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o]
de prata. Pouco depois, com os bondes escasseando e a noite já
negra, acima das árvores e dos postes, o bairro esvaziou-se, e o
primeiro gato atravessou lentamente a rua novamente deserta.
Mersault pensou no jantar. Estava com um pouco de dor no pescoço
por ter ficado tanto tempo apoiado no encosto da cadeira. Desceu
para comprar pão (20) e massas, preparou sua refeição e comeu.
Voltou à janela. As pessoas saíam, o ar refrescara. Ele tremia, fechou
as vidraças (21) e veio até o espelho, em cima da lareira. A não ser
em certas noites, quando recebia Marthe ou saía com ela, ou, ainda,
quando escrevia para suas amigas de Túnis, toda a sua vida estava
naquela perspectiva amarelada que o espelho refletia, de um quarto
em que o lampião a álcool, imundo, convivia com pedaços de pão.
— Mais um domingo — disse Mersault.
CAPÍTULO III
3
ALBERT CAMUS [An
o]
cuja vaidade se regozijava e sorria a seus demônios secretos, sabia
muito bem.
Ao voltar à sala, pensou que, sozinho, nunca saía no intervalo,
preferindo fumar e escutar os discos de música ligeira que tocavam
naqueles momentos. Mas nessa noite, o jogo continuava. Todas as
oportunidades de estendê-lo e renová-lo eram válidas. No momento
de sentar-se, no entanto, Marthe retribuiu a saudação de um homem
sentado algumas fileiras atrás deles. E Mersault, cumprimentando,
por sua vez, julgou ver-lhe um ligeiro sorriso no canto da boca.
Sentou-se sem reparar na mão que Marthe colocava sobre seu ombro
para falar-lhe, e que, há um instante, teria recebido com alegria,
como mais uma prova desse poder que reconhecia nele.
— Quem é? — perguntou, esperando o “quem?” perfeitamente
natural que, na verdade, não deixou de se seguir.
— Você sabe muito bem. Esse homem...
— Ah — disse Marthe... e calou-se.
— E então?
— Você quer mesmo saber?
— Não — respondeu Mersault (4).
Virou-se ligeiramente. O homem olhava a nuca de Marthe, sem
que nada em seu rosto se mexesse. Era bastante bonito, com belos
lábios bem vermelhos, mas de olhos inexpressivos. Mersault sentiu
ondas de sangue subirem-lhe às têmporas (5). Diante de seu olhar,
agora sombrio, as cores brilhantes desse cenário ideal em que vivia
há algumas horas estavam agora ofuscadas (6). Não tinha
necessidade de ouvi-lo. Tinha certeza, o homem dormira com Marthe.
E o que crescia em Mersault, como um pânico, era a idéia do que esse
homem podia dizer a si próprio. Sabia muito bem, ele que também
pensara: “você pode sempre se vangloriar...”. Só ao pensar que esse
homem, naquele instante mesmo, revia os gestos precisos de Marthe
e seu jeito de cobrir os olhos com o braço no momento do prazer,
pensar que esse homem também tentara afastar aquele braço para
ler o levantar tumultuado dos deuses sombrios nos olhos da mulher,
Mersault sentia tudo desmoronar-se dentro de si, e, sob as pálpebras
fechadas, enquanto a campainha do cinema anunciava o recomeço
do espetáculo, crescia nele um pranto de raiva. Esquecia Marthe, que
fora apenas o pretexto de sua alegria, e, agora, o corpo vivo de sua
cólera. Durante muito tempo, Mersault manteve os olhos fechados,
até o momento em que os reabriu para a tela. Um carro capotava, e
num grande silêncio de toda a orquestra, só uma das rodas
continuava a girar lentamente, arrastando no seu circulo obstinado
toda a vergonha e a humilhação nascidas do coração mau de
Mersault. Mas dentro dele, uma necessidade de certeza, fazia-o
esquecer-se de sua dignidade:
— Marthe, ele foi seu amante?
— Sim — disse ela. — Mas estou interessada no filme (7).