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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS


NARRATIVA BRASILEIRA MODERNA
DOCENTE: José Edilson de Amorim
DISCENTE: Josefa Arruda Silva Neta

Leitura do conto “Encontros na península” de Milton Hatoum em A cidade ilhada (2009)

3-
Milton Hatoum (2009) escreve os contos publicados na coletânea A cidade ilhada com
linguagem elaborada, seguindo a tradição literária que o precede, dialogando com clássicos da
literatura. O autor deixa transparecer em seus contos traços de um rico universo de relações
intertextuais e de diálogos com obras que fazem parte de seu repertório cultural.
O conto “Encontros na península” de Milton Hatoum, apresenta estreito diálogo com
temas de traição e adultérios machadianos. Narrado em primeira pessoa, conta a história de
um brasileiro desempregado em Barcelona, que foi procurado pela personagem Victoria
Soller, após ler um anúncio em um cartaz no Centro de Estudos Brasileiros, para ser seu
professor particular de língua portuguesa, pois queria aprender português do Brasil para ler
Machado de Assis e refutar as ideias de Luís Soares, seu amante português, que afirmava
serem as obras do “bruxo” inferiores às de Eça de Queirós.
Victoria é uma leitora contumaz, como se observa ao longo da narrativa. Ao ler Dom
Casmurro, obra que o professor lhe sugeriu, conclui que os narradores de Machado "são
terríveis, irônicos e geniais”. A afirmação da personagem faz-nos pensar que há nuances bem
mais significativas na obra de Machado do que na defendida pelo amante dela. Victoria
reconhece a genialidade e a superioridade de Machado, mesmo sendo um escritor de periferia
como queriam os eurocêntricos e os que têm preconceito literário. O tom irônico de Victoria
quanto aos que depreciam a literatura produzida fora da Europa é marcante, uma vez que se
dizia que um escritor da “periferia” não pode derrotar outro de “centro”.
Quase toda a narrativa se concentra em torno do romance entre Victoria Soller e seu
amante Luís Soares e suas intrigas acerca dos dois escritores, pois numa passagem da
narrativa ela afirma que Soares é louco por Eça de Queirós por dizer que Machado “foi
pérfido ao criticar cruelmente dos romances do escritor português”. É por esse motivo que
Victoria busca saber se isso é verdade, e desvendar o porquê Queirós diz que Eça é tão
superior ao ponto de desvelar-se arrogante ao citar Machado de Assis.
Através da personagem Victoria, observamos que a narrativa não seja simplesmente a
questão das críticas feitas por Machado ao escritor português Eça de Queirós, mas o fato de o
personagem Luís Soares se ver nos escritos do “bruxo”. Victoria afirma que Soares ficou
exaltado quando perguntou “por que a dor física e a miséria são menos aflitivas que a dor
moral?”. É nesse olhar de Victoria que questiona e afronta Soares que o conto revela ser tão
irônico quanto as narrativas já produzidas por Machado, pois também desvela conflitos
sociais e morais em suas obras.
Entretanto, para reverter a situação e disfarçar a sua péssima personalidade refletida
em obras de Machado, Soares continua tentando apresentar defeitos do escritor, como a
constante escrita voltada para “adultério e loucos” e para narradores que “parecem rir de tudo:
do leitor, de si próprios, de Deus e até do diabo”. Esse fator no conto é muito irônico, pois
Soares parece se descrever. O personagem amante é adúltero. Casado com Augusta, uma
senhora idosa e deficiente, ao que parece divertia-se com esse tipo de jogo amoroso, fato que
ela, Vitoria Soller, descobriu no domingo de seu último encontro. Vejamos o trecho deste
encontro que apresentar diversas marcas da descrição que o próprio Soares fez:

Eu me senti ridícula, rebaixada. Ele parou diante de uma casa em


Alfama. Havia alguma reunião lá dentro. Três mulheres de preto
entraram na casa, e eu fui atrás delas. A sala estava cheia de gente,
podia ser um velório, mas era um aniversário. Cantaram parabéns,
depois os convidados cumprimentaram uma mulher sentada, toda de
preto. Soares não estranhou minha presença. Ao contrário, fez
festa quando me viu, e me apresentou à aniversariante, que
permaneceu sentada, o colo coberto por uma manta. Soares disse:
Augusta, esta é Victoria Soller, minha professora de espanhol.
Victoria, falei muito de si à minha esposa. E, depois de dizer isso,
ele se ajoelhou e beijou o rosto da mulher. Um beijo demorado,
tão demorado que ele teve tempo de me olhar com uma expressão
cínica, voraz, de prazer mórbido. Olhar de um louco (HATOUM,
2009).

Na primeira narrativa observamos apenas a decepção de Victoria ao descobrir o mau


caráter, o cinismo e o prazer de ver a dor, o sofrimento e a miséria dos outros, de seu amante.
Mas é através dessa primeira narrativa e do desfecho desta que encontramos, na oposição
entre os escritores Machado de Assis e Eça de Queirós, a segunda narrativa que indica que as
características mais criticadas que o personagem Soares faz às obras machadianas fazem parte
de seu próprio caráter.
É possível perceber a ironia presente na narrativa hatoumiana, tanto quanto acontece
em textos de Machado, pois Victoria consegue ver nas personagens dos romances
machadianos traços ainda não revelados da personalidade do amante. Luiz Soares, por sua
vez, nutre um desprezo pelos temas eleitos por Machado que, na realidade, são aspectos que
lhe compõem a própria personalidade.

