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José Antonio Martino

O LIVRO DOS MALDITOS


Excalibur Editora
2019
ÍNDICE

A maldição do velho índio


Dia dos Mortos
A morte encontra Jimmy Harrison
Um drinque com Satanás
Fantasmas
Velha na Chuva
Amanda vai casar
Sem anestesia
O cuco maldito
Loretta
Criaturas da escuridão
O morto-vivo
Uma velha bem velha
Baile à fantasia
A merenda
A tétrica cabana da praia
Cobras!
Encontro macabro
Festa dos mortos
A filha do cremador
Pesadelos numa noite de inverno
Abuelito
A maldição do velho índio

F azia mais de oito


horas que Bob Jones
vinha dirigindo seu
Camaro amarelo 1974 e já estava começando a ficar cansado e
sonolento. As estradas do meio-oeste eram longas e monótonas e,
por isso mesmo, muitos acidentes aconteciam, pois os motoristas se
distraíam ou acabavam cochilando ao volante. Como o rapaz
desejava chegar à sua casa ao amanhecer, ele decidiu não passar a
noite em algum quarto de hotel à beira da pista, como seria o mais
recomendado. Estava bastante ansioso para rever a esposa e a
filha, que naquele dia completava quatro anos de idade. Tinha lhe
comprado uma boneca enorme, quase do tamanho da menina, e
esperava lhe fazer uma surpresa. Desde que iniciara a viagem de
volta, havia parado apenas uma única vez para esticar as pernas,
tomar um chocolate quente e comer um hambúrguer a fim de
enganar o estômago.
Bob Jones acendeu um cigarro e atirou o palito de fósforo
pela janela. Um frio intenso penetrou o interior do veículo, pois a
madrugada estava muito gelada e havia, inclusive, previsão de neve
para os próximos dias. Contudo, o céu achava-se limpo e uma lua
cheia gigantesca parecia cochilar sobre as colinas baixas dispersas
no horizonte, além dos campos repletos de um mato escuro e
sombrio. Ele ligou o rádio e procurou uma estação que tocasse rock;
porém, naquele horário, só encontrou emissoras transmitindo
flashbacks ou pastores fazendo pregações. Como não se interessou
por nada daquilo, desligou o rádio e pôs-se a assobiar uma canção
do Pink Floyd. A estrada encontrava-se completamente deserta e
ele podia contar nos dedos de uma única mão o número de carros
com que cruzara na última hora.
Pouco adiante, surgiu um pedágio na estrada e Bob Jones
foi diminuindo a velocidade do automóvel até parar ao lado da
guarita. Para sua surpresa, não havia ninguém ali para cobrar a
tarifa. A cabine estava com as luzes acesas e a janela aberta. Um
rádio sintonizado numa estação de música country somente fazia
aumentar o sentimento de solidão e vazio. Por um momento, o
rapaz imaginou que o funcionário do local pudesse ter deixado o seu
posto a fim de ir ao banheiro e permaneceu esperando
pacientemente pelo seu retorno. Talvez o sujeito tivesse aproveitado
o pouco movimento da estrada para se divertir com a namorada no
meio do matagal. Como ninguém dava sinal de vida, buzinou
algumas vezes para chamar atenção. Nada. Além do rádio, apenas
as árvores ao lado da pista produziam algum ruído, contorcendo-se
de frio em virtude das rajadas do vento gelado.
A situação era inusitada. Que deveria fazer? Precisava
seguir viagem e não desejava perder mais tempo esperando que
surgisse alguém para cobrar a tarifa do pedágio. Se não fosse pela
trave levadiça, que obstruía o caminho do seu carro, já teria ido
embora há muito tempo sem pagar nada. Com toda certeza, dentro
da cabine deveria existir um botão a fim de acionar para cima
aquele obstáculo. Foi pensando nisso, que desceu do veículo,
decidido a resolver de uma vez por todas tal problema. Porém,
quando se aproximou da janela da guarita e meteu os olhos lá
dentro, um grito de horror escapou-lhe do fundo da alma. Por um
instante, perdeu a respiração, sem poder acreditar naquela cena
macabra que via. Sentiu uma breve tontura e agarrou-se ao beiral
da janela para não cair. No interior da cabine, havia uma visão
hedionda. Um homem encontrava-se caído no chão, com o peito
para cima, todo dilacerado, sendo devorado por inúmeros
morcegos. O corpo do infeliz achava-se deitado sobre uma poça
vermelha, que lhe empapava as roupas. Um daqueles animais
monstruosos tinha lhe arrancado o olho direito e lhe chupava o
sumo untuoso das órbitas. Outro lhe lacerara uma veia do pescoço,
por onde esguichavam jatos gorgolejantes de sangue, respingando
para todo lado. Um terceiro ceava uma de suas orelhas, como se
fosse um suculento pedaço de torresmo. Não sabia se o homem
estava vivo ou morto. Talvez ainda pudesse salvá-lo e seu primeiro
pensamento foi chamar uma ambulância. Porém, tudo se passou
muito rapidamente. O grito de horror que Bob Jones dera chamara a
atenção dos morcegos, que pararam de destrinchar o pobre homem
e partiram vorazmente para cima do rapaz. Talvez tivessem
concluído que ele fosse um manjar melhor e arremeteram ao
mesmo tempo em sua direção, ruflando de maneira alvoroçada as
suas asas diabólicas. Não houve tempo nem para piscar. No mesmo
instante, ele lançou-se desesperado na direção do seu carro,
procurando escapar daquela perseguição fatal. Atirou-se dentro do
automóvel como pôde e bateu rapidamente a porta. Enquanto
fechava a janela, alguns morcegos agarraram-lhe o braço esquerdo,
com o qual ele tentava impedir que eles adentrassem no veículo.
Por breves segundos, que lhe pareceram uma eternidade, o rapaz
lutou bravamente contra aquelas criaturas infernais. Com muito
custo, conseguiu subir o vidro, mas foi bastante mordido na mão e
no pulso. Subitamente, Bob Jones levou um susto terrível, pois
alguns deles passaram a golpear as janelas do veículo, como se
desejassem estraçalhá-las. Aquilo não eram morcegos comuns,
mas demônios alados.
Achava-se tão nervoso, que respirava pela boca, tentando
recuperar o fôlego. Assustado e aflito, ele esfregou os olhos com os
dedos e só então percebeu que sua mão estava sangrando.
Necessitava fazer um curativo, mas onde encontrar médico naquele
local ermo? Além do mais, precisava procurar ajuda para aquele
homem caído dentro da guarita, pois ele ainda poderia estar vivo.
Sem perder mais tempo, o rapaz ligou o automóvel e saiu pisando
fundo no acelerador. Nem se lembrou da trave levadiça do pedágio,
que foi arrebentada com a violência da colisão.
Logo adiante, encontrou um posto de gasolina. Tudo se
achava deserto e silencioso, embora as luzes estivessem acesas.
Havia um carro parado ao lado de uma bomba, com a porta aberta e
a mangueira enfiada na entrada do combustível, mas sem ninguém
dentro, o que era bastante esquisito. Bob Jones estacionou junto à
lanchonete e desceu do veículo, sentindo uma dor violenta na mão.
Empurrou a porta de vidro e ouviu uma sineta tilintar. Só então se
deu conta do quanto era estranho aquele estabelecimento estar
aberto altas horas da madrugada, sobretudo numa rodovia como
aquela, onde o trânsito mostrava-se tão insignificante. Ele pôs-se a
chamar por algum funcionário, mas não havia ninguém ali dentro.
Um aparelho televisor, pendurado numa parede, transmitia a reprise
de uma luta de boxe e um copo, ainda com bebida dentro,
permanecia descansando em cima do balcão. O rapaz dirigiu-se até
um telefone e tentou fazer uma ligação; porém, estranhamente, não
havia linha.
Seu pulso agora estava sangrando muito. Talvez aqueles
malditos morcegos tivessem lhe perfurado uma das veias e este
pensamento encheu-o de pavor. Por um momento, permaneceu
observando seu braço, sentindo-se cada vez mais fraco. Havia
marcas profundas de dentadas na carne, como se tivessem sido
feitas por um lobo faminto. Como não encontrou ninguém que
pudesse lhe ajudar, decidiu ir até o banheiro para lavar as feridas.
No fundo da lanchonete, havia uma porta que dava acesso a um
corredor escuro. Bob Jones procurou pelo interruptor de luz, mas
não o achou. Durante alguns segundos, permaneceu parado ali,
temendo prosseguir, pois poderia ser tomado como um invasor ou
assaltante. Por três vezes, chamou por alguém, mas não obteve
qualquer resposta. Então, armou-se de coragem e resolveu seguir
adiante. Pé ante pé, passou por uma sala que era uma espécie de
almoxarifado, onde havia algumas estantes com diversas latas
empilhadas, e dirigiu-se ao final do corredor, onde achou outra
porta. Abriu-a com o coração escoiceando seu peito e, para seu
alívio, constatou que era o banheiro.
Tudo ali parecia por demais imundo e sinistro. O ambiente
era iluminado por uma pequenina lâmpada, que produzia uma
luminosidade mortiça e amarela. A sujeira campeava por toda parte.
Havia restos de papel higiênico jogado pelo chão e as paredes
achavam-se pichadas com palavrões e desenhos de falos e
caveiras. Bob Jones aproximou-se da pia e contemplou a sua face
cansada naquele espelho sombrio, completamente garatujado por
falhas provenientes do tempo ou da umidade. Apanhou um pouco
de sabonete líquido e lavou bem as feridas, que arderam ainda
mais. Os morcegos tinham lhe carneado de jeito. Em seguida, notou
que, pendurado sobre um prego na parede, achava-se um pedaço
de pano, que deveria servir de toalha aos usuários do toalete. O
rapaz o cortou em tiras e amarrou os pedaços em seu pulso para
estancar o sangramento. Ao terminar de fazer isso, levou um susto
terrível, pois passou a ouvir barulhos estranhos atrás de si. A
verdade é que quase sofreu uma parada cardíaca em função disso.
Virou-se assustado e percebeu que os ruídos provinham de um dos
dois compartimentos reservados que existiam ali e que se
encontravam fechados por aquelas portas que não descem até o
chão. Por um instante, o frêmito parou e tudo quedou-se num
silêncio de pedra. As suas pernas tremiam, a sua respiração tornou-
se ofegante e ele passou a sentir seu sangue gelado correndo por
dentro das veias e artérias. Estaria tendo alucinações ou ouvira de
fato aqueles sons arrepiantes? Para tirar a dúvida, afiou os ouvidos
e permaneceu encarando a porta fechada do reservado.
Subitamente, os ruídos recomeçaram, ainda mais intensos, como se
ossos estivessem sendo chupados por monstros. A primeira reação
de Bob Jones foi bater na porta, mas ninguém respondeu. Ele achou
isto estranho, pois tinha quase certeza de que havia alguém ali no
interior, uma vez que a fechadura encontrava-se trancada por
dentro, apresentando a inscrição “ocupado”. O rapaz bateu mais
forte com o nó dos dedos e bradou em voz alta:
- Tem alguém aí? Precisa de ajuda?
Mais uma vez, não obteve resposta alguma. Os ruídos
pareciam agora ainda mais fortes e angustiantes. Bob Jones
ajoelhou-se no chão molhado por algum líquido infecto e fedorento,
uma mistura de urina e desinfetante barato, e olhou por baixo da
porta. Subitamente, seus olhos esbugalharam-se de terror. Havia ali
as pernas de alguém sentado no vaso sanitário e muito sangue
empoçado sobre a cerâmica branca. Sentia seu estômago se
revirando e uma vontade terrível de vomitar. Quando conseguiu se
colocar de pé e controlar-se um pouco, julgou que só havia uma
coisa a fazer, ou seja, arrombar aquela porta do compartimento
reservado, que parecia ser bastante frágil. Deu uma pernada
violenta sobre ela, estraçalhando-lhe a tranca. E o que viu deixou-o
completamente petrificado de pavor.
Sentado sobre a privada, achava-se um sujeito muito gordo,
com as calças arriadas, sendo devorado por inúmeros morcegos. A
sua barriga estava toda dilacerada e as vísceras do infeliz iam
escorrendo pelas feridas enormes, sugadas pela voracidade
insaciável daqueles animais satânicos. Banqueteavam-se como
abutres refestelados sobre a carcaça de um antílope na savana. Era
a segunda vez naquela madrugada que Bob Jones ficava frente a
frente com aquelas malditas criaturas, que nada tinham a ver com
morcegos comuns. Os que ele encontrara esta noite não só bebiam
sangue, como também pareciam adorar carne humana.
Da mesma forma que ocorrera no pedágio, ao verem a sua
merenda ser interrompida por um humano tão fresco e delicioso, os
morcegos pararam de empanturrar-se com o cadáver gordurento
daquele obeso cidadão e puseram-se a atacar o rapaz. Tomado por
uma aflição suprema, Bob Jones meteu-se a correr desesperado
para fora dali, seus pés patinando no sangue agora misturado
àquela água imunda. Se tivesse batido a porta do banheiro atrás de
si, teria escapado com facilidade, mas se achava tão nervoso, que
nem se lembrou disso. Atravessou correndo o corredor escuro e
adentrou novamente na lanchonete, voando na velocidade que suas
pernas lhe emprestavam. Diante de si, viu a porta de vidro fechada,
crescendo em sua direção e, sem ter tempo para pensar em mais
nada, atirou-se sobre ela, que se estraçalhou em milhares de
caquinhos. Ele caiu a poucos metros do seu carro, todo ferido e
ensanguentado, como se tivesse dormido sobre uma rede de arame
farpado. Neste instante, ainda caído no chão, os morcegos
lançaram-se sobre ele e passaram a devorá-lo vivo. Enlouquecido
de dor, Bob Jones debateu-se como um porco que sabe que vai ser
carneado. Tanto lutou, que conseguiu pôr-se de pé e correu para
seu automóvel, trancando-se lá dentro.
Estava exausto e não tinha forças para mais nada. Sentia-se
tonto e precisava encontrar ajuda médica de qualquer maneira. Do
lado de fora, os morcegos pareciam alucinar e voavam obcecados
sobre o veículo, dando pancadas nos vidros e na lataria. O rapaz
ligou o carro e partiu, deixando-os para trás a girar em círculos,
conforme pôde observar pelo espelho retrovisor. Não rodou nem dez
minutos, quando chegou a uma pequenina cidade. Havia uma placa
de boas-vindas na entrada, indicando que a população ali era de
apenas 692 moradores. Talvez, entre eles, houvesse algum médico
que pudesse lhe auxiliar com seus ferimentos. Naquela hora da
madrugada, as ruas achavam-se completamente desertas e apenas
a lua imensa derramava uma luminosidade pálida sobre os telhados
silenciosos e gelados. Ele circulou durante cinco minutos pela
cidade e não encontrou ninguém. Todos os estabelecimentos
comerciais estavam fechados. Ao dobrar uma esquina, avistou uma
farmácia também fechada, mas imaginou que o farmacêutico
pudesse residir no andar de cima e resolveu tentar a sorte.
Estacionou o automóvel em frente à porta de aço e desceu, sentindo
uma dor lancinante nas costas, que haviam sido terrivelmente
dilaceradas. Aflito, esmurrou a porta com punhos nervosos e bateu
altas palmas, até que viu uma luz ser acesa no piso superior. Em
seguida, um homem saiu à janela e bradou:
- O que está acontecendo aqui?
- Preciso falar com o farmacêutico. Fui violentamente ferido
por morcegos assassinos e necessito de cuidados médicos...
Ao ouvir aquilo, a face do sujeito escureceu como se tivesse
sido toldada por nuvens carregadas de tempestade. Ele bateu a
janela e gritou lá de dentro:
- Vá embora! Não queremos forasteiros em nossa vila. Você
não é bem-vindo aqui!
Ao ouvir aquilo, Bob Jones ficou furioso e passou a gritar
que estava precisando de ajuda e que só iria embora, quando
recebesse tratamento adequado. Como o farmacêutico apagou a luz
e não deu mais resposta, o rapaz começou a fazer um verdadeiro
escarcéu. Estava transtornado e, naquele momento, milhares de
pensamentos pareciam girar dentro de sua cabeça. Ele entrou no
carro, acendeu os faróis altos e passou a buzinar com insistência.
Tanto fez, que muitos moradores abriram as portas de suas casas e
saíram para as varandas, a fim de ver o que estava causando
tamanha balbúrdia. Quando ele percebeu que aquele escândalo
havia dado algum resultado, pois chamara a atenção de inúmeras
pessoas, Bob Jones desceu outra vez do veículo e se pôs a berrar:
- Amigos, preciso de ajuda! Há entre vocês alguma alma
caridosa que possa me acudir? Fui atacado a poucas léguas daqui
por morcegos, umas criaturas demoníacas, e necessito de curativos
para estancar o sangramento de minhas feridas.
Ninguém parecia estar comovido com aquela cena pouco
comum. Na verdade, os rostos das pessoas demonstravam certo
temor ou resignação, que o rapaz não pôde compreender naquele
momento. Alguns deixaram suas casas e passaram a cercá-lo, com
olhos de poucos amigos. Um deles o agarrou pela gola da camisa e
bradou enérgico:
- Escute aqui de uma vez por todas. Você não deveria estar
aqui. Não hoje. Aceite o conselho amigo que lhe dou. Vá embora
enquanto é tempo!
E o empurrou com violência, de maneira que Bob Jones
quase caiu no chão.
- Vocês estão loucos? Que diabos de cidade é esta? Preciso
de socorro e não encontro aqui um filho de Deus disposto a me
ajudar?
Nisso, chegou uma rádio-patrulha e dois policiais desceram
de maneira abrupta. Imediatamente, um deles agarrou o rapaz por
trás e lhe meteu uma algema nos pulsos. Em seguida, proferiu:
- Você está preso em nome da lei. Tem o direito de ficar
calado...
- Preso? Mas o que foi que eu fiz? Exclamou atônito Bob
Jones.
- Arruaça. E isso é proibido de acordo com nossas leis
municipais.
Enquanto batia boca com os policiais, um ajuntamento cada
vez maior foi se formando ao redor deles. A confusão estava
estabelecida e, quando finalmente iriam colocá-lo dentro da viatura,
uma mulher ruiva adiantou-se no meio do burburinho e disse:
- Ele vem comigo!
Todos ficaram assombrados com tal atitude. Por que ela
estaria tentando ajudar aquele forasteiro? Embora a cidade inteira a
conhecesse, Claire não tinha muitos amigos ali. Desde que seu
marido falecera, no ano passado, a moça passou a viver cada vez
mais reclusa e só saía de casa para fazer compras no mercadinho.
Por isso, quando ela tomou as dores daquele sujeito todo
ensanguentado, muita gente estranhou.
- Ele está preso! Respondeu um dos guardas.
- Solte-o agora! Caso contrário, contarei tudo o que sei para
as autoridades estaduais.
- Contar que prendemos um homem?
- Contarei este segredo maldito que vocês insistem em
guardar feito uma maldição funesta. E não tentem me deter, pois irei
também aos jornais, à televisão... O país inteiro saberá de tudo...
Subitamente, um silêncio agonizante inundou toda a rua e,
durante alguns segundos, só foi possível ouvir o ruído dos grilos. Os
presentes trocavam olhares assustados, diante da possibilidade de
que o seu misterioso segredo fosse revelado. Um dos policiais
aproximou-se da jovem e proferiu com voz amável:
- Claire, todos nós gostamos de você. Não fique nervosa por
isso. Ninguém aqui teve culpa pelo que aconteceu com o seu
marido...
Os olhos da moça injetaram-se feito dois punhais.
- Todos vocês são culpados! Não queiram matar também
mais este inocente. Isto precisa acabar de uma vez por todas.
Soltem-no, já! Não estou brincando...
- Temos de falar com o Major. Você sabe que é ele quem
decide estas coisas...
- Podem falar até com o diabo! Mas soltem este homem,
que está precisando de ajuda... Eu não estou brincando...
Os dois policiais entreolharam-se por alguns momentos, até
que um deles abriu as algemas que prendiam Bob Jones.
- Leve-o! Mas o Major não vai gostar disso...
A moça não respondeu. Simplesmente, apanhou o rapaz
pelo braço e o conduziu até a sua casa, que ficava ali perto. Após
ter fechado a porta, disse-lhe:
- Antes de mais nada, é melhor você tomar um banho, para
lavar o sangue do corpo. Qual é mesmo o seu nome?
- Bob. Muito obrigado pela ajuda. Não sei como lhe pagar
este favor...
- Ora, deixe disso! O meu nome é Claire. Agora, vá. Depois
do banho, desça aqui para eu lhe tratar dos ferimentos...
Bob Jones subiu as escadas e entrou no banheiro. Com
todo cuidado, tirou a roupa que estava grudando em sua pele e
meteu-se debaixo do chuveiro. As feridas arderam um pouco, mas
logo ele sentiu certo alívio. Já haviam parado de sangrar. Ensaboou
as costas com delicadeza e deixou a água quente escorrendo pelo
seu corpo. Enquanto banhava-se, não pôde deixar de pensar
naquela moça enigmática que lhe acudira. Ela era bonita, tinha
umas curvas formidáveis e parecia ser deliciosa na cama. Ao ajudá-
lo, as suas intenções seriam apenas de caráter humanitário? Talvez
ela estivesse carente, precisando de carinhos masculinos para lhe
aquecer os pés.
Tão logo terminou seu banho, Bob Jones enxugou-se com
uma toalha felpuda e a amarrou na cintura. Não tinha roupas limpas
para vestir. Desceu as escadas e encontrou a jovem já lhes
esperando. Ao vê-lo sem camisa, ela disse:
- Você pode usar as vestes do meu marido, que encontrará
no quarto lá em cima, dentro do armário. Vai lhe cair bem, pois ele
era mais ou menos do seu tamanho. Agora, deite-se de costas no
sofá, para eu lhe fazer os curativos.
O rapaz obedeceu e ela sentou-se ao seu lado, trazendo
nas mãos faixas de gaze e esparadrapo. Sobre a mesinha de
centro, já se encontravam uma caixa de algodão e um vidro de
mercurocromo. A garota encharcou uma bolinha de algodão com um
pouco do antisséptico e disse:
- Sabe, eu já trabalhei como enfermeira antes de me casar.
Não se preocupe, você está em boas mãos. É possível que arda um
pouquinho...
Dizendo isso, ela roçou de leve o chumaço de algodão na
maior ferida que havia nas costas dele. A dor que Bob Jones sentiu
foi tremenda, como se a língua do próprio demônio, transformada
num pedaço de carvão em brasa, tivesse lhe incendiado a medula.
Contudo, não deu um único pio, pois não queria passar por fracote
na frente da garota. Enquanto ela lhe fazia os curativos, o moço
embriagava-se com o perfume exalado pelo corpo de Claire. Um
aroma bom e fresco de sabonete emanava de seus cabelos
compridos, de sua pele tenra, enfeitiçando-o. Talvez ela tivesse
tomado banho naquele mesmo banheiro, onde ele estivera há
pouco. Talvez tivesse enxugado seu corpo aconchegante naquela
mesma toalha que lhe envolvia as carnes. Seus pensamentos
devaneavam, enquanto ela lhe tocava a pele com dedos quentes.
Ao cabo de alguns minutos, disse:
- Pronto. Agora pode se vestir.
Bob Jones subiu as escadas novamente e apanhou uma
calça de moletom e uma camisa de flanela. Quando desceu, Claire
lhe perguntou:
- Não está com fome? Venha, eu lhe preparo um lanche.
Os dois caminharam até a cozinha. A moça abriu um
armário e pegou um pacote de pão de forma. Depois, dirigiu-se para
a geladeira, de onde tirou um pedaço de queijo e serviu ao rapaz,
que se achava faminto. Enquanto comia, eles iam conversando
sobre diversos assuntos. Quando Bob Jones lhe contou que fora
atacado por morcegos, que dois outros homens haviam sido mortos
por eles, Claire simplesmente disse:
- Eu sei...
Como poderia saber? Ali estava mais um mistério. O rapaz
tinha certeza de que existia um terrível segredo na cidade, como se
todos os habitantes daquela localidade se achassem
mancomunados e proibidos de falar sobre aquilo com qualquer
forasteiro. Somente isto poderia explicar o modo como as pessoas
mostraram-se amedrontadas, quando Claire ameaçou contar tudo
aos jornais e à televisão. Os próprios policiais pareciam apavorados
e resolveram obedecer às ordens da moça.
- Quer beber alguma coisa?
- Se me acompanhar, um pouco de bourbon seria
excelente...
A garota dirigiu-se até a cristaleira e retirou de lá uma
garrafa já pela metade. Apanhou dois copos e indagou:
- Com gelo?
- Não, cowboy.
Após ter servido o uísque, ela proferiu, sorrindo:
- A que vamos brindar?
- A nossa amizade, que está apenas começando. Espero
que ela se estenda por muitos e muitos anos...
Bateram os copos. Durante algum tempo, conversaram a
respeito de inúmeras trivialidades. Mas o que Bob Jones queria
mesmo saber era sobre o tal segredo, que o estava incomodando.
Ouvira a acusação da garota de que todos na cidade eram culpados
pela morte do seu marido e ele concluiu que isto deveria ter alguma
ligação com o misterioso segredo.
- Então, você é viúva?
- Sim! Meu marido faleceu no ano passado.
- Alguma doença?
Ela hesitou um instante, até que respondeu:
- Não... acidente. Mas não quero falar sobre isso...
- Não quer ou não pode?
A garota fitou em silêncio os olhos do rapaz. Colocou mais
um pouco de uísque em seu copo e virou tudo dentro da garganta
de uma só vez. A bebida já estava começando a deixá-la
embriagada.
- Melhor mudarmos de assunto. Não quero envolvê-lo com
isso, pois é muito perigoso...
- Mas eu já estou envolvido! Abra-se comigo, talvez eu
possa ajudar de alguma forma...
Por um momento, a garota esfregou os olhos, como se
tivesse cansada de tudo aquilo. Depois, encheu seu copo com a
bebida e disse:
- Talvez você tenha razão. Preciso dividir este segredo com
alguém. E afinal de contas, você merece saber a verdade, por tudo
que passou nesta noite...
Eles se dirigiram para a sala e sentaram-se no sofá.
- Há dois anos, aconteceu uma terrível tragédia aqui na
cidade...

* * *

A lua estava extraordinariamente cheia naquela noite de


dezembro de 1973. Mad Dog, como era chamado o filho do xerife,
havia apanhado escondido o carro do seu pai, pois ainda não
completara dezoito anos e não possuía licença para guiar. Ele se
dirigira aos pés da grande pedreira, fora dos limites da pequenina
cidade, para se encontrar com outros oito rapazes. Quando chegou
ao local, todos já se achavam ali, reunidos em torno de algumas
motos e do carro conversível de Big Ned, o filho do Major. Os jovens
riam alto e conversavam obscenidades, ouvindo o som pesado do
Black Sabbath na voz de Ozzy, enquanto iam bebendo uísque no
gargalo de uma garrafa e compartilhando cigarros de ervas. Haviam
combinado levar Iron, o filho do prefeito, para conhecer mulher, pois
era dia de seu aniversário.
Quando já estavam embriagados o suficiente e prontos para
irem se divertir na casa da Mary Melança, Mad Dog disse:
- Sabem quem eu vi agora na cidade? Aquele velho índio
sioux, que mora no campo, lá para os lados do rio. Ele estava
sozinho e a pé. Deve levar um bom tempo para retornar à sua
cabana.
- E o que tem isso? Indagou um dos rapazes.
- Estive pensando. Por que pagar aquela gorda muxibenta,
se podemos ter coisa melhor e de graça?
- O que você tem em mente? Quis saber Big Ned.
- Ainda não entenderam? As três filhas do índio ficaram
sozinhas em casa. Elas devem ter entre 17 e 19 anos e uma é mais
bonita do que a outra. Por que a gente não vai fazer uma visitinha
para as garotas?
- Você acha que elas vão querer alguma coisa conosco?
- Se não quiserem por bem...
Todos riram e concordaram. As índias eram mesmo
deliciosas, muito melhores do que a pelancuda Mary Melança. Mad
Dog colou a garrafa de uísque nos beiços lascivos, como se
chupasse o gargalo num beijo voluptuoso, e a esvaziou em grandes
goles. Em seguida, fazendo enorme baderna, uns rapazes entraram
nos carros, outros subiram nas motos, e saíram acelerando os
veículos, as rodas patinando na terra seca a espalhar poeira para
todo lado.
Pouco tempo depois, chegaram à residência do velho índio,
localizada num local ermo e isolado. Como a esta altura os rapazes
já se encontravam completamente bêbados e drogados,
estacionaram fazendo violento estardalhaço, buzinando e gritando
feitos selvagens que estavam indo para a guerra. Tão logo as
meninas ouviram aquilo, trancaram a porta e puseram-se a tremer
de medo. Mad Dog desceu do carro e bradou:
- Ei, vadias, chegou a hora da diversão!
E atirou contra a parede da residência a garrafa de uísque
vazia, que se estilhaçou em milhares de caquinhos. Big Ned, que
era o mais forte de todos, deu uma senhora patada na porta,
arrombando-a sem grande dificuldade. Lá dentro, as três indiazinhas
encontravam-se acuadas num canto, abraçadas e assustadas,
temendo pela desgraça que estava para lhes suceder. O filho do
Major entrou na cabana, seguido pelos outros oito sátiros, e disse:
- Iron, como você é o aniversariante da noite, pode escolher
a que quiser.
Ele contemplou as meninas e escolheu a mais carnudinha.
Jogaram-na no chão e dois outros rapazes ajudaram a segurá-la,
pois ela não parava de se debater. Iron subiu sobre o corpo da
garota e lhe rasgou as roupas. Abaixando as calças, começou a
possuí-la. Desesperadas, as outras jovens gritavam e tentavam
defender a irmã, arranhando, puxando cabelos, esperneando, dando
coices. Porém, não podiam vencer todos aqueles monstros
diabólicos, que as espancaram até elas ficarem com as forças
exauridas. Então, arrancaram-lhes as vestes e as violentaram.
Todos se serviram, enquanto as garotas choravam amargamente.
Quando já estavam saciados, Mad Dog bradou:
- E aí de vocês se contarem qualquer coisa para alguém. Se
soubermos que abriram a boca, voltaremos aqui para matá-las...
As índias permaneciam seminuas no chão, abraçadas em
meio às lagrimas, uma procurando consolar a outra. A mais nova
delas, que parecia ser também a mais destemida, levantou a cabeça
e cravando naquele ser abominável seus olhos afiados como duas
flechas, proferiu:
- Não se pode matar quem já está morto. Assim que nosso
pai chegar, contaremos tudo para ele. Vocês irão para a cadeira
elétrica...
- Não vai contar nada para ninguém, sua cadela!
- Isso é o que veremos, verme maldito!
Ao ouvir aquelas palavras, Mad Dog foi dominado por um
sentimento violento, uma mistura de medo e cólera diabólica. Sua
face congestionou-se em trevas, sua respiração tornou-se ofegante
e seu cérebro parecia ferver dentro de uma chaleira em brasas. Não
pensou em mais nada, a não ser calar aquela vagabunda miserável.
Tirando uma faca da cintura, o filho do xerife deu um bote sobre a
menina, como se fosse uma besta selvagem lutando pela vida, e lhe
afundou a lâmina no pescoço. O sangue esguichou sobre as outras
garotas, que choravam e gritavam:
- Monstro! Monstro!
Todos os outros rapazes olhavam perplexos para o
companheiro. Afinal, não tinham vindo até ali para matar ninguém,
mas apenas para se divertir. A jovem indiazinha estrebuchou
medonhamente, até que caiu morta no chão.
- Você é louco? Disse Iron com a voz trêmula.
- O que está feito, está feito! Esses índios são como bichos,
não têm alma. É como esmagar uma barata...
- Só que agora, as outras baratas são testemunhas de um
crime e vão nos denunciar. Com muita sorte, pegaremos vinte anos
de cadeia...
Big Ned arrancou a faca da mão do assassino. Havia um
cemitério cevado nos olhos opacos do filho do Major. Estava
possuído.
- Eu não vou para a prisão! Gritou furibundo.
Dizendo isso, avançou para cima das meninas com a arma
em punho e as degolou com dois golpes tão violentos, que as
cabeças quase foram arrancadas dos pescoços. Todos ficaram
estarrecidos com a cena que estavam testemunhando. Mas nenhum
deles censurou a atitude de Big Ned. Antes, pareciam sentir certo
alívio, pois ninguém mais os delataria à polícia. E afinal de contas,
essas índias nem eram gente mesmo.
- Vamos embora, rápido, e esqueçam o que se passou aqui
nesta noite.
Quando eles haviam acabado de montar nas motos e
tinham entrado nos carros, o velho índio sioux estava chegando ao
local. Só teve tempo de ver os veículos partindo velozes em meio à
fumaça e poeira negra. Sentiu um mau pressentimento e, antes
mesmo de entrar em sua cabana, ele já temia pelo pior. Largou tudo
o que trazia nas mãos e voou célere para dentro da casa,
mastigando o seu coração, que viera parar na boca. Tão logo
penetrou na residência, viu aquela cena funesta. As filhas cadáveres
caídas umas sobre as outras, quase nuas, banhadas em sangue. A
dor que mordeu sua alma foi tão intensa, que ele teve a impressão
de estar sendo pisoteado por uma manada de búfalos. No mesmo
instante, prostrou-se de joelhos e começou a bater no próprio peito,
corroído por uma agonia suprema. As lágrimas escorreram-lhe
infinitas, deixando marcas fundas em sua face pelo resto da vida.
Passou a madrugada em claro, sovando vingança no peito,
onde ele trazia agora um escorpião encalacrado. Na manhã
seguinte, abriu três covas perto do rio e enterrou as filhas, seguindo
os rituais de sua tribo. A cada pá de terra que lançava sobre os
túmulos, sentia-se cada vez mais estraçalhado. Era como se
estivesse sepultando também, naquele pedaço de chão, o seu
próprio espírito.
Ao terminar o serviço, dirigiu-se à cidade e foi denunciar ao
xerife toda aquela monstruosidade. Afirmou que tinha visto os carros
dos assassinos e sabia quem eram os criminosos. Exigia que todos
fossem julgados e punidos de acordo com a lei. O xerife o ouviu
com certa má vontade, principalmente, porque o sujeito estava
acusando os filhos dos homens mais poderosos do local, inclusive o
seu próprio. A certa altura, começaram a discutir violentamente e os
olhos do velho índio sioux pareciam que iam explodir, tão injetados e
regados de sangue se encontravam. Para acalmá-lo, o xerife
chamou um dos policiais e mandou que ele fosse buscar Mad Dog
para averiguações. Vinte minutos depois, o rapaz chegou à
delegacia, debaixo de um boné do Chicago Bulls e atrás de uns
óculos escuros.
- Quer falar comigo, meu pai?
- Este homem está acusando você e alguns de seus amigos
de assassinato.
Mad Dog procurou mostrar-se surpreso e indagou:
- Quando foi isso?
- Ontem à noite.
- Mas você bem sabe que eu estava viajando e só regressei
à cidade hoje pela manhã.
O pai confirmou a mentira do filho. Ao ouvir aquilo, o índio
sentiu um incêndio lhe devorando as vísceras e, sem pensar em
mais nada, partiu para cima do rapaz e começou a espancá-lo.
Estava tão furioso e alucinado, que foram necessários dois policiais,
mais o xerife, para contê-lo. Imediatamente, foi levado para trás das
grades, onde permaneceu por dez dias, até que foi libertado.
Naquela mesma noite, o velho índio, que era um feiticeiro
poderoso, acendeu uma fogueira e se pôs a invocar as forças do
mal. Lançou sobre o fogo toda uma série de substâncias insólitas
que as suas artes ocultas de magia e encantamento empregavam
para chamar os espíritos malignos, como ossos moídos de
morcegos, fezes secas de lagartixas e cascas de cobras, a fim de
temperar as labaredas. Sobre as brasas, num caldeirão de ferro
fundido, ferveu uma infusão com raspas de pele de sapo,
escorpiões esmagados, folhas de coca, leite de algumas plantas
alucinógenas e dois ou três tipos de pós secretos. Após as preces
do ritual, o velho índio passou a inalar a fumaça até seus olhos
ficarem da cor do caqui e tomou alguns goles da beberagem. Pouco
depois, começou a entrar em transe, mastigando palavras que só as
entidades de outras instâncias, além da terrena, podiam
compreender. Subitamente, sobre a fogueira, apareceu um ser
monstruoso, lembrando um morcego gigantesco e medonho. Suas
patas em formato de garras pisavam as brasas, mas ele não se
queimava.
- Sabe por que o chamei?
- Sei, mas quero ouvir da sua boca.
- Minhas filhas foram mortas brutalmente por uma corja de
rapazes da cidade. Como são filhos de pessoas importantes, não
vão sofrer qualquer punição por parte dos homens. Quero que você
vingue a morte de minhas filhas, punindo todos os responsáveis...
- Para quando quer o serviço?
- Quanto mais rápido, melhor. Amanhã à noite, se for
possível.
- Sabe que há um preço?
- Estou disposto a pagar o que for preciso.
- Pois bem. Para celebrar o nosso acordo e em lembrança
das três meninas mortas, exijo que, todo mês de dezembro, quando
a lua estiver cheia, nos seja entregue pelos cidadãos um banquete
com três pessoas...
- Caso contrário...
- Caso contrário, todos na cidade serão mortos.
O feiticeiro não hesitou e disse:
- Aceito os termos!
Mal acabou de pronunciar estas palavras, sentiu um sopro
quente sobre os cabelos e abriu os olhos. O ser monstruoso não se
encontrava mais ali e a fogueira já estava apagada. Lá no horizonte,
começavam a surgir as primeiras cores da alvorada.
Na manhã seguinte, o velho índio sioux apareceu na cidade
com o corpo todo pintado, como se estivesse indo fazer guerra
contra tribos inimigas. Havia muita gente na praça principal, pois era
aniversário do município e as pessoas se reuniam ali em torno das
barraquinhas de comes e bebes. Alguns estranharam a maneira
como ele se encontrava vestido, quase completamente nu, pois o
conheciam de vista e o julgavam um índio aculturado. Mas foi
quando o feiticeiro se pôs a bradar em voz alta, que os cidadãos
realmente se espantaram.
Disse que suas filhas tinham sido assassinadas de maneira
bárbara e covarde e que a sua vingança não tardaria. Em pouco
tempo, uma multidão de curiosos começou a se juntar em torno
dele, inclusive o prefeito, o xerife, o Major e muitos dos rapazes que
haviam cometido aquele crime hediondo. O índio amaldiçoou a
cidade e disse que as forças das trevas iriam punir os criminosos.
Hoje mesmo, eles pagariam por seus delitos. E não era só isso.
Todo mês de dezembro, o município deveria entregar três pessoas
para serem imoladas aos monstros que ele invocara, a fim de
lembrar a morte cruel das três jovens. Caso contrário, a cidade toda
seria aniquilada.
Ao ouvir aquilo, a população alvoroçou-se. Muitos ficaram
irritados com as palavras que o velhote estava lançando sobre
aquela comunidade feito uma praga macabra. Alguns começaram a
empurrá-lo e já se ouviam gritos de linchamento, quando o xerife se
interpôs entre o feiticeiro e a multidão enfurecida:
- Deixem-no em paz! Ficou demente com a morte das filhas
e não sabe o que diz. E você, trate de voltar para sua casa, senão
eu o prendo outra vez!
O índio o encarou com um olhar sinistro e, apoiando-se em
seu cajado, passou a abrir espaço entre o povo reunido ao seu
redor. Havia transmitido o seu recado e não tinha mais nada para
fazer ali.
À noite, a festa na praça tornou-se mais animada. Uma
banda local tocava música folclórica e, a todo instante, atiravam
contra os céus fogos de artifícios. As canecas de cerveja eram
esvaziadas uma após a outra e as pessoas davam grandes
gargalhadas, como se estivessem num circo. Toda aquela alegria
contrastava com a imensa dor que o velho índio sioux carregava no
peito. Ele tinha vindo de sua cabana e andejava pelas ruas,
escondendo-se atrás das árvores, espreitando a festa pelas
sombras. Era como se a cidade inteira estivesse presente para
testemunhar a tétrica tragédia que estava para ocorrer.
Por volta das dez horas, aconteceu. Os nove rapazes
achavam-se reunidos num dos cantos da praça, em torno do carro
conversível de Big Ned e de algumas motos, bebendo muito uísque
e conversando sobre as garotas interessantes da cidade, quando
começaram a ouvir um ruído estranho e perturbador. Subitamente,
um deles gritou para olharem o céu, mas quase não houve tempo.
No mesmo segundo em que erguiam suas cabeças, feito gansos
esperando por comida, uma nuvem negra de seres monstruosos
que pareciam morcegos os atacou e passou a devorá-los com suas
presas afiadíssimas. A chacina foi tenebrosa. Os rapazes urravam
de dor ao serem comidos vivos, procurando encontrar algum abrigo,
onde pudessem se esconder, mas não havia para onde fugir. Os
que caíam no chão eram devorados mais rapidamente e, ao redor
deles, logo se formava uma poça de sangue. Em pouco tempo, a
polícia acudiu, mas foi em vão. Os tiros não faziam qualquer efeito
contra os morcegos, pois as balas atravessavam seus corpos como
se eles fossem apenas sombras. Houve gritaria geral e muito corre-
corre, mas aquelas criaturas diabólicas só atacavam os jovens
criminosos. Era como se eles estivessem marcados por alguma
espécie de tinta luminosa, que somente os monstros podiam
enxergar. Em pouco tempo, a carnificina estava terminada, pois só
restavam os esqueletos dos infelizes e nada mais havia para ser
digerido. Pele, vísceras, olhos, tripas, tudo foi consumido pela fúria
satânica daquelas horríveis aberrações. Das belas carcaças que um
dia foram audazes moços de uma pacata cidade do interior, sobrara
apenas os ossos, as unhas, os dentes e muito sangue coalhado
sobre o chão da praça, além das roupas moídas. Quando a matança
acabou, os morcegos mergulharam para dentro do céu escuro e
sumiram na direção da lua. As pessoas que não haviam fugido para
as suas casas choravam amargamente e permaneciam horrorizadas
diante de tamanha tragédia. Aos poucos, a cidade foi se
esvaziando, pois não se podia fazer mais coisa alguma, a não ser
rezar pelos mortos e pranteá-los.
No dia seguinte, procedeu-se aos enterros das caveiras dos
rapazes e decretou-se luto oficial por uma semana. Aos poucos, a
vida foi voltando à sua normalidade, mas ninguém jamais esqueceu
aquela noite de terror, que ficou para sempre gravada na memória
de toda gente. Alguém se lembrou de correr uma lista para
arrecadar dinheiro a fim de se levantar um marco na praça, com o
nome de todos os rapazes mortos. Ventilou-se também a hipótese
de se escrever no granito o nome das filhas do velho índio sioux,
mas esta ideia ficou apenas na cogitação. O monumento seria
inaugurado na data em que aquela catástrofe completaria um ano,
mas um fato sinistro veio pôr fim a tal desejo.
Na véspera da lua cheia de dezembro, o feiticeiro dirigiu-se
até a cidade e lembrou ao xerife que eles deveriam entregar três
pessoas para serem sacrificadas aos monstros, os quais
retornariam na noite seguinte, conforme o combinado. Se não
cumprissem o trato, todos seriam devorados impiedosamente. O
xerife reuniu-se com o prefeito, o Major e outras autoridades locais e
passaram a discutir o que deveria ser feito. Ainda estava muito
fresca na lembrança de todos aquela noite agourenta, onde os nove
jovens haviam sido trucidados de maneira tão bárbara. Sabiam que
aqueles morcegos malditos eram criaturas diabólicas e que
aniquilariam a cidade inteira se não fossem atendidos. Dessa forma,
decidiram convocar para aquela tarde uma reunião na praça, a fim
de que todos pudessem participar. A população se achava muito
nervosa e houve bastante discussão. Alguns indivíduos precisaram
ser agarrados pelos companheiros, para que não chegassem às
vias de fato com seus contendores. Então, após enorme bate-boca,
quando já estava escurecendo, o povo da cidade selou um pacto
macabro. No dia seguinte, todos deveriam comparecer à praça,
onde se faria um sorteio terrível, ou seja, tirariam a sorte para
escolher as três vítimas que seriam entregues aos monstros. Quem
não se apresentasse no horário combinado, já poderia se considerar
um dos escolhidos. A polícia invadiria sua residência e o arrancaria
de lá à força. Se fugisse, teria sua moradia incendiada.
Na tarde do outro dia, a população inteira da cidade reuniu-
se na praça. Fizeram uma chamada e constataram que não faltava
ninguém. Cada nome chamado era posto dentro de uma urna e
esse procedimento levou certo tempo. Quando isto terminou,
trouxeram uma criança de quatro anos, que simbolizava a pureza e
a imparcialidade, e pediram para ela retirar três papelinhos
dobrados de dentro da urna. Todos estavam por demais ansiosos e
cada qual se pegava com o santo de sua devoção, para que ele o
livrasse de ser o escolhido. Feito isso, os papéis foram entregues ao
prefeito, que desdobrou o primeiro. Houve um instante de silêncio
fatal, um silêncio tão palpável e delicado, que se estilhaçaria em
inúmeros pedacinhos, caso caísse no chão. O homem respirou
fundo e proferiu:
- Mary Melança!
Ao ouvirem o nome da velha prostituta, todos sentiram certo
alívio, pois ela não era vista com bons olhos pela maioria dos
moradores da cidade. No mais, havia apenas outros dois nomes
para serem chamados, ou seja, duas chances de ser o escolhido.
Imediatamente, quem se encontrava perto da infeliz logo a agarrou,
para que ela não tentasse fugir. Mary foi algemada e conduzida lá
para frente, enquanto se debatia feito uma égua selvagem,
estrebuchando, cuspindo nomes cabeludos e gritando que aquele
sorteio era uma farsa. O segundo sorteado foi um velho negro
chamado Gedeon, um sujeito pacato e meio leso, que não fazia mal
a ninguém. Nem deve ter entendido direito o que se passava, pois
sorria de maneira inocente, quando o algemaram. O terceiro
papelucho continha o nome do marido de Claire.
Ao ouvir seu nome ser declinado pelo prefeito, ele
contemplou a face aterrorizada da esposa e disse:
- Não se preocupe, tudo vai ficar bem!
Parecia resignado com o seu destino. Claire o agarrou com
olhos inchados de sangue e pôs-se a gritar desesperadamente para
que não o levassem. Foram necessários três policiais a fim de
separar os dois daquele abraço derradeiro, pois a moça esperneava
e lutava com todas as forças que possuía para impedir que
arrastassem seu esposo dali. Quando os separaram, ela agachou-
se no chão e, com o braço estendido na direção do consorte, pôs-se
a chorar de maneira histérica e comovente. Depois, os três foram
amarrados em árvores da praça e ordenou-se que todos deveriam
retornar para suas casas e de lá não sair até amanhecer. Quem
tentasse ajudar qualquer um dos infelizes condenados, seria posto
em seu lugar.
Eram onze horas da noite, quando Claire ouviu aquele ruído
tenebroso vindo das profundezas dos céus e, consumida pela dor
excruciante que lhe aniquilava, abriu com os dedos duas faixas da
persiana. De onde estava, não podia ver seu marido, nem o velho
Gedeon, apenas o corpo nutrido de Mary Melança. Por alguns
segundos, permaneceu atônita, sentindo-se impotente, olhos
cravados na pobre mulher que ainda se contorcia amarrada ao
tronco, brigando pela vida. Subitamente, os terríveis monstros
apareceram como um enxame de vespas e passaram a devorá-la
com sofreguidão. Logo, rasgaram-lhe o ventre e seus intestinos
escorreram molengas pelas coxas abaixo. Claire não pôde suportar
tão pavorosa visão e desmaiou. Quando tornou a si, tudo já se
encontrava no mais amargo silêncio e apenas o vento roçava o
telhado das casas e as copas das árvores, sem entender o motivo
de toda aquela infâmia...

* * *

- Isto tudo aconteceu no ano passado. Disse Claire.


Bob Jones ouviu a história toda, sem desgrudar os olhos da
menina. Estava perplexo diante de tamanha barbárie e não sabia o
que dizer. Após refletir um pouco, proferiu:
- E este ano, estes terríveis monstros atacaram de novo?
- Sim, justamente hoje, que é lua cheia.
- Eu os vi no pedágio e no posto de gasolina...
- Exato! Depois da tragédia do ano passado, o prefeito e
seus asseclas chamaram o velho índio sioux e lhe pediram para ele
entrar em contato com aquelas forças malignas. Queriam propor a
elas que aceitassem para o sacrifício pessoas de fora da cidade. O
feiticeiro invocou os maus espíritos, que concordaram. Então, o
Major sugeriu que uma das vítimas fosse o novo rapaz que
começara a trabalhar no pedágio e não tinha família. Toda a corja
aceitou e o xerife propôs que os outros dois fossem fregueses do
posto de gasolina do velho Dick, que estivessem naquele local nesta
noite aziaga...
- Agora entendo, por que fui atacado...
De repente, ouviram pancadas desesperadas batendo na
porta. Quem poderia ser naquela hora da madrugada? Os dois
assustaram-se terrivelmente e Claire levantou-se para averiguar.
Observando através da persiana, viu que havia ali um grande grupo
de homens, dentre eles, o xerife e o Major. Ela abriu a porta com
cautela e perguntou:
- O que foi?
Um deles adiantou-se e bradou:
- Vamos levá-lo. Já temos duas vítimas e nos falta apenas
mais uma. Daqui a pouco, os monstros estarão aqui!
Muito nervosa e assustada, Claire vociferou:
- Ficaram loucos? Saíam já do meu jardim!
Aqueles homens, porém, estavam decididos a levar o seu
intento adiante. Deram um violento empurrão na moça, que caiu ao
lado de uma poltrona. Bob Jones adiantou-se e tentou ajudá-la, mas
o agarraram fortemente e o arrastaram para fora da casa. Ele
debateu-se bastante, procurando libertar-se, mas não obteve
sucesso algum. Estirada no chão, Claire chorava aos potes e
berrava desguedelhada:
- Assassinos! Assassinos!
Bob Jones foi amarrado a um poste na praça. De onde
estava, pôde contemplar o seu carro em chamas, pois aqueles
bárbaros tinham deitado gasolina sobre ele e lhe ateado fogo. Logo,
ruídos pavorosos começaram a ser ouvidos no céu e as pessoas
correram para se trancar em suas casas. Lá do alto, a lua cheia
contemplava as ruas desertas, as árvores caladas e aquelas
estranhas sombras esvoaçantes, que pareciam borboletas
brincando sobre uma flor.
Dia dos Mortos

O maior medo que eu


já experimentei na
vida aconteceu-me
quando eu tinha dez anos de idade. Foi um sentimento de pavor tão
intenso e terrificante, que até hoje sinto meu sangue esguichar
gelado dentro das veias, só por me lembrar daqueles fatos ocorridos
há mais de sessenta anos. Nunca pude compreender direito o que
se passou naquele distante novembro de 1956, se o que
presenciamos foi motivado por uma alucinação coletiva ou se
havíamos sido testemunhas de uma autêntica e misteriosa
manifestação do mundo das trevas. Alguns chegaram a levantar a
hipótese de charlatanismo. Seja como for, as consequências foram
fúnebres e, por muito tempo, aqueles gritos medonhos dos dois
jovens imolados permaneceram ecoando terrivelmente dentro da
minha memória. Dizem que quem morre no dia dos mortos não
padece dor alguma ao se despojar deste invólucro mórbido de
ossos, nervos e gordura, que nos prende à existência. Não foi o que
me pareceu ao contemplar aquela cena de supremo horror.
Eu tinha ido passar alguns dias na casa de meu primo,
Marco, que regulava comigo na idade e éramos bastante unidos. Ele
morava na cidadezinha de P..., onde se realizava uma festa de dia
dos mortos muito bonita e que atraía inúmeros turistas. Em nosso
país, ao contrário do que se imagina, estas cerimônias são alegres,
pois é o dia em que nossos ancestrais retornam à terra para ficarem
na companhia dos familiares. As casas são limpas e enfeitadas com
flores variadas. As pessoas costumam improvisar uma espécie de
altar, normalmente na sala, com retratos dos entes queridos, onde
se acendem velas e se queimam incensos. Nas ruas, há desfiles e
música, além do comércio de bebidas e comidas típicas.
Já havia anoitecido, quando saímos de casa e nos dirigimos
para a praça principal da cidade. Uma multidão de pessoas se
espremia ali, pois todos queriam comemorar a data e honrar a
memória de seus amigos e familiares falecidos. Parecia que apenas
minha tia Nina iria perder toda aquela diversão. Ela estava sofrendo
com dores atrozes nos pés e quase não podia mais caminhar, de
maneira que preferiu permanecer em casa com os tornozelos
enfiados numa bacia de água quente. Antes de sairmos, porém, ela
rabiscou meu rosto e o do meu primo com um pedaço de rolha
queimada no fogão, procurando nos deixar com aparência de
caveiras. Não ficou lá grande coisa, perto de outros meninos que vi
na festa, mas dava para a gente se divertir. Grande parte dos
adultos também se achava fantasiada com motivos fúnebres ou
usando máscaras sinistras. Alguns se encontravam tão bem
caracterizados como defuntos, que davam a impressão de terem
escapado há pouco das covas do cemitério.
Meu tio Hector nos acompanhou por toda parte. Ele
mostrou-se muito generoso e nos comprou vários doces nas
barracas das quituteiras. O nosso preferido, sem dúvida, era um
coberto por açúcar e que tinha o formato de uma caveirinha.
Também nos comprou o famoso pão dos mortos, feito com raspas
de laranja e erva-doce, uma tradição do dia de finados.
A noite estava escura e não havia lua no céu nublado. Mas
as ruas iluminadas por uma infinidade de chamas de velas
transformaram a cidade num espetáculo à parte. Como era bonito
ver todas aquelas luzes cintilando feito fantasmas aos afagos da
brisa, lumes tão brilhantes que quase ofuscavam nossas vistas. Do
outro lado da praça, quase na porta da igreja, tinham feito um tapete
de serragem com motivos funéreos e rosas negras. A princípio, as
pessoas evitavam pisar sobre ele a fim de não o estragar; porém,
isto logo se tornou impossível devido à grande quantidade de gente
e o tapete, em pouco tempo, ficou irreconhecível.
Todos queriam ver La Catrina e ficaram encantados quando
ela apareceu, montada sobre um carro empurrado por uns seis
homens. La Catrina é o símbolo maior do evento. Trata-se de um
enorme esqueleto com mais de cinco metros de altura, que
representa uma dama da alta sociedade, muito magra e comprida.
Este ano, ela estava usando um vestido roxo e trazia um chapéu de
flores e penas sobre a cabeça descarnada de caveira. Meu primo e
eu corremos para vê-la mais de perto e quase nos perdemos de
meu tio no meio da multidão. Era uma alegria só. A música
misturava-se com as vozes das pessoas, que riam felizes,
confraternizando-se com os seus mortos. Todos se divertiam e
bebiam sofregamente, esquecidos de que a vida também acabaria
para eles um dia. No meio da festa, porém, um homem soturno,
vestido de preto, segurou um dos ombros de meu tio e disse:
- Hector, meu bom amigo, infelizmente não trago boas
notícias...
O sujeito apresentava o semblante carrancudo e seus olhos
pareciam espelhar cemitérios. Em meio à algazarra geral, os
músicos calaram seus instrumentos por alguns instantes, de
maneira que pude compreender melhor o que eles falavam. Meu tio
teve o cenho nublado pela possibilidade de receber um golpe trágico
e bradou com firmeza:
- Mas o que aconteceu? Diga de uma vez por todas!
O homem passou a mão sobre os fiapos de cabelos e
proferiu com cadáveres na voz, como se ela ecoasse numa tumba
vazia:
- Foi o Dago... ele morreu...
Vi que a notícia pegou meu tio como um soco no fígado,
deixando-o profundamente abalado. Durante alguns segundos, ele
permaneceu em silêncio, ruminando sua dor, como quem procura
decifrar os mistérios da morte. Depois, fiquei sabendo que eles eram
grandes companheiros, desde os tempos do internato. Quantas
palmadas de palmatória Hector não havia recebido dos padres-
mestres por ocultar as travessuras de Dago, um dos maiores
farristas do colégio? Segundo tia Nina, os dois eram amigos
verdadeiros e viviam juntos por toda parte. Dago também era
padrinho de meu primo Marco, que ficou muito triste ao tomar
conhecimento daquele acontecimento pesaroso.
Meu tio caiu nos braços do sujeito com os olhos malhados
de sangue. Os dois mantiveram-se abraçados por algum tempo, até
que ele indagou:
- Mas como foi isso?
- Aconteceu tudo muito de repente. Não se sabe direito a
causa, mas parece que foi o coração.
Os dois conversaram durante mais alguns minutos,
despedindo-se em seguida. Nós regressamos para casa, pois não
havia mais clima para festas, mesmo sendo para se homenagear os
mortos. Descobri que os defuntos recentes são chagas abertas e
doem muito mais do que aqueles que já esfriaram na sepultura,
convertidos apenas em lembranças e saudades. O tempo, que tudo
roça com seu cajado de pastorear sombras, vai aos poucos
espargindo grãos de consolo sobre o coração dos homens.
Em casa, fizemos uma refeição ligeira e nos dirigimos para a
residência do morto, onde os amigos e familiares estavam velando
seu corpo. Tia Nina mandou meu tio levar a todos os seus
sentimentos e explicar que ela não tinha condições de ir ao velório,
pois seus pés estavam doendo demais, como se eles estivessem
metidos em uma morsa.
O local não era longe e chegamos em poucos minutos. Ao
entrar na sala, reparei que o ambiente se encontrava um tanto
escuro, pois estava sendo iluminado apenas por umas poucas velas
postas ao lado do caixão. Se o recinto não se achava abarrotado de
gente, também não existia mais muito espaço para acomodar outras
pessoas. Dago era bastante querido e todos seus familiares e
amigos, que se encontravam na cidade, fizeram questão de vir lhe
dar o derradeiro adeus. Havia uma mulher inconsolável, sentada
numa das cadeiras junto à parede dos fundos, vestida de preto e
chorando amiúde entre duas velhas que imprecavam a Deus suas
preces. Fiquei sabendo que ela era a esposa do defunto, quando
meu tio apertou-lhe a mão em silêncio, procurando transmitir-lhe
com seu olhar toda a sua comoção pelo passamento do
companheiro. Lá no jardim, alguns homens fumavam entre as
árvores, enquanto que outros conversavam em voz baixa,
procurando tentar compreender o que havia acontecido com aquele
jovem de aparência tão saudável e que se despedia da vida de uma
maneira tão misteriosa.
Cerca de uma hora após nós termos chegado ao local,
comecei a ouvir um rumor lá fora que foi crescendo de intensidade,
até que algumas pessoas se afastaram da porta para dar passagem
a um velho índio xamã. Ele estava pintado, vestido como seus
ancestrais, repleto de colares e adereços, e portava numa das mãos
uma espécie de amuleto em forma de bastão com uma caveira na
ponta. Logo correu pela sala a notícia de que ele era um poderoso
feiticeiro e fora trazido até ali, por um dos amigos de Dago, para
exercer as suas artes de feitiçaria. Quando a mulher do morto
inteirou-se do que estava acontecendo, achou aquilo tudo um
despropósito que feria as suas nobres convicções de boa cristã e
pôs-se a gritar feito uma demente para expulsarem de sua casa o
velho xamã. Porém, as pessoas não lhe deram ouvido e disseram:
- Cale-se! Ele veio de longe para ouvir o que Dago tem a
dizer.
Fizeram-na sentar novamente e trouxeram-lhe um copo de
água com açúcar para ela se acalmar. Em seguida, o feiticeiro
aproximou-se do cadáver e, colocando uma de suas mãos sobre a
boca dele, proferiu:
- Noite dos mortos, noite de ressurreição. Os mortos falam
com os vivos. Os que morreram no dia de finados, acordarão das
trevas.
Aquelas palavras proferidas pelo velho xamã foram me
deixando apavorado. O ambiente ali na sala começou a me parecer
tremendamente sombrio e eu tinha a sensação de estar sendo
observado por fantasmas, misturados entre as pessoas. De vez em
quando, uma brisa gelada entrava pela porta e fazia as chamas das
velas dançarem, desenhando figuras macabras pelas paredes. Olhei
para meu primo, que se mostrava bastante aterrorizado e não
largava um instante a mão de seu pai. A minha vontade era sair dali
correndo e voltar para a festa, que continuava animada lá na rua. A
certa altura, o índio pediu que trouxessem tequila e logo lhe
entregaram uma garrafa. Ele misturou na bebida um pó misterioso
que trazia dentro de um saquinho de pano, proferiu umas palavras
mágicas que ninguém entendeu e bebeu metade do conteúdo da
garrafa num gole só. Seus olhos incharam feito beterrabas e
pareciam que iam explodir a qualquer momento. Em seguida, ele
abriu a boca do defunto e despejou dentro dela o restante da
bebida, fazendo-o engolir. Todos assistiam àquele espetáculo
sinistro num silêncio extremo, olhos cravados no feiticeiro, pois
ninguém queria perder nada do que estava acontecendo. Jamais
poderiam imaginar o que estaria para suceder dali a pouco. O velho
xamã pediu então fogo e lhe trouxeram fósforos. Ele acendeu uma
espécie de cigarro, feito com folhas de ervas que enrolou ali mesmo,
após retirá-las de uma pequena bolsa e temperá-las com aquele pó
secreto. Depois, pôs-se a fumar furiosamente, dando baforadas de
fumaça preta sobre o cadáver. Um odor fétido, que eu nunca havia
sentido antes na vida, tomou conta da sala. Algumas pessoas
levaram a mão ao nariz, a fim de cobri-lo, mas ninguém deixou o
recinto para respirar ares mais frescos lá fora. Enfim, o índio deu um
beijo na boca do falecido, introduzindo em seu corpo aquela fumaça
sagrada, que foi lhe escapando lentamente pelas narinas.
O feiticeiro cerrou as pálpebras e começou a fazer preces
numa língua incompreensível. Foi quando senti o maior medo de
minha vida. De repente, o morto abriu uns olhos arregalados, como
se quisesse observar pela última vez o mundo dos vivos. Foi tudo
muito rápido e creio que não durou mais de um segundo, pois
imediatamente ele os fechou. Muitas pessoas nem chegaram a
perceber isso, pois permaneciam observando o feiticeiro. Mas eu vi
tudo claramente e digo que foi uma coisa terrível de se contemplar.
O susto que levei foi tamanho, que minha pele ficou gelada feito
uma bacia de água deixada ao sereno e minhas pernas bambeavam
vertiginosamente. Quis sair correndo dali, mas meu tio percebeu a
aflição que me dominava a alma e colocou seu braço protetor sobre
meu ombro, tranquilizando-me um pouco. Porém, isto durou apenas
um hiato de segundo porque, neste momento, ouviu-se uma voz
funérea:
- Vós que estais do outro lado do mistério, escutai-me!
Deus do céu! Eu tinha ouvido direito ou aquilo já era efeito
do pavor que, naquele instante, dominava-me por completo. O
defunto acabara de falar, sem mexer os lábios, sem contrair
qualquer músculo. Isto foi tão inesperado e sem sentido, que todos
quedaram perplexos, roídos por seus próprios medos. Olhei para
meu tio, que mantinha os olhos esbugalhados, sem acreditar no que
acabara de escutar. Se fosse hoje, talvez eu tivesse me inclinado a
acreditar que tudo não passara de uma alucinação coletiva,
provavelmente porque todos ali na sala tínhamos respirado aquela
fumaça misteriosa com que o xamã aspergiu o cadáver. Mas o que
ocorreu a seguir não deixa dúvidas de que Dago havia retornado do
mundo dos mortos.
O xamã aproximou-se ainda mais do caixão, pôs uma das
mãos sobre o peito do morto e indagou:
- O que tem a nos dizer?
Fez-se um silêncio lacerante, afiado como a foice da morte.
Todos os olhos estavam espetados no defunto, pois já ninguém
duvidava que ele poderia se levantar dali a qualquer momento.
Subitamente, uma voz lúgubre ecoou pela sala:
- Parti desta vida antes de ter chegado a minha hora, antes
de ter se completado o meu tempo.
O velho índio tocou-lhe a face com a caveira que coroava o
seu amuleto mágico e disse:
- Por que afirma isso?
- Porque fui assassinado!
Um alarido terrível tomou conta da sala. Até então, todos os
presentes, que permaneciam mudos, estarrecidos de medo ao
contemplar aquelas cenas verdadeiramente pavorosas e
inacreditáveis, passaram a falar ao mesmo tempo, sem
compreender direito o que estava acontecendo. Alguns queriam
informações de seus familiares, enquanto que outros desejavam
saber como era a vida após a morte, se Deus existia e se havia um
céu e um inferno. A confusão generalizou-se, até que o feiticeiro
ergueu uma das mãos e bateu com o crânio do seu amuleto na
lateral de madeira do caixão, pedindo silêncio. Quando os ânimos
serenaram, ele indagou:
- E o que mais você quer nos dizer?
- Que os assassinos estão presentes nesta sala!
Houve nova confusão. Dago havia sido assassinado por
algum de seus amigos ou familiares? Aquela confissão era
tremendamente espantosa e fez muita gente estremecer. Se fosse
verdade, isto explicaria por que ele falecera de maneira tão
inesperada e repentina. O xamã ordenou de novo que se fizesse
silêncio e proferiu:
- Como foi isso?
- Fui envenenado com o poderoso veneno de um sapo
colombiano, cujo nome científico é Phyllobates terribilis. A dose me
foi ministrada numa taça de vinho...
- Por quem?
- Pela minha mulher e seu amante, este miserável que está
encostado junto à porta da cozinha.
No mesmo instante, todos os olhos colaram-se nos dois
acusados, que pareciam demonstrar uma enorme surpresa com
aquilo tudo. Então, a esposa de Dago ergueu-se de súbito e gritou:
- Mentira! Este índio maldito não passa de um charlatão!
Deve ser algum tipo de ventríloquo, pois toda gente sabe que
mortos não falam. E se este falou, quero ver provar o que disse!
O feiticeiro dirigiu-se mais uma vez ao defunto, indagando:
- Tem algo a dizer sobre isso?
- A prova do crime ainda se encontra na casa. O veneno
está escondido atrás da descarga do banheiro...
Imediatamente, as pessoas começaram a discutir ao mesmo
tempo. Já não havia mais clima para velório e todos estavam
interessados agora em desvendar aquele possível assassinato.
Como me achava próximo à porta do corredor, pediram-me que eu
fosse verificar se o que fora dito era verdade. A mulher de Dago
ameaçou vir atrás de mim, mas a seguraram e fecharam todas as
portas da sala, para que ninguém saísse da casa.
O corredor era comprido, escuro e tinha um odor de
umidade que parecia vir debaixo dos tacos. Na última porta, ficava o
banheiro, que exalava um cheiro de fezes misturado a aroma de
detergente. Apertei o interruptor e uma luz amarelada se acendeu,
inundando o ambiente com uma claridade opaca que me dava
medo. A minha sensação era que o fantasma de Dago estava me
espiando de dentro daquele velho espelho todo riscado pelo tempo
e o meu desejo era voltar o mais rápido possível para junto das
outras pessoas lá na sala. Caminhei até o vaso sanitário sentindo
meu coração batendo acelerado dentro do peito e, tateando atrás da
descarga, encontrei um pequenino frasco, conforme o defunto havia
dito. No mesmo instante, regressei pelo corredor escuro, abri a porta
da sala e entreguei o vidrinho para meu tio. Todos nos olhavam
assombrados e curiosos. No rótulo, havia a imagem de ossos
cruzados e as palavras Phyllobates terribilis, que Hector leu em voz
alta com o ódio espumando entre os dentes.
Ao ouvirem aquilo, a balbúrdia tornou-se brutal. Todos
discutiam e falavam ao mesmo tempo, indignados, acusando os
assassinos pelo crime. Três homens agarraram a mulher do
falecido, enquanto que outros três seguraram o suposto amante,
para que nenhum dos dois fugisse. Um ódio supremo brilhava
dentro dos olhos de todos os amigos e familiares de Dago, que
começaram a falar em fazer justiça com as próprias mãos. A certa
altura, pediram para o feiticeiro consultar o morto, a fim de que este
dissesse como eles deveriam agir, segundo a sua vontade. Fez-se
um silêncio agonizante, até que o velho xamã indagou:
- É tua vontade que os dois criminosos paguem com a vida
pelos seus atos?
O defunto, porém, permaneceu mudo, como se já tivesse
regressado para os domínios das trevas. De súbito, alguém gritou
colérico:
- Quem cala, consente! Morte a estes malditos assassinos!
- Morte! Gritaram todos numa única voz.
Era como se uma loucura sanguinária tivesse tomado conta
de todos os presentes. Já ninguém mais se lembrava de velar o
morto. No mesmo instante, trouxeram cordas, amarraram aqueles
dois seres abomináveis e os arrastaram para fora da casa,
metendo-os na carroceria de um caminhão. Grande parte das
pessoas subiu ali atrás, inclusive eu, meu primo e meu tio, que
parecia possuído por um furor demoníaco. Outros subiram em seus
cavalos, carroças, carros, motocicletas e, urrando e bramindo
pragas, seguiram o velho caminhão naquele comboio macabro.
Quando chegaram ao arrabalde da cidade, o caminhão estacionou
num trecho deserto de uma estradinha de terra escura e sinistra e
nisto foi acompanhado pelos outros. O que se seguiu foi algo terrível
para uma criança presenciar e pessoa alguma demonstrava se
importar com a nossa inocência. Aqueles homens, até há pouco tão
pacatos, pareciam ter se transformado em monstros sanguinolentos
e alucinados. Imediatamente, amarraram os dois assassinos nuns
mourões de uma cerca de arame farpado e jogaram gasolina sobre
eles. Como peixes fisgados, os infelizes se contorciam
desesperadamente a fim de tentarem se libertar das cordas, mas
isto só lhes aumentava o sofrimento, pois suas costas iam sendo
rasgadas pelas farpas do arame e o sangue passou a lhes escorrer
aos baldes, empapando-lhes as roupas. Então, alguém riscou um
fósforo e atirou sobre os desgraçados. Um clarão súbito iluminou a
estradinha soturna e gritos de horror passaram a ser ouvidos por
todos, como se gralhas crocitassem em agonia nas catacumbas
infernais. Durante um bom tempo, arderam como tochas humanas,
crepitando na escuridão.
Lá do campo onde nos achávamos, podíamos ver ao longe
a cidade lindamente iluminada pela luz das velas, ainda festejando a
noite dos mortos. Aqueles que já estavam lá e aqueles que ainda
estavam por vir.
A morte encontra Jimmy
Harrison

