiginosa.
Mas o destino é cruel...
Uma semana após o nosso casamento, comecei a passar
mal. Eu vivia enjoado, tinha tonturas inexplicáveis e cheguei mesmo
a cair na rua. Fiz inúmeros exames e, através de um dos médicos
que consultei, fiquei sabendo que só teria mais três meses de vida.
Três meses de vida! Sabem o que é isso? Imaginam o terror que se
apoderou de meu espírito? Aquela notícia caíra como um morteiro
sobre a minha cabeça. Era muito pouco tempo para viver ao lado de
Caroline, desfrutar de toda sua exuberância, agora que estávamos
casados e após tê-la amado em silêncio por tanto tempo. Disseram-
me que eu tinha um coágulo no cérebro, uma autêntica bomba que
poderia explodir a qualquer minuto. Pois lhes digo que fiz tudo que
estava a meu alcance para salvar minha vida. Procurei outros
médicos, fiz novos exames, mas o diagnóstico era sempre o
mesmo. Busquei outros caminhos, como medicina alternativa, curas
espirituais e esotéricas. Nada disso, porém, parecia reverter em
benefício para o meu miserando estado de saúde, que piorava dia a
dia. Até que, certa feita, recomendaram-me um velho feiticeiro.
Eu nunca acreditara em nada dessas coisas, mas estava
desesperado. Então, por que não ir procurar o homem? O máximo
que eu poderia perder era meu tempo, que já ia se tornando cada
vez mais escasso. Indicaram-me o endereço aproximado do sujeito
e meti-me pelos arrabaldes da cidade. Durante horas, rodei de moto
por ruazinhas íngremes e sujas, onde crianças remelentas e quase
nuas brincavam na lama e em poças d´água feito bichos.
Finalmente, após perguntar para inúmeras pessoas, obtive
informação segura e consegui descobrir onde morava o feiticeiro.
Era uma casinhola velha, caindo de podre, que o tempo ia
transformando em ruínas. Por um instante, passou-me pela cabeça
que eu estava perdendo meu tempo e deveria ir embora. Se a
medicina não tinha solução para o meu caso, não seria alguém que
morava naquele pardieiro que iria me curar. Talvez o velho fosse
mesmo um charlatão e se aproveitasse da aflição das pessoas para
lhes arrancar dinheiro. Porém, eu já estava ali e resolvi arriscar. Bati
palmas umas duas ou três vezes, até que uma negra de uns
sessenta anos veio atender. Expliquei-lhe o que me trazia até a sua
moradia, dizendo que desejava me consultar com o curandeiro. A
boa mulher me conduziu até o interior da residência e me pediu para
aguardar um instante numa saleta de tijolos aparentes. Fiquei
observando os poucos móveis desgastados, o chão de barro socado
e algumas lagartixas penduradas nos caibros do telhado. Cinco
minutos depois, apareceu o feiticeiro, um negro magro e baixo, com
cabelos muito brancos e andar vagaroso. Era cego de um olho,
onde se via uma gosma amarela que parecia escorrer do buraco da
órbita. Aquilo já me deixou com um pé atrás. Se ele não podia curar
a si próprio, que poder teria para curar seus clientes? Pediu-me para
me deitar em uma rede e, apanhando uma garrafa de cachaça
sobre uma mesinha, bebeu uns bons goles da bebida. Seu olho bom
ficou vermelho, esbugalhado. Então, ele se pôs a fumar e me
examinar com suas fumaças e folhas de plantas que roçava pelo
meu corpo. Falava baixinho, como se estivesse dialogando com
fantasmas. Ao cabo de alguns poucos minutos, ordenou que eu me
levantasse, dizendo que não podia fazer nada por mim. Ninguém
podia, pois era muito tarde. Ao ouvir aquilo, senti como se uma
descarga de água fria tivesse escorrido por dentro de minha coluna
cervical. Aos poucos, fui sendo tomado por uma fúria selvagem e
minha vontade era esganar aquele vigarista miserável. Ele percebeu
minha cólera e bradou mansamente:
- Acalme-se, sempre há uma solução.
- Como, se você acabou de me dizer que ninguém pode
salvar a minha vida?
- Ninguém que caminha nestes campos sob o sol. Mas há
alguém que pode...
- Diga-me de uma vez!
- Melhor não tocar nestes assuntos. É terrível demais...
Enfurecido, agarrei-lhe a gola da camisa com meus punhos
e o encostei contra a parede. Bradei iracundo:
- Diga de uma vez por todas, maldito, ou lhe quebro todos
os ossos!
- O senhor das moscas...
Ao escutar tais palavras, larguei o sujeito. Nunca ouvira falar
neste senhor das moscas. Disse-lhe que não o conhecia e o
feiticeiro me respondeu que todos o conhecem, mas por outros
nomes. Ele dirigiu-se até uma velha arca de madeira e retirou dela
um antigo livro encadernado em couro. Mostrou-me o título: O livro
negro de Berzebu. O demônio? Proferi assombrado. Ele assentiu
com a cabeça e pôs o livro sobre a mesinha.
- Como posso encontrá-lo? Perguntei ansioso.
O feiticeiro passou a folhear o grosso volume com dedos
ágeis, como se procurasse uma parte específica. Chamou-me a
atenção que o livro era todo manuscrito, redigido com tinta vermelha
escura, certamente sangue. Enfim, ele parou em determinada
página e exclamou:
- Aqui está!
Com seu dedo torto, o velho acompanhava as linhas que
passou a ler em voz alta. Para encontrar Berzebu, eu deveria ir a
uma encruzilhada numa noite sem lua, num local ermo atrás de um
cemitério, e dizer três vezes a frase: “Eu o invoco, Senhor dos
domínios infernais. Vinde em meu auxílio!”. Em seguida, acender
uma vela preta e fincar sua base no chão, para que os caminhos de
Satanás fossem iluminados. Ao pé da vela, fazer uma pequena cova
e enterrar um crucifixo bento. Finalmente, rezar a seguinte oração,
urinando sobre o crucifixo, com o cuidado de não apagar a vela,
pois, dessa forma, o demônio não aparecerá:
Oração a Berzebu
C onheceram-se num
parque de diversões
que se instalara nos
arredores da cidade no início do verão. Os dois já vinham trocando
olhares mais entusiasmados e sorrisos cúmplices desde que
estiveram se divertindo nos carrinhos bate-bate e Nick Carson
passara todo o tempo perseguindo a garota. Quando saíram de lá,
foram direto para o Trem Fantasma, que ficava ao lado. Enquanto
caminhava para entrar na fila do brinquedo, Linda Lee ia passando
os dedos nos cabelos ruivos e, por mais de uma vez, olhou para
trás, mordendo sensualmente os lábios grossos. A brisa espalhava
o perfume do corpo da jovem por toda parte e dava a impressão de
ter fisgado o rapaz pelas narinas. Ele entrou na fila bem atrás dela e
calharam de dividir o banco de um dos carrinhos, que chegou
fazendo grande barulho nos trilhos.
- Se importa de ir comigo? Nick perguntou.
- De maneira alguma.
Logo na primeira curva, quando um dos bonecos
fantasmagóricos surgiu no meio da escuridão, Linda Lee agarrou-se
aos ombros do moço, que aproveitou para abraçá-la. Mais por
brincadeira do que propriamente medo, a menina ia gritando
excitada, como se desejasse incentivar aquela agarração. Os dois
divertiram-se bastante nos poucos minutos em que durou o trajeto e,
quando o carrinho parou, riam como velhos amigos. Ele a ajudou a
descer e indagou:
- Qual é o seu nome?
- Linda Lee.
- O meu é Nick Carson. Muito prazer!
Dizendo isso, segurou-lhe uma das mãos e lhe deu um beijo
no rosto. Por algum tempo, ficaram conversando ao lado do Trem
Fantasma. Nick estava encantado com a beleza da menina e fazia
de tudo para parecer um rapaz interessante. Contou-lhe que morava
sozinho e que trabalhava com qualquer coisa no ramo de
importações. No início da conversa, ocorreram alguns silêncios
constrangedores; porém, os dois logo passaram a se sentir bastante
à vontade, como se não existissem mais barreiras a inibi-los. Linda
Lee disse-lhe que viera sozinha ao parque. Havia combinado de vir
com uma amiga, mas ela lhe dera o bolo, pois fora se encontrar com
o namorado. Já estava ali mesmo e resolvera entrar.
- E você, também veio sozinho? Indagou a menina.
- Exato. Queria ver se encontrava uma garota bonita como
você.
Linda Lee corou deliciosamente e riu do elogio. Depois,
proferiu em voz baixa, vestindo a capa da modéstia:
- Mas sou tão sem graça...
Não era verdade. Linda Lee tinha seus encantos
apetecíveis, como seios rechonchudos, cintura fina e nádegas
arrebitadas. Além do mais, trazia estampado no rosto simétrico e
bem desenhado um sorriso cativante de rosa desabrochando na
aurora e um olhar misterioso de loba fascinada pela lua. Como não
tinham compromisso com mais ninguém, combinaram passear
juntos pelo parque. Andaram em diversos brinquedos, mas foi no
alto da roda-gigante que o rapaz tomou coragem e lhe deu o
primeiro beijo. A garota não refugou. Antes, ofereceu seus lábios
feito uma potra sedenta a beber água no cocho. Quando tornaram à
terra, já estavam apaixonados. Passaram a tarde toda em idílicos
arroubos de felicidade, trocando juras de amor eternas, correndo
atrás das borboletas douradas, suspirando na brisa palavras
cobertas de purpurina que só os enamorados podem suportar. A
certa altura, após comerem uma maçã do amor e terem ficado com
os lábios caramelados, eles passaram diante da barraca de uma
vidente e Linda Lee pediu:
- Vamos entrar? Quero ver o que ela diz sobre o nosso
futuro...
