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Prefácio

Extraordinário como o gênero de terror consegue conser-


var certa pureza que muito facilmente se perde em qualquer outra
prosa. Não é por outro motivo que o medo é uma sensação tão
difícil de se falsificar ou mesmo de se esconder, os olhos se esta-
lam, o peito ferve, a sensação de degelo na pele, desce um cala-
frio pela espinha arrepiando o corpo todo, naquele desconfortável
estado de alerta; a formidável adrenalina de uma fuga diante do
perigo. Ninguém nunca morre por preguiça de fugir, isso os fil-
mes de terror nos mostram com muitíssima verosimilhança. É cla-
ro que os horrores trazidos por estas narrativas, até mesmo em
imagens, no caso dos filmes, são reflexos precisos das coisas que
naturalmente ofendem o nosso senso de segurança. O feio, o ma-
ligno, o corrompido em pura oposição a beleza, a bondade…
Muito difícil subverter qualquer coisa neste sentido, pelo simples
motivo que achamos repugnantes aquilo que aprendemos a temer,
as coisas que são riscos claros e simples, como um animal selva-
gem, carnívoro e violento. Mas há também uma outra classe de
medo, um pouco mais misteriosa e sofisticada, precisamente o
medo do desconhecido. Daí donde vem toda nossa apreensão com
o sobrenatural e todos os fantasmas mentais que sempre assom-
bram a imaginação de cada um.

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O terror sempre cumpriu seu papel educativo como um li-
mitante de estupidez. O expectador de um filme nunca cansa de
gritar as soluções que quase sempre são a cautela mais básica
“não vá por ai”, “não entre nesse lugar”, “não mexa com isso”.
For fim o grande elemento destas histórias é a indignação de
quem assiste ao ver a personagem fazer tudo aquilo que transbor-
da imprudência e se dar mal no final, ou mesmo precisar discer-
nir seus valores, coragem e imbecilidade. Da mesma maneira as
lendas contadas para as crianças, bicho-papão e afins, são perfei-
tas desenvolvedoras da prudência, uma virtude que naturalmente é
escassa nas crianças.

Principalmente nas comunidades rurais, há muito tempo


existe a tradição de contar histórias de terror para assustar as cri-
anças. Não posso dizer que esta prática tenha conscientemente o
propósito de moldar a educação dos pirralhos que viviam nas co-
lônias das fazendas do interior de São Paulo. É claro que o medo
do mato a noite, pode, com toda certeza, contribuir para diminuir
a possibilidade de uma criança descuidada levar a picada mortal
de uma cobra desapercebida na grama, no escuro… O medo sem-
pre foi questão de sobrevivência. Mas a verdade é que sempre se
contou histórias porque nos intriga fazer, porque é essencialmente
humano. E sempre se contou histórias de terror porque nos intriga
mais ainda.

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O imaginário faz por conta trazer todos os elementos que
já lhe são mais temíveis, seus medos mais íntimos para poder cri-
ar aquela figura que é antagonista da sua coragem. Nem preciso
lhe descrever muito para criar um monstro qualquer, nossas cabe-
ças têm preferência em fazer isso por si só. Quantas vezes não se
critica algum filme pela qualidade da figura do monstro, “ah, não
estava tão assustador”, geralmente estes filmes cometem o grande
erro de expor demais aquilo que deveria ser oculto, afinal é esta a
natureza do terror. Para que algo seja capaz de amedrontar incri-
velmente um sujeito, precisa ter seu alto grau de mistério, precisa
ser inestimavelmente perigoso e desconhecidamente horrendo.
Nunca se engane: O medo é uma paixão, é um ideal, é um con-
junto de inúmeras coisas improváveis que não queremos ver.

Certamente se você levantar para beber um copo de água


no meio madrugada de uma noite qualquer, vai sentir aquele terrí-
vel receio de encontrar algo indesejado no escuro. Quem nunca
seguiu o protocolo de fazer seu caminho pela casa acendendo to-
das as luzes dos cômodos? Diversos golpes nos interruptores por
onde passar, evitando também o silêncio. Este pequeno percurso
das cobertas até a cozinha já fez muitos rostos disformes aparece-
rem na imaginação de todos nós. Estou bem certo disso, é uma
das experiências humanas mais bem compartilhadas que existem,

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tal como o pulo repentino no abrigo dos lençóis depois de apagar
a luz do quarto quando é cumprida a missão.

Talvez se algum dia, por desventura, encontrarmos um


horrendo fantasma ao dobrar o corredor em alguns destes lapsos
de sede pela madrugada, e há quem diga que já viu, talvez esta
visão nem seja tão aterradora, talvez nos decepcione por estar
muito abaixo daquelas expectativas criadas. A menos que se en-
caixe perfeitamente com aquilo que idealizamos como apavorante,
coisa que a coitada da assombração não teria como saber. Pobre e
ingênuo fantasma! A imaginação constantemente supera a realida-
de em muitos sentidos, atingindo até o mais elevado grau do im-
possível. Quem nunca se surpreendeu com a imaginação humana?
Não seria, de modo algum, diferente com o terror. Esta imagem
do fantasma ideal é a mais medonha para si, a mais absurda e
terrível, afinal assim quer nossa imaginação, que nos assombra
cada vez que nos deixamos levar, como uma criança inocente se-
gurada pela mão por esta exímia mestra do terror.

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Aquela História que o Seu Orlando me Contou

Q uando criança eu passava muito tempo num lugar isolado,

bastante longe da cidade do interior de São Paulo onde morava.