C om a manga de sua
camisa, Jimmy
Harrison esfregou a
janela embaçada da carruagem, procurando enxergar lá fora
qualquer coisa além da violenta tempestade que castigava a estrada
sombria e os campos silenciosos. Os relâmpagos pareciam querer
rachar os céus e, cada vez que um deles iluminava as trevas, o
moço tinha a impressão de ver espantalhos correndo pelas
plantações, como se misteriosamente tivessem sido despertados
para a vida e procurassem agarrar algum dos fazendeiros que os
haviam condenado àquela existência miseranda, fincados à terra
feito um indolente plátano, sujeitos aos rigores do sol, da chuva, do
vento, da concupiscência dos insetos e das bicadas dos corvos. Por
alguns instantes, Jimmy Harrison cochilou, embalado pelo canto
hipnótico dos cascos do cavalo ferindo o caminho repleto de lama,
único som que se podia ouvir, excetuando-se aqueles produzidos
pela chuva. Era tarde e ele achava-se por demais cansado, pois
passara toda a madrugada no hospital, operando os feridos de um
tiroteio e mal pôde pregar os olhos.
Mesmo sentindo-se esgotado, como médico não podia se
furtar a uma emergência. Fora chamado às pressas para fazer o
parto da jovem Anne Lohan, moradora na pequena Watford, aldeia
perto de Londres. Moravam em casas vizinhas na infância e haviam
sido amigos naquela época. Não só cresceram juntos, como
chegaram a ter um pequeno romance na adolescência. Tudo isto
agora era passado. Anne Lohan, porém, não queria outro médico
para o parto de seu filho e, mal começou a sentir as dores de praxe,
despachou um criado para a capital com um bilhete, pedindo para
que Jimmy viesse com urgência à sua residência.
Despertou assustado, como se não soubesse exatamente
em que local se encontrava. Embora estivesse vestindo um robusto
capote, o jovem médico sentia um frio terrível subindo pelas suas
pernas, vindo do assoalho. Não podia acreditar como o cocheiro
suportava toda aquela friagem lá fora, protegido apenas por um
sobretudo e um chapéu. “São os ossos do ofício”, pensou. Jimmy
Harrison enfiou sua mão direita em um dos bolsos do casaco e
retirou dele um velho relógio pendurado por uma corrente. Por
alguns segundos, fixou os olhos no mostrador, mas não conseguiu
ver nada, pois estava muito escuro dentro da carruagem. Pôs-se,
então, a tatear os outros bolsos, pois sempre trazia consigo uma
caixa de fósforos. Após encontrá-la, apanhou um dos palitos e o
acendeu. Um pálido e breve clarão iluminou o interior da cabine e o
jovem médico pôde constatar que era meia-noite.
- Mais rápido, cocheiro, estou atrasado! Gritou um tanto
nervoso, dando duas pancadas em uma das laterais da carruagem
com a ponta de sua bengala.
Ouviu o homem rosnar algo ininteligível, acompanhado pelo
som cavo do chicote no dorso do animal, e teve a impressão de que
as rodas passaram a avançar mais rápidas pelo barro escorregadio.
Porém, no instante seguinte, a carruagem reduziu bruscamente a
velocidade, terminando por parar por completo a sua marcha. Jimmy
Harrison abriu a porta para ver o que havia acontecido e sentiu a
chuva forte lavar a sua roupa. Encostando-a um pouco, bradou para
o cocheiro:
- O que aconteceu?
- Há um acidente bloqueando a estrada. Creio que estão
precisando do socorro de um médico...
Ao ouvir isso, o moço não se fez de rogado e desceu da
carruagem para ajudar as possíveis vítimas. Tão logo pôs os pés na
lama, encharcando-se completamente em virtude da tempestade,
Jimmy Harrison viu aquela cena pavorosa. Pouco adiante, havia
uma velha ponte de madeira sobre um rio, cujo volume das águas
se mostrava bastante encorpado. Dez jardas antes dela, achava-se
uma carruagem tombada, tendo uma roda partida. Um relâmpago
cortara um enorme galho de uma árvore, atingindo em cheio o pobre
cavalo, que se contorcia debaixo dele, estertorando de dor.
Desesperadamente, o cocheiro tentou livrar o animal daquele peso
que lhe comprimia as carnes, mas concluiu que se tratava de uma
tarefa inútil. O homem deu alguns passos até a ponte para ver se
descobria algum corpo por lá, talvez preso à vegetação das
margens. Porém, não encontrou ninguém. Nem sinal do cocheiro
que conduzia aquela carruagem.
Jimmy Harrison aproximou-se do local do acidente ainda um
pouco apavorado, sem saber direito o que fazer. Os gemidos do
cavalo angustiavam-lhe demais e, se ele estivesse carregando
consigo a sua arma, teria sacrificado o infeliz animal imediatamente.
Na certa, ao ver o imenso galho caindo na sua direção, o cocheiro
tentou desviar seu percurso de maneira brusca, tombando o veículo.
O jovem médico deu alguns passos até o desastre, que deveria ter
ocorrido quase naquele momento, pois uma das rodas ainda girava
em seu eixo. Um relâmpago violento explodiu do outro lado do rio,
provocando um susto terrível no moço, que havia caminhado ao
local onde o cavalo jazia agonizando. Incrivelmente, só neste
instante ele se deu conta de que alguém poderia estar preso dentro
da carruagem, necessitando de ajuda. Bastante aflito, escalou com
certa dificuldade a cabine escorregadia, pois esta ficara caída de
lado, com a porta lateral apontada para o céu. Após grande esforço,
ele conseguiu alcançar o topo; porém, no segundo em que ia abrir a
porta, outro relâmpago arrebentou no horizonte, revelando a silhueta
pálida de um homem misterioso, que ali aparecera como que por
encanto.
- Não perca seu tempo. Não há mais ninguém no interior da
carruagem.
Ao ouvir aquelas palavras, Jimmy Harrison pulou de cima da
cabine de maneira bastante desajeitada, mas não chegou a cair
estatelado no chão, como se poderia imaginar. Dirigindo-se ao
desconhecido, indagou:
- Precisa de ajuda, amigo?
- Agradeço muito se me levar até a aldeia de Watford. Tenho
um negócio urgente para resolver naquela localidade.
- Estamos indo justamente para lá e seria uma honra viajar
em sua companhia. Mas, antes, precisamos tirar a carruagem
acidentada do caminho.
O médico chamou o cocheiro e os três empurraram o
veículo tombado um pouco de lado, o suficiente para que eles
pudessem passar. Em seguida, entraram na cabine e recomeçaram
o percurso.
Após terem atravessado cuidadosamente a ponte, Jimmy
Harrison bateu outra vez em uma das laterais da carruagem com
sua bengala e bradou:
- Vamos, cocheiro! Tenho pressa de chegar a Watford!
Em seguida, dirigindo-se àquele homem misterioso, proferiu:
- Sou médico e estou indo fazer um parto. O senhor é de
Londres mesmo?
O sujeito permaneceu calado, limitando-se a endireitar o
chapéu com uma das mãos enluvadas. Depois, pronunciou com voz
lúgubre:
- Não adianta ter pressa agora...
- Por que diz isso?
- Porque tudo já está resolvido para você.
- Não estou entendendo aonde quer chegar...
- Vai entender...
Jimmy Harrison fixou os olhos no estranho companheiro de
viagem, mas estava por demais escuro no interior da cabine, de
maneira que ele não conseguiu ler as intenções que havia por trás
daquela face gelada. Passado alguns instantes de silêncio
incômodo, que pareceu ao jovem médico um imenso período
angustiante, ele bateu com mais fúria na parede da carruagem e
berrou:
- Eia, cocheiro, está surdo? Mais rápido, homem!
A carruagem permaneceu seguindo na mesma velocidade
para seu desagrado. Jimmy Harrison contemplou o sujeito sentado à
sua frente, o qual cofiava a barba rala e grisalha de maneira
irritante. O jovem passou a fitar o castão prateado de sua bengala,
talvez imaginando dar com ela no condutor do veículo, quando ouviu
a voz do seu interlocutor como se ele tivesse lido os seus
pensamentos.
- A culpa não é do cocheiro, pois não há mais ninguém
conduzindo esta carruagem.
Ao ouvir aquelas palavras, um calafrio gélido percorreu a
espinha cervical do médico. Com mil diabos! Já havia se
arrependido de ter lhe oferecido condução até a aldeia de Watford.
Com a voz um tanto aterrorizada, indagou:
- O que você quer dizer com isso?
- Exatamente o que ouviu.
Jimmy Harrison abriu a porta com cautela e esticou-se de
maneira perigosa para fora. O vento ardido arrancou-lhe o chapéu,
que ficou caído na lama da estrada e a chuva aproveitou para lhe
molhar os cabelos. Apenas então se deu conta do que acontecia.
Deus do céu! Não havia ninguém conduzindo o cavalo, como o
sujeito dissera.
Tomado por um terror indescritível, o médico bateu a porta e
retornou para o seu lugar no assento até onde estivera há pouco,
tendo os cabelos escorrendo. Tão logo recuperou o fôlego,
perguntou:
- Quem é você? Como podia saber disso?
O misterioso ser nada respondeu, apenas apanhou um
cigarro em um dos bolsos e o acendeu com um toque em sua
língua. Em seguida, soltou uma baforada na direção de Jimmy
Harrison, dizendo:
- Quem você acha que sou?
- O demônio?
Ele riu de modo debochado, chegando mesmo a engasgar
com a fumaça.
- Vocês humanos imaginam sempre o pior. Pense em mim
como um anjo que veio lhe ajudar...
- Ajudar-me?
- Exato! Na verdade, tenho uma proposta para você.
- O que quer de mim? Interrogou o médico apreensivo.
- Ainda não compreendeu? Não faz ideia de quem seguia
naquela carruagem acidentada?
Novamente, Jimmy Harrisson experimentou um arrepio nas
costas. A sua pele estava fria como uma truta e através de suas
têmporas escorriam gotas de suor gelado. Quis fugir dali, abrindo a
porta e se lançando através dela na estrada, mas a ideia lhe
pareceu bastante estúpida. Respirou fundo para tomar coragem e
proferiu:
- Pensei que fosse você quem seguia naquele veículo.
- Meu caro, eu não preciso de nenhum meio de transporte
para me locomover. Pense bem! Aquela carruagem não lhe pareceu
familiar?
- Talvez um pouco semelhante a esta...
- Um pouco semelhante?
- Sim. Quem sabe fora feita pelo mesmo construtor...
- Por que não aceita o óbvio? É tão difícil assim?
Jimmy Harrison respirava agora com dificuldade e a muito
custo conseguia engolir. Achava-se transido de pavor e não queria
acreditar nas evidências. Estaria morto? Esta ideia gelou todas as
gotas de sangue que lhe corriam nas veias. Horrorizado, afirmou a
seu interlocutor macabro:
- Agora me recordo bem. Era uma carruagem igual a esta...
- Pois lhe digo que era esta...
Tais palavras encheram-no de terror e Jimmy Harrison
agarrou o assento com força, como se procurasse se certificar de
que este era real e a carruagem ainda continuava lá. Diante do
médico, aquele ser abominável encarava-o com uns olhos vazios
feito um poço seco. Jimmy sentia tanto medo, que somente
conseguiu emitir duas palavras num tom muito baixo:
- Não entendo...
- Então vou lhe explicar, pois ainda temos alguns minutos.
Peço a gentileza de me dizer que horas são no seu relógio...
O rapaz apanhou-o em um dos bolsos, mas não encontrou
os fósforos em parte alguma. Após breves instantes apalpando-se,
disse um pouco constrangido:
- Não tenho fogo para iluminar o mostrador. Devo ter
deixado a caixinha cair quando desci...
- Isto não é problema.
Mal acabou de pronunciar tal frase, o homem estalou os
dedos e um relâmpago iluminou o interior da carruagem, mostrando
que faltavam cinco minutos para a meia-noite. A cada um destes
feitos extraordinários, Jimmy Harrison ia se tornando cada vez mais
aterrorizado. Amaldiçoava o nefasto minuto em que se oferecera
para levá-lo até a aldeia de Watford e, com toda certeza, aquele ser
infernal estava ali para lhe causar algum dano. Quanto a isso, o
jovem médico tinha certeza absoluta.
- Que estranho! Este relógio não deve estar funcionando
direito. Juro que antes de parar, vi os ponteiros dele marcando meia-
noite...
O sujeito descalçou as luvas e, através da penumbra
lúgubre que inundava o ambiente, Jimmy Harrison conseguiu
observar que a mão dele era descarnada, apresentando dedos
feitos apenas de ossos. Quis gritar de horror, mas a sua voz
permaneceu atada à garganta. Deus do céu! Que diabos seria
aquele ser horrendo?
- Não há nada para se estranhar. O relógio estava certo
antes do acidente e continua certo agora...
- Como pode ser isso?
O homem riu com seus dentes amarelados, recobertos por
uma camada espessa de um tártaro milenar. Depois, ajeitou a
gravata com os dedos ossudos e disse:
- Neste momento, estamos no que se pode ser chamado
uma fenda do tempo...
- Como assim?
- Houve uma regressão temporal. Na verdade, você
encontra-se agora a poucos minutos antes do acidente...
Bastante assombrado e quase sem poder respirar, Jimmy
Harrison indagou:
- Mas como isso é possível?
- Às vezes, acontece. Nem tudo é perfeito na engenharia
divina e é comum a falta de sincronia em dimensões temporais
paralelas. Não tente entender a morte se, enquanto vivo, você foi
incapaz de compreender a própria vida.
Aquela última frase caiu nos ouvidos do moço feito uma
martelada. Sentia o seu coração pulsando acelerado, como se
procurasse descobrir alguma brecha para escapar do peito. Com os
olhos esbugalhados, interrogou:
- Estou morto?
- Ainda não. A bem dizer, você vai morrer daqui a pouco,
quando o acidente ocorrer de fato. Mas ainda pode escapar, se
quiser. Por isto estou aqui, para lhe fazer este obséquio...
- Em troca de minha alma, Satanás?
- Já disse que não sou o demônio. Se deseja mesmo saber,
alguns me chamam de Morte, por falta de um nome melhor. Mas
prefiro ser visto como uma necessidade benéfica para a
humanidade na complexa arquitetura da criação, com funções
sanitárias e profiláticas bem definidas. Porém, isto não vem ao caso
agora. Está interessado na minha ajuda?
- Estou interessado em viver! Que vai acontecer comigo?
- Ainda não compreendeu? Daqui a instantes, exatamente à
meia-noite, um relâmpago atingirá o galho de uma árvore, que cairá
sobre a sua carruagem, matando-o.
Um terror supremo estampou-se na face gélida de Jimmy
Harrison. Suas mãos tremiam deveras e seus olhos haviam se
injetado para fora das órbitas. Fez um esforço terrível para controlar
suas emoções, de maneira que ainda conseguiu balbuciar algumas
palavras:
- Como pode me ajudar?
- Dando-lhe uma última oportunidade para salvar a sua vida.
- Ainda é possível mudar o que está escrito?
- Claro! Basta você assim desejar. Porém, deve saber que a
Morte nunca volta de mãos vazias. Proponho-lhe um acordo de
cavalheiros. Poupo a sua vida, em troca da vida de Anne Lohan, a
mulher com quem você iria se encontrar, e de seu filho. Basta você
apertar a minha mão, que o acordo será fechado. Você continua
vivo e eu ganho em dobro...
Aquela proposta deixou Jimmy Harrison atordoado. Sentia o
seu cérebro latejar, como se ele tivesse sido posto num moedor de
carne. Que fazer? Em poucos segundos estaria morto ou seria o
responsável pela morte de dois inocentes... A carruagem corria
célere em direção a seu destino fatal. Inclusive, o médico sentiu as
rodas acelerarem, como havia pedido ao cocheiro, instantes antes
do acidente. A Morte estendeu-lhe sua mão descarnada e bradou:
- Rápido! A ponte em que a carruagem se acidentou já está
se aproximando. Depois disso, nada mais poderá ser feito...
Jimmy Harrison abriu a porta e constatou aterrorizado que
era verdade. Tinham retornado para o mesmo local e não havia
nada mais que ele pudesse fazer para impedir a tragédia. Ou havia?
Aflito, sem mais pensar nas consequências, ele bateu a porta da
carruagem e regressou ao seu lugar. No exato instante em que iam
passar pela ponte, ele apertou a mão da Morte e um relâmpago
formidável explodiu nas proximidades, inundando tudo ao redor com
um clarão espetacular. Quando seus olhos passaram a enxergar
novamente, ele achava-se sozinho no interior da carruagem. Mais
uma vez, abriu a porta e verificou que o cocheiro se encontrava no
seu lugar de costume, chicoteando os animais.
- Falta muito para chegarmos?
- Estamos quase lá.
Vinte minutos depois, a carruagem parou diante do local
indicado pelo médico. Ele apanhou a sua maleta e despediu o
cocheiro, após lhe pagar a quantia combinada. A chuva havia
diminuído bastante e agora não passava de quase uma garoa.
Jimmy Harrison permaneceu algum tempo na rua, contemplando o
velho prédio de três andares e tijolos aparentes gastos pelo tempo.
Alguns ratos corriam por entre o lixo acumulado na calçada,
indiferentes aos olhares humanos. Por um instante, o jovem médico
sentiu as pernas bambas, temendo o que poderia descobrir no
quarto de Anne Lohan. Afinal, aquele encontro sinistro ocorrido há
pouco na carruagem teria acontecido de fato ou tudo não passara
de um sonho, um pesadelo, uma alucinação? Finalmente, ele tomou
coragem e, abrindo a porta do prédio, pôs-se a subir os degraus
gelados e desgastados pelos anos de uso. Uma escuridão
cadavérica deitava sombras funéreas sobre tudo, inclusive, sobre os
pensamentos do moço. A cada passo que ele dava, sentia o
remorso lhe roendo ainda mais o peito, feito uma ninhada de
ratazanas. Um cheiro terrível de coisa podre parecia exalar das
paredes. Um cheiro terrível de coisa podre parecia exalar de dentro
dele, de sua alma. E foi com a alma exalando sordidez e podridão,
que Jimmy Harrison colocou seus dedos sobre a maçaneta da porta
de Anne Lohan, que Jimmy Harrison girou-a de maneira decidida e
que Jimmy Harrison ali entrou para nunca mais ser visto.
Um drinque com Satanás

A o sentir os primeiros
pingos de chuva,
Mike cobriu
cabeça com o capuz de seu agasalho e atravessou correndo a
movimentada avenida. Como não olhou para os lados, quase foi
a

atropelado por um carro que vinha em alta velocidade, tendo sido


necessário frear bruscamente para não colidir com o rapaz. O
motorista meteu a mão na buzina e soltou um palavrão. Mike
ignorou o sujeito e seguiu disparado até alcançar a calçada. Ali,
abrigou-se debaixo da marquise de uma loja e, para passar o
tempo, permaneceu observando a vitrine.
Era uma livraria que vendia livros usados. Por mais de
cinquenta anos, funcionara naquele mesmo local. Com o tempo, o
estoque da loja foi aumentando drasticamente, de maneira que o
proprietário se viu obrigado a alugar os imóveis vizinhos a fim de
guardar tanto papel velho. Ia rasgando portas nas paredes laterais e
entulhando volumes sobre volumes, formando um enorme labirinto.
A chuva aumentara de intensidade. Para se abrigar melhor
dela, pois ainda recebia os respingos nas pernas, Mike empurrou a
porta de vidro da livraria e entrou no seu interior. Uma sineta tocou
atrás da porta e um velho que se achava curvado sobre uma pilha
de livros, sentado atrás de uma escrivaninha de madeira, ajeitou os
óculos sobre os olhos para observar com mais cuidado o cliente. O
jovem o cumprimentou com um breve movimento de cabeça e se
pôs a caminhar por entre os corredores escuros do estabelecimento.
Tudo ali se encontrava bastante empoeirado e cheirava a bolor.
Havia centenas de estantes abarrotadas por livros que iam
entortando as prateleiras, sem dizer os que permaneciam
empilhados pelo chão. O sebo era, de fato, enorme e existia uma
infinidade de salas e salinhas mal-iluminadas e entupidas por gastos
alfarrábios.
A princípio, Mike entrara na livraria apenas para matar o
tempo e aguardar que a chuva passasse. Porém, logo ficou
fascinado por aquele ambiente um tanto misterioso e se pôs a
folhear os volumes que ia retirando das estantes, como se houvesse
sido picado por um inseto que lhe inoculara no sangue o vírus da
leitura. Na verdade, nunca fora um grande leitor. Lembrava-se de ter
lido na adolescência As Viagens de Gulliver, Robinson Crusoé, e um
ou outro conto de Edgar Allan Poe. Agora, porém, sentia como se os
livros tivessem algo para lhe dizer. Por mais de duas horas,
permaneceu dentro da livraria, remexendo naqueles tomos
ensebados, procurando por alguma coisa que ele não sabia bem o
que era. A chuva já havia cessado há muito e o rapaz continuava
entretido em sua busca. Lá pelas tantas, ele desceu umas
escadinhas e chegou a uma espécie de porão. Como não podia
deixar de ser, aquela parte do sebo também se encontrava
entulhada por livros em todos os espaços. A iluminação ali parecia
ainda mais precária do que na parte de cima e o ar abafado
sufocava. Mike contemplava admirado aquela infinidade de volumes
envelhecidos e ficara imaginando que o proprietário levara a vida
inteira para formar tal acervo. Ele retirara inúmeros livros das
prateleiras, mas não havia se decidido por nenhum. Quando já tinha
resolvido ir embora, seus olhos incidiram sobre a lombada de um
grosso volume em especial, onde se achava gravada a figura de um
demônio. Aquele elemento inusitado chamou-lhe a atenção e Mike
ficou muito curioso para saber a respeito do que a obra tratava.
Como se encontrava numa prateleira muito alta, ele dirigiu-se até o
final de um dos corredores, onde existia uma pequena escada, e a
apanhou para poder alcançar o tal livro. Infelizmente, ao retirá-lo da
estante, acabou derrubando muitos outros, que estavam empilhados
sobre ele. O ruído da queda foi grande e o rapaz ficou alguns
segundos imóvel, esperando que o dono do estabelecimento
aparecesse ali para lhe reprimir por ter sido tão desastrado. Como
não surgiu ninguém, ele recolheu os livros do chão e os colocou
cuidadosamente no mesmo lugar.
A obra em questão chamava-se Sobre as Artes de Satanás
e Outros Demônios. Tratava-se de um belo volume em formato
grande, robusto, encadernado em couro e com o nome gravado na
capa e na lombada com letras douradas. O exemplar era
antiquíssimo e não constava a data, mas deveria ser do século XIX
ou daí para trás. Mike soprou o pó ancestral que se acumulara
sobre ele e começou a folheá-lo carinhosamente. Havia inúmeras
ilustrações a bico de pena e as folhas escurecidas cheiravam a
mofo. Devia se achar ali há décadas e o rapaz sentia-se um
privilegiado por estar diante de uma obra que parecia tão rara.
Apaixonou-se imediatamente por ela. Quantas pessoas podiam se
gabar de ter lido aquele livro? O primeiro capítulo tinha um título
instigante: Como invocar Satanás e conseguir dele o que muito se
deseja. Ao ler aquilo, o jovem sentiu um fogo brando lhe cozinhando
as vísceras. Ele possuía algo que muito desejava, que imaginava se
encontrar além de suas possibilidades: Amanda.
Amara aquela moça desde a primeira vez que a vira na
escola, jogando vôlei na aula de educação física. A garota trazia os
cabelos compridos presos num rabo de cavalo e usava uma
camiseta branca que destacava os seus seios túmidos. Certamente,
não era das melhores jogadoras, mas era de longe a mais bonita.
Talvez andasse pelos quinze anos, pouco mais ou menos, e trazia
no rosto um sorriso belo e cativante. Seus olhos eram claros, às
vezes verdes, às vezes azuis, conforme luz e sombra incidissem em
sua face. Por todo aquele ano, Mike a seguiu de longe,
discretamente, observando-a no pátio, na cantina, na biblioteca do
colégio. Como era tímido, em nenhum momento cogitou lhe revelar
o seu amor, temendo que ela o desprezasse. No ano seguinte, teve
a suprema felicidade de descobrir que estudariam na mesma classe.
Verdade é que quase repetiu o ano, pois passava o tempo todo
olhando a menina e não prestava atenção no que os professores
explicavam. Infelizmente, aquele ano passou rápido demais e os
dois concluíram o colegial, de maneira que eles não mais se
encontraram.
Por isso, aquele livro acendera uma chama de esperança
dentro do cérebro do rapaz. Seria possível conseguir de Satanás
aquilo que muito se deseja? Ou tudo não passava de literatura,
invencionice do autor para iludir seus incautos leitores? Mike ficou
bastante interessado em adquirir a obra, que não parecia ser barata.
Em seu íntimo, desejava que tudo ali escrito fosse verdade, pois há
muito já tinha perdido a ilusão de conquistar sua amada por seus
próprios meios. Dominado por este pensamento, o jovem meteu o
livro debaixo do braço e subiu as escadas a fim de negociar com o
velho comerciante.
Chegando ao andar térreo, Mike dirigiu-se até a
escrivaninha, onde o proprietário permanecia encurvado sobre
tomos ensebados, lendo aquelas páginas amareladas com a ponta
dos dedos. Ao ver o cliente ali ao lado, ele interrompeu a leitura,
ergueu-se até ficar o mais ereto que pôde e indagou:
- Em que posso lhe ser útil?
- Gostaria de saber o preço deste livro.
O sujeito apanhou o volume nas mãos, colocou-o sobre a
escrivaninha e se pôs a folheá-lo lerdamente. Não se recordava de
possuir aquele livro em seu acervo. Por um momento, estremeceu.
Estaria caducando com a idade? Por tantos anos, orgulhara-se de
saber de cabeça o preço exato de cada obra que possuía em sua
livraria. Como poderia ter se esquecido justamente daquela? Talvez
tivesse entrado num lote maior, no fundo de alguma caixa com
muitos outros livros, e ele não acabara prestando a devida atenção.
O fato é que precisava dar um preço ao rapaz, mas não se achava
muito seguro para fazê-lo. O volume era grande, encadernado em
couro, muito antigo e com inúmeras ilustrações. Tudo isso fazia
aumentar o preço. Porém, o jovem teria dinheiro suficiente para
adquiri-lo? Tudo pesado, o velho alfarrabista coçou o queixo bem
escanhoado e disse:
- Quinhentos!
Os olhos de Mike arregalaram-se, perplexos. Queria muito
adquirir aquela obra, mas o valor estava um pouco salgado para ele.
Quem sabe o homem não melhorava o preço? Arriscou:
- Ofereço trezentos.
- Trezentos? Por um exemplar raro como este? Quer que eu
feche a casa? Veja que o estado de conservação está impecável, se
levarmos em consideração a idade. Só esta encadernação vale isso.
Note como o trabalho é rico. Observe os detalhes... Meu amigo,
gostaria muito de lhe fazer o obséquio e lhe vender o livro por
trezentos, mas os impostos vão me comendo pela perna. Além do
mais, há o aluguel... Não, não posso aceitar menos do que
quatrocentos e cinquenta.
Mike pensou por um instante. Sabia que se perdesse tal
oportunidade, talvez nunca mais em sua vida encontrasse outra vez
aquela obra. Quanto não valeriam os beijos de Amanda? Ele
apanhou a carteira do bolso e observou o seu interior. Havia
acabado de receber o seu salário e, ali dentro, achavam-se as notas
verdinhas, quentes, esperando para serem gastas todas de uma vez
só. O rapaz tomou as cédulas nas mãos e passou a contá-las,
colocando-as uma a uma sobre a escrivaninha, diante dos olhos
gulosos do comerciante, que pareciam salivar de excitação.
- Quatrocentos e dez... e vinte... e trinta! Eis aí tudo que eu
tenho. É pegar ou largar...
- Aceito, disse o vendedor babando.
Eles trocaram um aperto de mãos. O sujeito colocou o livro
dentro de uma sacola de plástico e Mike saiu da loja com o coração
batendo acelerado, pensando em sua amada.
Após regressar para casa, Mike tomou um banho frio, jantou
com seus pais e subiu para o velho sótão do sobrado, o qual ele
havia transformado em seu quartinho de bagunça. Mais do que o
próprio dormitório, era ali onde ele gostava de passar a maior parte
de seu tempo, ouvindo as músicas de suas bandas de rock
prediletas e desenhando, uma vez que tinha algum talento para
isso. Havia decorado as paredes de tijolos aparentes com pôsteres
de roqueiros ilustres e alguns desenhos do próprio pulso. Ao lado
deles, ia pendurando os seus discos de vinil. Gostava dos cds, mas
preferia os velhos bolachões, como costumava chamá-los
carinhosamente. Além destes, viam-se também nas paredes alguns
exemplares raros de gibis de heróis, colocados dentro de saquinhos
plásticos. Num dos cantos, achava-se uma estante, onde havia um
aparelho de som e muitos discos guardados em pé para não
estragarem. Ao lado, uma confortável poltrona reclinável. Era ali
onde Mike costumava ler suas histórias em quadrinhos ou relaxar
ouvindo heavy metal. Pouco adiante, localizava-se uma mesa com
cadeira e um pequeno bar, com algumas garrafas de bebidas já
abertas, muitas delas pela metade ou quase vazias. Em frente,
ficava uma janela que dava para a rua. O chão era de tábuas
rústicas, tendo um tapete felpudo por cima e as paredes um tanto
baixas, o que deixava o ambiente razoavelmente abafado.
Ele ligou o aparelho de som, sintonizando uma estação de
rock. Depois, apanhou o seu livro, colocou-o aberto sobre a mesa e
começou a lê-lo, dominado por uma curiosidade intensa. A leitura
absorveu-o por completo e, a cada página vencida, ele ia ficando
mais convencido da veracidade daquelas palavras. Por volta da
meia-noite, Mike desceu até a cozinha para buscar velas. De acordo
com o livro, o demônio deveria ser invocado com este tipo de
iluminação. O rapaz acendeu uma delas, deixou uns pingos de cera
cair sobre a mesa e a fixou neste local. Depois, repetiu a operação
diversas vezes, formando uma espécie de círculo com as velas.
Seguindo as instruções do texto, ele cortou a ponta de seu dedo
com uma faca e deixou o sangue gotejar sobre um pires, que foi
colocado, em seguida, no centro da circunferência. A luz mortiça e
trêmula das velas ia rabiscando sombras sinistras nas paredes e,
aos poucos, uma sensação de medo começou a tomar conta do
moço. E se o demônio aparecesse ali no sótão para levar-lhe a alma
ao inferno? Por um momento, desejou desistir de tudo, mas se
lembrou de Amanda e os seus beijos doces valeriam qualquer
sacrifício. Além de tudo, talvez Satanás já estivesse a caminho de
sua casa e uma desistência, naquela altura, poderia aborrecê-lo. Iria
até o fim. Encheu-se de coragem, apanhou o livro e foi lê-lo sentado
na poltrona.
Nas páginas seguintes, havia diversas fórmulas
encantatórias, espécies de mantras misteriosos, que Mike recitou
para invocar o demônio. Após ler todas em voz alta de maneira lenta
e pausada, pronunciando cada sílaba de forma clara e sonora, o
rapaz aguardou alguns instantes em silêncio. Ele havia desligado o
aparelho de som e não se ouvia ruído algum além das gotas de
chuva, que voltara a cair, colidindo contra o telhado. Para sua
frustração, não aconteceu nada. A janela não se abriu violentamente
a fim de dar acesso ao senhor das trevas. Tampouco o chão se
fendeu ou os tijolos da parede ruíram para a entrada triunfal do
diabo. Tudo permaneceu como estava. Ele aguardou por mais de
quinze minutos. Então, retornou à leitura, sentado na poltrona.
Talvez houvesse maiores explicações adiante.
A madrugada já ia bastante avançada, quando Mike ouviu
passos subindo a íngreme escadinha de madeira que levava ao
sótão. Ele assustou-se deveras e um calafrio gelado escorreu-lhe da
nuca ao cóccix. Das velas, restavam apenas pequenos tocos, mas
todas permaneciam acesas. A chuva continuava caindo sobre as
casas e as ruas encharcadas. O rapaz aguçou os ouvidos e levou
um susto tremendo, quando escutou três pancadinhas leves de
encontro à porta. Deu um salto na poltrona, como se tivesse levado
um choque. Ao abrir a porta, um homem que aparentava ter
quarenta anos entrou. Usava sobre a cabeça uma cartola muito
chique e trazia numa das mãos, cobertas por luvas de pelica, rica
bengala com castão de ouro. Vestia um terno preto aprumadíssimo,
como se tivesse sido confeccionado pelo mais destro dos alfaiates,
e cultivava sobre o queixo másculo um vistoso cavanhaque.
- Como tem passado, Mike?
O moço hesitou um pouco para responder, surpreso pelo
fato do sujeito saber o seu nome. Assim que conseguiu recuperar o
fôlego, disse:
- Bem, obrigado! Você é...
- Pode me chamar de Lucilus. Desculpe-me pela demora,
mas vim assim que pude. Você não faz ideia de quantos chamados
temos de atender nos dias de hoje...
Mike ainda permanecia tomado por um misto de susto,
medo e euforia. Embora o cavalheiro apresentasse uma figura muito
diferente do que imaginava, sem chifres, rabo ou tridente, ele não
tinha dúvidas de que tal homem era o próprio demônio.
Curiosamente, possuía o rosto do comerciante que lhe vendera
aquele livro macabro, embora fosse mais moço.
- Não quer se sentar? Exclamou ao puxar uma cadeira.
- Obrigado.
- Aceita algo para beber?
O demônio observou as garrafas no bar e disse:
- Uísque.
O jovem encheu dois copos. Também precisava beber
alguma coisa para acalmar os nervos.
- A que vamos brindar?
- Ao nosso compromisso! Que ele seja gratificante para
ambas as partes. Disse Lucilus, sorrindo.
- Ao nosso compromisso! Repetiu Mike.
Os copos estalaram e os dois viraram a bebida de uma só
vez. Em seguida, o demônio proferiu:
- Sabe que posso conseguir para você qualquer coisa que
desejar?
- Sei! É por isso que o invoquei.
- E o que tem em mente?
- Quero que Amanda seja minha.
- Então, trata-se de um problema do coração...
- Por quê? É difícil conseguir?
- São os acordos mais procurados e também os mais fáceis
de resolver.
Dizendo isso, Lucilus encheu mais um copo com uísque,
apanhou um canivete no bolso de seu colete e concluiu:
- Me dê a sua mão para selarmos o acordo. Mike esticou o
braço na direção de seu interlocutor. Com a lâmina, ele fez um talhe
na palma do rapaz e deixou o sangue pingar dentro do copo com a
bebida. Depois, cortou a ponta de seu próprio dedo. Quando seu
sangue pingou no interior do copo, foi como se tivessem lançado
dentro dele uma pedra de gelo seco. O uísque começou a borbulhar,
enquanto um rolo de fumaça grossa ia escapando por sobre a
borda.
- Agora beba! Ordenou Satanás.
Mike tomou coragem e virou o conteúdo do copo de uma só
vez. Mal o colocara sobre a mesa e começou a sentir queimar a sua
garganta. Seus olhos injetaram-se para fora das órbitas, pois tinha a
sensação de que alguém remexia brasas com uma colher de pau
em seu ventre. Um fogo terrível ardia-lhe nas entranhas e ele
pensou que havia bebido veneno. Completamente tonto, ergueu-se
da mesa como pôde e caminhou cambaleando até um dos cantos
do sótão, desabando sobre a poltrona. Suas vistas turvaram-se e o
rapaz perdeu os sentidos, permanecendo desacordado por um bom
tempo.
Quando acordou, já era de manhã e a chuva havia cessado
por completo. Ele erguera-se da poltrona num salto, ainda sem
compreender como fora cair no sono, e caminhara até a janela, que
abriu a fim de respirar um pouco de ar fresco. As velas que havia
acendido já se encontravam apagadas, restando apenas montinhos
de cera derretida sobre a mesa. Nem sombra do demônio. Aliás,
Mike notou que também os copos se achavam no lugar de sempre,
sem sinais de terem sido usados. Também se lembrava de ter
deixado a garrafa de uísque na mesa, mas agora ela estava no bar.
Teria o demônio tido o trabalho de guardá-la e lavar os copos?
Então, um pensamento aflorou-lhe no cérebro. Será que tudo aquilo
não passara de um sonho? Seria possível que adormecera sobre a
poltrona, lendo aquele livro, e sonhara que Satanás viera lhe visitar?
A bem dizer, nada provava que Lucilus estivera ali durante a noite e
a própria garrafa de uísque parecia exibir a mesma quantidade de
bebida da véspera, embora isto Mike não pudesse afirmar com
certeza. Uma dúvida, porém, atormentava-lhe o pensamento. O
pacto havia sido concretizado? Amanda iria se apaixonar por ele,
conforme esperava?
Os dias foram se passando, uma semana, um mês, um ano
e nada. Mike logo se convenceu de que não havia compromisso
algum entre ele e o diabo, uma vez que não recebera a sua parte no
negócio. Abandonara a leitura do livro tão logo se conscientizou de
que este pouco poderia ajudar, imaginando que tudo ali não
passava de um tremendo engodo, invencionice do autor. Na
verdade, decepcionara-se bastante com o fracasso do acordo e, a
partir de certo momento, procurou não mais pensar nisso.
Cinco anos se passaram. O rapaz já havia se esquecido de
tudo aquilo e seu próprio coração não sofria como antes por
Amanda. Ele nunca mais vira a garota, de maneira que a sua paixão
foi arrefecendo aos poucos, uma vez que o amor exige constância.
Porém, amor verdadeiro jamais se esgota completamente. Bastou
ver a menina, para ele sentir a velha chama ardendo outra vez
dentro do seu peito. O destino os unira por acaso. Mike fora
mandado embora da firma onde trabalhava e acabou arranjando um
novo emprego numa fábrica de estofamento para automóveis. Logo
no segundo dia, teve aquela surpresa extraordinária: Amanda
também trabalhava ali, no setor de produção. Uma semana depois,
o rapaz criou coragem e resolveu falar com sua amada. Era hora do
almoço e ela encontrava-se sozinha, sentada em uma mesa do
refeitório. Mike aproximou-se carregando a sua bandeja de aço inox
e pediu:
- Olá! Posso me sentar aqui?
A menina acedeu. A princípio, o moço mostrou-se um pouco
tímido e não conseguiu dizer mais nenhuma palavra. Faltava-lhe
não só coragem, mas também assunto. Contudo, não poderia
perder aquela oportunidade. Era agora ou nunca.
- Ei, o seu nome não é Amanda? Não se lembra de mim?
Estudamos juntos no colegial.
- Sim, agora me lembro de você...
Aos poucos a prosa foi ficando animada. Os dois
conversaram sobre velhas coisas do passado, falaram mal de
professores que não gostavam e se lembraram com carinho de
alguns colegas que eram amigos de ambos. Chegaram mesmo a
trocar telefone. Quando o rapaz se despediu da garota, com um
beijo no rosto, sentia-se nas nuvens.
Almoçaram juntos muitas outras vezes e a amizade entre os
dois foi se tornando cada vez mais forte. Amanda gostava da
maneira como Mike sorria, como ele a fitava com uns olhos
eternamente gulosos e como sempre a paparicava. Numa sexta-
feira, quando se encontraram ao final do expediente, o moço
convidou:
- Não gostaria de pegar uma sessão de cinema hoje à
noite?
Para sua surpresa, a garota aceitou. Era um filme de terror,
que veio bem a calhar. A sala escura também ajudou a criar um
clima de pavor no espírito da moça. No meio da apresentação,
durante uma cena mais aterrorizante, ela deu um salto de medo na
poltrona, aterrorizada com o que vira na tela, e abraçou-se ao rapaz.
Foi o suficiente para Mike tomá-la nos braços e beijá-la.
A partir de então, não se largaram mais. Com o tempo,
porém, uma pulga enorme veio fazer ninho atrás da orelha do moço.
Teria conquistado Amanda por causa da palavra empenhada ao
demônio ou por sua própria competência? Este pensamento
começou a deixá-lo profundamente angustiado. A primeira coisa que
fez foi procurar o velho livro para terminar a leitura. Descobriu
estarrecido que o preço pelo serviço prestado por Lucilus não era
apenas a sua alma, como imaginava, mas a sua própria vida. O
diabo se assenhoreava dela e dela poderia dispor como bem
entendesse e quando assim desejasse. Em outras palavras:
contratado o compromisso, o tempo de vida restante a Mike cabia
agora, exclusivamente, à vontade do demônio, que podia dispor de
sua morte como quisesse. Poderia conceder-lhe mais cinquenta
anos de vida, ou cinco minutos.
Isto deixou o rapaz completamente transtornado. Embora
procurasse se convencer de que não fizera acordo nenhum com
Satanás e que tudo não passara de um pesadelo terrível, a cada
novo dia que acordava, Mike mostrava-se mais desesperado. O
terror da morte iminente, que poderia ocorrer a qualquer momento,
deixara-o liquidado. Os seus nervos viviam à flor da pele e somente
este estado de aflição extrema pode explicar o que ocorreu no dia
de seu casamento.
A celebração do matrimônio e a festa foram marcadas para
chácara de um amigo, escolhido como padrinho do casal. Amanda
era a mais linda das noivas e estava felicíssima. A recepção foi
organizada num terreno amplo em frente ao grande sobrado, à beira
de uma auto-estrada municipal. As mesas colocadas no gramado
haviam sido ornadas com vasos de flores e diversos enfeites
decoravam o recinto. Próximo a um grande carvalho, armou-se uma
espécie de altar improvisado, onde o padre daria a bênção nupcial
aos nubentes. A partir daí, foram colocadas diversas cadeiras em
dois blocos divididos por um corredor, separados por pequenas
colunatas unidas por um cordão de seda. O céu estava muito azul e
um perfume de prímulas recendia em todo o ambiente.
Logo cedo, os convidados começaram a chegar. Mike
achava-se mais nervoso do que o costume. Na verdade, estava
apavorado. Tomara dois calmantes e não adiantara nada. A todo
instante, tinha a impressão de ver o demônio no meio de seus
amigos. Quando ele se dirigiu ao altar para o início da cerimônia,
nenhum dos presentes poderia adivinhar o que aconteceria em
seguida. Deus do céu! O padre tinha as feições de Lucilus! Ao ver
aquilo, os seus olhos esbugalharam-se, aterrorizados, e ele foi
dominado por um terror extremo. Amanda ainda tentou detê-lo, mas
foi em vão. Sabe-se lá que revoluções cerebrais explodiam dentro
de sua mente atormentada. Ele deu um grito ancestral de bicho
acuado diante da morte e, numa tentativa de fugir ao seu destino,
saiu correndo em direção à auto-estrada. Naquele exato momento,
um caminhão passava por ali a toda velocidade. Uma buzina
fúnebre soou colérica feito as trombetas do inferno. Depois, ouviu-se
uma pancada seca e mais nada. Os convidados correram para ver.
Era tarde. Só o padre permaneceu onde estava, indiferente, com um
olhar enigmático na face.
Fantasmas

F rank Abbott acendeu


a luz interna da
boleia do caminhão
e, inclinando o corpo um pouco para a direita, desviando
perigosamente os olhos da estrada, procurou com os dedos um
pacote de chicletes que ele havia deixado no porta-luvas. Mascar o
manteria acordado. Estava com um sono tremendo, mas não queria
parar num posto de gasolina para tirar um cochilo e, muito menos,
mostrava-se disposto a passar a noite em algum hotelzinho barato à
beira da rodovia. O seu desejo era entregar aquela carga o mais
rapidamente possível, quem sabe logo ao amanhecer. Já havia
perdido muito tempo com um mecânico incompetente que, a muito
custo, conseguira lhe consertar os freios, os quais estavam falhando
um pouco. Por isso, pisava fundo no acelerador, de maneira até
certo ponto imprudente, sobretudo, porque a pista se achava
escorregadia em virtude da chuva forte que caía.
Quando apagou a luz da boleia, um relâmpago violentíssimo
explodiu logo ali à frente, nos matos escuros que margeavam a
estrada. Frank Abbott assustou-se deveras e bruscamente levou os
pés aos freios, que falharam. O caminhão rabeou no asfalto
molhado e ele perdeu a direção. De súbito, viu algo que aumentou
ainda mais o seu desespero, fazendo seus olhos arregalarem-se de
terror. A pequena distância dali, havia uma jovem pedindo carona no
acostamento, parada exatamente no caminho por onde escorregava
aquele monstro de oito toneladas. Numa louca tentativa para fazer o
caminhão tombar do lado oposto, a fim de não matar esmagada a
mulher, Frank Abbott girou totalmente o volante para a direita, mas
não conseguiu o efeito desejado. O veículo continuou deslizando
sem controle até que ele ouviu um barulho medonho, como se uma
bomba tivesse explodido debaixo do seu banco. Sentiu uma dor
cabal moendo seus ossos por poucos segundos e, quando abriu os
olhos, viu que o caminhão havia parado rente à garota e, por
milagre, não a havia atropelado. O susto que ela levou foi tão
grande, que a moça não conseguira dar um passo para tentar fugir
ao acidente.
O motorista abriu a porta e desceu, dando a volta pela frente
do caminhão:
- Você está bem?
A garota não respondeu, pois ainda parecia se achar em
estado de choque. Frank Abbott tocou-lhe um dos ombros e só
então ela deu sinal de vida.
- Desculpe, o que disse?
- Você se machucou?
- Não, estou bem. Só um pouco assustada com o que
aconteceu...
- Deus do céu! Você poderia ter morrido...
- Mas você salvou a minha vida. Veja... meu coração está
batendo acelerado até agora...
Dizendo isso, a jovem apanhou a mão de Frank Abbott e a
colocou sobre seu próprio peito. Aquilo foi estranho, pois ele não
sentiu nada. Era como se estivesse tocando um cadáver.
- Está precisando de uma carona?
- Sim! Vou para qualquer lugar, contanto que seja longe
daqui.
- Então suba! Vamos sair do temporal. Este seu guarda-
chuva não está adiantando grande coisa...
Ele apanhou a mala da moça e a ajudou a subir o degrau
junto à porta. Depois, contornou de volta a frente do caminhão,
cruzando diante dos fachos luminosos dos faróis, que estavam
apontando para o matagal ao lado do acostamento.
Quando ele entrou na cabine, a luz estava acesa e ele notou
que a garota se achava branca feito um fantasma. O que uma jovem
bonita como aquela estaria fazendo sozinha naquele fim de mundo,
a milhas de distância da civilização?
- Estou fugindo de casa, disse com um sorriso cativante.
- Você lê pensamento?
A moça riu da pilhéria.
- Não... mas a pergunta estava escrita em seu rosto...
- Como é o seu nome?
- Susy!
Frank Abbott arregalou um pouco os olhos por causa da
coincidência.
- Não me diga? Eu tinha uma filha que também se chamava
Susy. Deveria estar agora mais ou menos com a sua idade...
- O que aconteceu com ela?
- Morreu quando era criança, num acidente terrível. Ainda
hoje, ao me lembrar da tragédia, sinto meu coração esmigalhado
como se estivesse num moedor de carne...
A garota lhe contemplou a face comovida, por onde
escorreu uma lágrima solitária.
- Peço desculpas, se lhe fiz recordar uma lembrança
dolorosa.
E procurando mudar de assunto:
- Gostei do câmbio do seu caminhão, imitando uma bola de
cristal com um caranguejo dentro. Ele é de verdade?
O motorista olhou sem interesse para o câmbio e esfregou
uma das mãos sobre os olhos cansados.
- Não sei, quando comprei o caminhão já estava aí. Você
não precisa se desculpar sobre coisa alguma. Na verdade, hoje faz
exatamente vinte anos que ela faleceu. Por isso, fiquei
emocionado...
- Não diga!
- Melhor dizendo, hoje faz vinte anos que eu a matei...
A jovem cravou em Frank Abbott uns olhos perplexos. Ele
seria um maníaco? Já estava começando a se arrepender de ter
conseguido aquela carona, quando o homem proferiu:
- Mas foi acidente, juro por tudo que me é mais sagrado,
pela alminha inocente de minha filha, que hoje é um dos anjos no
céu.
- Eu acredito...
- Ela estava brincando embaixo da carroceria do meu
caminhão, junto às rodas de trás. Brincava com uma boneca de
porcelana. Deus do céu, eu me lembro claramente daquela manhã
maldita, como se fosse ontem. Dei a ré e ouvi um grito pavoroso,
como se tivesse sido emitido não por uma garganta humana, mas
por alguma criatura hedionda das profundezas infernais. Olhei pelo
espelho retrovisor e vi sua boneca de porcelana estraçalhada ao
lado de um dos pneus. Meu coração subiu à boca e passei a sentir
uma fraqueza tão grande, que não sei onde fui arranjar forças para
descer do caminhão. Arrastei-me como pude, apoiando-me na
lateral do veículo, temendo pelo pior. Então eu vi... eu vi... aquele
horror supremo... e senti uma dor tão excruciante que pai algum
pode suportar. Os olhos de minha filha ainda estavam abertos,
encarando-me do outro lado da vida. Tive que arrancá-la do chão,
pois partes de seu corpo haviam colado no asfalto. Nunca me
perdoei por causa disso. É uma ferida que trago escancarada até
hoje.
Susy o encarava com olhos comovidos. Após permanecer
alguns instantes calada, onde só se podiam ouvir o ronco possante
do caminhão e a chuva martelando o para-brisa e o capô, ela
sentenciou:
- Não sei o que dizer...
- Não diga nada. Por gentileza, abra o porta-luvas e apanhe
para mim uma caixa azul.
Ela fez conforme lhe fora pedido. Frank Abbott abriu a caixa
e apanhou uma das fitas cassetes que havia ali dentro. Os grandes
sucessos do Abba. Em seguida, colocou-a no toca-fitas e a música
inundou a cabine.
- Gosto deles, as canções são alegres. Não quero que você
fique triste com o que lhe contei. Só lhe disse tudo isso, porque
achei você muito parecida com a minha filha. Mas não vamos falar
mais nela. Diga-me, por que está fugindo?
A moça sorriu de maneira cativante e explicou:
- Estou fugindo de casa, pois não suporto mais tanto
sofrimento. Quero deixar tudo para trás de uma vez por todas,
desatar os nós que me atam a este inferno que se tornou a minha
vida.
- Não quer me contar para desabafar?
- É também uma história triste...
- Tenho um lenço no bolso...
A garota riu do gracejo. Ela apanhou um punhado de seus
cabelos compridos, enrolou-os displicentemente numa trança e os
atirou por cima de um dos ombros. Em seguida, deu início à sua
narrativa.
- Conheci Tom num baile de formatura no clube da cidade.
Ele era o rapaz mais lindo que eu já tinha visto e ficou louco por
mim. Dançamos a noite inteira e, quando nos despedimos de
madrugada, Tom me disse que estava apaixonado e não podia mais
ficar um dia longe de mim. Foi uma paixão tão fulminante e violenta,
que eu imaginava existir apenas nas fitas de cinema ou em
romances de capa e espada. Tudo parecia caminhar às mil
maravilhas, mas havia um problema. Ele era noivo de uma garota
chamada Patsy, com quem já estava de casamento marcado.
- Um problema considerável, disse o motorista.
- Pois é! Mas, até então, eu não sabia. Acho que a intenção
dele era contar tudo para a noiva e desmanchar o compromisso.
Porém, queria fazer isso com jeito, pois não desejava magoar a
garota, com quem ele crescera junto e era amigo desde criança.
Precisava de tempo para fazer tudo como imaginava, mas tempo
era o que nós não tínhamos e tudo se precipitou vertiginosamente...
- Como assim?
- A carestia havia atingido quase todos os lares da região e
muitas famílias estavam passando necessidades. Meu pai perdera o
emprego e não tinha mais como alimentar a gente. Por isso, ele
decidiu que iríamos para o sul, onde ouvira dizer que estavam
abrindo frentes de trabalho e precisavam de braços para a lavoura.
Quando contei a Tom que não nos veríamos mais, ele ficou
enlouquecido e entrou em desespero, sem saber como proceder.
Durante alguns dias, permaneceu moendo idéias no cérebro, até
que decidiu. Ele veio à nossa casa e me implorou que ficasse, pois
desejava se casar comigo. Na mesma noite, pediu minha mão a
meu pai.
- E ele concedeu assim mesmo?
- Sim, pois ninguém sabia da existência da outra. Em última
instância, era uma boca a menos para alimentar. Só tomamos
conhecimento de que Tom estivera noivo, quando uma jovem veio
bater em nossa porta, procurando por mim. Após se apresentar,
começou a me afrontar, alegando que eu havia desgraçado a sua
vida e tal, essas coisas que mulheres despeitadas costumam dizer,
quando perdem seus homens. Só então fiquei sabendo do romance
deles. No dia seguinte, encontrei-me com Tom e ele me garantiu
que já a havia deixado e poderíamos casar tranquilamente...
- E casaram?
- Casamos dali a um mês, pouco antes de minha família
partir para o sul. Agora, eu já não tinha mais ninguém no mundo, a
não ser meu marido, que eu amava de paixão. Após o casamento,
fomos morar numa casinhola que ele dividia com a mãe, uma
velhota chamada Dorothy. Foi quando começou o meu calvário. A
mulher nutria certa simpatia pela antiga noiva de Tom e não havia se
conformado com aquela história, de maneira que me odiava e mal
me dirigia a palavra. Vivemos desta maneira angustiante por um
tempo, até que a tragédia aconteceu...
- A velha morreu?
- Antes fosse, aquela bruxa! Patsy não se conformava de ter
sido preterida por outra mulher e foi se queixar aos homens de sua
família, pintando o noivo como um demônio. Ela possuía dois irmãos
meio broncos, que viviam se metendo em encrenca e eram vistos
por toda gente como os maiores valentões do meio-oeste. Ao
tomarem conhecimento da história e que a irmã fora abandonada
pelo noivo praticamente às portas da igreja, eles encheram-se de
cólera e juraram se vingar do miserável para desagravar o mal
cometido. Uma noite, quando Tom regressava para casa após mais
um dia de trabalho, os animais emboscaram-lhe numa curva escura
da estrada e o espancaram sem piedade. Depois amarraram-no a
um dos cavalos e o arrastaram até o portão de nossa residência,
onde foi atirado já sem vida.
- Isto que você me conta é terrível...
- Pois é! Você pode imaginar o desespero que tomou conta
de mim no momento em que saí um pouco para arejar e descobri o
cadáver de meu marido estirado na calçada. Ele se achava banhado
em sangue, tivera os olhos arrancados com uma faca e as orelhas
cortadas. A minha dor foi tremenda e eu pensava que nunca mais
iria me recuperar daquele golpe. Para piorar a situação, tão logo a
minha sogra ficou sabendo que seu filho tinha sido morto por minha
causa, a megera passou a me odiar ainda mais. Nós duas ficamos
morando sozinhas naquela casa e nossa convivência transformou-
se num inferno. Discutíamos todos os dias e minha vida havia se
tornado insuportável. Uma noite, brigamos feio. Ela me agrediu e
avançou para cima de mim com uma faca em punho. Para me
defender, bati na cabeça da infeliz com uma panela de ferro. Ela
caiu estrebuchando, mas não morreu. Enfiei as roupas que pude
numa mala, decidida a ir embora dali de uma vez por todas. Quando
eu estava saindo da casa, a bruxa, que tem parte com o demônio,
jogou uma praga sobre mim, dizendo que eu não chegaria viva ao
meu destino...
- E ela quase ia acertando, se o caminhão não tivesse
parado milagrosamente a um braço de distância de você...
- Verdade! Mas não vamos mais falar de coisas tristes. Diga-
me, Frank, você é casado?
Tão logo ouviu aquelas palavras, Frank Abbott sentiu sua
espinha gelar, perplexo. Não se lembrava de ter lhe dito o seu
nome. Não lhe dissera, com toda certeza. Ele acendeu um cigarro
que se achava num maço em seu bolso da camisa e ofereceu um
deles à garota, que recusou. Em seguida, afirmou ser viúvo.
- Após a morte de minha mulher, criei a minha filha sozinha.
Nossa, como você é parecida com ela... parecida demais!
A jovem sorriu, sem dizer uma palavra. Durante alguns
segundos, nenhum deles pronunciou nada, até que Frank exclamou:
- Estou com uma fome danada! Não gostaria de comer
alguma coisa?
- Sim! Não como nada há uns três anos...
O motorista riu da piada, a garota tinha bom humor.
- Então, quando passarmos por um posto, vamos parar para
a gente fazer um lanche.
O caminhão rodou por mais uns trinta minutos debaixo da
chuva, que agora já estava diminuindo de intensidade. Desceu uma
longa ladeira e atravessou uma velha ponte. Susy observava os
matos molhados ao lado da pista e, a certa altura, pediu ao
motorista:
- Você poderia parar ali adiante? É a casa onde eu morava.
Preciso apanhar algo que esqueci, se não se importa...
Frank achou estranho aquele pedido, mas foi diminuindo a
velocidade do caminhão, até que o estacionou no acostamento.
Pouco à frente, via-se um velho sobrado em meio às trevas da
madrugada. A impressão que se tinha era de que tudo ali se
encontrava abandonado e parecia não haver uma alma viva a
milhas de distância. A garota apanhou seu guarda-chuva, abriu a
porta e desceu na escuridão, dizendo que voltava em um momento.
Frank Abbott ficou observando a jovem caminhando em direção ao
sobrado, até sumir lá dentro. Como ela é bonita! Como suas carnes
deveriam ser quentes e macias! Agora, ele já não tinha mais pressa,
não estava mais se importando em chegar cedo ao seu destino,
para entregar a carga combinada. Talvez, valesse a pena parar num
hotel à beira da estrada com o pretexto de descansar. Certamente,
ficariam no mesmo quarto e ele lhe daria umas boas doses de
uísque, que levava sempre consigo em suas viagens. Imaginava o
clima esquentando, a moça rindo de qualquer coisa que ele falasse;
depois, se beijariam naturalmente e iriam brincar o resto da noite
debaixo dos lençóis.
Não entendia como uma garota daquelas, sozinha na
estrada, não havia conseguido apanhar uma carona antes. Com
todas suas curvas lânguidas e seios protuberantes e coxas
caprichadas, era natural que conseguisse o seu intento tão logo
passasse por ela o primeiro motorista. Frank também não
compreendia como ela acabara regressando para sua própria casa.
Afinal, não estava fugindo dali, indo para outra direção? Era natural
que estivesse bem longe daquele sobrado, que agora lhe parecia
cada vez mais macabro. Aliás, desde que a moça entrara, nenhuma
luz se acendera e tudo permanecia na mais completa escuridão. Ele
olhou o relógio e começou a ficar impaciente, pois Susy já estava
demorando demais. Subitamente, teve a impressão de ver alguém o
encarando através da janela lateral e levou um susto tremendo.
Tudo se passou de maneira muito rápida, mas Frank podia jurar que
vira uma pessoa lá fora. Aflito, quis tirar aquilo a limpo e desceu
para averiguar. Ele deu a volta por todo o caminhão, mas não
descobriu nada de estranho. Dos dois lados da estrada, as copas
das árvores farfalhavam nervosas, chacoalhadas pelo vento e pela
chuva. Aproveitou para urinar atrás de uma moita e, quando
regressou ao veículo, pensou ter visto Susy sentada já na boleia,
mas tudo não passara de um pressentimento ou ilusão de ótica.
Nem sinal da garota, que continuava dentro do velho sobrado.
A certa altura, quando ele já se achava bastante impaciente
por toda aquela demora, seus olhos calharam de cair sobre a mala
que a jovem tinha trazido consigo e, de repente, uma súbita
curiosidade começou a tomar conta de seu espírito. O que ela trazia
ali dentro? Era uma mala de tamanho considerável e, com toda
certeza, havia muitas roupas, inclusive, peças íntimas. Frank Abbott
nutria verdadeira fixação por elas e começou a sentir uma vontade
incontrolável de contemplá-las, cheirá-las, tocá-las com seus dedos
de fauno lúbrico. Ele apanhou a mala e a colocou em cima do banco
do passageiro. Salivando excitado, segurou o zíper e o correu de
ponta a ponta. Quando a abriu, teve uma surpresa formidável. Seus
olhos não podiam acreditar no que viam e, por alguns momentos,
permaneceu imóvel, imaginando o que aquilo podia significar.
Dentro da mala, encontrava-se apenas terra e ossos, com alguma
carne ainda incrustada neles. Na verdade, pareciam ossos
humanos. O que estariam fazendo ali dentro? O seu primeiro
pensamento foi imaginar que Susy matara sua sogra e a
descarnara, enfiando a velha aos pedaços no interior da mala. Logo
após, porém, percebeu que tal ideia não tinha o menor cabimento e
tudo não passava de lucubrações desvairadas de seu cérebro.
Frank Abbott fechou rapidamente a mala e a colocou de volta no
seu lugar. O fato é que aquilo era muito estranho, como estava
sendo estranha também toda a demora da garota. De repente, um
pensamento acudiu-lhe à mente. Será que ela caíra e se machucara
naquela escuridão? Isto não era impossível e talvez Susy estivesse
precisando de ajuda. Dominado por esta ideia, ele abriu o porta-
luvas e apanhou uma pequenina lanterna. Em seguida, bateu a
porta do caminhão e correu na direção do sobrado.
A cada passo que dava, o seu medo crescia. Ele subiu os
três degraus da velha varanda de madeira, onde se via uma cadeira
de balaço oscilando devagar para frente e para trás, certamente em
virtude da ação do vento, e empurrou a porta, que se achava
apenas encostada. As grossas dobradiças enferrujadas gemeram
de maneira tétrica e ele teve um sobressalto. Além do mais, sabia
que estava invadindo a residência de alguém e isso, de certa forma,
apavorava-o. Durante alguns segundos, Frank Abbott permaneceu
na soleira, examinando a sala sombria com o facho pálido de luz
que a sua lanterna emitia. Muitos móveis encontravam-se cobertos
com panos brancos e havia grossas teias de aranhas por toda parte,
indicando que a casa estava abandonada há muito tempo. As
tábuas do assoalho estalavam a cada passo dado e a porta bateu
furiosa atrás dele, fazendo com que seu coração disparasse em
virtude do susto. Ele chamou aos sussurros pela garota e
permaneceu alguns instantes em silêncio, aguardando qualquer
resposta, mas não obteve nenhuma. Apenas as paredes pareciam
espiá-lo com certa curiosidade. De repente, um relógio carrilhão
começou a bater as horas de forma macabra. Frank Abbott
assustou-se deveras e quase teve uma síncope. Contou doze
badaladas, meia-noite, horário predileto dos fantasmas e outras
assombrações, mas ele sabia que o carrilhão não estava certo. Tão
logo se recuperou do susto, caminhou até uma escada e,
lentamente, começou a subir os degraus. A cada passo, sentia suas
pernas tremerem ainda mais e, tamanho era o estado de terror que
começara a tomar conta de sua alma que, se Susy lhe tocasse os
ombros pelas costas, ele cairia fulminado e morto no mesmo
instante. Chegando ao andar de cima, pôs-se a chamar baixinho
novamente pela jovem, mas tudo em vão. Não havia o menor sinal
dela em parte alguma e era como se a garota tivesse se
desintegrado no ar.
Quando ele entrou no quarto principal, que dava para a
estrada, levou um susto tremendo, pois as cortinas passaram a
inflar inquietas, dando a impressão de serem fantasmas que se
agitavam nervosamente, procurando escapar das hastes que os
prendiam à parede. Frank Abbott permaneceu uns instantes sem se
mover, sentindo seu sangue esguichar gelado dentro das veias.
Logo, certificou-se de que não havia nada a temer e dirigiu-se com
passos trôpegos até a janela. Todos os vidros achavam-se
quebrados e era o vento o responsável por agitar as cortinas. Isto o
tranquilizou de certa forma, mas por pouco tempo. Ao olhar para a
estrada, levou outro susto, que o fez entrar em pânico. O seu
caminhão não se achava mais no local onde ele o deixara
estacionado. Deus do céu, teria sido roubado? Isto não parecia
provável, pois Frank certamente ouviria o barulho do motor. Ele
passou a mão sobre os cabelos molhados e começou a entrar em
desespero. Não estava gostando nada daquilo e desejava nunca ter
parado ali, desejava nunca ter dado carona para aquela jovem tão
misteriosa. No instante em que ele se virou, seus olhos arregalaram-
se esbugalhados e ele ficou paralisado de pavor.
Ao lado da porta do quarto escuro, uma velha pálida e de
aparência tétrica o observava em silêncio, envolta em panos
brancos, que pareciam uma espécie de túnica ou manto. Ao vê-la
deslizando em sua direção, Frank Abbott petrificou-se e todos os
cabelos do seu corpo eriçaram-se. A mulher aproximou-se e disse:
- Vamos, Frank?
Ele estava aterrorizado demais para responder, tanto que se
manteve calado por alguns segundos. Quando recuperou o fôlego e
passou a respirar novamente, proferiu com voz embaçada:
- Mas quem é a senhora?
A velha permaneceu muda, contemplando-o com aqueles
olhos que encerravam cemitérios. Ao cabo de algum instante, disse:
- Estou aqui para acompanhá-lo. Vamos?
- Não vou com você a lugar algum. Onde está Susy? Susy!
Susy!
Frank Abbott pôs-se a berrar, chamando pela garota.
Depois, dirigindo-se à velha, bradou:
- Você não existe, é imaginação da minha mente!
Afirmando isso, ele atravessou pelo corpo dela como se
fosse fumaça e foi procurar Susy nos outros dormitórios. Não a
encontrando em parte alguma, regressou para o quarto principal,
onde a mulher permanecia ao lado da janela e lhe indagou
novamente, de maneira incisiva:
- Onde está Susy? Ela entrou nesta casa e tenho certeza de
que daqui não saiu!
- Ela nunca entrou aqui. Venha até a janela e veja você
mesmo.
Frank aproximou-se outra vez da janela e, através das
vidraças quebradas, observou aquela cena terrível. Não entendia
como não vira nada da primeira vez que ali estivera, ainda há
pouco. Lá embaixo, seu caminhão ardia em chamas, apesar da
chuva. Havia marcas de pneus na pista e pedaços de lataria
retorcida por toda parte, pois o caminhão tombara e explodira, após
colidir com várias árvores. Do outro lado da estrada, uma jovem
imóvel contemplava o acidente, ao lado de uma mala. Tal visão
infundiu em Frank Abbott tamanho horror, que ele conseguiu apenas
emitir um som cavo e ininteligível pela garganta. Em seguida,
desceu as escadas saltando os degraus de três em três e correu
debaixo da chuva até o local do acidente. A velha já estava lá
embaixo e disse:
- Vamos, Frank, não tema!
- Saia da minha frente!
E dirigindo-se para a garota:
- Susy, Susy! Olhe para mim! O que aconteceu? Você
parece não estar bem...
A moça, porém, ignorou-o completamente. Frank Abbott
tentou agarrar-lhe um dos braços, mas seus dedos atravessavam-
lhe as carnes. A velha aproximou-se dos dois e explicou:
- Ela não pode falar com você. Não pertence mais ao seu
mundo.
- Mas eu estive conversando com ela ainda há pouco...
- Não esteve! Vocês nunca trocaram uma palavra e jamais
se conheceram. Tudo o que você pensa ter acontecido, ocorreu
apenas na sua mente em transição. Isto é normal...
- Ela é um fantasma? Indagou ainda sem compreender.
- Não. Você é!
Aquelas palavras explodiram dentro de Frank Abbott feito
uma bomba. Desesperado, dominado por uma aflição extrema, ele
abriu a porta do caminhão e contemplou aquela cena funérea. Viu o
seu corpo coberto por sangue na boleia, o ventre esmagado pelo
volante e comprimido pelos ferros tortos do painel. Só então
compreendeu tudo o que havia acontecido. Sua memória dos
últimos instantes parecia agora mais clara e ele se recordava de ter
feito o pesado veículo tombar para salvar a vida da moça. Como se
lhe adivinhasse o pensamento, a velha proferiu:
- Você escolheu salvá-la. Foi um ato de heroísmo. Agora
vamos, pois estão nos aguardando...
Frank Abbott dirigiu-se até onde a mulher estava e lhe fez
um gesto com a cabeça, como quem consente. Os dois começaram
a caminhar lado a lado pela estrada, debaixo da chuva fina, até que
sumiram nos longes cobertos de trevas.
Velha na Chuva