O rapaz concordou, levantando a lona da tenda que servia
de porta. Uma mulher com cabelos cor de cinzas, emaranhados
desleixadamente sobre os ombros, rotunda como uma porca e
exibindo um olhar seco de víbora, achava-se entronchada sobre
uma cadeira de plástico, atrás de uma mesa onde se viam duas
velas ardendo em tocos de cera. Vestia-se com roupas
espalhafatosamente coloridas, trazia grandes brincos pendurados
nas orelhas e diversos anéis em todos os dedos das mãos. Ao ver
novos clientes chegando, estendeu no rosto grafitado de bexigas o
melhor sorriso que pôde, apontou para duas cadeiras e disse:
- Sentem-se, já vou atendê-los.
O casal obedeceu à vidente, que apagou seu cigarro com a
ponta dos sapatos e lançou uma revista de obscenidades num dos
cantos. Apanhou um baralho seboso dentro de uma gaveta,
embaralhou-o mecanicamente e pediu para Linda Lee cortar. A
menina o fez com o coração batendo acelerado, pois estava
bastante excitada com tudo aquilo. A penumbra dominava o
ambiente ali no interior da tenda e a pouca iluminação provinha
apenas das chamas trêmulas das duas velas postas sobre a mesa.
A vidente virou a primeira carta. Era da morte. Ao vê-la, os olhos da
garota esbugalharam-se, mas ela permaneceu calada. A mulher
tirou mais duas: o ermitão, seguido pelo demônio. Após alguns
instantes de silêncio, ela proferiu:
- Vejo um grande amor na vida de vocês...
Linda Lee floriu um sorriso, aliviada. Era o que desejava
ouvir. Nick Carson apanhou a mão da namorada e notou que ela se
achava úmida. Os dois fitaram-se por alguns segundos,
apaixonadamente, querendo se beijar. Porém, não o fizeram, pois a
bruxa poderia não gostar daquelas liberalidades em sua tenda e os
dois temiam que ela os transformasse num casal de lagartas.
Depois, a mulher pôs-se a fazer inúmeras previsões sobre a vida
futura deles. Via um casamento para breve, muitos filhos lindos
enchendo a casa, carro do ano na garagem, dinheiro a rodo e
felicidade dando em cachos. Evidentemente, eles ficaram muito
satisfeitos com aquelas previsões e agradeceram bastante à mulher.
Nick Carson perguntou quanto lhe devia, mas a vidente afirmou que
não cobrava nada pela consulta. Os clientes é que deixavam, de
maneira espontânea, a importância que julgavam valer o serviço. O
rapaz tirou uma nota de cinquenta novinha da carteira e entregou
para a distinta, com certa dor no peito. Sabia que estava sendo
generosíssimo, mas ele queria mesmo era impressionar Linda Lee.
Já estava escurecendo, quando os dois deixaram a tenda da
vidente. A menina disse-lhe que precisava regressar para sua casa
e Nick insistiu que a acompanharia. Antes, porém, declarou:
- Espere! Quero lhe dar um presente para que se lembre de
mim...
- O que é?
Ele a conduziu até uma barraca de tiro ao alvo, que ficava
ali perto. Nick Carson tinha excelente pontaria e seus amigos
estavam cansados de vê-lo acertar uma moeda atirada no céu com
sua espingardinha de chumbo. Aquilo era fácil. Sem o menor
problema, acertou os seis patos que passavam lá adiante com os
seis tiros a que tinha direito. Ganhou o prêmio principal, que era um
grande urso de pelúcia, segurando um coração, onde estava escrito
a palavra “love”. Linda Lee ficou bastante emocionada ao recebê-lo
e pagou tão lindo presente com um apaixonado beijo na boca do
rapaz. Já era noite, quando os dois se despediram na porta da casa
da garota. A lua achava-se madura e eles podiam jurar que as
estrelas bimbalhavam sinos no céu.
* * *
* * *
O s jantares de Dom
Dominghini
sempre
eram
divertidos.
Uma vez por mês, ele fazia questão de reunir toda a família, filhos e
filhas, noras e genros, netos e netas, em torno de sua mesa
abundante. Matava-se um porco gordo, que era assado durante a
tarde inteira em fogo brando, grelhavam-se carnes diversas e
preparava-se um delicioso peixe cozido com batatas e azeitonas.
Também não faltava a tradicional pasta ao molho de tomate, quase
sempre espaguete. Tudo regado com bom vinho dos melhores
vinicultores italianos. Evidentemente, as conversas eram alegres e
giravam em torno dos mais variados assuntos. Naquela noite, Paola,
uma das netas de Dom Dominghini, contando então dezessete
anos, não se cansava de comentar sobre o passeio que ela e sua tia
Antonella haviam feito na véspera. Elas tinham se dirigido até o
centro de Roma para assistir a uma fita no cinematógrafo, recém-
inaugurado na cidade. Excetuando-se as duas, nenhum dos
presentes, até então, podia se gabar de conhecer aquele novo tipo
de diversão. As primas queriam saber como funcionava e já faziam
planos para, nas próximas semanas, irem todas juntas ver aquela
novidade. Os mais velhos, por sua vez, achavam que aquilo não
passava de modinha passageira e logo o cinematógrafo fecharia as
suas portas. Nada como o teatro, com os atores presentes, atuando
ao vivo.
Pouco antes de ser servida a sobremesa, uma notável
compota de figo, feita pelas mãos da própria esposa de Dom
Dominghini, começou a chover forte e inúmeros trovões passaram a
retumbar nos céus. Subitamente, um relâmpago explodiu ali perto e
as luzes se apagaram. Houve um alarido geral por parte de todos os
comensais e as meninas começaram a gritar por pilhéria, fingindo
que estavam com medo das trevas, pois uma escuridão tremenda
passou a dominar todo o ambiente. Logo, providenciaram-se velas,
que foram colocadas em castiçais sobre a mesa. Quando a surriada
diminuiu um pouco, Dom Dominghini falou:
- Vocês, minhas netas, que nasceram ontem, com a energia
elétrica instalada confortavelmente em nossos aposentos, não
sabem como era viver sem ela, há uns trinta anos, quando tínhamos
apenas o gás para iluminar nossas casas ou ainda, antes disso, no
tempo de minha longínqua mocidade, quando a iluminação provinha
apenas de velas de cera.
- Mas, nonno, nós estávamos gritando, porque temos medo
de escuro. Respondeu uma das moças, em tom de chacota.
As sombras das velas dançavam macabramente pelas
paredes e eram refletidas num grande espelho que havia pendurado
sobre uma penteadeira, encostada a um dos cantos da sala. Os
reflexos pálidos daquela luz amarelenta punham na face de todos
matizes sombrios, encovando os olhos e fazendo aparecer malares
ossudos e queixos proeminentes.
- Por que medo do escuro? Quis saber Dom Dominghini.
- Por causa de assombração...
O velho deu uma risada lúgubre de propósito. Depois, após
comer uma colherada do doce de figo, bradou:
- Então, vocês têm razão por ter medo.
- Por que, nonno, você já viu alguma alma do outro mundo?
- Não quero falar sobre esse assunto. Tudo isso é muito
assustador e não gosto nem de me recordar. Respondeu o velho,
procurando atiçar ainda mais a curiosidade das meninas.
- Ah, conta, nonno... Pensávamos que você não tivesse
medo de nada...
- E não tenho mesmo! Só tive medo uma vez na vida,
quando eu era tão jovem quanto vocês. Um medo tão profundo e
aterrorizante, que até hoje sinto minhas pernas tremerem ao me
recordar.
Todas as moças começaram a bater na mesa com as
colheres, bradando juntas, feito um coral ensaiadinho:
- Conta! Conta! Conta!
- Está bem, mas depois não digam que não avisei. O que
ocorreu comigo é uma história tenebrosa e macabra. Se alguma de
vocês não conseguir dormir à noite, não venham colocar a culpa em
mim...
* * *
* * *
Houve uma surriada geral por parte das meninas, pois a luz
havia retornado no exato instante que Dom Dominghini encerrara a
sua narrativa.
- Não disse que era uma história aterrorizante? Agora, por
favor, passem-me mais um pouco de vinho, pois estou com a
garganta seca.
A merenda
O motorista parou o
carro no
acostamento e disse
para o jovem casal seguir por uma trilha que havia pouco adiante,
caso quisessem chegar até as montanhas antes de escurecer.
Johnny Dee desceu do veículo, seguido por Mary Ann, que apanhou
as duas mochilas e as colocou sobre o chão de pedriscos. O rapaz
agradeceu a carona e lhe ofereceu um cigarro, como cortesia. O
homem o apanhou com seus dedos grossos e devolveu o maço
quase vazio a Johnny, que acendeu outro para si próprio, com o
velho isqueiro onde se via uma caveira em alto-relevo no aço
escovado. Deu uma longa tragada, soltando prazerosamente
fumaça pela boca, e colocou uma das mochilas nas costas. Mary
Ann pegou a outra e os dois começaram a caminhar pela estreita
estradinha, de mãos dadas, pisando as folhas de eucaliptos, que
margeavam os dois lados do caminho.
Há quase uma semana, haviam começado aquela viagem
pelo interior do país, praticamente sem dinheiro algum. Comiam e
dormiam conforme a generosidade das pessoas a quem pediam
abrigo e alimento. Às vezes, passavam a noite ao relento, tão
abraçados que pareciam ter se fundido num único corpo, amando-
se debaixo da madrugada estrelada. Ela deixara um recado para
seus pais, dizendo que iria atrás de sua felicidade. Ele, nem isso.
Saíra de casa sem avisar ninguém, levando na mochila apenas o
estritamente necessário: algumas camisas, cuecas limpas, calças e
escova de dentes. Não havia com o que se preocupar. O importante
era aproveitar cada minuto, como dizia Johnny Dee a Mary Ann, que
o resto viria naturalmente. Estavam felizes e isto era que importava.
