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As várias histórias de Machado de Assis. 


Machado de assis.Joaquim Maria Machado de Assis, cronista, contista, dramaturgo, jornalista,
poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de
junho de Filho de um operário mestiço de negro e português, Francisco José de Assis, e de D.
Maria Leopoldina Machado de Assis, aquele que viria a tornar- se o maior escritor do país e um
mestre da língua, perde a mãe muito cedo e é criado pela madrasta, Maria Inês, também
mulata, que se dedica ao menino e o matricula na escola pública, única que freqüentará o
autodidata Machado de Assis.
Machado de assis.Aos 16 anos, publica em seu primeiro trabalho literário, o poema "Ela", na
revista Marmota Fluminense, de Francisco de Paula Brito. A Livraria Paula Brito acolhia novos
talentos da época, tendo publicado o citado poema e feito de Machado de Assis seu
colaborador efetivo.
Machado de assis.Publica seu primeiro livro de poesias em 1864, sob o título de Crisálidas.Em
1867, é nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial.Agosto de 1869 marca a
data da morte de seu amigo Faustino Xavier de Novais, e, menos de três meses depois, em 12
de novembro de 1869, casa-se com Carolina Augusta Xavier de Novais.Nessa época, o escritor
era um típico homem de letras brasileiro bem sucedido, confortavelmente amparado por um
cargo público e por um casamento feliz que durou 35 anos. D. Carolina, mulher culta,
apresenta Machado aos clássicos portugueses e a vários autores da língua inglesa.Sua união
foi feliz, mas sem filhos. A morte de sua esposa, em 1904, é uma sentida perda, tendo o marido
dedicado à falecida o soneto Carolina, que a celebrizou.Seu primeiro romance, Ressurreição,
foi publicado em Com a nomeação para o cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado do
Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, estabiliza-se na carreira burocrática que
seria o seu principal meio de subsistência durante toda sua vida.
Machado de assis.No O Globo de então (1874), jornal de Quintino Bocaiúva, começa a publicar
em folhetins o romance A mão e a luva. Escreveu crônicas, contos, poesias e romances para
as revistas O Cruzeiro, A Estação e Revista Brasileira.Sua primeira peça teatral é encenada no
Imperial Teatro Dom Pedro II em junho de 1880, escrita especialmente para a comemoração do
tricentenário de Camões, em festividades programadas pelo Real Gabinete Português de
Leitura.Na Gazeta de Notícias, no período de 1881 a 1897, publica aquelas que foram
consideradas suas melhores crônicas.Em 1881, com a posse como ministro interino da
Agricultura, Comércio Obras Públicas do poeta Pedro Luís Pereira de Sousa, Machado assume
o cargo de oficial de gabinete.Publica, nesse ano, um livro extremamente original , pouco
convencional para o estilo da época: Memórias Póstumas de Brás Cubas -- que foi
considerado, juntamente com O Mulato, de Aluísio de Azevedo, o marco do realismo na
literatura brasileira.Extraordinário contista, publica Papéis Avulsos em 1882, Histórias sem data
(1884), Vária Histórias (1896), Páginas Recolhidas (1889), e Relíquias da casa velha (1906).
Machado de assisDizem os críticos que Machado era "urbano, aristocrata, cosmopolita,
reservado e cínico, ignorou questões sociais como a independência do Brasil e a abolição da
escravatura. Passou ao longe do nacionalismo, tendo ambientado suas histórias sempre no
Rio, como se não houvesse outro lugar. ... A galeria de tipos e personagens que criou revela o
autor como um mestre da observação psicológica Sua obra divide-se em duas fases, uma
romântica e outra parnasiano-realista, quando desenvolveu inconfundível estilo desiludido,
sarcástico e amargo. O domínio da linguagem é sutil e o estilo é preciso, reticente. O humor
pessimista e a complexidade do pensamento, além da desconfiança na razão (no seu sentido
cartesiano e iluminista), fazem com que se afaste de seus contemporâneos."
Várias Histórias.Publicado em 1896, Várias Histórias é um exemplo perfeito da maestria com a
qual Machado de Assis desenvolveu o conto, produzindo tesouros que estão entre os mais
preciosos da Literatura Brasileira. Antes de mergulhar em suas narrativas, portanto, necessário
se faz entender um pouco da técnica do autor em tal forma artística.Machado de Assis
notabilizou-se por dominar a análise psicológica, dissecando a alma humana em busca de sua
essência, que muitas vezes é dilemática, ou seja, expressa o conflito e muitas vezes a
conciliação entre elementos opostos. É muito comum em suas narrativas depararmo-nos com
ações que, mesmo tendo uma determinada inspiração, revelam também o seu oposto, como no
caso do usurário (pessoa extremamente apegada a bens materiais, a lucro e a dinheiro) de
Entre Santos, que, em pleno desespero por causa da possibilidade da perda de sua esposa,
faz uma promessa fervorosa que tanto revela seu amor à mulher quanto seu apego à noção de
lucro, pois se perde em delírios diante da cifra de orações que se propõe a rezar.
Várias histórias.Dessa forma, a complexa visão machadiana sobre o homem vai muito além do
que os seus contemporâneos faziam. Reforça essa superioridade a intensidade que imprime ao
caráter psicossocial, entendendo a personalidade humana como fruto de forças da sociedade,
principalmente aquelas que valorizam o status, o prestígio social. É um elemento ricamente
abordado em obras-primas como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom
Casmurro.Assim, os contos de Várias Histórias constituem rico material para um estudo da
psicologia do homem e de como ele se comporta no grupo em que vive. Vemos neles a análise
das fraquezas humanas, norteadas muitas vezes pela preocupação com a opinião alheia. Em
inúmeros casos as personagens fazem o mesmo que nós: mentem, usam máscaras, para não
entrar em conflito com o meio em que estão e, portanto, conviver em sociedade. O pior é que
levam tão a sério essa máscara que chegam até a enganar a si mesmas, acreditando nela
como a personalidade real.