P or duas vezes nos


últimos
minutos,
trinta
Frank
Adams acendeu a luz interna de seu veículo para conferir as horas
no relógio de pulso. Não gostava de dirigir na chuva e, durante
algum tempo, ficou na dúvida se deveria parar o carro no
acostamento a fim de aguardar que ela diminuísse de intensidade. A
visão da estrada era péssima. Uma densa névoa cinzenta havia
baixado sobre a pista, complicando terrivelmente a visibilidade.
Ligado em sua velocidade máxima, o limpador de para-brisa ia
espalhando água para todo lado e a impressão que se tinha era de
que o automóvel mergulhava em ondas furiosas.
A estrada, monótona e escura, parecia não ter fim. Frank
Adams ligou o rádio e procurou sintonizar alguma estação de
música country, mas não encontrou nenhuma. De vez em quando,
um relâmpago impetuoso espalhava-se em ramificações ígneas
pelos céus, como se quisesse incendiá-lo. Teve vontade de acender
um cigarro, mas não o fez. Como as janelas começaram a embaçar,
o velho Frank abriu o porta-luvas e passou a procurar com os dedos
um pedaço de flanela que ele costumava guardar ali. Deixou cair a
caixa com os óculos escuros no assoalho. Na ânsia de apanhá-la,
descuidou um pouco da direção, abaixando-se o quanto pôde para
ver se a encontrava. Neste exato momento, ouviu uma pancada
violenta sobre o capô, seguida por um ruído tenebroso por cima do
veículo, como se um corpo pesado tivesse rolado ao longo do teto.
Desesperado, Frank Adams parou o carro no acostamento e
aguardou alguns instantes até conseguir recobrar o fôlego. O seu
coração disparara no peito e ele sentia suas pernas trêmulas. Enfim,
quando já tinha se recuperado um pouco, abriu a porta do
automóvel e desceu para ver o que atropelara. Embora estivesse
levemente mais fraca, a chuva deixou-o encharcado por completo.
Com passos lentos, os sapatos afundando nas poças d´água, Frank
Adams caminhou pela estrada por alguns minutos, trazendo em um
das mãos uma pequena lanterna, que apanhara no porta-luvas.
Para sua surpresa, não encontrou nada.
Deu mais alguns passos na direção do acostamento e
vasculhou o mato com os olhos atentos, sem descobrir coisa
alguma. O que poderia ter acontecido? Aquilo era realmente muito
estranho e Frank Adams começou a sentir certo frio na espinha.
Para tirar qualquer dúvida, dirigiu-se até a parte da frente do
automóvel a fim de ver se havia ali algum arranhão. Ficou um pouco
aliviado ao constatar que a grade do radiador estava em ordem e
que não existia nada anormal. Nenhum amassado no capô e
tampouco em qualquer outra parte da lataria.
Resolveu entrar outra vez no seu carro e partir. Talvez
tivesse colidido com um coiote, que fugira para o meio do mato
cerrado, enquanto ele permanecia dentro do veículo, recuperando-
se do sobressalto. Frank Adams havia acabado de prender o cinto
de segurança e refletia distraidamente sobre tal hipótese, quando
um rosto de mulher, um rosto tétrico e disforme, colou-se junto à
janela do motorista. Ao contemplar aquela visão sinistra lá fora, em
meio à chuva e às trevas da noite, o velho Frank tomou um susto
tremendo, chegando mesmo a perder a respiração por alguns
segundos. Que diabos desejava aquela figura apavorante, com
longos cabelos grisalhos e olhar diabólico feito uma criatura saída
das profundezas infernais? Teve vontade de ligar o carro e partir
imediatamente, deixando para trás aquela anciã tenebrosa, que
parecia querer arrastá-lo para alguma cripta gelada e sombria com
suas garras descarnadas em forma de esqueleto. Contudo, num
segundo momento, julgou que talvez estivesse imaginando coisas e
aquela mulher poderia estar precisando de sua ajuda. Afinal, não
era de todo improvável que fosse ela a pessoa atropelada minutos
atrás. Fiando-se neste pensamento, Frank Adams encheu-se de
coragem e abaixou o vidro. Sentiu a chuva gelada molhando-lhe o
braço esquerdo e tal sensação incomodou-o mais agora do que
quando ele havia saído do carro há pouco. Tão logo a janela
desceu, a velha agarrou-lhe violentamente o colarinho com seus
dedos ossudos e bradou colérica:
- Você atropelou o meu marido! Não adianta fugir! Vai pagar
pelo seu crime, assassino!
Frank Adams libertou-se das mãos da mulher como pôde.
Ao olhar para trás, viu com os olhos aterrorizados, quase lhe
escapulindo pelas órbitas, que havia um corpo estendido no meio da
estrada. Um corpo pesado e bojudo feito uma pipa. Como podia ser
aquilo? Estaria vendo direito? Ao voltar-se para frente, seus olhos
foram feridos pelo farol alto de um caminhão, que passou na direção
contrária velozmente, espalhando água para toda parte, inclusive,
dentro do automóvel. Desesperado, Frank Adams desceu outra vez
de seu veículo para tentar socorrer o sujeito. Porém, quando chegou
ao local, viu que ali não havia mais ninguém. Procurou pela velha e
certificou-se de que ela também não se achava mais em parte
alguma. Não se via nada na estrada, além de duas luzes vermelhas
do caminhão, sumindo no meio da neblina. Com mil diabos! Estaria
tendo alucinações? E, desconcertado, entrou novamente no carro.
Após dar uma última olhada para trás a fim de ver se
descobria em alguma parte o sujeito que vira estendido no meio da
pista ainda há pouco ou mesmo a velha, Frank Adams ligou o carro
e partiu. Sentia a cabeça pesada e os seus ouvidos zumbiam. Como
a chuva e a neblina persistiam, ele dirigiu por um bom tempo com o
farol baixo. Às vezes, os vidros embaçavam e o velho Frank era
obrigado a abrir a janela para arejar. A certa altura, apanhou uma
caixa de fósforos e acendeu um cigarro, cuja ponta se tornou laranja
incandescente, quando ele deu a primeira tragada. Em seguida,
soltou uma baforada e a fumaça espalhou-se pelo interior do
automóvel. Neste exato instante, Frank Adams observou de relance
o espelhinho retrovisor e viu a velha sentada no banco traseiro,
fitando-o com seus olhos macabros. O susto levado foi tamanho
que, instintivamente, meteu o pé no freio, de maneira que o carro
derrapou na pista escorregadia, deslizando quase até o
acostamento do outro lado. Com muita habilidade, conseguiu
controlar o veículo e trazê-lo de volta para a sua mão. Porém, ao
voltar-se para trás, constatou que não havia mais ninguém no
automóvel, além dele próprio. Ando muito nervoso - pensou - e o
que vi pode ter sido apenas o reflexo da fumaça no espelho.
Já havia rodado mais de cem milhas, de maneira que estava
precisando reabastecer o carro. Pouco adiante, passou por um
posto de gasolina, mas as luzes estavam todas apagadas. Achou
aquilo estranho e, como não viu pessoa alguma, resolveu seguir
adiante. Aliás, durante todo o tempo em que esteve guiando, desde
que parara na estrada, Frank Adams não se lembrava de ter visto
nenhum carro passando por ele, além daquele caminhão. Ia
mergulhado neste pensamento, quando ouviu o seu celular tocando.
O simples toque foi o bastante para assustá-lo, pois trazia o espírito
apavorado por tudo o que lhe vinha acontecendo. Por um momento,
ficou na dúvida se deveria atender ao telefone ou não. Decidiu
atender.
- Alô?
Não obteve resposta. Quando já estava pronto para desligá-
lo, ouviu aquela voz tétrica e pausada:
- Você atropelou o meu marido! Não adianta fugir! Vai pagar
pelo seu crime, assassino!
Um calafrio percorreu-lhe toda a coluna cervical. Como
aquela velhota funérea tinha o seu número? Tentou se acalmar um
pouco. Depois, indagou:
- Quem é você? O que quer de mim?
Porém, a mulher só repetia as mesmas palavras, como se
aquilo fosse uma gravação. Alucinado, ele abriu a janela e atirou
furiosamente o seu celular, que se espatifou na pista em milhares de
caquinhos.
Frank Adams estava aterrorizado. Agora, por toda parte,
pelo meio dos matos que corriam além do acostamento, misturada
por entre as árvores escuras e lúgubres, ele tinha a impressão de
ver a figura horripilante daquela velha demoníaca, censurando-o
com seus olhos sepulcrais. Uns olhos mortiços e baços, miúdos feito
os de um morcego, mas que pareciam fitar a alma das pessoas.
Dirigiu assustado por mais umas trinta milhas, até que viu outro
posto de gasolina, dessa vez com luzes acesas, e resolveu parar
para abastecer. Encostou seu carro ao lado de uma das duas únicas
bombas e desceu do automóvel. A chuva não dava trégua um
instante e, debaixo da marquise de alumínio, os pingos pareciam
mais violentos e vigorosos. Do lado de lá da estrada, deserta e
soturna, o vento assobiava sobre a copa das árvores, agitando a
folhagem nos galhos sombrios. Frank Adams apanhou a mangueira,
abriu o compartimento de combustível do seu veículo e colocou
vinte dólares de gasolina. Depois, caminhou até a decrépita loja de
conveniência, empurrou a porta e entrou. Lá dentro, havia apenas
um velho sentado em uma cadeira atrás de um balcão, com um
boné dos Dallas Cowboys, assistindo a um jogo de basquetebol
num pequeno aparelho televisor, posto no alto de um das paredes.
A imagem estava mal sintonizada e ouviam-se muitos chiados
encobrindo a voz do narrador. Ao ver o cliente entrando em seu
estabelecimento, ergueu-se do local onde se achava sentado e
disse:
- Mais alguma coisa, além do combustível?
- Vou levar também uma barra de chocolate. Pode me
emprestar a chaves do banheiro?
O homem o encarou por alguns segundos, estampando em
seu rosto ossudo certo desagrado. Finalmente, apanhou embaixo do
balcão uma chave amarrada a um pedaço de pau, que lhe servia de
chaveiro improvisado, e entregou-a ao freguês.
- É logo ali no fundo. Se for urinar, não se esqueça de
levantar a tábua.
- Muito obrigado.
Após seguir por um corredor estreito e entulhado de gaiolas,
frascos de garrafas vazias e velhas latas de tinta, Frank Adams
chegou ao banheiro. Ao abrir a porta, constatou que não era dos
mais limpos e perfumados. Um odor fétido de fezes misturado a
desinfetante impregnava todo o ambiente. Muitos azulejos estavam
quebrados e tremendamente sujos. Uma lâmpada no teto, de luz
amarelenta e sombria, encontrava-se falhando, dando ao ambiente
uma atmosfera sinistra. O velho Frank levantou a tábua da privada,
mas tomou o cuidado de segurá-la com um pedaço de papel
higiênico, pois temia apanhar uma doença só de tocá-la. Após
urinar, dirigiu-se a um pequeno lavatório a fim de lavar as mãos e o
rosto. Achava-se bastante cansado e queria chegar a sua casa o
mais rápido possível. Esfregou os olhos com os dedos durante
alguns segundos. Quando os abriu e fitou seu rosto no espelho que
havia sobre a pia, um espelho com muitas falhas rabiscadas pelo
tempo e pela umidade e com uma rachadura na parte superior,
levou um susto tremendo. Atrás dele, junto ao vaso sanitário, estava
aquela velhota fantasmagórica, fitando-o com seus olhos de
morcego. Ao vê-la, Frank Adams deu um grito de horror no exato
momento em que a luz do banheiro se apagou. Quando acendeu, a
velha não se achava mais lá. No mesmo instante, com o coração
querendo lhe escalar a garganta, ele saiu do banheiro, mas
permaneceu por alguns momentos no corredor, apoiando-se a uma
estante, até recuperar o fôlego. Ao voltar para frente da loja, o
comerciante percebeu que ele se achava muito pálido e perguntou:
- Não está se sentindo bem?
- Não é nada. Tive apenas uma queda de pressão, mas já
passou.
Ao dizer isto, pagou o que devia, apanhou sua barra de
chocolate e saiu. Na estrada, durante muitas milhas, ele não
conseguia pensar em outra coisa. Afinal, o que aquela velha queria
com ele? Teria saído das catacumbas infernais, onde sua alma
danava no caldeirão do demônio, somente com a finalidade de vir
lhe assombrar a existência? Ou tudo não passava de alucinação
devido ao seu estado de nervos? Frank Adams desembrulhou a
barra de chocolate e atirou o invólucro na estrada. Enquanto comia,
resolveu ligar outra vez o rádio para ver se agora conseguia
sintonizar alguma estação de música country. De repente, enquanto
girava lentamente um dos botões, começou a ouvir de novo a voz
da velha através dos alto-falantes do veículo:
- Você atropelou o meu marido! Não adianta fugir! Vai pagar
pelo seu crime, assassino!
Imediatamente, Frank Adams desligou o rádio, mas aquelas
palavras ainda permaneceram ecoando dentro de sua cabeça por
um bom trecho da estrada. Há algum tempo já não havia mais
neblina na pista; porém, a chuva continuava caindo de maneira
torrencial. Como estava bastante assustado, ele acendeu a luz
interna do automóvel e seguiu com ela acesa por todo o resto da
viagem.
Chegou à sua casa por volta da meia-noite. A pequenina
cidade parecia deserta e não se via pessoa alguma pelas ruas
encharcadas. Sentiu uma sensação de alívio, quando colocou seu
carro na garagem e trancou o portão. Como estava bastante
cansado, Frank Adams resolveu tomar um banho antes de dormir.
Enquanto esperava a banheira se encher, aproveitou para fazer a
barba e acabou se cortando em vários pontos, pois se achava muito
agitado. Tirou a roupa e testou com a ponta do pé a temperatura da
água. Estava boa. Após uma longa e cansativa viagem, ele bem
merecia um banho quente e reconfortante. Assim que entrou na
banheira, fechou os olhos e passou a relaxar. Por alguns minutos,
permaneceu desfrutando daquele prazer agradável que a água
morna produzia ao envolver o seu corpo. Até que o telefone tocou
de forma estridente no quarto e o velho Frank abriu os olhos,
sobressaltado. A sua respiração tornou-se ofegante e o seu coração
passou a bater mais acelerado no peito. Quem diabos poderia ser
numa hora dessas? Decidiu não atender e deixou a aparelho
tocando por longo tempo, até que a pessoa se deu por vencida e
desistiu.
Depois de ter vestido seu pijama, Frank Adams desceu as
escadas e se dirigiu à cozinha para tomar um copo de leite e comer
um pedaço de pão de forma com presunto. Nesse instante, a
campainha tocou histérica na sala e o susto apanhado por Frank foi
tão violento, que ele teve a impressão de ter levado uma chicotada
nas costas. Evidentemente, a sua primeira reação foi de não
atender a porta. Porém, a curiosidade foi maior e ele caminhou em
bicos de pés até a janela. Ao afastar um pouco a persiana, o
suficiente para dar passagem a seus olhos, ele viu, aterrorizado,
que aquela maldita velha se encontrava parada diante de seu
portão, debaixo da chuva, olhando para dentro com olhos de
vampiro. Por alguns segundos, milhares de pensamentos passaram
a girar em sua cabeça, como se estivessem sendo tragados por um
fantástico redemoinho. Demônios! A sua impressão era de que ela
não lhe deixaria em paz pelo resto da vida, se ele não descobrisse o
que a infeliz desejava. Para tirar aquilo a limpo de uma vez por
todas, Frank Adams resolveu atender a mulher. Enchendo-se de
coragem, abriu a porta e saiu até a sua varanda. Porém,
misteriosamente, como ocorrera em outras oportunidades, a velhota
funérea não se achava mais ali. Tomado por uma angústia suprema,
o velho Frank caminhou até a calçada e, por alguns segundos,
permaneceu observando a rua vazia e escura. Nem sinal da bruxa
execranda. Só a chuva continuava pingando sobre as poças d´água.
De repente, ele viu acender a luz do seu quarto lá no
segundo andar. Aquela visão apavorou-o de tal forma, que ele
precisou se segurar no portão para não cair, pois as suas pernas
tremiam deveras. Seriam ladrões? Seria outra vez a velhota
malacafenta? Somente acabaria com aquele inferno se tomasse
uma atitude drástica. Pensando nisso, entrou na sala e apanhou
uma espingarda que mantinha pendurada sobre uma das paredes
da sala. Pé ante pé, começou a subir as escadas, procurando fazer
o máximo de silêncio.
Quando chegou ao seu quarto, a luz já estava apagada e a
janela aberta, de maneira que o vento inflava as cortinas, tal qual
fantasmas irrequietos. Frank Adams caminhou até lá e espiou a rua
deserta, o poste de iluminação deitando uma luminescência mortiça
e amarela sobre a calçada. Olhou debaixo da cama e dentro dos
armários, mas não encontrou ninguém. Embora não fizesse calor,
ele estava suando em bicas e seu rosto mostrava-se vermelho e
congestionado. Com os olhos raiados de cólera, bradou:
- Apareça de uma vez, criatura dos infernos, que eu vou
mandá-la de volta para as profundas!
Nesse instante, um relâmpago violento arrebentou no céu,
iluminando brevemente o recinto, de maneira que ele viu o vulto da
velha refletido no espelho. No mesmo segundo, Frank Adams
engatilhou a espingarda e atirou naquela direção, estilhaçando o
espelho em milhares de cacos. Apareça, demônio! Você sabe que
sou inocente! Eu não tive culpa por atropelar o seu marido. Foi ele
quem entrou na frente do meu carro. Isto já faz tantos anos...
Reconheço que a minha culpa foi ter fugido sem lhe prestar
socorro... mas eu era jovem e tinha medo de ir para a cadeia. A
culpa foi toda dele!
Caminhando lentamente, como se temesse assustar uma
presa acuada, Frank Adams procurava pela mulher com a arma em
riste. Só se ouvia o ruído de seus chinelos ferindo as tábuas do
assoalho de madeira. Quando chegou ao corredor escuro, ouviu a
janela do quarto bater de súbito por causa do vento. Sem pensar em
mais nada, virou-se bruscamente para trás e deu outro tiro,
acertando a vidraça. Velha amaldiçoada! Apareça de uma vez por
todas! Ele ofegava de modo intenso e sentia um medo ancestral
dominando o seu espírito. Enquanto vasculhava o outro quarto,
escutou a porta da frente ranger, como se alguém a estivesse
abrindo. Ele tinha certeza de que a fechara tão logo havia voltado da
rua e, por isso, chegou à conclusão de que a velha estava saindo da
casa.
- Agora te pego, afilhada de Satã!
Desesperado, Frank Adams correu o mais depressa que
pôde na direção da porta da frente. Porém, como ainda estava com
os chinelos molhados por causa da chuva, acabou escorregando na
escada e despencou do segundo andar para o térreo, quebrando o
pescoço. Uma poça vermelha começou a se formar ao redor de sua
boca, enquanto, na parede da sala, o relógio cuco parou
misteriosamente de funcionar.
Lá fora, as sombras dos mortos caminhavam debaixo da
chuva.
Amanda vai casar

Q uatro garotas viajando numa


noite quente em um carro
esporte por uma estradinha
escura do meio-oeste, onde os lagartos espiam, entre os
pedregulhos do acostamento, os faróis dos poucos automóveis que
passam ligeiros sobre o asfalto, imaginando serem deuses
poderosos e apressados. Quatro beldades que estão prestes para
entrar num mundo sobrenatural, envolto em mistério e horror, que
escapa à compreensão dos homens. Quatro jovens cheias de vida,
divertindo-se felizes e descuidadas, sem saber que a morte já as
espreita pelo caminho. Sally, a motorista, tem 21 anos e traz os
cabelos compridos tingidos de um loiro platinado muito claro. Na
faculdade, é conhecida pelos rapazes como a “frente-e-verso”, pois
é bela tanto na vanguarda, quanto na retaguarda. Não consta que
seja uma estudante muito aplicada e é sempre vista pelas festinhas
que acontecem no campus. Gosta de bandas de rock, ursinhos de
pelúcia e jogar tênis aos finais de semana. Sentada ao seu lado, no
banco do passageiro, encontra-se Patsy, morena clara, que chama
muito a atenção por causa de suas pernas roliças e seus olhos
verdes. Também tem 21 anos e costuma usar camisetas curtinhas,
para exibir o par de piercings em forma de estrela e lua, que ela
ostenta no umbigo. Um pouco abaixo de sua nuca, há uma
tatuagem estilizada de um sol ardente com óculos escuros,
indicando que a garota é quente. Adora assistir a filmes trash,
principalmente, quando está bem acompanhada. Faz natação todas
terças e quintas e, sempre que pode, compra discos de vinil para a
sua coleção. No banco traseiro, atrás de Sally, Debbie penteia os
seus cabelos ruivos. É a mais jovem das quatro garotas, contando
apenas 19 anos. Os rapazes vivem correndo atrás dela, porque a
moça tem predicados que costumam enfeitiçar a ala masculina, a
começar pelo seu sorriso encantador. Ela é muito vaidosa e nunca
sai de casa sem estar bem arrumada. Está aprendendo a tocar
violão e dizem que tem uma voz bonita e afinada, que lembra a de
Karen Carpenter. Ao seu lado, procurando qualquer coisa dentro de
sua bolsa, está Polly, que conta 20 anos de idade e é a mais alta
das quatro jovens e também a mais assanhada. Costuma ter vários
namorados ao mesmo tempo e muitas estudantes da faculdade não
gostam dela, julgando-a fácil e desfrutável. Os seus cabelos
castanhos descem um pouco abaixo dos ombros, o seu queixo é
pequeno e seu nariz um pouco empinado, que lhe dá uma graça
especial. Durante as tardes, faz ginástica na academia, fala francês
com alguma fluência e adora ler livros eróticos como os de Bella
Andre. As cinco conheceram-se na faculdade e são amigas
inseparáveis. Cinco, porque a quinta garota se chama Amanda e é
ela quem vai casar no sábado na cidade natal de seu noivo. Por
isso, todas estão felicíssimas e atravessaram metade do estado,
viajando por cerca de dezoito horas seguidas, para estarem
presentes na cerimônia.
Há pouco mais de quinze minutos, elas tinham feito uma
última parada num posto de gasolina para abastecer, esticar as
pernas e irem ao banheiro. Polly abriu mais uma latinha de cerveja,
que haviam comprado na lanchonete, bebeu até quase a metade da
bebida e a passou para Debbie. Todas estavam bastante alegres
pelo muito álcool ingerido, inclusive a motorista. Falavam alto e riam
desbragadamente de qualquer coisa. Patsy acendeu um cigarro
com um isqueiro, deu uma longa tragada e disse:
- Alguém sabe onde a Amanda vai passar a lua de mel?
- Na cama! Respondeu prontamente Polly.
As garotas riram. Em seguida, Sally proferiu:
- Acho que eles vão para a Itália. O pai do rapaz é
fazendeiro rico e parece que lhes deu de presente uma viagem para
a Europa.
- Com aquele pedaço de mau caminho, eu iria até o inferno.
Disse Patsy, batendo as cinzas do cigarro pela janela.
- Pois eu digo que não é grande coisa. Afirmou Polly com
um sorriso malicioso nos lábios.
As garotas fitaram a amiga com olhos inquiridores, até que
Debbie perguntou:
- Como você sabe?
Polly ajeitou os cabelos sobre os ombros e respondeu:
- Ora, deixa pra lá!
- Diga! Agora ficamos curiosas...
Mordendo a pontinha do lábio inferior, Polly esclareceu:
- É que eu já fiquei com ele...
- Com quem você não ficou? Quis saber Sally.
Surpresa com a novidade, Patsy retrucou:
- Ficou com o noivo da Amanda? Duvido!
- Saí com ele uma vez, mas não foi muito produtivo. Vamos
mudar de assunto. Disse rindo.
- Ah, não! Agora você vai contar tudo para a gente.
E as três garotas juntas entoaram um corinho:
- Conta... conta... conta...
- Está bem! Eles ainda não eram namorados. Faz uns dois
anos. Lembram-se daquela festa dos anos setenta que rolou na
faculdade? Então, foi naquela noite. Começamos a conversar e a
beber vodca, até que pintou um clima e, quando vi, já estávamos
entre beijos e amassos num canto escuro. Nossas carnes
queimavam num fogo impetuoso, que bebida alguma podia
refrescar. Entramos no carro dele e seguimos para uma área
deserta no campus. Ele parou debaixo de algumas árvores e
começamos a nos despir com sofreguidão. Mas, infelizmente, não
chegamos a lugar nenhum, porque, na hora H, ele negou fogo com
sua bituquinha. Foi isso...
Todas as garotas a observavam com olhares incrédulos e
surpresos. Houve um silêncio por um breve instante, até que Patsy
proferiu:
- Ah, vá! Você inventou tudo isso para tirar uma com a nossa
cara...
Polly as encarava com um olhar triunfal plantado na face.
Ela umedeceu os lábios com a língua e concluiu:
- Ora, acreditem se quiserem, pois não estou nem aí!
Debbie retirou de sua bolsa um espelhinho e começou a
passar batom na boca. Subitamente, o carro desviou de maneira
brusca para a esquerda, a buzina berrando de forma escandalosa,
fazendo com que a menina borrasse seu rosto. Ela não gostou de
ver sua bochecha manchada de rosa e rosnou para Sally, que ria
com o corpo inteiro, como uma criança que acabou de fazer arte.
- Está louca? Por que fez isso? Sua vadia!
Patsy interveio:
- Eu vi tudo! Ela tentou atropelar um coiote!
- Não tentei atropelar coisa nenhuma. Apenas joguei o carro
sobre o animal para lhe dar um susto. Eu quero mais é me divertir!
Debbie apanhou um lenço e limpou o rosto. Depois, disse
em tom de reprimenda:
- Quer se divertir, mas não nos coloque em risco. Você
quase capotou o veículo! Está bêbada como um estivador!
- Coloquei-as em risco? Vocês ainda não viram nada. Estão
vendo aquele carro que vem lá adiante?
Os faróis do automóvel eram apenas dois pontos luminosos
brilhando a alguma distância e deslocando-se muito lentamente
acima da linha do horizonte.
- O que tem ele? Quis saber Patsy.
- Vamos fazer uma brincadeira. Disse Sally com um sorriso
enigmático nos olhos.
Mal acabou de pronunciar estas palavras, a garota virou o
volante e passou para a faixa da esquerda, a mesma em que vinha
o carro na direção contrária. Tão logo tomaram ciência do que a
amiga havia feito, as três jovens começaram a bradar,
desesperadas:
- Ficou maluca? Volte já para a nossa pista!
- Vamos, Sally, esta brincadeira não tem graça. Você pode
provocar um acidente!
- Pelo amor de Deus, Sally! Isto já está passando dos
limites!
A menina não dava a menor atenção às amigas e pôs-se a
acelerar ainda mais o veículo. A cada segundo, as luzes que elas
viam na escuridão iam aumentando de tamanho e o pânico passou
a tomar conta das três garotas. Elas puseram-se a berrar aflitas,
implorando para Sally desistir daquela loucura. A certa altura, Patsy
agarrou o volante e tentou virá-lo para a direita. Sally a empurrou
para o outro lado e o carro derrapou na pista, os pneus guinchando
sobre o asfalto feito um animal sendo esganado. A motorista
conseguiu controlá-lo com perícia e, retornando para a pista da
esquerda, onde o carro que vinha na direção contrária se
aproximava assustadoramente, bradou furiosa:
- Está querendo nos matar? Sei muito bem o que estou
fazendo...
- E o que você está fazendo?
- Proporcionando diversão a vocês. Vi isso num filme e
sempre quis fazer igual. Só quero saber até onde aquele carro
permanecerá nesta pista.
Os dois automóveis estavam muito mais perto agora. Os
olhos de Sally achavam-se cravados na rodovia e ela parecia
saborear cada segundo daquela diversão macabra. O motorista do
outro veículo começou a sinalizar com o farol, demonstrando que
ele já compreendera o que estava acontecendo. Debbie abraçou-se
a Polly e disse com voz dominada pelo terror:
- E se ele não sair da frente, vamos morrer?
- Ele vai sair, não se preocupe. Podemos fazer isso com
mais emoção...
- Mais emoção?
- Sim! Querem que eu apague os faróis?
Todas gritaram não ao mesmo tempo. O motorista do outro
carro pôs-se a buzinar com insistência. Estavam muito próximos e o
acidente parecia inevitável. E se os dois resolvessem desviar para o
mesmo lado? Agora, não havia mais volta e seria como Deus
quisesse. Os corações das três moças batiam no peito feito
matracas alucinadas. Patsy cobriu os olhos para não ver. Debbie
abraçou-se ainda mais a Polly. A colisão parecia iminente. Porém,
no último instante, quando a luminosidade dos faróis era tamanha
que chegava a cegar a todas, Sally jogou violentamente o carro para
a esquerda, atravessou o acostamento inteiro e seguiu atropelando
tudo que havia pela frente em um campo acidentado de terra e
capim. O veículo parecia um cavalo selvagem, tanto pulava, e foi
muita sorte não terem capotado. A motorista deu um grito de
felicidade e conduziu o automóvel de volta para a pista. Todas
tremiam, excitadas, e mal conseguiam respirar.
- Então, não foi emocionante?
- Você é louca! Disse Polly, aliviada.
- Louca por emoção!
Tocando o ombro de Sally, Debbie pediu:
- Eu me emocionei tanto, que fiquei apertada. Pare um
instante no acostamento, pois minha bexiga está estourando...
O carro estacionou sobre os pedriscos. Debbie desceu
correndo e foi se aliviar atrás de uns matos. Ela abaixou as calças,
agachou e ficou observando o céu claro, repleto de estrelas. No
campo, sempre podemos observar mais estrelas, pensou. De
repente, ela viu algo que a deixou terrivelmente curiosa. Uma luz
muito brilhante, do tamanho de um pêssego, surgiu a oeste,
atravessou todo o céu e parou sobre o local onde as garotas se
encontravam. Avião não podia ser. Talvez fosse um balão
estratosférico, mas será que eles brilhavam daquela maneira?
Debbie vestiu-se, correu até o carro e chamou as amigas:
- Gente, vejam, o que será aquilo no céu?
As jovens desceram do automóvel e fitaram o objeto
brilhante, cheias de admiração. Nenhuma delas jamais havia visto
nada parecido em toda a vida. Patsy quis tirar uma fotografia, mas
constatou surpresa que o seu celular não estava funcionando. Polly
apanhou o seu e verificou que ele também não ligava. Nenhum
deles funcionava! Aquilo as deixou um pouco assustada. Debbie,
que era a mais impressionável das quatro moças, proferiu:
- Parece que isto está aumentando de tamanho e descendo
sobre o nosso carro. E se for um disco-voador querendo nos
abduzir?
- Ora, essas coisas não existem, só acontecem em filmes.
Respondeu Sally.
- Mesmo assim, vamos embora logo, não quero ficar mais
nem um minuto aqui!
Todas entraram no carro, mas permaneceram observando a
estranha luz pelas janelas, como se tivessem sido hipnotizadas.
Sally deu a partida e seguiu em frente. Após uns dez minutos, Polly
exclamou:
- Não é por nada, não quero meter medo em ninguém, mas
esta luz está nos seguindo e se aproximando cada vez mais da
gente. Vejam como ela já está enorme!
- É verdade! Deve ter quintuplicado de tamanho, desde que
a vimos pela primeira vez. Disse Patsy.
- Mas o que vocês querem que eu faça? Perguntou Sally.
- Pise no acelerador, para tentarmos despistar essa coisa,
seja lá o que for.
Sally obedeceu. Também ela estava nervosa e confusa. O
automóvel começou a ganhar mais velocidade, o vento sacudia as
laterais do veículo com sofreguidão e o ponteiro do velocímetro já
estava marcando acima das oitenta milhas por hora. Mas isto não foi
o suficiente para deixar a luz para trás. Pelo contrário. Ela
continuava aumentando de tamanho e se aproximando cada vez
mais. Vinte minutos depois, havia se transformado numa
luminosidade fulgurante, como se estivesse pairando à pequena
distância do teto do carro. As meninas estavam aflitas, chorosas e
até mesmo Sally mostrava-se desesperada. A certa altura, quando
subiam uma longa ladeira, a moça exclamou:
- Oh, não!
- O que foi? Gritou Debbie aterrorizada.
- O carro está perdendo força, o motor não responde...
- Não brinque! Já estou com muito medo...
- Não estou brincando! Gasolina não é, pois abastecemos
no último posto...
O veículo foi perdendo velocidade e acabou parando quase
no ponto mais alto da subida. Sally estacionou no acostamento e
esfregou os olhos cansados com os dedos. Todas estavam por
demais apavoradas e, quando imaginaram que iam ser engolidas
por aquela luz macabra, ela passou além da elevação da estrada e
desapareceu do outro lado. Por alguns instantes, as jovens
permaneceram caladas, tentando compreender o que havia
acontecido. Foi Polly quem rompeu o silêncio:
- O que vamos fazer agora?
- Temos que conseguir ajuda. Certamente, há um posto logo
adiante...
- Aqui neste fim de mundo? Duvido! Vamos dar uma olhada
no motor, talvez seja uma mangueira solta...
As garotas desceram e sentiram um cheiro de algo podre
empestando o ar.
- Nossa! Deve ser um cavalo morto! Disse Patsy.
Sally levantou o capô e pôs-se a examinar o motor,
segurando uma pequenina lanterna, que ela guardava no porta-
luvas. Assim procedeu por uns cinco minutos, até que fechou de
novo o capô, dizendo:
- Aparentemente, está tudo em ordem. Os celulares ainda
não estão funcionando para a gente pedir ajuda?
- O meu não...
- Nem o meu...
- Nenhum está ligando...
- E o pior é que não passa um carro para nos socorrer.
Espere, o que é isso?
- Isso o quê? Indagou Debbie num sobressalto.
- Façam silêncio! Parece que ouvi alguma coisa vindo do
outro lado...
As jovens emudeceram e afilaram os ouvidos, mas a
impressão que se tinha era de ouvir apenas o ruído dos grilos e do
vento acariciando a copa das árvores. Após uns breves instantes,
Sally indagou:
- Estão ouvindo agora?
- Sim, acho que ouvi qualquer coisa. O que será? Inquiriu
Polly.
- Creio que são sussurros. Vem lá da frente, além do final da
subida. Com toda certeza, é a ajuda de que precisamos!
Ao ouvirem aquelas palavras, todas as garotas ficaram
felizes e eufóricas. Elas subiram a colina o mais rápido que puderam
para pedir socorro às pessoas que deveriam se achar logo ali.
Porém, quando chegaram lá no alto, viram uma cena
desconcertante. A estrada descia de maneira acentuada e, lá
embaixo, em meio a muita fumaça e poeira, havia algo inconcebível.
Estacionado no centro de uma clareira, além do acostamento,
encontrava-se um veículo extraordinário, que muito bem poderia ser
uma nave espacial. Através de uma abertura escura, descia uma
espécie de rampa que chegava ao chão e, ao lado desta, contra a
luminosidade vívida, era possível observar a silhueta de três
pessoas. Embora julgassem tudo aquilo muito estranho, durante um
mínimo momento, as garotas ainda pensaram em pedir ajuda a eles.
Contudo, assim que chegaram mais perto e puderam contemplá-los
melhor, viram que aquelas criaturas não eram humanas. Tinham
feições grotescas que lembravam sapos, pescoços grossos envoltos
em carapaça e corpos pesadões a lembrar qualquer coisa como
rinocerontes bípedes. Andavam meio curvados, roncando,
resfolegando, arrastando seus pés com alguma dificuldade. Eram
peludos e cobriam-se com capotes escuros. Quando os monstros
viram as moças, começaram a rosnar excitados e puseram-se a
correr desajeitadamente na direção delas. Dominadas por um horror
exponencial, as quatro jovens passaram a gritar alucinadamente,
procurando fugir dali o mais rápido possível. Durante a fuga, Debbie
tropeçou em seus pés e rolou por um bom trecho sobre o asfalto. A
menina ficou toda arranhada, seus joelhos e cotovelos lavados em
sangue. Apesar da dor que sentia, ela levantou-se imediatamente,
ajudada por Polly, pois não poderia perder um segundo sequer, se
desejasse salvar a sua vida. Aquelas criaturas monstruosas, apesar
de pesadonas, eram ligeiras e por muito pouco não as alcançaram.
Foi o tempo suficiente de elas entrarem no carro e trancarem as
portas. Aflita, com a mão tremendo ao segurar as chaves, Sally
tentou dar a partida, mas o motor não pegou. Cada uma daquelas
horrendas abominações postou-se em um dos lados do veículo,
salivando lascivamente, como se estivessem diante de um
magnífico manjar. Uma delas, num movimento brusco, agarrou Polly
pelo braço, pois a moça não fora rápida o bastante para fechar a
janela. Suas garras afiadas feriram-lhe as carnes brancas e,
estraçalhando o vidro, arrancou a menina para fora do carro num
puxão violento. Polly esperneava, gritava enlouquecida por socorro,
mas nenhuma das amigas podia fazer nada para ajudá-la. Todas
choravam, soluçavam, tremiam de medo e terror. Os monstros
lançaram a jovem sobre o capô, rasgaram-lhe as vestes e
começaram a devorá-la ainda viva. Durante alguns segundos, a
menina debateu-se desesperadamente, tentando escapar das
mandíbulas sôfregas daquelas criaturas horríveis, repletas de
dentes afiados como um serrote. Um deles furou-lhe o ventre e
passou a lhe sugar as vísceras gotejantes. Outro lhe deu uma
dentada na coxa, arrancando-lhe um enorme naco de carne, como
se tivesse mordido um belo pedaço de presunto. O osso branco da
perna apareceu, mas sumiu em seguida, pois a cavidade aberta foi
logo preenchida com sangue. O terceiro devorou-lhe parte do
pescoço, fazendo com que o sangue da jugular chovesse sobre o
para-brisa.
Ao verem aquela cena tétrica, as janelas untadas e lavadas
de vermelho, as meninas passaram a gritar ainda mais
ensandecidas, certas de que não escapariam dali com vida. Uma
das criaturas subiu sobre o teto de lona do conversível e, com suas
garras afiadas, rasgou parte da cobertura do carro, justamente
sobre o local onde Debbie se achava acuada. Ela ainda tentou abrir
a porta para escapar dali, mas o monstrengo a agarrou pelos
cabelos e a puxou para fora, lançando-a sobre o solo coberto de
pedregulhos. No mesmo instante, pulou sobre a garota, arrancou-
lhe a camiseta e, com sua bocarra descomunal, comeu-lhe um dos
seios numa dentada só. O coração da jovem ainda batia, quando ele
o arrancou com as unhas e o engoliu. Os outros dois monstros
deixaram o que sobrou de Polly sobre o capô e vieram banquetear-
se no cadáver de Debbie.
Enquanto isso, Sally teve uma ideia. Ela soltou o freio de
mão e deixou o carro escorregar de ré na ladeira. Assim que ele
embalou um pouco, conseguiu fazer com que o automóvel pegasse
no tranco. Deus do céu, era a possibilidade que esperavam para
fugir dali! Contudo, a garota estava tão furiosa e desnorteada, que já
não pensava mais com clareza. Um ódio desmedido borbulhava em
seus olhos e ela só desejava se vingar daqueles seres malditos.
Sally engatou a primeira, encheu o motor de potência ao bombear o
acelerador e partiu queimando o asfalto na direção dos monstros,
que continuavam devorando Debbie com uma volúpia animalesca.
Nem se importou, quando Polly caiu do capô no acostamento. O
conversível já estava com uma velocidade considerável, quando
passou por cima das criaturas e da pobre Debbie. Houve um
solavanco terrível e o carro deu um salto violento, enquanto se pôde
ouvir o som de ossos estalando feito bolachas. Dois deles foram
atropelados, mas, desgraçadamente, o terceiro conseguiu se
agarrar sobre o capô. Sally acelerou o veículo, mas aquela
aberração teratológica não caiu. Subitamente, ele deu um soco
violento no para-brisa, estraçalhando-o em milhares de caquinhos.
Empurrando o que sobrou do vidro para o interior do automóvel, o
monstro agarrou Patsy pelo pescoço e a estrangulou, quase
arrancando a sua cabeça. Nesse momento, quando passavam pela
nave, Sally deu um cavalo de pau e a horrenda criatura foi
arremessada para o meio da estrada. Ela parou o carro a alguma
distância dali, os olhos fervendo de cólera, cravados naquele monte
de carne esticado no meio da rodovia. Rugiu furiosa:
- Vou lhe mandar para as trevas de onde saiu, maldito!
Imediatamente, acelerou ao máximo o carro esporte e
passou com as duas rodas da direita por cima do pescoço e da
cabeça do monstro. Ela olhou pelo retrovisor, viu uma poça de
sangue preto crescendo ao redor da carcaça e seguiu em frente. As
suas mãos tremiam tanto, que Sally mal conseguia segurar o
volante. Que fazer agora? Havia perdido três de suas melhores
amigas e uma delas ainda se achava morta ao seu lado. Seus olhos
estavam inchados de tanto chorar e ela quase não enxergava a
estrada por causa das lágrimas.
Não muito tempo depois, a garota chegou à cidadezinha,
onde Amanda iria se casar. O endereço da casa do noivo da amiga
estava no GPS, de maneira que Sally encontrou o local com
facilidade. Já era muito tarde, quando ela estacionou diante da
residência, mas isto não tinha a menor importância. A menina
desceu aflita do veículo e tocou a campainha do interfone bastante
ansiosa. Após alguns segundos, uma voz abafada atendeu:
- Entre, estávamos esperando por você...
Assim que o portão se abriu, Sally atravessou um amplo
jardim e entrou na casa. A sala estava escura, mas havia luz vindo
de um dos cômodos ao lado. Caminhou aflita para lá, chamando por
Amanda, mas ninguém respondeu. Chegando ao local, viu que se
tratava de uma belíssima biblioteca, com milhares de livros
empilhados pelas prateleiras de madeira. Neste instante, porém,
sentiu um cheiro nauseabundo, o mesmo que exalavam aquelas
criaturas malditas. Experimentou um arrepio lhe incendiando a
medula e correu até uma poltrona, que estava de costas para ela,
onde se viam apenas as pernas de uma pessoa sentada.
- Amanda? Indagou com lágrimas na voz.
Quando ela se levantou, porém, um horror sepulcral
estampou-se no rosto assombrado de Sally. Ali já não estava
Amanda, mas uma aberração teratológica, que só poderia habitar os
pesadelos mais terríveis das pessoas. Trazia a face congestionada,
meio de monstro, meio de humano, que lembrava vagamente a sua
amiga.
- Olá, Sally, você conhece meu noivo?
Atrás dela, uma criatura monstruosa trancou a porta da
biblioteca e veio caminhando lentamente para a direção de Sally,
que permanecia aterrorizada, os olhos esbugalhados de terror. Não
conseguia se mexer, nem falar e, tampouco, respirar. Eles
agarraram-na num abraço mortal e começaram a lhe lamber a pele
suculenta.
- Fique tranquila, não vai doer nada.
Numa das paredes, um relógio parado marcava meia-noite.
Sem anestesia

O velho médico
desligou o telefone e
caiu sobre o sofá,
pois sentia as pernas bastante fracas. Aquela notícia o pegara de
surpresa e, por alguns instantes, permaneceu meditando no escuro
a respeito da atitude que deveria tomar. Apanhou um dos charutos
num belo estojo de madeira lavrada que se achava na mesinha ao
lado, riscou um pau de fósforo e mascou o fumo, soltando ampla
baforada de fumaça. Talvez o telefonema recebido há pouco não
passasse de um trote. O seu nome constava das listas telefônicas e
era possível que alguém estivesse apenas querendo se divertir com
ele. Por outro lado, a voz que ouvira no aparelho lhe parecera séria
e sincera, como se já conhecesse seu interlocutor há muito tempo.
O médico ergueu-se com alguma dificuldade, seus joelhos
estalaram, e ele caminhou devagar até a janela da frente. Com uma
das mãos, abriu a cortina e ficou observando a tempestade lá fora
lavando as casas, os muros, as ruas. As águas transbordavam das
sarjetas e corriam encorpadas por sobre as calçadas. Já era muito
tarde e sair com aquele tempo horrível não lhe agradava em
hipótese alguma. Porém, o misterioso homem estava lhe oferecendo
trezentos mil dólares em dinheiro. E esta não era uma importância
para se jogar fora.
O sujeito dissera-lhe que pagaria trezentos mil dólares por
uma operação. Não quis entrar em detalhes por telefone, mas
afirmou que se tratava de um procedimento simples e corriqueiro.
Estaria aguardando o médico no local indicado dali a uma hora.
Nem havia necessidade de levar qualquer instrumento cirúrgico,
pois tinham à disposição tudo de que precisavam.
O doutor Matos puxou a cortina e subiu as escadas,
dirigindo-se para o seu quarto. Apanhou um relógio de pulso dentro
da gaveta da cômoda e viu que ainda restavam quarenta e cinco
minutos para o horário combinado. Se quisesse chegar a tempo,
deveria se apressar. Talvez o homem fosse fugitivo da polícia e, por
isso, não poderia procurar um hospital, pois seria obrigado a dar
muitas explicações embaraçosas. Quem sabe, a referida cirurgia
não passasse da extração de uma bala de revólver. Trezentos mil
dólares era muito dinheiro para um serviço tão trivial, que não
levaria mais do que quatro horas entre sair de seu domicílio e
retornar para ele. Se fosse um trote o que perderia? Além do seu
tempo, apanharia um pouco de chuva e teria o transtorno de sair do
aconchego de seu lar naquele horário avançado da noite. Na pior
das hipóteses, encontraria o lugar fechado e voltaria para casa fulo
da vida por ter caído em tal engodo.
Enfim, chegou à conclusão de que valeria a pena apostar
naquele serviço. Ele apanhou sua roupa branca no armário, vestiu-
se rapidamente e desceu as escadas do antigo sobrado vazio. Teve
de correr até o portão a fim de abri-lo, mas acabou se molhando
bastante por causa da chuva. Ligou o carro, acendeu as lanternas e
deu a ré para tirá-lo da garagem. Foi obrigado a descer do
automóvel mais uma vez para fechar o portão e amaldiçoou o dia
em que um vendedor lhe ofereceu um sistema elétrico de abertura e
fechamento automático, mas ele recusou.
O local indicado era um antigo hospital particular, que se
encontrava desativado há muitos anos em virtude da má
administração de seus proprietários. Com a morte destes, os filhos
não se interessaram pelo negócio, que acabou fechando as portas.
O prédio ainda conservava em seu interior todas as instalações,
mas permanecia abandonado, aguardando que a justiça decidisse o
que caberia a cada herdeiro.
O hospital ficava do outro lado da cidade e o doutor Matos
conhecia bem o caminho, pois ali trabalhara por mais de vinte anos.
Tão logo se formara em Medicina, fora convidado para ocupar uma
vaga de cirurgião geral naquele estabelecimento. Enquanto dirigia
pelas ruas alagadas da cidade, um filme começou a passar pela
cabeça do velho médico. Era muito moço, quando se formou e foi
contratado para trabalhar em tal centro cirúrgico. Naquele tempo,
embora ainda fosse um rapaz sonhador, já tinha o coração
endurecido pela vida. Inúmeros foram os pacientes seus que
acabaram falecendo em virtude dele não ter se dedicado tanto
quanto cada caso merecia. Muitos dos familiares o acusaram de
negligência. O jovem médico não se importava com a dor alheia,
pois sabia que ela fazia parte de sua profissão e, a cada novo óbito,
consolava-se com o pensamento de que aquela teria sido a vontade
de Deus.
Pouco mais de trinta minutos após de saído de sua casa, o
doutor Matos chegou ao velho hospital abandonado. O prédio
encontrava-se agora em muito mau estado de conservação e não
lembrava em nada os seus tempos de glória, quando ali eram
atendidas dezenas de pessoas todos os dias. A tempestade
continuava lavando tudo e a noite escura ajudava a criar um clima
sombrio. Tão logo o médico desligou o motor e apagou os faróis do
seu carro, percebeu que dentro do velho edifício não havia uma
única luz acesa. Com mil diabos! Teria sido de fato um trote?
Excetuando-se o ruído dos pingos da chuva sobre o capô do
automóvel, não era possível escutar mais qualquer som. Como se
achava um tanto nervoso, a sua testa tornara-se úmida e ele
aproveitou para enxugá-la com um lenço branco que retirou de um
bolso. Nesse meio tempo, refletiu sobre o que deveria fazer e
chegou à conclusão de que o melhor a ser feito seria descer para
verificar se encontrava alguém ali. Afinal, já havia saído de casa
mesmo e existia uma possibilidade, ainda que remota, dele
descobrir lá dentro o homem que lhe contratara para realizar o
serviço.
Desceu apressadamente do veículo, metendo os dois pés
numa poça de água suja. Merda! Ainda bem que não estava com
seus sapatos novos de cromo alemão. Correu até debaixo de uma
marquise, que dava acesso à porta principal do edifício e pôs-se a
observar o interior do velho hospital através das janelas de vidro
cobertas de pingos da chuva, que escorriam de cima a baixo. Lá
dentro, tudo se encontrava na mais completa escuridão, lembrando
uma cripta gelada e funérea. O doutor Matos forçou a maçaneta,
mas a porta estava trancada. Por várias vezes, bateu nela com os
punhos cerrados. Ninguém apareceu. Quando já tinha resolvido ir
embora, amaldiçoando aquele maldito sujeito que lhe passara o
trote, lembrou-se de que existia outra entrada na parte de trás do
prédio. Não custava nada tentar. Os trezentos mil dólares
continuavam lhe coçando seu espírito ganancioso. Movendo-se com
o corpo colado o máximo que podia junto às paredes do edifício,
para se molhar o mínimo possível, o médico chegou aos fundos do
velho hospital com a respiração um tanto alterada. Era já certo
medo que começava a lhe pesar sobre os ombros. Lá atrás,
diversas árvores cinzentas e pálidas farfalhavam suas folhas
molhadas ao sabor das rajadas de vento. Ele alcançou o pequeno
alpendre e, com algum receio, o coração batendo acelerado no
peito, girou a maçaneta. Para sua surpresa, as dobradiças chiaram
e a porta abriu-se lentamente, como se soprada por um fantasma.
Isto fez o doutor Matos chegar à conclusão de que o homem
que lhe telefonara poderia mesmo se encontrar lá dentro. Agora se
lembrava que o sujeito se chamava William. Ele deu dois ou três
passos para o interior escuro do prédio e passou a chamar por seu
nome. Não obteve qualquer resposta. Apenas o eco de sua voz
retornava aos seus ouvidos, apresentando um medonho timbre
metálico. O velho médico retirou os óculos e os enxugou na barra da
camisa, com esperança de enxergar melhor, mas não obteve
qualquer resultado satisfatório. Na verdade, procurava se
tranquilizar um pouco, pois se achava bastante nervoso. Em seu
íntimo, queria acreditar na história contada por seu interlocutor, ou
seja, que ele fora chamado até ali a fim de realizar uma cirurgia
trivial. Porém, aquele ambiente lúgubre inundava o seu espírito de
terror. Que o aguardava lá dentro? Talvez até mesmo marginais
armados com facas.
Enchendo-se de coragem, ele caminhou mais alguns passos
naquele ambiente tomado pelas trevas. De súbito, um carro passou
pela rua deserta, lançando as luzes do farol para o interior do
edifício. Foi tudo muito rápido, mas o doutor Matos pôde enxergar o
corredor bastante comprido, com inúmeras portas fechadas em
ambos os lados das paredes. Estas se encontravam bastante
marcadas pela umidade, exalando um cheiro fétido de bolor. Pouco
depois, as suas vistas começaram a se adaptar um pouco melhor à
escuridão, de maneira que ele passou a ver algumas sombras
pálidas, ainda que miseravelmente. Mesmo andando devagar, os
seus sapatos molhados iam produzindo sons tétricos e o eco dava-
lhe a impressão de que alguém estava caminhando atrás dele. Por
mais de uma vez, estacou os passos e, voltando sua cabeça,
permaneceu observando a chuva caindo lá fora, temeroso. De
repente, pensou ter ouvido qualquer coisa do outro lado de uma
porta e a possibilidade de ganhar os trezentos mil dólares o encheu
de coragem. A sua respiração tornou-se mais ofegante e ele dirigiu-
se até ela. Com o punho fechado, bateu com os nós dos dedos,
chamando:
- William, você está aí?
Como não obteve resposta, abriu a porta. No mesmo
instante, uma ratazana enorme saiu correndo de lá dentro e passou
por entre as suas pernas. Ele deu um pulo nada acrobático e só não
caiu no chão, porque conseguiu se apoiar na maçaneta. O susto
apanhado foi tão grande, que o doutor Matos ali permaneceu por
mais de cinco minutos, procurando recuperar o fôlego. Com mil
demônios! Mais uma desta e eu enfarto!
Tão logo se recompôs, decidiu seguir até o final do corredor.
Sabia que ali existia uma escada que levava ao segundo andar e
era provável que William o estivesse esperando lá em cima. Neste
instante, um tremendo relâmpago iluminou o recinto, acompanhado
por um violento trovão. O coração do velho médico disparou outra
vez, pois já se encontrava completamente aterrorizado pelo medo.
Por um momento, quis fugir dali, daquela catacumba macabra, e
retornar para o aconchego de seu lar. Mas os trezentos mil dólares
não saíam diante de seus olhos. Resolveu seguir em frente.
Pé ante pé, começou a subir lentamente a funérea escada.
De vez em quando, apenas para ouvir uma voz humana, chamava
pelo nome do outro. Quando chegou ao piso superior, constatou que
o ambiente ali se achava ainda mais escuro do que lá embaixo.
Estava tão apavorado, que se alguém encostasse um dedo em suas
costas, morreria fulminado pelo terror. O doutor Matos viu que havia
dois caminhos a seguir. Continuar subindo as escadas para o
terceiro andar ou inspecionar aquele corredor escuro. Decidiu-se
pela segunda alternativa. Lembrava-se que ali era a ala da
enfermaria. Ele abriu uma das portas e viu que todos os móveis
estavam cobertos por lençóis brancos, lembrando fantasmas. Ao
entrar naquela sala, seus olhos perceberam que a escuridão ali não
era tão formidável quanto no corredor, pois existia uma janela que
dava para a rua, através da qual se coava uma luminosidade sinistra
e mórbida. Para matar sua curiosidade, levantou alguns dos panos
brancos, mas não encontrou nada além de velhos móveis, camas da
enfermaria e estantes baixas. Definitivamente, William não se
encontrava neste cômodo. Ele caminhou até a janela e permaneceu
alguns instantes observando a chuva caindo de maneira violenta lá
fora. Há tempos que não via uma tempestade malhar a cidade com
tamanha intensidade. As nuvens escuras congestionavam o céu
pesado e pareciam despejar uma enxurrada de pingos pretos sobre
os homens. Lá embaixo, o seu carro continuava estacionado no
mesmo lugar. Só então notara que tinha deixado uma das janelas
abertas. Inferno! A esta hora, o interior do veículo já estaria
completamente inundado. O velho médico virou-se e decidiu
procurar o sujeito em outra sala. Quando regressou para o corredor,
porém, deparou-se com um vulto sepulcral lhe espreitando os
passos. O susto apanhado assim de repente foi tão intenso, que ele
não conseguiu conter um grito gutural que lhe escapou das
entranhas da alma. Criatura das profundas, quer me matar do
coração? Contudo, nada conseguiu dizer e permaneceu observando
o indivíduo com as pernas tremendo.
- Desculpe-me se o assustei. Deve ser o doutor Matos. Sou
William e estávamos esperando por você... ansiosamente.
O médico estendeu-lhe a mão para cumprimentá-lo. Embora
continuasse escuro, teve a impressão de que já o conhecia de
algum lugar. Quis inquiri-lo a respeito disso, mas ainda se achava
com a voz amarrada ao peito em virtude do susto apanhado.
Portanto, limitou-se a sorrir e acompanhar o homem, que se dirigiu
ao terceiro andar.
Assim que subiram as escadas e chegaram ao último piso
do edifício, o doutor Matos ficou confuso com o que viu. Para sua
surpresa, havia ali naquele corredor lúgubre inúmeras pessoas
sentadas em bancos compridos, como se aguardassem na
escuridão o momento de serem chamadas. Lá no fundo, existia uma
única sala iluminada, cuja luminosidade se esparramava através da
porta, deixando aquele andar relativamente mais claro do que os
demais. Como não vira tal luz da rua? Enquanto caminhavam por
entre toda aquela gente, o médico teve a impressão de conhecer
muitos deles e, tomado por uma curiosidade insofismável, indagou:
- O que fazem estas pessoas num hospital abandonado?
- Estão aguardando a passagem. São espíritos
atormentados, que ainda não encontraram descanso, pois morreram
antes do tempo por negligência médica.
Os olhos do doutor Matos injetaram-se para fora das órbitas.
Sentiu um calafrio gélido escorrendo-lhe por dentro da medula, a
garganta seca, sem conseguir engolir. Como é que é? Com muita
dificuldade, pôde apenas balbuciar:
- Você disse “morreram”?
O homem não respondeu. Eles haviam chegado diante
daquela sala iluminada. Afastando algumas pessoas da frente,
William conduziu o médico para o seu interior.
- Por aqui, doutor...
Agora Matos se lembrava de forma bastante clara. Fora
naquele quarto que trabalhara por mais de vinte anos, operando
seus pacientes. Há quanto tempo não entrava ali. Surpreendeu-se
ao ver o grande número de pessoas que se aglomeravam lá dentro.
Eram rostos conhecidos, mas ele não conseguia se lembrar de onde
já os tinha visto. No centro da sala, existia uma cama com lençóis
brancos, como se já estivesse preparada para a cirurgia. William
conduziu o médico até aquele lugar sem dizer uma palavra.
Estranhando situação tão inusitada, o doutor Matos indagou:
- Toda essa gente vai assistir à cirurgia?
- Mais do que isso. Eles irão participar dela...
O médico não entendeu o que seu interlocutor quis dizer
com aquilo. De repente, porém, seu rosto confrangeu-se, contraiu-
se, congestionou-se, tornando-se lívido, como se o sangue do seu
corpo tivesse sido drenado. Deus do céu! Só agora ele havia
percebido que todos os presentes deslizavam no ar, flutuando feito
fantasmas. Subitamente, alguém veio por trás dele e lhe deu uma
violenta pancada na cabeça, de maneira que caiu no chão sem
sentidos.
Quando retornou a si, achava-se deitado naquela cama,
com muitas pessoas em volta a observá-lo. A sua primeira reação
foi tentar levantar-se dali, mas se encontrava muito bem amarrado
ao leito cirúrgico.
- Soltem-me daqui! Gritou enlouquecido.
- Não adianta continuar se debatendo, pois não vai
conseguir escapar. Agora, chegou o momento de ajustarmos as
contas com você.
- O que querem de mim, afinal?
Segurando um bisturi, um deles antecipou-se aos outros e
disse:
- Ainda não compreendeu? Cada um de nós morreu na
mesa de operação, ou poucos dias depois, por negligência sua.
Falecendo antes do tempo, fomos obrigados a permanecer errando
pelos campos da morte, sem termos um minuto de sossego desde
então. Agora, você irá pagar pelo mal que nos fez. Aqui viemos para
realizar em você as mesmas cirurgias que executou em nós sem
sucesso.
- Com a diferença que iremos fazer tudo sem anestesia.
Explicou um dos presentes.
Os olhos do velho médico esbugalharam-se de horror e ele
passou a se debater com todas as forças, procurando inutilmente se
livrar das cordas. Neste exato momento, vários homens agarraram-
lhe, enquanto outros começaram a proceder com as cirurgias. Um
deles cravou o bisturi no pescoço do miserável, que urrou de dor
desesperadamente. O sangue jorrou pelo talho de forma abundante.
Outros abriram-lhe a boca e lhe extirparam a língua. Enquanto lhe
arrancavam os olhos, fenderam-lhe o peito e o ventre, cujas
vísceras escorreram para o chão. Uns cortaram-lhe os dedos dos
pés, ao passo que outros começaram a lhe costurar a barrigada
aberta, já tendo sido extraído diversos órgãos. Em pouco tempo, os
gritos cessaram e a sala foi ficando vazia. Ao cabo de alguns
minutos, a luz se apagou misteriosamente e o velho hospital
abandonado tornou ao seu natural estado de letargia. Lá fora, a
chuva continuava lavando tudo, as casas, os prédios, as ruas, os
vivos e os mortos. Os mortos...
O cuco maldito

S imão, o

se sentado em sua
banqueta de trabalho, debruçado sobre um relógio de bolso com
velho
relojoeiro, encontrava-

caixa de prata, que um cliente trouxera para ele consertar há dois


dias, quando ouviu a sineta da porta tilintar. O bom homem levantou
a cabeça redonda e rosada de maneira instintiva e sentiu o vento
gelado entrar primeiro, vindo lhe roçar os fios da barba. A sua
oficina ficava no primeiro andar de sua residência e os fregueses
costumavam vir até ali para procurar os seus serviços, tanto na
parte da manhã, quanto ao longo da tarde. Durante uns breves
segundos, ele permaneceu com o olhar cravado na porta meio
aberta, até que um homem todo encapotado entrou, carregando nos
braços um pacote embrulhado com um cobertor. O sujeito
encaminhou-se até o balcão e depositou sobre este o misterioso
embrulho.
- Em que posso lhe ser útil? Indagou o relojoeiro.
O cavalheiro esfregou as mãos para aquecê-las, pois
deveriam estar geladas, e disse:
- Quero lhe propor um negócio...
- Um negócio?
- Sim! Sua tabuleta diz que compra relógios antigos...
- É verdade... como vê, tenho muitos.
O homem olhou ao redor e contemplou uma infinidade de
relógios, de todos os tamanhos e formatos, pendurados nas
paredes. Com certeza, o velho levara a vida inteira para reunir todas
aquelas peças, que pareciam muito bem cuidadas.
- O que lhe trago aqui é algo único no mundo!
- Deixe-me ver. Respondeu o relojoeiro, tendo a curiosidade
já bastante atiçada.
Meticulosamente, o sujeito começou a desdobrar o cobertor.
Enquanto fazia isso, Simão notou que ele trazia os olhos vermelhos
por trás dos óculos, como se tivesse chorado ainda há pouco.
Talvez aquele relógio fosse uma relíquia de família, passada de
geração a geração, e o pobre só estava se desfazendo dele por
estar precisando de dinheiro. Acontecia muito disso neste ramo, o
relojoeiro bem o sabia. E era quando se adquiriam as melhores
peças.
Assim que ele terminou de desembrulhá-lo, um magnífico
relógio cuco apareceu. Mas não se tratava de algo comum. Ao vê-lo,
o relojoeiro arregalou uns olhos assombrados e, por alguns
instantes, foi como se ele tivesse perdido a voz. Em vez de
folhagens e pássaros entalhados na caixa de madeira, como se
costuma observar nos cucos tradicionais, havia figuras demoníacas
ao lado de mulheres nuas em posições lascivas. No lugar dos
ponteiros do relógio, dois tridentes marcavam as horas. Apesar de
tudo, era um relógio fascinante. Após o susto inicial, o relojoeiro
começou a imaginar que aquele cuco deveria valer uma verdadeira
fortuna. Em toda sua vida, nunca vira nada igual e, se encontrasse o
cliente certo, poderia ganhar um bom dinheiro com ele. Olhando
assim à primeira vista, parecia muito antigo e feito com esmero, por
algum artista entalhador de elevado talento. Tão logo se recuperou
da surpresa, depois de observá-lo com mais atenção, Simão
indagou:
- Está funcionando?
- Perfeitamente! Ele nunca adianta ou atrasa.
Com cuidado, o velho relojoeiro passou a examinar o relógio
mais atentamente. Ao abrir a portinhola da frente, ficou deveras
surpreso com o que vira. Ao contrário do tradicional pássaro cuco,
havia ali um demônio de olhar maléfico, com chifres e corpo de
bode. Teve mesmo a impressão de sentir cheiro de enxofre
exalando lá de dentro, mas não disse nada. Simão virou o relógio de
costas e abriu a parte de trás. Apanhando sua lanterna, pôs-se a
examinar o maquinário, que lhe pareceu bastante antigo. Após
alguns minutos, ele proferiu:
- Muito interessante... de fato, isto é muito interessante! O
relojoeiro que confeccionou esta peça utilizou soluções bastante
engenhosas para resolver alguns problemas e penso que criou uma
obra-prima. Mas o amigo veja aqui... falta uma mola que prende
esse cuco com figura de Satanás, de maneira que ele não sairá pela
portinhola para anunciar as horas inteiras.
- Pois lhe digo que está tudo funcionando impecavelmente...
- Meu caro, isto não é possível, vai contra as leis da física.
Seja como for, não será difícil fazer o conserto... basta encontrar
uma mola do tamanho correto e prendê-la ao encaixe.
Dizendo isso, Simão fechou o relógio e o colocou de pé
sobre o balcão. Durante alguns segundos, permaneceu observando-
o com olhos quase apaixonados. Realmente, era um exemplar de
beleza instigante. Quanto o sujeito pediria por ele? Estava disposto
a pagar mil, talvez até dois mil, se o proprietário fosse duro na
negociação.
- Gostei muito do relógio. Quanto está pedindo?
O homem hesitou um pouco, até que disse:
- Digamos, cinquenta está bom?
Os olhos do velho relojoeiro saltaram para fora das órbitas e
ele bradou com a respiração um tanto alterada, voz trêmula:
- Cinquenta mil?
- Não... apenas cinquenta!
Houve um instante de silêncio, Simão tentando digerir
aquela cifra absurdamente ridícula. O cuco valia pelo menos cem
vezes mais; porém, o astuto negociante não podia deixar seu
interlocutor perceber que ele estava levando vantagem. O velho
cofiou a barba, olhou com certo desdém para o relógio, como se
pudesse conseguir outro igual logo ali na esquina, e proferiu:
- Pago trinta!
No mesmo instante, o sujeito esticou a mão e exclamou:
- Feito!
Simão apertou-lhe os dedos ossudos e, em seguida, dirigiu-
se ao caixa, de onde retirou três notas de dez. Ele entregou o
dinheiro ao homem, que apanhou seu cobertor e saiu dali
apressadamente, sem dizer mais nada.
O relojoeiro não podia acreditar que acabara de adquirir um
relógio valiosíssimo por uma ninharia. Aquele deveria ser o seu dia
de sorte. Ele apanhou o cuco e o pendurou num prego na parede.
Amanhã, daria uma olhada melhor no seu interior e procuraria uma
mola adequada para fazer o conserto necessário.
Pouco depois, começou a escurecer e o filho do relojoeiro
regressou para casa. Chamava-se Tom e trabalhava como aprendiz
de carpintaria numa oficina de um amigo de Simão, que havia
empregado o rapaz para aprender o ofício. Além dos dois, moravam
ainda na residência a esposa do comerciante, Laura, uma mulher
mansa e muito religiosa, e a mãe desta, dona Honorata, uma
velhota com cara de peixe e que contava mais de oitenta anos.
Durante o jantar, Simão não falou de outra coisa, a não ser
do extraordinário relógio que ele havia adquirido naquela tarde. O
aroma apetitoso da sopa de feijão com toicinho inundava a cozinha
e todos encheram seus pratos, pois estavam famintos. O velho
relojoeiro colocou mais um pouco de vinho em seu copo, bebeu
alguns goles estalando a língua e disse:
- Até já sei para quem vou oferecer o cuco...
- Para quem? Indagou o filho, curioso.
- Para o senhor Ludovico. Ele é antiquário e conhece tudo
sobre o assunto. Já estou até vendo o seu olhar excitado, quando
lhe mostrar o relógio. Ele é muito rico e não vai se importar de pagar
o que eu pedir...
- E que valor você está imaginando?
- Acho que cinco mil é uma boa cifra... não... pensando bem,
dez mil é melhor. Terei uma grande margem para negociar, caso ele
regateie o preço e, ainda assim, vou obter um lucro enorme. Creio
que conseguirei até pagar a minha dívida com o agiota...
Ao final do jantar, Laura serviu um pudim de leite com
ameixas, que seu marido adorava. Ele despejou por cima da
sobremesa uma quantidade considerável de calda feita com açúcar
queimado e, após ter devorado tudo, pediu para repetir. Em seguida,
quando já estava saciado, proferiu:
- Bem, eu falei bastante sobre o relógio que comprei e acho
que todos estão curiosos para vê-lo. Vamos descer até a loja, pois
quero mostrá-lo a vocês...
Ele desceu as escadas na frente e, ao chegar lá embaixo,
apertou o interruptor.
- Vejam, lá está ele! Não é mesmo uma maravilha?
Todos se aproximaram do antigo cuco pendurado na parede
e, por alguns segundos, permaneceram o contemplando em
silêncio. Só então o velho relojoeiro notou algo que o deixou
profundamente intrigado. Não se lembrava de ter lhe dado corda e,
mesmo assim, o relógio estava funcionando e marcando as horas
certas! Apesar de achar isto estranho, não deu muita atenção ao
fato, preferindo admirar os rostos de seus familiares, que não
pareciam muito entusiasmados. Depois de um instante, que foi
breve, ele indagou:
- E então, o que acharam?
- Bacana, pai! Exclamou o filho e foi o comentário mais
simpático.
Tanto Laura, quanto dona Honorata, odiaram o relógio. A
esposa o achou terrivelmente macabro, com todas aquelas figuras
diabólicas se espojando com ninfas desnudas, e pediu para o
marido tirá-lo de casa o mais urgente possível, pois estas coisas
atraíam energia negativa.
- Quero que o venda por qualquer preço!
Já dona Honorata afirmou que nunca tinha visto nada mais
medonho e que aquela coisa maligna deveria ter sido fabricada pelo
próprio capeta.
- Ora, vocês não entendem nada de antiguidades!
E, dizendo isto, apagou a luz e todos subiram as escadas.
Por volta das oito horas da noite, Tom já acabara de se
arrumar e disse que iria sair com uns amigos. Ao se despedir do
filho, Laura deu-lhe um beijo na testa, sentindo um perfume de
lavanda emanar da pele fresca do rapaz. Aconselhou o jovem que
não voltasse muito tarde, pois amanhã ele teria de trabalhar cedo.
E, através da janela, ficou observando o rapaz se sentar no banco
de trás de um carro conversível, que partiu em seguida. Depois, foi
lavar a louça, acumulada sobre a pia. Dona Honorata dirigiu-se até a
sua poltrona e ficou ouvindo o antigo rádio valvulado. O velho
relojoeiro ia fumar seu charuto e ler o jornal, como costumava fazer
após o jantar, mas não se conteve e resolveu descer até a loja para
ver o relógio adquirido naquela tarde. Não aguentou esperar até
amanhã para desmontá-lo. Ele o depositou sobre a bancada de
trabalho, abriu a parte traseira e pôs-se a examinar cuidadosamente
o seu mecanismo.
Por mais de duas horas, Simão permaneceu trabalhando,
debruçado sobre o antigo cuco. Desmontou todas suas
engrenagens e viu que não havia nada de errado com o relógio, a
não ser aquela mola que estava faltando. Ele abriu diversas
gavetas, mas não encontrou nenhuma que servisse no encaixe.
Então, decidiu procurar por uma na cidade no dia seguinte. Quando
ia fechar a caixa do cuco, reparou que havia uma inscrição
entalhada na parte de dentro, logo abaixo do mostrador das horas.
Ele apanhou sua lanterna para iluminar melhor o local e leu a
seguinte frase em latim:

Morte nihil certius est, nihil vero incerta quam ejus hora[1]
Não entendeu o sentido, mas anotou o texto em um pedaço
de papel para perguntar a um padre amigo seu, latinista emérito, o
que significavam aquelas palavras. Em seguida, colocou novamente
o relógio no prego da parede e foi lavar as mãos num banheiro que
havia ali ao lado. Quando retornou e já ia apagar a luz da loja para
subir, seus olhos colidiram ainda mais uma vez com o cuco. Por
alguns segundos, sua respiração estacou, seus olhos esbugalhados
por trás dos óculos de grossas lentes. O relógio estava funcionando!
E agora Simão se lembrava perfeitamente de que não havia lhe
dado corda. Ele caminhou até o local para pará-lo. Nesse instante, a
portinhola do cuco se abriu e o demônio saiu de seu recanto,
exibindo na face vermelha um olhar que parecia ainda mais maligno
do que aquele apresentado durante a tarde, quando o vira pela
primeira vez. Aquela figura diabólica riu por dez vezes de maneira
macabra, indicando as dez horas marcadas pelos ponteiros em
forma de tridente, e regressou para dentro do relógio. Ao contemplar
aquilo, o velho Simão assustou-se terrivelmente e seu coração
começou a bater acelerado dentro do peito. Não podia crer no que
acabara de observar. Como aquele demônio funéreo podia sair do
local onde se encontrava, se estava faltando a mola principal que
lhe permitia fazer tal movimento? De repente, o relógio parou
misteriosamente de funcionar. Isto deixou o relojoeiro ainda mais
desconcertado. Amanhã, teria de abri-lo outra vez, para ver se
descobria qual era o problema.
Tão logo subiu as escadas, Laura lhe perguntou:
- Deus do céu! Que risadas lúgubres foram estas? Só de
ouvi-las, senti um calafrio medonho escorrendo pela minha espinha
e tive um prenúncio de desgraça. Não vá me dizer que foi aquele
relógio maldito?
- Exato. É a maneira como ele marca as horas... no caso,
dez horas. Em seguida, parou de funcionar misteriosamente...
- Como acontece, quando morre alguém? Disse a mulher.
O marido riu:
- Já ouvi muitas histórias sobre isso, mas deixe para lá, é
crendice do povo...
E foram tomar um chá que Laura tinha feito.
Após ler durante algum tempo deitado na cama, Simão
virou-se de lado, acomodando melhor sua cabeça sobre o
travesseiro. Tinha o sono fácil e, em poucos minutos, já estava
sonhando. Subitamente, ouviu pancadas nervosas que pareciam vir
lá de baixo e acordou assustado. Sua mulher também escutou e,
acendendo a luz do quarto, indagou:
- O que foi isso?
O marido nem teve tempo de responder, quando o casal
ouviu novas batidas. Desta vez, tiveram certeza de que alguém
chamava lá na porta.
- Quem será a esta hora? Perguntou a mulher aflita.
- Vou ver! Respondeu o relojoeiro.
Ele calçou seus chinelos, vestiu um casaco e desceu.
Quando abriu a porta, viu que ali se encontravam os três amigos
com quem seu filho havia saído naquela noite. Todos se achavam
muito nervosos e tremiam apavorados, como se tivessem visto uma
assombração há pouco. O velho relojoeiro estendeu um sorriso
manso no rosto e disse:
- Ah, são vocês...
Um deles se adiantou ao grupo e afirmou que eles
precisavam lhe falar. O tom de sua voz era sério demais para um
jovem que vinha de uma noitada entre amigos, o que deixou Simão
um pouco apreensivo. Ele pôs-se ao lado da porta e convidou os
rapazes para entrarem, pois poderiam ficar resfriados naquela
friagem.
- Vou ser direto, pois nestas situações não há meio termo.
Não trazemos notícia boa e o senhor precisará ser forte. Houve uma
briga e seu filho foi esfaqueado...
Os olhos arregalados do velho cravaram-se em seu
interlocutor feito dois punhais, como se desejassem saltar para fora
das órbitas. Fez-se um silêncio angustiante, onde só se ouvia o
tiquetaquear de alguns relógios. Em seguida, Simão proferiu com
voz trêmula e minúscula:
- Que me diz?
O rapaz enxugou com os dedos as vistas molhadas e disse:
- Lamento... Tom perdeu muito sangue e morreu a caminho
do hospital...
Tão logo absorveu aquela notícia terrível, Simão caiu sobre
uma cadeira e cobriu os olhos com uma das mãos, como se
desejasse chorar escondido. No mesmo instante, sua mulher entrou
no recinto chorando histérica, pois estava ouvindo tudo lá no alto da
escada. O casal abraçou-se profundamente comovido e, por alguns
instantes, eles permaneceram lavando-se em lágrimas. Laura
soluçava inconsolável e batia com os punhos nas costas do marido,
que procurava confortá-la como podia. Ao cabo de algum tempo, os
ânimos serenaram um pouco, até que Simão perguntou:
- A que horas foi isso?
- Às dez horas, senhor. Respondeu um dos rapazes.
Instintivamente, os pais de Tom olharam ao mesmo tempo
para o antigo cuco, que permanecia pendurado na parede, calado
como uma cobra, marcando dez horas.
- Ele anunciou a morte de nosso filho! Exclamou Laura com
os lábios gelados de horror.
- Não diga tolices, você está nervosa...
E ela voltou a chorar.
Os três moços despediram-se e partiram, deixando-os a sós
com aquela dor exponencial. Pouco depois, Simão saiu de casa
para tomar todas as providências necessárias. O enterro aconteceu
dali a dois dias, após o corpo ter sido velado pelos amigos. Como
não podia deixar de ser, foi muito triste e bastante concorrido, pois
Tom era querido por toda gente. A primeira coisa que Simão fez,
quando voltou a trabalhar, foi tirar o pêndulo e os pesos da corda do
antigo cuco, para que ele não pudesse mais funcionar. Meteu tudo
dentro de uma gaveta, por via das dúvidas. Não que acreditasse
nestas superstições, mas não convinha arriscar.
Certa noite, tendo passado uma semana da morte do filho,
aconteceu nova tragédia. Simão e sua esposa ainda se
encontravam muito tristes, estraçalhados pela dor cabal que lhes
devorava a existência. Eles já haviam se deitado e estavam com a
luz apagada, conversando sobre o filho e relembrando as
travessuras que o menino costumava fazer nos tempos de criança,
quando ouviram lá embaixo a risada sinistra do velho cuco. Ao
escutar aquele som funéreo, o relojoeiro sentiu um arrepio na nuca
e Laura sobressaltou-se na cama, como se tivesse sido tocada pela
mão fria de um fantasma.
- Não compreendo... eu me recordo de ter retirado o pêndulo
deste relógio...
Eles contaram onze gargalhadas macabras, que
correspondiam às onze horas da noite. No momento em que aquele
flagelo angustiante cessou, o casal ouviu um ruído tenebroso,
pancadas secas e ocas, como um cavalo se debatendo nas
madeiras da baia de um estábulo. Isto os deixou terrivelmente
assustados, pois talvez fossem ladrões dentro da casa. Simão deu
um pulo da cama, enquanto que sua esposa apertou o interruptor,
acendendo a luz.
- Que pode ter sido isto? Indagou a mulher num sussurro
trêmulo.
O marido fez com o indicador um gesto de silêncio. Apanhou
sobre a cômoda uma estatueta de bronze, que poderia lhe ser útil
como arma e saiu do quarto caminhando em bicos de pés.
Atravessou o corredor e entrou na sala, onde não viu nada de
anormal. Dirigiu-se em seguida à cozinha, onde também tudo se
encontrava em perfeita ordem. Lembrou-se de verificar o dormitório
de Tom. De repente, um pensamento funesto veio-lhe à mente. Teria
o filho retornado das profundezas das trevas, com seu cadáver já
começando a ser devorado pelos vermes, meio gente, meio
monstro, como costumava ocorrer nas histórias de assombração?
Esta ideia encheu seu espírito de horror. Foi com mãos trêmulas
que abriu a porta do quarto, temendo pelo que poderia encontrar lá
dentro. Ele acendeu a luz e constatou, aliviado, que tudo estava
normal, arrumado como se o jovem continuasse morando ali. Só
restava inspecionar o dormitório de dona Honorata. Estranhamente,
a porta se encontrava aberta e Simão sabia que a velha sempre
dormia de porta fechada. Olhou o interior do cômodo e certificou-se
de que a mãe de sua esposa não se encontrava ali. A cama achava-
se toda desarrumada e nem sinal dos chinelos dela ao pé do leito.
Talvez tivesse ido ao banheiro. O relojoeiro caminhou até lá, mas
nada da sogra. Já um tanto aflito, regressou a seu quarto e disse
para Laura:
- Sua mãe desapareceu!
Ela o fitou com uns olhos assombrados e indagou:
- Como assim?
- Olhei toda a casa e ela não se encontra em parte alguma.
Só não fui à loja...
De repente, seus olhos iluminaram-se e ele interrompeu a
frase, como se tivesse compreendido tudo. Aquele ruído horrendo
que tinham ouvido após o cuco dar a sua gargalhada infernal...
Deus do céu! Tudo ficara claro em sua mente. Ainda sem entender,
a esposa perguntou aflita:
- Mas o que aconteceu afinal? Diga-me o que está
pensando!
- Venha comigo e torça para eu estar errado...
Eles atravessaram a sala, o velho relojoeiro na frente, e
começaram a descer a escada que dava na loja. A cada passo
dado, Simão reduzia a velocidade, como se não quisesse chegar lá
embaixo nunca, temendo pelo pior. Finalmente, não pôde mais se
enganar e viu umas pernas esticadas sobre o assoalho. Emitiu um
som gutural cavo e venceu os últimos degraus afobadamente. Dona
Honorata encontrava-se caída no chão, toda retorcida, envolta em
uma poça de sangue que lhe escorria da boca. Ao vê-la, Laura
desesperou-se e deu um grito de horror, sem poder acreditar no que
tinha acontecido. Simão agachou-se junto ao corpo da macróbia,
colocou dois dedos sobre a jugular dela e constatou que estava
morta. Ele levantou os olhos na direção da esposa e fez um gesto
negativo com a cabeça, arrebatando-lhe as últimas esperanças.
Sem forças, Laura agachou-se, cobriu a face com as mãos e se pôs
a chorar. O marido procurou confortá-la com seu ombro amigo,
acostumado a amparar lágrimas. Quando ela se acalmou um pouco,
Simão proferiu:
- Sua mãe caiu da escada e quebrou o pescoço. Só não
entendi o que ela queria fazer aqui embaixo, após ter ido se deitar.
Laura olhou para a parede e contemplou com ódio o antigo
cuco, que se achava parado, marcando onze horas.
- Foi ele! Foi este maldito relógio de Satã quem atraiu minha
mãe aqui para baixo...
O relojoeiro não disse nada, limitando-se a enxugar as
lágrimas dos olhos da mulher. Agora, estava cheio de dúvidas. A
vida inteira ouvira histórias sobre relógios amaldiçoados, que
paravam de funcionar exatamente no horário do óbito de seus
proprietários. Este era diferente, pois anunciava a morte de alguém
com sua gargalhada maldita. Talvez fosse coincidência, talvez não.
Seja como for, agora era ele próprio quem não queria ficar com
aquele cuco macabro em casa.
No dia seguinte ao sepultamento de dona Honorata, Simão
abriu a loja e a primeira coisa que fez foi colocar o cuco sobre o
balcão com preço muito baixo. Começou pedindo duzentos, mas
ninguém se interessou. De tarde, abaixou para cem. Mesmo assim,
todas as pessoas para quem ele mostrava o relógio ficavam
reticentes. Apesar de reconhecerem que se tratava de uma peça
antiga e rara, não gostavam das figuras entalhadas. Aqueles
demônios eram por demais assustadores e ninguém estava disposto
a colocar aquilo em suas salas de visitas. Por fim, como não
arranjou comprador e temia que o relógio tocasse novamente,
Simão colocou-o dentro de uma caixa de papelão, embrulhou-a com
papel e amarrou o pacote com barbante. Por fim, guardou em cima
de um armário, onde acumulava trastes e velharias, esperando
nunca mais pôr os olhos nele.
Já havia passado quase um mês desde aqueles
acontecimentos terríveis e a rotina do relojoeiro tornara à sua
normalidade, quando outra catástrofe abateu-se sobre a sua casa.
Como era seu costume, todo domigo pela manhã, Laura ia à missa.
Enquanto aguardava a esposa regressar, Simão permanecia no
sofá, lendo jornal e fumando seu charuto. Subitamente, ouviu aquela
gargalhada agourenta, feito um corvo crocitando no milharal a
anunciar tempestade. Por um instante, o seu coração parou de bater
e ele sentiu um vazio no ventre, como se tivessem lhe arrancado as
vísceras com as mãos. Largou o jornal de lado e correu escada
abaixo, tendo as pernas frouxas e a respiração ofegante. Ainda
conseguiu ver o detestável demônio do relógio, pendurado na
parede, estertorando suas últimas gargalhadas, como se estivesse
zombando do destino do relojoeiro. Como podia ser isto, se o
deixara dentro da caixa amarrada por um barbante? Olhou para
cima do armário e viu que a caixa estava aberta. Apavorou-se
terrivelmente. Aquilo tinha vida própria! De imediato, tirou o cuco da
parede e o colocou sobre o balcão. Durante alguns minutos, ficou
pensando o que deveria fazer com aquele ser amaldiçoado. Metê-lo
no fogo? Mas o fogo era o elemento primaz do demônio e talvez a
maldição não pudesse ser destruída dessa forma ou, ainda pior,
continuasse na casa. Aliás, não era impossível que migrasse para
algum de seus outros relógios. De qualquer forma, precisava fazer
alguma coisa, tomar uma medida mais drástica. Simão abriu seu
armário e apanhou uma marreta que guardava ali dentro. Iria
exterminar aquele maldito e seria agora! Porém, quando estava
pronto para desferir o primeiro golpe, o telefone tocou de maneira
funérea, abrindo um poço sem fundo no peito do pobre homem. Ele
atendeu com os olhos sangrando, já esperando pela fatídica notícia.
- Alô? É o senhor Simão?
Ele anuiu com um som gutural fraco, que mal lhe escapou
da garganta.
- Lamento não ter notícias agradáveis para lhe dar. Sua
esposa sofreu um acidente... foi atropelada por um automóvel na
saída da igreja e veio a falecer...
Oh, maldição das maldições! Ao ouvir aquelas palavras,
experimentou uma comoção tão profunda, como se tivessem
arrancado seu coração do peito com um garfo. Ele deixou o telefone
cair e atirou-se prostrado sobre uma banqueta. Simão sabia que
nada mais podia ser feito e sentia-se liquidado. Perdera tudo o que
mais amava na vida, a sua razão de viver, o seu norte. Achava-se
estraçalhado pela dor que o aniquilava, quando olhou para o
abominável relógio, que permanecia deitado sobre sua bancada de
trabalho. No fundo, imaginava que seria inútil destruí-lo, pois o mal
permanece além do suporte físico, além dos tempos. Já ouvira falar
muito sobre essas coisas demoníacas. Então, o velho relojoeiro fez
o que já deveria ter feito há muito. Com os olhos embaçados pelas
lágrimas, ele apanhou o cuco, abriu a porta da loja e simplesmente
o colocou na calçada. Em seguida, trancou-se em sua casa, como
se não desejasse mais ter parte com o mundo cá fora.
Pouco depois, um gaiato que passava por ali viu aquele belo
relógio dando sopa na rua. Aproximou-se dele cheio de curiosidade
e, olhando para os lados, observou que não havia ninguém por
perto. Abaixou-se ligeiro feito um gato, meteu-o debaixo de seu
capote e saiu dali com os passos acelerados, feliz da vida. Não via a
hora de chegar à sua residência para pendurá-lo na parede da sala.
Bem diziam os seus familiares que ele era mesmo um sujeito de
sorte.
Loretta

N icholas estacionou
o carro embaixo de
uma árvore que
deitava grande sombra no jardim e, durante alguns minutos,
permaneceu dentro do veículo, observando a casa deserta. Era,
realmente, um sobrado enorme, muito maior do que ele imaginava.
O velho edifício, pesado e sólido, ainda se mostrava imponente,
apesar dos anos ter marcado suas paredes e telhado com os sinais
do tempo. A grama achava-se alta, pois há muito não era aparada, e
algumas vidraças estavam partidas. Nick, como era chamado
carinhosamente por seus amigos íntimos, desceu do automóvel e
deu alguns passos na direção da varanda. Pensava em seu finado
tio, que ele mal conhecera, mas fizera a delicadeza de lhe deixar
como herança aquele imóvel extraordinário. Dele, sabia apenas que
era um homem solitário, de hábitos morigerados e graves, vivendo
recluso em sua mansão, onde não recebia ninguém.
A porta maciça gemeu de maneira irritante ao ser aberta,
despertando os fantasmas que, porventura, estivessem dormindo ali
dentro. Preciso lubrificar as dobradiças, pensou Nicholas. Um cheiro
forte de bolor e umidade inundou as narinas do rapaz e, tão logo ele
adentrou pela sala, abriu as janelas e correu as cortinas para arejar
o ambiente. O sol despejou seus raios por cima do assoalho de
madeira, lavando o recinto com sua luminosidade típica da
primavera. Havia diversos móveis no interior da casa, todos
cobertos por lençóis brancos, dando a impressão de que o tempo
estivesse hibernando nas entranhas daquele palacete. Um a um,
Nick foi retirando os panos de cima da mobília, acordando sofás,
poltronas, cadeiras, mesas, estantes e espelhos de novo para a
vida.
- Assim está melhor! Exclamou.
Depois, resolveu dar uma olhada geral na residência, pois
ainda não a conhecia. O sobrado possuía dois andares, além de um
sótão. No primeiro piso, ficava o enorme salão principal, sala de
música, sala de jantar, uma sala íntima, um escritório, uma bela
biblioteca com boa quantidade de livros antigos encadernados em
couro, cozinha, despensa e dois ou três toaletes. No piso superior,
localizavam-se os quartos, que eram muitos, cada qual com seu
respectivo banheiro. Enquanto percorria os diversos aposentos da
casa, Nicholas deparou-se com um quadro pintado a óleo, que
retratava o seu falecido tio. Por um momento, permaneceu com os
olhos cravados na pintura, surpreso. Na verdade, chegara mesmo a
assustar-se com o que via. Os traços fisionômicos de seu tio
lembravam deveras as suas próprias feições e, tirando certo ar
austero que possuía o finado, poder-se-ia dizer que ali estava
retratado o próprio Nicholas, trinta anos mais velho.
Após ter retirado sua bagagem do automóvel e comido um
lanche de pão de forma integral que ele comprara numa padaria
antes de chegar ao sobrado, Nicholas começou a fazer uma faxina
na casa, pois havia muito pó por toda parte. Durante a manhã inteira
e boa parte da tarde, o rapaz não fez outra coisa a não ser lavar o
chão dos aposentos, varrer, espanar, bater tapetes, limpar
banheiros, eliminar teias de aranhas e tudo o mais que foi preciso
para deixar a residência habitável outra vez. Por volta das cinco
horas, quando o sol começava a se pôr, deu a tarefa de limpeza por
encerrada e resolveu tomar um banho a fim de se refrescar. Dirigiu-
se a um dos banheiros do piso superior, encheu a banheira com
água e mergulhou seu corpo nu dentro dela. Ali permaneceu
relaxando por longo tempo, até que acabou cochilando.
Subitamente, despertou com a sensação de ter escutado passos
dentro da casa. Seria isto possível ou estivera sonhando? Por
alguns segundos, aguçou os ouvidos, procurando não fazer o menor
ruído para tentar ouvir qualquer coisa de estranho. Nada. Tudo
continuava em silêncio, como se o velho sobrado não passasse de
uma enorme tumba sombria.
O rapaz enxugara-se com uma toalha felpuda que encontrou
dentro de um armário e vestiu-se. Em seguida, resolveu sair para
fazer compras, pois não havia alimentos na casa, e aproveitou para
jantar fora. Nick somente se deu conta de que não havia energia
elétrica na residência, quando ele chegou carregando os pacotes e
foi acender o interruptor da sala. Maldição! O seu primeiro
pensamento foi de que a lâmpada pudesse estar queimada; porém,
como nenhuma lâmpada acendeu nos demais cômodos, chegou à
conclusão de que o fornecimento de energia fora cortado por falta
de pagamento. Com alguma dificuldade, tateando as paredes em
virtude da escuridão, conseguiu chegar à despensa, onde encontrou
velas e fósforos. Tão logo acendeu uma delas, sombras pálidas
começaram a dançar nas paredes e Nicholas sentiu um calafrio lhe
percorrendo a espinha. Embora não acreditasse em assombração
ou almas do outro mundo, aquela casa enorme e silenciosa
causava-lhe arrepios durante a noite. O melhor a fazer era ir dormir.
Subiu as escadas de madeira, cujos degraus começaram a ranger
de maneira macabra. Enquanto caminhava, tinha a sensação
angustiante de que estava sendo observado. Por mais de uma vez,
voltou-se para trás e ficou contemplando a sala vazia lá embaixo,
envolta nas trevas. Por fim, abriu a porta de um dos quartos, enfiou-
se debaixo dos lençóis de uma cama e dormiu feito uma pedra, pois
tinha trabalhado demais naquele dia.
Na manhã seguinte, acordou bem disposto e com uma ideia
fixa na cabeça. Sabia que seu tio era rico e, ao que constava,
sempre fora um homem de hábitos morigerados e parcimoniosos.
Não lhe parecia improvável que existisse, em algum lugar daquele
sobrado, joias e dinheiro escondidos. Por isto, estava decidido a
fazer uma busca por toda parte. Antes, porém, precisava ir à padaria
para comprar pão, pois se achava faminto. Nicholas dirigiu-se até o
seu carro, pisando a grama alta lavada pelo orvalho da madrugada
e sentindo o aroma campestre de flores e mato molhado inundando
os seus pulmões. O ar fresco da manhã deixou-o mais disposto e
ele já mal se lembrava de que, na noite anterior, à luz de velas, o
sobrado herdado de seu tio lhe pareceu um casarão bastante
macabro.
Ao retornar da padaria, tomou um café reforçado e se pôs a
procurar as joias e o dinheiro que imaginava existir ocultos em
algum canto dentro da casa. Naturalmente, começou pelo escritório
de seu tio. A primeira coisa que fez foi retirar os quadros das
paredes, imaginando que algum deles pudesse esconder um cofre
secreto. Equivocou-se quanto a isso. Depois, abriu arcas, remexeu
nas gavetas da escrivaninha, vasculhou as estantes, mas não
descobriu nada de valor. Resolveu então dar uma busca na
biblioteca. Ali permaneceu por mais de uma hora, folheando livros,
pois o dinheiro poderia ter sido guardado entre suas páginas, e
olhando atrás dos velhos volumes. Nada. Só conseguiu mesmo ficar
bastante sujo de poeira.
Subiu as escadas e passou a procurar nos aposentos de
cima. Ao entrar em um dos dormitórios no fundo do corredor,
surpreendeu-se deveras. Só agora ele havia se dado conta de que
se tratava de um quarto de mulher. Havia uma cômoda de mogno
num dos cantos, sobre a qual se achavam diversos frascos de
perfumes e batons. Ao lado, encontrava-se uma penteadeira com
um enorme espelho oval, envelhecido pelos anos. Nicholas abriu o
armário e descobriu em seu interior uma infinidade de roupas
femininas. Por um instante, ele quedou-se perplexo. Quem seria a
mulher que morava ali? Afinal de contas, seu tio era solteiro e não
possuía descendentes, quanto mais, uma filha. Aquele mistério
deixou Nick profundamente curioso.
Foi apenas quando estava revirando de pernas para o ar o
quarto de seu tio, que Nicholas resolveu tal enigma. Dentro do
guarda-roupa, no fundo da última gaveta que ele olhou, havia um
maço de cartas, enlaçado por uma fita amarela. Aquilo lhe chamou a
atenção. O rapaz sentou-se na cama e se pôs a ler uma delas
aleatoriamente. Era uma letra caprichada, caligrafia redonda de
adolescente, e ainda recendia a um leve perfume de flores
silvestres. O conteúdo da carta era banal e não deveria ser muito
diferente de outras cartas escritas por jovens enamoradas. A moça
confessava-se apaixonada pelo seu tio e falava das saudades que
sentia dele e como o seu mundo parecia triste, quando ela estava
longe do amado. Após algumas outras confissões, a garota
assinava: “da sua Loretta”.
Nicholas dobrou a velha carta e a colocou junto das outras,
enlaçando-as com a fita amarela. Em sua mente, os pensamentos
embaralhavam-se confusos. Teria Loretta sido amante de seu tio?
Ele que sempre fora visto pela família como um solteirão solitário e
recluso? Mais do que isso, teria Loretta morado naquele antigo
casarão, no quarto localizado ao fundo do corredor, onde Nick
encontrara tantas vestes femininas? Dominado por essa ideia, o
rapaz regressou àquele dormitório para ver se descobria mais
alguma pista de tal enigma. Abrindo as gavetas da cômoda,
encontrou diversas roupas íntimas, perfumadas por sabonetes que
ali se achavam esquecidos. Olhou novamente o armário, mas não
descobriu nada além de camisolas, saias e vestidos. Pouco depois,
quando o relógio carrilhão lá na sala, que ele pusera para funcionar,
deu meio-dia, Nicholas desceu para preparar o almoço. Só teve o
trabalho de esquentar, pois era tudo comida enlatada. Verdade que
comeu pouco e às pressas. Não porque estivesse sem fome ou a
refeição deixasse a desejar. O fato é que estava muito ansioso para
ler as demais cartas escritas por Loretta. Terminando de almoçar,
lavou o prato e as panelas rapidamente e subiu para o quarto de
seu tio, onde passou o restante da tarde mergulhado naquela
leitura.
Ainda faltava ler algumas cartas, quando começou a
escurecer. Nicholas decidiu tomar banho e se barbear, pois sua
barba já tinha três dias. Enquanto passava a navalha no rosto para
remover a espuma, só conseguia pensar em Loretta, naquela jovem
que parecia tão apaixonada pelo seu tio. Agora sabia muito mais
sobre ela, sobre eles. Já não tinha qualquer dúvida de que aquele
quarto de mulher pertencera à garota, pois a própria confessava em
uma das cartas que se achava muito feliz por, em breve, mudar-se
para o casarão. Quanto tempo viveram juntos ali? Teria a moça
falecido ou ainda era viva? Enleado por estes pensamentos,
Nicholas distraiu-se e acabou se cortando com a navalha. Um fio
vermelho passou a escorrer por entre a espuma do creme de
barbear, descendo por sua bochecha. Enxaguou o rosto e pôs um
pedacinho de papel higiênico sobre o corte. Em seguida, vestiu seu
pijama e decidiu se deitar, pois já estava escuro e ele ainda não
havia resolvido o problema da energia elétrica.
Antes, porém, dirigiu-se ao quarto do seu tio e apanhou as
últimas cartas que ainda não tinha lido. Acendeu uma vela que
colocou sobre o criado mudo ao lado de sua cama, ajeitou o grande
travesseiro atrás das costas e se pôs a lê-las com interesse
redobrado. Subitamente, ao abrir o último envelope, algo caiu no
chão. Nick virou-se para ver o que era e surpreendeu-se ao
constatar que se tratava de uma fotografia. Ele a aproximou da
chama da vela e viu retratada ali uma jovem muito bonita, com
lindos cabelos compridos e olhos claros. No verso, havia a seguinte
inscrição: “Para o meu amor, Loretta”.
Aquela era Loretta! Agora, a garota tinha um rosto para ele,
um rosto extraordinariamente belo, que parecia querer lhe enfeitiçar.
Quando resolveu dormir, por muito tempo permaneceu deitado no
escuro, sem conseguir pegar no sono, pois a imagem da jovem não
lhe saía da cabeça. Só adormeceu após a meia-noite e, como não
podia deixar de ser, sonhou com ela. Loretta vestia-se como uma
camponesa medieval, tendo os longos cabelos loiros unidos numa
trança. Trazia nas mãos uma bilha d´água, que ela acabara de
encher em uma fonte ali perto. O sol brilhava intensamente sobre os
campos repletos de flores e pássaros. A garota caminhava descalça
em uma trilha ladeada por canteiros de rosas e seguia cantando
uma canção popular muito bonita e terna. Ao vê-la assim tão linda e
sozinha, Nicholas achou que seria um bom momento para conversar
com a menina. Por diversas vezes, ele lhe chamou pelo nome, mas
a jovem parecia não querer falar com o rapaz, pois ignorava os seus
chamados. Nick passou a segui-la; porém, quanto mais apertava os
passos, mais distante os dois iam ficando. Por fim, pôs-se a correr,
alcançando-a próximo de um bosque. Quando ele lhe tocou o
ombro, a garota deixou cair no chão a bilha cheia d´água, que se
estilhaçou em centenas de caquinhos. Neste exato momento,
Loretta virou-se de frente para o moço, que levou um susto
violentíssimo. Os olhos dela pareciam ter sido arrancados da face e
podiam-se ver apenas as órbitas vazadas, coaguladas de sangue.
Um grito de horror escapou das entranhas do rapaz, enquanto a
jovem ria de maneira histérica e macabra...
Nicholas acordou com o próprio grito. A sua testa achava-se
úmida de suor e seu peito arfava intensamente em virtude do
sobressalto. Ele sentou-se na cama e acendeu a vela para ver as
horas no seu relógio de pulso que se encontrava dentro da gaveta
do criado-mudo. Três e meia da madrugada. Estava com a garganta
seca e decidiu tomar um pouco de água na cozinha. Desceu as
escadas segurando a vela, que deitava por toda parte um cheiro
enjoado de cera derretida. De repente, quando se aprontava para
regressar ao quarto, começou a ouvir uns ruídos estranhos dentro
da casa. Nick assustou-se deveras, imaginando que o sobrado
pudesse ter sido invadido por ladrões. Durante alguns segundos,
permaneceu em silêncio, aguçando os ouvidos. Não pareciam
passos humanos. Talvez fossem ratos no andar de cima. Dominado
por este pensamento, ele apanhou uma vassoura e, pé ante pé,
subiu as escadas. A vela ia desenhando sombras fantasmagóricas
pelas paredes, contribuindo para aumentar ainda mais o seu estado
de terror. Nicholas foi abrindo uma a uma as portas dos quartos,
mas não encontrou coisa alguma. Na verdade, os ruídos não
vinham dali. Só agora ele percebera que aquele misterioso barulho
provinha do sótão. Com certeza, eram ratos que se abrigavam lá em
cima. Ele deu algumas pancadas com a vassoura no teto e os
ruídos cessaram por completo. Porém, pouco depois do rapaz ter se
deitado, eles voltaram a se manifestar. Nick não conseguiu mais
adormecer e jurou acabar com aquilo de uma vez por todas:
- Inferno! Não perdem por esperar...
No dia seguinte, saiu logo cedo e se dirigiu a uma loja de
rações para animais, onde comprou boa quantidade de veneno para
ratos. Depois, passou numa loja de ferragens e adquiriu uma
lanterna. Chegando ao velho sobrado, Nicholas subiu ao segundo
andar e caminhou até o final do corredor. Ali no teto, havia uma
portinhola que dava acesso ao sótão. Equilibrando-se sobre uma
cadeira, que ele foi buscar num dos quartos, soltou a trava e a porta
se abriu, fazendo com que uma escada desdobrável escorregasse
lá de cima. Nick colocou a lanterna mais o veneno para ratos dentro
de um saco plástico, que segurou com uma das mãos, e se pôs a
escalar os degraus, sentindo o seu coração bater acelerado pela
aventura. Ao entrar no sótão, a primeira coisa que lhe chamou a
atenção foi um odor forte de mofo e coisa velha. Parecia que faltava
ar ali dentro. Como estava muito escuro, o rapaz acendeu sua
lanterna e começou a inspecionar aquele ambiente sinistro. A
primeira vista, não viu nenhum rato. Talvez eles tivessem
pressentido a presença de um intruso e resolveram se esconder em
suas tocas. As paredes eram de tijolos aparentes, o telhado baixo e
o chão coberto por tábuas compridas bastante desiguais. Nicholas
apontou o facho de sua lanterna para diversas partes e notou que o
sótão se achava entulhado com muitos trastes, como garrafas
vazias, latas de tinta, arcas de madeira apodrecida, estantes com
ferramentas enferrujadas e brinquedos muito antigos, como um
cavalinho de pau, talvez do tempo em que seu tio ainda fosse
criança. Ele abriu o pacote com veneno e passou a espalhá-lo por
alguns cantos estratégicos. Após quase ter esvaziado a embalagem,
Nick decidiu descer; porém, percebeu que ao fundo, do outro lado
do sótão, existia uma porta baixa, da altura de um homem mediano
em pé. Seria bom colocar um pouco de veneno também naquele
outro ambiente. Ele dirigiu-se até o local e empurrou devagar a
porta, que se abriu como se tivesse sido soprada por um fantasma.
Ao entrar ali dentro, Nicholas tomou um susto tremendo. A lanterna
começou a tremer em sua mão e suas pernas bambearam. Seus
olhos esbugalharam-se aterrorizados, enquanto sua respiração
havia se tornado ofegante. Deus do céu! Havia ali um caixão!
Naquele momento, inúmeros pensamentos atropelaram-se
em seu cérebro. Estaria vazio ou conteria os ossos de algum
defunto? Seria seu tio que ali descansava seu corpo despido de
vida? Até mesmo ideias mais lúgubres e estapafúrdias iam lhe
acudindo à mente. E se aquele féretro encerrasse um vampiro?
Não, tal ideia era absurda, ridícula. Quando recuperou o fôlego,
resolveu fazer a única coisa que lhe pareceu sensata no momento,
ou seja, destampar o caixão para conferir o que havia em seu
interior. Embora sua alma estivesse crivada pelo medo, Nick reuniu
toda coragem que possuía e levantou a tampa, colocando-a
encostada a uma das paredes. O pavor supremo estampou-se em
sua face, quando ele lançou um facho de luz dentro do féretro.
Cristo Jesus! Havia ali um cadáver! A sua primeira reação foi sair
correndo, mas seus pés pareciam ter sido pregados no assoalho. O
seu coração queria fugir pela boca e grossas bagas de suor lhe
escorriam pela nuca. Estava tão assombrado, que nem percebeu se
tratar de uma jovem. Apenas quando se acalmou, conseguiu prestar
mais atenção no defunto, iluminando-lhe melhor o rosto. Tinha a
impressão de que já conhecia aquela moça de algum lugar. De
repente, algo estalou dentro de seu cérebro e tudo ficou claro como
um dia ensolarado. Era Loretta!
Aquela descoberta deixou-o petrificado. Loretta, a garota
que fora a paixão de seu tio e que o amou deveras, ali se
encontrava como se estivesse apenas adormecida. Por alguns
instantes, Nicholas quedou-se sem mover um único músculo,
enfeitiçado diante de tamanha beleza. A natural jovialidade da
menina atraía-o, seduzia-o, desconcertava-o a tal ponto que ele não
se conteve e tocou-lhe de leve a pele delicada do rosto. Sabia que
se tratava de um cadáver e que ela se achava definitivamente
morta, mas a sua aparência fresca e angélica dava a impressão de
que a moça poderia despertar de um momento para outro. Este era
um dos mistérios que Nick não compreendia. Curiosamente, Loretta
se encontrava em perfeitas condições e até exalava um perfume
doce de flores. Talvez seu tio tivesse mandado embalsamá-la para
conservar o frescor de sua juventude.
Quando o rapaz conseguiu retornar do transe em que tal
surpresa o mergulhara, uma dúvida meteu-se em seu cérebro. Que
fazer com aquele corpo? Deveria enterrá-lo no fundo do quintal ou
comunicar o seu achado à polícia? Afinal, havia um defunto em sua
casa e isto poderia lhe causar problemas. Agora que via a sua
descoberta através de outro ângulo, Nicholas sentia a cabeça
pesada e um vazio no peito. Ele desceu a escadinha, fechou o sótão
e se dirigiu ao banheiro, onde enfiou o rosto na pia, debaixo da
torneira aberta. A água gelada ajudou a recompor os seus
pensamentos. Enquanto se enxugava, teve a impressão de ter visto
Loretta observando-o atrás de si, através do espelho. Nick virou-se
imediatamente, mas não viu nada. Tal incidente ajudou-o a se
decidir. Iria à delegacia mais próxima para contar tudo. Era o mais
correto a ser feito.
Porém, não chegou a consumar o seu intento. Nicholas até
se dirigiu à delegacia e, por mais de uma hora, permaneceu
aguardando a sua vez de ser atendido. Contudo, como havia muita
gente, decidiu ir embora sem comunicar nada a ninguém. Enquanto
regressava para casa, ouvindo música country no rádio de seu
carro, o rapaz ia pensando o que deveria fazer. Deixar a moça morta
no sótão do sobrado é que não parecia uma ideia muito boa.
Enterrá-la no quintal apresentava-se como uma possibilidade
interessante, pois ninguém jamais ficaria sabendo de coisa alguma,
mas certamente isto iria contra a vontade de seu tio. Nicholas
acendeu um cigarro e jogou o palito pela janela. Ajudava a pensar
melhor. Pouco tempo depois, estacionou o seu carro debaixo de
outra grande árvore no jardim. Curiosamente, esta se achava tão
perto da casa, que seus galhos se estendiam acima do telhado. Nick
desceu do veículo decidido que o melhor a ser feito era mesmo
enterrá-la o mais rápido possível.
Pouco antes de escurecer, ele resolveu trazer o corpo da
jovem para baixo. Subiu outra vez ao sótão e caminhou até o local
onde a morta dormia o seu sono eterno. Para clarear um pouco o
ambiente, Nicholas abriu uma janela de madeira que havia ali e os
últimos raios de sol do entardecer invadiram o recinto. Loretta
parecia ainda mais bela e seus cabelos loiros brilhavam
intensamente. O rapaz apanhou-a meio sem jeito e, com alguma
dificuldade, conseguiu descer a escadinha do sótão com ela no colo.
Nick levou-a para o quarto que fora dela e a ajeitou com delicadeza
sobre a cama. Em seguida, procurou no armário um travesseiro e o
pôs debaixo da cabeça da garota. Quem a visse ali, repousando
tranquila, jamais poderia dizer que se tratava de um cadáver.
Pouco antes de ir para a cama, Nicholas apanhou uma vela
e se dirigiu para o quarto de Loretta. O pretexto era lhe dar “boa-
noite”, mas, no fundo, ele queria contemplá-la por mais alguns
momentos, antes de enterrá-la no dia seguinte. Como era bela! No
fundo, estava fascinado por aquela garota extraordinária. Enquanto
a admirava, pensando em como seu tio havia sido venturoso por ter
desfrutado os prazeres que ela pôde oferecer em vida, um
pensamento golpeou-lhe a mente. E se a beijasse? Que sabor
teriam os lábios de uma morta? Pensando nisso, o moço estendeu
as suas mãos e acariciou de leve aqueles seios túrgidos, que
pareciam querer rasgar o tecido do vestido. Então, lentamente, ele
foi aproximando a sua boca do rosto da jovem. De repente, estacou,
apresentando a face congestionada, perplexo. Por um breve
segundo, teve a nítida impressão de que Loretta abrira os olhos. O
susto apanhado ali no escuro foi tão grande, que Nicholas deu um
grito de horror e afastou-se dela imediatamente. O movimento
brusco do seu corpo derrubou a vela, que se achava equilibrada
sobre um pires no criado-mudo. A chama tocou um paninho bordado
debaixo do abajur, dando início a um princípio de incêndio, que o
rapaz apagou rapidamente, com o auxílio de uma toalha de banho
úmida.
Depois disso, seguiu para o seu quarto, enfiou-se debaixo
das cobertas e cobriu a cabeça. A presença daquele cadáver em
sua casa começava a lhe apavorar. No dia seguinte, iria abrir um
buraco no fundo do quintal e enterrar definitivamente Loretta, seu tio
gostando ou não. Durante a madrugada, sonhou com a garota. Ela o
abraçava e o beijava e pedia para se amarem, como se ele fosse o
seu próprio tio. Os seus olhos eram verdes muito claros, seus
cabelos compridos brilhavam feito trigo tostado ao sol e seu hálito
recendia ao aroma doce da framboesa. A jovem tocou-lhe uma das
orelhas com os lábios e sussurrou:
- Não me enterre, meu amor! Se persistir com esta ideia,
terei de matá-lo!
Ao ouvir isto, Nicholas abriu os olhos e viu aterrorizado que
Loretta se encontrava de pé, encostada a sua cama, segurando
uma faca com a lâmina ensanguentada. Aquela visão macabra
encheu-lhe de pavor, de maneira que Nick começou a gritar e gritar
e gritar e tanto gritou que acabou despertando de seu pesadelo.
Com a respiração ofegante e as mãos trêmulas, sentou-se na cama
e acendeu a vela sobre o criado-mudo. Olhou ao redor. Nada. Nem
sombra de fantasmas. Às vezes, os sonhos parecem tão reais,
pensou. Mesmo assim, para tirar qualquer dúvida, levantou-se e se
dirigiu ao dormitório da garota, para se certificar de que ela
continuava deitada onde a deixara. Pé ante pé, caminhou pelo
corredor escuro e, durante alguns segundos, hesitou se deveria
levar adiante aquela ideia um tanto insana. Respirou fundo e seguiu
em frente. Encostou o ouvido na porta, mas não ouviu ruído algum.
Abriu-a lentamente. Loretta permanecia na mesma posição, como
se estivesse dormindo. Um pouco aliviado, o rapaz regressou para
sua cama. Afinal, tudo não passara de um terrível pesadelo.
Durante o restante da noite, voltou a sonhar com ela. Loretta
estava em uma estação de metrô, deserta e gelada. Nicholas descia
por uma escada rolante e a via em pé na plataforma, olhando aflita
para o túnel vazio, aguardando a chegada do metrô. O rapaz
aproximou-se da moça e ela lhe disse que queria fazer amor em
cima de um daqueles bancos compridos de cimento. Enquanto se
despia, um mendigo apareceu comendo um lanche e foi urinar sobre
os trilhos. Loretta não se importou com o sujeito e continuou
abraçando Nick. Porém, confiou-lhe num murmúrio que ele só
alcançaria a ventura suprema de possuí-la, se desistisse da ideia de
enterrá-la. O moço respondeu que isto era impossível. Neste
instante, o metrô chegou à plataforma e ela empurrou-lhe diante
dele. Imediatamente, Nicholas acordou, banhado em suor.
O sol já havia despontado no céu, quando ele tomou seu
café reforçado. Achava-se decidido a abrir uma cova no fundo do
quintal e sepultar de uma vez por todas aquele cadáver que estava
lhe atormentando a existência, deixando-o louco. Quando subira ao
sótão pela primeira vez, Nicholas reparou que seu tio guardava ali
diversas ferramentas, inclusive uma velha pá enferrujada, entre
outros tantos trastes. Apanhou-a logo após ter se barbeado e seguiu
para o quintal, decidido a realizar aquela tarefa. Escolheu um bom
lugar embaixo de uma grande árvore e se pôs a cavar. O trabalho
não era fácil e durou muito mais tempo do que Nick imaginava. Os
seus músculos doíam, o suor escorria através de seu pescoço, indo
empapar a camiseta branca, e seu corpo sentia um cansaço terrível.
Mesmo assim, ele não desanimou e permaneceu cavando o dia
inteiro, parando apenas para beber água de vez em quando numa
torneira que havia no jardim e comer um lanche de atum que
preparou durante a hora do almoço. Por volta do final da tarde,
nuvens negras começaram a se amontoar pelo céu, anunciando
uma tempestade. A cova ia crescendo cada vez mais, enquanto
uma montanha de terra foi se acumulando ao seu lado. A certa
altura, enquanto Nick parou um instante para retomar o fôlego e
enxugar a testa com a manga da camisa, algo inesperado
aconteceu. Ele olhou para uma das janelas do primeiro andar e teve
a nítida impressão de ter visto um vulto espiando-lhe atrás da
cortina. Teria Loretta retornado dos campos da morte para vir
assombrar os vivos? Imediatamente, jogou a pá no chão e saiu
correndo em direção ao sobrado. Estava decidido a esclarecer
aquele mistério de uma vez por todas. Quando abriu a porta da sala,
ouviu ruído de passos subindo correndo as escadas.
- Loretta! Gritou apavorado.
Não obteve resposta. Apenas ouviu uma porta batendo no
andar de cima. Teria sido o vento? O rapaz escalou velozmente os
degraus, vencendo-os de três em três, e entrou aflito no quarto da
garota, que se encontrava com a porta fechada. Estacou a alguns
passos da cama, perplexo, ofegante. Nicholas podia jurar que a
posição do corpo dela havia mudado um pouco de lugar sobre o
colchão. As pernas pareciam agora mais afastadas e os cabelos um
tanto revoltos. Seria possível uma coisa desta? Com mil demônios!
Loretta havia caminhado pela casa! Ou tudo não passaria de fruto
da sua imaginação perturbada em virtude dos seus nervos
abalados? Apenas para tirar a dúvida, Nick tomou-lhe o pulso e
constatou que não havia pulsação alguma. Talvez, tenha sido todo o
sol que apanhei na cabeça, pensou. Uma coisa era certa. Aquele
cadáver não ficaria mais na casa um minuto além do necessário. O
rapaz dirigiu-se até a cozinha e bebeu um copo de água com açúcar
para se acalmar. Depois, voltou ao quintal e se pôs a cavar mais um
pouco.
Já havia anoitecido, quando ele terminou de abrir a cova.
Ventava bastante, relâmpagos arrebentavam no céu por todos os
lados e os primeiros pingos de chuva começavam a cair. Nicholas
dirigiu-se ao sótão para buscar o caixão. Evidentemente, teve
grande dificuldade para conseguir trazê-lo até o quintal. Não foram
poucos os esbarrões que deu com ele na escada e também em
portas e paredes, arranhando o verniz brilhante da madeira em
diversos pontos. Agora, a chuva havia se tornado tempestade, mas
ele estava decidido a ir até o fim com aquilo. Após colocar o féretro
dentro do buraco, Nick subiu ao quarto de Loretta e a apanhou no
colo. O seu corpo estava todo encharcado e seus sapatos cheios de
barro. Por onde passou, o piso de madeira ficou marcado com
vestígios d´água e lama. Dirigiu-se correndo até o fundo do quintal,
deitou Loretta ao lado da cova e pulou dentro dela. Em seguida,
apanhou a garota novamente, meteu-a no interior do caixão e o
fechou. Ali permaneceu por um bom tempo, cobrindo o buraco.
Assim que terminou o trabalho, entrou em casa e só então notou
toda a sujeira que havia feito. Para não aumentá-la ainda mais, tirou
os sapatos cobertos de lama, despiu-se e atirou toda a roupa suja
no tanque. Limparia tudo amanhã. No momento, pensava apenas
em tomar um banho, gelado que fosse, comer alguma coisa e ir se
deitar.
Porém, enquanto estava deitado na banheira, relaxando
com os olhos fechados, Nicholas ouviu o ruído de passos subindo
as escadas. Aquilo o encheu de terror e seu coração começou a
bater enlouquecido. No mesmo instante, saiu do banho, amarrou
uma toalha em torno da cintura e se pôs no encalço de quem quer
que fosse. Quando saiu do banheiro, escutou um barulho de porta
batendo e teve a certeza de que alguém estava se escondendo
dentro da casa. Pensou ter visto um vulto passando no final do
corredor escuro e, por isso, regressou ao quarto para apanhar um
revólver que possuía, embora, em seu íntimo, imaginava que ele
seria inútil. Abriu a porta de todos os dormitórios, mas não descobriu
nada. A criatura só poderia ter se escondido no sótão! Aflito e
resfolegante, Nick abaixou a escadinha e subiu por ela. A cada
passo que dava, ouvia a madeira do assoalho gemendo debaixo de
seus pés. Embora estivesse bastante escuro, ainda podia se
enxergar alguma coisa no meio das sombras. Vasculhou todos os
cantos, mas não encontrou ninguém. Subitamente, observou que a
porta que dava para o ambiente onde descobrira o caixão de Loretta
se encontrava encostada. Teria ele a fechado, quando viera buscar
o féretro? Dominado pelo terror, empurrou-a com a mão trêmula. A
porta rangeu nos gonzos enferrujados e Nicholas entrou ali com o
coração batendo desesperadamente dentro do peito. Apontou o
revólver para ambos os lados do recinto vazio. Então, constatou
assombrado que a janela de madeira estava aberta, balançando de
forma macabra ao sabor do vento. Havia se esquecido de fechá-la?
Em seu íntimo, tinha certeza de que era Loretta quem acabara de
sair por ali. Espremeu-se através da janela e, com todo cuidado,
subiu no telhado. A noite achava terrivelmente escura e a
tempestade continuava caindo de maneira impetuosa. Pé ante pé,
Nick caminhou na direção do outro lado do telhado, que ficava
parcialmente encoberto pelo sótão. De repente, ele sentiu algo
como uma garra tocando-lhe de leve o pescoço e os ombros por
trás. O susto que levou foi tamanho, que o rapaz quase teve um
ataque fulminante do coração. Virou-se de costas desajeitadamente
e disparou três tiros na escuridão. Desgraçadamente, um de seus
pés resvalou no telhado escorregadio e ele perdeu o equilíbrio,
precipitando-se lá de cima no exato momento em que um relâmpago
lhe mostrava o galho de árvore que tocara as suas costas. Enquanto
caía para a morte, pois quebraria o pescoço, teve a nítida impressão
de ver Loretta sorrindo atrás de uma das janelas do sobrado.
Criaturas da escuridão

A cordou sentindo
uma dor terrível pelo
corpo e a cabeça
pesada, como se fosse explodir. Olhou para os braços e viu que
seus pulsos sangravam no local onde as cordas estavam
amarradas. Baixou os olhos. Seus tornozelos também se achavam
presos por grossas cordas, bem como o seu pescoço. Por alguns
momentos, debateu-se feito um peixe que acabou de ser pescado,
ainda fincado num anzol, com esperanças de se livrar daquelas
amarras que o atavam a argolas de ferro na parede de pedras. Tudo
em vão. O esforço só fez aumentar a dor que ele sentia.
Quando serenou um pouco o espírito, procurou entender o
que estava acontecendo. Não se lembrava como tinha vindo parar
ali, muito menos conseguia imaginar o motivo pelo qual o
mantinham preso. Lentamente, seus olhos começaram a se
acostumar melhor com o recinto sombrio e sinistro daquela
masmorra. Do outro lado, existia uma tocha ardendo na parede, que
iluminava um pouco o calabouço. Um cheiro fétido de urina e
excrementos exalava por toda parte e viam-se ratazanas e baratas
correndo pelo chão de pedras úmidas. Ao longe, um ruído irritante e
quase hipnótico de alguma coisa parecida com um motor, zumbia
numa espécie de assobio contínuo. O que poderia ser aquilo? Na
certa, indicava a presença de pessoas ali por perto.
Subitamente, ele olhou para um dos lados e constatou,
estarrecido, que não se encontrava sozinho. Pouco adiante, achava-
se amarrada como ele uma mulher com pouco mais de vinte anos.
Era morena e trazia a pele e os cabelos sujos. Estava vestindo
apenas um tipo de túnica esfarrapada e encardida, indicando que a
infeliz deveria estar presa ali há muito tempo. Contemplou a sua
própria túnica larga, única peça de vestuário que lhe cobria o corpo,
e notou que ela parecia bem mais limpa e sem rasgos, embora
existissem manchas escuras de sangue em algumas partes.
Indicaria que ele teria lutado contra alguém? Puxando a túnica um
pouco de lado, observou que havia cicatrizes em seu tórax e ventre.
Teria sido torturado?
O seu impulso seguinte foi tentar estabelecer comunicação
com a mulher que parecia resignada em seu canto, olhos mortiços
de quem havia se entregado e não possuía mais forças para lutar.
Ele acenou-lhe com um dos braços e bradou:
- Ei, moça, onde estamos? Por que estão nos mantendo
presos aqui?
A jovem ergueu a cabeça e encarou o companheiro sem
nada responder. A sua face encovada apresentava fundas olheiras e
marcas de lágrimas secas escorridas pelas bochechas. Como ela
permanecia calada, o homem insistiu:
- Diga-me, mulher, por que estamos presos nesta
masmorra?
Não houve resposta. Ela virou o rosto de lado e ficou
observando a pesada porta de madeira que havia encravada em
uma das paredes de pedra. O calor escaldava e aquele ambiente
abafado e úmido fazia os corpos suarem dentro das túnicas. Não
dava para saber se era noite ou dia e ele só se lembrava de estar
num bar do vilarejo, bebendo cerveja e discutindo qualquer coisa
com um sujeito chamado Jack Scott. Depois disso, não se
recordava de mais nada e não fazia a mínima ideia de como tinha
vindo parar ali.
Subitamente, o motor parou de assobiar. A mulher pareceu
ficar ansiosa e tornou-se um tanto irrequieta, dando passos agitados
para os lados e para frente, o tanto quanto as cordas permitiam.
Parecia um bicho acuado diante do predador. O silêncio tomou
conta do calabouço e só se ouviam pingos d´água vertendo do teto
de pedra sobre uma poça. De repente, ele escutou passos do lado
de fora, mas tão leves, que pareciam deslizar sobre flanela. Sentiu o
seu coração acelerar dentro do peito e um calafrio gelado lhe
escorreu pela coluna cervical. Grudou os olhos na porta, bastante
aterrorizado. Pouco depois, ouviu alguém enfiar uma chave na velha
fechadura e correr a tranca. No mesmo instante, observou a porta
se abrindo com um gemido funéreo e, mais uma vez, tentou se livrar
das cordas que o prendiam.
A visão que teve assustou-o tremendamente. Uma criatura
encapuzada, coberta da cabeça aos pés por uma espécie de
cobertor grosso, rastejou lentamente em sua direção. Não dava para
lhe ver as feições, mas pelo seu talhe se inferia que poderia ser
qualquer coisa, menos um ser humano. O que lhe chamou mais a
atenção foi que o monstro possuía dois pares de braços muito finos,
marrons, cobertos por um tipo de carapaça lustrosa. A criatura
colocou diante dele um prato de barro e, metendo uma concha
dentro de um pequeno caldeirão que trouxera, despejou algo em
forma de papa que lembrava mingau. Em seguida, encheu uma
caneca de lata com água de uma bilha. Feito isso, dirigiu-se para o
local onde a moça se achava presa e repetiu a operação. Depois,
saiu silenciosamente, correu a tranca e fechou a porta com a chave.
O motor voltou a assobiar aquela melodia irritante e
macabra. Aflita, a jovem aproximou-se do prato e começou a
devorar todo o seu conteúdo, feito uma cadela que há muito não via
comida. Imediatamente, ele inclinou-se, apanhou o prato e se pôs a
comer a papa. O sabor era incrivelmente ruim. Aquele mingau
parecia ter sido feito com pus, mas ele comeu tudo, pois se achava
com uma fome de mamute. Teve certa dificuldade em segurar o
prato, uma vez que as cordas que amarravam os seus braços
limitavam-lhe os movimentos e só lhe permitiam chegar até certo
ponto. Depois, pegou a caneca e bebeu a água suja, água que
certamente fora colhida do chão por aquela criatura hedionda.
Saciada a fome, ele tentou novamente se comunicar com a
jovem, que agora o contemplava com olhos curiosos.
- Moça, quem são estes seres horripilantes?
Dessa vez, ela respondeu, mas numa língua
incompreensível. Evidentemente, ele não compreendeu nada, mas
chegou à conclusão que ela também não sabia coisa alguma. Falou
algo mais e começou a erguer um pouco a sua túnica. Em seguida,
agachou-se e se pôs a fazer as suas necessidades. Não havia outra
forma. Agora ele tinha certeza de que ela se encontrava ali há
muitos dias, pois a área ao redor da jovem se achava entulhada de
fezes secas.
Ele perdeu a conta de quantos dias se passaram. Já não
mais suportava aquele sofrimento terrível e, se pudesse, teria dado
cabo de sua vida. Achava-se esgotado, sem forças, sem vontade de
viver. O ritual era sempre o mesmo. Uma vez por dia, o motor
parava de assobiar, uma criatura entrava e lhes dava comida.
Depois disso, mais nada, nenhum contato. O que aqueles monstros
queriam com eles? Talvez fossem parte de alguma experiência ou,
quem sabe, como no conto infantil de João e Maria, desejavam
engordá-los para os devorar. E o que seria aquele maldito motor,
que sempre parava de assobiar, quando uma das criaturas vinha
lhes trazer a miserável refeição?
Um dia, logo após ele ter acordado, aconteceu algo
surpreendente. Não sabia como, mas a mulher havia conseguido
soltar das cordas um de seus braços. Aquilo poderia ser a chave
para escaparem dali. Por um momento, pensou que também ele
pudesse se livrar e debateu-se furiosamente até seus pulsos
sangrarem. Tudo inútil. Continuava muito bem amarrado. Por sua
vez, a garota tentava, de todas as formas, com a mão livre e com os
dentes, soltar o outro pulso. A sua luta foi extraordinária e sem
descanso. Ela gemia, arfava e guinchava de maneira alucinada até
que, finalmente, conseguiu liberar o outro braço. Com ambos soltos,
pôde desamarrar todos os nós das cordas sem muita dificuldade e,
em pouco tempo, havia escapado delas.
A sua primeira reação foi correr até a porta para ver se
conseguia fugir dali. Inútil, estava trancada por fora, como de
costume. Ele a observou ansiosamente durante todo esse tempo,
até que bradou:
- Ei, moça, venha me soltar.
A jovem o contemplou como se não tivesse compreendido
uma única palavra e respondeu em sua língua enviesada. Não se
entendiam. Sem perder um único segundo, pois o motor poderia
parar de assobiar a qualquer momento e uma das criaturas ali
entraria a fim de lhes trazer a refeição, ele fez um gesto, indicando
as cordas, para que ela o libertasse. Isto a garota compreendeu e se
pôs a executar a tarefa. Levou quase dez minutos para lhe soltar os
pulsos, pois os nós estavam muito bem apertados. Depois disso, ele
mesmo desamarrou seu pescoço e suas pernas.
Enfim, achavam-se livres. Porém, ao mesmo tempo,
continuavam presos no calabouço escuro. Sabiam que a única
oportunidade de escaparem dali seria quando um daqueles seres
monstruosos viesse para lhes trazer comida. Haveria muitos deles?
Pelo menos, tinham contato com apenas um, se é que se tratasse
do mesmo indivíduo. Talvez fosse possível dominá-lo, atacando-o
de surpresa. Esse era o plano. Ele explicou com gestos para a
garota que a sua ideia era prender aquela criatura medonha assim
que ela abrisse a porta, mas não teve certeza se ela havia
compreendido tudo. Por horas, ficaram aguardando. Ele achou
melhor apagar a pequena tocha que iluminava parcamente a
masmorra, pois acreditava que, dessa forma, a criatura não os
surpreenderia de imediato, ao abrir a porta. Apanhou a tocha com
uma das mãos e a apagou numa poça de água suja. Uma escuridão
completa tomou conta do ambiente e, tateando no escuro,
colocaram-se junto à pesada porta de madeira.
Finalmente, o motor parou de tocar aquela melodia lúgubre.
Os dois achavam-se muito tensos. Uma agonia terrível inundou-lhe
o espírito e bagos de suor gelado escorriam-lhe pelas têmporas.
Seria agora ou nunca. Fizeram o máximo de silêncio e ouviram
aqueles passos que pareciam rastejar com mocassim feito com sola
de corda. Em seguida, perceberam que a criatura colocara a chave
na fechadura e correra a tranca. No exato momento em que o
monstro começou a abrir a porta, mal conseguindo entrever uma
pequena fresta, eles agarraram-na pela lateral e se puseram a puxá-
la com todas as forças que possuíam. A ideia não era bem essa,
mas foi o que o nervosismo do momento permitiu. Ao ser apanhado
assim de surpresa, a criatura largou toda tralha que trazia ali mesmo
e se pôs a correr pelo corredor, lançando grunhidos guturais
incompreensíveis, certamente para alertar seus companheiros.
Eles abriram a pesada porta da masmorra totalmente e
constataram que ali existia um corredor comprido e sinistro. Não
podiam perder um segundo sequer. A garota tropeçou sobre a
panela que continha a papa, espalhando-a sobre uma de suas
pernas e se pôs a correr para o lado oposto ao que o monstro
seguira. Ele meteu-se no encalço dela e os dois iam tão próximos e
aflitos, que mais de uma vez um quase tropeçou no outro. O túnel
parecia muito comprido, estreito e com teto bastante baixo, podendo
facilmente ser tocado com as mãos. Certamente, as criaturas o
haviam escavado naquele barro úmido. Se dessem sorte, muita
sorte, aquela galeria escura e lúgubre os conduziria para a
liberdade.
Os dois suavam em bicas e resfolegavam terrivelmente, pois
o ar ali dentro era muito rarefeito. Tinham dificuldade para respirar,
fazendo-o com a boca aberta e de forma aflitiva, como se os
pulmões fossem escalar suas gargantas a qualquer momento. A
certa altura, chegaram a uma bifurcação e o túnel se dividiu em
dois. A garota, que ia à frente, tomou o caminho da esquerda,
enquanto que ele acabou seguindo pela direita. Correu cerca de
trinta metros e parou, imaginando que seria melhor e mais seguro
não se separar da jovem. Voltou atrás e pegou a outra bifurcação,
mas já não mais podia ver a moça, uma vez que a iluminação ali era
nenhuma. Apenas ouvia os passos dela golpeando o chão de barro
já muito distante. De repente, escutou um grito lancinante de horror
e o ruído dos passos cessou. Ele também parou de correr e
permaneceu em silêncio, mão no ouvido, procurando distinguir
qualquer som.
Por breves instantes, não escutou mais nada. Depois,
guinchos tenebrosos e urros de dor passaram a encher aquele
ambiente abafado. Deus do céu, as criaturas haviam apanhado a
garota! Ela gemia, chorava e berrava desesperadamente, enquanto
sons de mandíbulas mastigando ossos chegavam também a seus
ouvidos, como quem devora biscoitos crocantes. Que ele podia
fazer pela jovem contra seres tão poderosos? Nada, absolutamente,
nada. Pouco durou a agonia dela, pois logo não se escutava mais a
sua voz, apenas ruídos de carnes sendo chupadas pelos monstros.
Ele teve a sensação de que também não escaparia
daquelas criaturas pavorosas e, por alguns segundos, ficou
pensando no destino funéreo que o aguardava. Ser devorado vivo
por criaturas da escuridão, não conseguia imaginar morte mais
horrível e dolorosa. As suas pernas tremiam, o seu coração batia
enlouquecido dentro do peito e ele sentia uma fraqueza enorme por
todo o corpo. Mas precisava lutar pela sua vida! Quando conseguiu
recuperar-se um pouco do terror que o dominava, saiu correndo e
regressou ao túnel da direita. Sabia que ainda tinha uma boa
vantagem para aqueles monstros que haviam devorado sua
companheira de masmorra e o seu maior medo era deparar-se com
outra leva de criaturas pela frente. Correu por mais de cinco minutos
e o túnel parecia não acabar nunca, como se ele estivesse dentro
de um imenso formigueiro. Tão logo parou um pouco para recobrar
o fôlego, escutou ruídos medonhos atrás de si. Eram os monstros
que vinham para devorá-lo!
Imediatamente, pôs-se a correr, já quase sem forças. Ia
tropeçando, cambaleando, arrastando-se o mais rápido que podia. À
medida que avançava, tinha a absoluta certeza de que aqueles
seres infernais iam diminuindo a distância, pois os seus grunhidos
tornavam-se mais intensos. A qualquer momento, esperava receber
o toque de um braço pelas costas, ser agarrado por eles e
devorado. Olhou para trás e viu que vinham com tochas e eram
muitos. Apressou o passo o mais que pôde, embora seus músculos
doessem e suas pernas quase já não respondiam. Quando se
achava esgotado e prestes a desistir, viu uma pequenina luz
brilhando adiante. O que seria? Reuniu as últimas forças que
possuía e, desesperado, acelerou ao máximo a corrida. Os
monstros haviam retirado boa parte de sua vantagem e tinham
diminuído muito a distância que os separava. Quanto mais ele
corria, mais a luz aumentava de tamanho. Mais as criaturas dele se
aproximavam. Era uma luta inglória e parecia fadada à derrota.
Finalmente, ele chegara ao final do túnel. Havia ali um
pequeno orifício no alto da parede, por onde um raio de sol entrava
e ia iluminar parte do chão úmido de terra. O buraco era minúsculo,
mas o bastante para passar um homem por ele. Sem perder tempo,
conseguiu trepar ali e passou a se espremer pela cavidade.
Alucinadamente. Agora, as criaturas se achavam a menos de dez
metros de distância. No exato segundo em que um deles esticou
sua garra tentacular para prendê-lo, ele recolheu o seu pé e saltou
lá do alto para a desejada liberdade.
Lá embaixo, o oceano azul formava uma pequena baía. Ele
mergulhou de cabeça e observou o espelho das águas se
aproximando de seu rosto. Quando caiu no mar, nadou rapidamente
para a outra margem e se escondeu por entre as árvores da
floresta. Estava esgotado. Sentou-se sobre uma pedra e ali
permaneceu por poucos minutos, recuperando o fôlego. Queria
descansar; porém, os monstros poderiam aparecer a qualquer
momento e ele achou mais prudente sair dali. Meteu-se pelos matos
densos da floresta e caminhou por mais de duas horas, sem destino
certo, apenas seguindo a vontade de suas pernas.
O sol já havia se posto, quando ele chegou a uma pequena
aldeia. Havia poucas casas e quase ninguém pelas ruas. Precisava
de ajuda e decidiu pedir socorro para a primeira pessoa que
encontrasse. Ao dobrar uma das esquinas, viu uma mulher gorda, já
de certa idade, carregando um pacote de compras. Ele correu até
ela e lhe suplicou:
- Senhora, ajude-me, por tudo que lhe é mais sagrado!
A mulher contemplou-lhe a túnica imunda e o fitou
horrorizada. Ele explicou-lhe resumidamente tudo o que sofrera e
dissera que precisava de um lugar onde passar a noite. A velha
apiedou-se dele e lhe disse que poderia ficar esta noite em sua
casa. Havia um quarto de hóspedes vazio e seria uma honra
recebê-lo.
- Agradeço-lhe muito a gentileza. Salvou a minha vida.
Seguiram calados até a casa dela. Tão logo chegaram, a
mulher apanhou uma roupa limpa do marido e lhe entregou,
dizendo:
- Suba para tomar um banho. Daqui a pouco, servirei o
jantar.
Ele encheu a banheira com água morna e mergulhou em
seu interior. Há quanto tempo não relaxava, tranquilo, gozando
satisfeito o prazer de um bom banho! Ali permaneceu por longo
tempo, refletindo como havia tido sorte em escapar daquela
masmorra nefanda. Quem seriam tais criaturas abomináveis? Não
tinha mais importância. Agora estava livre, pronto para regressar a
sua casa, para a sua vida antiga.
Enquanto ele se banhava, a velha havia instruído o filho
para que fosse chamar seu marido na taverna da aldeia, onde
costumava beber cerveja com os amigos todas as tardes. Quando
ele saiu do banho e veio até a sala, encontrou ali a mulher falando
baixo com um homem estranho. Logo, a esposa fez as devidas
apresentações. Ele agradeceu muito a hospitalidade e começou a
narrar a sua fantástica história para o sujeito, que o ouvia calado. A
anciã retirara-se para a cozinha, talvez para preparar a comida.
Subitamente, ele calou-se, aterrorizado, dominado por um pavor
extremo, tomado por um susto formidável, que lhe gelou a espinha.
Aquele maldito motor! Aquele maldito motor começara a assobiar a
sua lutuosa cantilena em algum lugar ali por perto! A sua voz travou-
se na garganta e ele não conseguiu dizer mais nada. O homem
levantou-se muito naturalmente, abriu a porta da casa e disse para
os que chegavam:
- Ele está aqui, entrem!
E sorrindo, encostou-se de lado na parede, para lhes dar
passagem.
O morto-vivo