4-
O conto “Encontros na península” foi escrito em homenagem a Machado de Assis,
para abertura de simpósio internacional sobre esse escritor, ocorrido no Museu de Arte de São
Paulo, em 2008. Ao ser convidado a fazer uma saudação a Machado, Hatoum decidiu escrever
o conto dialogando com a obra machadiana.
Ora para aproveitar dos elementos literários de estilos anteriores, ora para
posicionar-se contra a retomada desses elementos, toda obra tem como referência outras obras
já existentes. Conforme Leyla Perrone-Moisés (1990) a literatura é produzida através do
diálogo entre textos, com retomadas e empréstimos. Portanto, “a literatura nasce da
literatura”, e cada texto é uma continuação de outro(s) que já existia(m). É devido a este fato
que a literatura anterior sempre dialoga com a literatura contemporânea.
Nisto, Milton Hatoum (2009) em “Encontros na península” não faz diferente. Durante
a leitura deste conto o leitor proficiente encontra uma linguagem elaborada que segue a
tradição literária que o precede, e identifica diálogos com o clássico machadiano da literatura.
Esta comparação mostra a intertextualidade presente no conto que indica as narrativas da
literatura brasileira que as duas histórias do conto promovem um diálogo intertextual. Dentre
essas, pode-se destacar alguns textos do escritor Machado de Assis que possuem marcas
relacionadas, e que mais dialogam, com o referido conto: A parasita azul; Dom Casmurro; A
igreja do diabo; A causa secreta; Memórias Póstumas; etc.

5-
A primeira comparação que pode-se ser destacada é a relação entre os personagens
Soares de “Encontros na península” e Fortunato em “A causa secreta”. Soares e Fortunato são
personagens que possuem mau caráter, e que sempre apresentam sensações de prazer ao ver o
sofrimento dos outros. Por exemplo, a cena em que Soares não dá a moeda ao mendigo: “ele
parou e se curvou para um mendigo sentado na calçada. Meu amante tirou do bolso uma
moeda, jogou-a para o alto e, quando o cobre ia cair nas mãos estendidas, Soares agarrou a
esmola e deu uma gargalhada” (HATOUM, 2009). É uma situação em que Soares se
aproveita da vulnerabilidade do mendigo para satisfazer-se. E Fortunato também possuía
traços mórbidos, basta relembrarmos da cena em que mata um rato por prazer. Este prazer
somente é encontrado através do sofrimento do(s) outro(s) para os dois personagens.
Além disso, podemos observar também o próprio nome de Soares que relembra o
personagem “Leandro Soares” que está presente nos escritos do conto “A parasita azul” de
Machado de Assis. Essa semelhança entre os nomes não foi sem motivações terceiras, pois
observa-se as intenções do autor Hatoum de utilizar os mesmos nomes por os dois
personagens apresentarem feitos e jeitos parecidos.
Assim, vemos que as respostas (ou melhor, as não respostas) estão em Machado de
Assis, cuja ficção aponta exatamente para a impossibilidade de conhecermos o mistério, o
submerso no fundo das pessoas. Não sabemos se Capitu realmente traiu Bentinho ou se o
ciúme fez o protagonista de Dom Casmurro enxergar o inferno; não sabemos se Conceição,
do conto “Missa do galo”, procurou de fato seduzir o jovem Nogueira, como também não
sabemos se de fato a jovem catalã tentou seduzir o seu professor em:

“Fingi não olhar para o decote da blusa azul, um decote em V, em


cujo vértice brilhava numa flecha bordada. [...] Meu fingimento foi
desastroso, porque ela sorriu ao fisgar meu olhar indiscreto e eu
acabei tomando um gole ainda mais prolongado e nervoso.”
(HATOUM, 2009)

Milton Hatoum, homenageando o “bruxo do Cosme Velho”, nos faz deparar, em forma
de alegorias, com enigmas semelhantes, criando personagens verdadeiras. Daí o interesse de
Victoria Soller de achar a explicação para as atitudes de Soares, outro dissimulado: “Agora
quero encontrar aquele louco nas páginas de Machado. Mas em qual conto ou romance?
Tu sabes, professor?”.
Há esse jogo de ironias no conto de Hatoum, e esse é um dos maiores feitos que
faz-nos deparar-se com narrativas de Machado. Temos a menção ao próprio diabo, ao fato do
autor rir até dele, e isso nos relembra do conto “A igreja do diabo” em que o próprio Deus
juntamente com anjos zombeteiam o diabo. Também observamos a menção ao fato de
Machado sempre estar rindo dos leitores e de si mesmo, algo muito presente em Memórias
Póstumas.

REFERÊNCIAS

HATOUM, Milton. A Cidade ilhada: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras,


1990.

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