Mais de uma hora entre pegar estrada e se enveredar pelos cami-
nhos de terra, subir e descer morro por dentro da mata virgem
rumo a margem do rio que cortava as propriedades da fazenda
centenária mais antiga da região. Era um ranchinho na beira do
rio Pardo, de construção bem simples e acabamento econômico,
um puxadinho para guardar lenha e uma enorme varanda aberta
antes de adentrar para a saleta rodeada por um banco de alvena-
ria, assento largo onde estenderam umas espumas cobertas de
courvin. Havia uma televisão velha e um rádio que sempre esteve
empoeirado, sistema de válvulas antigo, com som grave, reverbe-
rava vozes e músicas em pouca fidelidade de sinal, também dis-
torcido pelo lugar envalado no relevo de morros que cercava o
ranchinho. Depois da sala ainda tinha um balcão que escondia um
fogãozinho e pia, uma espécia de cozinha breve, e deste primeiro
cômodo abria-se uma porta para um longo corredor, extenso por
todo o comprimento da grande varanda lá fora. Eram quatro quar-
tos e um banheiro bem pequeno no final. Os quartos eram todos
muito parecidos, bem amplos. Além dos pouquíssimos móveis que
só estavam ali porque foram rejeitados como velharias em outras
casas, cada quarto dispunha de armários feitos na parede, dois be-
liches e uma cama de casal, tudo em alvenaria, razão pela qual

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em noites frias era tão desconfortável dormir com o colchão fino
perdendo calor para o concreto e os tijolos.
Tantas opções de camas para se deitar serviram para abri-
gar muitos convidados no lugar que há bastante tempo foi uma
casa de campo para lazer de uma família com muitos primos,
mas que já não era usada com tanta frequência. Há anos não se
reuniam, mas para que a propriedade não ficasse abandonada um
certo senhor, que era caseiro sazonal de lá, as vezes ficava alguns
dias para cuidar de uma limpeza básica, fazer alguns reparos e ti-
rar o mato pelos arredores. Chamava-se Seu Orlando, e era pra
acompanhar ele e prestar alguma ajuda que meu avô também ia e
me levava consigo. Eu, criança enérgica, adorava brincar nos arre-
dores da casa e no gramado que se estendia até a beira do rio,
poucos metros depois da escadinha da varanda. Pescava, pegava
frutas e me aventurava pelas trilhas estreitas na floresta fechada,
descobrindo curioso a natureza e os lugarejos que haviam por lá.
Era mesmo um belo recanto pelo dia, mas a noite as sobras e as
formas contorcidas das árvores, o mato fechado e a escuridão to-
mavam um sentido diferente, me amedrontavam muito e a imagi-
nação fazia um papel de vilã para uma criança assustada que não
quer ver no escuro ou nas sombras da noite, algum rosto, alguma
forma semi-humana ou monstruosa, secretamente espionando das
profundezas do matagal, da floresta de eucaliptos, das águas ne-
gras do rio que percorria seu curso… Quão mais eu tentava me
desvencilhar destas ideias, mais elas me assombravam. A noite
naquele lugar tão isolado era muito sinistra e assim que se torna-
va completo breu, especialmente quando tinha lua nova, eu tenta-

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va não olhar para as paisagens que se formavam ao redor da casa,
mas minha imaginação colocava possibilidades terríveis em com-
plemento a estas paisagens, olhos ameaçadores, corpos secos, fi-
guras distorcidas, rostos inexpressivos ou maléficos e criaturas hu-
manoides rastejantes se animalizando pelo mato afora com movi-
mentos desconjuntados e violentamente rápidos como o deslocar
repentino dos aracnídeos que, de completamente imóveis, passam
a formidavelmente ágeis… Nunca gostei das aranhas também,
mesmo que não fossem tão assustadoras comparado ao terror do
sobrenatural. Embora estes pequenos bichos e suas teias empeste-
assem os quartos que a gente dormia, as aranhinhas de parede
apesar de inofensivas me causavam muita repulsa, por isso apren-
di a dormir com a cabeça, o rosto e o restante do corpo inteira-
mente envoltos nos cobertores, hábito que conservo até hoje e
que, naquele lugar, era também efetivo principalmente contra os
pernilongos. Este sim era de fato um problema prático muito mai-
or, pois as frestas das janelas de madeira não tinham nenhuma
vedação contra os insetos que circulavam livremente.
Chegando a noite eu fechava as janelas, eram velhas persi-
anas de cedrinho, com dobradiças em três abas que não se encai-
xavam muito bem, batiam estrondosamente um som cavo quando
o vento açoitava e rangiam com qualquer rajada mais fraca, mas
eram minhas mais queridas amigas, como muralhas que me sepa-
ravam daquele mundo infestado de monstros e criaturas da noite.
Estas janelas, mesmo com vãos de aletas quebradas e ressecadas
sem a proteção do verniz, me faziam sentir seguro quando as fe-