V ou lhes contar um
caso assombroso e
verdadeiro. Hoje, faz
dez anos que morri e, ainda assim, continuo habitando o mundo dos
vivos. Não, vocês não ouviram mal. Por que essas caras de
espanto? Todos encontrarão a sua hora um dia e a minha já chegou.
Não se assustem, sou o mesmo camarada de sempre. A única
diferença entre nós é que eu já estou morto, enquanto que cada um
de vocês aguarda a sua vez de mergulhar naquele poço negro e
desconhecido. Não acreditam? Apertem a minha mão, vocês verão
que ela está fria como uma barra de ferro. Se ainda tiverem alguma
dúvida, encostem o ouvido no meu peito. Um dia, dentro dele bateu
um coração e hoje só é possível ouvir um vazio macabro ecoando
em silêncio feito um abismo eterno. Ruggiero, sente-se mais um
pouco. Para que a pressa? Ainda é cedo e não há nada lá fora que
valha mais do que uma boa história dos mortos. Além do mais, a
chuva continua caindo com violência e você pode apanhar um
resfriado. Taverneiro! Ô, taverneiro! Traga mais uma garrafa de rum,
que a bebida hoje é por minha conta. Afinal, não é todo dia que um
defunto reencontra os amigos. Este ambiente escuro e enfumaçado
me recorda os anos da minha juventude. Ah, tempos ditosos e
queridos! Os mortos também sentem saudades. Arnold, não me
oferece um de seus cigarros? Obrigado! O fumo ajuda meu cérebro
a raciocinar melhor. Somos só nós seis e este maldito taverneiro
que tem o péssimo costume de misturar água ao vinho. Sete
pessoas numa bodega imunda, isoladas do resto do mundo por esta
tempestade torrencial. Sete almas miseráveis, sendo que uma delas
já está condenada a padecer para sempre nas fornalhas do inferno.
Não peço comiseração de ninguém, pois eu sabia bem o que estava
fazendo, quando aceitei os termos do acordo. O que vou lhes
contar, por mais terrível e assustador que possa parecer, serve
apenas para passar o tempo e divertir nossos espíritos
embriagados. Vamos encher mais uma vez os copos...
Pois é uma história de amor que vou lhes contar. Não um
romance qualquer, mas o maior caso de amor que já existiu sobre
esta terra ungida de flores e estrume. Alguns de vocês podem achar
que a morte me deixou com uns ressaibos de megalomania ou que
estou apenas fazendo estilo para acender o pavio da curiosidade
que vejo em seus rostos. Lembrem-se, em geral, os mortos são
serenos e comedidos por natureza e eu não fujo à regra. A verdade
é que Romeu algum jamais amou tanto quanto eu amei e nenhuma
Julieta mereceu ser tão amada, quanto esta que chamarei de
Caroline, para lhe preservar a verdadeira identidade.
Não me perguntem em que rua da cidade nossos olhos
tropeçaram uns nos outros pela primeira vez. Creio que foi na
infância ou pouco depois. Seja como for, era como se eu
conhecesse Caroline desde sempre. Certo mesmo, só posso afirmar
que ela era a mais linda criatura que já vicejou debaixo das arcadas
do sol. E também a mais graciosa, a mais formosa, a mais
exuberante fêmea já lapidada pelos cinzéis divinos, onde Deus
mostrou o que é ser Deus. Desculpem os adjetivos babados, é que
o amor vai muito além da morte. E eu idolatrei esta mulher como
uma autêntica deusa.
Lembro-me de tê-la visto, certa vez, saindo da biblioteca
com algumas amigas. Vestia um vestidinho xadrez sem graça,
desses de escola, que descia abaixo do joelho, mas que nela caía
tão bem quanto numa princesa de conto de fadas. Foi quando
percebi que já não poderia mais viver sem aquela garota. Por vários
meses, passei a frequentar a biblioteca, sem jamais a ter
encontrado novamente. Eu a amava de maneira ensandecida,
doentia. Amava uma imagem, uma lembrança que vinha da infância
e que, depois disso, eu só tinha visto mais uma vez. Durante anos,
permaneci agrilhoado a este amor brutal como um condenado numa
masmorra sombria. Até que um dia, os conchavos divinos
colocaram Caroline outra vez em meu caminho. Gelásio, meu velho,
vejo que seu copo está vazio. Empurre-o para cá... isso! Deixe-me
cobri-lo com rum. Aí está! Brindemos ao amor e aos mortos...
Como eu ia dizendo, um dia, esses deuses chacoteiros que
se refestelam nas moitas dos céus calharam de entrelaçar as linhas
de nossos destinos. Alguns de vocês talvez ainda se lembrem do
Giácomo. Num sábado de tarde, eu e ele combinamos de ir a uma
sorveteria no centro da cidade. Havíamos acabado de fazer nosso
pedido e nos dirigíamos para uma mesa, quando ouvimos uma voz
dizendo: “Olá, Giácomo, não conhece mais as amigas?” Olhei para
trás e quase tive uma síncope. Meu coração transformou-se numa
britadeira e creio que fiquei mais gelado do que o sorvete que trazia
nas mãos. Ali estava a garota dos meus sonhos, ao lado da amiga
de Giácomo. Elas nos convidaram para sentar e ficamos
conversando com as duas por mais de uma hora. Verdade seja dita
que nunca o tempo me pareceu escorrer tão veloz como naqueles
doces momentos em que estive ao lado de minha amada. Depois,
Giácomo as convidou para dar um passeio em seu carro
conversível. Sentei no banco de trás, junto de Caroline, e eu me
sentia como se tivesse encontrado as chaves do céu. Ela mostrava-
se bastante interessada em tudo que eu dizia e ria com aqueles
lábios escarlates que pareciam prometer prazeres infinitos. Pouco
antes de anoitecer, levamos as duas jovens para suas casas e
combinamos nos encontrar no dia seguinte para um piquenique.
Não dormi aquela noite, tamanha era a minha ansiedade, o meu
desejo de me encontrar outra vez com Caroline. Durante toda a
madrugada, fiquei recordando cada uma das palavras que ela me
dissera ao longo da tarde, procurando descobrir os silêncios latentes
nas entrelinhas. Meus caros, vocês também já tiveram vinte anos e
sabem bem como funciona o coração dos enamorados. Por volta
das dez horas, apanhamos as meninas e nos dirigimos para o
campo. Como não podia deixar de ser, Caroline achava-se
estupendamente linda enfiada em seu shortinho rosa, exibindo
pernas bronzeadas que deixavam até os anjos tontos. Tão logo
chegamos a um local que nos pareceu adequado, embaixo de uma
árvore robusta, estendemos uma toalha sobre o chão e começamos
a tirar de dentro da cesta todas as iguarias trazidas. Havia frutas,
doces, bolos e pães de forma com queijo. Logo, as formigas
apareceram para almoçar conosco, mas nem isso atrapalhou o
nosso divertimento. Algum tempo depois, convidei Caroline para dar
um passeio e deixamos Giácomo e sua garota para trás. Na
verdade, eu queria me livrar deles, para ficar mais à vontade com a
minha amada. Caminhamos durante uns vinte minutos pela
estradinha de terra, até que ouvimos o ruído de água caindo e
entramos num bosque. Nunca, o aroma das folhas das árvores me
pareceu tão intenso, fresco e delicioso. Pouco adiante, havia uma
cachoeira despencando sobre um pequeno lago e algumas pedras.
Caroline ficou maravilhada diante daquela paisagem extraordinária
e, talvez porque tivesse bebido mais vinho do que deveria durante o
almoço, indagou:
- Vamos entrar?
Não esperou pela minha resposta e já começou a se despir.
Ao vê-la assim ao natural, o sol encoxando seu corpo tenro e
perfumado, a brisa brincando em seus cabelos macios, juro que
experimentei uma das sensações mais extraordinárias de minha
vida e que nunca pude compreender direito. Sentia um furacão me
rasgando as entranhas e a minha cabeça girava de excitação, como
se fosse rebentar num delírio extremo. Ela deu um mergulho
impressionante sobre o espelho das águas e desapareceu por
alguns instantes. Quando veio à tona, jogou seus cabelos molhados
sobre um dos ombros e acenou para que eu também entrasse na
lagoa. Evidentemente, não esperei por outro convite. Tirei minhas
roupas de maneira um tanto atabalhoada e pulei dentro do laguinho
esbanjando falta de graciosidade. A água estava gelada, mas não o
suficiente para arrefecer o fogo que me incendiava os poros.
Enquanto eu caminhava para a sua direção, Caroline começou a
espirrar jatos d´água sobre mim. Comprei a brincadeira e passei a
fazer o mesmo. Ela ria exultante e fingia fugir de mim, até que eu a
alcancei e a estreitei entre meus braços. Nossos corpos colaram-se
num abraço delicioso e eu tive a impressão de que anjos soltavam
rojões no céu. Cravei meus olhos nos dela, que ferviam de
excitação. Então, sem esperar mais nenhum instante, dei um beijo
voluptuoso em seus lábios, o beijo que eu havia guardado por tanto
tempo.
O sol já estava quase se pondo, quando decidimos retornar.
Depois de brincarmos na lagoa e debaixo da cachoeira,
permanecemos um bom tempo tomando sol sobre uma grande
pedra, trocando carícias e beijinhos apaixonados. Vestimos nossas
roupas e caminhamos de volta para o local do piquenique.
Encontramos Giácomo mais sua garota no banco de trás do carro
conversível, os dois bastante despenteados. Caroline perguntou se
havíamos chegado em má hora. Sua amiga riu maliciosamente e
disse que não. Ela afirmou que tinham passado uma tarde
maravilhosa e estavam apenas nos aguardando para ir embora.
No sábado seguinte, combinamos ir ao cinema. A semana
custou a passar e eu não via a hora de ter a minha amada nos
braços outra vez. Fui buscá-la em sua casa, dessa vez de moto.
Obviamente, ela estava deslumbrante em seu vestidinho preto
colado ao corpo. Dei-lhe um beijo na boca e lhe pedi para subir na
garupa. Chegamos ao cinema em cima da hora, quando a sessão já
estava começando. Era um filme de terror, que eu não vi
absolutamente nada. Só tinha olhos para Caroline e a devorava
extasiado com todos os meus sentidos. Abraçá-la, degustá-la em
toda sua essência ali no escurinho da sala me fazia estalar de
felicidade. Foi uma paixão tão avassaladora, que resolvemos nos
casar em menos de seis meses. Eu não podia ficar nem mais um
segundo longe daquela garota extraordinária, que arrebatara meu
coração de maneira tão vertiginosa.
Mas o destino é cruel...
Uma semana após o nosso casamento, comecei a passar
mal. Eu vivia enjoado, tinha tonturas inexplicáveis e cheguei mesmo
a cair na rua. Fiz inúmeros exames e, através de um dos médicos
que consultei, fiquei sabendo que só teria mais três meses de vida.
Três meses de vida! Sabem o que é isso? Imaginam o terror que se
apoderou de meu espírito? Aquela notícia caíra como um morteiro
sobre a minha cabeça. Era muito pouco tempo para viver ao lado de
Caroline, desfrutar de toda sua exuberância, agora que estávamos
casados e após tê-la amado em silêncio por tanto tempo. Disseram-
me que eu tinha um coágulo no cérebro, uma autêntica bomba que
poderia explodir a qualquer minuto. Pois lhes digo que fiz tudo que
estava a meu alcance para salvar minha vida. Procurei outros
médicos, fiz novos exames, mas o diagnóstico era sempre o
mesmo. Busquei outros caminhos, como medicina alternativa, curas
espirituais e esotéricas. Nada disso, porém, parecia reverter em
benefício para o meu miserando estado de saúde, que piorava dia a
dia. Até que, certa feita, recomendaram-me um velho feiticeiro.
Eu nunca acreditara em nada dessas coisas, mas estava
desesperado. Então, por que não ir procurar o homem? O máximo
que eu poderia perder era meu tempo, que já ia se tornando cada
vez mais escasso. Indicaram-me o endereço aproximado do sujeito
e meti-me pelos arrabaldes da cidade. Durante horas, rodei de moto
por ruazinhas íngremes e sujas, onde crianças remelentas e quase
nuas brincavam na lama e em poças d´água feito bichos.
Finalmente, após perguntar para inúmeras pessoas, obtive
informação segura e consegui descobrir onde morava o feiticeiro.
Era uma casinhola velha, caindo de podre, que o tempo ia
transformando em ruínas. Por um instante, passou-me pela cabeça
que eu estava perdendo meu tempo e deveria ir embora. Se a
medicina não tinha solução para o meu caso, não seria alguém que
morava naquele pardieiro que iria me curar. Talvez o velho fosse
mesmo um charlatão e se aproveitasse da aflição das pessoas para
lhes arrancar dinheiro. Porém, eu já estava ali e resolvi arriscar. Bati
palmas umas duas ou três vezes, até que uma negra de uns
sessenta anos veio atender. Expliquei-lhe o que me trazia até a sua
moradia, dizendo que desejava me consultar com o curandeiro. A
boa mulher me conduziu até o interior da residência e me pediu para
aguardar um instante numa saleta de tijolos aparentes. Fiquei
observando os poucos móveis desgastados, o chão de barro socado
e algumas lagartixas penduradas nos caibros do telhado. Cinco
minutos depois, apareceu o feiticeiro, um negro magro e baixo, com
cabelos muito brancos e andar vagaroso. Era cego de um olho,
onde se via uma gosma amarela que parecia escorrer do buraco da
órbita. Aquilo já me deixou com um pé atrás. Se ele não podia curar
a si próprio, que poder teria para curar seus clientes? Pediu-me para
me deitar em uma rede e, apanhando uma garrafa de cachaça
sobre uma mesinha, bebeu uns bons goles da bebida. Seu olho bom
ficou vermelho, esbugalhado. Então, ele se pôs a fumar e me
examinar com suas fumaças e folhas de plantas que roçava pelo
meu corpo. Falava baixinho, como se estivesse dialogando com
fantasmas. Ao cabo de alguns poucos minutos, ordenou que eu me
levantasse, dizendo que não podia fazer nada por mim. Ninguém
podia, pois era muito tarde. Ao ouvir aquilo, senti como se uma
descarga de água fria tivesse escorrido por dentro de minha coluna
cervical. Aos poucos, fui sendo tomado por uma fúria selvagem e
minha vontade era esganar aquele vigarista miserável. Ele percebeu
minha cólera e bradou mansamente:
- Acalme-se, sempre há uma solução.
- Como, se você acabou de me dizer que ninguém pode
salvar a minha vida?
- Ninguém que caminha nestes campos sob o sol. Mas há
alguém que pode...
- Diga-me de uma vez!
- Melhor não tocar nestes assuntos. É terrível demais...
Enfurecido, agarrei-lhe a gola da camisa com meus punhos
e o encostei contra a parede. Bradei iracundo:
- Diga de uma vez por todas, maldito, ou lhe quebro todos
os ossos!
- O senhor das moscas...
Ao escutar tais palavras, larguei o sujeito. Nunca ouvira falar
neste senhor das moscas. Disse-lhe que não o conhecia e o
feiticeiro me respondeu que todos o conhecem, mas por outros
nomes. Ele dirigiu-se até uma velha arca de madeira e retirou dela
um antigo livro encadernado em couro. Mostrou-me o título: O livro
negro de Berzebu. O demônio? Proferi assombrado. Ele assentiu
com a cabeça e pôs o livro sobre a mesinha.
- Como posso encontrá-lo? Perguntei ansioso.
O feiticeiro passou a folhear o grosso volume com dedos
ágeis, como se procurasse uma parte específica. Chamou-me a
atenção que o livro era todo manuscrito, redigido com tinta vermelha
escura, certamente sangue. Enfim, ele parou em determinada
página e exclamou:
- Aqui está!
Com seu dedo torto, o velho acompanhava as linhas que
passou a ler em voz alta. Para encontrar Berzebu, eu deveria ir a
uma encruzilhada numa noite sem lua, num local ermo atrás de um
cemitério, e dizer três vezes a frase: “Eu o invoco, Senhor dos
domínios infernais. Vinde em meu auxílio!”. Em seguida, acender
uma vela preta e fincar sua base no chão, para que os caminhos de
Satanás fossem iluminados. Ao pé da vela, fazer uma pequena cova
e enterrar um crucifixo bento. Finalmente, rezar a seguinte oração,
urinando sobre o crucifixo, com o cuidado de não apagar a vela,
pois, dessa forma, o demônio não aparecerá:

Oração a Berzebu

Espírito das trevas que estais no inferno,


Amaldiçoado seja o vosso nome,
Venha a nós o vosso reino,
Seja feita a vossa vontade
Assim na terra como no inferno.

O sangue nosso de cada dia derramai hoje,


Odiai quem vos ofende
Assim como nós odiamos aqueles
que nos têm ofendido
E nos mantenha sempre em tentação
Para que o mal perdure eternamente,
Amém!
Segundo o velho feiticeiro, esta era uma oração muito
antiga, com mais de dez mil anos e muitos acreditam que o Pai-
Nosso cristão se baseou nela. Feito isso, Berzebu vai aparecer,
talvez disfarçado para não ser reconhecido.
- Você deve lhe oferecer um charuto. Se ele pedir dois, é o
demônio.
Era tudo que eu precisava saber. Perguntei quanto lhe devia
e o homem afirmou que não cobrava nada por suas consultas. Fazia
isso por caridade, para ajudar o próximo. Mas disse que tinha vela
preta e crucifixo bento para vender, o que eu achei estranho. Seja
como for, comprei estes petrechos dele e o sujeito ainda me deu
alguns charutos de brinde, pois eu iria precisar. Despedi-me do
feiticeiro, que fez questão de me acompanhar até o portão.
Não tive de esperar por muito tempo. Na sexta-feira
seguinte, a lua mudou para nova e, além disso, o céu estava
carregado com nuvens negras. Disse para minha esposa que iria
resolver algo muito importante, dei-lhe um beijo de despedida e saí
de moto. Estacionei próximo a um cemitério que ficava num local
ermo e distante, caminhei até a encruzilhada que havia atrás dele e
fiz tudo conforme o feiticeiro tinha me instruído. Disse as palavras
invocatórias, acendi a vela, enterrei o crucifixo e proferi a oração a
Berzebu, urinando sobre a cruz. Durante algum tempo, permaneci
aguardando em silêncio, mas nada aconteceu. O local era escuro e
sinistro, de maneira que eu comecei a sentir um pouco de medo. De
onde eu me encontrava, podia ver as cruzes do cemitério, a
estatuária mórbida, enquanto o vento gelado soprava os galhos das
árvores, deitando sombras pálidas sobre as tumbas. Imaginava que,
a qualquer momento, um ser monstruoso poderia sair dali e me
arrastar para o mundo das trevas. Já estava inclinado a ir embora
daquela encruzilhada sombria, achando tudo aquilo uma tremenda
loucura, quando um raio estourou no céu, iluminando a silhueta
escura de um homem que caminhava para a minha direção. Ao vê-
lo, meu coração disparou e fui tomado por um terror extremo. Seria
o demônio ou tudo não passara de uma coincidência extraordinária?
Quis correr, mas minhas pernas estavam bambas e era como se
meus pés tivessem criado raízes na terra. O sujeito, vestindo um
terno preto, gravata borboleta e chapéu, aproximou-se de mim e me
cumprimentou polidamente:
- Boa-noite!
Respondi com voz trêmula, quase um sussurro. Para
aumentar meu terror, ele parou na minha frente e me fitou com
aqueles olhos que pareciam fumegar de tão terríveis. Eu nem
respirava.
- Está uma linda noite para caminhar...
- Sim, mas parece que vai chover...
- Talvez... mas sou prevenido e sempre saio com meu
guarda-chuva.
Um vento mais forte apagou a vela, que ainda bruxuleava
fincada ao chão. Senti um arrepio roendo minhas entranhas e fitei
os pés do homem, para ver se ele tinha patas de bode. Usava
sapatos e pareciam caros. Também não demonstrava ter rabo.
- Por gentileza, pode me dizer as horas?
Consultei meu relógio de pulso e respondi:
- Já passa da meia-noite...
- Obrigado! O senhor tem fogo?
Ele começou a apalpar seus bolsos, procurando algo, até
que proferiu:
- Que distração a minha, esqueci meus cigarros...
- Pois aceite um charuto...
O cavalheiro o apanhou com dedos melífluos, levou-o às
narinas para sentir o aroma do fumo e disse:
- Este é dos bons! Dá dois, logo de uma vez!
Ao ouvir aquilo, engoli em seco, meus olhos esbugalharam-
se de horror e eu lhe entreguei o charuto com a mão trêmula. Já não
tinha mais dúvida alguma de que aquele sujeito era o demônio.
Agora era tarde demais, não havia como recuar. Respirei fundo para
tomar coragem, fitei seus olhos profundos feito um precipício e
bradei em tom cordial:
- Obrigado por vir. Eu estava esperando por você.
- Sabe quem eu sou?
- Sei...
- E o que o amigo deseja?
- Quero viver!
- E por acaso não vive?
- Estou doente, posso morrer a qualquer momento.
- Não me diga? Muitos morrer de repente...
- Mas eu quero viver por mais cem anos.
Ele acendeu um dos charutos na ponta da língua, deu uma
tragada respeitável e soltou a fumaça sobre o meu rosto.
- Posso conseguir isso facilmente...
- É o que mais desejo!
- Claro que isso tem um preço, uma pequena prenda. Há de
entender que não trabalho de graça...
- Sim, evidente! E o que deseja em troca?
O sujeito cofiou a barbicha espetada, estalou os dedos,
como se estivesse um tanto ansioso e proferiu:
- Algo que você nunca deu a menor importância. Apenas
sua alma...
Aquilo me pareceu justo. Nunca eu precisara de minha alma
para nada e trocá-la por uma vida de prazeres e delírios ao lado da
mulher que eu amava se mostrava um excelente negócio. Após cem
anos de gozos e delícias, saciado plenamente da vida, haveria de
entregar a minha alma em trapos para o diabo e ele que fizesse dela
bom proveito. Disse que concordava com os termos. Os olhos de
Berzebu fulguraram em chamas e ele retirou de dentro do paletó um
caderninho mais uma caneta. Quando eu terminei de ler o contrato,
ele ainda me perguntou se era isso mesmo que eu desejava, pois,
após assinar o documento, nada mais poderia ser feito para
desfazer a transação. Tão logo pus minha assinatura no papel, um
trovão tenebroso, como se viesse das entranhas de uma montanha,
explodiu em alguma parte que não foi no céu. Nesse instante, o
demônio desapareceu como que por encanto e a vela no chão
tornou a se acender, só que agora a sua chama era vermelha. Eu
estava por demais excitado e sentia minha pele incendiando-se em
virtude de toda aquela emoção. Subi na moto e parei no primeiro bar
aberto que encontrei, pois sentia uma vontade formidável de tomar
um trago. Sentei-me no balcão, pedi uma garrafa de rum e
permaneci bebendo uns bons copos por algum tempo. Eu ainda
estava tentando digerir toda aquela história, que me parecia uma
tremenda loucura. Creio que permaneci ali por quase uma hora,
refletindo sobre tudo o que me havia acontecido. Já me achava
razoavelmente tonto, quando resolvi ir embora. Ao me levantar,
porém, acabei dando um encontrão em uma mulher que passava ao
meu lado e a derrubei no chão. Ela bateu a cabeça sobre o piso de
cerâmica e arranhou um dos joelhos, que passou a sangrar um
pouco. Imediatamente, pedi-lhe desculpas e a ajudei a se levantar.
Mas o homem que a acompanhava, não sei se marido ou
namorado, não gostou de ver nada daquilo. Era um brutamontes
mal-educado, que foi logo dizendo bruscamente:
- Não olha por onde anda, imbecil?
- Eu já pedi desculpas. Se não as aceita, o problema é seu!
Você é muito arrogante!
- Tire suas patas de cima dela!
Tão logo ele disse isso, deu-me um tapa nas mãos, pois eu
ainda estava ajudando a moça a se recompor. Aquilo fez meu
sangue subir à cabeça e eu lhe dei um empurrão com certa
violência. O homem enfezou-se de vez e, partindo para cima de
mim, começamos a brigar. O problema é que ele era muito mais
forte do que eu e, agarrando-me por trás, pôs-se a me sufocar,
dando-me uma gravata com seu braço robusto. Eu não podia
respirar e, de todas as formas, procurava me livrar daquele abraço
mortal. Minha cabeça e meu pescoço ficaram vermelhos, meus
olhos injetaram-se para fora das órbitas e eu sentia uma veia
latejando em minha testa. De repente, ouvi uma explosão dentro do
meu cérebro e só tive tempo de pensar que meu coágulo havia
estourado. Senti uma dor insuportável, meu nariz passou a
esguichar sangue e uma tontura violenta tomou conta de mim.
Depois disso, não vi mais nada. Quando acordei, um médico tomava
o meu pulso e auscultava o meu peito. Lembro-me dele dizendo às
pessoas ao redor que eu estava morto e que, agora, precisavam
avisar a polícia. Neste instante, abri os olhos e me levantei, para
assombro de todos. Uns gritavam, outros saíram correndo,
atropelando-se. Meu coração não batia, eu não respirava; porém, de
alguma forma, continuava atado à vida. O acordo com Berzebu
havia dado certo e eu tinha vencido a morte. Tecnicamente, eu me
achava morto, mas continuava vivo aos olhos de toda gente. O dia
já estava amanhecendo, quando subi em minha moto e voei para
casa a fim de rever a minha amada.
Caroline já se encontrava acordada e me esperava ansiosa
na varanda. Ao ver minha roupa toda ensanguentada, sobressaltou-
se deveras e indagou-me o que havia acontecido. Disse-lhe que não
era nada e a abracei e a beijei apaixonadamente. Todavia, ao sentir
meus lábios frios e meu corpo gelado, ela afastou-se de mim e
proferiu assombrada:
- Não sinto seu coração bater...
- Não preciso mais dele.
Seus olhos petrificaram-se de terror. Suas mãos passaram a
tremer e ela só conseguiu balbuciar:
- Quer dizer que você está...
- Quer dizer que estou morto. Não sinto mais dor alguma.
Graças às artes de Berzebu, é como se estivesse vivo.
Aquela notícia abateu-lhe como um punhal nas costas.
Caroline deu um grito excruciante e, alucinada, como se houvesse
um ninho de escorpiões dentro de seu cérebro, ela saiu correndo
desesperada em direção à rua. Desgraçadamente, um carro descia
embalado a ladeira e a colheu em cheio, lançando o corpo dela a
boa distância. Não sei como não enlouqueci naquele instante. Corri
até onde minha amada se encontrava e a apanhei nos braços. O
sangue escorria por sua boca, por seus ouvidos e ela já não mais
respirava. Uma dor absoluta invadiu-me a alma já condenada ao
suplício eterno. Caroline estava morta. A razão de minha vida e de
minha morte fechara seus olhos para sempre. Ah, destino cruel! Um
horror supremo tomou conta de mim, aniquilando-me por completo.
Eu teria de passar mais cem anos nesta terra, arrastando meu
cadáver feito um morto-vivo, longe dos encantos de minha amada!
Uma velha bem velha

C onheceram-se num
parque de diversões
que se instalara nos
arredores da cidade no início do verão. Os dois já vinham trocando
olhares mais entusiasmados e sorrisos cúmplices desde que
estiveram se divertindo nos carrinhos bate-bate e Nick Carson
passara todo o tempo perseguindo a garota. Quando saíram de lá,
foram direto para o Trem Fantasma, que ficava ao lado. Enquanto
caminhava para entrar na fila do brinquedo, Linda Lee ia passando
os dedos nos cabelos ruivos e, por mais de uma vez, olhou para
trás, mordendo sensualmente os lábios grossos. A brisa espalhava
o perfume do corpo da jovem por toda parte e dava a impressão de
ter fisgado o rapaz pelas narinas. Ele entrou na fila bem atrás dela e
calharam de dividir o banco de um dos carrinhos, que chegou
fazendo grande barulho nos trilhos.
- Se importa de ir comigo? Nick perguntou.
- De maneira alguma.
Logo na primeira curva, quando um dos bonecos
fantasmagóricos surgiu no meio da escuridão, Linda Lee agarrou-se
aos ombros do moço, que aproveitou para abraçá-la. Mais por
brincadeira do que propriamente medo, a menina ia gritando
excitada, como se desejasse incentivar aquela agarração. Os dois
divertiram-se bastante nos poucos minutos em que durou o trajeto e,
quando o carrinho parou, riam como velhos amigos. Ele a ajudou a
descer e indagou:
- Qual é o seu nome?
- Linda Lee.
- O meu é Nick Carson. Muito prazer!
Dizendo isso, segurou-lhe uma das mãos e lhe deu um beijo
no rosto. Por algum tempo, ficaram conversando ao lado do Trem
Fantasma. Nick estava encantado com a beleza da menina e fazia
de tudo para parecer um rapaz interessante. Contou-lhe que morava
sozinho e que trabalhava com qualquer coisa no ramo de
importações. No início da conversa, ocorreram alguns silêncios
constrangedores; porém, os dois logo passaram a se sentir bastante
à vontade, como se não existissem mais barreiras a inibi-los. Linda
Lee disse-lhe que viera sozinha ao parque. Havia combinado de vir
com uma amiga, mas ela lhe dera o bolo, pois fora se encontrar com
o namorado. Já estava ali mesmo e resolvera entrar.
- E você, também veio sozinho? Indagou a menina.
- Exato. Queria ver se encontrava uma garota bonita como
você.
Linda Lee corou deliciosamente e riu do elogio. Depois,
proferiu em voz baixa, vestindo a capa da modéstia:
- Mas sou tão sem graça...
Não era verdade. Linda Lee tinha seus encantos
apetecíveis, como seios rechonchudos, cintura fina e nádegas
arrebitadas. Além do mais, trazia estampado no rosto simétrico e
bem desenhado um sorriso cativante de rosa desabrochando na
aurora e um olhar misterioso de loba fascinada pela lua. Como não
tinham compromisso com mais ninguém, combinaram passear
juntos pelo parque. Andaram em diversos brinquedos, mas foi no
alto da roda-gigante que o rapaz tomou coragem e lhe deu o
primeiro beijo. A garota não refugou. Antes, ofereceu seus lábios
feito uma potra sedenta a beber água no cocho. Quando tornaram à
terra, já estavam apaixonados. Passaram a tarde toda em idílicos
arroubos de felicidade, trocando juras de amor eternas, correndo
atrás das borboletas douradas, suspirando na brisa palavras
cobertas de purpurina que só os enamorados podem suportar. A
certa altura, após comerem uma maçã do amor e terem ficado com
os lábios caramelados, eles passaram diante da barraca de uma
vidente e Linda Lee pediu:
- Vamos entrar? Quero ver o que ela diz sobre o nosso
futuro...
O rapaz concordou, levantando a lona da tenda que servia
de porta. Uma mulher com cabelos cor de cinzas, emaranhados
desleixadamente sobre os ombros, rotunda como uma porca e
exibindo um olhar seco de víbora, achava-se entronchada sobre
uma cadeira de plástico, atrás de uma mesa onde se viam duas
velas ardendo em tocos de cera. Vestia-se com roupas
espalhafatosamente coloridas, trazia grandes brincos pendurados
nas orelhas e diversos anéis em todos os dedos das mãos. Ao ver
novos clientes chegando, estendeu no rosto grafitado de bexigas o
melhor sorriso que pôde, apontou para duas cadeiras e disse:
- Sentem-se, já vou atendê-los.
O casal obedeceu à vidente, que apagou seu cigarro com a
ponta dos sapatos e lançou uma revista de obscenidades num dos
cantos. Apanhou um baralho seboso dentro de uma gaveta,
embaralhou-o mecanicamente e pediu para Linda Lee cortar. A
menina o fez com o coração batendo acelerado, pois estava
bastante excitada com tudo aquilo. A penumbra dominava o
ambiente ali no interior da tenda e a pouca iluminação provinha
apenas das chamas trêmulas das duas velas postas sobre a mesa.
A vidente virou a primeira carta. Era da morte. Ao vê-la, os olhos da
garota esbugalharam-se, mas ela permaneceu calada. A mulher
tirou mais duas: o ermitão, seguido pelo demônio. Após alguns
instantes de silêncio, ela proferiu:
- Vejo um grande amor na vida de vocês...
Linda Lee floriu um sorriso, aliviada. Era o que desejava
ouvir. Nick Carson apanhou a mão da namorada e notou que ela se
achava úmida. Os dois fitaram-se por alguns segundos,
apaixonadamente, querendo se beijar. Porém, não o fizeram, pois a
bruxa poderia não gostar daquelas liberalidades em sua tenda e os
dois temiam que ela os transformasse num casal de lagartas.
Depois, a mulher pôs-se a fazer inúmeras previsões sobre a vida
futura deles. Via um casamento para breve, muitos filhos lindos
enchendo a casa, carro do ano na garagem, dinheiro a rodo e
felicidade dando em cachos. Evidentemente, eles ficaram muito
satisfeitos com aquelas previsões e agradeceram bastante à mulher.
Nick Carson perguntou quanto lhe devia, mas a vidente afirmou que
não cobrava nada pela consulta. Os clientes é que deixavam, de
maneira espontânea, a importância que julgavam valer o serviço. O
rapaz tirou uma nota de cinquenta novinha da carteira e entregou
para a distinta, com certa dor no peito. Sabia que estava sendo
generosíssimo, mas ele queria mesmo era impressionar Linda Lee.
Já estava escurecendo, quando os dois deixaram a tenda da
vidente. A menina disse-lhe que precisava regressar para sua casa
e Nick insistiu que a acompanharia. Antes, porém, declarou:
- Espere! Quero lhe dar um presente para que se lembre de
mim...
- O que é?
Ele a conduziu até uma barraca de tiro ao alvo, que ficava
ali perto. Nick Carson tinha excelente pontaria e seus amigos
estavam cansados de vê-lo acertar uma moeda atirada no céu com
sua espingardinha de chumbo. Aquilo era fácil. Sem o menor
problema, acertou os seis patos que passavam lá adiante com os
seis tiros a que tinha direito. Ganhou o prêmio principal, que era um
grande urso de pelúcia, segurando um coração, onde estava escrito
a palavra “love”. Linda Lee ficou bastante emocionada ao recebê-lo
e pagou tão lindo presente com um apaixonado beijo na boca do
rapaz. Já era noite, quando os dois se despediram na porta da casa
da garota. A lua achava-se madura e eles podiam jurar que as
estrelas bimbalhavam sinos no céu.

* * *

Por quase dois anos, viveram um romance de conto de


fadas. Linda Lee acreditava que não poderia ser mais feliz. Nick
Carson era o homem ideal com quem sempre sonhara, inteligente,
bonito, educado e atento a tudo que dizia respeito à namorada. A
boa vidente não tinha se equivocado ao ver o destino deles nas
cartas. Porém, uma asa negra veio-lhes toldar aquele recanto de
felicidade. Numa tarde triste de fim de outono, quando as
avelaneiras espalhavam uma colcha de folhas amarelas sobre os
campos e os tordos começavam a migrar para fugir dos dias mais
frios, Nick Carson ligou para a amada e pediu para ela ir encontrá-lo
num bar, onde costumavam passar momentos agradáveis. Por volta
das oito horas da noite, a garota encapotou-se, deu um beijo em seu
pai e saiu de casa, enquanto alguns cães teimavam em latir ao
longe. Era domingo e as ruas achavam-se desertas, tomadas pelas
sombras mortas que dançavam diante da fachada de velhas
moradias, como se buscassem os antigos moradores que já não
faziam mais parte deste mundo. O vento frio sussurrava versos
retorcidos de trevas e espalhava aromas de cemitério sobre as
flores caladas dos jardins. Uma névoa pálida pairava pelas praças e
telhados das residências, de maneira que os fantasmas podiam se
camuflar facilmente naquela paisagem gelada e sombria.
Linda Lee chegou ao local alguns minutos antes do horário
combinado. O interior do bar era escuro e esfumaçado, cheirando a
sarro de nicotina e álcool. Ela dirigiu-se à mesa de costume,
imaginando que iria ter de esperar algum tempo até a chegada de
Nick Carson; contudo, viu que se enganara redondamente, pois o
namorado já se encontrava ali. Cumprimentaram-se com um beijo
rápido e a garota sentou-se diante do rapaz. Logo percebeu que ele
já havia bebido além da conta.
- Mas o que o deixou tão agoniado desse jeito?
Então, Nick contou-lhe que os negócios iam mal e seria
despejado por falta de pagamento dos aluguéis. Não tinha para
onde ir. Sua situação financeira era desesperadora e seu dinheiro
mal chegava para comer. Já vendera todos os bens de valor que
possuía e suas dívidas só aumentavam. Não havia outro remédio. A
única solução encontrada era retornar para a sua cidadezinha natal
a fim de morar com seus pais. Isto afetaria diretamente o
relacionamento deles. Devido à distância, não poderiam mais se ver
com frequência. Aquela separação indesejada poderia se prolongar
por mais tempo do que o rapaz imaginava e talvez pudesse até
mesmo abalar o romance deles. Enquanto falava, os olhos de Linda
Lee foram se enchendo de lágrimas. Agora que tudo estava
correndo às mil maravilhas para ela, aquela notícia fatídica caía-lhe
em cima como um hipopótamo para lhe destruir os sonhos
cultivados em comum. Após ouvir em silêncio tudo que o rapaz tinha
para lhe dizer, a garota falou com voz pequenina:
- Meu amor, não se desespere! Nós vamos encontrar uma
solução para resolver este problema...
- Já pensei em todas as hipóteses e não vejo outra saída.
- Olha... talvez você possa ir morar lá em casa...
Nick Carson bebeu outro gole de vodca e colocou o copo
sobre a mesa. Por alguns instantes, permaneceu pensativo,
ruminando aquela nova possibilidade. Não desejava envolver a
namorada com seus problemas; contudo, aquela seria uma
excelente solução. Iria se livrar definitivamente dos intermináveis
aluguéis e estaria sempre junto da mulher que amava. O rapaz
encheu o copo da jovem com mais um pouco da bebida e indagou:
- E seu pai? Acha que ele concordará com isso?
- Ele é meio conservador em certos assuntos, mas gosta de
você. Não custa a gente tentar...
- Se ele consentir, tudo estará resolvido. Você faria isso por
mim?
- Por nós! Deixe tudo por minha conta. Amanhã mesmo,
antes dele ir para o trabalho, vou lhe explicar todo o caso. Passe na
minha casa ao anoitecer, que lhe darei uma resposta.
Evidentemente, Nick Carson dormiu mal aquela noite.
Estava ansioso demais para conciliar o sono e só pensava no futuro
que o aguardava. Apanhou um livro policial para ler, mas não
conseguia se concentrar na história. Apenas corria os olhos sobre
as linhas, sem prestar atenção no que lia, de maneira que não pôde
apreender nada da trama. Se fosse morar com Linda Lee, todos os
seus problemas estariam resolvidos. Teria cama e comida de graça,
além dos braços da amada quando bem entendesse.
No dia seguinte, tão logo escureceu, dirigiu-se à casa da
namorada. Ela já o aguardava na varanda com uns olhos
resplandecentes e um sorriso de felicidade estendido no rosto. Mal
se cumprimentaram e Nick Carson já foi logo perguntando:
- E então?
- Meu pai consentiu que você venha morar conosco, mas
impôs uma condição...
- Qual? Faço qualquer coisa...
- Que a gente se case antes...
O rapaz soltou as mãos da jovem, tomado pelo susto. Por
essa, ele não esperava. Deu alguns passos para trás e sentou-se na
mureta da varanda. Durante alguns segundos, permaneceu calado,
observando a grama molhada do jardim, as árvores ainda pingando,
pois havia chovido durante quase toda a tarde. Depois, levantando-
se com a resolução dos grandes generais, abraçou Linda Lee e a
beijou apaixonadamente. Em seguida, sussurrou-lhe num dos
ouvidos:
- É o que eu mais quero na vida...
Ele sentiu o corpo da menina estremecer de emoção e
enxugou com os dedos uma lágrima que ia escorrendo pelo canto
dos olhos da namorada.
- Meu amor, então está decidido. Vamos dar a notícia para
meu pai.

* * *

A cerimônia de casamento foi simples e discreta, como


queria o casal. Não fizeram convites, nem anúncios, de maneira que
ninguém compareceu, além do pai da moça, que foi arrolado como
única testemunha. Depois, viajaram para um chalé das montanhas,
que o pai alugara e dera de presente aos noivos, a fim deles
passarem uns dias ali em lua-de-mel.
Quando regressaram, instalaram-se no quarto do pai de
Linda Lee, Oliver, que se ajeitou no dormitório ao lado e servia para
guardar tralhas inúteis. Na casa, vivia ainda uma tia-avó de Oliver,
mulher muito velha, que diziam ter 108 anos de idade. Passava o
tempo todo sentada numa cadeira de balanço na sala, com seu gato
encardido no colo, e só saía de lá para fazer suas necessidades,
alimentar-se e dormir no seu quartinho fedorento que ficava no final
do corredor. A bem da verdade, ela era a proprietária da residência.
Morava ali desde menina com os pais, as irmãs e depois os
sobrinhos que foram chegando. Outros foram partindo com o
capengar dos anos, casando-se ou indo para as sepulturas. Estava
ali há tanto tempo, restando solteira e rabugenta, que ninguém mais
lembrava o nome dela. Chamavam-na, simplesmente, de “a velha” e
a toleravam como um cachorro esticado num capacho. Imaginavam
que ela morreria em breve e que possuía joias e dinheiro. Vestia-se
sempre com o mesmo vestido preto e, como não costumava tomar
banhos com frequência, exalava odores nada agradáveis.
Reclamava de tudo e de todos; principalmente, passou a implicar
com Nick Carson, que ela achava ser um bêbado e vadio. Certa vez,
o rapaz entrou escondido no quarto da velha para descobrir se ela
enfurnava mesmo alguma riqueza entre seus pertences. Revistou
uma arca antiga, abriu gavetas, olhou debaixo do colchão, fuçou
dentro do armário. Nada! Apenas aquele cheiro podre da macróbia,
um ranço de rato morto, pensou Nick, permanecia empestando tudo,
desde travesseiros a cobertores e papeis de parede. Subitamente,
quando ele abrira o zíper de uma bolsa puída que encontrara dentro
do guarda-roupa e jogara todo o conteúdo dela sobre o lençol da
cama, avistara a velha parada na porta do dormitório, fitando-o de
maneira enfezada. Levara um susto tremendo, mas não teve tempo
de se explicar. A anciã apanhou um vaso de porcelana que
enfeitava a sua cômoda com flores de plástico e sentou-lhe uma
esplêndida bordunada nos cornos. O vaso estraçalhou-se em
caquinhos afiados e, no mesmo instante, abriu um corte
considerável na testa do infeliz rapaz. O sangue pingava-lhe em
bagas licorosas, escorrendo pelo pescoço e indo manchar sua
camiseta branca. Nick correu até o banheiro para se lavar, deixando
uma trilha com gotinhas redondas pelo chão de madeira. Linda Lee
largou tudo que estava fazendo na cozinha para ver o que havia
acontecido. Ficou bastante sobressaltada ao fitar o marido naquele
estado e, enquanto o ajudava a estancar a ferida, quis saber como
ele se acidentara daquela forma. Nick contara-lhe que fora a velha
quem lhe batera com um vaso, só porque ele estava no quarto dela,
procurando por aquilo que nós já tínhamos conversado antes. Não
haveria de ser nada. Um bom curativo e logo estaria novo em folha.
Quanto à velha, nunca mais dirigiu uma palavra a Nick.
Um acontecimento veio mudar a rotina daquele pacato lar. A
morte de Oliver, pai de Linda Lee. A notícia chegou num anoitecer
de outono, quando a garota punha os pratos na mesa, já achando
estranho por que o pai estava demorando tanto para voltar do
trabalho. Ele era metódico e jamais se atrasava. Nunca ia beber
com os amigos após o expediente e regressava sempre do serviço
direto para a casa.
Naquele início de noite, a campainha soou estridente e
Linda Lee teve um calafrio. Nick Carson foi atender e recebeu na
varanda a trágica notícia. O sogro havia sido esmagado pelas
engrenagens de uma máquina na fábrica e seu corpo ficara
irreconhecível. A dor de todos foi grande, imensa. Até a velha
chorou suas lágrimas decrépitas. Linda Lee não se conformava e
precisou ser arrastada do cemitério, pois se agarrara ao caixão e
não queria deixar que o sepultassem. Por muitos dias, manteve-se
arredia pelos cantos, transbordando tristeza, recordando-se do pai
querido que não mais haveria de voltar. Nick Carson até sugeriu que
eles fizessem uma viagem para arejar os ânimos, mas a menina se
recusou a aceitar o convite.
Algum tempo tinha transcorrido após o sepultamento do pai
de Linda Lee e a rotina já havia retornado ao lar, quando a velha
caiu na cozinha. Um médico foi chamado às pressas e concluiu que,
milagrosamente, ela não quebrara nenhum osso. Porém, a anciã
reclamava de muita dor nas pernas, que as injeções apenas
minimizavam. Nunca mais conseguiu andar sozinha. Onde quer que
fosse, precisava do apoio de Linda Lee, que a levava ao banheiro,
dava-lhe banho quando era preciso e a colocava em sua cadeira de
balanço e na cama. Com o correr dos dias, a vida foi ficando
insuportável para o jovem casal. A velha vivia praguejando e
passava as tardes sentada em sua cadeira de balanço, com o gato
empestado de pulgas no colo, a maldizer o calor, os mosquitos, a
comida salgada preparada pela jovem.
No terceiro aniversário de casamento deles, Nick Carson
levou a esposa para jantar em um restaurante. Finalmente, estavam
livres da velha por algumas horas e puderam se divertir à vontade.
Eles beberam muito uísque, enquanto iam recordando do dia em
que haviam se conhecido, quando a vida parecia leve e existiam
muitas promessas de felicidade pelo caminho ladrilhado de
primaveras. A certa altura, Linda Lee disse:
- A verdade é que não estou mais aguentando esta vida...
Nick Carson encheu o copo da garota com mais um pouco
de uísque e, segurando-lhe uma das mãos, indagou:
- Por causa da velha?
- Ela é um fardo muito pesado. Nada está bom... acho que
só gosta mesmo do seu gato...
- Não sei como ainda está viva, com toda aquela idade...
- Coisa ruim não morre. Só sei que, se ela se fosse, nossa
vida seria muito melhor...
Nick Carson engasgou com a bebida. Seus olhos ficaram
vermelhos e um pouco arregalados. Respirou fundo e tomou outro
gole. Por fim, indagou:
- O que quer dizer com isso? Que a gente precisa dar uma
mãozinha para o destino?
Linda Lee não respondeu, limitando-se a encarar o amado
com olhos sorridentes. Depois, mordendo a pontinha do lábio
inferior, proferiu:
- Você faria isso por mim?
O rapaz estremeceu. Uma coisa era odiar a velha. Outra,
bem diferente, era cometer um assassinato.
- Acho que você já bebeu muito uísque...
- Faria ou não? Como uma prova de amor...
Ele se aproximou dela e lhe deu um beijo na boca. Em
seguida, Nick Carson pediu a conta e os dois regressaram para
casa. Para junto da velha que já não mais suportavam.
Aos poucos, a ideia do crime passou a coçar dentro do
cérebro do jovem. Quem se importaria com a morte daquela
macróbia cacete? Na verdade, estavam lhe fazendo um favor ao lhe
abrir as portas do céu. Se dessem cabo dela com jeito, todos iriam
concluir que ela morrera por causa da idade avançada. Seria até
melhor para a infeliz, pois não sofreria mais com todas aquelas
dores que lhe roíam o corpo inteiro.
Por algum tempo, Nick Carson pôs-se a caraminholar qual
seria a melhor maneira de levar o seu plano adiante. A primeira
ideia que lhe veio à mente foi sufocar a macróbia com um
travesseiro, enquanto ela dormia. Seria uma morte tranquila,
confortável e limpa. Não deixaria vestígios e, para qualquer efeito,
eles diriam a todos que tinham encontrado a pobre morta ao
amanhecer. Dificilmente, alguém duvidaria desta história. O rapaz
contou tudo para a esposa, que concordou e disse que só não
queria que a velhota sofresse muito.
Na noite combinada, Nick apanhou um travesseiro e entrou
no quarto da velha, pé ante pé. Ela parecia dormir feito uma leitoa
empanturrada, ronronando com a papada flácida e cheia de dobras.
O moço caminhou até a beirada da cama e, por alguns instantes,
permaneceu contemplando a face engelhada da criatura. Sentia as
pernas um pouco trêmulas e seu coração pulsava tão acelerado,
quanto a primeira vez em que dissecara um hamster, vivo. No
momento em que havia decidido e estava pronto para se
desincumbir de sua tarefa, a velha abriu uns olhos arregalados de
corvo e se pôs a gritar com suas bochechas chochas:
- Socorro! Socorro!
Nick perdeu a coragem e apenas se limitou a pronunciar:
- Calma, vovó! Vim só lhe trazer este travesseiro, para que
você durma melhor...
Dizendo isto, ajeitou-o debaixo da cabeça ossuda da anciã e
saiu sem dizer mais nada. Quando chegou ao seu quarto, Linda Lee
já o esperava na cama e perguntou ansiosa:
- Tudo resolvido?
- Não consegui, pois ela acordou e eu fraquejei. Vamos
precisar escolher outra forma para matá-la. Ou você mesma quer
tentar sufocá-la?
- Nem morta! Meu amor, combinamos que você faria o
serviço sujo...
- Eu sei... eu sei... mas isto é muito difícil para mim. Quem
sabe se não colocarmos veneno de rato em sua comida?
- Melhor não. Ela pode não morrer. Além do mais, e se a
polícia desconfiar de algo? Se fizerem uma autópsia, estaremos
perdidos.
Bom, vou pensar em alguma coisa. Agora estou muito
nervoso e quero dormir. Boa-noite!
- Boa-noite!
Na manhã seguinte, Nick acordou decidido a acabar com
aquilo de uma vez por todas. Ele amarrou o gatinho dela no porão e
saiu para trabalhar. Quando a velha sentou-se em sua cadeira de
balanço na sala e chamou pelo bichano, estranhou que o animal
não tivesse aparecido, pois ele costumava passar horas deitado em
seu colo. Lá pelas tantas, indagou sobre o gato para Linda Lee, mas
a garota disse que não o tinha visto desde a noite anterior.
Pouco depois de anoitecer, Nick regressou para casa. Havia
parado antes num bar, onde bebera um bocado para se armar de
coragem. Tão logo pôs os pés na sala, notou que a velhota estava
aflita, praguejando contra o diabo e toda a corja de anjos celestiais.
O rapaz achava-se decidido e, levando seu plano adiante, disse
para a infeliz que tinha visto o gato lá no porão. O felino estava
muito agitado e parecia tocaiando um rato num buraco da parede.
Chamou-o diversas vezes, mas ele não quis arredar as patas dali de
maneira nenhuma. A velha encarou Nick Carson com um ar de
desprezo e, após muito tempo sem lhe dirigir a palavra, disse-lhe:
- Então, me ajude a ir até lá, seu imprestável!
Ele passou um dos braços por baixo do sovaco da megera
e, apoiando-a em seu corpo, arrastou-a até a porta que dava acesso
ao porão. Sentia-se excitado demais e sua respiração ofegava feito
um touro na arena. Abriu a porta devagar, que gemeu nos gonzos
de maneira funérea, e ambos entraram. Tudo ali se achava na mais
completa escuridão e cheirava a mofo. Nick conduziu a velha até a
beira da escada, dizendo:
- Espere um instante, pois vou acender a luz.
A mulher apoiou-se com dedos moles no corrimão e se pôs
a chamar:
- Gerald! Gerald! Venha com a mamãe!
Amarrado a um cano pelo pescoço, o gato miava
escandalosamente, mas não conseguia se livrar de jeito nenhum
dos laços que o atavam a seu cárcere. Nick Carson concluiu que era
agora ou nunca.
- Cuidado com o degrau! Sussurrou nos ouvidos da
macróbia.
Foram as últimas palavras que ela ouviu. No mesmo
instante, deu-lhe um forte empurrão nas costas e a velhota caiu
capotando escada abaixo. Tudo se passou de maneira muito rápida.
Após alguns segundos de estupor, como se estivesse ruminando a
barbaridade que acabara de cometer, o rapaz desceu os degraus
lentamente, as faces lhe ardendo em brasas. Tudo era silêncio e até
o gato calara seu miado infernal. Ele ajoelhou-se ao lado da pobre
infeliz e tomou-lhe o pulso. Nada! O coração estava parado. De
seus lábios roxos, uma gosma avermelhada ia pingando sobre o
assoalho. Delicadamente, levantou-lhe a cabeça e ele sentiu-lhe o
pescoço mole, quebrado. Fechou-lhe os olhos acusadores com
dedos um pouco trêmulos, pois eles pareciam espiá-lo das
profundezas infernais. Depois, subiu as escadas correndo e trancou
a porta do porão, dando duas voltas na chave.
Durante o jantar, contou tudo para Linda Lee. Ela sorriu
exultante ao saber da novidade e disse que, finalmente, encontrava-
se livre para viver sua vida como bem entendesse. A velha que
fosse estorvar o capeta. Enquanto lavavam os pratos, voltaram a
falar no dinheiro e nas joias que ela possivelmente teria. Da outra
vez em que estivera no quarto dela, o moço não encontrara nada.
Também não tivera tempo de procurar em todos os lugares.
- Sei que ela tem um pequeno baú guardado em algum
canto, pois já o vi. É lá que deve enfiar as suas economias. Proferiu
a garota.
- Talvez esteja repleto de joias. Disse Nick Carson.
Os dois fitaram-se com olhares cobiçosos. Não esperaram
por mais nada. Imediatamente, saíram correndo na direção do
quarto da velha e começaram a revirar tudo. Enfim, numa das
gavetas da cômoda, oculto por um cobertor, Linda Lee descobriu o
tão cobiçado baú. Ela sentou-se na cama e, colocando-o sobre as
coxas, bradou:
- Vamos ver o que a vovozinha nos deixou de presente...
Com dedos curiosos, abriu a tampa do estojo. Ali dentro,
havia apenas uma flanela lilás enrolada. A menina apanhou-a com
avidez e se pôs a desembrulhá-la, certa de que ela esconderia
algum tesouro. Por trás de seus ombros, Nick Carson observava
tudo salivando e com atenção redobrada. Quando Linda Lee
terminou de desenrolar a flanela, surgiu diante dos olhos deles um
magnífico par de brincos dourados. Ela aproximou-os das vistas
para saboreá-los melhor e disse:
- Será que são de ouro?
- Talvez. Nunca vi joias tão belas!
- Devem valer uma nota, pois são muito pesadas.
- Tenho um amigo ourives, que pode nos dizer se são
verdadeiras...
A jovem colocou os brincos nas orelhas e inquiriu:
- Como estou?
- Esplêndida!
De repente, a face de Nick Carson turvou-se. A garota
percebeu que algo havia acontecido e indagou:
- O que aconteceu?
- Nada... nada... Quero dizer, é que só agora eu notei que
esses brincos lembram as feições de um demônio...
Os olhos de Linda Lee arregalaram-se. Ela ergueu-se e
caminhou até o espelho da cômoda, onde permaneceu observando-
os por alguns instantes.
- Não me parece...
- Veja, olhe bem... dá a impressão de ser uma figura
satânica com asas. Estas duas pedras avermelhadas como fogo são
os olhos...
Ela sorriu lindamente e concluiu:
- Mas que bobagem! Seja como for, isto não tem importância
alguma. Só sei que são lindos e ficaram muito bem em mim.
- Ficaram maravilhosos...
Dizendo isso, Nick Carson agarrou a moça por trás e
começou a lhe beijar uma das orelhas, ornada com aquele brinco.
Ela riu em vermelho e, virando-se de frente para o rapaz, lambeu-
lhe os lábios, excitada. Os corpos se colaram e ele sentiu-lhe os
seios maduros queimarem-lhe os mamilos. Meio sem jeito, Nick
apagou a luz e os dois arrastaram-se até a cama da velha, onde
passaram a se despir avidamente. Em pouco tempo, achavam-se
nus, amando-se feito cavalos selvagens. Nunca haviam feito amor
com tanto prazer e cumplicidade. Porém, quando o ato se achava
no ápice, Nick Carson abriu os olhos e viu, enlouquecido de horror,
que não era Linda Lee quem se achava na cama com ele, mas a
própria velha. Tal visão o deixou aterrorizado e, no mesmo instante,
de maneira impulsiva e repentina, empurrou aquele corpo
muxibento, que acabou caindo sobre o assoalho. Ele correu e
acendeu a luz. Esparramada no chão, encontrava-se Linda Lee,
sem entender direito o que havia acontecido.
- Meu amor, você está bem?
- Creio que sim. Caí de bunda sobre a colcha, que me
amorteceu a queda. Mas o que deu em você?
- Não sei! Acho que tive uma alucinação. Você não vai
acreditar...
- O que foi?
- Por um instante, pensei ter visto a velha na cama. Eu
estava fazendo amor com ela e não com você...
- Mas que tolice!
- Seja como for, não quero mais ficar aqui. Vamos para o
nosso quarto...
No dia seguinte, enquanto tomavam o café da manhã, Nick
disse à esposa que precisavam enterrar o corpo da velha. Daqui a
pouco, ela começaria a feder e o mau cheiro poderia chamar a
atenção dos vizinhos, além do que se tornaria insuportável viver ali.
Estavam discutindo justamente sobre isso, quando a campainha
tocou histérica na sala. Os dois levaram um susto, imaginando que
poderiam ter descoberto algo sobre o crime. Deveriam atender?
Melhor atender, sussurrou Linda Lee. O rapaz levantou-se e
caminhou até a porta, abrindo-a com certo receio. Era o médico, que
tinha vindo para aplicar uma injeção de costume na velha. Ao vê-lo,
Nick empalideceu e disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça:
- Ela não está. Foi viajar...
- Como viajar, se ela mal anda?
- Sabe, vieram uns parentes e a levaram de carro para
passar uns tempos na casa deles...
Então, um grito lancinante de pavor ecoou pela casa.
- O que foi isso? Indagou o médico.
Nick estremeceu do calcanhar ao último fio de cabelo. Teria
sido Linda Lee? O seu primeiro impulso foi entrar para ver o que
havia acontecido, mas acabou permanecendo com os pés fincados
na soleira. Tendo a voz um tanto frouxa, limitou-se a dizer:
- Deve ter sido o vento...
Subitamente, ouvem outro grito, ainda mais macabro que o
primeiro, como se estivesse ecoando dos próprios sepulcros
infernais. Parecia que aquela voz lamacenta e cadavérica estava
pedindo por socorro. Ao ouvir aquilo, o médico invadiu a residência
e passou a revistá-la, cômodo por cômodo. Quando estava no
corredor, próximo à porta que dava acesso ao porão, um terceiro
grito eclodiu de lá, pavoroso feito o gemido de um fantasma.
- O que tem aí dentro?
Nick Carson não soube o que dizer. Se o médico entrasse
ali e descobrisse o cadáver da velha, estaria irremediavelmente
perdido. Sem esperar pela resposta, o sujeito destrancou a porta e
invadiu o porão. No mesmo instante, o gato saiu arisco do interior do
recinto, pulou a janela de um dos quartos e embrenhou-se pelos
matos do quintal. O rapaz assustou-se deveras e disse após alguns
segundos de hesitação:
- Está vendo? Era o gato...
O médico não se convenceu. Deu mais alguns passos até o
início das escadas que levavam ao fundo do porão. Estava tudo
escuro e um cheiro forte de carniça inundava o ambiente.
- Vou descer para averiguar...
Nick desesperou-se. Temendo que o homem descobrisse o
seu segredo, decidiu que só havia uma coisa a fazer. Sem pensar
nas consequências, aproximou-se dele e lhe deu um violento
empurrão, como já tinha feito com a velha. O médico rolou pelos
degraus feito uma melancia e espatifou-se lá embaixo. O rapaz
permaneceu calado, aguardando um instante. Ouvira o som de
ossos se quebrando durante a queda, mas ele teria morrido?
Passado o estupor inicial, desceu as escadas para conferir o seu
serviço. Desgraçadamente, o homem ainda respirava. Alucinado,
Nick Carson só pensava em terminar, de uma vez por todas, com
aquele sofrimento que parecia lhe aniquilar a existência. Ele
apanhou um machado e a sombra de Lúcifer brilhou no interior de
seus olhos. Sem hesitar, possuído por uma fúria satânica, o moço
ergueu a arma acima da cabeça e desferiu um potente golpe contra
o pescoço do miserável, que se partiu num estalo funéreo. O
sangue esguichou por todo canto e uma poça negra e viscosa
começou a crescer debaixo do cadáver. Só então, o rapaz percebeu
algo verdadeiramente tenebroso. O corpo da velha não se
encontrava mais em parte alguma.
Isto o deixou profundamente transtornado. Tinha certeza de
que ela havia falecido com a queda. Como poderia ser uma coisa
dessas? Nick Carson subiu as escadas enlouquecido, sentindo sua
cabeça arder, como se houvesse sido esmagada por uma pedra.
Trancou a porta do porão e meteu-se à procura de Linda Lee, pois
precisava contar-lhe o que acabara de fazer. Quando entrou na sala,
o cheiro enjoado da velha empestava todo o ambiente. Isto o deixou
tremendamente confuso e a sua primeira reação foi abrir a janela
para arejar o interior do recinto. De repente, a cadeira de balanço,
onde ela costumava se sentar, começou a balançar sozinha, assim
do nada. O rapaz estremeceu de pavor e teve a certeza de que a
velha se achava ali. Nisso, Linda Lee entrou na sala.
- Nossa, que aconteceu? Você está branco, como se
tivessem drenado todo seu sangue...
- A velha está aqui, sentada naquela cadeira...
A garota olhou para o local indicado e não viu ninguém. Deu
alguns passos na direção da cadeira e a deteve, fazendo com que
parasse de balançar. Depois, fitando Nick Carson nos olhos,
proferiu:
- Meu amor, você não me parece muito bem. Quer que eu
lhe prepare um drinque para relaxar?
- Por favor. Estou muito nervoso com tudo o que aconteceu.
Não está sentindo o cheiro dela?
Linda Lee abriu uma garrafa de uísque e pôs dois dedos da
bebida no copo, sem gelo, do jeito que o marido gostava. Ele virou
tudo de um gole só e sua garganta queimou como se tivessem lhe
encostado facas em brasas.
- Agora que você disse, estou sentindo o cheiro dela, sim.
Mas que importância tem isso? Ela está morta e não pode fazer
mais nada contra nós.
- Mas outros podem. Como esse médico que veio ainda há
pouco...
- O que tem ele?
- Tive de matá-lo também. O sujeito invadiu o porão e temi
que ele descobrisse o cadáver da velha lá embaixo...
A garota esfregou os olhos com uma das mãos.
Demonstrava cansaço e medo. Aquela segunda morte deixava tudo
mais difícil. E se a polícia viesse atrás dele? Precisavam descobrir
uma maneira de se livrarem do corpo o mais rápido possível.
- Você está metendo os pés pelas mãos.
- Também, como eu poderia saber que ele não descobriria
nada, uma vez que o corpo da velha não estava mais lá...
- Com é que é?
- Exatamente isso que acabei de dizer, meu anjo. É por isso
que estou tão nervoso. O corpo dela desapareceu...
- Mas como pode ser isso?
- Não me pergunte. Só sei que não se encontra mais lá no
porão.
- Isto me dá medo...
- Em mim também.
À noite, quando já estavam na cama, começaram a ouvir
ruídos estranhos vindos do corredor. Era como se uma horda de
ratos estivesse roendo as paredes da casa. Nick despertou
assustado e chamou Linda Lee, que já se achava acordada.
- Está ouvindo isto?
- Sim! Parecem demônios mastigando ossos...
Ele acendeu o abajur e os dois permaneceram ouvindo o
silêncio, pois os ruídos haviam cessado. Ficaram assim por uns três
minutos, calados, observando as paredes, quando o som de passos
fantasmagóricos eclodiu no corredor. Linda Lee abraçou-se ao
rapaz, apavorada, imaginando que o médico ainda poderia estar
vivo.
- Tem certeza de que o matou?
- Absoluta! Esmaguei-lhe o pescoço com o machado...
- Então, o que pode ser isto?
- Só há uma maneira de descobrir...
Mal acabou de pronunciar tal frase, Nick Carson levantou-se
num pulo da cama, apanhou um taco de beisebol que guardava no
armário e abriu a porta com dedos trêmulos e pernas bambas. Saiu
para o corredor e não viu nada. Os sons dos passos tinham
desaparecido. Pé ante pé, caminhou até a sala e viu que o gato
estava sentado na cadeira de balanço da velha, fitando a escuridão
com seus olhos infernais. O rapaz achava-se tão assustado que, se
alguém lhe tocasse os ombros por trás, ele cairia seco no chão.
Quis enxotar aquele animal diabólico dali, mas não o fez. Depois,
dirigiu-se até o corredor que dava acesso ao porão e colou o ouvido
na porta. Tudo se achava no mais completo silêncio e só era
possível ouvir a respiração alterada do jovem. Ele destravou a
tranca e empurrou lentamente a porta, cujas dobradiças rangeram
baixinho. Acendeu a luz e desceu as escadas com o coração na
boca. Lá embaixo, encontrou o médico na mesma posição em que o
deixara. Não havia dúvidas de que ele se achava rigorosamente
morto. Ao vê-lo naquele estado, julgou que deveria enterrá-lo o
quanto antes. Por que não aproveitar a escuridão da madrugada?
Era isso mesmo que deveria fazer. Tomando-o pelos braços, pôs-se
a arrastar o sujeito escada acima com enorme dificuldade. Por onde
passava, o cadáver ia deixando marcas de sangue. Depois de
sepultá-lo, limparei tudo, para não deixar nenhum vestígio, pensou o
moço. Ele atravessou o corredor e saiu para o quintal dos fundos
pela porta da cozinha. Por sorte, não havia vizinhos nas
proximidades, de maneira que poderia fazer o serviço sem se
preocupar com olhares indiscretos. Apanhou uma pá no quartinho
das ferramentas e meteu-se a cavar com vontade. Após algum
tempo, começou a chover. Melhor assim, pensou. Quando eu cobrir
o corpo, a terra ficará mais homogênea. Levou quase uma hora para
abrir a cova. Tão logo supôs que o buraco estava grande o
bastante, jogou o defunto lá dentro e passou a cobri-lo com a terra.
Gastou também algum tempo na execução desta tarefa. Ao terminar
o serviço, todo encharcado pela chuva e pelo suor, julgou o trabalho
perfeito e imaginou que ninguém jamais descobriria coisa alguma.
Regressou para casa e limpou todo o sangue que tinha ficado no
assoalho, nas escadas e no porão. Em seguida, tomou um banho
gelado e foi se deitar.
Alguns dias depois, dois policiais vieram bater na casa de
Nick Carson e Linda Lee à procura do médico desaparecido.
Sabiam que ele tinha estado ali para aplicar uma injeção e, desde
então, nunca mais fora visto. Procurando disfarçar o nervosismo, o
rapaz deixou os guardas entrarem para fazer uma vistoria na
residência. Afinal, não havia por que temer, pois tinha certeza de
que eles nada encontrariam lá dentro.
Os policiais revistaram os quartos, a sala, a cozinha, o
banheiro e até o porão. Chegaram mesmo a dar uma olhada no
quintal, mas nada descobriram de estranho. Quando eles já
estavam se despedindo, rogando muitas desculpas por terem lhes
tomado o precioso tempo, Linda Lee saiu do quarto usando aqueles
malditos brincos da velha. Ela sentou-se na cadeira de balanço e o
gato, que não gostava dela, veio se aninhar em seu colo. De
repente, ela virou a cabeça para a direção dos policiais e disse:
- Já olharam debaixo dos plátanos? Há cadáveres
enterrados ali!
Tal frase fulminou Nick Carson, que caiu sentado sobre o
sofá, estarrecido de pavor. Aquela voz não era a de Linda Lee.
Aquela garota não era Linda Lee. Algo estava muito errado e ele
não conseguia compreender. Subitamente, ela começou a rir de
maneira histérica, arreganhando bastante os dentes, feito uma
meretriz bêbada. O rapaz contemplou o espelho da parede e seus
olhos petrificaram-se. Oh, horror supremo! Sentada sobre a cadeira
de balanço, Nick Carson viu a imagem refletida não de Linda Lee,
mas da própria velha! Tal visão infundiu-lhe tão profundo desespero,
que ele enlouqueceu. No mesmo instante, ergueu-se do sofá e
partiu para cima daquela assombração, tentando lhe estrangular o
pescoço. Os policiais acudiram prontamente e o algemaram. Em
seguida, chamaram reforço, que logo chegou.
Puseram-se a cavar debaixo do plátano. Em pouco tempo,
desencavaram dois corpos, o do médico, enterrado ali pelo rapaz, e
o de uma velha... Nick Carson observava tudo com olhos mortos e
insepultos, querendo compreender o incompreensível. Enquanto
isso, sua mulher ria macabramente na cadeira de balanço,
acariciando os pelos do gato.
Baile à fantasia

O s jantares de Dom
Dominghini
sempre
eram
divertidos.
Uma vez por mês, ele fazia questão de reunir toda a família, filhos e
filhas, noras e genros, netos e netas, em torno de sua mesa
abundante. Matava-se um porco gordo, que era assado durante a
tarde inteira em fogo brando, grelhavam-se carnes diversas e
preparava-se um delicioso peixe cozido com batatas e azeitonas.
Também não faltava a tradicional pasta ao molho de tomate, quase
sempre espaguete. Tudo regado com bom vinho dos melhores
vinicultores italianos. Evidentemente, as conversas eram alegres e
giravam em torno dos mais variados assuntos. Naquela noite, Paola,
uma das netas de Dom Dominghini, contando então dezessete
anos, não se cansava de comentar sobre o passeio que ela e sua tia
Antonella haviam feito na véspera. Elas tinham se dirigido até o
centro de Roma para assistir a uma fita no cinematógrafo, recém-
inaugurado na cidade. Excetuando-se as duas, nenhum dos
presentes, até então, podia se gabar de conhecer aquele novo tipo
de diversão. As primas queriam saber como funcionava e já faziam
planos para, nas próximas semanas, irem todas juntas ver aquela
novidade. Os mais velhos, por sua vez, achavam que aquilo não
passava de modinha passageira e logo o cinematógrafo fecharia as
suas portas. Nada como o teatro, com os atores presentes, atuando
ao vivo.
Pouco antes de ser servida a sobremesa, uma notável
compota de figo, feita pelas mãos da própria esposa de Dom
Dominghini, começou a chover forte e inúmeros trovões passaram a
retumbar nos céus. Subitamente, um relâmpago explodiu ali perto e
as luzes se apagaram. Houve um alarido geral por parte de todos os
comensais e as meninas começaram a gritar por pilhéria, fingindo
que estavam com medo das trevas, pois uma escuridão tremenda
passou a dominar todo o ambiente. Logo, providenciaram-se velas,
que foram colocadas em castiçais sobre a mesa. Quando a surriada
diminuiu um pouco, Dom Dominghini falou:
- Vocês, minhas netas, que nasceram ontem, com a energia
elétrica instalada confortavelmente em nossos aposentos, não
sabem como era viver sem ela, há uns trinta anos, quando tínhamos
apenas o gás para iluminar nossas casas ou ainda, antes disso, no
tempo de minha longínqua mocidade, quando a iluminação provinha
apenas de velas de cera.
- Mas, nonno, nós estávamos gritando, porque temos medo
de escuro. Respondeu uma das moças, em tom de chacota.
As sombras das velas dançavam macabramente pelas
paredes e eram refletidas num grande espelho que havia pendurado
sobre uma penteadeira, encostada a um dos cantos da sala. Os
reflexos pálidos daquela luz amarelenta punham na face de todos
matizes sombrios, encovando os olhos e fazendo aparecer malares
ossudos e queixos proeminentes.
- Por que medo do escuro? Quis saber Dom Dominghini.
- Por causa de assombração...
O velho deu uma risada lúgubre de propósito. Depois, após
comer uma colherada do doce de figo, bradou:
- Então, vocês têm razão por ter medo.
- Por que, nonno, você já viu alguma alma do outro mundo?
- Não quero falar sobre esse assunto. Tudo isso é muito
assustador e não gosto nem de me recordar. Respondeu o velho,
procurando atiçar ainda mais a curiosidade das meninas.
- Ah, conta, nonno... Pensávamos que você não tivesse
medo de nada...
- E não tenho mesmo! Só tive medo uma vez na vida,
quando eu era tão jovem quanto vocês. Um medo tão profundo e
aterrorizante, que até hoje sinto minhas pernas tremerem ao me
recordar.
Todas as moças começaram a bater na mesa com as
colheres, bradando juntas, feito um coral ensaiadinho:
- Conta! Conta! Conta!
- Está bem, mas depois não digam que não avisei. O que
ocorreu comigo é uma história tenebrosa e macabra. Se alguma de
vocês não conseguir dormir à noite, não venham colocar a culpa em
mim...

