Você está na página 1de 20

Jardel Dias Cavalcanti

Galileu Edições
Jardel Dias Cavalcanti

Ilustrações:

gravura de Fernanda Carolina

pintura de Fabricius Nery

Galileu Edições

2017
“Os desejos sexuais destroem todas as barreiras sociais e
culturais.”
(Wolfgang Bader)

“Há abismos em nós.”

(Arthur Schnitzler)
R
Eu havia acabado de sair do cinema. O filme tinha sido
péssimo! O que fazer para preencher o vácuo da noite? Nada.
Apenas andar de carro pelas ruas da cidade, vendo o
movimento e apreciando as luzes que tornam a porcaria da
paisagem urbana algo minimamente apreciável.

Mas minha libido estava desperta. Talvez a única forma


de manter a vida, diante do vazio ao qual estamos
condenados, é cedendo ao impulso sexual. Então,
repentinamente, meu desejo despertou a lembrança de uma
rua onde as garotas de programa se ofereciam. Sim, eu
precisava de sexo pago, naquela hora, urgente. Sem
pestanejar, mudei a rota do carro e segui em direção à rua do
pecado. Na medida em que avançava, via os corpos que
abriam possibilidades de prazer. Eu olhava, observava
cautelosamente, procurando alguém que me convencesse de
que valia a pena pagar pelo prazer. Uma menina, com aspecto
decadente, possivelmente drogada, insinuava-se numa
minissaia vagabunda e num salto alto vermelho. Não era o que
eu queria, eu precisava de um mínimo de sutileza e um
máximo de provocação para satisfazer minha luxúria. Aquela
figura não preenchia quesitos básicos. Enquanto cruzava
lentamente a rua, via uma ou outra fêmea se oferecendo, mas
nada comovente. Gritavam na janela do meu carro: “um
boquete?”, “quer foder?”, etc. etc. etc.

Cruzei toda a rua e nada me levava a querer tirar dinheiro


do bolso. Nessas condições, diante desses maltrapilhos
eróticos, preferia voltar para casa e me masturbar. Mas... não!
Insistia para mim mesmo: eu queria e precisava de calor
humano. Decidi retornar ao início da rua, passar outra vez,
dar uma chance ao meu desejo para que encontrasse o lugar
do exercício de sua perversão. Eu precisava de um corpo, de
calor humano, não me satisfaria com uma simples
masturbação hoje. Há necessidades que são urgentes, maiores
do que nós e que não devem ser controladas.

Retornando lentamente à rua, olhei com mais vagar,


pesquisando algum elemento naqueles corpos que pudesse
despertar minha ânsia de gozo. Realmente, era uma decepção
e, pelo visto, continuaria a ser até o fim da rua. Mas não foi.
Quando estava para desistir, desviar para outra quadra,
percebi que na esquina se encontrava uma loira de olhos
verdes, de aspecto altivo, com uma minissaia curtíssima, um
salto deslumbrante nos pés e um trejeito para lá de sensual.
Sua figura me aparecia como uma imagem cintilante. Notei
nela a delicadeza que eu procurava, e isso fez com que meu
desejo se inflamasse. Estacionei e chamei a garota, que
prontamente entrou no carro.

Minha libido estava alucinada, percebi logo ao colocar a


mão direita sobre as coxas desnudas dela, tentando penetrar
sua minissaia, com carícias incontidas. Ela, no entanto, parou
meu movimento. Tentei beijá-la na boca, pois me agradava
aquele rosto delicado e seus lábios bastante sensuais cobertos
por um batom que deixava a sua boca ainda mais provocante.
Me fez uma pergunta: é isso mesmo que você quer? Sim, eu
disse. Toquei os cabelos dela, como se estivesse diante da
promessa de prazeres vindouros. Ela poderia me levar ao
paraíso, me devolver o gosto pela vida. Era o que eu precisava
naquele momento. Queria a fusão total com aquele corpo.
Mas ela me impedia de avançar, de cheirar seu pescoço, de
beijá-la na boca, de acariciar suas coxas.