Após caminharem por quase uma hora, chegaram a uma
clareira, onde havia uma cabana de um lado e um velho celeiro do
outro. O rapaz disse à namorada que ali seria um bom local para
eles passarem a noite. Logo iria escurecer e a tarde estava ficando
gelada. Dirigiram-se até a choupana e bateram na porta, mas
ninguém atendeu. Bateram de novo. Nada. Certamente, não havia
pessoa alguma na casa. Mary Ann forçou a maçaneta e a porta se
abriu, rangendo nas antigas dobradiças meio enferrujadas. Johnny
Dee adiantou-se a ela e entrou na frente, seguido pela garota. Como
imaginavam, o casebre encontrava-se vazio. Possuía apenas dois
ambientes: um quarto nos fundos, onde se achava uma cama de
solteiro, e uma espécie de sala na frente, que também servia como
cozinha. No centro desta, existia uma mesa de madeira rústica,
exibindo dois pratos com restos de comida seca e moscas voejando
sobre eles. Junto a uma das paredes, ficava o fogão à lenha,
encostado a uma pia. No outro lado da sala, havia uma lareira ainda
com cinzas e restos de madeira queimada. Um velho armário
ensebado fazia parte do escasso mobiliário, composto por algumas
cadeiras, uma estante e uma grande arca posta num dos cantos.
Mary Ann colocou a sua mochila sobre a mesa e disse:
- Parece que os proprietários saíram às pressas. Não
tiveram nem tempo de lavar os pratos...
Johnny Dee olhou-os com atenção, dizendo que os restos
secos daquela comida deveriam estar ali há pelo menos quinze
dias.
- Será que voltarão? – quis saber a menina.
- Talvez sim, talvez não. De qualquer forma, acho que não
vão se importar se a gente passar a noite aqui.
A garota concordou com um sorriso. Sentia-se cansada e
não queria dormir ao relento mais uma vez. Como estava esfriando,
o rapaz saiu para procurar um pouco de lenha, pois desejava
acender a lareira. Ele regressou pouco depois, carregando uma
braçada de galhos secos, que encontrou junto a uma cerca, tudo já
muito bem cortadinho e pronto para ir ao fogo. Mal entrou na
choupana, proferiu:
- Sabe o que eu descobri atrás da casa? Uma tina!
- Uma tina? Estou louca de vontade para tomar um banho!
- Eu também. Vou apanhá-la e já volto.
Ao regressar, Johnny Dee acendeu a lareira e o fogão à
lenha, sem grande dificuldade, pois eles haviam encontrado um
frasco de álcool debaixo da pia. Colocaram sobre a grelha um
grande latão de água e começaram a preparar o banho. Para que
este não ficasse muito quente e lhes escaldasse a pele, puseram na
tina um pouco de água da torneira. Depois, viraram o tacho fervendo
sobre ela e a temperatura da água ficou bastante agradável. Os dois
começaram a se despir, quando Mary Ann lembrou-se que não
tinham toalhas para se enxugar.
- Dê uma olhada na arca. – disse o rapaz.
Ela abriu a enorme canastra e sorriu de felicidade ao
encontrar uma toalha de banho.
- Veja! E há também pijamas de flanela!
A água deliciosamente aquecida da tina acariciava-lhe as
carnes excitadas e amaram-se de maneira apaixonada. Quando
saíram dali, vestiram os pijamas e Mary Ann disse que iria preparar
qualquer coisa para eles comer. A moça havia olhado dentro do
armário e encontrara muita comida enlatada, mas não conseguiram
descobrir um abridor de latas em parte alguma. Então, ela apanhou
um pacote de macarrão instantâneo e o atirou dentro de uma panela
com água. Não era a melhor refeição do mundo, mas servia para
matar a fome.
Enquanto aguardava a comida ficar pronta, Mary Ann sentiu
algo peludo roçar os seus tornozelos. A garota deu um pulo para
trás, acompanhado de um grito pavoroso. No mesmo instante,
Johnny Dee saltou da cadeira onde se achava sentado e berrou:
- Um rato!
Imediatamente, ele pegou uma vassoura e cercou o animal,
que acabou acuado num canto. Mary Ann trepou em uma cadeira e
passou a se esgoelar feito uma neurótica destrambelhada:
- Mata! Mata! Mata!
Normalmente, os ratos são bichos espertos, mas aquele não
deveria estar nos seus melhores dias. Para fugir ao seu perseguidor,
ele escolheu regressar pelo mesmo caminho, passando ao lado de
Johnny Dee, que lhe sentou uma senhora bordunada, amassando o
infeliz no chão. Alucinado, o rapaz cobriu a ratazana de
vassouradas, apenas para garantir. Em seguida, varreu-o para fora
da choupana.
- Jogue-o longe daqui! – berrou Mary Ann ainda de cima da
cadeira.
Com um pedaço de papel, Johnny Dee apanhou o animal
pelo rabo e o atirou com toda força para longe, indo o cadáver cair
perto do celeiro.
- Agora pode descer da cadeira, está salva.
A menina pulou no chão. Ainda se achava um pouco
nervosa e disse:
- Não quero dormir num lugar infestado por ratos!
- Talvez fosse o único. Tive a impressão, se não me engano,
de tê-lo visto sair detrás daquela arca.
- Então dê uma olhada, por favor! Cuidado...
Segurando a canastra por uma das laterais, o moço a
empurrou um pouco de lado. Ficou muito surpreso com o que
encontrou ali. Atrás da arca, havia um buraco enorme na parede,
que daria para passar até um lobo. Johnny Dee aproximou seus
olhos espantados daquela abertura e proferiu:
- Que estranho! A madeira parece ter sido roída... que
animal poderia ter feito isso?
Mary Ann passou seus dedos delicados sobre as grossas
toras destruídas, dizendo:
- Veja como a marca dos dentes são grandes. Meu amor,
isto me deixou arrepiada e estou com medo. Vamos embora daqui?
- A esta hora? Onde descobriremos outro lugar para dormir?
Não se preocupe. Seja lá que bicho fez isso, deve estar longe
agora. Caso contrário, ele teria revirado a casa inteira atrás de
comida e encontramos tudo relativamente arrumado... Além do
mais, temos muitas facas para nos proteger. Ainda assim, se você
se achar insegura, posso consertar isso facilmente...
- Como?
Os dois passaram para o lado de fora da casa através do
buraco. O rapaz contemplou o estrago por alguns segundos, até que
disse:
- Posso pregar umas tábuas aqui. Aliás, vou fazer isso agora
mesmo... Talvez haja pregos e martelo no celeiro...
Mary Ann acompanhou o namorado até lá. Por azar, a
enorme porta estava trancada com uma corrente e um grosso
cadeado. Johnny Dee deu um chute potente na porta, que balançou
as estruturas, mas não a abriu. A menina ergueu uma das mãos
diante do nariz, fazendo sinal de silêncio.
- Ouviu isto?
- Não ouvi nada! – respondeu o jovem.
- Veio lá de dentro. Algo como um alarido estranho, uma
mistura de cochichos e rosnados, não sei direito...
Fizeram silêncio por algum tempo, mas não escutaram nada
além do vento gelado soprando as folhas das árvores. Mary Ann
agarrou um dos braços do moço e pediu que entrassem.
- Já está escuro, não quero ficar aqui fora. Amanhã, você vê
se consegue consertar aquilo.
O rapaz concordou, um pouco a contragosto. Entraram na
choupana e encostaram a arca na abertura da parede, cobrindo
totalmente o buraco, para evitar que outro rato entrasse por ali.
Depois, como estavam cansados e não tinham mais nada para
fazer, resolveram ir para a cama. A garota não gostou do colchão,
que era de palha e pinicava bastante, além de exalar um cheiro forte
de umidade e bolor. Debaixo das cobertas, Johnny Dee começou a
tocar o corpo quente da amada e a lhe beijar o pescoço; porém,
Mary Ann virou de lado e disse que queria apenas dormir. Como
estava bastante preocupada, custou para pegar no sono. Somente
adormeceu no meio da madrugada, quando uma chuva miúda
começou a cair no telhado.
No dia seguinte, a garota acordou sozinha na cama. Ainda
meio ensonada, esticou o braço de lado e certificou-se de que o
rapaz não se achava ali. Teria saído para ir ao banheiro? Levantou-
se um pouco angustiada e chamou por ele, mas não obteve
qualquer resposta. Abriu a porta da choupana e pôs-se a gritar o
seu nome. Nada. Apenas a solidão daquele início de manhã gelada
parecia responder-lhe em dolorosas reticências. Quem sabe teria
ido procurar os malditos pregos e o martelo, a fim de consertar o
orifício da parede. Não, agora tudo aquilo lhe parecia uma ideia
estúpida. Mary Ann sentiu o vento aninhando-se em seus cabelos
compridos e decidiu entrar. Talvez o namorado tivesse ido comprar
pães e broas para o desjejum. Também não. Aquele, sim, era um
pensamento ainda mais estúpido.
Abrindo o armário, encontrou uma lata com pó de café. Leite
não havia. Acendeu o fogão, pôs água num bule e começou a
preparar o café. À medida que o tempo ia passando, ela tornava-se
mais aflita. Por volta das dez horas, saiu da choupana e se dirigiu ao
celeiro, mas este continuava trancado. Nem sinal de Johnny Dee.
Subitamente, uma ideia terrível tomou conta da menina, deixando-a
tão ferida, quanto se tivesse se abraçado a um cacto. E se o rapaz a
houvesse abandonado sozinha naquele local longínquo e deserto?