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chava e me via cercado apenas do ambiente ambarizado e famili-
ar do quarto com sua luz fraquinha das lâmpadas de filamento.
Depois de cair a noite e de jantar alguma comida feita ra-
pidamente, ficávamos conversando na sala, ouvindo o radinho e
também as histórias que o Seu Orlando contava. Ele era um velho
nascido e criado naqueles arredores, quando menino também ex-
plorava a fazenda que desde sua época fora decaindo aos poucos.
Não existia mais as casas de colônia onde ele morou e mesmo a
sede estava fechada, os donos não moravam ali e as terras servi-
am agora para uma agricultura muito diferente do que como era
quando aquele senhor foi moço. A fazenda só produzia cana-de-
açúcar para combustível, só em lugar ou outro tinha pastos pro
gado, havia apenas enormes máquinas e imensos canaviais que
passávamos pelo caminho antes de chegar ao pedaço de mata vir-
gem onde ficava o ranchinho. Seu Orlando continuou como um
funcionário da fazenda durante toda a vida, até a aposentadoria.
Mesmo que tivesse morado na cidade quando sua família se mu-
dou, da época de infância e juventude lembrava muito saudoso de
passagens vividas naqueles arredores.
O velho tinha um jeito lúdico de contar histórias, falava
dos costumes antigos, das festas, de aventuras em caçadas por
aqueles matos e, as vezes, até das lendas que a gente da colônia
contava. Coisas como sacis e mula sem cabeça, acontecimentos
formidáveis e inexplicados nas florestas, seres inomináveis que já
não me lembro… Era um repertório de fantasia bastante interes-
sante e também muito divertido de se ouvir falar sobre. As horas
passavam sem que eu notasse, enquanto seu Orlando contava suas

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lembranças e relatos de coisas que tinha avistado no mato ou nos
campos de café. Eu, criança imaginativa, ia recriando tudo com
incríveis imagens na minha cabeça, idealizando comportamentos
heroicos e visões grandiosas no que provavelmente eram apenas
breves acontecimentos e vistas de relance. Quanto a maior parte
das lendas, eram inofensivas para o meu terror infantil, mas havi-
am também aquelas que me sensibilizavam e me faziam ter medo
na hora de dormir. Os antigos tinham um tipo muito estranho de
superstição e medo do sobrenatural. Quando à noite, era costume
se fecharem em casa e diziam para as crianças não ficarem olhan-
do para o mato afora pois isso atrairia “coisa ruim”. Mesmo sem
essa advertência eu tinha intuído fazer igual, não precisei de qual-
quer conselho mas também não contei ao seu Orlando o meu
medo das coisas que minha imaginação criava quando escurecia.
As vezes até perguntava curioso e imprudente sobre o que seriam
estas tais “coisas ruins”, ele fazia ares de suspense e generalizava
de algum modo, sem nunca revelar ao certo o que tinha em men-
te quando falava destas tais coisas, suspeitava que eram as mes-
mas que eu também tinha.
Seriam aquelas figuras horríveis algo mais que coisa da
minha cabeça? Eram comum para todo mundo que vivia perto do
mato? Ademais, aquilo que eu tomava por imaginação podia ser
verdade? Estes eram questionamentos que eu tinha receio de des-
cobrir, mas ainda sim investigava com curiosidade infantil, mesmo
apavorado, enchendo o velho de perguntas. “Mas o que é coisa
ruim, seu Orlando?”, “Ah menino, nem queira saber”.

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Certa noite, depois da janta bem farta, enquanto meu avô
e seu Orlando lavavam as tigelas de alumínio e os pratos de es-
malte, notei na conversa que contavam uma estranheza que acon-
teceu numa caçada. Ouvi eles dizerem que tinha um mato num-
sei-onde que se ouvia uma música lamentosa tocar entre o ruido
do vento na copa das árvores. Lembro-me que estava mexendo em
porcarias e objetos velhos na prateleira do corredor, me interessei
pela história e fiquei beirando a porta, escutando quase clandesti-
namente o relato todo. Eles concordavam entre si “É verdade, eu
já fui lá e ouvi também”, assumiam regras como “É sempre que
dá meia-noite, se você tá encima do morro esperando o bicho na
ceva”. Mas a explicação não se resolvia e eu queria saber o que
era a tal música lamentosa e o porquê. Perguntei me intrometendo
e não me lembro a resposta mas tenho hoje certeza que foi o jei-
to caipira de dizer o mesmo que disse Shakespeare com seu “Há
mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor nossa vã filo-
sofia, Horácio”, alguma galhofa para dizer “sabe-se lá, seu Zé!”.
Sentamos na sala conversando sobre assombração, mais al-
gumas histórias interessantes e medonhas até voltar ao velho as-
sunto, a tal “coisa ruim” que tem no mato. Questionei com toda
minha curiosidade e impaciência, queria de qualquer modo saber
o que era. Seu Orlando enrolou mais um pouco, rodeou o assunto
sem esclarecer muita coisa. Parecia encabulado, talvez um pouco
receoso mas entrou em uma nova história. Tirou o canivete para
picar seu fumo e começou esta que vou lhes contar. Ele falava de
um jeito engraçado, aquele relato tradicionalmente caipira…

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Sabe que… aqui na fazenda, na época que tinha casas da
colônia, passava a linha de trem que ia pra Ribeirão Preto, a esta-
çãozinha ainda tá lá, virou uma tapera mas ainda dá pra ver
quando passa perto do matadouro. E naquele tempo se usava mui-
to comprar as coisas que a gente precisava dos caixeiros viajantes.
Passava algum sujeito vendendo umas tralhas: Panela, pano, cha-
péu, casaco, lamparina, relógio, pulseira, anel… tinha tudo isso.
Quase todo mês passava algum caixeiro mostrando as coisas e
perguntando se alguém queria comprar, era uma profissão de anti-
gamente que foi se acabando com o tempo, hoje em dia os me-
ninos como você nem imaginam que era assim. É até esquisito
pensar na turma que passava batendo nas portas e oferecendo as
coisas, a gente comprava porque a mulher precisava.
Então que eu tinha um conhecido, era um velho, pai do
compadre do meu pai, que trabalhava de caixeiro viajante. Essa
história aconteceu num tempo mais antigo ainda. O trem já passa-
va ali mesmo, era só ele ir até Ribeirão Preto, comprar algumas
bugigangas que faltavam na roça e sair vendendo nas vilas e por
ai afora.
Ficou muitos anos trabalhando nisso, a vida dele era viajar
com duas, até três, malas grandes lotadas de tudo quanto é coisa.
Enquanto não aliviava bem o peso ele não voltava pra fazenda.
Nessas andanças aconteceu muita coisa… ele conheceu um monte
de lugar diferente e viu muita coisa estranha também.
Ele contava uma história, se lembro bem era alguma coisa
assim:

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Dizia que certa vez foi até uma cidade pra fazer a tempo-
rada, carregou dois malões e pegou uma linha de trem que ele
nunca tinha passado. Não me lembro que cidade que era… Se
não me engano era… Ah, deixa pra lá, eu não lembro mesmo.
Mas contava assim, que pelo caminho percebeu que o trem
passou numa vila bem pequenininha, tinha só a estaçãozinha des-
sas de roça, igual tinha aqui, uma capelinha, meia dúzia de casi-
nhas de telhado baixo e o cemitério, só. Ficou olhando pela jane-
la, o trem andando devagarinho naquele lugar esquisito, parecia
um tanto vazio, viu só um homem com um cachorro andando
pela rua e o homem tinha cara de desconfiado. Diz que dava a
sensação de que qualquer coisa não era certa ali, um lugar assim
meio de arrepiar, meio escondido, isolado, com uma gente estra-
nha. E depois dessa vila tinha uma floresta grande com um matão
fechado que perdia de vista. Daquele tipo de mato que precisa de
um facão que corta muito bem pra abrir picada. Mato assim que
é bom pegar uns carrapatos e rasgar a calça nos espinhos.
Mas ele estava só de passagem e a cidade, onde iria, não
era longe dali. Cidade não muito grande também, lugar simples
com gente do interior. Chegou lá e não perdeu tempo, começou a
passar de porta em porta. Estava vendendo muito bem, as malas
ficaram mais leves e achou que seria bom ficar até o dia seguinte
pra tentar vender tudo o que estava carregando. Achou que seria
uma boa ideia, compensava pagar a pernoite de algum quarto em
uma pensão de viajante que fosse baratinha.
Só que quando foi pela caída da tarde, começou a procurar
algum hotelzinho para ficar e no único lugar que tinha hospeda-

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gem na cidade estavam sem nenhum quarto vazio. Procurou mais
um pouco, saiu perguntando de um lugar pra dormir. Então al-
guém falou pra ele que lá na vila tinha uma estalagem e que por
certo conseguiria uma cama, ninguém nunca ficava lá, então, com
certeza, teria vaga.
Nessa hora ficou meio contrariado, tinha visto a tal vila
antes e não gostou muito do jeito do lugar. Repensou se ficaria
mesmo por ali mas parecia mesmo que tinha boas vendas para fa-
zer no dia seguinte, uma senhora pediu pra ele passar que preci-
sava de umas panelas, um outro senhor ficou tentado a comprar
um relógio… Deveria ser uma boa ideia insistir um pouco mais
em vender suas coisas por lá.
Como tinha que tomar uma decisão e o último trem ia
passar logo, ele resolveu embarcar de volta e procurar a tal estala-
gem que falaram.
Demorava entre meia hora e quarenta minutos naquela toa-
da lenta que andava o trem a vapor. Quando desceu na estaçãozi-
nha vazia, já era de noite, carregando umas malas grandes e meio
desajeitadas, mas que já não estavam tão pesadas. Pegou todas as
coisas e organizou o que tinha sobrado em uma só com a inten-
ção de ficar mais fácil para carregar. Olhou no papel pregado no
mural da estação que o primeiro trem saía as cinco da manhã, fir-
mou que era esse que ele tinha que embarcar no dia seguinte,
quanto mais cedo voltasse para a cidade e terminasse de vender
as coisas, mais cedo poderia pegar a linha de volta pra casa e
com o bolso cheio. Então era só achar o lugar para dormir cedo.

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Quando meteu o pé fora da estação sentiu um calafrio em
ver que tudo estava tão escuro, a vila parecia mais esquisita ainda
e teve a sensação que não tinha ninguém por lá. Bobagem, afinal
tinha um monte de casinhas.
Foi atrás de descobrir onde era a tal estalagem. Supôs que
qualquer um ali deveria saber, afinal a vila era tão pequena que
todo mundo provavelmente se conhecia. Então começou batendo
na porta de alguma residência qualquer para perguntar. Escolheu
a primeira, mais próxima da única luz que havia na rua, que era
justamente a da plataforma da estaçãozinha de trem de onde veio.
Bateu, chamou “Ô de casa!”, ninguém respondeu. Ainda era cedo
para estarem dormindo, pensou que tinha dado má sorte de bater
em uma casa vazia. Então foi bater na casa vizinha. Havia uma
luz lá dentro, dava para ver por baixo da porta ela escapando, e
pelas frestas das tábuas também, luz de lampião. Ninguém aten-
dia, bateu duas ou três vezes, viu uma sombra como se alguém ti-
vesse vindo perto da porta, ouviu passos, e esperou que lhe aten-
dessem, mas ninguém abriu, chamou de novo e a sombra sumiu,
alguém de dentro se afastou novamente sem responder nada.
Achou tudo muito estranho nessa hora, a cidadezinha pare-
ceu ainda mais sinistra. Era lua nova, o céu estava escuro como
pedra obsidiana. Viu a luz na estação brilhar de longe e ele ali
afastado no meio de todo aquele negrume, a quietude parecia ain-
da mais sombria e foi ficando com medo sem saber de quê. Bateu
um vento gelado que chacoalhou as folhas nas árvores e de repen-
te ele encarou aquele mato fechado, um monte de cipós entremea-
dos no escuro, umas árvores retorcidas e o capim alto, achou que