Outra pergunta saiu de sua boca, numa voz que parecia


ensaiada, mas que não deixava de ser sensual: “Você sabe que
sou um travesti?” Fiquei relativamente pasmo por não ter
notado o detalhe. “O que?”, eu disse. “Não sabia, está de
gozação?” continuei falando. E, no entanto, minha libido
parecia, agora sim, ter despertado de vez. Uma mulher que
não é mulher. Ou é mulher e homem ao mesmo tempo.
“Coloque a mão aqui e veja”, disse ela, pegando minha mão e
levando-a para dentro de suas coxas. Senti a ausência de
qualquer volume. “Está mais para baixo, bem escondidinho,
meu lindo!” Ela disse, com um sorriso matreiro e uma jogada
de cabelo para o lado. Comecei a reparar e vi que era
realmente um homem, mas percebi também que não era a
natureza de um homem que estava ali, eu pensava, era uma
mulher loira, linda, delicada, para eu perverter, usar, abusar. E
ainda me assaltava o desejo pelo mistério dele ou dela e do
meu próprio desejo, esse desejo confuso que imaginava a
possibilidade de estar com um homem e uma mulher ao
mesmo tempo.

“Olha, se você quiser, vamos para minha casa, não


precisa ter medo, nem timidez. Eu cobro 170 reais. Moro aqui
do lado, vamos?” Mal ela acabou de falar e eu já respondi:
“sim, sim... vamos! Eu quero.” Ele tocou meu rosto com
carinho, beijou minha face direita e disse: “você é lindo, vai
ser ótimo, não vai se arrepender!” Liguei o carro e ele, ou ela,
ou os dois, foi indicando por onde eu deveria ir.
Chegando ao prédio, minha adrenalina explodia. Ele
pegou na minha mão e me conduziu à porta, depois ao
elevador, onde se aproximou de mim, me abraçou e beijou
minha boca. Eu sentia um desejo maior talvez do que o desejo
que eu sempre sentira ao ficar com alguém. Estava disposto a
ter ela/ele sem qualquer restrição. Eu queria, não sabia bem o
que nem o porquê, mas a confusão do meu desejo era um
elemento que me excitava mais ainda. A vida não estava
morta. A eletricidade que percorria meu sistema nervoso era
a prova disso, ou causava um esquentamento em mim que
parecia me devolver a uma existência satisfatória.

Ela, ou ele, tanto faz, abriu a porta... entramos. O


apartamento era pequeno pelo que percebi, tendo apenas um
quarto, uma sala pequena e um banheiro. A cama, ao menos,
era de casal. A decoração consistia de alguns pôsteres de
cantoras que eu não identificava, um retrato da Madonna, um
da Marilyn Monroe e outro de Fred Mercury. Plumas
penduradas por todo lado e uma pintura da Virgem Maria
numa daquelas representações kitsch habituais.

“Então, lindo, não vai tirar a roupa?” Ela disse,


novamente com seu olhar matreiro e dançando um pouco o
corpo num rebolado discreto, ajudado pelo salto alto e pela
música da Madonna que invadia o apartamento.

“Ainda não”, eu disse. Eu queria amar aquela mulher,


homem ou sei lá o quê, de forma lenta. Queria sentir o prazer
de descobrir o seu mistério, sem pressa, sem correria, e o meu
desejo queria manter-se eletrizado pela sensação do medo
diante do desconhecido. A vida estava vibrando, não era isso
que eu desejava para superar o vácuo?