Mary Ann não queria acreditar nessa possibilidade. Ao
entrar novamente na choupana, seus olhos depararam-se com a
mochila dele em cima de uma cadeira. Se fosse para ir embora, com
toda certeza não a deixaria ali. A garota abriu o zíper e constatou
que as roupas se encontravam todas em seu interior. Até mesmo a
calça e a camisa usadas por Johnny Dee no dia anterior
permaneciam esticadas no espaldar daquela cadeira. Isto só
poderia significar que ele saíra vestindo apenas o pijama. Tal
pensamento tranquilizou-a um pouco, pois seu namorado não
poderia ter ido longe. Talvez, estivesse se preocupando à toa.
Enquanto aguardava, Mary Ann pôs-se a procurar por
fósforos e acabou encontrando o abridor de latas no fundo de uma
gaveta. Resolveu preparar o almoço. Abriu uma lata de feijão e a
colocou no fogo, que acendeu com o isqueiro de Johnny Dee, o qual
permanecia dentro de um dos bolsos da calça do rapaz. Os fósforos
haviam desaparecido. Almoçou sem vontade e, após lavar a louça,
decidiu ler um romance de capa e espada que ela trouxera consigo
em sua mochila. Assim passou toda a tarde, concentrando-se pouco
na leitura, pois estava muito angustiada e nervosa. A todo instante,
pensava ouvir algo lá fora. Levantava-se, caminhava até a janela e
permanecia observando o mato agitado pelo vento. Quando
escureceu, acendeu um lampião a gás e continuou esperando,
tensa, preocupada, amargurada, desesperada, uma vez que não
sabia mais o que fazer.
A madrugada já ia alta e Mary Ann permanecia cochilando
numa cadeira, quando ela despertou subitamente, tendo a
impressão de que havia escutado um barulho estranho em volta da
casa. Que teria sido? Assustada, colocou uma das mãos atrás da
orelha para ouvir melhor, mas tal gesto resultou inútil, pois o ruído
tornou-se mais forte e amedrontador. Parecia algo se arrastando
com passos pesados, como se caminhasse com extrema
dificuldade. De repente, algo bateu violentamente na porta,
enchendo o espírito da menina de terror. Que fazer? A primeira
reação dela foi correr até o armário para apanhar uma faca, a maior
que encontrasse na gaveta. Em seguida, bradou com voz firme para
o invasor ir embora, porque ele se achava armada. Por alguns
instantes, fez-se um silêncio crítico, onde só se ouvia a respiração
alterada de Mary Ann. Enchendo-se de coragem, a menina deu
alguns passos até a janela, mas não viu nada. Já estava pronta para
sair dali, quando contemplou algo que a deixou aterrorizada. Cristo
Jesus! Era Johnny Dee.
Dominada por uma aflição tremenda, a garota abriu a porta
e o corpo do namorado caiu dentro da choupana, completamente
coberto de sangue. Trazia as roupas todas rasgadas e a pele
terrivelmente mordida. Um de seus olhos havia sido arrancado e as
orelhas achavam-se comidas. Parecia mais morto do que vivo.
Fazendo um esforço extraordinário, pois mal conseguia falar
tamanha dor que sofria, ele balbuciou com voz chorosa, ainda
tremendo em virtude das coisas terríveis que havia visto:
- Feche a porta...
Mary Ann chorava descontrolada, enlouquecida de pavor, e
só conseguia repetir as mesmas palavras:
- Que foi? Que aconteceu?
- Feche a porta... eles estão vindo...
- Eles quem?
- Os ratos... os monstros... fui ao celeiro... eles moram lá...
são criaturas demoníacas...
Ao ouvir aquilo, Mary Ann correu até a porta e a trancou. Em
seguida, ajudou o namorado a se sentar em uma cadeira.
Encharcou um pano de prato e começou a passar sobre o rosto
dele, coberto de feridas.
- Vou pegar um pouco de água com açúcar para você se
acalmar. – disse a menina.
Porém, enquanto agitava o açúcar no copo com uma colher,
os dois começaram a ouvir uma mistura de grunhidos e guinchos
assustadores.
- São eles! – bradou atônito Johnny Dee.
Imediatamente, Mary Ann apanhou outra vez a faca e foi
espiar pela fresta da janela. Oh, visão demoníaca! Havia ali,
cercando a casa, escarafunchando, grunhindo, rosnando, uma
infinidade de ratos gigantescos, quase do tamanho de javalis.
Pareciam enlouquecidos e mordiam as tábuas da parede, como se
desejassem derrubar a choupana. Faziam um barulho
ensurdecedor, convulsionados e coléricos, dando a impressão de
que aquelas feras selvagens não se alimentavam há muito tempo.
Um grito excruciante irrompeu do peito horrorizado de Mary Ann,
quando ela percebeu que alguns dos ratos estavam forçando a
entrada na cabana através do orifício da parede, empurrando a
canastra com seus focinhos enormes. Desesperados, os dois jovens
tentaram segurar a arca, empurrando-a contra a parede, mas não
eram páreos para a força descomunal daqueles animais diabólicos.
Duas ratazanas agarraram Johnny Dee por uma das pernas e
começaram a arrastá-lo para fora. Ele debateu-se aflito como um
peixe fisgado num anzol, mas foi inútil. Mary Ann ainda tentou puxá-
lo pelo braço com todas as forças que possuía, mas o corpo do
rapaz estava melado de sangue e escorregou. No mesmo instante,
levaram-no para o centro do terreiro e inúmeros ratos aglomeraram-
se sobre o moço, devorando-o vivo com uma voracidade atroz e
bestial. Outros invadiram a casa e apanharam Mary Ann. A menina
passou a gritar e espernear de maneira alucinada, enquanto ia
sendo arrastada até o celeiro. Por algum tempo, os seus gritos
ainda puderam ser ouvidos, até que um silêncio angustiante tomou
conta de tudo. Lá fora, o vento gelado continuava soprando por cima
dos telhados. Já não se via mais animal algum. A manhã começava
a despertar, sonolenta, enquanto que os ratos se preparavam para
dormir, saciados pelo saboroso acepipe, já sonhando com os
próximos visitantes, a próxima merenda.
A tétrica cabana da praia
* * *
Meia hora depois, o tempo começou a mudar e a noite, que
até então estava agradável, tornou-se medonha. Nuvens pretas e
assustadoras passaram a se amontoar por todo o céu e o horizonte
tingiu-se de luto. Trovões explodiam no firmamento e, por toda
parte, arrebentavam relâmpagos furiosos. Uma ventania tremenda
soprava agora, curvando as copas das árvores que podiam se
avistar além da estrada. Os ventos eram tantos, que batiam de
encontro às laterais da caminhonete e a sacudiam de maneira
impressionante, como se quisessem arrancá-la do chão. Ted
Williams tirou o cd do Metallica e sintonizou uma rádio que estava
dando notícias sobre aquela mudança repentina do clima. Em
algumas regiões ali perto, já se achava desabando uma tempestade
torrencial e a informação era de que estavam se formando alguns
ciclones. Isto encheu o jovem casal de medo, pois era muito
perigoso continuar viajando em tais condições. O mais seguro seria
passar a noite em algum motel à beira da estrada, mas não havia
nenhum por perto. Logo, a chuva os apanhou e veio tão forte, que o
limpador do para-brisas mostrou-se insuficiente para dar conta de
tanta água. A certa altura, um raio acertou uma árvore, que caiu
atravessada na rodovia. Ao avistá-la, o rapaz diminuiu ainda mais a
velocidade e, com todo cuidado, contornou-a por um trecho de
terreno além do acostamento. As rodas patinavam na lama e quase
desapareceram, quando a caminhonete teve de atravessar uma
parte alagada. Ted Williams mostrava-se bastante preocupado. Se o
veículo atolasse ali, eles não teriam como sair do local até amanhã
de manhã, quando o rapaz conseguisse ajuda. Mas tudo deu certo e
alcançaram à estrada novamente sem maiores danos.
- Acho melhor a gente parar em algum lugar! Exclamou a
moça, um tanto apavorada.
- Também acho, mas onde? Quer que eu pare no
acostamento?
- Não sei se é a melhor solução...
- Talvez a gente encontre um posto de gasolina logo
adiante...
- Ei, veja ali... parece uma cabana...
O moço fixou os olhos na direção indicada e bradou
exaltado:
- Tem razão! Vamos pedir abrigo para os proprietários...
Ele diminuiu a velocidade e entrou por uma estradinha de
terra. Desceu uma ribanceira e contornou uns matagais. Logo,
chegou a uma praia, diante da qual se encontrava a cabana.
Instigadas pela tempestade e pela ventania, as ondas quebravam
furiosas na areia, quase alcançando o velho sobrado. Ted Williams
estacionou a caminhonete embaixo de uma árvore folhuda e
desligou o motor. Ali, protegidos pelas ramagens da copa, a chuva
parecia menos intensa. Mesmo assim, era perigoso ficarem no
interior do veículo, pois os relâmpagos estavam despencando
violentamente dos céus e, alguns deles, tinham caído nas cercanias.
A garota apanhou um pequeno guarda-chuva em sua
mochila e desceu do carro apressada, seus tênis encharcando-se
ao enfiar os pés no aguaceiro que inundava toda aquela área. Mal
conseguiu abrir o guarda-chuva e ele foi arrebentado pelo vendaval.
Pâmela ainda tentou inutilmente consertá-lo às pressas, mas
acabou desistindo e o atirou na areia empoçada. O rapaz desceu
pelo outro lado e os dois correram ligeiros até a varanda do
sobrado. Como não podia deixar de ser, molharam-se bastante
durante a breve corrida. Aquilo lhes pareceu divertido e os dois
começaram a rir, quando se viram abrigados da tempestade.
A primeira coisa que notaram foi como a cabana achava-se
velha e estragada. A pintura estava descascando em inúmeros
locais, as tábuas das paredes apresentavam partes apodrecidas e
os caibros que sustentavam as telhas da varanda pareciam que
iriam ceder a qualquer momento. Com certeza, os proprietários não
faziam qualquer manutenção na propriedade há muito tempo. Mas
isso não tinha importância. O importante é que conseguissem abrigo
seguro por aquela noite.