* * *

Foi no tempo em que eu deveria ter meus vinte anos


incompletos. Era uma noite escura, chuvosa, e eu seguia pelas ruas
de nossa velha cidade sem destino certo. Sempre gostei de
caminhar à noite pelos becos silenciosos e sombrios, pois me
ajudava a refletir. Desde muito jovem, eu tive as minhas veleidades
literárias e gostava de buscar inspiração andando, respirando o ar
fresco das noites. Sendo um rapaz destemido e forte, nada me
amedrontava e eu costumava voltar para casa pelo meio da
madrugada, quando toda a cidade já se achava adormecida. Quase
sempre, percorria as mesmas ruas, seguindo a vontade das minhas
pernas, tão acostumadas elas estavam por fazer diariamente
aqueles percursos noturnos.
Aquela noite, contudo, foi diferente. Eu havia saído de uma
taverna, onde tinha bebido alguns copos de vinho com uns
conhecidos, e decidi seguir por um caminho totalmente novo para
mim. Não sei se isto se deveu a minha consciência que estava um
pouco alterada em virtude da bebida que eu ingerira ou por qualquer
outro motivo que me escapa agora. O fato é que resolvi caminhar
por vias diversas da minha rotina habitual. Embora não fosse muito
intensa, a chuva era constante e ia lavando não só as ruas de
pedra, mas também as barras das minhas calças e sapatos, uma
vez que meu guarda-chuva só conseguia cobrir parte do corpo.
Apesar disso, não estava disposto a regressar para casa tão cedo,
pois meu cérebro parecia mais ágil que de costume e eu ia
alinhavando versos em cima de versos num poema genial.
Subitamente, deparei-me com algo incrível. Na verdade,
precisei esfregar um pouco os olhos para me certificar de que não
se tratava de uma miragem. Havia uma moça, com não mais de
vinte anos, caminhando sozinha pela rua. Ora, naquele tempo, as
mulheres de família não saíam desacompanhadas em hipótese
alguma, muito menos à noite. Apenas servas e meretrizes podiam
ser vistas circulando a sós pelas ruas da cidade. Além do mais,
aquela jovem não trazia guarda-chuva e, naquela altura, já se
achava completamente encharcada. Os seus longos cabelos loiros
escorriam por cima dos ombros molhados e sua blusa havia se
colado sobre as formas tenras dos seios. Evidentemente, tal visão e
circunstâncias insuflaram em meu espírito uma curiosidade
descomunal sobre a garota, que passei a seguir descaradamente.
Já não me lembrava mais do poema que eu compunha de cabeça e,
naquele momento, nada mais me interessava. Quando algum
relâmpago cortava os céus, enchendo de sombras pálidas a cidade
adormecida, eu podia discernir melhor os traços da jovem e logo
pude constatar que ela era linda. A certa altura, resolvi alcançá-la e
apertei os passos. Tão logo cheguei a seus calcanhares, chamei-lhe
em voz alta:
- Moça! Moça, por gentileza...
Creio que só então ela se deu pela minha presença. Para
minha felicidade e surpresa, a jovem estacou os seus passos e
virou-se para trás.
- O que foi?
- Estamos indo para a mesma direção. Entre aqui debaixo
do meu guarda-chuva para não se molhar.
Foi uma frase idiota, pois ela já estava completamente
ensopada. Tanto que a garota riu ao perceber que eu ficara um
pouco embaraçado com a besteira dita e proferiu:
- Para não me molhar mais, você quer dizer...
E sorriu com uns olhos lindos, açucarados. Aproveitei a
deixa para cobri-la, pois entendi aquele sorriso como um sim.
Enquanto caminhávamos, os nossos corpos iam se tocando e eu
sentia o doce perfume de seus cabelos inebriando-me ainda mais
do que o vinho.
- Como você se chama?
- Agnetta.
- O que faz por aqui? Não sabe que é perigoso uma mulher
andar sozinha à noite?
- Saí para dar uma caminhada e creio que perdi a noção do
tempo. Depois, começou a chover...
- Uma jovem tão bonita quanto você chama muito a atenção
e não deve sair de casa desacompanhada...
- Obrigada pelo elogio. Prometo que serei mais cuidadosa
da próxima vez.
Após terem caminhado algum tempo, Agnetta disse que sua
casa ficava pouco adiante e que, dali para frente, ela preferia seguir
sozinha.
- Por que isso? Faço questão de levá-la até a porta de sua
residência.
- Não! Bradou alterada.
- Por que não?
- Meus pais podem ver que estou acompanhada por um
homem e, certamente, não gostarão disso. Deixe-me ir sozinha,
moro logo ali...
- Na quadra do cemitério?
Ela sorriu lindamente e se afastou. Por um instante,
permaneci estacado na calçada, sem ação, fitando a jovem que
desapareceu na esquina. Sentia o meu coração batendo acelerado
dentro do peito e uma vontade de gritar aos céus que aquela era a
moça mais bonita que eu já vira em toda a minha vida. Corri atrás
dela para ver se a alcançava; porém, quando dobrei a esquina, não
havia ninguém em parte alguma. Do outro lado da rua, a porta do
cemitério achava-se escancarada e a chuva ia lavando as lápides
sombrias.
No dia seguinte, saí para caminhar durante a noite e, como
não poderia deixar de ser, minhas pernas seguiram o mesmo
percurso da véspera. Não estava chovendo e eu me achava muito
ansioso por encontrar Agnetta novamente. Por diversas vezes, voltei
e tornei a regressar onde eu havia encontrado a garota, mas nem
sinal dela. Percorri inúmeras vezes as mesmas ruas e cheguei a ir
até o cemitério, que me pareceu ainda mais lúgubre, pois a lua
deitava sombras pardacentas sobre os túmulos e as árvores que ali
existiam agitavam suas copas funéreas por causa do vento intenso.
Regressei tarde para meu quarto, que eu alugava numa velha
pensão nos arrabaldes da cidade, e só consegui adormecer após
muito tempo deitado na cama, pois a imagem de Agnetta com os
cabelos molhados pela chuva não me saía da cabeça.
Foi uma paixão fulminante. Durante as tardes seguintes, eu
cansei de perguntar a toda gente que encontrava nas redondezas a
respeito da menina. Descrevia as suas características físicas e
citava o seu nome, mas ninguém me soube dizer nada sobre
nenhuma Agnetta com aquela descrição. Cheguei mesmo a ficar
uma noite inteira plantado no local onde nós havíamos nos
encontrado naquela noite chuvosa, imaginando que minha jovem
adorada pudesse aparecer ali como que por encanto, de um
momento a outro. Tudo inútil, pois era como se ela houvesse
evaporado da face da terra.
Finalmente, quase um mês após eu tê-la visto pela primeira
vez, encontrei novamente aquela jovem que estava tirando o meu
sono. Chovia a cântaros e eu me encontrava debaixo de uma
marquise de um prédio, aguardando que a tempestade diminuísse
um pouco. De repente, um vulto aproximou-se ligeiro pelas minhas
costas e eu ouvi sua voz inconfundível:
- Olá, Dominghini, como tem passado?
Ao vê-la, minha comoção foi tamanha, que eu sentia como
se houvesse estrelas explodindo dentro do meu peito. Por um breve
segundo, não consegui dizer nada, atordoado que estava pela
surpresa. Evidentemente, Agnetta achava-se bastante molhada e eu
comecei a imaginar que ela possuía certa volúpia secreta para
caminhar na chuva.
- Agnetta! O que faz aqui? Não vai me dizer que perdeu a
noção do tempo outra vez...
A jovem sorriu deliciosamente e respondeu:
- Não, seu bobo! Estava entediada de ficar em casa, resolvi
sair para arejar e a chuva me apanhou no meio do caminho...
- Acho que é nosso destino nos encontrarmos em noites
escuras e chuvosas.
Ela não respondeu nada, limitando-se a dar um sorriso
enigmático.
- Bom, deixe-me levá-la para casa. Como eu lhe disse no
outro dia, é muito perigoso você andar sozinha por aí...
A garota concordou e nós dois entramos debaixo do guarda-
chuva, insuficiente para nos cobrir da tempestade. Caminhamos
juntos por mais de quinze minutos e, durante este tempo, fomos
conversando sobre coisas banais e belas, como costumam fazer os
jovens enamorados. Quando chegamos à determinada esquina,
Agnetta pediu para continuar sozinha o restante do caminho, pois já
se encontrava muito próxima do local onde morava.
- Espere! Bradei decidido, segurando-a por um dos braços.
Ela me fitou um pouco ansiosa por se livrar daquela mão
que a detinha. Sem perder mais tempo, trouxe-a para junto do meu
corpo e lhe sussurrei em seu ouvido:
- Eu te amo!
Para minha surpresa, Agnetta me empurrou, procurando se
desvencilhar de meu abraço e disse com voz resoluta:
- Não me toque jamais! Não podemos...
- Por que não podemos, você é casada ou comprometida
com outro?
- Não sou casada, nem comprometida, simplesmente não
podemos...
- Por quê, Agnetta? Você não me ama?
A garota não respondeu. Os seus olhos estavam vermelhos,
mas era impossível saber se ela se achava chorando, uma vez que
seu rosto encontrava-se lavado pela chuva. Quis cobri-la novamente
com o guarda-chuva, mas a jovem se afastou, arisca. Ao cabo de
algum tempo, arrisquei:
- Quando a verei de novo?
Agnetta hesitou um instante, como se estivesse meditando a
respeito de uma enorme dúvida em seu coração. Em seguida,
proferiu:
- Sábado, irei ao baile à fantasia dado pelo Conde de
Tolucca, de quem sou grande amiga. Diga que é meu convidado e
você será bem recebido. Esteja lá pontualmente à meia-noite...
- Onde será?
- Em seu castelo, na estrada entre Parma e Módena...
- Como a reconhecerei, se todos estarão fantasiados?
- Irei com uma máscara prateada em formato de lua
crescente sorrindo...
Após ouvir isso, aproximei-me novamente dela e tentei
beijá-la, mas Agnetta saiu correndo e dobrou a esquina.
Imediatamente, resolvi seguir em seu encalço, mas o meu guarda-
chuva se retorceu para cima em virtude do vento e me escapou da
mão. Quando o alcancei e cheguei ao final do quarteirão, minha
amada já havia desaparecido. Naquela quadra, localizavam-se
alguns poucos casebres de um dos lados e o cemitério do outro,
com a sua imensa porta de ferro escancarada macabramente. Será
que ela tinha resolvido se esconder lá dentro? Aproximei-me com
cautela da entrada e espiei o interior sombrio. Tudo parecia envolto
em trevas e, excetuando-se o ruído da chuva que golpeava a terra
encharcada, não se ouvia mais nada. Como eu não acreditava em
fantasmas e os mortos não podiam fazer nada contra mim, resolvi
entrar no cemitério para ver se encontrava Agnetta escondida atrás
de alguma lápide. Infelizmente, a escuridão ali era total e eu
somente conseguia ver algo, quando um relâmpago riscava os céus,
iluminando as tumbas funéreas. Por algumas vezes, chamei pelo
nome dela, mas foi tudo em vão. Logo, concluí que seria muito difícil
descobri-la escondida no cemitério. Dei meia-volta e regressei para
minha casa.
Nos dias que se seguiram, empenhei-me em fazer uma boa
fantasia. Não queria aparecer no castelo do Conde de Tolucca como
alguém que não se vestisse de acordo com a importância da festa.
Contratei os serviços de uma costureira e lhe dei ordens que
empregasse o melhor tecido que ela pudesse descobrir para
confeccionar um traje de arlequim, com seus característicos
losangos coloridos. Também lhe encomendei um chapéu de dois
bicos, conforme um desenho que lhe mostrei. Tratava-se de um
modelo muito antigo, já fora de moda nos tempos do meu bisavô.
Depois, entrando numa loja de antiguidades, encontrei, por acaso,
uma bela máscara que me serviu a contento. Com isto, estava
pronta a minha fantasia deste famoso personagem da commedia
dell´arte.
No dia marcado, saí de casa tarde da noite e segui para o
castelo do Conde de Tolucca montado em meu imponente cavalo de
pelos negros. O local ficava a uma boa distância de onde eu morava
e calculei que a viagem levaria entre duas e três horas. Como a
noite estava bastante escura, os céus obstruídos por nuvens
pesadas, resolvi seguir viagem já vestido com minha fantasia, pois
os caminhos deveriam estar desertos e ninguém, ou quase
ninguém, se surpreenderia com aquele arlequim misterioso
cavalgando apressado pelo meio das trevas. Durante o meu trajeto,
só conseguia pensar em Agnetta. A minha vontade era abraçá-la,
cobri-la de beijos e passar o resto da vida ao seu lado. Será que ela
também me amava? Que feitiços indevassáveis possuía aquela
moça tão misteriosa, que havia arrebatado de uma forma tão
violenta o meu coração?
Após muito cavalgar, avistei o castelo no alto de uma
montanha. De longe, pareceu-me bastante sinistro, com suas
muralhas de pedras escuras e torres estreitas a alfinetar os céus.
Parei o cavalo um instante e consultei meu relógio de bolso. Apesar
da escuridão, consegui enxergar que faltavam quinze minutos para
a meia-noite. Estava um pouco adiantado. Segui por uma trilha
estreita, esburacada, ladeada em ambos os lados por inúmeras
árvores sombrias, que uniam suas copas sobre a minha cabeça.
Passei por uma velha ponte de madeira apodrecida, suspensa por
cordas desgastadas e roídas por ratos, que dava a impressão de
que iria desabar a qualquer momento, lançando cavalo e cavaleiro
sobre um riacho que corria aos pés do despenhadeiro. Depois de
trilhar por mais uns quinze minutos sobre uma picada de cascalho e
pedras, o castelo surgiu imenso diante de meus olhos surpresos. Da
estrada principal, não parecia tão grandioso. Curiosamente, não se
achavam carruagens, coches ou mesmo cavalos estacionados no
pátio. Para falar a verdade, tudo estava no mais completo silêncio e
luz alguma se via das janelas. Tinha-se a impressão de que ali não
aconteceria baile algum.
Aquele era o castelo do Conde de Tolucca, não havia
dúvidas. Mas onde estariam todos os convidados? Amarrei meu
cavalo a uma árvore e me dirigi para a entrada, imaginando ter
chegado cedo demais. Bati várias vezes com a aldrava na
gigantesca porta de madeira maciça, mas ninguém veio atender. Um
vento gelado soprava de oeste e os primeiros pingos de chuva
começaram a cair. Para não me molhar, resolvi empurrar a porta e
ela se abriu como num passe de mágica, rangendo tetricamente.
Arrisquei alguns passos para o interior escuro do castelo e tive a
impressão de ouvir ruídos no andar de cima. Pé ante pé, caminhei
pelo saguão envolto em trevas, tendo as mãos erguidas à minha
frente, para evitar um encontrão com alguma parede. De súbito, um
relâmpago explodiu a alguma distância, deitando uma luminosidade
pálida em todo o ambiente. Notei que o piso era de pedra, como as
paredes, e havia uma antiga armadura medieval encostada a uma
coluna. Do outro lado, existia uma escada em curva. Caminhei até
ela e comecei a subir lentamente os degraus. Não que estivesse
com medo, mas o meu peito ofegava e eu sentia um calafrio na
espinha, pois não sabia o que iria descobrir no andar de cima. A
cada passo dado, os ruídos pareciam ficar mais intensos e vozes
iam se misturando a sons de instrumentos musicais.
Quando cheguei ao final da escada, deparei-me com um
imenso salão iluminado por inúmeros e enormes tocheiros
pendurados nas paredes. Havia ali uma multidão de pessoas, todas
rindo e falando ao mesmo tempo, enquanto uma pequena orquestra
de músicos animava o baile com belas canções, mas que ninguém
parecia ouvir. Não sei como não pude ver o reflexo das luzes
através das janelas, quando eu estive no pátio minutos atrás;
porém, não me interessei por mais este mistério. Naquele momento,
o que eu mais desejava era encontrar Agnetta.
Os convidados eram muitos e se espremiam por toda a
parte, prova de que o Conde era bastante querido e estimado pelos
amigos. Todos se achavam mascarados e vestidos com belas
fantasias. Havia uma infinidade de reis, príncipes, duques,
marqueses, sultões, rainhas, odaliscas, camponesas, colombinas,
etc. Os trajes eram confeccionados com ricas fazendas, como sedas
ou veludo, e a grande maioria possuía inúmeros adereços ornados
em tafetá, além de plumas coloridas. O que mais me chamou a
atenção foi o fato de não haver comida ou bebida, como costumava
acontecer nestes tipos de festas. Talvez o Conde de Tolucca
estivesse preparando uma ceia para o final do baile; pelo menos,
era este o meu desejo, pois havia saído de casa quase sem comer
nada. Tão logo entrei no salão, pus-me de imediato a procurar por
Agnetta. Enquanto eu ia me espremendo entre os demais
convidados, comecei a perceber que toda gente me evitava.
Evidentemente, ninguém sabia quem eu era, mas os demais
presentes pareciam me conhecer, pois foi esta a exata impressão
que eu tive. Mais do que isso. Notei que falavam de mim pelas
minhas costas e muitos me viravam a cara, quando não me olhavam
torto, como se eu fosse um leproso. Quando me dirigi a uma
senhora a fim de lhe perguntar se ela conhecia uma moça chamada
Agnetta e se a vira por ali, ela simplesmente me ignorou por
completo, seguindo para outra direção e me deixou falando sozinho.
Por boa parte daquela madrugada, não fiz outra coisa a não
ser procurar pela minha amada no interior do salão. Não era uma
tarefa fácil, como pode parecer a princípio. Além de haver muita
gente, todos se achavam fantasiados, o que dificultava muito a
minha busca. Por mais que eu me empenhasse nisso, não consegui
descobrir nenhuma jovem usando uma máscara de lua crescente
sorrindo, conforme ela me afirmara que faria.
Após tão infrutífera busca, resolvi sair um pouco para
respirar ar fresco, pois eu estava me sentindo sufocado no meio de
tantos convivas. Desci as escadas escuras, atravessei o saguão
sombrio e parei junto à porta, que continuava aberta, conforme eu a
deixara. A chuva agora parecia mais forte e o pátio vazio
encontrava-se repleto de poças de lama. Só o meu cavalo ali
permanecia, embaixo de uma árvore. Era, verdadeiramente, um
mistério, como toda aquela gente chegara ao castelo. Mas isto não
me importava. O que eu queria era encontrar Agnetta; por isso, subi
outra vez para o salão de festas, mesmo imaginando que talvez ela
não pudesse ter vindo ao baile.
Dessa vez, porém, tive mais sorte. Nem bem acabei de
entrar ali e meus olhos calharam de descobri-la em meio à grande
quantidade de mascarados. Não havia dúvida alguma e, além do
mais, ela estava usando a máscara de lua crescente sorrindo. Mal
me viu, teve um sobressalto e procurou se esconder por entre a
multidão. A impressão que eu tive foi de que Agnetta estava se
ocultando de mim desde a minha chegada. Quando me viu descer
as escadas, imaginando que eu fosse embora, deve ter saído de
seu esconderijo para aproveitar os últimos resquícios da festa, pois
já estava quase amanhecendo. Sem pensar em mais nada,
desesperado, saí correndo atrás dela, empurrando as pessoas que
me entravam na frente. Às cotoveladas, fui conseguindo abrir
caminho, enquanto via Agnetta fugindo lá adiante. Mas eu era muito
mais rápido do que ela e logo a alcancei, agarrando-lhe um dos
braços.
- Por que você está fugindo de mim? Ou melhor, por que se
escondeu de mim a noite toda?
- Largue-me! Foi um erro você vir! Por favor, vá embora
agora!
- Mas, Agnetta, eu te amo!
- O nosso amor é impossível, já lhe disse! Vá embora, antes
que seja tarde demais...
Naquele momento, todos no salão pareciam ter os olhos
cravados em nós. Puxei Agnetta com força para junto de meu corpo
e tirei a minha máscara de arlequim, pois a minha intenção era
beijá-la. Quando fui retirar a sua máscara, ela passou a berrar e
espernear enlouquecida. Nisso, o Conde de Tolucca se aproximou e
proferiu de maneira ríspida:
- Largue-a e deixe a garota em paz!
Os músicos calaram seus instrumentos e fez-se um silêncio
agudo. Todos pararam de dançar e não havia uma única pessoa que
não nos estivesse fitando naquele momento.
- Preciso falar com Agnetta! Bradei decidido.
- Mas ela não quer falar com você. Não deve e não pode.
Vocês dois nunca ficarão juntos...
- E por que não?
- Porque ela não faz mais parte do seu mundo.
Aquelas palavras estraçalharam-se dentro de mim como
cacos de cristal. Senti um calafrio escorrer por dentro de minha
medula e, por um instante, tive a impressão de que o tempo havia
parado. Lentamente, o conde começou a tirar a sua máscara e um
rosto desfigurado e andrajoso apareceu. Na verdade, não passava
de uma criatura monstruosa e fantasmagórica, que começou a rir
sarcasticamente. A sua risada enchia o salão inteiro e parecia ecoar
de criptas funéreas. Aos poucos, os demais convidados puseram-se
a retirar as próprias máscaras, exibindo faces decompostas,
macabras. E todos meteram-se a rir de maneira diabólica.
Finalmente, a própria Agnetta arrancou a sua máscara e eu vi,
aterrorizado, entorpecido, alucinado, que também a face dela se
achava transformada numa criatura medonha e assombrosa. Quase
sem voz, indaguei:
- O que é isso?
- Este é o baile dos mortos. Se você não partir antes do sol
raiar, jamais poderá regressar...
O Conde de Tolucca não precisou dizer mais nada.
Imediatamente, com o coração me escapulindo pela boca, voei
escada abaixo, atravessei o salão sombrio do primeiro andar e saí
do castelo. Com dedos tremendo, desamarrei meu cavalo, montei o
animal num pulo ligeiro e desapareci dali em galope acelerado.
Nunca mais voltei a ver Agnetta.

* * *

Houve uma surriada geral por parte das meninas, pois a luz
havia retornado no exato instante que Dom Dominghini encerrara a
sua narrativa.
- Não disse que era uma história aterrorizante? Agora, por
favor, passem-me mais um pouco de vinho, pois estou com a
garganta seca.
A merenda

O motorista parou o
carro no
acostamento e disse
para o jovem casal seguir por uma trilha que havia pouco adiante,
caso quisessem chegar até as montanhas antes de escurecer.
Johnny Dee desceu do veículo, seguido por Mary Ann, que apanhou
as duas mochilas e as colocou sobre o chão de pedriscos. O rapaz
agradeceu a carona e lhe ofereceu um cigarro, como cortesia. O
homem o apanhou com seus dedos grossos e devolveu o maço
quase vazio a Johnny, que acendeu outro para si próprio, com o
velho isqueiro onde se via uma caveira em alto-relevo no aço
escovado. Deu uma longa tragada, soltando prazerosamente
fumaça pela boca, e colocou uma das mochilas nas costas. Mary
Ann pegou a outra e os dois começaram a caminhar pela estreita
estradinha, de mãos dadas, pisando as folhas de eucaliptos, que
margeavam os dois lados do caminho.
Há quase uma semana, haviam começado aquela viagem
pelo interior do país, praticamente sem dinheiro algum. Comiam e
dormiam conforme a generosidade das pessoas a quem pediam
abrigo e alimento. Às vezes, passavam a noite ao relento, tão
abraçados que pareciam ter se fundido num único corpo, amando-
se debaixo da madrugada estrelada. Ela deixara um recado para
seus pais, dizendo que iria atrás de sua felicidade. Ele, nem isso.
Saíra de casa sem avisar ninguém, levando na mochila apenas o
estritamente necessário: algumas camisas, cuecas limpas, calças e
escova de dentes. Não havia com o que se preocupar. O importante
era aproveitar cada minuto, como dizia Johnny Dee a Mary Ann, que
o resto viria naturalmente. Estavam felizes e isto era que importava.
Após caminharem por quase uma hora, chegaram a uma
clareira, onde havia uma cabana de um lado e um velho celeiro do
outro. O rapaz disse à namorada que ali seria um bom local para
eles passarem a noite. Logo iria escurecer e a tarde estava ficando
gelada. Dirigiram-se até a choupana e bateram na porta, mas
ninguém atendeu. Bateram de novo. Nada. Certamente, não havia
pessoa alguma na casa. Mary Ann forçou a maçaneta e a porta se
abriu, rangendo nas antigas dobradiças meio enferrujadas. Johnny
Dee adiantou-se a ela e entrou na frente, seguido pela garota. Como
imaginavam, o casebre encontrava-se vazio. Possuía apenas dois
ambientes: um quarto nos fundos, onde se achava uma cama de
solteiro, e uma espécie de sala na frente, que também servia como
cozinha. No centro desta, existia uma mesa de madeira rústica,
exibindo dois pratos com restos de comida seca e moscas voejando
sobre eles. Junto a uma das paredes, ficava o fogão à lenha,
encostado a uma pia. No outro lado da sala, havia uma lareira ainda
com cinzas e restos de madeira queimada. Um velho armário
ensebado fazia parte do escasso mobiliário, composto por algumas
cadeiras, uma estante e uma grande arca posta num dos cantos.
Mary Ann colocou a sua mochila sobre a mesa e disse:
- Parece que os proprietários saíram às pressas. Não
tiveram nem tempo de lavar os pratos...
Johnny Dee olhou-os com atenção, dizendo que os restos
secos daquela comida deveriam estar ali há pelo menos quinze
dias.
- Será que voltarão? – quis saber a menina.
- Talvez sim, talvez não. De qualquer forma, acho que não
vão se importar se a gente passar a noite aqui.
A garota concordou com um sorriso. Sentia-se cansada e
não queria dormir ao relento mais uma vez. Como estava esfriando,
o rapaz saiu para procurar um pouco de lenha, pois desejava
acender a lareira. Ele regressou pouco depois, carregando uma
braçada de galhos secos, que encontrou junto a uma cerca, tudo já
muito bem cortadinho e pronto para ir ao fogo. Mal entrou na
choupana, proferiu:
- Sabe o que eu descobri atrás da casa? Uma tina!
- Uma tina? Estou louca de vontade para tomar um banho!
- Eu também. Vou apanhá-la e já volto.
Ao regressar, Johnny Dee acendeu a lareira e o fogão à
lenha, sem grande dificuldade, pois eles haviam encontrado um
frasco de álcool debaixo da pia. Colocaram sobre a grelha um
grande latão de água e começaram a preparar o banho. Para que
este não ficasse muito quente e lhes escaldasse a pele, puseram na
tina um pouco de água da torneira. Depois, viraram o tacho fervendo
sobre ela e a temperatura da água ficou bastante agradável. Os dois
começaram a se despir, quando Mary Ann lembrou-se que não
tinham toalhas para se enxugar.
- Dê uma olhada na arca. – disse o rapaz.
Ela abriu a enorme canastra e sorriu de felicidade ao
encontrar uma toalha de banho.
- Veja! E há também pijamas de flanela!
A água deliciosamente aquecida da tina acariciava-lhe as
carnes excitadas e amaram-se de maneira apaixonada. Quando
saíram dali, vestiram os pijamas e Mary Ann disse que iria preparar
qualquer coisa para eles comer. A moça havia olhado dentro do
armário e encontrara muita comida enlatada, mas não conseguiram
descobrir um abridor de latas em parte alguma. Então, ela apanhou
um pacote de macarrão instantâneo e o atirou dentro de uma panela
com água. Não era a melhor refeição do mundo, mas servia para
matar a fome.
Enquanto aguardava a comida ficar pronta, Mary Ann sentiu
algo peludo roçar os seus tornozelos. A garota deu um pulo para
trás, acompanhado de um grito pavoroso. No mesmo instante,
Johnny Dee saltou da cadeira onde se achava sentado e berrou:
- Um rato!
Imediatamente, ele pegou uma vassoura e cercou o animal,
que acabou acuado num canto. Mary Ann trepou em uma cadeira e
passou a se esgoelar feito uma neurótica destrambelhada:
- Mata! Mata! Mata!
Normalmente, os ratos são bichos espertos, mas aquele não
deveria estar nos seus melhores dias. Para fugir ao seu perseguidor,
ele escolheu regressar pelo mesmo caminho, passando ao lado de
Johnny Dee, que lhe sentou uma senhora bordunada, amassando o
infeliz no chão. Alucinado, o rapaz cobriu a ratazana de
vassouradas, apenas para garantir. Em seguida, varreu-o para fora
da choupana.
- Jogue-o longe daqui! – berrou Mary Ann ainda de cima da
cadeira.
Com um pedaço de papel, Johnny Dee apanhou o animal
pelo rabo e o atirou com toda força para longe, indo o cadáver cair
perto do celeiro.
- Agora pode descer da cadeira, está salva.
A menina pulou no chão. Ainda se achava um pouco
nervosa e disse:
- Não quero dormir num lugar infestado por ratos!
- Talvez fosse o único. Tive a impressão, se não me engano,
de tê-lo visto sair detrás daquela arca.
- Então dê uma olhada, por favor! Cuidado...
Segurando a canastra por uma das laterais, o moço a
empurrou um pouco de lado. Ficou muito surpreso com o que
encontrou ali. Atrás da arca, havia um buraco enorme na parede,
que daria para passar até um lobo. Johnny Dee aproximou seus
olhos espantados daquela abertura e proferiu:
- Que estranho! A madeira parece ter sido roída... que
animal poderia ter feito isso?
Mary Ann passou seus dedos delicados sobre as grossas
toras destruídas, dizendo:
- Veja como a marca dos dentes são grandes. Meu amor,
isto me deixou arrepiada e estou com medo. Vamos embora daqui?
- A esta hora? Onde descobriremos outro lugar para dormir?
Não se preocupe. Seja lá que bicho fez isso, deve estar longe
agora. Caso contrário, ele teria revirado a casa inteira atrás de
comida e encontramos tudo relativamente arrumado... Além do
mais, temos muitas facas para nos proteger. Ainda assim, se você
se achar insegura, posso consertar isso facilmente...
- Como?
Os dois passaram para o lado de fora da casa através do
buraco. O rapaz contemplou o estrago por alguns segundos, até que
disse:
- Posso pregar umas tábuas aqui. Aliás, vou fazer isso agora
mesmo... Talvez haja pregos e martelo no celeiro...
Mary Ann acompanhou o namorado até lá. Por azar, a
enorme porta estava trancada com uma corrente e um grosso
cadeado. Johnny Dee deu um chute potente na porta, que balançou
as estruturas, mas não a abriu. A menina ergueu uma das mãos
diante do nariz, fazendo sinal de silêncio.
- Ouviu isto?
- Não ouvi nada! – respondeu o jovem.
- Veio lá de dentro. Algo como um alarido estranho, uma
mistura de cochichos e rosnados, não sei direito...
Fizeram silêncio por algum tempo, mas não escutaram nada
além do vento gelado soprando as folhas das árvores. Mary Ann
agarrou um dos braços do moço e pediu que entrassem.
- Já está escuro, não quero ficar aqui fora. Amanhã, você vê
se consegue consertar aquilo.
O rapaz concordou, um pouco a contragosto. Entraram na
choupana e encostaram a arca na abertura da parede, cobrindo
totalmente o buraco, para evitar que outro rato entrasse por ali.
Depois, como estavam cansados e não tinham mais nada para
fazer, resolveram ir para a cama. A garota não gostou do colchão,
que era de palha e pinicava bastante, além de exalar um cheiro forte
de umidade e bolor. Debaixo das cobertas, Johnny Dee começou a
tocar o corpo quente da amada e a lhe beijar o pescoço; porém,
Mary Ann virou de lado e disse que queria apenas dormir. Como
estava bastante preocupada, custou para pegar no sono. Somente
adormeceu no meio da madrugada, quando uma chuva miúda
começou a cair no telhado.
No dia seguinte, a garota acordou sozinha na cama. Ainda
meio ensonada, esticou o braço de lado e certificou-se de que o
rapaz não se achava ali. Teria saído para ir ao banheiro? Levantou-
se um pouco angustiada e chamou por ele, mas não obteve
qualquer resposta. Abriu a porta da choupana e pôs-se a gritar o
seu nome. Nada. Apenas a solidão daquele início de manhã gelada
parecia responder-lhe em dolorosas reticências. Quem sabe teria
ido procurar os malditos pregos e o martelo, a fim de consertar o
orifício da parede. Não, agora tudo aquilo lhe parecia uma ideia
estúpida. Mary Ann sentiu o vento aninhando-se em seus cabelos
compridos e decidiu entrar. Talvez o namorado tivesse ido comprar
pães e broas para o desjejum. Também não. Aquele, sim, era um
pensamento ainda mais estúpido.
Abrindo o armário, encontrou uma lata com pó de café. Leite
não havia. Acendeu o fogão, pôs água num bule e começou a
preparar o café. À medida que o tempo ia passando, ela tornava-se
mais aflita. Por volta das dez horas, saiu da choupana e se dirigiu ao
celeiro, mas este continuava trancado. Nem sinal de Johnny Dee.
Subitamente, uma ideia terrível tomou conta da menina, deixando-a
tão ferida, quanto se tivesse se abraçado a um cacto. E se o rapaz a
houvesse abandonado sozinha naquele local longínquo e deserto?
Mary Ann não queria acreditar nessa possibilidade. Ao
entrar novamente na choupana, seus olhos depararam-se com a
mochila dele em cima de uma cadeira. Se fosse para ir embora, com
toda certeza não a deixaria ali. A garota abriu o zíper e constatou
que as roupas se encontravam todas em seu interior. Até mesmo a
calça e a camisa usadas por Johnny Dee no dia anterior
permaneciam esticadas no espaldar daquela cadeira. Isto só
poderia significar que ele saíra vestindo apenas o pijama. Tal
pensamento tranquilizou-a um pouco, pois seu namorado não
poderia ter ido longe. Talvez, estivesse se preocupando à toa.
Enquanto aguardava, Mary Ann pôs-se a procurar por
fósforos e acabou encontrando o abridor de latas no fundo de uma
gaveta. Resolveu preparar o almoço. Abriu uma lata de feijão e a
colocou no fogo, que acendeu com o isqueiro de Johnny Dee, o qual
permanecia dentro de um dos bolsos da calça do rapaz. Os fósforos
haviam desaparecido. Almoçou sem vontade e, após lavar a louça,
decidiu ler um romance de capa e espada que ela trouxera consigo
em sua mochila. Assim passou toda a tarde, concentrando-se pouco
na leitura, pois estava muito angustiada e nervosa. A todo instante,
pensava ouvir algo lá fora. Levantava-se, caminhava até a janela e
permanecia observando o mato agitado pelo vento. Quando
escureceu, acendeu um lampião a gás e continuou esperando,
tensa, preocupada, amargurada, desesperada, uma vez que não
sabia mais o que fazer.
A madrugada já ia alta e Mary Ann permanecia cochilando
numa cadeira, quando ela despertou subitamente, tendo a
impressão de que havia escutado um barulho estranho em volta da
casa. Que teria sido? Assustada, colocou uma das mãos atrás da
orelha para ouvir melhor, mas tal gesto resultou inútil, pois o ruído
tornou-se mais forte e amedrontador. Parecia algo se arrastando
com passos pesados, como se caminhasse com extrema
dificuldade. De repente, algo bateu violentamente na porta,
enchendo o espírito da menina de terror. Que fazer? A primeira
reação dela foi correr até o armário para apanhar uma faca, a maior
que encontrasse na gaveta. Em seguida, bradou com voz firme para
o invasor ir embora, porque ele se achava armada. Por alguns
instantes, fez-se um silêncio crítico, onde só se ouvia a respiração
alterada de Mary Ann. Enchendo-se de coragem, a menina deu
alguns passos até a janela, mas não viu nada. Já estava pronta para
sair dali, quando contemplou algo que a deixou aterrorizada. Cristo
Jesus! Era Johnny Dee.
Dominada por uma aflição tremenda, a garota abriu a porta
e o corpo do namorado caiu dentro da choupana, completamente
coberto de sangue. Trazia as roupas todas rasgadas e a pele
terrivelmente mordida. Um de seus olhos havia sido arrancado e as
orelhas achavam-se comidas. Parecia mais morto do que vivo.
Fazendo um esforço extraordinário, pois mal conseguia falar
tamanha dor que sofria, ele balbuciou com voz chorosa, ainda
tremendo em virtude das coisas terríveis que havia visto:
- Feche a porta...
Mary Ann chorava descontrolada, enlouquecida de pavor, e
só conseguia repetir as mesmas palavras:
- Que foi? Que aconteceu?
- Feche a porta... eles estão vindo...
- Eles quem?
- Os ratos... os monstros... fui ao celeiro... eles moram lá...
são criaturas demoníacas...
Ao ouvir aquilo, Mary Ann correu até a porta e a trancou. Em
seguida, ajudou o namorado a se sentar em uma cadeira.
Encharcou um pano de prato e começou a passar sobre o rosto
dele, coberto de feridas.
- Vou pegar um pouco de água com açúcar para você se
acalmar. – disse a menina.
Porém, enquanto agitava o açúcar no copo com uma colher,
os dois começaram a ouvir uma mistura de grunhidos e guinchos
assustadores.
- São eles! – bradou atônito Johnny Dee.
Imediatamente, Mary Ann apanhou outra vez a faca e foi
espiar pela fresta da janela. Oh, visão demoníaca! Havia ali,
cercando a casa, escarafunchando, grunhindo, rosnando, uma
infinidade de ratos gigantescos, quase do tamanho de javalis.
Pareciam enlouquecidos e mordiam as tábuas da parede, como se
desejassem derrubar a choupana. Faziam um barulho
ensurdecedor, convulsionados e coléricos, dando a impressão de
que aquelas feras selvagens não se alimentavam há muito tempo.
Um grito excruciante irrompeu do peito horrorizado de Mary Ann,
quando ela percebeu que alguns dos ratos estavam forçando a
entrada na cabana através do orifício da parede, empurrando a
canastra com seus focinhos enormes. Desesperados, os dois jovens
tentaram segurar a arca, empurrando-a contra a parede, mas não
eram páreos para a força descomunal daqueles animais diabólicos.
Duas ratazanas agarraram Johnny Dee por uma das pernas e
começaram a arrastá-lo para fora. Ele debateu-se aflito como um
peixe fisgado num anzol, mas foi inútil. Mary Ann ainda tentou puxá-
lo pelo braço com todas as forças que possuía, mas o corpo do
rapaz estava melado de sangue e escorregou. No mesmo instante,
levaram-no para o centro do terreiro e inúmeros ratos aglomeraram-
se sobre o moço, devorando-o vivo com uma voracidade atroz e
bestial. Outros invadiram a casa e apanharam Mary Ann. A menina
passou a gritar e espernear de maneira alucinada, enquanto ia
sendo arrastada até o celeiro. Por algum tempo, os seus gritos
ainda puderam ser ouvidos, até que um silêncio angustiante tomou
conta de tudo. Lá fora, o vento gelado continuava soprando por cima
dos telhados. Já não se via mais animal algum. A manhã começava
a despertar, sonolenta, enquanto que os ratos se preparavam para
dormir, saciados pelo saboroso acepipe, já sonhando com os
próximos visitantes, a próxima merenda.
A tétrica cabana da praia

F azia dois dias que


Pâmela
Williams
e Ted
estavam
viajando pelo sul do país na incrementada caminhonete do pai do
rapaz. Haviam começado a namorar há pouco tempo e, por isso
mesmo, tudo era motivo e pretexto para amabilidades. O jovem
casal queria se conhecer melhor e eles decidiram ganhar as
estradas sem traçar rota alguma. Abandonaram todos os
compromissos e resolveram seguir para onde o destino os levasse,
sem pressa para voltar.
- Acha que fiz bem? Indagou a garota, após beber mais um
gole de uísque no gargalo da garrafa.
- Acho!
Ela riu, pois sentiu escorrer um pouco da bebida pelo canto
da boca.
- Você nem sabe sobre o que eu estou falando...
O rapaz soltou uma baforada, inundando de fumaça o
interior do veículo.
- Nem preciso. Tudo o que você faz, faz bem feito...
- Ah, que lindo!
- Me dê mais um pouco de uísque!
- Melhor, não. Não acha que já bebeu o suficiente para
quem está guiando?
- Só mais um pouquinho... estou sóbrio como um lobo.
Pâmela hesitou um tanto, mas acabou cedendo à vontade
do namorado e lhe estendeu a botija. Ted Williams sorriu com
dentes esmaltados de lubricidade e disse:
- Assim, não! Como ontem na cama...
A menina deitou-lhe um olhar malicioso, mordeu a pontinha
do lábio inferior e levantou a pequenina blusa, que deixava à mostra
toda a sua invejável barriga. Em seguida, uniu os seios exuberantes
até formar uma covinha entre eles e despejou um pouco da bebida
ali. Parte do uísque escorreu pelo corpo da jovem, chegando
mesmo a lhe penetrar o interior da calça jeans. O rapaz curvou-se
sobre a garota e sorveu com a língua o precioso líquido.
Subitamente, ouviram o som estridente de uma buzina e um carro
passou por eles em alta velocidade, raspando a lataria da
caminhonete. Durante um breve momento, Ted Williams perdera o
controle do veículo, que foi deslizando lentamente para a pista
contrária. Por muito pouco, ele não provocou uma colisão, que
poderia ter sido fatal. Os dois jovens ficaram gelados em virtude do
susto, mas logo estavam rindo da brincadeira. Pâmela retomou o
assunto que a estava incomodando:
- Mas como eu dizia, acha que fiz bem em não avisar
nenhuma das meninas lá da república que resolvi viajar sozinha
com você? Não quis dizer nada a ninguém, pois já tenho fama de
vadia na faculdade...
Tem mesmo, pensou o rapaz. Mas tudo se perdoa, quando
se possui um corpo como o seu.
Ele apagou o cigarro no cinzeiro e proferiu:
- Pensando bem, você deveria ter avisado. Elas vão ficar
preocupadas com o seu sumiço repentino. Podem até notificar a
polícia. Por que não liga agora para uma de suas amigas, avisando?
- Sabe, é isso mesmo que vou fazer.
A garota torceu um pouco o seu corpo e apanhou uma
mochila que estava jogada no banco de trás. Abriu o zíper e,
metendo ali os dedos e os olhos, retirou de seu interior um aparelho
celular. Ela teclou alguns números e aguardou um instante, mas a
ligação não se completou.
- Inferno! Estamos numa área sem sinal...
- Não se preocupe! Quando passarmos por um posto de
gasolina, vou parar para pôr combustível. Você poderá ligar de lá,
de um telefone fixo.
- Espero que seja logo, pois estou com uma fome danada!
Ted Williams virou o rosto para a namorada e a devorou com
olhos de predador lascivo. Não quis perder o trocadilho.
- E eu estou louco de vontade de comer...
Ela lhe tocou de leve o queixo mal escanhoado com seus
dedos tenros.
- Bobo!
O rapaz quis lambê-los, mas a garota passou a lhe
encaracolar os cabelos atrás da orelha.
- Sabe de uma coisa? Acho que você vai ficar careca...
- E você uma velhinha banguela e gorducha...
Pâmela admirou-se com aquela resposta e entrou na
brincadeira:
- E você um velhote broxa e fedorento.
- Pode até ser, mas vamos continuar nos amando assim
mesmo, não vamos?
Rosas sorriram na face da menina. Estava apaixonada. Ela
se aconchegou ao corpo do rapaz, que lhe passou o braço direito
por cima dos ombros.
- Vamos nos amar até o último dia de nossas vidas...
Ted Williams pôs um beijo casto em seus cabelos e
concordou:
- Sim, até o último dia de nossas vidas.

* * *
Meia hora depois, o tempo começou a mudar e a noite, que
até então estava agradável, tornou-se medonha. Nuvens pretas e
assustadoras passaram a se amontoar por todo o céu e o horizonte
tingiu-se de luto. Trovões explodiam no firmamento e, por toda
parte, arrebentavam relâmpagos furiosos. Uma ventania tremenda
soprava agora, curvando as copas das árvores que podiam se
avistar além da estrada. Os ventos eram tantos, que batiam de
encontro às laterais da caminhonete e a sacudiam de maneira
impressionante, como se quisessem arrancá-la do chão. Ted
Williams tirou o cd do Metallica e sintonizou uma rádio que estava
dando notícias sobre aquela mudança repentina do clima. Em
algumas regiões ali perto, já se achava desabando uma tempestade
torrencial e a informação era de que estavam se formando alguns
ciclones. Isto encheu o jovem casal de medo, pois era muito
perigoso continuar viajando em tais condições. O mais seguro seria
passar a noite em algum motel à beira da estrada, mas não havia
nenhum por perto. Logo, a chuva os apanhou e veio tão forte, que o
limpador do para-brisas mostrou-se insuficiente para dar conta de
tanta água. A certa altura, um raio acertou uma árvore, que caiu
atravessada na rodovia. Ao avistá-la, o rapaz diminuiu ainda mais a
velocidade e, com todo cuidado, contornou-a por um trecho de
terreno além do acostamento. As rodas patinavam na lama e quase
desapareceram, quando a caminhonete teve de atravessar uma
parte alagada. Ted Williams mostrava-se bastante preocupado. Se o
veículo atolasse ali, eles não teriam como sair do local até amanhã
de manhã, quando o rapaz conseguisse ajuda. Mas tudo deu certo e
alcançaram à estrada novamente sem maiores danos.
- Acho melhor a gente parar em algum lugar! Exclamou a
moça, um tanto apavorada.
- Também acho, mas onde? Quer que eu pare no
acostamento?
- Não sei se é a melhor solução...
- Talvez a gente encontre um posto de gasolina logo
adiante...
- Ei, veja ali... parece uma cabana...
O moço fixou os olhos na direção indicada e bradou
exaltado:
- Tem razão! Vamos pedir abrigo para os proprietários...
Ele diminuiu a velocidade e entrou por uma estradinha de
terra. Desceu uma ribanceira e contornou uns matagais. Logo,
chegou a uma praia, diante da qual se encontrava a cabana.
Instigadas pela tempestade e pela ventania, as ondas quebravam
furiosas na areia, quase alcançando o velho sobrado. Ted Williams
estacionou a caminhonete embaixo de uma árvore folhuda e
desligou o motor. Ali, protegidos pelas ramagens da copa, a chuva
parecia menos intensa. Mesmo assim, era perigoso ficarem no
interior do veículo, pois os relâmpagos estavam despencando
violentamente dos céus e, alguns deles, tinham caído nas cercanias.
A garota apanhou um pequeno guarda-chuva em sua
mochila e desceu do carro apressada, seus tênis encharcando-se
ao enfiar os pés no aguaceiro que inundava toda aquela área. Mal
conseguiu abrir o guarda-chuva e ele foi arrebentado pelo vendaval.
Pâmela ainda tentou inutilmente consertá-lo às pressas, mas
acabou desistindo e o atirou na areia empoçada. O rapaz desceu
pelo outro lado e os dois correram ligeiros até a varanda do
sobrado. Como não podia deixar de ser, molharam-se bastante
durante a breve corrida. Aquilo lhes pareceu divertido e os dois
começaram a rir, quando se viram abrigados da tempestade.
A primeira coisa que notaram foi como a cabana achava-se
velha e estragada. A pintura estava descascando em inúmeros
locais, as tábuas das paredes apresentavam partes apodrecidas e
os caibros que sustentavam as telhas da varanda pareciam que
iriam ceder a qualquer momento. Com certeza, os proprietários não
faziam qualquer manutenção na propriedade há muito tempo. Mas
isso não tinha importância. O importante é que conseguissem abrigo
seguro por aquela noite.
Ted Williams bateu na porta com punhos decididos e eles
ficaram aguardando em silêncio por alguns instantes, mas ninguém
veio atender. Bateu novamente com mais entusiasmo. Nada. Talvez
já estivessem dormindo. O rapaz pôs-se a chamar pelos moradores
em altos brados. Mesmo assim, ninguém veio ver o que estava
causando aquele berreiro. Começaram a ficar aflitos.
- Será que são surdos? Brincou a jovem.
- Quer saber de uma coisa, eles vão me ouvir por bem ou
por mal...
O rapaz desceu as escadas da varanda correndo e voltou
para a caminhonete, debaixo da chuvarada. Acendeu os faróis altos,
que iluminaram toda a casa e passou a buzinar feito um alucinado.
Quando sentiu que já era o suficiente, regressou para a cabana e
indagou:
- E então?
- Nada! Nenhum sinal de vida. A residência deve estar
abandonada...
- É possível. Veja, está tudo escuro lá dentro, não há o
menor sinal de vida...
- O que vamos fazer?
- Se está abandonada, vamos entrar e passar a noite aí.
Que mal há nisso. Está com medo?
- Não... quero dizer, um pouco. E se aparecer alguém?
- Vamos dizer simplesmente que entramos na casa para nos
abrigar da chuva. Se for o caso, pagaremos pela hospedagem de
uma noite...
Nisso, um relâmpago explodiu a pequena distância dali, o
que os fez decidir mais prontamente pela invasão da cabana. Ted
Williams apanhou um vaso de cimento e bateu com ele na vidraça
da porta, estilhaçando-a em cacos. Meteu a mão na abertura e abriu
o trinco por dentro. Porém, quando retirou o braço, cortou o punho
em uma lasca afiada de vidro. Ao ver o sangue gotejando pela mão
do namorado, a garota gritou:
- Meu Deus! Precisa de um curativo!
- Não é nada! Foi só um arranhão.
Dizendo isso, o rapaz dirigiu-se até os degraus da varanda e
lavou a ferida com a água da chuva durante algum tempo. Depois,
enxugou o machucado na camiseta e chupou um pouco do sangue
que continuava escorrendo.
- Viu? Já está parando... Vamos entrar?
A jovem concordou. Ele girou a maçaneta e empurrou
levemente a porta, cujas dobradiças guincharam de maneira tétrica.
Por um instante, hesitou um pouco, imaginando que estava
devassando uma cripta, mas se encheu de coragem e entrou.
Pâmela seguiu atrás dele.
O interior da cabana achava-se muito escuro. O moço
tateou pela parede até encontrar um interruptor e o apertou. Uma
luz vermelha e tímida acendeu-se, preenchendo a sala com uma
luminosidade opaca. A moça fechou a porta e proferiu:
- Que luz estranha, deixa tudo com cara de boate.
Havia um abajur em cima de uma mesinha. Ted William o
acendeu e a sala foi inundada com mais luz vermelha. Ele desligou
o abajur e retirou a lâmpada:
- Veja, alguém a pintou de vermelho...
- Que coisa estranha! Por que fariam isso?
- Vá saber! Mas tenho a impressão de que todas as
lâmpadas desta cabana são assim. Dizendo isso, dirigiu-se ao
banheiro, que ficava ali do lado, e acendeu a luz. Verificou-se a
mesma coisa. O rapaz aproveitou para lavar as mãos na pia, pois
ainda havia um pouco de sangue nelas. Ao regressar para a sala,
sua namorada lhe disse:
- Será que há comida aqui? Estou faminta!
- Também estou. Vamos dar uma olhada...
Os dois dirigiram-se para a cozinha e puseram-se a revirar
os armários, mas não encontraram o menor sinal de alimentos.
- Não há nada aqui para se comer, nem uma lata de
sardinha!
A garota concordou com o namorado e, fitando-lhe os
cabelos ensopados, disse:
- Precisamos encontrar uma toalha para nos enxugar. Do
jeito que estamos, iremos apanhar um resfriado...
- Tem razão! Vamos dar uma olhada lá em cima.
As escadas eram escuras e sombrias. Ted Williams tomou
coragem e começou a subi-las pé ante pé, pois não sabia o que
poderia descobrir no segundo andar. A cada passo do rapaz, os
degraus envelhecidos de madeira guinchavam como se estivessem
vivos. Pâmela vinha logo atrás e seu espírito tinha sido tomado por
um sentimento difícil de definir, algo entre medo e excitação. Nunca
em sua vida tinha invadido a residência de pessoa alguma e esta
nova experiência estava fazendo seu sangue ferver de euforia. Eles
chegaram a um corredor sinistro e logo o rapaz encontrou o
interruptor. Naturalmente, uma luz vermelha e mortiça passou a
escorrer de uma lâmpada pequenina, presa numa luminária do teto.
Um cheiro forte e nauseabundo empestava o ar carregado de
podridão. O moço pôs uma das mãos na frente do nariz e proferiu:
- Deve haver um rato morto em algum lugar...
A menina imitou-lhe o gesto e os dois seguiram até o fundo
do corredor, onde encontraram um banheiro. Por sorte, havia uma
toalha pendurada num gancho na parede. Eles tiraram os sapatos,
despiram-se e se enxugaram.
- Vamos deixar nossas roupas esticadas sobre a porta.
Amanhã cedo, elas estarão mais secas. Agora, o melhor que
podemos fazer é encontrar uma cama e dormir.
Pouco depois de se despirem, a garota tentou abrir uma das
portas de um quarto, mas ela estava trancada. Ted Williams
permanecia no banheiro, lavando o resto de sangue coagulado em
suas mãos, quando ouviu Pâmela dar um grito assustador. No
mesmo instante, o moço correu até um quarto, onde ela acabara de
entrar, e contemplou aquela cena pavorosa. Sobre uma cama,
achavam-se restos do cadáver de uma velha sem roupa, bastante
mutilado, como se nacos de sua carne tivessem sido arrancados a
dentadas. Havia muito sangue escuro empapando os lençóis,
misturado a vísceras retorcidas, pedaços de ossos e gordura
amarelada. Ao observar visão tão horrenda, a jovem começou a
chorar de maneira histérica e seu corpo tremia tanto, que ela mal
conseguia se manter em pé. O rapaz abraçou-se à namorada e
bradou resoluto:
- Vamos sair daqui agora!
Ele a puxou pelo braço e se dirigiram até o banheiro para
apanharem as roupas. Quando começaram a se vestir, porém,
ouviram o ruído macabro das dobradiças guinchando e da porta se
abrindo lá embaixo.
O coração do rapaz parou de bater por um instante e seu
peito encheu-se de terror. Ao cabo de alguns segundo, Pâmela
indagou:
- Deus do céu! O que foi isso?
- Não sei, mas não gostei!
Eles vestiram as calças com dificuldades, não só porque
elas estavam molhadas, mas porque suas mãos tremiam deveras.
Ainda sem camisa, Ted Williams fez para a garota um sinal de
silêncio, colocando o dedo indicador diante do próprio nariz, e
caminhou vagarosamente, como se pisasse sobre espuma, até a
beirada da escadaria, onde se escondeu atrás da parede.
Subitamente, tomara consciência de que a lâmpada do corredor
ainda se encontrava acesa e ficou ainda mais apavorado, pois isto
poderia delatar a presença deles. Que fazer? Melhor que ela
estivesse apagada para não chamar a atenção. Além do mais, não
se lembrava se tinham desligado as luzes do andar de baixo,
quando subiram para o piso superior. O rapaz pôs metade do rosto
para fora da quina da parede e constatou que não havia ninguém
naquele trecho da sala que ele podia enquadrar. Em virtude disso,
decidiu apagar a luz, o que fez prontamente. Durante algum tempo,
permaneceu observando parte da sala de seu esconderijo. Na certa,
os moradores teriam visto o vidro quebrado da porta e deveriam
estar intrigados com isso. Aos poucos, passou a ouvir roncos
abafados e sons que não pareciam humanos. De repente, o horror
supremo estampou-se em sua face, de maneira que ele não
conseguia mais respirar. Duas criaturas monstruosas entraram em
seu campo de visão e pareciam discutir qualquer coisa. Vestiam
grandes capotes e traziam os rostos cobertos por largos chapéus,
como se desejassem permanecer embuçados. Todavia, Ted
Williams constatou horrorizado que, no lugar das mãos, as criaturas
possuíam garras como lagostas e seus pescoços eram cobertos por
uma carapaça acetinada e brilhante.
Deus do céu, que demônios seriam aqueles? Pareciam
muito fortes e eram mais altos do que a média dos homens. Quando
recuperou o discernimento e conseguiu controlar um pouco os
nervos, o moço certificou-se de que precisavam sair daquela cabana
maldita de qualquer maneira. Correu até o banheiro, onde a
namorada permanecia encolhida feito uma presa acuada e lhe
sussurrou:
- Vamos tentar sair daqui agora!
Os dois dirigiram-se ao quarto, onde permanecia o cadáver
da velha, e verificaram aterrorizados que a janela tinha sido
emparedada. Voltaram para o banheiro e, só então, perceberam que
ali também ocorria o mesmo. Achavam-se enjaulados e não havia
como sair daquela masmorra. O rapaz enxugou o suor que lhe
empapava a testa com as costas da mão e disse baixinho:
- Acho que as janelas foram cimentadas para o sol não
entrar. Por isso, as lâmpadas são vermelhas e fracas, pois a
luminosidade deve incomodar estas criaturas horrendas. São
monstros noturnos...
Desesperados, eles apagaram a luz do banheiro e se
esconderam dentro da banheira, que ficava atrás de um cortinado
de plástico. Pelas frestas deste, Ted Williams podia discretamente
observar o corredor e, por isso, resolveram deixar a porta aberta.
Talvez, aquelas criaturas infernais se dirigissem primeiro para o
quarto, o que lhes daria a possibilidade de sair correndo e fugir. Era
a única chance que teriam.
Aqueles minutos em que os dois jovens passaram ali
abraçados foram de profunda angústia e pavor. A menina tremia de
medo, arrependida por ter concordado em viajar com o namorado.
Ted Williams tinha os olhos vidrados no corredor e sua respiração
achava-se bastante ofegante. Não entendia por que motivo os
monstros execráveis não subiam logo de uma vez. A bem da
verdade, já havia se passado mais de meia hora e aquela tortura
cruel os ia consumindo como um punhal pregado no fígado. A cada
instante, os ruídos ininteligíveis tornavam-se mais intensos e a
aflição deles aumentava.
Subitamente, começaram a ouvir passos pesados subindo
as escadas, os degraus rangendo uma sinfonia de morte.
Abraçaram-se ainda mais forte, procurando fazer o máximo de
silêncio e mantendo os ouvidos bem atentos. A cada passo dado, a
angústia cabal que sentiam ia os mortificando cada vez mais, até
que os dois monstros apareceram no corredor. Eles acenderam a
luz e, só então, Ted Williams os pôde contemplar em toda sua
plenitude. Os olhos do moço esbugalharam-se de pavor e,
miraculosamente, ele conseguiu conter um grito primata que lhe ia
escapando da garganta e que os delataria. A visão era horripilante.
Aquelas aberrações macabras possuíam mandíbulas salientes e
presas afiadas de javalis, que lhes escapavam das bocas. Eram
monstrengos horrendos, repugnantes, assustadores. As duas
criaturas passaram a se arrastar lentamente pelo corredor e
entraram no quarto, onde se encontrava a velha defunta. Tão logo
desapareceram da visão de Ted Williams, o rapaz sussurrou à
namorada que era agora ou nunca. Ali se achava a oportunidade
que eles estavam esperando e, se desse tudo certo, os dois
conseguiriam fugir ilesos da cabana. Amanhã, certamente, quando
tudo já se encontrasse sedimentado pelas camadas irrevogáveis do
tempo, o jovem casal iria rir daqueles momentos infernais que
tiveram de enfrentar.
De repente, começaram a ouvir o ruído de carne sendo
chupada com sofreguidão. Os monstros banqueteavam-se à farta,
devorando os restos da velha com apetite redobrado. Ted Williams
disse à garota que agora era o momento e, pé ante pé, procurando
fazer o máximo de silêncio, os dois saíram de seu esconderijo.
Porém, quando se encontravam quase no meio do corredor, a
poucos metros da escada que lhes daria acesso à liberdade, uma
das criaturas apareceu na porta do quarto e se interpôs no caminho
deles. Um horror ancestral tomou conta dos dois jovens e não houve
tempo para mais nada. Tudo se deu de maneira rápida e cruenta.
Num movimento brusco e violento de foice, empregando suas
garras afiadas, a criatura rasgou o ventre do rapaz, cujos intestinos
escorreram por sua barrigada aberta. O sangue esguichou para todo
lado e a moça pôs-se a gritar ensandecida. No mesmo instante, os
dois monstrengos atiraram-se no chão, sobre o corpo de Ted
Williams, e passaram a lhe devorar ainda meio vivo. No meio
daquela confusão, untada de sangue e suor, patinando sobre as
vísceras do namorado, Pâmela deslizou por entre aqueles seres
horrendos e conseguiu alcançar a escada, saltando, aflita, os
degraus de quatro em quatro. Uma das criaturas pôs-se no encalço
dela, mas era corpulenta e pesadona, de maneira que se movia
lentamente.
Alucinada pelo terror que lhe macerava a alma, a garota
abriu a porta da sala, atravessou voando a varanda, desceu os
poucos degraus da casa e mergulhou na tempestade, dirigindo-se
para a caminhonete, que eles tinham deixado com as portas
destrancadas e as chaves na ignição. Ao entrar no veículo, a sua
mão tremia tanto, que ela teve dificuldade em dar a partida no
automóvel. A menina olhou pelo espelhinho retrovisor e constatou
que seus olhos estavam inchados feito tomates. Subitamente, um
calafrio mortal tomou conta de seu corpo. Aos poucos, refletido no
espelhinho retrovisor, foi aparecendo a figura macabra de uma
daquelas criaturas satânicas, sentada no banco de trás. Num
movimento brutal, o monstro lhe arrancou um naco do pescoço com
uma dentada, no exato momento em que um trovão violento
estourou no céu, abafando um último grito de dor. Além da chuva
sobre o capô da caminhonete, só se podia ouvir o ruído de
mandíbulas mastigando ossos.
Cobras!

R uddie Carlson, um
homem
sem
sonhos, sem grandes conquistas, que sempre cultivou uma
comum,
grandes

existência medíocre e apagada em sua modesta casa no Arizona,


um pacato e obscuro cidadão que tem apenas duas paixões na vida,
ler livros sobre extraterrestres e criar cobras, está prestes para
entrar na galeria dos ilustres mortais que andejam pelos bosques
sombrios de nossos piores pesadelos e encabeçam os grandes
mistérios da humanidade.
Entremos na casa deste homem algo esquisito e rabugento,
como costumam dizer dele os poucos amigos. A sala é pequena, da
mesma forma que os demais cômodos da residência, e fede a fezes
de serpentes. Além do sofá e de uma estante com livros em
tenebroso estado de conservação, só há no ambiente terrários
encostados pelas paredes, que são uma espécie de viveiros,
tanques de vidro com tampas de madeira, onde há respiradouros. Aí
ficam as cobras, insólitos animais de estimação, que Ruddie cria em
sua residência como outros criam coelhinhos.
O seu amor pelos ofídios é tamanho, que muitos vizinhos
acham que ele não regula bem da cabeça. Cuida das serpentes
como se fossem seus filhos, chamando cada uma por seu nome e
dando-lhes de comer na palma da própria mão. Orgulha-se de já ter
sido picado algumas dezenas de vezes, o beijo profundo, como
denomina esta demonstração de plena intimidade; por isso, mantém
no armarinho do banheiro, atrás do espelho, inúmeros tipos de
antídotos. Chega mesmo a beijá-las na boca, dizendo que são suas
namoradas. A companhia das pessoas o enjoa e aborrece; as
cobras, por sua vez, sempre lhe dão prazer. Conversa com elas.
São excelentes ouvintes. Compreende-lhes os silêncios e as
necessidades. Jamais zombam dele. Ruddie tem no rosto, embaixo
do olho direito, estendendo-se pela bochecha, uma mancha escura
em formato de sino. Esta marca de nascença sempre lhe infundiu
certo complexo de inferioridade. Talvez por isso seja tão irritadiço e
ranzinza. Não gosta da maneira como as pessoas o encaram, com
seus olhares de superioridade. Já as serpentes não o julgam nem
pelos seus defeitos, tampouco pelas suas qualidades.
Simplesmente, elas o aceitam como ele é. Ama-as por sua
generosidade e prefere ficar com elas a ter companhia de humanos.
É começo da noite de sábado e Ruddie encontra-se deitado
no sofá da sala, recostado numa almofada, lendo um livro que trata
de objetos voadores não identificados e invasores alienígenas.
Quando estava numa passagem das mais interessantes, a
campainha tocou de modo estridente, fazendo-o sobressaltar-se.
Ele colocou o romance de lado e bufou seu desagrado:
- Maldição! Quem será que vem incomodar numa hora
dessas?
Aguardou um instante, esperando que a campainha tocasse
novamente, torcendo para o importuno ter ido embora. Não foi. Após
ela ter soado pela segunda vez, Ruddie levantou-se de má vontade
e ouviu seus joelhos estalarem. Estava ficando velho, pensou. Deu
alguns passos até a entrada e abriu a porta. Três camaradas
entraram na casa, sorridentes e falando ao mesmo tempo.
- E aí, velhaco, como tem passado?
- Anda sumido... tem estado ocupado com muitas garotas?
- Quais são as novidades?
- Vou bem e estava bem, até vocês chegarem. Não tenho
novidade alguma, muito menos garotas. Digam logo o que desejam
e vão embora!
- Calma, velhinho! Parece que tem uma morsa nas bolas.
Não nos oferece algo para beber?
- Só tenho água da torneira...
- Você está muito mal-humorado. O que foi, Ruddie, uma
das suas cobras lhe mordeu?
- Não é nada disso. Só não gosto de visitas que chegam
sem avisar.
- Não estamos aqui para uma visita. A gente veio ver se
você não quer dar uma volta. É sábado à noite, meu caro! Vamos
fazer uma farra de rapazes, sair com algumas pequenas...
- Não estou interessado. Prefiro ficar em casa!
- Credo, Ruddie, você está parecendo um caramujo.
- Não estou nem aí. Quero ficar sozinho com minhas cobras
e meus livros, que são ótimas companhias...
- Se prefere assim, não sabe o que estará perdendo...
combinamos nos encontrar com quatro garotas sensacionais. Como
vê, somos três e uma delas está sem par. É uma moça linda,
Ruddie, você vai se arrepender...
- Não vou, não. Agora, deixem-me em paz e adeus!
- Tudo bem, tudo bem, depois não reclame. Se fosse um
encontro com uma iguana, você aceitaria...
- Não aceitaria, não! Não me interesso por iguanas. Minha
paixão é por serpentes. Acho que fui uma delas em outra
encarnação...
- Acho que você está cada vez mais azedo, isso sim! Sua
mãe devia estar chupando limão, quando o concebeu...
- Isso não interessa! Agora, saiam, que estou ocupado...
Dizendo tais palavras, Ruddie os foi empurrando para fora e
bateu a porta na cara dos amigos. Que achassem outro otário para
o encontro. Moça linda, sei! Deve ser uma bruacona encalhada, isso
sim!
Pensando nisso, ele deitou-se no sofá outra vez e regressou
para sua fascinante leitura. Havia parado no trecho exato em que os
alienígenas estavam prestes para invadir a terra. Achava-se tão
entretido com o livro, que nem se lembrou de jantar. Só levantou-se
uma vez para ir ao banheiro e beber um copo d´água. Lá pelas duas
horas da madrugada, ouviu um estrondo terrível no quintal, como se
um automóvel tivesse capotado em seu jardim. O barulho assustou-
o bastante e ele permaneceu alguns instantes imóvel, com os
ouvidos aguçados, procurando escutar qualquer ruído estranho. O
silêncio era brutal. Seriam ladrões, vândalos? Infelizmente,
cachorros não tinha para dar sinal e afugentar intrusos. Esta era
uma das desvantagens das cobras, que não costumavam latir.
Ergueu-se do sofá com pernas bambas e, pé ante pé, rastejou até a
janela feito uma serpente. Puxou um pouco a cortina com dedos
trêmulos, mas não conseguiu ver nada, pois lá fora estava muito
escuro. Esperou mais alguns minutos, até recobrar o fôlego e a
coragem. Se não desvendasse tal mistério de uma vez por todas,
sabia que não iria conseguir dormir aquela noite. Então, apanhou
uma lanterna a pilha e abriu a porta bem devagar...
Deu alguns passos para a varanda e correu o facho de luz
pelo quintal. Subitamente, seus olhos cravaram-se em algo
extraordinário, estarrecedor. Parte de sua cerca achava-se destruída
e muitos galhos das árvores encontravam-se espalhados pelo chão.
Ruddie não podia acreditar no que via. Ao lado da garagem, havia
nada mais nada menos do que uma nave espacial!
Após o susto inicial, ele desceu os degraus da varanda e
deu alguns passos na direção do acidente. Estava por demais
estarrecido e seu coração parecia uma britadeira dentro do peito. A
nave era pequena, menor do que um automóvel, e uma fumaça
cinzenta saía por entre os ferros retorcidos. Um cheiro de borracha
queimada empestava o ar, tornando incômoda a respiração. Ruddie
pensou se não seria mais seguro apanhar sua espingarda, mas era
como se ele estivesse enfeitiçado por tudo aquilo e não conseguia
se mover dali. Haveria seres alienígenas dentro da espaçonave?
Aquele pensamento deixou-o excitado. Teria sido escolhido por eles
para ser o primeiro humano com quem manteriam contato ou tudo
não passaria de um mero acaso? Seria melhor ligar para as
autoridades policiais?
Enquanto meditava sobre isso, Ruddie deu a volta na nave
espacial a fim de observá-la melhor e descobriu, perplexo, que havia
uma cobra sendo esmagada por baixo da lataria. Aquela cena
esmigalhou-lhe o coração. Logo ele, que não podia ver um ofídio
sofrendo. Imediatamente, dirigiu-se até ali e, agarrando a parte de
baixo da espaçonave, ergueu-a um pouco do chão com todas as
forças que tinha. Queimou as mãos ao tocar o metal quente. Seu
esforço foi o bastante para a serpente conseguir se soltar dos ferros
que a prendiam, de maneira que ela pôde rastejar para longe
daquele abraço mortal.
A cobra dirigiu-se até próximo aos degraus da varanda e ali
permaneceu imóvel, encarando Ruddie com um olhar perplexo e
agradecido. Ele deu alguns passos na direção dela, que se
enrodilhou, como se quisesse se defender. Para vê-la melhor, deitou
o facho de luz de sua lanterna sobre o animal, cujos olhos brilharam
intensamente no escuro. Jamais contemplara uma serpente tão
bela, com aquelas cores vivas e exuberantes. Por um instante,
pensou em capturá-la, mas temia que ela fugisse, enquanto fosse
buscar o seu pinção, espécie de gancho que utilizava para apanhar
répteis. Sentia uma vontade imensa de tocá-la, tê-la em suas mãos,
mesmo sabendo que poderia levar uma picada fatal. A bem dizer,
Ruddie achava-se fascinado, pois nunca vira uma cobra daquela
espécie. Lentamente, foi se aproximando dela, caminhando com
passos macios, pois temia afugentá-la. Quando se achava a menos
de dois metros da extraordinária serpente, ela falou com voz
metalizada:
- Obrigado por ter salvado a minha vida!
Ao ouvir aquilo, Ruddie estacou, maravilhado e estupefato.
Estaria delirando? Por um momento, chegou a perder a respiração e
suas pernas ficaram flácidas. Nem em seus sonhos mais delirantes,
jamais imaginara que um dia presenciaria uma coisa dessas.
Apenas alguns segundos depois, quando recuperou a voz, é que
conseguiu balbuciar baixinho:
- Você fala?
- Apenas quando nos dirigimos a seres primitivos de outros
planetas. Entre nós, comunicamo-nos através do pensamento.
Ele passou a mão na testa molhada de suor e esfregou os
olhos, como se quisesse ter certeza de que aquilo era verdade. Ao
abri-los, viu que a cobra continuava ali, real como a lua e as
estrelas.
- Você deve ser uma alucinação que estou tendo...
A serpente percebeu que Ruddie estava tremendo e disse:
- Não tenha medo, não estamos aqui para lhes causar
danos.
- É que tudo isso é tremendamente surreal. Jamais ouvi
dizer que cobras falavam, com exceção daquela do Jardim do Éden.
- Também acho estranho os humanos falarem. Em nosso
planeta, são mudos como as pedras daqui.
- De onde vocês vêm?
- De uma galáxia muito distante, que seus limitados
telescópios terrestres não alcançam...
- O que desejam, afinal?
- Queremos estudar a maneira como vivem nossos
ancestrais na terra. Trata-se de um ramo antigo, do qual evoluímos,
e que foi semeado aqui e em outros locais. Há muitos de nós
espalhados por todo o cosmos.
- Eu sempre tratei as serpentes com todo amor e carinho...
- Sabemos disso, Ruddie...
- Você sabe meu nome?
- Sim, e muitas coisas mais sobre você.
Nisso, um clarão iluminou o céu. Ruddie olhou para cima e
constatou, tomado por um terror extremo, que uma nave espacial
enorme pairava sobre a sua casa. Ela brilhava intensamente e
começou a lançar fachos de luzes para baixo. O rapaz agarrou-se a
uma árvore, temendo ser abduzido, enquanto as flores do jardim
jaziam murchas rente ao gramado. Quando um dos fachos tocou a
espaçonave acidentada, ela desintegrou-se imediatamente,
desaparecendo diante dos olhos esbugalhados de Ruddie. Vendo
que ele se achava bastante apavorado, a cobra amiga falou:
- Não tema! Como já lhe disse, não lhe faremos mal. Muito
pelo contrário, estou em dívida com você. Como salvou a minha
vida, vou lhe conceder a graça de um desejo...
- Um desejo? Como assim?
- Peça-me alguma coisa em troca pelo bem que me fez.
Ao ouvir aquilo, Ruddie lembrou-se do tempo em que era
criança, quando sua avó velhinha lhe contava estórias bonitas,
como aquela do leão que tinha um espinho na pata. O escravo
Ândrocles retirou-lhe o espinho e o leão, aliviado de tamanha dor,
ficou-lhe muito agradecido por toda a vida. Agora, era a cobra que
procurava demonstrar a sua gratidão. Um desejo? Ruddie nem
precisou pensar muito:
- Quero ser um de vocês...
A serpente balançou a cabeça e sorriu, como se tivesse
concordado. Depois, avançou na direção do rapaz e, num bote ágil
e veloz, mordeu-lhe um dos tornozelos. Ruddie deu um grito
lancinante e acordou no sofá, banhado pelo suor.
Por alguns instantes, manteve-se imóvel, sem compreender
o que havia acontecido. Afinal, tudo aquilo fora um sonho? A manhã
já tinha irrompido e os primeiros raios de sol aproveitavam para se
espalhar por sobre o assoalho de madeira da sala, pois a janela
ficara aberta e as cortinas se achavam corridas. Escorregou os
olhos pela sala e não encontrou nada de anormal. As cobras
permaneciam dentro dos terrários e seu livro de ficção científica
estava caído no chão, próximo da porta. Deu um pulo ligeiro e se
dirigiu para a varanda. Lá fora, tudo se achava na mais completa
placidez, como se nada tivesse ocorrido na noite anterior. A cerca
continuava onde sempre estivera, as flores vicejavam frescas no
jardim, lançando no ar o aroma adocicado de seus perfumes, e não
havia marca alguma do acidente pelo chão, tampouco galhos
espalhados pelo gramado. Subitamente, Ruddie sentiu uma coceira
estranha em seu tornozelo direito. Quando lhe cravou os olhos,
notou que ali se achavam duas marcas de perfuração com sangue
coagulado por cima. Deus do céu! Eram marcas da picada daquela
cobra alienígena!
Uma agonia profunda tomou conta do rapaz. Tudo aquilo
teria acontecido de fato ou não passara de um sonho? Aqueles
pensamentos irrompiam dentro de seu cérebro como ondas revoltas
quebrando contra as rochas. Para se acalmar, dirigiu-se à cozinha e
encheu meio copo com uísque, que bebeu num único trago.
Resolveu deitar-se um pouco no sofá para refrescar as ideias. Meia
hora depois, começou a sentir um incômodo nas costas, que não
chegava a ser dor, mas uma espécie de queimação muito de leve.
Levou uma das mãos ao local e percebeu que sua pele estava
endurecida como uma casca. Tirou a camisa e correu até o espelho
do banheiro para ver o que era. Toda a região lombar e um trecho
um pouco acima achava-se escurecida e gelada. Assustou-se
bastante com aquilo e pensou em procurar um médico, caso não
melhorasse em alguns dias.
Na manhã seguinte, acordou com dores atrozes em todas
as juntas. Com muita dificuldade, levantou-se da cama e arrastou-se
até o banheiro para tomar uma ducha fria. Quando se despiu,
constatou horrorizado que parte de seu peito e seu ventre
apresentava-se coberta por uma espécie de carapaça. Seus órgãos
genitais haviam desaparecido e seus braços tinham encolhido
drasticamente. Desesperou-se. Que diabo seria aquilo? Alguma
doença misteriosa da qual ele nunca ouvira falar? Caminhou aos
tropeções até o telefone e, com alguma dificuldade, discou para um
hospital. Miseravelmente, não havia horários disponíveis e Ruddie
só conseguiu marcar uma consulta para dali a uma semana.
Dois dias depois, seu estado ficara ainda pior. Sua face
tornara-se escamosa, seus olhos apresentavam-se pálidos,
inexpressivos, e seu nariz desaparecera por completo. Já não
conseguia mais articular palavras e deu um grito gutural de horror,
diante do espelho, ao verificar que sua língua mostrava-se agora
fina e bipartida na ponta. Crostas espalhavam-se por todo o corpo e
presas afiadas nasceram-lhe nas gengivas. Estava transformando-
se em algo monstruoso e horrendo. Por mais de uma vez, pensou
em se matar com a espingarda que mantinha pendurada numa das
paredes da sala. Contudo, não possuía mais braços, nem dedos
para puxar o gatilho.
Percebeu que seu corpo estava ficando afilado e comprido,
a pele toda cascuda. Em uma semana, passou a comer os ratos que
encontrava escondidos no galpão, onde guardava as ferramentas,
atrás de sua casa. Já não sentia dores. Já não raciocinava mais
como humano. Agora, permanecia a maior parte do tempo
enrodilhado, escondido pelos cantos.
Numa noite de sábado, os velhos camaradas de Ruddie
vieram até a sua casa. Encontraram a porta aberta e foram logo
entrando para rever o amigo. Traziam consigo uma das quatro
garotas sensacionais, exatamente aquela que estava reservada
para Ruddie da outra vez em que lá tinham estado. A ideia era
apresentá-la ao rapaz, a fim de que ele comprovasse como ela era
bonita de fato. Tão logo ingressaram na sala, a moça deu um grito
de horror:
- Uma cobra!
Ela correu para fora apavorada, enquanto os demais
permaneceram sem ação, os pés feito raízes fincadas no assoalho,
estarrecidos com aquela visão medonha. Ali se encontrava solta, a
fitá-los com um olhar peçonhento, uma cobra enorme, uma cobra
descomunal, uma cobra com uma estranha marca em formato de
sino estampada na face.
Encontro macabro

R ecostado na velha
cama de

travesseiro de penas de ganso atrás de suas costas, o jovem


Conrad achava-se amarrado à desconcertante leitura do romance
ferro,
tendo um robusto

de Horace Walpole, O Castelo de Otranto. O livro era antigo,


encadernado em pele de carneiro, e exalava um odor desagradável
de umidade. A pouca iluminação, como convém ao clima da
literatura gótica, provinha de uma lamparina de azeite colocada em
cima de uma banqueta ao lado da cama. De vez em quando, o
rapaz levantava os olhos das páginas amareladas do volume e
contemplava as funéreas sombras dançarinas que a pequena
candeia deitava sobre as paredes. Sentia um arrepio leve na nuca
ao observá-las, pois elas lhe pareciam fantasmas de crianças
mortas. Depois, respirava fundo e tornava à leitura do romance, pois
estava sem sono. A madrugada já ia alta e, lá fora, uma lua imensa
iluminava palidamente as ruas escuras da cidade. O ano era 1854,
ano de muitos ventos e paixões violentas, que terminaram
encharcando de sangue o solo sagrado do cemitério, cujas lápides
testemunharam vários duelos de sabres e pistolas.
Aquela seria a última noite que o moço estudante passaria
na velha casa que tinha sido seu lar durante cinco anos. Havia
concluído o curso jurídico e, no dia seguinte, regressaria para sua
cidade natal, onde abriria uma banca de advogado, conforme a
vontade de seu pai. Conrad acabara de colocar o livro sobre a
banqueta e já estava pronto para apagar a lamparina a fim de
dormir, quando, subitamente, ele ouviu um barulho estridente,
apavorante, e a vidraça da janela do seu quarto estilhaçou-se em
milhares de caquinhos. No mesmo instante, o rapaz deu um pulo da
cama, calçou rapidamente as sandálias e correu até a janela para
ver o que tinha acontecido. Durante alguns segundos, permaneceu
observando a rua deserta, as casas silenciosas, os desvãos dos
muros sombrios. Do segundo andar onde se encontrava, tinha uma
visão privilegiada da vizinhança, mas não viu ninguém lá embaixo e
apenas um cachorro magro passou pela esquina, vagabundeando
atrás de diversão. A lua cheia despejava uma luminosidade pálida
sobre os telhados e as copas das árvores, de maneira que a noite
se achava relativamente clara e era possível distinguir as pessoas
na escuridão. Um vento gelado passou a invadir o quarto, fazendo
com que a chama da lamparina tremesse aflita e quase se
apagasse. Conrad deu uma última espiada na rua e resolveu voltar
para a cama. Antes, porém, apanhou uma vassoura e pôs-se a
varrer os cacos para o lixo. Nisso, seus olhos tropeçaram em algo
estranho num dos cantos do assoalho. Ele abaixou-se e apanhou o
misterioso objeto. Era uma pedra com uma fita, que atava um
bilhete. Seu coração começou a bater mais acelerado e uma
curiosidade fatal dominou-lhe o espírito. Quem teria atirado aquela
pedra e por quê? Certamente, a resposta estaria naquelas linhas. O
moço desatou o nó do laço e desembrulhou aquele pedaço de papel
amassado. Dirigiu-se para mais perto da lamparina e passou a ler o
bilhete, que dizia o seguinte:
“Meu amor, vem já ao local que tu sabes e terás o que mais
desejas.

