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Meia Dúzia

de Poemas
Uma simples compilação
de alguns poemas para
os amigos que se interessarem.
Por Henrique Siviero.

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Índice

Prefácio..............................................................................4
Atriz...................................................................................6
Coisas Paradas...................................................................8
Teatro...............................................................................10
Vendaval............................................................................11
Fieira.................................................................................13
Navegantes.......................................................................14
Noites alvas......................................................................16

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Prefácio

Estou contrariado de escrever qualquer coisa aqui,


talvez não se deva dizer nada antes da poesia, da mesma
maneira que não se deve filosofar muito antes das coisas
que não são feitas por razão, mas pelo embalo ardente da
natureza humana, como um salto no abismo, uma esca-
lada ou um simples beijo. Então espero que perdoem
esta prática cafona de apresentar alguns motivos antes da
impressão dos poemas. Acontece que, algumas vezes,
certos versos têm uma camada mais espessa de simbolis-
mo, e neste caso o significado pretendido fica um pouco
opaco dentro da arte. ‘Translucidez’ seria uma palavra
interessantíssima de se utilizar aqui.
Tudo bem, eu reconheço que a poesia tem vida
própria, as vezes ela diz mais do que pretende dizer, ou é
entendida de forma inédita. Mas seria de muito mau
gosto esclarecer o que é a reflexão por detrás da imagem
criada? Se o leitor preferir, pode simplesmente saltar
para a página do primeiro título, eu faria isso… mas tal-
vez queira antes saber que o poema que inicia este livreto
“Atriz”, não é tão somente sobre uma atriz intrigante
mas também sobre a maneira como a arte se amealha ao
artista e ele carrega em si um pouco dela. Lembro-me
também que este tema, sobre como a vida se mistura
com a ficção, volta em “Teatro”, e algumas vezes tam-
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bém tangencia vários outros poemas.
Ora, mas o leitor poderia depreender estas coisas
lendo por ele mesmo, é verdade. Não vou lhes tirar a in-
finidade de significados que é típico fenômeno da litera-
tura. Mas o motivo mais importante para eu querer es-
crever, mesmo a contragosto, este breve prefácio é que
eu detestaria que ao ler “Fieira”, este sim, poema que es-
conde a intenção numa imagem estranha, não ocorresse
ao leitor que talvez este poema tenha algo a ver com or-
denar as paixões. Ou ainda o que mais temo, quanto ao
poema “Navegantes”, que ele passe a impressão de ser
uma ode de louvor ao mar. Neste caso me reservo o di-
reito de interferir, o título não é sobre o mar, tem pouco
a ver com o mar. Na verdade, não tem nada a ver com o
mar, insisto.

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Atriz

Surgiu a invenção repentina e imprevista


Mas antes da obra uma ideia remota
E antes da arte o engenho do artista
O músico composto pela nota

Ou cores do doce expressivo trejeito


Cintilam pendentes no rosto da atriz
É maquiagem ou foi o véu estreito,
Que nos separa a realidade por um triz?

O rosto no espelho, tal como era vista,


Sentada ao quarto tirando o batom
Cena cortada de um filme oitentista
Uma noite criada em azul de néon

Confunde-se a tela com a tinta e a imagem


Confunde-se a letra, a corda e o som
Também nela se infunde a personagem
Talvez forma espectral do dom

E vai se moldando conforme o ensaio


Que neste caso faz parte da peça
Um suspiro perfeito, o olhar de soslaio
Que sem querer o peito atravessa

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E impacta ardente de sobremaneira
No momento que a memória registra
Os lenços manchados sobre a penteadeira
Na boca borrada formava uma listra

Objetos falsos no cenário da vida


Formas pintadas no recorte do papelão
Tocou o abajur virando o outro lado
Era apenas arame armando um cartão

E o tal brilho nos olhos, há quem insista


É o agudo sentido que o perfume afeta
O preâmbulo da arte na figura do artista
E o respiro do verso na imagem do poeta