Ted Williams bateu na porta com punhos decididos e eles
ficaram aguardando em silêncio por alguns instantes, mas ninguém
veio atender. Bateu novamente com mais entusiasmo. Nada. Talvez
já estivessem dormindo. O rapaz pôs-se a chamar pelos moradores
em altos brados. Mesmo assim, ninguém veio ver o que estava
causando aquele berreiro. Começaram a ficar aflitos.
- Será que são surdos? Brincou a jovem.
- Quer saber de uma coisa, eles vão me ouvir por bem ou
por mal...
O rapaz desceu as escadas da varanda correndo e voltou
para a caminhonete, debaixo da chuvarada. Acendeu os faróis altos,
que iluminaram toda a casa e passou a buzinar feito um alucinado.
Quando sentiu que já era o suficiente, regressou para a cabana e
indagou:
- E então?
- Nada! Nenhum sinal de vida. A residência deve estar
abandonada...
- É possível. Veja, está tudo escuro lá dentro, não há o
menor sinal de vida...
- O que vamos fazer?
- Se está abandonada, vamos entrar e passar a noite aí.
Que mal há nisso. Está com medo?
- Não... quero dizer, um pouco. E se aparecer alguém?
- Vamos dizer simplesmente que entramos na casa para nos
abrigar da chuva. Se for o caso, pagaremos pela hospedagem de
uma noite...
Nisso, um relâmpago explodiu a pequena distância dali, o
que os fez decidir mais prontamente pela invasão da cabana. Ted
Williams apanhou um vaso de cimento e bateu com ele na vidraça
da porta, estilhaçando-a em cacos. Meteu a mão na abertura e abriu
o trinco por dentro. Porém, quando retirou o braço, cortou o punho
em uma lasca afiada de vidro. Ao ver o sangue gotejando pela mão
do namorado, a garota gritou:
- Meu Deus! Precisa de um curativo!
- Não é nada! Foi só um arranhão.
Dizendo isso, o rapaz dirigiu-se até os degraus da varanda e
lavou a ferida com a água da chuva durante algum tempo. Depois,
enxugou o machucado na camiseta e chupou um pouco do sangue
que continuava escorrendo.
- Viu? Já está parando... Vamos entrar?
A jovem concordou. Ele girou a maçaneta e empurrou
levemente a porta, cujas dobradiças guincharam de maneira tétrica.
Por um instante, hesitou um pouco, imaginando que estava
devassando uma cripta, mas se encheu de coragem e entrou.
Pâmela seguiu atrás dele.
O interior da cabana achava-se muito escuro. O moço
tateou pela parede até encontrar um interruptor e o apertou. Uma
luz vermelha e tímida acendeu-se, preenchendo a sala com uma
luminosidade opaca. A moça fechou a porta e proferiu:
- Que luz estranha, deixa tudo com cara de boate.
Havia um abajur em cima de uma mesinha. Ted William o
acendeu e a sala foi inundada com mais luz vermelha. Ele desligou
o abajur e retirou a lâmpada:
- Veja, alguém a pintou de vermelho...
- Que coisa estranha! Por que fariam isso?
- Vá saber! Mas tenho a impressão de que todas as
lâmpadas desta cabana são assim. Dizendo isso, dirigiu-se ao
banheiro, que ficava ali do lado, e acendeu a luz. Verificou-se a
mesma coisa. O rapaz aproveitou para lavar as mãos na pia, pois
ainda havia um pouco de sangue nelas. Ao regressar para a sala,
sua namorada lhe disse:
- Será que há comida aqui? Estou faminta!
- Também estou. Vamos dar uma olhada...
Os dois dirigiram-se para a cozinha e puseram-se a revirar
os armários, mas não encontraram o menor sinal de alimentos.
- Não há nada aqui para se comer, nem uma lata de
sardinha!
A garota concordou com o namorado e, fitando-lhe os
cabelos ensopados, disse:
- Precisamos encontrar uma toalha para nos enxugar. Do
jeito que estamos, iremos apanhar um resfriado...
- Tem razão! Vamos dar uma olhada lá em cima.
As escadas eram escuras e sombrias. Ted Williams tomou
coragem e começou a subi-las pé ante pé, pois não sabia o que
poderia descobrir no segundo andar. A cada passo do rapaz, os
degraus envelhecidos de madeira guinchavam como se estivessem
vivos. Pâmela vinha logo atrás e seu espírito tinha sido tomado por
um sentimento difícil de definir, algo entre medo e excitação. Nunca
em sua vida tinha invadido a residência de pessoa alguma e esta
nova experiência estava fazendo seu sangue ferver de euforia. Eles
chegaram a um corredor sinistro e logo o rapaz encontrou o
interruptor. Naturalmente, uma luz vermelha e mortiça passou a
escorrer de uma lâmpada pequenina, presa numa luminária do teto.
Um cheiro forte e nauseabundo empestava o ar carregado de
podridão. O moço pôs uma das mãos na frente do nariz e proferiu:
- Deve haver um rato morto em algum lugar...
A menina imitou-lhe o gesto e os dois seguiram até o fundo
do corredor, onde encontraram um banheiro. Por sorte, havia uma
toalha pendurada num gancho na parede. Eles tiraram os sapatos,
despiram-se e se enxugaram.
- Vamos deixar nossas roupas esticadas sobre a porta.
Amanhã cedo, elas estarão mais secas. Agora, o melhor que
podemos fazer é encontrar uma cama e dormir.
Pouco depois de se despirem, a garota tentou abrir uma das
portas de um quarto, mas ela estava trancada. Ted Williams
permanecia no banheiro, lavando o resto de sangue coagulado em
suas mãos, quando ouviu Pâmela dar um grito assustador. No
mesmo instante, o moço correu até um quarto, onde ela acabara de
entrar, e contemplou aquela cena pavorosa. Sobre uma cama,
achavam-se restos do cadáver de uma velha sem roupa, bastante
mutilado, como se nacos de sua carne tivessem sido arrancados a
dentadas. Havia muito sangue escuro empapando os lençóis,
misturado a vísceras retorcidas, pedaços de ossos e gordura
amarelada. Ao observar visão tão horrenda, a jovem começou a
chorar de maneira histérica e seu corpo tremia tanto, que ela mal
conseguia se manter em pé. O rapaz abraçou-se à namorada e
bradou resoluto:
- Vamos sair daqui agora!
Ele a puxou pelo braço e se dirigiram até o banheiro para
apanharem as roupas. Quando começaram a se vestir, porém,
ouviram o ruído macabro das dobradiças guinchando e da porta se
abrindo lá embaixo.
O coração do rapaz parou de bater por um instante e seu
peito encheu-se de terror. Ao cabo de alguns segundo, Pâmela
indagou:
- Deus do céu! O que foi isso?
- Não sei, mas não gostei!
Eles vestiram as calças com dificuldades, não só porque
elas estavam molhadas, mas porque suas mãos tremiam deveras.
Ainda sem camisa, Ted Williams fez para a garota um sinal de
silêncio, colocando o dedo indicador diante do próprio nariz, e
caminhou vagarosamente, como se pisasse sobre espuma, até a
beirada da escadaria, onde se escondeu atrás da parede.
Subitamente, tomara consciência de que a lâmpada do corredor
ainda se encontrava acesa e ficou ainda mais apavorado, pois isto
poderia delatar a presença deles. Que fazer? Melhor que ela
estivesse apagada para não chamar a atenção. Além do mais, não
se lembrava se tinham desligado as luzes do andar de baixo,
quando subiram para o piso superior. O rapaz pôs metade do rosto
para fora da quina da parede e constatou que não havia ninguém
naquele trecho da sala que ele podia enquadrar. Em virtude disso,
decidiu apagar a luz, o que fez prontamente. Durante algum tempo,
permaneceu observando parte da sala de seu esconderijo. Na certa,
os moradores teriam visto o vidro quebrado da porta e deveriam
estar intrigados com isso. Aos poucos, passou a ouvir roncos
abafados e sons que não pareciam humanos. De repente, o horror
supremo estampou-se em sua face, de maneira que ele não
conseguia mais respirar. Duas criaturas monstruosas entraram em
seu campo de visão e pareciam discutir qualquer coisa. Vestiam
grandes capotes e traziam os rostos cobertos por largos chapéus,
como se desejassem permanecer embuçados. Todavia, Ted
Williams constatou horrorizado que, no lugar das mãos, as criaturas
possuíam garras como lagostas e seus pescoços eram cobertos por
uma carapaça acetinada e brilhante.
Deus do céu, que demônios seriam aqueles? Pareciam
muito fortes e eram mais altos do que a média dos homens. Quando
recuperou o discernimento e conseguiu controlar um pouco os
nervos, o moço certificou-se de que precisavam sair daquela cabana
maldita de qualquer maneira. Correu até o banheiro, onde a
namorada permanecia encolhida feito uma presa acuada e lhe
sussurrou:
- Vamos tentar sair daqui agora!
Os dois dirigiram-se ao quarto, onde permanecia o cadáver
da velha, e verificaram aterrorizados que a janela tinha sido
emparedada. Voltaram para o banheiro e, só então, perceberam que
ali também ocorria o mesmo. Achavam-se enjaulados e não havia
como sair daquela masmorra. O rapaz enxugou o suor que lhe
empapava a testa com as costas da mão e disse baixinho:
- Acho que as janelas foram cimentadas para o sol não
entrar. Por isso, as lâmpadas são vermelhas e fracas, pois a
luminosidade deve incomodar estas criaturas horrendas. São
monstros noturnos...
Desesperados, eles apagaram a luz do banheiro e se
esconderam dentro da banheira, que ficava atrás de um cortinado
de plástico. Pelas frestas deste, Ted Williams podia discretamente
observar o corredor e, por isso, resolveram deixar a porta aberta.