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não deveria manter por muito tempo os olhos ali. Dava para ouvir
o som dos grilos e os sapos coaxarem por toda a parte, misturado
com o ruido agudo do vento penteando o matagal. Por toda a vol-
ta da cidade haviam árvores altas, com galhos muito longos, divi-
dindo-se em inúmeras forquilhas e cotovelos como se fossem bra-
ços magrelos, e dedos nodosos, balançavam de um jeito a parecer
que agarrariam ele por cima.
Quis voltar, mas o trem já tinha partido, não teria outra
partida até o dia seguinte. Ademais, a estação iluminada tinha
uma imagem macabra que ele via dali de onde estava e teve um
pensamento terrível: Que ele via bem a plataforma dali mas de lá
não poderia ver alguém ou alguma coisa que estivesse naquele es-
curo onde estava agora ou em qualquer outro lugar daquela imen-
sidão de detalhes horrendos na noite sombria. Esse pensamento
foi desesperador, desceu um estalo elétrico repentino na espinha,
como se lhe derramassem água gelada nas costas e imaginou sua
própria figura sentada inocentemente na luz da estação enquanto
alguma criatura das trevas observava maliciosamente escondida
nas sombras, completamente oculta dos seus olhos e ofuscada da
luzinha elétrica que ficava acima do mural onde leu os horários
do trem.
E agora? Nem voltar para lá nem ficar ali onde estava. O
que poderia fazer? Queria mesmo era ter tomado o trem de volta
para a estação da fazenda onde morava. Na hora que era ainda es-
taria em viagem, mas dentro de um vagão seguro ao menos. Pre-
cisou insistir na única ideia, bateu na próxima porta.

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Levou um susto quando uma voz respondeu de dentro. Ele
achou que alguém abriria para ele, mas a voz gave de um homem
somente perguntou o que ele queria. Conversou sem saber qual
era o rosto da pessoa que lhe falava, deveria ser alguém muito
desconfiado. O caixeiro explicou que veio procurando uma estala-
gem que tinham lhe informado ter naquela vila, queria um lugar
para dormir somente. A voz atrás da porta passou a dizer de uma
maneira mais cortês. A pessoa não abriu a casa mas esclareceu
que a estalagem era a casa de uma senhorinha que ficava bem no
final da vila, a última lá no fundo. Ele agradeceu e continuou a
caminhada carregando suas duas malas volumosas. Aquele míni-
mo contato humano foi reconfortante, não se sentia mais entre
bestas selvagens da noite, embora estivesse com um pouco de frio
e cansado, quis chegar logo ao destino. O desespero havia passa-
do, mas ainda parecia haver qualquer coisa de sinistro naquele lu-
gar.
Foi andando pela rua deserta até ver a casa que encaixava
com a descrição, não tinha placa nem nada que identificasse uma
hospedaria ou coisa assim, mas decidiu bater à porta. Era uma
construção bem simples, sem pintura, com beiral de tronco roliço
fincado no chão e telhado baixinho. A porta abriu com a luzinha
bem fraca de uma vela e atendeu uma senhorinha “Oi fio, que cê
precisa”. Ele disse que procurava algum lugar para dormir, que ti-
nham lhe dito que ali funcionava uma estalagem e ela confirmou
que era lá mesmo.

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“As vezes eu hospedo gente aqui, mas é muito difícil aparecer al-
guém. Vamo entrá! Tem um quarto só, mas tá prontinho se preci-
sá.”
Não tinha luz na casa, naquele tempo era muito difícil que
as residências tivessem luz elétrica, principalmente na roça. Toda
a gente usava lamparina ou lampião, mas a senhorinha só tinha
um castiçal e um maço de velas. Recebeu ele na cozinha onde o
fogão a lenha só tinha as brasas avermelhadas bem fraquinhas,
emitindo aquela luz como se fossem pedrinhas brilhantes deixadas
há várias horas para se apagar. Serviu um chá que ainda estava
morno no bule sobre a chapa de ferro do fogão, acompanhando
algumas bolachinhas de nata.
Era uma senhorinha muito atenciosa, um rosto engraçado
iluminado pelo toquinho de vela que carregava com dificuldade,
parecia que não tinha dentes. Falava com uma voz baixinha e an-
dava com dificuldade, o corpo arcado e trêmulo apoiando em uma
bengala e carregava com a ponta dos dedos finos um castiçal com
a vela para iluminar o caminho. Ofereceu se queria comer alguma
coisa e ele disse que não se incomodasse, que estava muito can-
sado e queria ir dormir pois pretendia acordar cedo para fazer seu
trabalho. Conversaram um tempo, ele contou da sua profissão e
de onde vinha mas não emendou uma conversa muito longa, nota-
va que ela também já estava na sua hora de ir dormir, achou que
ainda era cedo mas quando puxou a corrente do relógio no bolso
os ponteiros já marcavam perto das onze horas.
A velha deu-lhe o castiçal com uns gotejos da cera já con-
sumida, pela metade, acendeu outra vela para si e firmou num pi-