Tua C.
Era a letra de sua amada. O rapaz levou a folha de papel às
narinas e sentiu o doce perfume que ela costumava usar. Por alguns
instantes, experimentou um sentimento delicioso lhe invadindo a
alma, um misto de triunfo e realização, algo que só se pode sentir e
não explicar. Há mais de dois anos, ele namorava a bela Clotildes e,
durante todo esse tempo, o máximo que conseguira foi dar-lhe uns
beijinhos na testa. Agora, aquele bilhete inesperado mudava tudo e
a jovem vinha lhe oferecer a noite de amor com que ele tanto
sonhara.
Dois dias atrás, quando a vira pela última vez, os dois
tiveram uma discussão feroz e haviam terminado o noivado. Conrad
já tinha decidido tudo e lhe dera a notícia de maneira fria e
impassível. Após a conclusão do seu curso de Direito, o rapaz
regressaria para sua cidade, onde começaria a exercer a profissão.
Não tinha como levá-la e, por isso, estava se desobrigando daquele
compromisso. Evidentemente, Clotildes não recebeu tal notícia de
maneira serena. Ela pôs-se a chorar, gritou, esperneou, fez cena, e
terminou dizendo que iria matá-lo.
- Não diga bobagem! Você não mata nem mosca...
A menina atirou-se na cama e passou a lavar o travesseiro
com suas lágrimas. Conrad dirigiu-se à cozinha e preparou um copo
de água com açúcar para ver se Clotildes se acalmava um pouco.
- Beba isso, vai lhe fazer bem.
Ela tomou até a metade e depois, dominada por um acesso
de fúria, atirou o copo contra o noivo. O moço esquivou-se como
pôde, de maneira que o copo acabou arrebentando na parede. Em
seguida, a jovem começou a gritar furiosa:
- Vá embora daqui, seu canalha miserável, e não volte
nunca mais! Eu o odeio! Odeio com todas as forças da minha alma!
Conrad apanhou seu chapéu e os dois separaram-se sem
se despedir.
Agora, sentado na beirada de sua cama, após ter lido e
relido inúmeras vezes aquele bilhete, o rapaz tentava compreender
o motivo que levara à namorada a mudar de opinião. Certamente,
ela se arrependera de todas as coisas ruins que lhe falara e
desejava se desculpar. Era possível que a menina quisesse guardar
uma lembrança dele, uma lembrança para sempre, eterna. Por isso,
resolvera conceder-lhe aquela noite de amor.
O rapaz vestiu-se, apanhou seu chapéu e desceu as
escadas da casa de maneira ansiosa e com o peito agitado. A
madrugada estava gelada, silenciosa, e só se ouvia o vento
farfalhando as copas dos arvoredos. O local a que Clotildes fizera
menção velada no bilhete, do conhecimento de Conrad, era a casa
da madrinha dela, onde eles haviam se encontrado em inúmeras
oportunidades. Tratava-se de uma tia velha e surda que se
comprazia em ajudar a garota no seu romance. Quando se
encontravam ali, podiam ficar mais à vontade. Sentavam juntinhos
no canapé e, de mãos dadas, trocavam sussurros e juras de amor
eterno. Do outro lado da sala, a velha ia mascando preces diante de
um antigo oratório. Quando sentia que o clima estava esquentando
entre o casal, pigarreava e tossia alto. Os dois recompunham-se e
passavam a conversar trivialidades. Já na casa dos pais de
Clotildes, os encontros eram ainda mais recatados. Conrad entrava
na sala e já encontrava a noiva e a mãe dela sentadas uma defronte
a outra. Cumprimentava ambas com um grave aperto de mão e ia
se sentar numa cadeira a uns dois metros de distância da amada.
Passava cerca de três quartos de hora conversando com as duas,
assuntos que não interessavam a ninguém, até que se levantava,
despedia-se e ia embora.
Enquanto caminhava pela rua, debaixo da lua imensa,
dirigindo-se para a casa da madrinha de Clotildes, Conrad ia
pensando na primeira vez que vira a noiva. Ele costumava
frequentar a igreja de Nosso Senhor Cristo Rei, onde muitas famílias
com belas filhas iam ouvir missa. Naquele tempo, os rapazes
namoradores e galantes dirigiam-se às igrejas não somente para
cumprir com suas obrigações religiosas, mas também para ver as
belas garotas, que quase não saíam às ruas. Num domingo de
maio, ele resolveu assistir à missa na Sé Catedral. A certa altura,
olhando para um dos lados da nave, deslumbrou-se com aquela
imagem angélica. Lá se achava a garota dos seus sonhos, ladeada
pelos pais, que a guardavam com olhares severos de cão pastor.
Apaixonou-se pela menina no mesmo instante. Durante todo o
ofício, permaneceu com as vistas cravadas na jovem. Tão logo
percebeu que era objeto de admiração, a moça ficou muito
envaidecida e, por mais de uma vez, fitou o mancebo com meio
sorriso na face corada. Ao cabo da cerimônia, Conrad quis ir falar
com ela; porém, quando se dirigiu ao local, não mais a encontrou,
pois seus pais já a haviam arrastado para fora da igreja e
desaparecido.
Durante muito tempo, o moço frequentou aquela missa das
cinco da madrugada na Sé Catedral, mas nunca mais tornou a ver a
sua amada. Já começava a achar que tudo aquilo não passara de
um sonho, uma alucinação, quando a sorte lhe sorriu outra vez.
Fora convidado para o baile que o comendador Saraiva iria dar em
sua residência no mês de outubro a fim de comemorar o natalício de
sua esposa. A princípio, Conrad não se animou e estava mesmo
decidido a não comparecer. Sabia muito bem que nesses bailes de
gente velha só costumavam ir mulheres calamitosas e encalhadas,
aflitas para arrumar marido. Todavia, como soube por uns colegas
estudantes que as irmãs Santana iriam, resolveu dar um pulo lá,
para ver se conseguia algo com alguma delas. Eram três jovens que
não haviam sido muito agraciadas com o dom da beleza, mas
possuíam corpos formosos e eram independentes. Diziam as más
línguas que elas costumavam se entregar a seus amantes, tão logo
se embriagavam.
Já passava das oito horas, quando Conrad entrou na
mansão do comendador Saraiva. O salão achava-se muito bem
iluminado por inúmeras luminárias postas nas paredes e um piano
tocava alegres valsas europeias. No centro do recinto, alguns casais
bailavam sorridentes, enquanto boa parte dos homens fumava e
conversava em pequenos grupos pelos cantos. A maioria das
mulheres permanecia sentada em cadeiras de palhinha ou nos
canapés. De repente, a respiração do rapaz tornou-se ofegante,
seus olhos vidraram e ele sentiu uma felicidade extrema. Sentada
ao lado de uma matrona respeitável, estava a jovem que ele vira na
Sé Catedral. Por um momento, duvidou de suas vistas, mas logo
concluiu que era ela mesma, pois lhe reconheceu a mãe ao lado.
Estava mais linda do que nunca em seu vestido de rendas amarelo,
os cabelos loiros e compridos espalhados sobre os ombros.
Enchendo-se de coragem, dirigiu-se até onde a garota se
encontrava e lhe disse:
- Concedes-me a honra da próxima dança?
A jovem sorriu e fitou a mãe em silêncio, como se lhe
pedisse permissão. A boa mulher concordou com os olhos e a
menina estendeu-lhe a mão, dizendo simplesmente:
- Obrigada!
Com o coração batendo acelerado, Conrad conduziu a
menina pelos dedos até o centro do salão, abraçou delicadamente
sua cintura e começaram a valsar. Ele a fitava com uns olhos
enamorados com tanta insistência, que acabou deixando a jovem
sem graça.
- O que foi?
- Não me canso de te olhar...
- Por quê?
- És de longe a moça mais bonita do baile! Que digo? És a
moça mais bonita da cidade inteira!
- Ora, sou tão sem graça...
- E ainda és modesta, como devem ser as garotas do teu
quilate. Como te chamas?
- Clotildes... e o senhor?
- Conrad. Não te lembras de mim?
A jovem ficou um pouco embaraçada. Não se lembrava de
onde o conhecia. Ela sorriu lindamente e balançou a cabeça de
maneira negativa.
- Foi na missa da madrugada na Sé Catedral, há alguns
meses. Tu estavas com teus pais e linda como sempre. Desde
aquele dia em que te vi, não consegui te esquecer por um segundo
sequer e venho te procurando por toda parte...
- E veja como é o destino... nos encontramos aqui por
acaso...
- Não foi por acaso! Foram os deuses que te colocaram no
meu caminho novamente...
- Quais deuses?
- Não sei... talvez Vênus, a deusa do amor...
Os dois jovens conversaram longamente, falando de tudo e
de nada ao mesmo tempo, coisas que só interessavam aos
corações apaixonados. Após terem dançado quatro valsas
seguidas, a menina disse que precisava regressar para junto da
mãe, pois esta já a estava olhando atravessado.
- Espere! Quando nos veremos de novo?
- Algum dia, quando os deuses quiserem...
- Não, quero te ver amanhã!
- Amanhã?
- Sim! Vou pedir a teu pai para te fazer a corte...
Clotildes arregalou os olhos, surpresa. O rapaz percebeu
uma sombra de hesitação na face da amada e indagou:
- Não gostas de mim?
A moça corou e, baixando as vistas, proferiu timidamente:
- Gosto...
Conrad a conduziu para a cadeira ao lado da mãe e
despediu-se da jovem com um delicado beijo em seus dedos
recobertos por uma luva branca.
No dia seguinte, dirigiu-se à casa dela e explicou todas as
suas intenções ao pai de Clotildes. O homem fez-lhe muitas
perguntas. Durante a conversa, que levou mais de uma hora, ele
quis saber tudo a respeito do rapaz e de sua família. Ao cabo,
achou-o um bom partido para a filha, que já estava na idade de se
casar e, se fosse do agrado dela, ele faria muito gosto no noivado.
Assim, Conrad passou a frequentar a casa de Clotildes todos os
dias. Às vezes, ela ia dormir uma noite na casa de sua madrinha,
onde os dois podiam ficar um pouco mais à vontade, como já ficou
dito.
Após caminhar por cerca de trinta minutos pelas ruas
geladas da cidade, Conrad chegou à casa da madrinha de Clotildes.
Através das janelas, ele viu que o interior da residência se achava
na mais completa escuridão. Não se incomodou com isso.
Certamente, a tia surda já estava dormindo, o que deixava o
caminho livre para aquele encontro desejado há tanto tempo. Ele se
aproximou de uma das janelas da frente, onde a moça costumava
dormir, e chamou duas ou três vezes baixinho pelo nome da amada.
Ninguém atendeu. Então, virou a maçaneta e a porta se abriu.
Certamente, a namorada a deixara destrancada, para ele não
precisar bater e acordar a madrinha.
Pé ante pé, Conrad entrou na casa, procurando caminhar o
mais suavemente possível para as tábuas do assoalho não
estalarem. Estava tudo escuro e apenas a pálida luz da lua, coada
pelas frestas da janela, punha uma nota de vida no interior da
moradia. Quando o relógio da sala tocou histérico, o rapaz
assustou-se deveras e teve calafrios escorrendo por dentro da
medula. Seu sangue gelou e ele passou a sentir uma mistura de
medo e volúpia ao mesmo tempo. Enquanto caminhava, ia
chamando baixinho o nome de Clotildes. Já estava pensando em ir
embora, pois não encontrara a namorada em parte alguma, quando,
subitamente, sentiu dois dedos leves como pétalas tocando-lhe o
ombro pelas costas. Foi o bastante para lhe provocar um susto
tremendo, pois ele não ouvira o som de passos se aproximando.
Conrad virou-se apavorado e, como a sala se achava bastante
escura, mal conseguiu discernir a face de sua amada. Somente
quando a garota lhe dirigiu a palavra, foi que ele se acalmou:
- Que foi? Parece que viste um fantasma?
- Oh, meu amor! Que susto me deste...
- Que bom que tu vieste! Eu estava esperando ansiosa por
isto. Vem comigo, não vamos perder mais tempo...
Ele tomou-lhe a mão, que estava fria como um cadáver e os
dois subiram as escadas.
- Minha tia está dormindo no quarto ao fundo do corredor.
Não faças barulho, para ela não acordar.
Após terem entrado no dormitório da frente, Clotildes fechou
a porta e o ambiente ficou ainda mais escuro.
- Vamos acender uma lamparina? Não consigo ver um
palmo diante do meu nariz.
- Infelizmente, não há nenhuma aqui. Não te preocupes. A
escuridão será nossa cúmplice...
- Gostaria de poder te saborear também com os olhos...
- Que guloso! Isto me lembra uma coisa. Consegui uma
garrafa de vinho para a gente beber...
- Ótimo! Onde está?
A garota caminhou até a parede dos fundos, como se
estivesse enxergando tudo perfeitamente. Sobre uma cômoda, ela
apanhou a bebida e encheu dois copos, colocados ali ao lado. Eles
brindaram ao amor e, cruzando os braços, beberam todo o vinho de
uma só vez. Conrad achou que o sabor estava um pouco esquisito,
mas imaginou que se tratasse de uma safra velha e mal
conservada. Todavia, como a sua intenção era embriagar a garota,
acabou bebendo com ela a garrafa inteira.
A certa altura, quando o álcool já começava a fazer o seu
efeito nos cérebros dos jovens, Clotildes disse que estava na hora
do moço receber seu prêmio e começou a se despir. Em seguida,
ela entrou debaixo dos lençóis e convidou o namorado para
acompanhá-la. O rapaz tirou as roupas excitado e pulou na cama
sobre o corpo da garota. Finalmente, o seu desejo estava se
realizando e ele podia tocar as carnes de sua amada, carnes
macias, deliciosas e terrivelmente geladas feito as de uma morta...
Após terem se amado, Clotildes pediu para o moço ir
embora, pois não desejava que a madrinha o visse ali pela manhã.
Ele vestiu-se rapidamente, beijou-lhe na boca mais uma última vez e
partiu. Ainda estava delirando e sentia sua cabeça pesada, como se
estivesse sendo esmagada pelo peso de uma montanha. Nem
soube como chegou à sua casa, meteu-se em sua cama e
adormeceu.
Acordou na manhã seguinte não se sentindo bem. Seus
ossos ardiam inflamados e uma dor terrível lhe mortificava o
estômago. Na certa, era o resultado da bebedeira da noite anterior e
logo estaria melhor. Ele tomou um copo de leite e achou por bem
sair para respirar o ar fresco da manhã. Na verdade, resolveu ir até
a casa de Clotildes para lhe contar a decisão que tomara. A noite
anterior havia sido tão maravilhosa, que o rapaz chegara à
conclusão de que ele estaria sendo estúpido se deixasse a amada.
Decidira mandar tudo para o inferno a fim de permanecer com
Clotildes. Não estava mais disposto a regressar à sua cidade natal,
como era desejo de seu pai, onde abriria uma banca de advocacia.
Serviço arrumava-se em qualquer canto e ele poderia trabalhar aqui
mesmo. Só tinha a certeza de que não queria abandonar a
namorada nunca mais. Se esta havia sido a intenção da garota, ao
atraí-lo para sua cama, ela acertara em cheio. Conrad estava tão
fascinado pela menina, que o seu propósito era lhe pedir em
casamento naquela manhã. Por isso, seguiu para a casa dela
saltando estrelas, feliz como um menino que ganhou brinquedo
novo. Se não fosse a dor que sentia no estômago e um mal-estar
geral, como se estivessem lhe torcendo a alma, tudo estaria na mais
completa perfeição.
Ao chegar à casa de Clotildes, porém, viu um movimento
incomum de pessoas e teve um mau pressentimento. A porta da
residência achava-se aberta e alguns homens conversavam à meia
voz diante do sobrado. Já um tanto aflito, Conrad entrou na sala e
viu inúmeras pessoas pesarosas, algumas das quais se
encontravam com os olhos lavados pelas lágrimas. Havia um caixão
posto sobre dois cavaletes e velas acesas ao lado do defunto.
Quem teria falecido? Pensou Conrad com suas vísceras ardendo
cada vez mais. Ao fundo do recinto, sentada numa cadeira ladeada
por duas outras mulheres que procuravam consolá-la, achava-se a
mãe de sua noiva, vestindo roupa preta. Lentamente, o rapaz
aproximou-se do féretro e seus olhos estarreceram-se de pavor,
quando ele viu o cadáver. Deus do céu! Era Clotildes que ali se
achava, mergulhada entre flores frescas e de perfume enjoado.
Sentiu suas pernas fraquejarem, o sangue gelado esguichando nas
veias e uma tontura violenta lhe pesar dentro da cabeça.
Cambaleando feito um ébrio, dirigiu-se até a porta, onde tentou
respirar um pouco de ar fresco, regressando em seguida para junto
do caixão, a fim de ver se a morta era mesmo sua amada. Não
havia quaisquer dúvidas. Suas vistas turvaram-se, plenas de veias
inflamadas, e ele balbuciou a um sujeito ao lado?
- Como isso aconteceu?
- Ela se envenenou e foi encontrada morta ontem à tarde...
Ontem à tarde? Mas era impossível, pois ele passara a noite
com ela! Quis dizer isto ao homem, que deveria ser algum parente
próximo, mas achou por bem ficar calado. De repente, uma ideia
abominável aninhou-se em seu cérebro. Uma ideia tão tenebrosa e
inconcebível, que encheu a alma de Conrad de horror. Teria se
deitado com um fantasma, um cadáver? Por todos os demônios do
inferno, isso, sim, era por demais macabro! Subitamente, uma ideia
ainda mais apavorante lhe minou os restos de consciência. Teria
sido envenenado por Clotildes? Uma vingança após ela ter
atravessado os portais da morte? Não teve muito tempo para refletir
sobre isso. Suas vistas embaralharam-se, ele sentiu uma forte dor
no ventre e caiu já sem vida sobre o assoalho.
Festa dos mortos

S entado em sua
cadeira de balanço na
varanda, mascando o
costumeiro charuto após o jantar, o velho Charlie observava as
estrelas piscando no seio daquela noite fresca, indiferentes às
paixões e angústias dos homens. Apesar de manter seus olhos fixos
nelas, ele fitava o passado, imerso dentro de si mesmo como uma
caravela em miniatura no interior de uma garrafa de vidro. Quantas
águas haviam passado debaixo daquela misteriosa ponte que ligava
os dois extremos de sua vida, do nascimento ao breve mergulho no
desconhecido. Quantos anos ele ainda teria pela frente? Três?
Cinco? Tudo agora se resumia a uma questão de aritmética e contar
o tempo pelo calendário parecia não fazer mais sentido algum para
ele. Subitamente, uma algazarra tremenda veio resgatar o velho
Charlie de suas lucubrações pachorrentas e cinco crianças
passaram correndo eufóricas diante dele.
- Ei, ei, ei! Aonde vocês vão assim com tanta pressa?
Eram seus netos, três meninos e duas meninas. Dois
garotos traziam os rostos pintados com batom vermelho, a lembrar
marcas de sangue, enquanto que o outro tinha uma caveira
desenhada na face, feita pela mãe com uma rolha queimada na
boca do fogão. As garotas usavam dentaduras postiças de
vampiros, e todos seguravam sacos de panos nas mãos. Rick, o
mais velho dos meninos, que contava onze anos, foi quem explicou:
- Ô, vô! É halloween e vamos pedir guloseimas na
vizinhança.
- Ah, sim! Eu havia me esquecido que hoje é noite de
bruxas. Mas, por que o Eddy parece tão angustiado?
Eddy era o menorzinho e havia completado seis anos na
semana passada.
- É que ele está com medo das assombrações e não quer ir.
O velho coçou o queixo bem escanhoado e, vestindo seu
melhor sorriso de avô bonachão, indagou com ar de brincadeira:
- Medo? Você com medo, Eddy?
O garoto balançou afirmativamente a cabeça, com os olhos
querendo chorar.
- Não se aflija por causa disso. Não é vergonha alguma. Eu
também já senti muito medo em minha vida...
- Você, vô? Indagou uma das meninas.
- Sim... certa vez, experimentei um medo tão apavorante,
que até hoje sinto arrepios ao me lembrar. Querem ouvir uma
história de horror?
- Sim! Gritou a meninada em uníssono.
- Então, sentem-se no chão aqui perto de mim. Rick, apague
a luz da varanda. A noite está clara. Vamos deixar que a lua e as
estrelas iluminem a gente para compor um clima soturno.
O garoto obedeceu e todos se sentaram sobre as tábuas de
madeira do assoalho ao redor do avô. Ele esfregou as mãos um
pouco geladas e começou:
- Isto que aconteceu comigo, ocorreu há muito tempo,
quando eu tinha uns treze anos, ou seja, um pouco mais velho do
que vocês...
* * *

Nossa casa ficava nos arrabaldes da cidade, num bairro


tranquilo, onde as árvores cresciam devagar na frente dos jardins,
enquanto que pássaros confusos espiavam os homens sem asas
eternamente plantados na terra. Meu pai sabia de flores e, naquele
final de tarde de sábado, ele achava-se cortando a grama do jardim,
quando minha mãe o chamou para atender ao telefone. Eu brincava
com meu forte apache na varanda e o vi passar por ali um tanto
apressado, o rosto franzido, como se adivinhasse notícia ruim. Corri
até a porta, empoleirado em minha curiosidade, e permaneci
moendo silêncio, observando seus olhos tornarem-se cacos de
vidro. A conversa foi curta e meu pai quase não falava. Minha mãe
veio da cozinha, atraída por um mau pressentimento, e ainda viu
seu marido cair prostrado sobre a poltrona, os dedos esfregando a
testa enrugada.
- Quem era, Doge?
Naquele tempo, todos chamavam meu pai de Doge. Até sua
esposa e eu. Ele estalou os dedos, demonstrando bastante
preocupação, e proferiu:
- Um vizinho de papai. Parece que o velho Art Ferguson
andou bebendo de novo ou coisa semelhante, pois ninguém tem
notícias dele há três dias. Deve estar curtindo uma ressaca violenta.
O sujeito me disse que as luzes da casa estão acesas e os jornais
acumulando-se na varanda. Já bateu lá umas dez vezes e, como
meu pai mora sozinho, imagina que pode estar precisando de
alguma ajuda, pois ninguém atende a porta.
- Será que lhe aconteceu alguma coisa? Indagou a mulher.
- É isso que vou ver. Pegue as chaves do carro, sim? Irei até
lá para tirar qualquer dúvida. Você vem comigo?
- Melhor não. Vou tomar um banho e fazer o jantar.
- Posso ir junto, Doge? Arrisquei.
Só então meu pai percebeu que eu me achava parado junto
à porta. Creio que ele estava querendo companhia, pois não hesitou
em aceitar o meu pedido. Eu gostava muito do avô Art Ferguson,
que me fazia bonecos de pau e, sempre que íamos visitá-lo, ele me
dava umas moedinhas de cobre para eu comprar balas e
chocolates.
Já estava anoitecendo, quando entramos no carro e
partimos para os arrabaldes do outro lado da cidade. A sua
residência ficava a uns trinta minutos da nossa casa, se não
pegássemos muito trânsito. Via-se no rosto de meu pai que ele
estava preocupado e talvez, por isso mesmo, quase não conversou
comigo durante todo o trajeto. Quando chegamos lá, a noite já havia
estendido seu véu de trevas sobre os campos e muitas estrelas
cintilavam no céu. Doge estacionou o veículo debaixo de uma
árvore folhuda e desceu dele com o coração apertado, nem se
dando o trabalho de fechar a porta. Havia algumas luzes acesas na
casa e, aparentemente, tudo parecia normal. Caminhamos
apressados pelo jardim e, após subirmos os degraus da varanda,
meu pai bateu resoluto na porta. Esperamos em silêncio por algum
tempo, mas ninguém veio atender. Então, ele disse de maneira
decidida:
- Vamos ter que arrombar.
Confesso que aquilo me deixou um pouco agitado. Era
como se estivéssemos numa fita do cinema, prestes a desvendar
um mistério excitante. Naquele caso, entretanto, o mistério se
revelaria trágico. Doge quebrou a vidraça da porta e, metendo sua
mão através da abertura, girou a tranca. Ele entrou na frente,
caminhou alguns passos dentro da casa, até que estacou, perplexo.
Em toda minha vida, nunca mais pude esquecer a cena terrível que
vi. Lá estava o velho Art Ferguson, esparramado ao pé da escada,
tendo uma poça de sangue coagulado embaixo de sua cabeça. Não
posso dizer o que se passou na mente de meu pai, quando ele
contemplou aquela tragédia. Sei que ficou bastante aflito e,
ajoelhando-se no chão, ergueu o dorso do meu avô e se abraçou ao
cadáver, os olhos ensopados de lágrimas. O corpo suspenso assim
de repente fez com que a cabeça de Art girasse molemente sobre
os ombros, como se ele estivesse com o pescoço quebrado. Por
alguns instantes, Doge chorou abraçado ao corpo do pai, até que se
levantou e disse:
- Ele deve ter tropeçado e caído da escada.
Em seguida, tirou seu paletó e o pôs ao lado das almofadas
no sofá. Arregaçando as mangas da camisa, apanhou o corpo
magro de Art Ferguson e o levou para o quarto lá em cima,
colocando-o sobre a cama. Após algum tempo em que pareceu um
tanto confuso e desnorteado, como se estivesse tentando digerir
aquela terrível calamidade, meu pai disse-me que precisava tomar
algumas providências. Ele abriu uma lista telefônica e ligou para
uma casa funerária. O agente mostrou-se solícito e afirmou que
mandariam um carro para transportar o cadáver a fim de prepará-lo
para o velório e o sepultamento. Chegariam em torno de meia hora.
Mas um imprevisto aconteceu.
Mal meu pai tinha desligado o telefone, este tocou de novo.
Pensamos que fosse da agência funerária outra vez, certamente
para confirmar algum dado, mas estávamos equivocados. Era minha
mãe. Doge nem conseguiu lhe dar a notícia da morte de Art
Ferguson, porque ela chorava e gemia desesperadamente. Havia
escorregado no banheiro, enquanto tomava banho, e devia ter
quebrado uma perna. Precisava de socorro urgente. Tão logo se
pôs a par daquela situação, meu pai disse-lhe:
- Estou indo agora mesmo!
Depois, ele virou-se para mim e sentenciou:
- Preciso levar sua mãe ao hospital. Você fica aqui,
esperando os agentes da casa funerária.
Ao ouvir aquilo, minha alma congelou. Só de pensar em
permanecer aguardando naquela casa, sozinho com um defunto, eu
passei a tremer vertiginosamente. Doge percebeu a agonia nos
meus olhos de passarinho enjaulado e afirmou:
- Não tenha medo. Nada vai lhe acontecer, pois seu avô
está morto. Lembre-se de que os Ferguson têm a coragem de um
touro.
Ele estava morto, este era o problema. De todas as formas,
procurei convencê-lo para me levar junto, mas foi tudo em vão, pois
alguém precisava ficar na casa para receber os agentes funerários.
Disse que voltaria o mais rápido possível e se despediu de mim com
dois tapinhas no ombro, dizendo:
- Eu confio em você.
Pela janela, fiquei observando o carro desaparecer no meio
da escuridão. Depois, fechei a cortina e passei a tranca na porta,
não sei bem por quê, pois ela estava arrombada e o que me
amedrontava vinha do piso superior. Olhei a ampla sala vazia e me
senti ainda mais apavorado. Era como se eu estivesse só no
mundo, que havia se transformado num imenso cemitério. Pensava
que, a qualquer momento, o defunto fosse se levantar e sair
andando pela casa, a fim de agarrar os vivos que encontrasse pelo
caminho. Esse pensamento arrepiou-me deveras e, por um instante,
imaginei se não seria mais seguro aguardar a chegada dos homens
da agência funerária lá no jardim. Porém, quando olhei pela vidraça,
vi que estava tudo escuro lá fora, as árvores negras espreitando os
céus, caladas e soturnas, à espera de pássaros incautos para os
devorar. O vento começou a soprar mais forte, como se desejasse
varrer os cadáveres de suas tumbas, chocalhando as janelas do
sobrado. Fechei novamente a cortina e fui me meter num canto do
sofá, rezando para que meu pai regressasse o mais rápido possível.
Subitamente, levei um susto tremendo, pois uma tábua do
assoalho estalou lá no andar de cima. Aquele ruído funéreo
inundou-me de terror e, num pulo ligeiro, fui me esconder atrás do
sofá. O meu medo era tamanho que eu mal conseguia respirar.
Sentia meu coração dando coices dentro do peito, enquanto que
minhas pernas tremiam terrivelmente. Durante alguns minutos,
permaneci com os olhos esbugalhados, cravados na escada, certo
de que meu avô iria descer por ela a qualquer momento,
transformado num zombie sanguinário, sequioso para chupar os
miolos do meu cérebro.
Mas nada aconteceu. Ou melhor, aconteceu. O medo
extremo deixou-me muito apertado e eu precisava esvaziar a bexiga
com urgência. Mas havia um problema. O banheiro ficava no andar
de cima, ao lado do quarto do defunto. Que fazer? Eu não estava
mais me aguentando e ir lá fora era uma ideia que também não me
agradava. Em vão, tentei me convencer de que os mortos não
regressavam à vida e que, agora, meu avô não passava de um
amontoado de carne gelada sobre um colchão. Mas não havia jeito,
eu precisava me aliviar de qualquer forma. Pé ante pé, comecei a
subir as escadas lentamente, como se, em algum momento, eu
pudesse pisar sobre uma granada. Caminhava tão apavorado que,
se eu ouvisse o céu tossir um trovão ou um rato roer as vigas do
sótão, cairia seco e fulminado de susto. Quando cheguei lá em
cima, corri até o banheiro e fiz minhas necessidades o mais rápido
que pude. Estava decidido a não dar a descarga e, tampouco, lavar
as mãos, pois eu imaginava que, em vez de água, era muito
provável que escorresse sangue pela torneira da pia e pelo vaso
sanitário. De repente, ouvi um barulho tenebroso sobre o telhado e
quase tive uma parada cardíaca. Voei escada abaixo, saltando os
degraus de quatro em quatro e, outra vez, fui me esconder atrás do
sofá.
Ali permaneci por alguns instantes, procurando recuperar a
minha respiração e tentando me convencer de que aquele ruído
sinistro não passara de um gato atrás de um programa, quando algo
verdadeiramente terrível aconteceu e me encharcou ainda mais de
horror. A luz da casa apagou!
Agora eu estava bem arranjado! Sozinho, envolto pelas
trevas que me punham calafrios na medula e com um cadáver no
andar de cima, prestes a se levantar da cama a qualquer momento.
Lembrei que meu pai sempre carregava um isqueiro no bolso do seu
paletó. Na pressa em que se encontrava, ele nem se lembrou de
vesti-lo outra vez antes de partir e o deixou jogado sobre o sofá.
Enfiei minhas mãos ávidas nos bolsos e encontrei o isqueiro, que
acendi imediatamente. Uma luminosidade frouxa e pálida pôs-se a
cintilar entre meus dedos, o suficiente para que eu tivesse uma
visão mínima do recinto. Aquilo, porém, não resolvia o meu
problema e decidi ir até a cozinha atrás de velas. Abri armários,
procurei no fundo das prateleiras e remexi gavetas, até que
encontrei algumas velas atrás de uma portinhola, que dava acesso a
uma pequena despensa. Acendi a mecha, deixei pingar várias gotas
de cera derretida sobre um pires e a assentei ali. Regressei à sala
escura e, para aumentar ainda mais o meu pavor, as chamas
deitavam sombras macabras pelas paredes, que pareciam almas
penadas retorcendo-se aflitas, como se procurassem os portais que
ligavam os dois mundos, o dos vivos e o dos mortos.
De repente, comecei a ouvir passos no andar de cima,
passos lentos e pesados de cadáver que acabou de regressar à
vida. Minha respiração tornou-se ofegante, litros de suor gelado
escorriam-me pelo pescoço e eu fiquei tão aterrorizado, que mal
conseguia segurar o pires com a vela, tanto tremiam as minhas
mãos. Apesar de tudo, dirigi-me até o pé da escada e permaneci
observando os degraus, que pareciam sumir lá no alto em meio à
escuridão. O ruído dos passos havia cessado. A casa mergulhava
outra vez num silêncio de fundo de oceano e só era possível ouvir
meus dentes rilhando de medo. Por um instante, imaginei que o
rumor dos passos talvez pudesse não ter ocorrido de fato e tudo não
teria passado de uma alucinação de meu cérebro, sedado pelo
pavor escorchante que me consumia.
Enquanto eu olhava para o segundo andar, ouvi atrás de
mim a porta da frente rangendo, como se alguém a tivesse aberto.
Tamanho foi meu susto, que meu coração chegou a tocar as
amígdalas e minhas pernas se achavam tão bambas, que era
mesmo incompreensível que eu ainda conseguisse me manter em
pé. Virei-me imediatamente e o que vi foi algo espetacular e
inacreditável. A porta continuava fechada, mas dela saía uma
espécie de halo brilhante, com a forma de outra porta, funérea e
fantasmagórica, que se sobrepunha à primeira e se mantinha
aberta. Esfreguei os olhos para ver se o que eu estava enxergando
era de fato realidade e comecei a ouvir ruídos lá fora. De imediato,
veio-me à mente que podiam ser os agentes funerários ou até meu
próprio pai. Corri em direção à porta e o que vi situa-se além da
compreensão humana. Mesmo com a porta da sala fechada, eu
conseguia ver o que acontecia lá fora, pois enxergava através
daquela outra porta fantasmagórica, a qual se achava aberta. E o
que vi deixou-me perplexo e mudo de horror...
Encontravam-se ali diversos carros, há muito fora de
circulação, todos envoltos por aquela aura brilhante, de onde
desciam pessoas bem vestidas, mas cujos corpos pareciam ser
feitos de fumaça. Apavorado com tal visão, corri para me esconder
atrás do sofá e fiquei espiando dali, tremendo de medo. As pessoas
começaram a entrar na casa, não caminhando, mas flutuando
levemente e passaram a se dirigir ao segundo andar. Havia homens
e mulheres, alguns jovens e outros de mais idade. Logo, aquele
cortejo fúnebre terminou de subir as escadas e todos
desapareceram no piso superior. Porém, era possível ouvir a
conversa alegre deles, como se ali estivesse acontecendo uma
festa. A todo instante, davam hurras e vivas e grandes risadas. Por
mais de uma vez, escutei o espocar de rolhas de garrafas, dando a
nítida impressão de que estavam abrindo champanhes. Logo, uma
música adorável principiou a tocar e ela produziu um efeito tão
anestesiante em meu espírito que, misteriosamente, comecei a ficar
mais calmo.
Durante alguns minutos, permaneci ao pé da escada,
ouvindo em silêncio a felicidade verdadeira daquelas pessoas que
pareciam ter encontrado um amigo que não viam há muito. Eu já
não sentia tanto medo e, aos poucos, uma curiosidade enorme
passou a tomar conta de mim. Os Ferguson têm a coragem de um
touro. Agora sim, essas palavras de meu pai me faziam algum
sentido. Então, tomei a resolução mais corajosa de toda minha vida.
Lentamente, comecei a subir as escadas, degrau a degrau, como se
uma força misteriosa estivesse me atraindo lá para cima. Quando
cheguei ao piso superior, minha vela apagou-se, como se sua
chama tivesse sido soprada por uma brisa mítica. Todavia, o
corredor não se achava totalmente no escuro, pois uma luz brilhante
escorria pelo vão debaixo da porta. Aquilo me deixou fascinado e,
pé ante pé, caminhei até o quarto, onde havíamos deixado o
cadáver de meu avô. Meti um dos meus olhos no buraco da
fechadura e, admirado, fiquei contemplando aquela cena
extraordinária. Agora, o dormitório parecia enorme e estava repleto
de gente festejando. Com certeza, eram parentes e amigos queridos
do velho Art Ferguson, que tinham vindo para o velório dele. Mas se
tratava de um velório diferente. Não havia tristeza, mas muita
alegria, como se eles estivessem recebendo o companheiro para a
sua nova vida. Nesse momento, tive a certeza de que a morte não é
um fim, mas algo como uma porta que se abre diante de nós para
dar passagem à nossa alma, para ela trilhar outros caminhos.
Eu já não sentia mais medo algum e, por muito pouco, não
abri a porta do quarto para também participar daquela festa. Lá
estava meu avô, sentado na cama com o rosto rejuvenescido,
conversando com o pai dele e o pai do pai dele. As pessoas batiam
copos em brindes festivos, comiam doces e salgados e, abraçadas,
cantavam canções de outros tempos. Vi que todos lhe traziam
presentes, os quais ele ia colocando sobre o colchão. Uma mulher
em especial, que eu tive a sensação de ser a sua esposa, minha
avó que eu nunca conheci, colocou no pescoço de Art uma
correntinha prateada com um medalhão. Nesse instante, ouvi o
ronco do motor do carro de meu pai parando lá fora e desci para
encontrá-lo. Estava empolgado com tudo que vira e desejava que
ele também visse aquilo com seus próprios olhos. Tão logo eu ia
começar a descer as escadas, as luzes da casa se acenderam sem
qualquer explicação.
Era mesmo meu pai que havia retornado. Acenei-lhe da
varanda e ele retribuiu meu aceno com um piscar de farol. Ao se
aproximar de mim, disse:
- Estou orgulhoso de você. Tudo bem por aqui?
- Tudo...
- Eles ainda não chegaram?
- Eles não. Respondi com certa ambiguidade.
- Tive de levar sua mãe ao hospital. Por sorte, ela só torceu
o tornozelo.
- Doge, preciso lhe dizer uma coisa...
- O que foi?
- Eles vieram para o velório do vovô.
- Eles quem? Indagou com um traço de interrogação na
face.
Hesitei um momento para responder, até que disse:
- Os seus familiares, os seus amigos, os seus mortos...
- Que está me dizendo?
- O que você ouviu. Acho que são fantasmas. Vieram para
levar o vovô ao outro mundo e todos estão festejando lá em cima.
Meu pai me fitou com o rosto horrorizado, como se não
acreditasse em uma palavra do que eu estava dizendo. Ele colocou
uma das mãos em minha testa e perguntou:
- Você está bem?
- Estou ótimo. Venha comigo e verá com seus próprios
olhos...
Subimos a escada com passos acelerados. Eu sentia como
se beija-flores voassem agitados dentro do meu peito. Abri a porta
do quarto e entramos. Porém, lá dentro, tudo se encontrava no mais
absoluto silêncio e o velho permanecia deitado na cama,
exatamente no mesmo local em que meu pai o deixara antes de
partir. Não havia o menor sinal de que, ainda há pouco, ali estivesse
acontecendo uma festa. Os alegres visitantes sumiram da mesma
forma misteriosa que haviam aparecido. Doge me encarava sem
dizer nada.
- Não sei o que pode ter acontecido...
- Na certa, você sofreu algum tipo de alucinação, em virtude
do medo que estava sentindo.
Nisso, ouvimos o ruído de um carro estacionando no jardim.
Meu pai disse que deveriam ser os agentes funerários e desceu
para os receber. Eu ia fazer o mesmo, quando vi algo brilhando no
chão ao lado da cama. Abaixei e o apanhei. Era uma correntinha
prateada com um medalhão...

* * *

O avô pediu para Rick acender novamente a luz da varanda.


Havia acabado a sua história e os netos pareciam perplexos. Após
alguns instantes de silêncio, uma das crianças disse:
- Ah, vovô! Você inventou isso tudo só para nos assustar...
- Não... o que lhes narrei ocorreu de fato, é a mais pura
verdade...
- E o que aconteceu com o medalhão? Quis saber Eddy, o
menorzinho.
O velho desabotoou a camisa e lhes mostrou uma
correntinha, que se achava pendurada em seu pescoço.
- Vejam! Dentro do medalhão, há uma foto do tataravô de
vocês...
Todos ficaram admirados. Ao fitar o retrato, uma das
meninas indagou:
- Ele não se parece com o Eddy?
Todos concordaram. Em seguida, o avô proferiu:
- Agora podem ir! Senão, os vizinhos vão dar todos os doces
para os outros e vocês ficarão sem nada.
As crianças desceram correndo as escadas da varanda e
desapareceram na esquina. Charlie voltou a observar as estrelas,
metido em seus pensamentos. Um dia, talvez muito breve, eles
também viriam buscá-lo para a sua festa.
A filha do cremador

P or volta da meia-
noite,
mansa,
a
que
iniciara pelo final da tarde, transformou-se numa tempestade
chuva

violenta e passou a assolar a pequena aldeia de Montefiori com


se

tremenda intensidade. Relâmpagos afiados como espadas


rasgavam os céus vendados por nuvens negras e um vento forte
sacudia as janelas das residências. Na casa do cremador Pietro
Ranaldi, só uma luz se encontrava acesa, a luz do quarto do casal,
onde uma mulher se achava em trabalho de parto. Tão logo sua
esposa começou a padecer as dores de praxe, o bom homem
preparou sua carroça e foi buscar a única parteira da região, que
morava a alguma distância dali. Apesar do adiantado da hora, ela
concordou em ajudar o cremador, que parecia bastante aflito.
Chegando ao sobrado de Pietro, a mulher pediu-lhe que
arranjasse uma bacia com água morna e panos limpos. Depois,
disse que a deixasse a sós com a parturiente. Homens que não
estão acostumados com esta situação acabam apenas
atrapalhando. A parteira fechou-se no quarto com Simona, deixando
o cremador do lado de fora. Como ele estava muito nervoso, passou
a fumar um cigarro atrás do outro. Era o primeiro filho do casal e,
naquele momento, Pietro sentia uma sensação extrema, um misto
de agonia e felicidade, que ele nunca foi capaz de descrever com
palavras.
Uma hora depois, o cremador começou a perceber que o
parto não estava transcorrendo da maneira esperada. Por trás da
porta, ele ouvia os gritos pavorosos da esposa, como se estivessem
lhe arrancando o útero. Não suportou por mais tempo tamanho
sofrimento e entrou no quarto para ver se podia ajudar de alguma
forma. A parteira estava nervosa e suava em bicas.
- O que está acontecendo? Indagou aflito.
- A bolsa estourou e a criança não quer nascer. A sua
mulher tem o quadril estreito e, para piorar a situação, o bebê
encontra-se invertido. Não estou conseguindo puxá-lo para fora.
Pietro aproximou-se por trás da parteira e viu uns pés
pequeninos saindo de dentro do corpo da esposa, que chorava e
gemia feito uma possessa. Ao contemplar aquilo, o cremador
bradou desesperado:
- Meu Deus! Deste jeito, esta criança vai matar a mãe!
- Está entalada, mas temos que tirá-la daí de qualquer
forma! Exclamou a velha.
- Quer que eu puxe?
Ela respirou fundo, enxugou as mãos molhadas no avental e
disse:
- Vou tentar outra vez, com mais força. Segure sua esposa,
pois vai doer...
- Não precisa... eu aguento! Bradou Simona.
- Então, empurre a barriga dela na minha direção, quando
eu começar a puxar a criança...
O cremador pôs as mãos sobre o ventre imenso da mulher e
permaneceu aguardando a ordem.
- Agora!
Imediatamente, a parteira apanhou os tornozelos do bebê e
começou a puxá-lo com força. Agarrada às grades da cama, a
mulher gania de dor e seu corpo quicava sobre o colchão.
Apavorado, Pietro bradou:
- Vai arrebentar a criança e matar minha mulher!
- Cale-se e empurre! Está quase terminando...
A parteira deu um violento e derradeiro puxão, fazendo com
que Simona desmaiasse, após ter proferido um excruciante grito de
dor. Enfim, a criança estava em suas mãos, mas todo o trabalho fora
inútil, pois ela se achava morta. Era apenas um pedaço de carne
vermelho e úmido. O cordão umbilical encontrava-se enrolado em
volta do pescoço dela, de maneira que a sufocou. Com os olhos
secos feito os de uma cobra, acostumada à dor e ao luto, a velha
entregou a menina ao pai e disse que lamentava muito não ter
podido fazer nada para salvar a vida de sua filha. Ele a tomou nos
braços e pôs-se a chorar amargamente. Nesse meio tempo, sua
esposa despertou e logo compreendeu toda a tragédia. Com voz
trêmula, perguntou se era menino ou menina e quis vê-la de perto. A
mãe abraçou-a junto ao colo, beijou-a de maneira amargurada e
caiu em prantos.
- Teremos outros filhos. Proferiu o cremador.
- Sim, teremos...
- Bom, preciso ir agora. Disse a parteira.
- Deixe que eu a levo.
- Não se incomode. Estou acostumada a andar a pé e a
chuva já passou.
- Não é incômodo algum. Além do mais, está tarde e é
perigoso caminhar sozinha pelas ruas. Quanto lhe devo pelos seus
honorários?
- Não me deve nada.
Pietro abriu sua carteira e tirou dela uma nota graúda.
Estendeu o braço na direção da velha e pediu:
- Por favor, aceite esta gratificação. Você não teve culpa
nenhuma por tudo que ocorreu hoje aqui. Ninguém tem. Foi a
vontade de Deus...
Ela apanhou a cédula e os dois partiram. Quando Pietro
regressou, a madrugada já ia alta, mas Simona continuava
acordada com a filha nos braços.
- Quero que me prometa uma coisa...
- Claro... o que deseja? Perguntou o marido.
- Quero que nossa filha seja enterrada e não cremada.
O cremador estranhou aquele pedido, mas não se
interessou em descobrir as razões da esposa. Simplesmente,
concordou com ela.
- Vou fazer isto amanhã, após o padre encomendar a alma
de nossa filha.
Depois, foi se lavar e deitou-se ao lado da mulher, mas
nenhum dos dois conseguiu dormir direito aquela noite.
Na manhã seguinte, Pietro Ranaldi foi buscar o padre
Lorenzo. Quando soube de tudo, o velho pároco lamentou muito o
ocorrido e disse para Simona não ficar triste, pois sua filha tinha
virado anjinho e não passaria pelo Juízo, entrando diretamente no
Céu. Colocaram a pequena dentro de um caixote de maçãs sobre a
mesinha da sala, enrolada num lençol branco, e o padre oficiou um
breve ritual em intenção da alma da pobre menina que nascera
defunta. De tarde, o cremador apanhou uma pá e abriu uma cova no
fundo do quintal. Ali, depositou o corpo da filha, cobrindo-o em
seguida com terra.
Três dias depois, Pietro e Simona encontravam-se sentados
no sofá da sala, ainda muito tristes por causa do luto recente,
quando ouviram uns ruídos estranhos na porta da entrada. O marido
ergueu um dedo sobre o nariz, fazendo um gesto que pedia silêncio
à esposa, e os dois ficaram calados por alguns instantes.
Subitamente, começaram a ouvir alguém chorando, o que lhes
pareceu bastante estranho. Quem seria? O cremador levantou-se
do local onde se achava sentado, acendeu a luz da varanda e
passou a espiar pelas frestas da persiana. Não viu nada, embora o
choro continuasse. Simona indagou-lhe com os olhos e ele
respondeu balançando negativamente a cabeça. Então, Pietro abriu
lentamente a porta e viu que havia um cesto colocado sobre o
tapete da entrada. Levou um grande susto ao perceber que ali se
achava uma criança recém-nascida. Saltando sobre o pequeno,
caminhou até o portão e vasculhou a rua deserta. Não existia o
menor vestígio de pessoa alguma nas imediações e apenas o vento
deitava uma nota de vida em meio às sombras da noite, assobiando
sobre a copa dos arvoredos. O cremador apanhou o cesto e entrou.
Sua esposa ergueu-se do sofá e indagou:
- O que é isso?
- Veja você mesma!
Ele colocou o cesto com a criança sobre a mesinha da sala.
Ao ver o bebezinho, os olhos de Simona brilharam e ela perguntou:
- De quem é?
- Não sei... não havia ninguém na rua. Abandonaram esta
pobrezinha na nossa porta...
Fez-se um breve silêncio, até que a mulher disse:
- Eu sei por que fizeram isso.
- Sabe?
- Porque sabiam que eu tenho leite para alimentá-la...
Simona a apanhou no colo e a desenrolou da toalha que
envolvia seu corpo franzino.
- É uma menina. Veja como está magra... Vou chamá-la de
Chiara...
- Chiara?
- Porque ela é muito branquinha... Segure-a um instante,
enquanto vou pegar umas roupinhas para ela. Tenho muitas, que
seriam de nossa filha.
Quando a mulher regressou, vestiu a pequena com todo
carinho. Olhando atentamente para a menina, proferiu:
- Ela se parece muito com a nossa menina...
- Ora, todos os recém-nascidos são parecidos!
- Deve estar com muita fome...
Dizendo isso, Simona sentou-se no sofá com Chiara no colo
e passou a lhe dar de mamar. De repente, sentiu uma mordida no
bico do peito e afastou instintivamente dali a pequena. Para sua
surpresa, seu seio estava sangrando. Abriu a boca da menina e
ambos constataram horrorizados que ela não só tinha dentes, mas
duas grandes presas muito afiadas.
- Deus do céu! Como pode ser isso? Indagou Pietro.
Simona não respondeu. Após acariciar o rosto pálido de
Chiara, que voltara a chorar, ela limitou-se a proferir:
- A pobrezinha está com muita fome...
Dizendo tal frase, a mulher aproximou de novo o rosto do
bebê de seu outro seio. O cremador observou aquele gesto
inconsequente e bradou:
- Ela vai mordê-la outra vez.
- Não tem problema. Este anjinho está com fome e precisa
se alimentar...
Mal terminou de pronunciar estas palavras e sentiu as
presas da pequena cravarem-se em sua carne. Dessa vez, Simona
deixou Chiara lhe sugar o sangue. O marido viu um filete vermelho
escorrendo por baixo do seio da esposa e perguntou:
- Por que está fazendo isso, se martirizando dessa forma?
- Já disse, Chiara precisa se alimentar e, pelo jeito, não
gosta de leite... Além do mais, sinto uma sensação estranha, como
se algo dentro de mim me levasse a agir deste jeito. Talvez seja
meu instinto materno...
Nos dias seguintes, tentaram lhe dar mamadeira, pão, frutas
e até mesmo doces, mas Chiara não aceitava comer nada disso. Só
parava de chorar, quando Simona lhe dava o peito para ela beber
seu sangue. Duas semanas depois, havia emagrecido bastante e
andava pálida feito uma defunta.
- Você vai acabar se matando...
- Se é para nossa filha viver...
Foi quando Pietro Ranaldi teve uma ideia. Ele apanhou um
pedaço de carne sangrando e aproximou-a dos lábios de Chiara.
Para surpresa do casal, a pequena comeu tudo e parou de chorar.
Deste dia em diante, só a alimentavam com carne crua.
O tempo foi passando e a menina foi crescendo.
Naturalmente, amavam-na muito e consideravam Chiara sua filha
legítima, um presente que Deus havia lhes dado, após ter arrancado
deles aquela que era fruto de seu amor. Todavia, sabiam que ela era
uma criança peculiar, diferente das outras; por isso, protegiam-na
como podiam. Quando ela já tinha idade suficiente para ser
alfabetizada, acharam melhor não a colocar na escola. Simona ia
lhe ensinando o pouco que sabia, pois temiam que a filha não se
adaptasse aos colegas. Chiara tinha suas esquisitices. Um dia, ela
matou uma galinha no fundo do quintal com as próprias mãos e lhe
bebeu todo o sangue. Depois, começou a caçar ratos para lhes
sugar o sangue ainda vivos. Com o tempo, passou a odiar ainda
mais a luz do sol. Para evitá-la, pôs-se a dormir de dia, ficando
acordada a noite inteira. Tudo isso era visto com certa
condescendência por seus pais, pois acreditavam que a filha
provavelmente parasse com essas esquisitices, quando crescesse
um pouco mais. Porém, certa feita, ocorreu algo que os deixou
horrorizados. Durante uma madrugada, Pietro dirigira-se à sala do
crematório, que ficava contígua à sua residência, porque se
esquecera de anotar algo. Lá chegando, ainda no meio das
sombras, viu estarrecido que Chiara estava chupando o pescoço de
um cadáver, que ali aguardava para ser cremado. Não lhe disse
nada. Contudo, quando subiu ao seu quarto, contou à mulher aquilo
que tentou esconder durante estes anos todos. A filha era uma
vampira! Evidentemente, Simona não recebeu bem tais palavras e
pôs-se a berrar, transtornada.
- Não! Nossa filha, não!
Por fim, quando os ânimos serenaram, os dois concordaram
que o melhor que podiam fazer pela menina era chamar um padre
para vê-la. Na manhã seguinte, Pietro Ranaldi dirigiu-se até a igreja
a fim de se aconselhar com padre Lorenzo. Não lhe disse
diretamente que a filha poderia ser uma vampira, mas quis saber
dele se acreditava em tais criaturas e se elas existiam de fato.
- Por que quer saber isso? Indagou o pároco.
- Estamos com um problema em casa. Quero que venha
comigo, observe com seus próprios olhos e nos aconselhe o que
devemos fazer.
- Pode ser mais tarde? Agora estou um pouco ocupado.
- Então, venha almoçar conosco, pois nos dará enorme
prazer.
- Ótimo! Estarei lá ao meio-dia.
Pouco antes do horário combinado, o padre Lorenzo apertou
a campainha do sobrado dos Ranaldi e Chiara veio atender. A
menina achava-se ainda sonolenta, pois fora acordada pela mãe
naquele momento. Ao fitar ali um homem trajando um vestido preto,
a garota estranhou deveras, pois nunca em sua vida tinha visto um
padre. Ela não frequentava missas, pois seus pais quase não a
deixavam sair de casa. Chiara ia perguntar o que o sujeito desejava,
quando Pietro e Simona chegaram à porta.
- Oh, padre, por favor, vamos entrando!
- Que Deus esteja convosco.
Ao dizer isso, o pároco ofereceu-lhes para beijar o crucifixo
que trazia pendurado no peito. Simona beijou-o com devoção
redobrada, seguida pelo marido, que lhe repetiu o gesto. Porém,
quando padre Lorenzo estendeu a cruz de prata para Chiara beijá-
lo, a menina arregalou uns olhos aterrorizados, como se estivesse
diante de uma seringa de injeção, e saiu correndo para o seu
quarto. A mãe pediu para o convidado não reparar na atitude da
filha, que estava ficando cada vez mais desobediente. O cremador
dirigiu-se à cozinha junto do vigário e os dois sentaram-se à mesa.
Enquanto isso, Simona fora buscar a filha para almoçar. Ela não
queria vir e acabou descendo muito a contragosto.
O almoço tinha sido preparado com carinho especial para
agradar ao padre Lorenzo. Além de lasanha, que a dona da casa
sabia ser um dos pratos prediletos do cura, Simona fizera também
um peru recheado. Ao retirá-lo do forno e levá-lo para a mesa, o
aroma delicioso do assado inundou toda a cozinha, fazendo com
que os olhos do pároco até salivassem de excitação. Todos
devoraram grandes nacos do peru e comeram bastante lasanha,
exceto Chiara, que não suportava nada disso. Sua mãe retirou da
geladeira um bom pedaço de carne sangrenta e colocou no prato
dela. Padre Lorenzo estranhou aquilo e indagou:
- Ela só vai comer bife cru?
- Ela só come isso, padre. Respondeu o cremador.
O homem achou aquilo muito esquisito, mas preferiu não
dizer nada. Ao longo do almoço, a conversa transcorreu animada,
mas ninguém tocou no assunto que motivara a vinda do vigário para
almoçar com os Ranaldi. Somente durante a sobremesa, foi que
padre Lorenzo perguntou:
- Mas o amigo me chamou aqui, porque queria me dizer
algo...
Pietro fitou a mulher com um olhar sério e disse:
- É sobre minha filha... não sei como dizer... ela é uma
criança... especial.
- Especial como?
- Chiara tem certas peculiaridades e estamos preocupados
com ela...
O pároco contemplou a menina, esfregou a testa com um ar
meditativo e proferiu:
- Eu já havia percebido que ela tem presas. É muito raro que
crianças tenham dentes assim. E ela só come carne sangrando... e
tem pavor de crucifixos... e hoje cedo, recordo-me que você me
falou algo sobre vampiros...
- É só uma hipótese, padre.
- Posso ver seus dentes mais de perto?
- Abra a boca, minha filha! Pediu Simona.
O padre aproximou seus olhos dos lábios da menina e,
durante alguns breves instantes, pôs-se a lhe examinar a boca. Por
um momento, passou-lhe pela cabeça que aqueles dentes podiam
ser postiços, talvez uma brincadeira de mau gosto da garota, de
maneira que ele quis tocá-los com a ponta dos dedos. Porém,
enquanto assim procedia, Chiara lhe deu uma forte mordida na mão.
Enterrou-lhe as presas nas carnes e passou a lhe chupar o sangue
com vontade. O homem deu um grito lancinante de dor.
Imediatamente, instintivamente, apanhou com sua outra mão o
crucifixo que trazia pendurado no peito e encostou na face da
jovem. Ela sentiu sua pele queimar, guinchou pavorosamente feito
um bicho esmagado e saiu correndo para o seu quarto.
De sua mão mordida, o sangue ia pingando e escorrendo
pelo braço. Simona levou o padre até a pia e lavou-lhe a ferida. Em
seguida, fez-lhe um curativo e pediu mil desculpas pelo ato
intempestivo da filha. Quando já iam se despedir, Pietro indagou:
- Então, padre, o que você nos aconselha?
Padre Lorenzo contemplou o casal com o cenho fechado e
disse resoluto:
- Esta menina é um perigo para todos... é uma criatura
diabólica! Não há dúvidas de que se trata de uma vampira!
Simona e seu marido apresentavam feições transtornadas e
achavam-se por demais angustiados. Aquelas palavras eram como
estacas afiadas cravadas em seus corações. Pietro passou a mão
sobre os olhos cansados e, com voz minúscula, perguntou:
- Mas o que devemos fazer?
O pároco os contemplou por alguns segundos, até que
disparou, resoluto:
- Neste caso, só há uma solução. Vocês devem matá-la!
Ao ouvirem aquele conselho maldito, Pietro e Simona
arregalaram seus olhos e permaneceram boquiabertos, mudos
como duas plantas, suas vozes atracadas nas gargantas. Ficaram
horrorizados com tal resposta, principalmente por ter vindo de um
servo de Deus em que eles confiavam. Em nenhum momento,
esperavam ouvir um disparate daquele. A mulher começou a chorar
e foi abraçada pelo marido. Em seguida, ele balbuciou:
- Mas ela é nossa filha, padre!
- É filha de Satanás! É necessário enviá-la de volta para o
inferno, de onde este monstro nunca deveria ter saído!
- Não levantarei um dedo contra Chiara!
- Então, deem-me licença, pois não tenho mais nada para
fazer aqui. O mal fez ninho em sua casa, irá crescer e, quando
chegar a hora, pode ser tarde demais. Adeus!
Aquele julgamento do padre Lorenzo pareceu-lhes bastante
injusto e precipitado. Ele não conhecia Chiara, passara muito pouco
tempo com ela e, no fundo, deve ter ficado impressionado pelo fato
da menina ter lhe mordido a mão. A verdade é que os Ranaldi não
tomaram qualquer providência com relação à filha e continuaram
levando a vida normalmente, sem maiores problemas, até que um
dia...
Um dia, eles perceberam que o tempo havia passado e a
filha já estava com dezesseis anos. Continuara com os mesmos
hábitos de criança, só que agora se vestia apenas com roupas
pretas. Para passar o tempo, Chiara lia romances góticos e ajudava
o pai a fazer as cremações. Com isso, muita gente a conhecia de
vista e todos a achavam bela e misteriosa.
Em seu peito, porém, ia crescendo uma vontade imensa de
sair às ruas, ver gente ou mesmo vagar por vielas escuras. Certa
noite, quando Pietro e Simona já estavam dormindo, Chiara desceu
silenciosamente a escada, abriu a porta da frente e saiu de casa
sem avisar ninguém. Durante algum tempo, caminhou por lugares
ermos e praças vazias, até que chegou a uma avenida mais
movimentada e entrou num bar, diante do qual se achavam vários
carros e motos estacionados. O ambiente estava infestado de
fumaça e cheirava a álcool e nicotina. Quando ela entrou ali
sozinha, muitos rapazes passaram a observá-la com olhares
gulosos. Chiara dirigiu-se até o balcão, sentou-se em um banquinho
de ferro que girava sobre uma haste prateada presa ao chão e
perguntou a um homem que lavava copos:
- O que se tem aqui para comer que esteja sangrando?
O sujeito pensou que fosse uma brincadeira da garota e
disse um gracejo:
- Temos miolos de cérebro de macaco e vísceras de
avestruz...
Chiara não gostou muito daquela resposta e pediu com voz
séria:
- Pode me servir um bife cru?
O sujeito abriu uma geladeira, apanhou um pedaço de
carne, que cortou com uma faca afiada em três pedaços, e colocou
um deles num prato diante da menina. Tão logo ela começou a
comer, um rapaz veio sentar-se ao seu lado.
- Posso lhe pagar uma bebida?
- Aqui não há nada que eu goste de beber...
- Eles preparam drinques excelentes. O que você gosta de
beber?
- Sangue...
Ele riu da piada e pediu dois Bloody Mary. Depois, disse que
se chamava Luca e a convidou para ir se sentar em uma das
mesas, que ficava encostada a uma janela e dava para a rua.
Chiara gostou do moço, pois ele era bonito e parecia ter bastante
sangue nas veias. Por mais de uma hora, os dois ficaram
conversando ali uma série de banalidades, típicas dos jovens
enamorados que desejavam se conhecer melhor.
- Mas você nem tocou em seu drinque?
- Não bebo nada com álcool...
- Quer que eu peça uma tônica, uma limonada?
- Não precisa, estou sem sede... por enquanto...
- Eu já a conhecia de vista. Você não é a filha do cremador?
Estive uma vez em sua casa com minha família, quando mandamos
cremar o meu avô.
- Não me lembro de você.
- No colégio, alguns de meus amigos também a conhecem.
Você chama bastante atenção, pois é muito bonita. Quando eu
disser, ninguém vai acreditar que a conheci. Se aqui tivesse uma
jukebox, eu colocaria uma música para a gente dançar.
A menina sorriu para parecer simpática e olhou o relógio da
parede, demonstrando alguma ansiedade. O moço compreendeu
aquele olhar e disse:
- Bom, está ficando tarde. Posso levá-la até a sua casa...
- Prefiro que me leve para a sua casa...
Ao ouvir aquelas palavras, Luca sentiu uma queimação
escorrendo por dentro de sua coluna cervical. Surpreendeu-se
deveras pela ousada iniciativa da garota, mas sabia que lá não
conseguiria nada com ela. Mesmo assim, ficou embaraçado em lhe
dizer não. Chamou o garçom, pagou a conta e conduziu a menina
para o seu carro. Chegando à sua residência, estacionou o veículo
sobre a grama do jardim e desligou os faróis e o motor. O toca-fitas
tocava antigas baladas românticas, enquanto que na cabeça do
rapaz um turbilhão de pensamentos ia deixando-o cada vez mais
excitado.
- Eu a convidaria para entrar, mas meus pais estão em
casa... você sabe como é...
- Não tem importância. Podemos fazer aqui no carro...
O coração do jovem pôs-se a bater acelerado, sua
respiração mostrava-se um tanto ofegante e ele passou a salivar
feito um bode velho. Então, começaram a se abraçar e se beijar e
se chupar, até que Chiara lhe cravou no pescoço as suas presas
afiadas. O sangue esguichou nas janelas, sobre os bancos e por
toda parte, pois deve ter perfurado a jugular. O moço meteu-se a
gritar enlouquecido de dor, mas começou a sentir uma tremenda
fraqueza, de maneira que não conseguiu reagir. A menina ia se
banqueteando e aproveitou para lhe chupar todo sangue que pôde.
Em pouco tempo, o rapaz parou de se debater. Nisso, uma luz na
varanda se acendeu, a porta da casa se abriu e um homem saiu de
lá segurando uma espingarda. Ouvira gritos no jardim e resolvera
ver o que estava acontecendo. Quando Chiara percebeu que se
achava em perigo, abriu a porta do carro e saiu correndo pela rua
escura. O sujeito assustou-se ao vê-la coberta de sangue e gritou
para que ela parasse, senão, iria atirar. Havia reconhecido a garota,
pois, meses atrás, estivera na casa do cremador para cremar seu
falecido pai. A menina não obedeceu e ele deu um tiro, mas não
acertou ou errou de propósito para não ferir a filha de um conhecido.
Já bastante atordoado, temendo pelo pior, o homem deu
alguns passos até o automóvel e abriu a porta do motorista. O corpo
cadáver do filho tombou para fora do carro, quase aos pés do pai,
que se desesperou ao vê-lo sem vida e se pôs a berrar e chorar
amargamente. Ele arrastou o rapaz até a varanda e chamou uma
ambulância, mas não havia mais nada que poderia ser feito.
O enterro aconteceu no dia seguinte e logo circulou pela
aldeia que a assassina daquele jovem era a filha do cremador.
Horrorizado com tamanha tragédia, padre Lorenzo fez um discurso
inflamado diante da cova do rapaz, afirmando para toda gente que
aquela menina, que matara um dos jovens mais promissores e
talentosos da cidade, era uma vampira. Não adiantaria prendê-la,
como desejava o delegado, pois a maldita tinha poderes
demoníacos e prisão alguma poderia mantê-la atrás das grades.
Dizem que aquela criatura monstruosa virava morcego nas noites
enluaradas para beber o sangue dos inocentes, embora as pessoas
de Montefiori jamais tivessem ouvido falar de qualquer outro caso
semelhante antes daquela data. Os ódios pareciam cada vez mais
inflamados e toda gente mostrava-se indignada diante de tamanha
barbárie. O pai de Luca jurou que iria vingar a morte de seu filho
com sangue, no que foi apoiado por boa parte dos presentes,
inclusive, pelo padre Lorenzo.
Naquela mesma noite, uma multidão dominada por uma
fúria diabólica, armada com paus, pedras, tochas, espingardas e
arpéus, invadiu a casa do cremador e amarrou Pietro e sua esposa
numa árvore do jardim. Os Ranaldi gritavam e esperneavam, mas
não conseguiram se livrar das cordas que os prendiam ao tronco.
Enquanto isso, os invasores subiram ao quarto de Chiara e a
encontraram escondida dentro do armário. Tão logo puseram as
mãos na menina, enrolaram-na em um lençol e a amarraram da
cabeça aos pés. Aos berros de “morte à filha de Satanás”, eles
arrombaram a porta do crematório, arrastando Chiara até lá dentro.
O pai e a mãe da garota imploravam por piedade, mas a turba
enlouquecida parecida ter sido ungida pela baba venenosa de
Lúcifer. Já não eram mais homens e mulheres que estavam ali, mas
simplesmente monstros sedentos por vingança. Alguém abriu a
porta do enorme forno e jogaram a jovem em seu interior. Ela
debateu-se o quanto as forças lhe permitiam até que padre Lorenzo
ligou o gás e acendeu o fogo. Uma extraordinária luz branca,
tremendamente quente, inundou a parte de dentro do forno e a
maciça porta de ferro foi trancada. Gritos horrendos passaram a
ecoar pelo recinto, ante os olhos impassíveis de todos os presentes,
até que um silêncio macabro tomou conta de tudo, um silêncio que
não se sabia se vinha dos vivos ou dos mortos.
Pesadelos numa noite de
inverno

T ed McAdams colocou
mais lenha na lareira
para avivar o fogo e foi
se sentar numa poltrona de couro, que ficava ao lado do velho
aparelho televisor de 26 polegadas. Desde a última noite, não
parava de nevar e o jardim da sua casa já se achava coberto por
uma grossa camada de neve. Ele apanhou o jornal da manhã,
deixado sobre a mesinha de centro da sala, e pôs-se a folheá-lo
sem o menor interesse. Estava muito nervoso para se concentrar
em qualquer leitura e seu pensamento claudicava por trilhas
soturnas, que o levavam exatamente há um ano atrás. Desde que
voltara do trabalho, no final da tarde, quase não trocara palavra com
sua esposa, Julie. Ela se encontrava na cozinha preparando o jantar
e trazia o espírito envolto por uma amargura que parecia devorá-la.
Errou a quantidade de sal no molho por duas vezes e deixou as
batatas tostarem mais do que seria desejado. Na verdade, os dois
estavam bastante aflitos e - por que não dizer - apavorados.
A mulher apareceu na porta da sala e disse que o jantar
estava pronto. Ted McAdams dirigiu-se até a geladeira e encheu um
copo com leite. Gostava de bebê-lo puro durante as refeições. Ele
cortou um pedaço de carne, despejando um pouco de molho por
cima. Em seguida, apanhou algumas batatas, amontoando-as na
beirada do prato. Sua esposa parecia não ter fome e serviu-se
apenas com uma acanhada porção de salada. Jantaram calados, os
olhos enfiados na comida, ouvindo aquela sinfonia angustiante dos
talheres esgrimindo a louça. Por fim, Julie não suportou mais o
silêncio e indagou:
- Você sabe que dia é hoje?
Ted limpou a boca na borda da toalha xadrez.
- Sei... Imaginei que tivesse se esquecido...
A esposa cortou um pedaço de tomate, levou-o à boca
espetado na ponta do garfo e passou a mastigá-lo sem ânimo.
Depois, largou os talheres sobre a mesa, esfregou a testa
demonstrando certa agonia e disse:
- Como posso esquecer uma coisa dessas? Hoje faz
exatamente um ano...
O marido a interrompeu com voz áspera:
- Faz exatamente um ano que aquele maldito foi enforcado...
Os olhos de Julie alagaram-se, lembrando-se da filha
querida. Ela bebeu um gole d´água, fitou o companheiro por alguns
instantes até que proferiu:
- Você sabe que o problema é outro...
Ted McAdams respirou fundo, mordendo a ponta de seu
lábio inferior. Em seguida, pôs uma de suas mãos sobre a da mulher
e bradou:
- Teme as palavras do miserável...
- Jamais as esqueci por um único dia desde então. Ele era
um feiticeiro terrível, diziam que fizera um pacto com o demônio e
você viu que o patife falou depois de morto... Disse que voltaria
exatamente um ano após a sua morte para se vingar...
- Ou seja, hoje!
- Hoje! Por isso, estou tão angustiada...
- Confesso que também estou preocupado. Mas o que pode
nos acontecer? Estamos dentro de casa, com as portas trancadas.
Aquele bruxo não vai retornar dos mortos, não nos fará mal algum.
Meu bem, quer saber de uma coisa? Vamos esquecer isso tudo,
sim?
- Como se fosse possível arrancar do coração aquela
tragédia! Parece que tudo aconteceu ainda ontem...