Talvez, aquelas criaturas infernais se dirigissem primeiro para o
quarto, o que lhes daria a possibilidade de sair correndo e fugir. Era
a única chance que teriam.
Aqueles minutos em que os dois jovens passaram ali
abraçados foram de profunda angústia e pavor. A menina tremia de
medo, arrependida por ter concordado em viajar com o namorado.
Ted Williams tinha os olhos vidrados no corredor e sua respiração
achava-se bastante ofegante. Não entendia por que motivo os
monstros execráveis não subiam logo de uma vez. A bem da
verdade, já havia se passado mais de meia hora e aquela tortura
cruel os ia consumindo como um punhal pregado no fígado. A cada
instante, os ruídos ininteligíveis tornavam-se mais intensos e a
aflição deles aumentava.
Subitamente, começaram a ouvir passos pesados subindo
as escadas, os degraus rangendo uma sinfonia de morte.
Abraçaram-se ainda mais forte, procurando fazer o máximo de
silêncio e mantendo os ouvidos bem atentos. A cada passo dado, a
angústia cabal que sentiam ia os mortificando cada vez mais, até
que os dois monstros apareceram no corredor. Eles acenderam a
luz e, só então, Ted Williams os pôde contemplar em toda sua
plenitude. Os olhos do moço esbugalharam-se de pavor e,
miraculosamente, ele conseguiu conter um grito primata que lhe ia
escapando da garganta e que os delataria. A visão era horripilante.
Aquelas aberrações macabras possuíam mandíbulas salientes e
presas afiadas de javalis, que lhes escapavam das bocas. Eram
monstrengos horrendos, repugnantes, assustadores. As duas
criaturas passaram a se arrastar lentamente pelo corredor e
entraram no quarto, onde se encontrava a velha defunta. Tão logo
desapareceram da visão de Ted Williams, o rapaz sussurrou à
namorada que era agora ou nunca. Ali se achava a oportunidade
que eles estavam esperando e, se desse tudo certo, os dois
conseguiriam fugir ilesos da cabana. Amanhã, certamente, quando
tudo já se encontrasse sedimentado pelas camadas irrevogáveis do
tempo, o jovem casal iria rir daqueles momentos infernais que
tiveram de enfrentar.
De repente, começaram a ouvir o ruído de carne sendo
chupada com sofreguidão. Os monstros banqueteavam-se à farta,
devorando os restos da velha com apetite redobrado. Ted Williams
disse à garota que agora era o momento e, pé ante pé, procurando
fazer o máximo de silêncio, os dois saíram de seu esconderijo.
Porém, quando se encontravam quase no meio do corredor, a
poucos metros da escada que lhes daria acesso à liberdade, uma
das criaturas apareceu na porta do quarto e se interpôs no caminho
deles. Um horror ancestral tomou conta dos dois jovens e não houve
tempo para mais nada. Tudo se deu de maneira rápida e cruenta.
Num movimento brusco e violento de foice, empregando suas
garras afiadas, a criatura rasgou o ventre do rapaz, cujos intestinos
escorreram por sua barrigada aberta. O sangue esguichou para todo
lado e a moça pôs-se a gritar ensandecida. No mesmo instante, os
dois monstrengos atiraram-se no chão, sobre o corpo de Ted
Williams, e passaram a lhe devorar ainda meio vivo. No meio
daquela confusão, untada de sangue e suor, patinando sobre as
vísceras do namorado, Pâmela deslizou por entre aqueles seres
horrendos e conseguiu alcançar a escada, saltando, aflita, os
degraus de quatro em quatro. Uma das criaturas pôs-se no encalço
dela, mas era corpulenta e pesadona, de maneira que se movia
lentamente.
Alucinada pelo terror que lhe macerava a alma, a garota
abriu a porta da sala, atravessou voando a varanda, desceu os
poucos degraus da casa e mergulhou na tempestade, dirigindo-se
para a caminhonete, que eles tinham deixado com as portas
destrancadas e as chaves na ignição. Ao entrar no veículo, a sua
mão tremia tanto, que ela teve dificuldade em dar a partida no
automóvel. A menina olhou pelo espelhinho retrovisor e constatou
que seus olhos estavam inchados feito tomates. Subitamente, um
calafrio mortal tomou conta de seu corpo. Aos poucos, refletido no
espelhinho retrovisor, foi aparecendo a figura macabra de uma
daquelas criaturas satânicas, sentada no banco de trás. Num
movimento brutal, o monstro lhe arrancou um naco do pescoço com
uma dentada, no exato momento em que um trovão violento
estourou no céu, abafando um último grito de dor. Além da chuva
sobre o capô da caminhonete, só se podia ouvir o ruído de
mandíbulas mastigando ossos.
Cobras!
R uddie Carlson, um
homem
sem
sonhos, sem grandes conquistas, que sempre cultivou uma
comum,
grandes
R ecostado na velha
cama de
Tua C.
Era a letra de sua amada. O rapaz levou a folha de papel às
narinas e sentiu o doce perfume que ela costumava usar. Por alguns
instantes, experimentou um sentimento delicioso lhe invadindo a
alma, um misto de triunfo e realização, algo que só se pode sentir e
não explicar. Há mais de dois anos, ele namorava a bela Clotildes e,
durante todo esse tempo, o máximo que conseguira foi dar-lhe uns
beijinhos na testa. Agora, aquele bilhete inesperado mudava tudo e
a jovem vinha lhe oferecer a noite de amor com que ele tanto
sonhara.
Dois dias atrás, quando a vira pela última vez, os dois
tiveram uma discussão feroz e haviam terminado o noivado. Conrad
já tinha decidido tudo e lhe dera a notícia de maneira fria e
impassível. Após a conclusão do seu curso de Direito, o rapaz
regressaria para sua cidade, onde começaria a exercer a profissão.
Não tinha como levá-la e, por isso, estava se desobrigando daquele
compromisso. Evidentemente, Clotildes não recebeu tal notícia de
maneira serena. Ela pôs-se a chorar, gritou, esperneou, fez cena, e
terminou dizendo que iria matá-lo.
- Não diga bobagem! Você não mata nem mosca...
A menina atirou-se na cama e passou a lavar o travesseiro
com suas lágrimas. Conrad dirigiu-se à cozinha e preparou um copo
de água com açúcar para ver se Clotildes se acalmava um pouco.
- Beba isso, vai lhe fazer bem.
Ela tomou até a metade e depois, dominada por um acesso
de fúria, atirou o copo contra o noivo. O moço esquivou-se como
pôde, de maneira que o copo acabou arrebentando na parede. Em
seguida, a jovem começou a gritar furiosa:
- Vá embora daqui, seu canalha miserável, e não volte
nunca mais! Eu o odeio! Odeio com todas as forças da minha alma!
Conrad apanhou seu chapéu e os dois separaram-se sem
se despedir.
Agora, sentado na beirada de sua cama, após ter lido e
relido inúmeras vezes aquele bilhete, o rapaz tentava compreender
o motivo que levara à namorada a mudar de opinião. Certamente,
ela se arrependera de todas as coisas ruins que lhe falara e
desejava se desculpar. Era possível que a menina quisesse guardar
uma lembrança dele, uma lembrança para sempre, eterna. Por isso,
resolvera conceder-lhe aquela noite de amor.
O rapaz vestiu-se, apanhou seu chapéu e desceu as
escadas da casa de maneira ansiosa e com o peito agitado. A
madrugada estava gelada, silenciosa, e só se ouvia o vento
farfalhando as copas dos arvoredos. O local a que Clotildes fizera
menção velada no bilhete, do conhecimento de Conrad, era a casa
da madrinha dela, onde eles haviam se encontrado em inúmeras
oportunidades. Tratava-se de uma tia velha e surda que se
comprazia em ajudar a garota no seu romance. Quando se
encontravam ali, podiam ficar mais à vontade. Sentavam juntinhos
no canapé e, de mãos dadas, trocavam sussurros e juras de amor
eterno. Do outro lado da sala, a velha ia mascando preces diante de
um antigo oratório. Quando sentia que o clima estava esquentando
entre o casal, pigarreava e tossia alto. Os dois recompunham-se e
passavam a conversar trivialidades. Já na casa dos pais de
Clotildes, os encontros eram ainda mais recatados. Conrad entrava
na sala e já encontrava a noiva e a mãe dela sentadas uma defronte
a outra. Cumprimentava ambas com um grave aperto de mão e ia
se sentar numa cadeira a uns dois metros de distância da amada.
Passava cerca de três quartos de hora conversando com as duas,
assuntos que não interessavam a ninguém, até que se levantava,
despedia-se e ia embora.
Enquanto caminhava pela rua, debaixo da lua imensa,
dirigindo-se para a casa da madrinha de Clotildes, Conrad ia
pensando na primeira vez que vira a noiva. Ele costumava
frequentar a igreja de Nosso Senhor Cristo Rei, onde muitas famílias
com belas filhas iam ouvir missa. Naquele tempo, os rapazes
namoradores e galantes dirigiam-se às igrejas não somente para
cumprir com suas obrigações religiosas, mas também para ver as
belas garotas, que quase não saíam às ruas. Num domingo de
maio, ele resolveu assistir à missa na Sé Catedral. A certa altura,
olhando para um dos lados da nave, deslumbrou-se com aquela
imagem angélica. Lá se achava a garota dos seus sonhos, ladeada
pelos pais, que a guardavam com olhares severos de cão pastor.
Apaixonou-se pela menina no mesmo instante. Durante todo o
ofício, permaneceu com as vistas cravadas na jovem. Tão logo
percebeu que era objeto de admiração, a moça ficou muito
envaidecida e, por mais de uma vez, fitou o mancebo com meio
sorriso na face corada. Ao cabo da cerimônia, Conrad quis ir falar
com ela; porém, quando se dirigiu ao local, não mais a encontrou,
pois seus pais já a haviam arrastado para fora da igreja e
desaparecido.