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res de chá pingando um pouco da parafina derretida no centro.
Indicou a porta do quarto da hospedagem no final do corredor.
Cordialmente deu-lhe boa noite com uma longa prece de bom
sono e bençãos de muitos santos aos quais era devota e tinha
imagens num altarzinho de madeira no canto da cozinha. A velhi-
nha entrou para o seu quarto e foi dormir. Então que o rapaz se
dirigiu ao quarto de hospedaria carregando as malas de uma for-
ma desajeitada para segurar o castiçal com a chama pouco lumi-
nosa na ponta de uma vela roliça que tinha somente mais meia
hora de queima. No final do corredor havia um crucifixo com a
imagem de Jesus, beijou ao mão e fez o sinal da cruz, depois
concentrou-se em abrir o quarto.
A porta de madeira, feita de tábuas pregadas, precisou de
muita destreza para retirar a travessa com as mãos todas ocupa-
das. Assim que conseguiu abrir, a vela, por acidente, se apagou e
ele ficou em completo breu até a vista se acostumar e conseguir
discernir o que tinha no pequeno cômodo. O quarto era frio, mais
que o restante da casa. Sentou-se na cama de solteiro com molas
e colchão de palha seca, deixou as malas pelo chão, pousou a
vela apagada sobre uma mesinha de cabeceira. Então reconheceu
os elementos do quarto, viu que tinha um móvel que parecia um
armarinho, algumas outras coisas desimportantes e, bem de frente
com a cama, no lado oposto, notou na parede o que parecia ser
um quadro de um retrato emoldurado rusticamente.
Ali na mesinha de cabeceira procurou fósforos para rea-
cender a vela, havia apenas uma bíblia, mas nenhuma caixa de
fósforos. Ainda no escuro tirou os pés dos sapatos que deixou ali-

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nhados no chão da lateral da cama, despiu o casaco e a gravata,
tirou o cinto de couro aliviando a pressão na cintura e estirou
suas longas pernas sobre a cama estreita. Estava com o corpo
exausto mas lembrou-se que precisava dar corda no despertador e
colocar o ponteiro para disparar um pouco antes das cinco da ma-
nhã, a tempo de pegar o trem. Já estava sentado com as pernas
esticadas sobre o colchão e uma coberta sobre o corpo, esticou-se
no escuro e agarrou uma bolsa onde carregava seus objetos pesso-
ais, pegou o despertador de viagem que trazia consigo e achou
também o estojo do cachimbo onde ele lembrou haver uma caixa
de fósforos. Então decidiu reacender a vela que estava ao seu al-
cance, tomando cuidado pois só tinha restado dois palitos na cai-
xinha.
Assim que a chama pegou no pavio e houve alguma fonte
de luz no quarto ele ficou intrigado com a figura do retrato que
estava na sua frente.
O busto de uma mulher que ele não soube estimar a idade,
perdia-se entre ser jovem ou de idade madura, unia as mãos deli-
cadas e pálidas, com seus dedos finos e nodosos, mais magros
que o comum. Inexpressiva no seu semblante, posava com uma
maneira aprumada, elegante, com estatura feminina, mas seu jeito
era simples. Percebeu que se vestia com roupas pobres, as alças
do vestido já tinham um desgaste visível, e cobria os ombros com
um xale repleto de desfiados e furos perceptíveis. A luz era real-
mente escassa, mas pôde discernir que havia alguma cor naquela
imagem, e depreendeu que era um retrato pintado sobre uma foto-
grafia, do tipo que faziam antigamente, era bem comum e era

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bastante caro também. Achou curioso que o artista tivesse conser-
vado estes detalhes indesejáveis, poderia apenas ter coberto de
tinta, fazendo aquela roupa parecer nova ou em estado descente.
Não existiam fotografias em cores naquele tempo, mas esta era
uma ótima reprodução, conseguira uma naturalidade formidável.
As madeixas de seu cabelo inspiravam um leve movimento e um
brilho molhado pela adição de pequenos estriados brancos con-
fundia ser grisalho ou efeito de uma luz virtual no desenho. Ti-
nha a boca com lábios estreitos, sutilmente entreaberta, sem mos-
trar nenhum dente, as bochechas lisas, fazendo um rosto fino na
figura e seus traços eram prevalentemente agudos.
Depois de alguns minutos contemplando a mulher, notou
que ela não era tão inexpressiva assim, na verdade parecia haver
qualquer coisa de sofrimento no seu rosto, havia ali um decai-
mento, um semblante doente e empalidecido. E, por fim, o ele-
mento mais notável, aqueles olhos! Eram olhos compenetrantes,
escuros e coriscantes de uma luz mórbida, como lágrimas de uma
viúva. Aquele retrato era ao mesmo tempo belo e terrível, o mais
intrigante que já tinha visto.
Lamentou sua visão ruim, há tempos que o médico lhe ad-
vertiu de procurar um oftalmologista para fazer um par de óculos,
mas ele sempre negligenciou. Entretanto, pela preguiça de levan-
tar-se e o desconforto de despir da coberta, não ousou ir ver a
imagem mais de perto. Achou que a luz fraca da vela combinava
muito bem com a distinta composição no rosto daquela mulher,
ou então estava entorpecido pelo sono que sentia. Ficou divagan-
do, considerou essa possibilidade por um tempo até os olhos logo