***

Fazia sol naquela manhã de sábado, quando a pequena


Katy McAdams saiu pelo portão de casa pela última vez. A garota
acabara de completar sete anos de idade e ganhara dos avós uma
enorme boneca, que mal conseguia carregar. Ao deitá-la, ela
fechava seus grandes olhos de vidro azul, como se tivesse
adormecido, e ria feito um bebê satisfeito assim que lhe apertavam
o ventre. Katy achava-se encantada com a nova boneca e, como
era natural, quis mostrá-la para sua amiga Stephenie. A garota
morava do outro lado da rua, quatro ou cinco casas adiante. Havia
um amplo jardim na frente da residência dela, onde as duas
costumavam passar horas brincando num balanço de corda, feito
pelo pai. Katy desceu as escadas da varanda com a boneca nos
braços e caminhou com seu passinho de flor pela calçada, debaixo
do olhar carinhoso de Julie, que a observava pela janela da frente.
Os cabelos ruivos da menina ondulavam ao vento, quando ela parou
ao lado de uma árvore a fim de acenar para a mãe. Depois disso, a
pequena saiu do campo de visão de Julie, que foi cuidar da vida.
Como de hábito, Ted McAdams vinha almoçar em casa. Era
proprietário da única loja de ferragens da pequenina cidade, negócio
miúdo que ele herdara do pai. Se precisasse sair do
estabelecimento, deixava uma placa na porta da loja para avisar aos
clientes que voltava logo. Naquele dia, atrasou-se um pouco para o
almoço, pois estava atendendo um freguês, que resolveu lhe contar
uma história cacetíssima e sem fim. Quando chegou a casa, foi logo
perguntando sobre sua filha:
- E Katy?
Julie desligou o forno e retirou do seu interior uma torta de
carne:
- Está na casa dos Robinsons, brincando com a Stephenie.
- Agora, ela não sai mais de lá? Não vem almoçar?
- Deve comer com eles.
Como já havia acontecido outras vezes, nenhum dos dois se
preocupou. Porém, quando Ted regressou do trabalho ao anoitecer,
a situação mudou. Cansada de esperar pela filha, Julie ligou para a
senhora Robinson.
- Alô, Marla? Aqui é a Julie. Por favor, pode mandar a Katy
de volta para casa?
- Mas ela não está aqui. Não veio brincar hoje com a
Stephenie...
Um silêncio feito de espinhos abriu-se no meio da conversa
por breves segundos, inundando de agonia o peito de Julie. Sua voz
saiu amassada por entre os dentes.
- Não está aí?
- Não... por quê? Aconteceu algum problema?
- É que Katy saiu de manhã e ainda não voltou para casa.
De qualquer forma, obrigada! Vou ver se ela está na casa de alguma
outra amiguinha...
Deu mais alguns telefonemas, sem obter qualquer notícia da
filha. Ted McAdams achava-se desesperado, caminhando de um
lado ao outro na sala. Por três ou quatro vezes, olhou através da
janela para ver se Katy estava chegando, mas nem sinal da menina.
Julie mostrava-se aflita, os olhos empoçados de sangue. Já havia se
comprometido com todos os santos de sua devoção, prometendo
orações e auxílio aos necessitados em troca de um final feliz para
aquela angústia toda, quando o marido proferiu:
- Não posso mais ficar aqui esperando de braços cruzados!
Vou à delegacia...
- Irei com você!
- Melhor, não. Alguém precisa ficar em casa, caso Katy
retorne. Vou num pé e volto noutro...
Ele apanhou um casaco e saiu batendo a porta. Ao entrar no
furgão, viu um retrato de Katy sobre o painel e sentiu-se ainda mais
agoniado. Não levou cinco minutos para chegar à delegacia, que
ficava no centro da cidade. O xerife já estava indo embora, quando
Ted estacionou diante do carro dele. Desceu aflito, segurando o
sujeito pelo ombro.
- Algum problema? Indagou o xerife.
- Minha filha desapareceu...
O homem o conduziu ao interior da delegacia e pediu para
explicar tudo com mais detalhes. Quatro policiais jogavam cartas
numa mesa de canto a fim de passar o tempo, pois não havia muito
serviço a ser feito. As celas achavam-se vazias desde o mês
passado, quando um perigoso assassino fora transferido para uma
penitenciária de segurança máxima, onde aguardaria a sentença
que o levaria à cadeira elétrica. Ted McAdams narrou seu problema
ao xerife, que o ouviu com o coração apertado. Conhecia a pequena
Katy. Ela estudava na mesma classe de sua filha menor e eram
amigas. Tão logo Ted lhe deu todas as informações possíveis, o
xerife pediu para ele voltar à sua casa e procurasse ficar
descansado. Iria colocar os seus homens para vasculhar as ruas e
lhe prometeu que, até amanhã, tudo estaria resolvido. A cidade era
pequena, não levariam muito tempo para encontrar a menina.
Ao ver os faróis do furgão iluminando a casa e a garagem,
Julie saiu à varanda para esperar pelo marido. Estava muito ansiosa
e, em seu íntimo, tinha esperança de que a filha desceria correndo
do carro para vir lhe abraçar. Grande foi a sua frustração, quando
constatou que o esposo voltava sozinho. Ele subiu os três degraus
de madeira, abraçou a mulher e indagou:
- Nada ainda?
- Nada... Como foi lá?
Ted McAdams explicou-lhe tudo o que havia se passado na
delegacia. Contou-lhe que o xerife e seus homens iriam procurar
Katy por toda a cidade, a noite inteira, se fosse necessário. Não
precisaríamos nos preocupar, pois trariam a menina até amanhã.
Julie foi esquentar a comida que sobrara do almoço, mas os dois
quase não comeram nada. Depois, sentaram-se na sala e ficaram
aguardando por notícias. Cada carro que passava na rua, Ted se
levantava e ia até a janela. Durante mais de quatro horas
permaneceram ali, nas garras daquela angústia cabal. Era a
primeira noite que a menina passava longe de casa e dos pais. Por
algum tempo, permaneceram recordando lances marcantes da vida
da filha. Certa feita, ela ferira o pé na corrente da bicicleta e
precisou ser levada, às pressas, para o hospital a fim de tomar
alguns pontos. Em outra ocasião, caiu do trepa-trepa no parque e
quebrou um braço, deixando de ir à escola por alguns dias. E como
ela ficara encantadora, fantasiada de bruxa, naquela noite de
Halloween, quando saiu com suas amigas a fim de pedir guloseimas
pela vizinhança. Tantas lembranças queridas, que podiam ficar a
noite inteira recordando. Porém, por volta da meia-noite, acharam
melhor ir para a cama, pois já não tinham mais esperanças de que
Katy pudesse retornar para casa numa hora daquelas.
Evidentemente, passaram uma noite terrível e mal
conseguiram pegar no sono. A manhã já estava despontando com
suas luminosidades pálidas, quando ouviram fortes pancadas na
porta da sala. Os dois ainda se encontravam deitados e assustaram-
se bastante com aqueles golpes violentos, tão incomuns em tais
horários, que soaram como se ossos de esqueletos estivessem
fustigando a porta, procurando escapar de alguma tumba sombria.
Julie sentou-se na cama, o coração com asas de marimbondo
galgando sua garganta, enquanto que Ted McAdams se levantou
num pulo ligeiro e dirigiu-se à janela a fim de espiar através das
frestas. Viu um caminhão estacionado diante da casa e muitas
pessoas conhecidas.
- São alguns amigos - disse para a esposa. Acho que
trouxeram nossa filha!
Os dois encheram-se de esperanças. Vestindo-se
rapidamente, desceram as escadas afobados. Tão logo Ted abriu a
porta, viu que todos ali estavam com semblantes graves e tristes.
Julie adiantou-se ao marido e indagou aflita:
- E minha filha?
Um dos homens pôs sua mão direita sobre um ombro de
Ted McAdams e proferiu:
- Meu bom amigo, Eddie encontrou a sua filha. Achou
melhor nos avisar primeiro...
- Onde ela está? Já avisaram o xerife?
- Não o avisamos. Ele não nos permitiria fazer justiça...
Ao ouvir aquelas palavras, Ted estremeceu. Suas vistas
começaram a brilhar, ensopadas pelas lágrimas.
- Justiça? O que aconteceu? Onde está Katy? Ela não está
bem?
Durante alguns segundos, o homem o encarou em silêncio,
tendo uma cruz fincada nos olhos. Julie compreendeu tudo e
começou a chorar de maneira histérica. Por fim, o sujeito disse:
- É preciso ser forte. Venha ver com seus próprios olhos...
Todos os homens subiram na carroceria do caminhão,
enquanto que algumas mulheres entraram na casa com Julie a fim
de a confortar. Rodaram cerca de dez minutos, Ted sentado na
boleia ao lado do motorista. Sentia uma dor terrível lhe macerando a
alma, como se ela estivesse sendo espremida numa morsa. Quando
chegaram ao local, todos desceram, abrindo caminho para Ted
McAdams passar. Ele estava aflito feito um demônio, seus olhos
vincados de trevas. Alguns traziam pedaços de pau nas mãos e
falavam em linchamento. O motorista o conduziu até o portão da
casa de Louis Lee, um temido feiticeiro que vivia recolhido em seu
canto e não era amigo de ninguém na cidade.
- Está ali!
Ted McAdams foi caminhando com passos mortos para o
lugar indicado. Não podia acreditar no que seus olhos lhe gritavam.
Amarrada numa árvore, toda pintada com sangue, tendo as vistas
vazadas, Katy permanecia sobre um enorme formigueiro, enquanto
era devorada por aquelas formigas satânicas. Trazia o corpo nu,
coberto por alguns adereços, colares e braceletes que pareceram a
todos como objetos de feitiçaria. Ao reconhecer a filha morta, Ted
experimentou uma dor tão excruciante, que ele caiu de joelhos no
chão e enterrou as mãos no barro, como se desejasse arrancar as
próprias vísceras da terra. Alguns homens dirigiram-se até a árvore,
espantaram as formigas, cortaram as cordas e colocaram o cadáver
da menina na carroceria do caminhão. Quando Ted McAdams
levantou-se, trazia um monstro debatendo-se enlouquecido dentro
de si. Já não pensava em mais nada, a não ser vingar-se daquele
feiticeiro maldito, que havia assassinado sua pequena Katy com
requintes de crueldade.
- Filho de uma cadela! Vai pagar pelo que fez! Urrou Ted,
feito um urso enraivecido.
- Por isso não avisamos o xerife... ele iria apenas prender o
feiticeiro, para que fosse julgado por seus atos...
Os ódios achavam-se inflamados e todos queriam fazer
justiça com as próprias mãos. Três homens passaram a dar patadas
na porta, arrombando-a sem muita dificuldade. Tão logo a puseram
abaixo, invadiram a residência e subiram até o quarto, onde
arrancaram o feiticeiro da cama, pois ele ainda se achava dormindo.
Depois, arrastaram-no para fora, amarraram seus braços, meteram
uma corda em seu pescoço e começaram a içá-lo a um galho.
Alguns cavaleiros tomavam parte naquela funesta vingança e
emprestaram um dos cavalos, onde o feiticeiro tomou assento.
Furiosos como estavam, logo alguém sugeriu que se ateasse fogo
ao sobrado. Apanharam gasolina no tanque de combustível do
caminhão e a espalharam por sobre a casa, que era de madeira e
incendiou facilmente. Finalmente, quando tudo já estava pronto para
enforcar o feiticeiro, Ted McAdams disse:
- Agora, vai pagar pelos seus crimes, calhorda!
- Mas o que foi que eu fiz?
- Ainda se faz de sonso? Vai acertar as contas com Satanás,
por ter assassinado a minha filha!
- Juro que não matei ninguém!
- Foi encontrada morta, amarrada nesta árvore.
- Mas não fui eu! Alguém está querendo me incriminar.
Acham mesmo que, se eu tivesse feito isso, amarraria a menina
numa árvore do meu quintal?
- Irá apodrecer no inferno, miserável!
Ainda discutiram por algum tempo, o feiticeiro alegando
inocência. Por fim, este proferiu com uma voz que parecia ecoar dos
abismos infernais:
- Pois saibam que eu tenho um pacto com o demônio. Vocês
podem matar o meu corpo, mas não o meu espírito. Você, Ted
McAdams, que me acusa de maneira tão leviana, terá uma morte
lenta e dolorosa. Daqui a um ano, a contar de hoje, eu voltarei para
matá-lo.
- Mas morrerá agora, maldito!
Dizendo isso, deu um forte tapa numa das ancas do cavalo,
que empinou e saiu correndo em disparada. O corpo de Louis Lee
girou no ar e a corda esticou, dando-lhe um forte tranco no pescoço.
O feiticeiro estrebuchou por alguns instantes, até que quedou
imóvel, balançando lentamente ao sabor da brisa. Um dos homens
aproximou-se dele e lhe tomou o pulso, mas constatou que seu
coração estava silencioso como uma pedra. Todos já estavam se
preparando para ir embora, quando Ted se aproximou do cadáver
pendurado no galho e lhe cuspiu no rosto. Subitamente, o feiticeiro
abriu os olhos e bradou:
- Daqui a um ano...
O susto que Ted McAdams levou foi tão grande, que ele
quase caiu de costas. O morto não havia movido um músculo, não
mexera a cabeça, não chegara mesmo a abrir a boca, mas todos
que estavam ali puderam ouvir aquelas palavras funéreas, que
pareciam ecoar de uma cripta violada. Ted deu alguns passos na
direção dele, pôs dois dedos sobre a jugular de Louis Lee e
constatou que o miserável não poderia estar vivo. Alguém sugeriu
que o queimassem, mas resolveram deixar a carcaça pendurada
onde se achava.

***

Julie levantou-se da mesa e apanhou o bule sobre o fogão.


Após encher a xícara do marido com café, ela perguntou:
- Você acha que ele cumprirá a promessa que fez um ano
atrás?
- Como poderia cumpri-la? Está morto e enterrado no
cemitério da cidade...
- Então, por que está tão nervoso?
- Não sei... acho que fiquei muito impressionado por ter tido
a impressão dele ter falado depois de morto...
A esposa deitou um pouco de café na sua xícara e misturou
duas colheres de açúcar, pois preferia bebê-lo doce. Enquanto
estava agitando a bebida com a colher, seus olhos arregalaram-se e
ela disse com voz trêmula:
- Está sentindo isso?
- O quê?
- Este cheiro maldito!
- Que cheiro? Não estou sentindo nada...
Julie respirava agora com mais impetuosidade, como se
desejasse se certificar de que aquele odor horrível se achava
mesmo dentro da casa.
- Um cheiro de feno úmido...
- E que tem isso?
- Não se lembra? É o cheiro daquele feiticeiro infame!
Certa feita, ela se encontrara com Louis Lee na mercearia e
aquele odor desagradável ficara impregnado em suas narinas.
Nunca mais o esquecera.
- Sim, eu me lembro do seu cheiro untuoso. Quando ele
morreu, parecia exalá-lo mais intensamente...
Por um instante, o corpo de Julie estremeceu e ela proferiu
sem forças:
- Eu sinto que ele está dentro da casa...
Ted McAdams a contemplou com olhos esbugalhados por
alguns instantes. Por fim, disse:
- Minha querida, seus nervos estão abalados. Não quer
tomar um calmante?
Ela meneou a cabeça afirmativamente. O marido levantou-
se e se dirigiu ao banheiro, pois eles guardavam os remédios no
armarinho em cima da pia. Ao fitar-se no espelho, experimentou
uma sensação estranha, como se estivesse contemplando o seu
próprio cadáver. Talvez também estivesse precisando tomar um
calmante. Lavou o rosto debaixo da torneira e, quando apanhou a
toalha para enxugá-lo, teve a nítida impressão de que havia alguém
respirando atrás de si. Um calafrio glacial escorreu-lhe pelas costas
e ele virou-se assustado, com a respiração ofegante, mas não viu
nada. Apanhou o frasco do remédio e regressou para a cozinha,
encontrando Julie sentada em outra cadeira.
- Você foi atrás de mim no banheiro?
- Não... que ideia. Por que eu faria isso?
- Por nada, esqueça!
Encheu um copo com água e o entregou junto do calmante
para a esposa, que o bebeu imediatamente. Em seguida, eles foram
se sentar na sala.
Quando Ted ia ligar o televisor, Julie proferiu:
- Espere um pouco! Está ouvindo isso?
- Não estou escutando nada...
- Um choro de criança. É como se nossa filha estivesse nos
chamando...
Ted McAdams sentiu um arrepio. Os dois fizeram o máximo
de silêncio, mãos atrás dos ouvidos. De repente, um barulho
violento rebentou no segundo andar e eles levaram um susto
tremendo. Que diabos seria aquilo? Apavorado, o marido apanhou
seu rifle, que ficava pendurado em ganchos na parede da sala, e
passou a subir as escadas lentamente, imaginando que algum
ladrão pudesse ter invadido o sobrado. Com todo cuidado, olhou os
quartos e os banheiros, mas não encontrou ninguém. As janelas
achavam-se trancadas e não havia por onde alguém pudesse ter
entrado. Por um momento, teve a impressão de sentir aquele aroma
enjoado de feno úmido, característico do maldito feiticeiro.
Encontrava-se tão nervoso e aterrorizado, que seus sentidos
podiam estar lhe traindo. Alucinações olfativas eram raras, mas
podiam ser explicadas à luz da ciência. Seguia metido com estes
pensamentos, quando ouviu sua mulher dar um grito horripilante lá
no térreo. Imediatamente, desceu os degraus, saltando-os de três
em três, para ver o que havia acontecido. Julie estava transtornada
de pavor, caída sobre uma poltrona.
- O que aconteceu?
Ela mal conseguia articular as palavras.
- Lá... na janela... eu vi um vulto... alguém espiando aqui
para dentro... parecia o feiticeiro...
Tão logo ouviu aquelas palavras, Ted McAdams abriu a
porta da sala e saiu varanda afora. O jardim estava coberto de neve
e ele percebeu que havia pegadas em direção a uma das árvores.
Bradou:
- Saia já daí com as mãos para cima ou leva chumbo!
Um homem saiu detrás do tronco com os braços erguidos e
veio caminhando cautelosamente na direção do sobrado.
- Encoste na parede e coloque as mãos na cabeça! Gritou
Ted, apontando-lhe o rifle.
O sujeito obedeceu. Ted McAdams passou a revistá-lo para
ver se ele estava armado, mas não encontrou nada. Depois, virou-o
de frente e indagou:
- O que fazia aqui?
- Estou procurando abrigo por uma noite. Sigo para o sul
com a minha família, atrás de emprego, e não tenho onde dormir.
Estamos viajando de carona há uma semana e não como nada há
dois dias. Minha mulher e meu filho conseguiram abrigo na casa da
esquina, mas não havia lugar para eu passar a noite também lá.
Então, disseram-me que eu talvez conseguisse pernoitar na sua
residência...
- Quem disse?
- Não me recordo o nome.
- Os Blackwoods?
- Isso mesmo! Creio que era este o sobrenome da família.
Ted McAdams dera o nome errado de propósito para ver se
ele estava falando a verdade.
- Está mentindo! Ali não mora ninguém chamado assim!
- Me perdoe! Eu posso ter me equivocado... Mas pode ir lá
confirmar, se quiser.
Julie havia saído à varanda e escutara toda a conversa. Ela
apiedou-se do pobre homem, que lhe pareceu sincero.
- Se o deixarmos passar a noite ao relento, ele vai morrer
congelado. Podemos hospedá-lo no quarto de nossa filha, que está
vazio...
O marido coçou a testa franzida, ruminando o que deveria
fazer. No fundo, tinha um bom coração e não lhe custava nada
ajudar o sujeito.
- Está bem, mas vou ligar para os Robinsons, a fim de
confirmar sua história.
Os três entraram e Julie trancou a porta. Ted apanhou o
telefone e pediu para o homem se sentar no sofá. Após alguns
momentos, como ninguém atendeu, disse:
- É estranho, eles não costumam sair à noite...
Julie dirigiu-se à cozinha e preparou um lanche de presunto
e queijo para o hóspede, que agradeceu muito. Estava faminto, de
maneira que o devorou rapidamente.
- Quer outro?
- Se não for abuso de minha parte...
- De maneira nenhuma. É só um instante...
Enquanto ela estava na cozinha, o homem disse,
procurando puxar conversa:
- Ted, a sua esposa é muito gentil.
Ele arrepiou-se. Não se lembrava de ter lhe dito o seu nome.
Fitando-o de maneira incisiva, indagou:
- Como sabe meu nome?
O sujeito engasgou para ganhar tempo.
- Vi escrito na caixa de correios...
Julie voltou à sala e lhe entregou o outro lanche. Quando ele
terminou, disse que gostaria de se recolher, pois se achava muito
cansado. Levaram-no até o quarto que era da filha e Julie lhe
entregou um grosso cobertor, pois a noite estava bastante fria.
Despediram-se, ele agradeceu novamente, encostaram a porta e
desceram.
Ted ainda não havia se convencido com a história contada
pelo sujeito e tentou ligar para os Robinsons novamente a fim de
tirar qualquer dúvida. Dessa vez, atenderam ao telefone. Após os
cumprimentos de praxe, ele perguntou se estavam hospedando
alguém em casa naquela noite e, para sua surpresa, ficou sabendo
que não havia hóspede algum ali. Esta resposta o deixou
terrivelmente preocupado. Também perguntou se os vizinhos tinham
saído, pois ligara várias vezes e ninguém atendeu. O amigo replicou
que não haviam saído e tampouco o telefone tocara. Isto deixou Ted
ainda mais assombrado, pois era impossível ter discado
incorretamente o número em todas as ligações que fizera. Assim
que desligou o telefone, disse à mulher:
- Alguma coisa muito errada está acontecendo aqui. Este
homem está mentindo, não há ninguém na casa dos Robinsons.
- Não é melhor chamarmos a polícia?
- E dizer o quê? Que hospedamos uma pessoa por engano?
Não, prefiro resolver ao meu jeito e vai ser já. Vou mandá-lo
embora...
Dizendo isso, apanhou seu rifle e subiu as escadas, tendo
Julie seguindo os seus passos. Bateu na porta, mas ninguém
atendeu. Bateu novamente com mais força e nada. Forçou a
maçaneta, constatando que ela estava trancada. O marido encarou
a esposa com olhos pouco amistosos, como se quisesse dizer que
haviam se metido numa bela enrascada. Depois, afirmou que iria
arrombar a porta. Contudo, Julie disse que isso não seria
necessário, pois todas as portas internas dos quartos abriam com a
mesma chave. Ela caminhou até o dormitório do casal e apanhou
uma delas. Com a mão um pouco trêmula, inseriu-a na fechadura e
abriu a tranca. Ted entrou afoito, seguido pela esposa. Para
surpresa de ambos, não havia mais ninguém ali dentro.
Tal fato os encheu ainda mais de pavor. Onde estaria o
maldito? Ted McAdams abriu o guarda-roupa fazendo mira com seu
rifle, mas só encontrou roupas de sua filha em seu interior. Julie
abaixou-se para olhar debaixo da cama e nada. Subitamente, o
vento inflou a cortina e eles perceberam que a janela se achava
aberta.
- Deve ter saído por ali!
Os dois dirigiram-se até à janela e vasculharam o jardim.
Não havia o menor sinal do sujeito. Julie disse que não deveriam se
preocupar mais, pois o homem certamente deveria ter ido embora.
Em seu íntimo, Ted não podia compreender qual seria a intenção
dele, pedir para passar a noite ali e, depois, ir embora daquela
maneira. Existia qualquer coisa naquilo tudo que não se encaixava.
Pensando nisso, ele percebeu algo que, até então, seus olhos não
tinham notado. Surpreendentemente, não havia pegadas na neve.
Como isso era possível? O estranho não poderia ter saído voando
pela janela, a não ser que fosse um fantasma. Este raciocínio
deixou Ted ainda mais abalado e nervoso. Lembrou-se de ter visto
pegadas na neve, quando o encontrou pela primeira vez; todavia,
misteriosamente, elas haviam desaparecido.
De repente, Julie deu um grito de horror:
- Veja... ali...
Ted McAdams aproximou-se da cômoda e constatou
estarrecido que, no espelho, estavam escritas com sangue as
seguintes palavras:

A morte veio para buscá-los.


Suas pernas começaram a tremer, enquanto que Julie se
pôs a chorar de maneira histérica. O marido ainda fitava o espelho,
observando aquelas fatídicas palavras, quando viu algo
verdadeiramente estarrecedor. Segurando uma faca, o funesto
feiticeiro surgiu repentinamente por trás de Julie, pronto para lhe
degolar o pescoço. Esta visão o deixou alucinado. Sem ter tempo
para mais nada, ele virou-se num movimento brusco e atirou. Uma
fumaça com cheiro de pólvora dançou diante de seus olhos,
enquanto se ouviu o ruído de um corpo caindo seco no chão.
Ted McAdams experimentou uma dor acachapante, como se
uma montanha tivesse desabado sobre suas costas, quando ele viu
que era a esposa que havia caído sobre o assoalho. Acertara-lhe
em cheio o peito, de onde o sangue jorrava aos borbotões. Não
havia mais ninguém no quarto. Desesperado, o marido ajoelhou-se
ao lado de Julie e lhe segurou uma das mãos. Dos olhos dela,
escorreu uma lágrima solitária. Depois, a pobre mulher proferiu:
- Por que fez isso?
Após dizer isso, o pescoço de Julie pendeu para o lado e
seu peito parou de arfar. Ted sentiu a morte crescendo dentro de si,
arranhando-lhe as vísceras com unhas de sabre, devorando-lhe as
entranhas como um enxame faminto de vespas assassinas. A sua
aflição foi tamanha, que ele passou a bater a cabeça no assoalho,
como se tivesse possuído por um demônio. Em vão, chamava pela
esposa, que não podia mais ouvi-lo, as lágrimas lavando-lhe o corpo
já cadáver. Quando conseguiu se recuperar um pouco, apanhou-a
nos braços com alguma dificuldade e a colocou sobre a cama.
Depois, dirigiu-se até a janela para respirar ar fresco. Subitamente,
ele viu alguém saindo pela varanda de sua casa e teve a impressão
de que se tratava daquele hóspede infernal. Talvez ele fosse a
própria reencarnação do feiticeiro, o maldito! Ao vê-lo caminhando
junto ao sobrado, bradou possesso:
- Eu te mato, bastardo!
Apanhou seu rifle e saiu disparado no encalço daquele ser
abominável. Tão logo chegou ao jardim, percebeu um vulto
esgueirando-se para trás da casa e o seguiu. Lá nos fundos, para
sua surpresa, encontrou a porta que dava acesso ao porão aberta.
Aquela criatura nefasta somente poderia ter se escondido lá dentro.
Pé ante pé, Ted McAdams passou a descer lentamente as escadas,
suando como um porco que vai ser carneado. O ambiente achava-
se tremendamente escuro e ele caminhava com o rifle apontado
para frente, dedo no gatilho. Quando chegou lá embaixo, apanhou
uma lanterna que deixava ali ao lado, sobre uma estante, e passou
a iluminar um pouco o porão. O facho de luz apresentava-se
bastante fraco, deitando sombras sinistras pelas paredes. Ted
McAdams estava tão apavorado, que suas pernas tremiam deveras,
como se elas fossem feitas de gelatina. Tinha dificuldade em
segurar o rifle e a lanterna ao mesmo tempo e, por isso, caminhava
com muita lentidão, observando cada canto com todo cuidado.
Contudo, o sujeito parecia ter desaparecido. De repente, ouviu um
ruído atrás de si e, dominado por uma aflição extrema, atirou no
escuro. Nada mais era do que um rato, que havia derrubado
algumas garrafas vazias. Para seu azar, porém, ele acertara um
galão de gasolina, que costumava estocar ali no depósito. Uma
explosão terrível se verificou e o fogo passou a dominar todo o
recinto, consumindo as bancadas de madeira e todos os outros
trastes entulhados no porão. Ted já não conseguia mais respirar por
causa da fumaça e, arrastando-se como pôde, subiu os degraus que
levavam para fora. Porém, para terror supremo de sua alma, ele
constatou que a porta se achava trancada por fora! De todas as
formas, tentou arrombá-la, mas as suas forças já estavam
exauridas. Então, lembrara-se que largara seu rifle lá embaixo e
voltara para apanhá-lo, a fim de arrebentar a fechadura. Todavia,
enquanto descia os degraus, sentiu como se alguém tivesse lhe
passado uma rasteira e despencou sobre o fogo faminto.
Enlouquecido de dor, Ted McAdams pôs-se a se debater
desesperadamente, à medida que ia sendo devorado pelas chamas.
Uma morte lenta e dolorosa, conforme lhe dissera o feiticeiro ao ser
enforcado. Lá fora, não se viam quaisquer rastros de pegadas na
neve.
Abuelito

Q uando o Capitão Eufêmio


Bustamante completou 120
anos, os seus descendentes
resolveram lhe dar uma grande festa. Os filhos já haviam morrido há
muito e alguns netos achavam-se agora envelhecidos. Ninguém
podia compreender como o velhote continuava vivo. Uns diziam que
era porque ele fumava ervas estranhas ou por causa dos doze ovos
crus que chupava todos os dias. Outros, porém, afirmavam que ele
fizera o pacto com o demônio.
Durante toda a manhã, homens e mulheres trabalharam
sem descanso a fim de deixar tudo preparado na propriedade para a
festança daquela noite. Mataram um porco cevado, uma vaca velha
– pois não queriam desperdiçar boa carne com os convidados – e
algumas aves. As pessoas começaram a chegar ao anoitecer. No
centro do terreno, que estava limpo e iluminado por luminárias,
acenderam uma enorme fogueira para aquecer toda gente. Os
mestres churrasqueiros passaram a grelhar as carnes por volta das
sete horas, quando a animação já era grande. Cerveja e cachaça
corriam feito água da torneira e, em pouco tempo, alguns
cavalheiros já se encontravam bastante embriagados. Quatro
músicos, tocando violões e sanfonas, enchiam a noite com canções
alegres. Aos poucos, os casais iam se juntando para danças e, de
vez em quando, alguém se lembrava de soltar rojões, como se
desejasse explodir os céus.
Sentado num canto próximo ao sobrado, coberto por um
poncho de lã colorido que lhe descia até abaixo dos joelhos, o velho
Abuelito, como o Capitão era chamado por todos, permanecia
observando com seus olhos já avessos ao mundo os dançarinos
que esfregavam seus corpos lúbricos diante da fogueira. Enquanto
ia pigarreando e bebendo litros da perfumada cachaça, Abuelito só
pensava como seria bom cruzar com a tenra filha do administrador
da propriedade, Mercedes, uma jovem suculenta de 20 anos.
Separava-lhes o despenhadeiro de um século. A menina era
atrevida, um tanto sonsa, mas equipada com curvas entorpecentes
que faziam a perdição até dos anjos. Diziam que ainda era virgem e
que o pai a guardava a sete chaves para dá-la em casamento ao
filho do juiz da comarca, que fora estudar leis na capital. Vendo que
o ancião não lhe tirava as vistas de cima, a garota dirigiu-se até o
local onde ele se encontrava e disse:
- Abuelito, meu querido, venha dançar comigo!
Porém, o homem já estava tão bêbado, que não se
aguentava mais em pé. Ele ainda tentou se levantar, mas não
encontrou forças nas pernas. Mercedes compreendeu-lhe a
dificuldade e sorriu com seus olhos inundados de excitação, pois
conhecia as histórias que corriam sobre o Capitão. Ela também
havia bebido muita cerveja e estava mais assanhada do que
conviria a uma mocinha do campo. Tomando uma das mãos do
velho, proferiu:
- Não precisa se levantar. Vou lhe dar agora o seu presente
de aniversário...
Dizendo isso, ela passou um das pernas por cima das coxas
de Abuelito e sentou-se em seu colo, de frente para ele. Enlaçou-lhe
a cintura com um dos braços e, apanhando-lhe a mão direita, pôs-se
a se requebrar langorosamente, como se estivessem dançando num
salão elegante. Todos que se achavam na festa pararam o que
estavam fazendo para acompanhar a brincadeira, marcando o
compasso da música com palmas e assobios. O velho babava de
satisfação, contorcendo-se de prazer, sentindo as carnes quentes e
macias da menina lhe incendiando as voluptuosidades em brasas.
Ao cabo da música, ela deu-lhe um beijo no rosto e desmontou,
enquanto a plateia assobiava e aplaudia.
A festa transcorreu sem maiores incidentes. Todos comeram
o quanto puderam, beberam até não aguentar mais, divertiram-se
como doidos e foram embora falando mal daquele velho safado e
sua família degenerada. Por volta da meia-noite, não havia mais
ninguém no terreno, a fogueira já se achava apagada e apenas os
cães davam uma nota de vida na propriedade, devorando os restos
de comida que encontravam pelo chão.
Abuelito bebera tanto, que foi levado desmaiado para sua
cama pelos dois netos mais velhos, quando a festa estava
terminada. O quarto dele cheirava à naftalina e mofo. Atiraram o
ancião sobre aqueles lençóis encardidos, repletos de pulgas e
contemplaram-se em silêncio, as feições escuras como quem traz
dentro dos olhos uma ninhada de lacraias. Tudo estava saindo
conforme eles haviam planejado. Encostaram a porta delicadamente
e cada um foi dormir no seu quarto. Ou melhor, esperar que todos
na residência adormecessem, para que pudessem executar o plano
macabro que haviam concebido.
Uma hora depois, o sobrado já se encontrava na mais
completa escuridão. Pé ante pé, sem acender luz alguma, um dos
netos esgueirou-se silencioso feito uma lagartixa até o quarto de
Abuelito, onde o seu irmão mais velho já o estava aguardando. Eles
empurraram a porta suavemente e estacaram diante da cama do
Capitão, feito dois abutres contemplando sumarento repasto. Em
seguida, enrolaram nos lençóis o velhote, que nada pôde fazer, pois
permanecia inconsciente, e o carregaram para fora da casa. Havia
uma grande lua cheia cochilando no céu, de maneira que a noite se
apresentava tão clara, que as sombras dos homens, das árvores,
dos fantasmas, mostravam-se bem definidas sobre os pedriscos do
solo. Naquela hora morta da madrugada, era possível ouvir apenas
o trilar estridente dos grilos e o vento coçando as frondes dos
arvoredos. Os dois homens arrastaram Abuelito até o outro lado do
terreno, onde ficava a estrebaria. Ali, meteram-no numa carroça e
seguiram para o local previamente combinado.
Pouco depois, chegaram ao seu destino. Na manhã anterior,
quando todos ainda estavam dormindo, eles tinham vindo até
aquele lugar ermo da propriedade e abriram uma cova relativamente
funda. Haviam trazido também um caixão de madeira rústica, que
deixaram escondido por baixo de uns matos. O velhote parecia que
não iria morrer nunca e, por isso, resolveram dar uma mãozinha
para o destino. Só assim mesmo para eles conseguirem a
propriedade definitiva das terras, que ainda se encontravam no
nome de Abuelito. Ninguém suspeitaria de nada. Com seus
corações ofegando, eles apanharam o ancião e o enfiaram no
esquife. Depois, pregaram bem a tampa e o enterraram vivo. Estava
feito.
Os dois netos só regressaram para o sobrado por volta do
meio-dia, quando todos os familiares se achavam ao redor da mesa,
almoçando. Antes, tinham ido até o riacho para se lavar, pois
estavam suados e sujos de terra. Assim que entraram na casa, a
mulher de um deles, que lavava qualquer coisa na pia, enxugou as
mãos no avental e disse aflita:
- Onde vocês estiveram até agora? Estamos muito
preocupados, porque Abuelito não se encontra em parte alguma...
deve ter fugido durante a noite...
O marido pediu para que a esposa se sentasse. Da mesma
forma que o irmão, trazia no rosto a máscara funérea de uma
tristeza pungente, como se ambos estivessem sofrendo muito com a
notícia que iriam anunciar. Até dona Violante, última nora viva de
Abuelito, parecia angustiada com o que lia nos olhos dos filhos. Um
deles encheu um copo com cachaça, bebeu furiosamente em cinco
grandes goles e proferiu:
- Abuelito morreu.
Após o susto inicial provocado por tais palavras, a morte
sendo servida como iguaria refinada naquele almoço, alguém
perguntou:
- Como foi isso?
- Percebemos que ele tinha morrido ontem à noite, quando o
levamos para a cama. Como estavam todos felizes em virtude da
festa, não quisemos falar nada para ninguém naquele momento, a
fim de não estragar a alegria reinante aqui em casa. Foi muita
emoção para o seu coraçãozinho fraco, que não aguentou. Hoje de
manhã, quando nos levantamos, dirigimo-nos até seu quarto e
Abuelito encontrava-se frio e duro feito uma barra de ferro. Como
ele estava fedendo bastante, achamos melhor enterrá-lo logo de
uma vez, pois era bobagem esperar. Ele não ia querer padres para
lhe encomendar a alma, pois sempre fora avesso à religião. Então,
levamos o corpo de Abuelito para perto do rio, onde o enterramos à
sombra de um grande abacateiro...
Nenhum dos familiares demonstrou a menor nota de tristeza
com a notícia. Afinal, Abuelito era mesmo muito velho e ninguém
mais o suportava naquela casa. No fundo, até se alegraram. Ele
reclamava de tudo, fedia a urina e cuspia nos outros, quando falava.
Durante o próprio almoço, a surpresa da morte esfriou no coração
de todos. Eles acreditaram na história contada pelos dois homens,
pois nenhum dos netos ou bisnetos gostava verdadeiramente do
velho e só estavam interessados em seus bens. Por isso, quando o
almoço já se achava no fim, alguém perguntou:
- E as coisas dele?
- Sim, tudo que Abuelito tem no quarto, ficará para quem?
- Ele deve ter muito dinheiro guardado, pois o muquirana
quase não gastava nada...
- E ouro... ele trabalhava com ouro na juventude...
Ao ouvir tais assertivas, um dos bisnetos berrou:
- É de quem pegar primeiro!
E saiu correndo na direção do quarto de Abuelito. No
mesmo instante, todos os outros parentes meteram-se no encalço
do rapaz. Alguns apanharam sacolas e malas para poder acomodar
mais e melhor os pertences do ancião, que agora não tinham mais
dono. Foi uma confusão dos infernos. Imediatamente, passaram a
canibalizar o quarto do velho. Abriram com impaciência a vetusta
arca de carvalho que ficava ao lado da cama, mas ali só havia
roupas gastas e fedorentas. Tiraram tudo que encontraram no
armário: cobertores, sapatos usados, revistas antigas de mulher
nua, penico, gravatas, alguns livros embolorados, cartas amareladas
de namoradas mortas há muito, ferramentas, restos de um queijo,
cintos de couro, fumo de corda, uma caixinha de música, um
espelho, um castiçal de latão, um chapéu, vidros de perfumes e
inúmeras outras quinquilharias. Muitas coisas podiam ser vendidas
na casa de penhor da cidade, principalmente o que se achava em
bom estado de conservação. Talvez as lojas especializadas no
comércio de artigos usados, como roupas e livros, aceitassem
comprar alguns produtos ainda pouco estragados. A pilhagem
rendeu bons proventos para alguns dos familiares. Um dos bisnetos
encontrou uma espingarda e uma faca com cabo de prata, outro
apanhou o violão e um relógio de bolso. Uma das netas mais moças
achou uma meia enrolada com algumas moedas azinhavradas e
cédulas rotas e gordurosas. Não era muito dinheiro, mas sempre
dava para comprar alguma coisa. Numa das gavetas, descobriram
uma pasta de couro com os documentos da fazenda, que foram
entregues aos dois netos mais velhos. Contudo, nada de achar o tão
desejado ouro do Capitão.
Depois do saque, resolveram levar para o terreno na frente
da casa tudo o que não podia mais ser vendido. O velho armário,
infestado de cupim e que pessoa alguma iria querer comprar, foi
arrebentado no machado e as tábuas amontoadas junto dos outros
trastes, como um tapete em petição de miséria e uma cortina toda
rasgada. Logo, ateou-se fogo em tudo aquilo e uma linda fogueira
passou a arder diante dos olhos satisfeitos de toda família. Dona
Violante apareceu segurando a bengala do velho e perguntou se
alguém desejava ficar com ela como recordação. Ninguém se
prontificou e resolveram atirá-la também no fogo. Queriam apagar
definitivamente a lembrança de Abuelito.

***

Com o passar do tempo, começaram a acontecer coisas


estranhas na fazenda. Certa feita, dona Violante acordou no meio
da noite, como estava acostumada, e desceu as escadas do
sobrado no escuro, seus passos iluminados apenas pela tênue
chama de uma vela, a fim de ir beber um pouco de água na cozinha.
Ao passar pela sala, levou um susto tremendo, pois viu a cadeira de
balanço, onde Abuelito costumava se sentar, balançando sozinha.
Aquilo a deixou bastante apavorada, tanto que ela desistiu de beber
água e subiu os degraus o mais rápido que pôde para se enfiar
debaixo dos lençóis. Quando a velha contou aos filhos e netos o que
havia ocorrido, ninguém acreditou e eles imaginaram que a boa
mulher estivesse variando. Três dias depois, puderam comprovar
que algo estranho estava realmente acontecendo no sobrado. Era
noite e todos já se encontravam dormindo, quando os cães
começaram a latir exasperadamente no terreno. Isto fez com que
muitos membros da família despertassem e, mesmo deitados na
cama, puderam ouvir perfeitamente a porta da entrada se abrir e o
ruído seco de passos lentos, acompanhados de um barulho mais
sólido, como se uma bengala estivesse batendo no assoalho de
madeira, subindo as escadas. Mesmo assustados, alguns deles se
levantaram para ver se descobriam o que estava causando aqueles
sons tétricos. Todas as luzes do sobrado foram acesas, mas nada
foi encontrado que pudesse explicar tais ruídos. Na sala, as pessoas
pareciam desconcertadas.
- Vocês também ouviram os passos?
- E a porta se abrindo e fechando, embora ela esteja
trancada!
- E as batidas secas de uma bengala!
Por um instante, dona Violante contemplou pela janela a
noite densa e gelada lá fora. Em seguida, rezingou num tom
lúgubre:
- É Abuelito que voltou dos mortos!
Os olhos de todos arregalaram-se, assombrados. Ninguém
queria acreditar naquelas palavras, mas não havia outra explicação.
Nos dias seguintes, passaram a sentir o cheiro do cigarro de corda
que só Abuelito fumava e, por duas ou três noites seguidas, ouviram
no terreno o som de um violão tocando durante a madrugada as
modas que o velho costumava executar. Uma das bisnetas afirmou
que, enquanto se penteava, viu o vulto de Abuelito no espelho, atrás
de si. Tudo isso era deveras apavorante, mas o que encheu mesmo
de terror a família Bustamante foi o que aconteceu com Mercedes, a
filha do administrador da propriedade.
Eles moravam numa casinhola do outro lado do terreno,
perto da estrebaria. Ali viviam o administrador da propriedade, sua
mulher, Angelita, que era criada na sede da fazenda, onde fazia o
serviço doméstico, e a filha do casal, Mercedes. Nas noites de
sábado, o administrador ia jogar pôquer com os netos mais velhos
no sobrado e só costumava regressar para sua casa altas horas da
madrugada. Por volta da meia-noite, Angelita despertou ouvindo
gritos pavorosos. Ela pulou da cama sobressaltada e constatou que
era a filha quem estava berrando desesperada em seu quarto.
Imediatamente, tomada por uma aflição extrema, dirigiu-se até lá,
mas encontrou a porta trancada. No interior do dormitório, Mercedes
gemia, chorava, urrava de dor, pedindo socorro e clemência. Em
vão, Angelita forçou a maçaneta e tentou arrombar a tranca. Por
diversas vezes, teve a certeza de ouvir vozes masculinas e
imaginou que algum patife, sabendo que o administrador não se
achava em casa, aproveitou para abusar da filha. Sem outra
alternativa, a mulher correu até o sobrado para chamar o marido.
Quando viram Angelita invadir a sala aos prantos, desguedelhada
feito uma morta-viva, todos largaram as cartas e se levantaram no
mesmo instante. A esposa só teve tempo de soluçar:
- Acudam, estão violentando nossa filha!
Ao ouvir aquelas palavras abomináveis, os olhos do
administrador fumaram de cólera. Sem mais demora, os homens
apanharam algumas armas e dispararam até lá o mais rápido que
suas pernas permitiam. Tão logo entraram na casa, puseram-se a
ouvir os gemidos excruciantes de Mercedes. Alucinado, o
administrador deu duas fortes patadas na porta, fazendo com que a
tranca arrebentasse. Entraram afoitos no quarto, o pai berrando com
um punhal na mão e outros dois nos olhos:
- Onde está o miserável? Eu mato!
Prostrada na cama, Mercedes achava-se nua da cintura
para baixo, imersa em sangue. Os lençóis apresentavam-se
vermelhos e empapados, como se ali tivessem acabado de matar
um porco. Um dos homens dirigiu-se à janela e constatou que ela se
encontrava trancada. Por lá, ninguém poderia ter escapado. A
menina continuava a chorar de dor, enquanto que nenhum deles
podia compreender como o invasor tinha evaporado assim
misteriosamente. Apoplético, o administrador urrou:
- Diga quem é o canalha, minha filha, que eu mato!
Mercedes passou as costas de uma das mãos sobre a testa
úmida. Tinha a camisa toda rasgada, deixando parte dos seios à
mostra. Num intervalo entre soluços, disse com voz amordaçada:
- Foi Abuelito!
Os olhos dos presentes saltaram para fora das órbitas,
cravados na menina. Só agora haviam percebido que suas partes
íntimas tinham sido rasgadas pelo monstro e, por isso, a jovem
continuava ganindo de dor. Todos conheciam as histórias que
contavam sobre Abuelito e sua descomunal verga de cavalo.
Imediatamente, apanharam Mercedes, enrolaram-na em um lençol
limpo e a levaram para um hospital na cidade, onde ela foi
costurada.
O administrador não acreditou naquela história macabra,
onde um morto maldito ou seu fantasma aparentemente escapara
das profundezas infernais para vir desfrutar as graças de sua filha.
Ele jurou matar o ser ominoso que desgraçara a menina, a qual
continuava afirmando ter sido Abuelito o autor da violência. Por um
momento, o pai imaginou que talvez a garota estivesse dizendo isso
para esconder a identidade de um suposto amante. Mas como ele
poderia ter desaparecido daquela maneira, se a porta e a janela
estavam trancadas?
Uma semana depois, o administrador quis ver o túmulo de
Abuelito. Chamou os netos mais velhos, que haviam enterrado o
Capitão e se dirigiram até o local, próximo do rio. A terra achava-se
ainda relativamente fofa e o caixão foi desenterrado sem grandes
dificuldades. Quando o trouxeram para cima e o colocaram sobre o
solo, perceberam que continuava lacrado. Imediatamente, um dos
netos forçou a tampa com a ponta de um machado, fazendo com
que os pregos cedessem. Assim que o caixão foi aberto, todos
ficaram mudos de terror, pois ali dentro só havia pedras!
Alguns meses depois, a barriga de Mercedes começou a
crescer. Tão logo a garota teve a certeza de sua gravidez, ela ficou
apavorada e desesperou-se. Sabia que o filho que trazia no ventre
era fruto de algo maligno, pois nunca se deitara com homem algum
em toda sua vida. Confessou à sua mãe que a sua intenção era tirar
a criança, mas Angelita achou melhor que fossem consultar
Concepción Javier, uma vidente cega, que tinha partes no mundo
dos vivos e dos mortos.
Mal entraram na cabana da velha feiticeira, os ratos que
infestavam o lugar fugiram por onde puderam. A bruxa pediu para a
menina cobrir a cabeça com uma coroa de arruda e lhe borrifou
água de flores sobre os cabelos negros, pois disse que sua alma
estava fedendo como cavalo morto. Nem precisaram lhe contar o
motivo da visita. Concepción tomou uma das mãos da menina e
proferiu com voz de morcego, enquanto encarava a jovem com
aquelas massas amareladas que trazia no lugar dos olhos:
- Esta criança é amaldiçoada...
- Vou tirar o quanto antes...
- Não será possível. Há o dedo do demônio nesta
gestação... Você foi escolhida no acordo selado por eles... Seu filho
nascerá com as feições do pai e...
O rosto da bruxa foi tomado por sombras e ela meteu-se
num silêncio profundo. Ao cabo de alguns instantes, dominada pela
angústia que lhe mascava os rins, Angelita indagou:
- O que foi que você viu?
- Há coisas que não se devem dizer...
- Diga! Suportaremos tudo...
A mulher levantou-se e caminhou até a janela, como se
enxergasse a tarde minguando lá fora. Depois, vaticinou:
- Não se pode apagar o que está escrito. O escorpião não
escapa aos olhos da serpente. Sua filha dará à luz a uma criatura
maligna e morrerá no parto...
Ao ouvirem aquilo, as duas abraçaram-se horrorizadas e
começaram a chorar. Assim permaneceram por algum tempo,
lavadas pela dor, até que se levantaram, pagaram a feiticeira e
partiram sem dizer mais nada.
Com o correr das semanas, a barriga de Mercedes foi
ficando cada vez maior, até a menina não poder mais se manter de
pé. Ela sabia que iria parir uma aberração diabólica e estava
decidida a matar a criança logo após o parto. A sua gestação foi
muito diferente das outras mulheres. Não houve um único dia em
que a jovem não experimentou um fogo vigoroso lhe incinerando o
útero, como se trouxesse brasas dentro da barriga. Sentia o
monstrinho lhe cravar os dentes nas vísceras para lhe sugar o
sangue e espernear feito um demônio louco. Esse suplício
prolongou-se por um tempo inconcebível, pois o maldito se recusou
a nascer nos nove meses de praxe. Um ano após aquela noite
fatídica em que Mercedes afirmava ter Abuelito invadido o seu
quarto, a garota ainda não tinha dado à luz. A sua barriga estava
gigantesca, parecendo que iria explodir a qualquer momento. Por
esse tempo, algumas más línguas começaram a dizer que a garota
trazia no ventre uma legião de demônios. Um ano e meio se passou
e nada da criança nascer, para desespero da moça. Mercedes não
conseguia mais se levantar da cama e sentia dores tão agudas, que
chegou mesmo a pensar em se matar. Quando a gestação
completou dois anos, a sua bolsa estourou e uma enxurrada de
sangue inundou o seu quarto. Um médico foi chamado às pressas e,
após breve exame, concluiu que seria impossível retirar a criança
pelas vias naturais, de maneira que resolveu abrir a barriga de
Mercedes, última e desesperada tentativa para salvar a mãe. Todo o
seu esforço, porém, foi em vão. Tão logo ele a sedou e se pôs a
recortar-lhe as carnes do abdome, a menina deu um gemido gutural,
abriu uns olhos de cadáver e, num esforço supremo, balbuciou:
- Mate-a!
Em seguida, seu pescoço pendeu para um dos lados e ela
parou de respirar. Vendo que havia perdido a mãe, o médico
redobrou seus esforços para tentar salvar a criança ou as crianças,
que talvez estivessem entaladas naquela carcaça defunta. Não
demorou muito para trazê-la à luz. Porém, quando deitou os olhos
sobre a criatura que acabara de nascer, não pôde conter um grito de
horror e bradou apavorado:
- Misericórdia!
Ele abriu a porta e deixou o administrador e sua esposa
entrar. Não teve necessidade de dizer palavra alguma, pois os dois
já haviam adivinhado a tragédia e tinham certeza de que a filha não
sobreviveria. Angelita caminhou com passos trôpegos até a cama
coalhada de sangue, onde Mercedes parecia cochilar. Ela apanhou-
lhe a mão silenciosa e começou a chorar baixinho, como se tivesse
envergonhada pelas próprias lágrimas e não quisesse exibir a sua
enorme dor aos dois homens. O administrador manteve-se firme
feito uma figueira e só pensava em se vingar do maldito que
desgraçara sua família. Após algum tempo em silêncio, Angelita
enxugou os olhos e lembrou-se de perguntar:
- E a criança?
- É um menino! Respondeu o médico.
Ele havia enxugado o recém-nascido com uma toalha e, só
então, mostrou-o aos avós, que contemplaram o neto horrorizados.
O menino nascera grande, como se já tivesse três anos de idade.
Tinha a aparência envelhecida, a pele enrugada, os cabelos
brancos e era a cara de Abuelito. Trazia na boca dentes
apodrecidos e na base da coluna um prolongamento que parecia um
toco de rabo. A princípio, o administrador e sua esposa acharam
que estavam sendo punidos pelos céus e pensaram em dar cabo do
monstrengo naquela mesma noite. Contudo, quando o marido
apanhou a faca para lhe cortar o pescoço, Angelita impediu-lhe de
cometer tamanha barbaridade. Afinal, se aquele menino tinha
nascido daquela maneira, era porque esta deveria ser a vontade de
Deus. E contrariar os desígnios divinos correspondia encomendar a
alma ao diabo. No fundo, ele era inocente, não tinha culpa de ser
diferente das outras crianças. Pensando nisso tudo, resolveram criá-
lo como a um próprio filho, mas iriam se arrepender terrivelmente
desta decisão.
Com apenas algumas semanas, o menino começou a andar
e falar, para assombro de toda gente. Carlito, como fora batizado, foi
crescendo de uma maneira mais veloz do que tencionava a
natureza. Em pouco tempo, parecia um menino de oito anos e vivia
brincando com os garotos dessa idade que moravam na fazenda,
filhos dos empregados. Tinha costumes monstruosos. Costumava ir
escondido ao galinheiro, onde corria atrás das galinhas até apanhar
uma. Quando conseguia, arrancava-lhe a cabeça com uma dentada
e lhe chupava todo o sangue. Demonstrava vivo prazer em ser mau.
Certa feita, rachara a cabeça de um amigo com um martelo, só
porque este se recusou a lhe dar uma laranja, que colhera do pé. E
mais de uma vez armou arapucas a fim de caçar passarinho, que
levava para um cão da fazenda devorar vivo numa bocada só.
Um dia, Carlito apanhou um revólver que o administrador
guardava na gaveta de um pequeno móvel ao lado da cama e foi
ameaçar os meninos da propriedade. A mãe de um dos garotos viu
tudo e, desesperada, resolveu se queixar com Angelita.
Imediatamente, ela comunicou o fato ao marido, que se dirigiu até
seu quarto e não encontrou a referida arma no local onde a
costumava guardar. Isto o encheu de cólera contra seu neto, que já
estava passando dos limites. Quando Carlito regressou para casa, o
administrador chamou-o a um canto e lhe disse:
- Onde está o revólver que você pegou no meu quarto?
- Não peguei nada!
- Devolva ou vai apanhar...
O menino colocou a mão atrás das costas e retirou a arma
da cintura, onde a tinha escondido, debaixo da camiseta. Não
pensou duas vezes. Fez mira no peito do avô e apertou o gatilho.
Porém, não havia balas no tambor. O homem inflamou-se de raiva
e, apanhando Carlito pelos braços, deu-lhe boas palmadas nas
nádegas. Angelita testemunhou tudo calada e não fez nada para
defender o neto. Depois, o administrador proferiu:
- Preciso ir à cidade. Não deixe o menino sair mais de casa
por hoje.
Carlito trazia os olhos vermelhos, mas não chorou.
Enquanto seu avô subia na montaria, o menino disse:
- Cavalinho, cavalinho, faz o teu!
E riu sarcasticamente, tanto que Angelita sentiu um arrepio
nas vértebras. Naquele momento, ninguém compreendeu o que ele
queria dizer com isso.
A novidade chegou pouco depois do anoitecer, a tragédia
anunciada pelas patas dos três ou quatro cavalos que rodeavam a
casa. O coração de Angelita disparou no peito, adivinhando notícia
ruim. Homens de cenho fechado entraram na residência e contaram
a desgraça com chapéus nas mãos. O cavalo do administrador
empinara abruptamente, derrubando-o da sela. Contudo, um dos
seus pés ficou preso no arreio e o homem foi sendo arrastado e
pisoteado pelo animal, que desembestara enlouquecido sem
qualquer motivo aparente. Quando, enfim, ele parou, o corpo do
administrador havia se transformado num presunto.
Angelita chorou suas muitas lágrimas de esposa
inconsolável e passou a se vestir apenas de preto. Ela não tinha
mais condições de criar sozinha seu neto e foi pedir para os patrões
se eles não podiam ficar com o garoto por uns tempos. Como
ninguém mais contestava que o menino pudesse mesmo ser filho do
Capitão, em virtude da semelhança de ambos, resolveram acatar o
pedido da criada e alojaram Carlito no quarto que fora de Abuelito e
estava vazio.
Quem não gostou nada disso foi dona Violante, que já não
suportava o velho antes, quanto mais agora, pois tinha a certeza de
que ele havia reencarnado no corpo daquele menino diabólico. Os
dois tinham a mesma maneira de olhar, a mesma maneira de falar e,
inclusive, a mesma maneira de caminhar.
Um dia, ela apanhou Carlito olhando, através do buraco da
fechadura, as meninas tomando banho. A velha repreendeu-o
severamente, pegou o garoto pelo braço e lhe deu um tremendo
beliscão, que ficou preto no mesmo instante. Ele não derramou uma
lágrima sequer, mas seus olhos se tornaram vermelhos como o
diabo. À noite, enquanto jantavam, Carlito fitou a travessa de peixes
fritos e disse:
- Peixinho, peixinho, faz o teu!
Em seguida, riu prazerosamente. Ninguém ali na mesa
entendeu o que ele quis dizer com aquelas palavras, apenas
Angelita, que servia os comensais, sentiu um arrepio lúgubre lhe
escorrendo da nuca ao cóccix. De repente, os olhos de dona
Violante saltaram para fora das órbitas, as veias roxas arrebentando
de tão inchadas. Ela começou a emitir uns sons guturais pavorosos
e a bater no peito aflita, tentando desesperadamente nutrir seus
pulmões com ar fresco.
- O que foi, avozinha?
- A senhora está sentindo alguma coisa?
- Quer um copo d´água?
Havia engasgado com uma espinha de peixe. Quando
perceberam o que estava acontecendo, já era tarde demais. A
velhota morreu asfixiada, sem que nenhum deles pudesse ter feito
nada para lhe salvar a vida. Dona Violante parou de estrebuchar, a
cabeça pendida de lado, tendo a boca aberta e a língua escorrendo
para fora.
- Mãe, mãe, fale alguma coisa?
Como a mulher não respondeu, um dos filhos levantou-se
afoito para acudi-la. Ele tomou-lhe o pulso por um instante,
constatou que a mãe não estava mais respirando e bradou com voz
mórbida:
- Meu Deus, ela está morta!
Algumas das meninas começaram a chorar, enquanto os
homens não sabiam o que fazer direito. Subitamente, Angelita
apanhou uma faca na mesa e gritou:
- A culpa é desse menino, que é filho do demônio! Ele matou
minha filha e também meu marido. Agora, matou dona Violante e vai
matar a todos nós!
Alucinada, a mulher partiu com a faca em punho para cima
de Carlito, que permaneceu sentado no lugar onde se achava e não
fez qualquer tentativa para fugir. Ela teria cravado a lâmina afiada
nas costas do garoto, se não tivesse sido impedida por alguns dos
rapazes. Enquanto seguravam a empregada, que esperneava feito
uma égua selvagem, tentando escapar do abraço que lhe davam, o
menino começou a gargalhar de maneira sombria, até que proferiu:
- Cachorrinho, cachorrinho, faz o teu!
De repente, um silêncio angustiante inundou a sala e só era
possível ouvir a risada negra de Carlito. Todos se lembravam que,
ainda há pouco, ele dissera palavras semelhantes e, coincidência ou
não, dona Violante perdera a vida, engasgada com uma espinha de
peixe! Por alguns segundos, ninguém se mexeu, dominados por
uma angústia suprema. Os presentes achavam-se aterrorizados,
imaginando o que poderia acontecer. E o menino rindo, rindo cada
vez mais alto. Subitamente, a porta da sala abriu-se, como se
tivesse sido arrebentada por um aríete. Um enorme cachorro
enlouquecido, que normalmente era pacato e vivia ali na
propriedade, adentrou o recinto e, espumando de raiva, pulou sobre
Angelita, que foi ao chão. O animal cravou a navalha dos dentes na
jugular da empregada, rasgando-lhe o pescoço, ante o olhar
aterrorizado e impotente de todos. O sangue esguichou por toda
parte, formando grandes poças no chão. O pastor alemão só largou
sua vítima, quando um dos homens apanhou um machado e lhe
rachou o crânio ao meio. Mas a mulher já se encontrava morta.
Quando tomaram ciência do que havia acontecido, as
pessoas começaram a gritar:
- Menino amaldiçoado, você matou Angelita e os outros!
- É filho de Satanás!
- É a reencarnação de Abuelito, que voltou do inferno com
poderes diabólicos!
Então, agarraram o maldito e lhe taparam a boca, para que
ele não pudesse mais proferir nenhuma de suas pragas mortais. O
demônio começou a espernear e se contorcer e morder, tentando
escapar das mãos que lhe agarravam, mas não era páreo para a
força de três ou quatro homens que o prendiam. Arrastam-no para
fora da casa, dispostos a acabar com aquela maldição de uma vez
por todas. Levaram-no até a base de um tronco onde cortavam
lenha, seguraram-lhe a cabeça sobre ele e um dos homens deu
uma violenta machadada no seu pescoço. A cabeça rolou alguns
metros no chão de terra, enquanto o sangue esguichava, preto
como óleo queimado. Por alguns instantes, as pessoas apenas
contemplavam-se em silêncio, como se tentassem compreender até
que ponto haviam chegado. Nisso, a cabeça abriu os olhos, uns
olhos onde se via o semblante fúnebre do demônio, deixando todos
mudos de terror. Como se ainda pertencesse ao mundo dos vivos,
aquele criatura maldita proferiu:
- Abelhinha, abelhinha, faz o teu!
E riu sarcasticamente.
Todos ouviram tais palavras petrificados por um horror
imensurável. Um silêncio excruciante envolveu todas as almas, até
que alguém disse, apontando o céu:
- Vejam!
Lá no horizonte, por trás dos estábulos, uma nuvem negra e
gigantesca surgiu e foi crescendo, crescendo cada vez mais,
zumbindo de maneira medonha e deitando uma sombra
assustadora e macabra por onde passava.
José Antonio Martino é formado em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP) e possui diversos prêmios
literários por todo o Brasil. É autor dos seguintes livros inéditos:
Noites Mortas (Romance), Memorial do Bruxo - Conhecendo
Machado de Assis (Biografia), Manual do Poeta Aprendiz (Teoria
Poética), 1789 – A Inconfidência Mineira e a Vida Cotidiana nas
Minas do Século XVIII (História), Tempos Marginais (Poesia), A
Pedra (Romance), A Horripilante Medicina da Idade Média
(História). Em 2003, publicou seu primeiro romance, Histórias do
Fim do Mundo e, em 2007, teve seu livro A Noite Negra editado pela
prefeitura de Manaus, após ter sido o vencedor do Prêmio Manaus
de Literatura. Em 2012, teve seu livro As Muito Fabulosas Aventuras
do Barriga publicado pela prefeitura de Atibaia/SP, como prêmio
deste certame literário. Em 2014, publicou o livro Insânia – O
Romance da Nossa Geração (Romance). Publicou ainda o livro
1348 – A Peste Negra (História) em 2018 e Contos Maus (Contos)
em 2019. Com o pseudônimo de Tim Marvim, tem dois livros
editados: 666 – Caçadores de Demônios (2009) e Contos Macabros
à Luz de Velas (2014).
Publicado por Excalibur Editora 2019

Copyright © 2019 by José Antonio Martino

O autor permite a reprodução parcial deste livro para


fins de divulgação, em meios físicos ou digitais,
desde que sejam dados os créditos da autoria.

Todos os direitos reservados


e protegidos pela Lei 9.610 de 19-02-98.

Obra registrada na Fundação Biblioteca Nacional.

O LIVRO DOS MALDITOS


Autor: José Antonio Martino

Edição e capa: Tim Marvim

Ilustrações: Pixabay
1ª Edição
Este livro imprimiu-se em novembro de 2019
Atibaia / SP
[1]
A hora é incerta, mas a morte é certa.

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