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Coisas Paradas

Coisas imóveis no fim da tarde branda


O cinza claro de um dia nublado
Objetos da casa, na luz acinzentados
Espalhados na sala, no quarto e na varanda

É tanta matéria inanimada


E só uma a mover por entre o espaço
Que sobra entre a solidez da passada
Um cenário imóvel, fixo, inalterado

No quadro este mistério se faz sem querer


Por que se move o passo pela perna?
Se todo o demais não escolhe se mover
Se não pela maré talhando a força externa

É tudo estático, chumbado ao chão


Que o tempo não tem nenhuma razão de ser
E, pelo tempo ser medida da moção,
Não passa a hora se nada se mover

Mas de pronto um ruído rompe a imobilidade


O estampido breve de um mísero impacto
Fenômeno que restaura o dinâmico dramático
O choque da gota que perde a integridade

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É chuva o barulho que vem mais fugaz
Contra a janela de vidro impenetrável
Então não posso dizer que em mim é capaz
De manter-se a firmeza imperturbável

Desfaz-me com o zimbro, o gotejo sublima


No meio-fio da rua as penas se esvaem
As nuvens cinzas que correm lá em cima
Na torrente remota das águas que caem

Esta enxurrada que vem, nos ciscos fluindo


Há de rodar um moinho disforme
Que bate a pedra contra os grãos conforme
A água se mistura num movimento infindo

Ah, o brilho na calçada antes da água secar


Cada folha caída foi entregue ao martírio
A simples estampa que é capaz de deixar
O imaginário entretido no mais lúcido delírio

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Teatro

Esta vida como se fosse um teatro


Encena o drama previamente ensaiado
No palco escuro desta temível tragédia
Onde todo herói descamba pra comédia
E de tão vulgar ser a representação
A aparência que em tudo se instala
Aos outros atores talvez deve perdão
Ou pras cadeiras vazias na sala
Neste mundo, palco compartilhado
Essa peça não saiu como o planejado

Quem foi que escolheu as palavras?


Há sempre um roteiro exagerado
Os gestos tímidos repletos de entravas
São sempre mais francos do que o esperado

Tenho visto e prestado atenção


No absurdo das coisas quando são de verdade
A verossimilhança que prende a ficção
Não tem nenhum compromisso com a realidade
Mas como é possível viver de outro jeito?
Se só conheço, em suma, uma forma
Tudo tem que respeitar esta norma:
Amar antes de arrebentar o peito

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Vendaval

Melancólico ruído que há no vento


Que ouço soluçar em tua voz
Se é este sofrer dentro de nós
Ou a tristeza de um lamento

Que corta o vento a carestia


Faz de uma noite correr um dia
Traz velhas lembranças guardadas
Em sua triste uivosa melodia

Uma prece ou uma piedade


Símbolo triste do meu invento
É por certo uma saudade
Que vem e vai conforme o tempo

Vento que corre em meu peito


sufoca-me logo sem ar
Que como vivo em pesar
Pra mim não há mais jeito

Vento que pode se transformar


De um simples soprar um furacão
E de uma leve brisa uma paixão
Um vendaval sem se acalmar

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Vento forte que não abrevia
Trará os mesmos ares algum dia?
Cortando correntes de ferro e de ar
Carregue o que julga precisar

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Fieira

A ver que horas eram, do dia em contrário


Ponteiro no hemisfério, rompeu o rosário
Na terceira conta do quarto mistério

Havia uma agulha cravada à almofada


Pousada sem linha, depois da costura
Penetrada mais fundo que a ponta onde estava
Firmada no pano em oblíqua postura

Faltava o barbante para unir as miçangas


Espalhadas na breve extensão da mesinha
Catei na estradinha um áspero barbante
Perguntei o que era e donde é que isso vinha

Por fim, um cordame do jogo de piões


Com um nó na ponta para marcar o final
As voltas em vício formando a espiral
Que deu forma a fieira dos tais corações

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Navegantes

Inflaram as velas no soprar de um instante


O vento em vigor, amizade inconstante
A mecha de estrelas que brilhavam lá encima
Via o reflexo, do olhar a estima

Nos olhos salgados do velho navegante


Olho e mar, no pranto contido, pendiam da tez
A água espelhava o céu deslumbrante
O sopro que o vento compôs de uma vez:

Ó mar salgado onde vais?