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irem pesando as pálpebras. Precisava ir dormir, recordou das res-
ponsabilidades do dia seguinte, do trem saindo cedo, o que lhe
dava poucas horas de sono.
Deu corda no alarme do despertador, conferiu o horário
com o relógio de bolso no casaco pendurado à travessa da cabe-
ceira. Estava certo, só precisava definir quando ia despertar. Com
tanto sono escolheu que colocaria o mais próximo que pudesse
do horário de partir, contanto que pudesse se levantar e vestir-se
novamente. Escolheu equivocado apenas dez minutos antes do
trem partir da estação. Isso lhe imporia pressa assim que acordas-
se, mas tudo bem, contanto que pudesse aproveitar alguns minu-
tos a mais de sono, já tinha se acostumado com isso. Repousou o
despertador na mesinha, ao lado da vela e relaxou o corpo no
colchão de palha, deitado de barriga para cima, olhou para o re-
trato novamente por um outro ângulo. Parecia encará-lo com os
olhos fixos, achou um tanto macabra esta visão, aquele rosto des-
conhecido, com jeito estranho. A luz fraquinha da vela que já es-
tava quase inteiramente consumida, modesta iluminação para ver
aquela forma. O retrato perfeitamente posicionado frente a ele en-
quanto foi fechando os próprios olhos vencido pelo sono, e neste
cair das pálpebras teve uma impressão estranha. Parecia ter visto
qualquer movimento na expressão daquele rosto, um franzir no
canto da boca, um espasmo sutil. Ergueu-se novamente curioso,
sentindo alguma estranheza e recostando na cabeceira intrigado,
devia ser fruto da imagem incompleta, do ângulo, da imaginação,
do sono… Qualquer coisa assim. Sentiu uma corrente de ar pelo
quarto, algo que permanecia desde que entrara, tirou a vela da

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mesinha e esticou o braço com o castiçal na direção da imagem,
mas a vela, tremulando no vento se apagou.
Cético de qualquer coisa, resolveu consigo que não tinha
visto nada demais, era melhor ir dormir de uma vez. Mas que
custaria dar mais uma breve olhada? Pegou o último fósforo da
caixinha, riscou na parte áspera e levou o palito em chamas efusi-
vas da reação química ao pavio que sobrara naquele toquinho re-
manescente de parafina.
A chama súbita que preencheu o quarto por um instante
muito breve, parecia mais brilhante ainda que a luz da vela, ilu-
minou todos os objetos um pouco melhor, inclusive aquilo que
havia na sua frente, a imagem da mulher deu a impressão de alte-
rar-se na sombra e na tremulação da luz. Vultuosamente pareceu
que a expressão era um tanto diferente no relance que pode ter
quando a imagem foi atingida pelo flash de luz. Mas o fogo não
quis pegar, ele uniu os dois objetos que tinha em mãos, tentando
conservar a fagulha na madeira fraca do fósforo, mas terminou
com a vela intacta e o palito queimado. Desperdiçou o último
fósforo que trazia consigo. “Ah, deixe pra lá”, deitou-se e puxou a
coberta sobre os ombros muito rapidamente. Agora deitado sob a
lã como um abrigo e a cabeça no travesseiro, sua mente recriou a
imagem que pensou ter visto no relance do fósforo riscado. Era
algo horrendo, traços saltados como se transformasse o rosto da
bela mulher no rosto de um animal raivoso e vingativo, a melan-
colia inocente transmutada em malícia. O retrato parecera por um
instante maligno, mas devia ser somente sua imaginação.

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A mente empenhou-se em lhe atormentar, projetou-o para
o lugar que cercava a casinha onde se hospedou, aquela vila pa-
vorosa, repleta de sombras ao redor. De olhos fechados ele via
tremendos horrores que ainda sim eram mais seguros que pensar
na possibilidade de uma anormalidade sobrenatural e maléfica da-
quela figura que estava a pouco mais de um metro dos seus pró-
prios pés. Não ousava, de maneira alguma, olhar novamente na-
quela direção. Cerrou as pálpebras e cobriu o rosto com o cober-
tor. Concentrou-se em dormir, embora entorpecido pelo medo.
Conseguiu que o sono o dominasse e acabou por embalar numa
fleuma artificiosa. Bendito cansaço do dia todo, que nessa hora
foi seu único amigo.
Adormeceu, por fim, mas dormiu um sono agitado e pou-
co revigorante, destes que parecem requerer do corpo alguma
energia para se manter. Ademais sentiu frio a noite toda, se aper-
tava com as lãs trançadas do cobertor tentando segurar o calor no
corpo. Parecia como se dormisse ao relento com aquelas corren-
tes de ar vagueando pelo quarto. Vez ou outra sentia voltar a si,
mas não de modo completo, era apenas o desconforto o retirando
do sono mais profundo. Nestas horas apenas preservava a inércia
e logo voltava ao estado inconsciente. Assim foi a noite toda.
Ainda pela madrugada o despertador de viagem disparou
com o tilintar ruidoso e agudo do mecanismo batendo no sino
metálico. Uma luz muito tênue e azulada da alvorada se aproxi-
mando despontava pelo ambiente, bem em seguida o galo cantou.
O caixeiro levantou de supetão, depois de ainda ficar algo como
dois minutos enrolando na cama. Viu que o horário do trem das