Durante muito tempo, o moço frequentou aquela missa das
cinco da madrugada na Sé Catedral, mas nunca mais tornou a ver a
sua amada. Já começava a achar que tudo aquilo não passara de
um sonho, uma alucinação, quando a sorte lhe sorriu outra vez.
Fora convidado para o baile que o comendador Saraiva iria dar em
sua residência no mês de outubro a fim de comemorar o natalício de
sua esposa. A princípio, Conrad não se animou e estava mesmo
decidido a não comparecer. Sabia muito bem que nesses bailes de
gente velha só costumavam ir mulheres calamitosas e encalhadas,
aflitas para arrumar marido. Todavia, como soube por uns colegas
estudantes que as irmãs Santana iriam, resolveu dar um pulo lá,
para ver se conseguia algo com alguma delas. Eram três jovens que
não haviam sido muito agraciadas com o dom da beleza, mas
possuíam corpos formosos e eram independentes. Diziam as más
línguas que elas costumavam se entregar a seus amantes, tão logo
se embriagavam.
Já passava das oito horas, quando Conrad entrou na
mansão do comendador Saraiva. O salão achava-se muito bem
iluminado por inúmeras luminárias postas nas paredes e um piano
tocava alegres valsas europeias. No centro do recinto, alguns casais
bailavam sorridentes, enquanto boa parte dos homens fumava e
conversava em pequenos grupos pelos cantos. A maioria das
mulheres permanecia sentada em cadeiras de palhinha ou nos
canapés. De repente, a respiração do rapaz tornou-se ofegante,
seus olhos vidraram e ele sentiu uma felicidade extrema. Sentada
ao lado de uma matrona respeitável, estava a jovem que ele vira na
Sé Catedral. Por um momento, duvidou de suas vistas, mas logo
concluiu que era ela mesma, pois lhe reconheceu a mãe ao lado.
Estava mais linda do que nunca em seu vestido de rendas amarelo,
os cabelos loiros e compridos espalhados sobre os ombros.
Enchendo-se de coragem, dirigiu-se até onde a garota se
encontrava e lhe disse:
- Concedes-me a honra da próxima dança?
A jovem sorriu e fitou a mãe em silêncio, como se lhe
pedisse permissão. A boa mulher concordou com os olhos e a
menina estendeu-lhe a mão, dizendo simplesmente:
- Obrigada!
Com o coração batendo acelerado, Conrad conduziu a
menina pelos dedos até o centro do salão, abraçou delicadamente
sua cintura e começaram a valsar. Ele a fitava com uns olhos
enamorados com tanta insistência, que acabou deixando a jovem
sem graça.
- O que foi?
- Não me canso de te olhar...
- Por quê?
- És de longe a moça mais bonita do baile! Que digo? És a
moça mais bonita da cidade inteira!
- Ora, sou tão sem graça...
- E ainda és modesta, como devem ser as garotas do teu
quilate. Como te chamas?
- Clotildes... e o senhor?
- Conrad. Não te lembras de mim?
A jovem ficou um pouco embaraçada. Não se lembrava de
onde o conhecia. Ela sorriu lindamente e balançou a cabeça de
maneira negativa.
- Foi na missa da madrugada na Sé Catedral, há alguns
meses. Tu estavas com teus pais e linda como sempre. Desde
aquele dia em que te vi, não consegui te esquecer por um segundo
sequer e venho te procurando por toda parte...
- E veja como é o destino... nos encontramos aqui por
acaso...
- Não foi por acaso! Foram os deuses que te colocaram no
meu caminho novamente...
- Quais deuses?
- Não sei... talvez Vênus, a deusa do amor...
Os dois jovens conversaram longamente, falando de tudo e
de nada ao mesmo tempo, coisas que só interessavam aos
corações apaixonados. Após terem dançado quatro valsas
seguidas, a menina disse que precisava regressar para junto da
mãe, pois esta já a estava olhando atravessado.
- Espere! Quando nos veremos de novo?
- Algum dia, quando os deuses quiserem...
- Não, quero te ver amanhã!
- Amanhã?
- Sim! Vou pedir a teu pai para te fazer a corte...
Clotildes arregalou os olhos, surpresa. O rapaz percebeu
uma sombra de hesitação na face da amada e indagou:
- Não gostas de mim?
A moça corou e, baixando as vistas, proferiu timidamente:
- Gosto...
Conrad a conduziu para a cadeira ao lado da mãe e
despediu-se da jovem com um delicado beijo em seus dedos
recobertos por uma luva branca.
No dia seguinte, dirigiu-se à casa dela e explicou todas as
suas intenções ao pai de Clotildes. O homem fez-lhe muitas
perguntas. Durante a conversa, que levou mais de uma hora, ele
quis saber tudo a respeito do rapaz e de sua família. Ao cabo,
achou-o um bom partido para a filha, que já estava na idade de se
casar e, se fosse do agrado dela, ele faria muito gosto no noivado.
Assim, Conrad passou a frequentar a casa de Clotildes todos os
dias. Às vezes, ela ia dormir uma noite na casa de sua madrinha,
onde os dois podiam ficar um pouco mais à vontade, como já ficou
dito.
Após caminhar por cerca de trinta minutos pelas ruas
geladas da cidade, Conrad chegou à casa da madrinha de Clotildes.
Através das janelas, ele viu que o interior da residência se achava
na mais completa escuridão. Não se incomodou com isso.
Certamente, a tia surda já estava dormindo, o que deixava o
caminho livre para aquele encontro desejado há tanto tempo. Ele se
aproximou de uma das janelas da frente, onde a moça costumava
dormir, e chamou duas ou três vezes baixinho pelo nome da amada.
Ninguém atendeu. Então, virou a maçaneta e a porta se abriu.
Certamente, a namorada a deixara destrancada, para ele não
precisar bater e acordar a madrinha.
Pé ante pé, Conrad entrou na casa, procurando caminhar o
mais suavemente possível para as tábuas do assoalho não
estalarem. Estava tudo escuro e apenas a pálida luz da lua, coada
pelas frestas da janela, punha uma nota de vida no interior da
moradia. Quando o relógio da sala tocou histérico, o rapaz
assustou-se deveras e teve calafrios escorrendo por dentro da
medula. Seu sangue gelou e ele passou a sentir uma mistura de
medo e volúpia ao mesmo tempo. Enquanto caminhava, ia
chamando baixinho o nome de Clotildes. Já estava pensando em ir
embora, pois não encontrara a namorada em parte alguma, quando,
subitamente, sentiu dois dedos leves como pétalas tocando-lhe o
ombro pelas costas. Foi o bastante para lhe provocar um susto
tremendo, pois ele não ouvira o som de passos se aproximando.
Conrad virou-se apavorado e, como a sala se achava bastante
escura, mal conseguiu discernir a face de sua amada. Somente
quando a garota lhe dirigiu a palavra, foi que ele se acalmou:
- Que foi? Parece que viste um fantasma?
- Oh, meu amor! Que susto me deste...
- Que bom que tu vieste! Eu estava esperando ansiosa por
isto. Vem comigo, não vamos perder mais tempo...
Ele tomou-lhe a mão, que estava fria como um cadáver e os
dois subiram as escadas.
- Minha tia está dormindo no quarto ao fundo do corredor.
Não faças barulho, para ela não acordar.
Após terem entrado no dormitório da frente, Clotildes fechou
a porta e o ambiente ficou ainda mais escuro.
- Vamos acender uma lamparina? Não consigo ver um
palmo diante do meu nariz.
- Infelizmente, não há nenhuma aqui. Não te preocupes. A
escuridão será nossa cúmplice...
- Gostaria de poder te saborear também com os olhos...
- Que guloso! Isto me lembra uma coisa. Consegui uma
garrafa de vinho para a gente beber...
- Ótimo! Onde está?
A garota caminhou até a parede dos fundos, como se
estivesse enxergando tudo perfeitamente. Sobre uma cômoda, ela
apanhou a bebida e encheu dois copos, colocados ali ao lado. Eles
brindaram ao amor e, cruzando os braços, beberam todo o vinho de
uma só vez. Conrad achou que o sabor estava um pouco esquisito,
mas imaginou que se tratasse de uma safra velha e mal
conservada. Todavia, como a sua intenção era embriagar a garota,
acabou bebendo com ela a garrafa inteira.
A certa altura, quando o álcool já começava a fazer o seu
efeito nos cérebros dos jovens, Clotildes disse que estava na hora
do moço receber seu prêmio e começou a se despir. Em seguida,
ela entrou debaixo dos lençóis e convidou o namorado para
acompanhá-la. O rapaz tirou as roupas excitado e pulou na cama
sobre o corpo da garota. Finalmente, o seu desejo estava se
realizando e ele podia tocar as carnes de sua amada, carnes
macias, deliciosas e terrivelmente geladas feito as de uma morta...
Após terem se amado, Clotildes pediu para o moço ir
embora, pois não desejava que a madrinha o visse ali pela manhã.
Ele vestiu-se rapidamente, beijou-lhe na boca mais uma última vez e
partiu. Ainda estava delirando e sentia sua cabeça pesada, como se
estivesse sendo esmagada pelo peso de uma montanha. Nem
soube como chegou à sua casa, meteu-se em sua cama e
adormeceu.
Acordou na manhã seguinte não se sentindo bem. Seus
ossos ardiam inflamados e uma dor terrível lhe mortificava o
estômago. Na certa, era o resultado da bebedeira da noite anterior e
logo estaria melhor. Ele tomou um copo de leite e achou por bem
sair para respirar o ar fresco da manhã. Na verdade, resolveu ir até
a casa de Clotildes para lhe contar a decisão que tomara. A noite
anterior havia sido tão maravilhosa, que o rapaz chegara à
conclusão de que ele estaria sendo estúpido se deixasse a amada.