Aproximei-me para beijá-la, tocar seu corpo, apertar-me


contra ela. A pele, apesar de masculina, era macia, bem tratada
com cremes, com certeza. A delicadeza do seu toque pelos
meus braços, costas, cabelos e rosto me excitava de uma
forma que eu nunca havia sentido antes. Havia alguma
eletricidade naquelas mãos que imediatamente se transmitia
ao meu corpo. Ela rebolava lentamente, ajustava seu corpo ao
meu, me lambia o pescoço, me beijava a boca e sussurrava no
meu ouvido uma única palavra que se repetia sem parar:
“tesão, tesão”. Eu me arrepiava, cada pelo do meu corpo
tremia e me fazia colar ainda mais ao corpo dela num
aconchego de calor que aumentava na medida em que os dois
corpos se esfregavam. Claro, lei da física, é assim que se gera
calor. Era tão feminina que eu desacreditava que ela havia
nascido homem. Como podia? A natureza não entendia a si
mesma, desorganizou-se ao criar um homem dentro de um
ser que deveria ter nascido mulher. Errou ao colocar um falo
entre as pernas de uma doce fêmea.

Ela, ou ele, tanto faz, tirou minha camisa, enquanto


beijava meu peito, meu pescoço, meus ombros. Eu me
deleitava e já sentia um volume aumentando sob a saia dela
quando me apertava. Era impossível! Como aquilo poderia
estar ali, numa mulher tão linda, tão fêmea, tão doce, tão
pronta para o amor, eu me perguntava e quase não acreditava
ou aceitava. Nos esfregávamos sem aflição, delicadamente,
sorrateiramente, sentindo a doçura de nossos corpos se
encontrando e se afastando numa dança cheia de prazer. Ela
foi me conduzindo, como uma dançarina, para perto da cama,
até me jogar sobre ela. Aproveitou, tirou meu sapato, calça,
me deixando apenas de cueca. Beijou em cima, apreciando,
também, com as delicadas mãos femininas, o volume que se
desenhava em relevo: minha excitação era tanta que eu já
estava na minha potência máxima.

Jogou-se sobre mim. Seu corpo dançava de forma


serpenteada sobre minha quase nudez. Até que, finalmente,
desceu minha cueca, jogou-a para fora da cama e veio com a
ponta da língua lamber meu pau mais que enrijecido. Sabia
como fazer, saborear cada pedaço dele, ora apenas lambendo-
o, ora colocando-o todo dentro da boca e, em seguida,
retirando-o em câmera lenta. Esse movimento de vaivém me
levava às alturas, produzindo uma sensação de quase
flutuação do meu espírito. Às bolas do meu saco consagrava
chupadas que quase me elevavam da cama num êxtase
semelhante ao de Santa Tereza d’ Ávila quando possuída pelo
amor divino. Depois ela retirou a própria blusa, e o fato de
estar sem sutiã imediatamente fez aparecer seus seios
maravilhosos, postiços, na verdade, mas maravilhosamente
desenhados. Roçou-os na minha boca, que já os procurava em
aflição. Era delicioso estar ali, sentindo aqueles seios se
esfregarem no meu rosto. Não passava despercebida a ereção
dela, que se esfregava ora nas minhas coxas ora no meu cacete
rígido. Mais perceptível ainda quando ela pegou a minha mão
e colocou-a sobre sua minissaia, bem na posição de encaixe
do pau duro dela, que já extrapolava os limites da calcinha.
Pelo volume, senti que era bem grande. Enquanto chupava o
bico dos seus seios, apertava entre minhas mãos aquele
enorme caralho, sentindo minha libido despertar de algum
sono em que parecia que sempre estivera metida.
Não conseguia me conter entre beijos, abraços, roçadas
de coxas e o toque naquele pau duro pronto para fazer o
maior mal do mundo. Algo acontecia em mim, que me fazia
tornar-me parecido com ela. Afinal, eu acabei deixando meu
corpo soltar-se numa feminilidade que eu desconhecia. Eu era
uma mulher e queria aquele membro não só em minhas mãos,
mas em minha boca, entre minhas coxas e - eu me assustava
só de pensar, eu me excitava só de pensar - dentro de mim.

Mal pensei nisso, ela desnudou-se toda na minha frente.