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cinco se aproximava e tinha seu planejamento a cumprir. Sentou-
se já enfiando os pés nos sapatos, jogou o cinto e o paletó por
cima do ombro e botou as coisas do móvel de volta ao bolso,
uma das quais, um pente de chifre usou para sair ajeitando o ca-
belo. Num instante já estava do lado de fora do quarto com a
mala que precisaria carregar em mãos. Uma destreza impressio-
nante em se aprontar, faltava pouquíssimos minutos para a partida
do trem. Desde que acordara não se lembrou de revisitar as coisas
estranhas da noite anterior, era o poder do dia de trazer tudo o
mais a lucidez. Por consequência também da pressa, nem sequer
fitou a parede onde estava o objeto que lhe atormentou os pensa-
mentos antes de dormir.
Assim que saiu da estalagem, vestindo seu casaco, sentiu
no corpo o cansaço da noite maldormida por sobre a adrenalina
do pulo da cama. Aferiu disso que seria uma manhã dura carre-
gando peso com aquela fadiga no corpo. De fato seria. Arrastou-
se até a estação e conseguiu ainda adentrar no vagão bem quando
a máquina já aliviava o vapor para partir. Lutou para não dormir
e passar do ponto na próxima estação e quase não conseguiu
cumprir com o objetivo, acordou de um cochilo com a voz de um
passageiro quando o trem parou novamente.
Começou o dia meio cambaleando de sono e cansaço. Pa-
rou em algum lugar e tomou café para tentar se revigorar. Com o
passar do tempo conseguiu se manter plenamente ativo, passou
em mais ruas da cidade para cumprir seu expediente de porta em
porta. Vendeu alguns panos para uma dona de casa e mais qual-
quer coisa que não era bem rentável. Caminhou várias ruas com

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pouco sucesso nas vendas. Tentou encontrar seus potenciais clien-
tes com quem tinha conversado no dia anterior, não foi efetivo.
Um senhor interessado num belo relógio de pulso desistiu da
compra, as mulheres que queriam comprar panelas, sabe-se lá
onde estavam…
As onze horas estava no pequeno restaurante onde serviam
uma comida do tipo caseira, gastou com o prato mais do que
conseguiu arrecadar nas vendas da manhã. Com o sono se mani-
festando novamente depois da refeição, pediu um copo d'água
para matar a sede enquanto questionava a decisão de ficar ali para
aquela manhã, palitava os dentes e lamentava o dinheiro gasto
sem necessidade. “Que ideia besta foi me hospedar naquela vila,
lugar estranho!”, ainda precisaria voltar lá para pegar o restante
de suas coisas e pagar a hospedagem para a senhorinha. Ao me-
nos tinha este alento, apesar de toda a repugnância daquele lugar
ainda sentia uma simpatia pela velhinha.
Ao meio dia pegou o trem novamente, desceu na minúscu-
la estação e foi até a casa da hospedaria. Lá encontrou a velhinha
ainda com as panelas no fogo, acabara de almoçar e lhe ofereceu
que ele montasse um prato.
Não resistiu à comida que tinha um cheiro bom. Apesar de
ter acabado de almoçar e não ter fome, também não resistiu ao
zelo da senhorinha. Serviu-se de uma quantidade módica e sen-
tou-se a mesa onde ela descansava ainda com seu avental vestido.
Logo começaram a conversar e ela lhe perguntou:
– Gostou do quarto? Dormiu bem?

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– O quarto é ótimo! O problema foi eu que estava muito agitado,
não dormi muito bem.
– Mas que coisa fio, que será que o senhor tem?
– Não sei, passei um pouco de frio.
– Não tinha cobertor o suficiente? Mas que estranho não me lem-
bro de ter feito muito frio ontem a noite.
– Não se preocupe, eu estava bem servido de cobertores, era ou-
tra coisa, acho que tinha alguma corrente de ar, ou era só eu que
estava com o barulho do trem na cabeça. A viagem as vezes me
deixa assim.
A senhorinha ofereceu-lhe depois do prato de comida, se
gostaria de um pedaço de queijo, um café ou algo qualquer que
pudesse lhe conseguir. Ele recusou, com modos muito educados,
pagou o valor devido que era bem menos do que esperava, quis
deixar a ela o troco que seria algumas moedas, mas ela insistiu
em buscar numa pequena bolsinha que guardava. Faltava agora
somente buscar seus pertences para retomar o trem de volta. Ain-
da pensativo da noite anterior e da figura que acompanhou seu
sono, ele teve curiosidade de perguntar a velhinha:
– Quem é a mulher naquele retrato?
– Retrato, moço? Não tem não.
– Como não? A senhora não tem um quadro naquele quarto?
– O único que tenho é o quadrinho de Santo Expedito no corre-
dor.
– Ora, mas como não? Tem um retrato na parede do quarto que
eu dormi, a imagem de uma mulher, um pouco pálida, moldura
de madeira…

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– O senhor deve estar enganado, eu nunca tive retrato nem nada
disso. Essas coisas são caras e eu nunca tive dinheiro pra comprar
nenhum retrato.
O Caixeiro ficou irritado, tinha visto um retrato, ou pintura
talvez, no quarto a noite, mas a velha insistia em dizer que não
havia nada. “Pois então o senhor me mostra. Vamos lá ver”
A senhorinha o seguiu pelo corredor, ela andava devagarzi-
nho e com dificuldade, apoiando-se na bengala. Ele chegou pri-
meiro, ansioso para mostrar do que se tratava. Ao entrar no quar-
to empalideceu-se quando de pronto viu a parede. A velhinha que
vinha atrás, ao chegar na soleira da porta e notar o quarto como
tinha sido deixado, esqueceu da discussão e foi logo dizendo:
– Ô moço, é claro que o senhor passou frio, deixou a janela aber-
ta a noite.

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