Decidira mandar tudo para o inferno a fim de permanecer com
Clotildes. Não estava mais disposto a regressar à sua cidade natal,
como era desejo de seu pai, onde abriria uma banca de advocacia.
Serviço arrumava-se em qualquer canto e ele poderia trabalhar aqui
mesmo. Só tinha a certeza de que não queria abandonar a
namorada nunca mais. Se esta havia sido a intenção da garota, ao
atraí-lo para sua cama, ela acertara em cheio. Conrad estava tão
fascinado pela menina, que o seu propósito era lhe pedir em
casamento naquela manhã. Por isso, seguiu para a casa dela
saltando estrelas, feliz como um menino que ganhou brinquedo
novo. Se não fosse a dor que sentia no estômago e um mal-estar
geral, como se estivessem lhe torcendo a alma, tudo estaria na mais
completa perfeição.
Ao chegar à casa de Clotildes, porém, viu um movimento
incomum de pessoas e teve um mau pressentimento. A porta da
residência achava-se aberta e alguns homens conversavam à meia
voz diante do sobrado. Já um tanto aflito, Conrad entrou na sala e
viu inúmeras pessoas pesarosas, algumas das quais se
encontravam com os olhos lavados pelas lágrimas. Havia um caixão
posto sobre dois cavaletes e velas acesas ao lado do defunto.
Quem teria falecido? Pensou Conrad com suas vísceras ardendo
cada vez mais. Ao fundo do recinto, sentada numa cadeira ladeada
por duas outras mulheres que procuravam consolá-la, achava-se a
mãe de sua noiva, vestindo roupa preta. Lentamente, o rapaz
aproximou-se do féretro e seus olhos estarreceram-se de pavor,
quando ele viu o cadáver. Deus do céu! Era Clotildes que ali se
achava, mergulhada entre flores frescas e de perfume enjoado.
Sentiu suas pernas fraquejarem, o sangue gelado esguichando nas
veias e uma tontura violenta lhe pesar dentro da cabeça.
Cambaleando feito um ébrio, dirigiu-se até a porta, onde tentou
respirar um pouco de ar fresco, regressando em seguida para junto
do caixão, a fim de ver se a morta era mesmo sua amada. Não
havia quaisquer dúvidas. Suas vistas turvaram-se, plenas de veias
inflamadas, e ele balbuciou a um sujeito ao lado?
- Como isso aconteceu?
- Ela se envenenou e foi encontrada morta ontem à tarde...
Ontem à tarde? Mas era impossível, pois ele passara a noite
com ela! Quis dizer isto ao homem, que deveria ser algum parente
próximo, mas achou por bem ficar calado. De repente, uma ideia
abominável aninhou-se em seu cérebro. Uma ideia tão tenebrosa e
inconcebível, que encheu a alma de Conrad de horror. Teria se
deitado com um fantasma, um cadáver? Por todos os demônios do
inferno, isso, sim, era por demais macabro! Subitamente, uma ideia
ainda mais apavorante lhe minou os restos de consciência. Teria
sido envenenado por Clotildes? Uma vingança após ela ter
atravessado os portais da morte? Não teve muito tempo para refletir
sobre isso. Suas vistas embaralharam-se, ele sentiu uma forte dor
no ventre e caiu já sem vida sobre o assoalho.
Festa dos mortos
S entado em sua
cadeira de balanço na
varanda, mascando o
costumeiro charuto após o jantar, o velho Charlie observava as
estrelas piscando no seio daquela noite fresca, indiferentes às
paixões e angústias dos homens. Apesar de manter seus olhos fixos
nelas, ele fitava o passado, imerso dentro de si mesmo como uma
caravela em miniatura no interior de uma garrafa de vidro. Quantas
águas haviam passado debaixo daquela misteriosa ponte que ligava
os dois extremos de sua vida, do nascimento ao breve mergulho no
desconhecido. Quantos anos ele ainda teria pela frente? Três?
Cinco? Tudo agora se resumia a uma questão de aritmética e contar
o tempo pelo calendário parecia não fazer mais sentido algum para
ele. Subitamente, uma algazarra tremenda veio resgatar o velho
Charlie de suas lucubrações pachorrentas e cinco crianças
passaram correndo eufóricas diante dele.
- Ei, ei, ei! Aonde vocês vão assim com tanta pressa?
Eram seus netos, três meninos e duas meninas. Dois
garotos traziam os rostos pintados com batom vermelho, a lembrar
marcas de sangue, enquanto que o outro tinha uma caveira
desenhada na face, feita pela mãe com uma rolha queimada na
boca do fogão. As garotas usavam dentaduras postiças de
vampiros, e todos seguravam sacos de panos nas mãos. Rick, o
mais velho dos meninos, que contava onze anos, foi quem explicou:
- Ô, vô! É halloween e vamos pedir guloseimas na
vizinhança.
- Ah, sim! Eu havia me esquecido que hoje é noite de
bruxas. Mas, por que o Eddy parece tão angustiado?
Eddy era o menorzinho e havia completado seis anos na
semana passada.
- É que ele está com medo das assombrações e não quer ir.
O velho coçou o queixo bem escanhoado e, vestindo seu
melhor sorriso de avô bonachão, indagou com ar de brincadeira:
- Medo? Você com medo, Eddy?
O garoto balançou afirmativamente a cabeça, com os olhos
querendo chorar.
- Não se aflija por causa disso. Não é vergonha alguma. Eu
também já senti muito medo em minha vida...
- Você, vô? Indagou uma das meninas.
- Sim... certa vez, experimentei um medo tão apavorante,
que até hoje sinto arrepios ao me lembrar. Querem ouvir uma
história de horror?
- Sim! Gritou a meninada em uníssono.
- Então, sentem-se no chão aqui perto de mim. Rick, apague
a luz da varanda. A noite está clara. Vamos deixar que a lua e as
estrelas iluminem a gente para compor um clima soturno.
O garoto obedeceu e todos se sentaram sobre as tábuas de
madeira do assoalho ao redor do avô. Ele esfregou as mãos um
pouco geladas e começou:
- Isto que aconteceu comigo, ocorreu há muito tempo,
quando eu tinha uns treze anos, ou seja, um pouco mais velho do
que vocês...
* * *
* * *
P or volta da meia-
noite,
mansa,
a
que
iniciara pelo final da tarde, transformou-se numa tempestade
chuva
T ed McAdams colocou
mais lenha na lareira
para avivar o fogo e foi
se sentar numa poltrona de couro, que ficava ao lado do velho
aparelho televisor de 26 polegadas. Desde a última noite, não
parava de nevar e o jardim da sua casa já se achava coberto por
uma grossa camada de neve. Ele apanhou o jornal da manhã,
deixado sobre a mesinha de centro da sala, e pôs-se a folheá-lo
sem o menor interesse. Estava muito nervoso para se concentrar
em qualquer leitura e seu pensamento claudicava por trilhas
soturnas, que o levavam exatamente há um ano atrás. Desde que
voltara do trabalho, no final da tarde, quase não trocara palavra com
sua esposa, Julie. Ela se encontrava na cozinha preparando o jantar
e trazia o espírito envolto por uma amargura que parecia devorá-la.
Errou a quantidade de sal no molho por duas vezes e deixou as
batatas tostarem mais do que seria desejado. Na verdade, os dois
estavam bastante aflitos e - por que não dizer - apavorados.
A mulher apareceu na porta da sala e disse que o jantar
estava pronto. Ted McAdams dirigiu-se até a geladeira e encheu um
copo com leite. Gostava de bebê-lo puro durante as refeições. Ele
cortou um pedaço de carne, despejando um pouco de molho por
cima. Em seguida, apanhou algumas batatas, amontoando-as na
beirada do prato. Sua esposa parecia não ter fome e serviu-se
apenas com uma acanhada porção de salada. Jantaram calados, os
olhos enfiados na comida, ouvindo aquela sinfonia angustiante dos
talheres esgrimindo a louça. Por fim, Julie não suportou mais o
silêncio e indagou:
- Você sabe que dia é hoje?
Ted limpou a boca na borda da toalha xadrez.
- Sei... Imaginei que tivesse se esquecido...
A esposa cortou um pedaço de tomate, levou-o à boca
espetado na ponta do garfo e passou a mastigá-lo sem ânimo.
Depois, largou os talheres sobre a mesa, esfregou a testa
demonstrando certa agonia e disse:
- Como posso esquecer uma coisa dessas? Hoje faz
exatamente um ano...
O marido a interrompeu com voz áspera:
- Faz exatamente um ano que aquele maldito foi enforcado...
Os olhos de Julie alagaram-se, lembrando-se da filha
querida. Ela bebeu um gole d´água, fitou o companheiro por alguns
instantes até que proferiu:
- Você sabe que o problema é outro...
Ted McAdams respirou fundo, mordendo a ponta de seu
lábio inferior. Em seguida, pôs uma de suas mãos sobre a da mulher
e bradou:
- Teme as palavras do miserável...
- Jamais as esqueci por um único dia desde então. Ele era
um feiticeiro terrível, diziam que fizera um pacto com o demônio e
você viu que o patife falou depois de morto... Disse que voltaria
exatamente um ano após a sua morte para se vingar...
- Ou seja, hoje!
- Hoje! Por isso, estou tão angustiada...
- Confesso que também estou preocupado. Mas o que pode
nos acontecer? Estamos dentro de casa, com as portas trancadas.
Aquele bruxo não vai retornar dos mortos, não nos fará mal algum.
Meu bem, quer saber de uma coisa? Vamos esquecer isso tudo,
sim?
- Como se fosse possível arrancar do coração aquela
tragédia! Parece que tudo aconteceu ainda ontem...
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***
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Ilustrações: Pixabay
1ª Edição
Este livro imprimiu-se em novembro de 2019
Atibaia / SP
[1]
A hora é incerta, mas a morte é certa.