Pude ver seu pau, uma delícia de um membro rígido se


exibindo e, ao mesmo tempo, eu percebia a delicadeza do seu
corpo feminino, de seus seios, de suas curvas: uma mulher e
um homem no mesmo corpo, eu concluía nessa observação.
Havia uma tatuagem, uma letra R em forma manuscrita,
Renata, ela disse, “meu nome é Renata”. Deitei sobre ela,
deixando seu volume me tocar e comecei a fazer o que se faz
com uma mulher, beijei seu pescoço, seus seios, seu ventre até
chegar no seu pau, que minha língua acariciou, que meus
lábios mordiscaram, que minha boca engoliu. Não satisfeito,
desci para o saco, lambendo e me satisfazendo ao vê-la
contorcer-se com minhas carícias. Eu também sabia matar
alguém, torturar, perverter a ordem dos sentidos. A nudez do
meu corpo colado ao dela e a sensação do volume que dela
brotava e me tocava em várias partes do corpo me excitavam
tanto que eu ia me tornando como ela, sensual, feminino,
cedendo aos trejeitos de um corpo pronto para a entrega.

Num gesto rápido, ela me virou, abraçando-me por trás.


Eu pude sentir sua língua roçar minha nuca, seus seios
pressionarem-se contra minhas costas e seu membro
enrijecido esfregar-se nas minhas nádegas. Senti, depois, o
volume entrar por entre minhas coxas, acariciando meu saco
por trás em leves estocadas, produzidas por um vaivém
delicioso. Ela me apertava, eu me entregava, roçando-me ao
seu volume, desejando essa fusão de corpos, o fim da divisão,
enfim, a totalidade, eu queria, sabia que só ali eu poderia
retornar ao mito inicial da fusão, eu, homem, mulher, único
em dois, sem mais divisão, sem sofrimento, puro como a
matéria inicial, cósmica, antes de ser dividida. Eu sabia que era
o que eu queria, eu sabia que deveria, eu desejava mais que
tudo tornar-me unido ao universo.

Sua voz veio de encontro ao meu ouvido, quente,


profunda, feminina, sensual: “você vai gostar, eu sei fazer
você gostar”. Eu ia me derretendo com aquele sopro mágico
no meu ouvido, ia me abrindo, e ouvia: “estou passando um
creme, relaxa, vou te comer todinho, vou te fazer mulher,
minha mulher, não vai doer meu amor, agora você é meu, é
minha”. Eu ia relaxando, me entregando, enquanto ele me
penetrava docemente, tudo, dentro, gracioso e delicado, no
meu corpo entregue ao abraço cósmico que produziria um
orgasmo que me devolveria à minha parte perdida.

Apesar de sentir um pouco de dor, ela se tornava


rarefeita na medida em que eu era beijado nas orelhas,
ouvindo seus gemidos de prazer, sentindo o calor de suas
palavras indecentes sopradas dentro dos meus ouvidos.
Adaptava-me à penetração com voluptuoso prazer e sentia-
me possuído por uma força, pela potência que provinha dessa
mulher/homem. Eu me entregava submisso, feminino, à
força máscula daquele pau duro, invasivo, poderoso, mau.
Sentia todo o calor do corpo dele se sobrepor ao meu corpo
naquele abraço traseiro: coxas, barriga, peito, boca, tudo
colado a mim com seu suor inebriante.

Estava sendo todo penetrado, sentindo o movimento de


vaivém dele dentro de mim, suas mãos me agarrando com
força, quando, por fim, uma moleza começou a me possuir ao
sentir sua mão tocando pela frente meu pau enrijecido,
massageando-o até a explosão final, que criava uma linha
elétrica que saía da frente do meu corpo e acabava na parte de
trás, como se o orgasmo que explodia na frente fosse
intensificado ao extremo pela penetração que eu sofria atrás.
A sensação que me tomava nas duas partes do corpo ao
mesmo tempo, pela frente e por trás, unia no meu espírito o
sexo masculino e o feminino.

Em seguida, após ter sentido a eletricidade percorrer


todo o meu corpo e se dispersar, desmaiei no mais profundo
e delicioso sono da minha vida.
Edição não comercial de 15 exemplares

Revisão e sugestões de Ronald Polito

Produzido por Jardel Dias Cavalcanti

Para Galileu Edições

Londrina – PR

2017

Você também pode gostar