Levar teu sal em outros cais
Tratar da pena amarga e severa
Que um dia, no porto, alguém te espera

Tuas ondas feito lágrimas a rolar


Juízam quem jamais vai voltar
Ó mar salgado e espumante
Porque te estende a tão distante?

As correntes viajam, a distância perfura


As coisas vindouras que o destino ensaia
Do mistério oculto na tua fundura
Às vagas que estouram na beira da praia

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Ó mar escuro cor de anil
Na tua noite escura pra quem já viu
A imensidão massiva que te rodeia
E quanta água existe antes da areia

Ó mar astuto efervescente


Escorre as feridas que ardem, estanque
O que dissolverá na tua manhã nascente:
O sal que também há no sangue

Pra quem só resta a escolha navegar


Mais a dureza que a coragem afirme
Pois sempre se fez a terra firme
Das águas tênues desse mar

Ó mar imenso e insecável


O azul ardente num dia vívido
Teu sal nas veias do interminável
Amor de um deus ao teu espírito

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Noites alvas

Noites alvas que o brilho lunar encerra


Um estranho delírio no peito ardente
Nestas noites frias, ou noites quentes,
A alma transita entre o céu e a terra

Noites alvas que o brilho celeste ilumina


Quando no coração o compasso termina
Uma fraca batida no peito inocente

Vem encerrar, ó brilho cadente


Este devaneio qual lua crescente
Que em meu peito insiste a morada

Clareia, majestade da noite, esta via desusada


Que a seguir ninguém me ousou o conselho
Mas que hoje cesso, daqui à alvorada

Deixar definhar algum velho devaneio


Talvez venha outro logo em seguida
Pois trazendo a esperança erguida
O novo erro não inspira receio

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Ouro ou cobre, açúcar ou sal
Na luz pálida das noites alvas
Tênue lume, faz parecer tudo igual

Quando a lua mansa coroa a serra


Na calada da noite recita um cerimonial
Os pássaros que ficam do amanhecer a espera
Para deixar os galhos, os ninhos e o beiral

A murta perfumosa no canteiro da esquina


Faz seu feitiço desta maneira
O perfume com as silhuetas se combina
Ilusória confusão de namoradeira

Noites alvas que o brilho celeste reluz


E tal como prata pinta os telhados
De sombras disformes e contornos falhados
No escuro se valoriza melhor esta luz

Este céu de estrelas, a atmosfera está nua


Deixa chegar esta imagem distante
E se misturar com o que está perto o bastante
O feixe de luz do poste na rua

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Nestas pedras do calçamento fulgura
Faz tudo reluzir com um brilho astral
O chão, as fachadas, o reflexo fatal
E o banco da praça, primorosa escultura

A Pietá repetida nestes braços de cimento


E a luz atrai uma espiral de falenas
Alguns versos, se não caírem no esquecimento
Quem sabe talvez se tornem poemas

São mariposas como lágrimas de um pranto


Tocam a luz e o flerte recua
Clero da noite que veste este manto
Desejam a luz do poste louvando a luz da lua

Chorosas lágrimas de prata


Deixaram a imensidão pra cair nesta terra
Sobre as pedras da rua refrata
Nos telhados das casas se encerra

Mansa luz que cobre o descanso


Quando o silêncio calmo impera
Toda noite de luar foi um remanso
Melodia que a natureza compusera

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E nestas noites me ponho a sonhar
Um novo sonho permitido, ou redescoberto
Do céu escuro que faço um altar
Oro a Deus um pouco mais de perto

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