Várias Histórias.Por causa desses elementos temáticos, notamos uma peculiaridade nos
contos machadianos. Esse gênero, graças à sua brevidade, dá, por tradição, forte atenção a
elementos narrativos. Não há espaço, pois, para digressões, tudo tendo de ser rápido e
econômico. No entanto, no grande autor em questão o mais importante é o psicológico, o que
permite caminho para características marcantes do escritor, como intertextualidade,
metalinguagem e até a digressão, entre tantas, tornando a leitura muito mais saborosa.
A Cartomante. Foco narrativo
A historia narrada em terceira pessoa. Existe a presença onisciente do autor, que usa desta
onisciência na narração e descrição dos fatos. O uso constante de uma voz onisciente
importante para dinamizar o relato da historia acentuando os momentos dramáticos do texto e
conflitos internos dos personagens, fortalecendo seu epílogo.Sem essas características o texto
tornar-se-ia monótono, pois a primeira leitura saberíamos de antemão seu desfecho. Também
através deste recurso, o autor vai situando o leitor durante o curso da historia, ilustrando fatos e
Inter textualizando a narrativa.
Personagens.Embora a trama gire em torno de 4 personagens principais Vilela, Camilo, Rita e
a cartomante (incógnita), existem outros personagens que não participam diretamente na
trama, mas suas participações são determinantes no enredo da história.A morte da mãe de
Vilela, que é uma personagem secundária tem papel fundamental no envolvimento amoroso
dos personagens Camilo e Rita. O autor analisa e enfatiza psicologicamente todos os
personagens preconizando seus conflitos internos bem como seus temores.
Enredo.Está o tema do triângulo amoroso e do adultério, já presente nas Memórias (Brás
Cubas, Virgília, Lobo Neves). Os amigos de infância Camilo e Vilela, depois de longos anos de
distância, reencontram- se. Vilela casara-se com Rita, que mais tarde seria apresentada ao
amigo. O resto paixão, traição, adultério.A situação arriscada leva a jovem a consultar-se com
uma cartomante, que lhe prevê toda a sorte de alegrias e bem- aventuraças.O namorado,
embora cético, na iminência de atender a um chamado urgente de seu amigo Vilela,
atormentado pela consciência, busca as palavras da mesma cartomante, que também lhe
antecipa um futuro sorridente.Dois tiros queima-roupa ao lado do cadáver de Rita o esperavam.
A vitória do ceticismo coroa o episódio.Conto que surpreende pela excelente estrutura
narrativa, dividida em três partes.
Enredo.Na primeira, introdutória, fica-se sabendo que Rita, dotada de espírito ingênuo, havia
consultado uma cartomante, achando que seu amante, Camilo, deixara de amá- la, já que não
visitava mais sua casa. Desfeito o mal-entendido, faz-se um flashback que vai explicar como se
montou tal relação. Camilo era amigo, desde longínqua data, de Vilela. Tempos depois, este se
casa com Rita. A amizade estreita a intimidade entre Camilo e Rita, ainda mais depois da morte
da mãe dele. Quando sente sua atração pela esposa do amigo, tenta evitar, mas, enfim, cai
seduzido. Até que recebe uma carta anônima, que deixava clara a relativa notoriedade da sua
união com a esposa do seu amigo. Temeroso, resolve, pois, evitar contato com a casa de
Vilela, o que deixa Rita preocupada.Terminada essa recapitulação, vai-se para a parte crucial
do conto. Camilo recebe um bilhete de Vilela apenas com a seguinte mensagem: Vem já, já.
Seu raciocínio lógico já faz desconfiar que o amigo havia descoberto tudo. Parte de imediato,
mas seu tílburi (espécie de carruagem de aluguel que equivaleria, hoje, a um táxi) fica preso no
trafego por causa de um acidente. Nota uma estranha coincidência: está parado justamente ao
lado da casa da cartomante. Depois de um intenso conflito interior, decide consultá-la. Seu
veredicto dos mais animadores, prometendo felicidade no relacionamento e um futuro
maravilhoso. Aliviado, assim como o tráfego, parte para a casa de Vilela. Assim que foi
recebido, pôde ver, pela porta que lhe aberta, além do rosto desfigurado de raiva de Vilela, o
corpo de Rita sobre o sofá. Seria, portanto, a próxima vítima do marido trado.
Enredo.Note neste conto sua estrutura em anticlímax, pois tudo nele (já a partir da citação
inicial da famosa frase de Hamlet: há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa
filosofia) nos prepara para um final em que o misticismo, o mistério imperaria. No entanto, seu
final o mais realista e lógico, já engendrado no próprio bojo do conto. Reforça esse aspecto o
ritmo da narrativa, que é lento em sua maioria, contrastando com seu desfecho, por demais
abrupto. E não se esqueça da presença de um quê de ironia nesse contraste entre corpo da
narrativa e o seu final.
Entre Santos.O conto Entre Santos, de Machado de Assis, trata-se de uma narrativa dentro de
outra narrativa, que em determinado momento do caminho para mais outra. Um discreto
narrador em terceira pessoa abre, já no primeiro parágrafo, dá espaço para um narrador em
primeira pessoa, testemunha de um acontecimento surpreendente.Enquanto era capelo na
igreja de São Francisco de Paula, pode surpreender, numa noite, o diálogo entre santos que
durante o dia eram estátuas no templo. Discutiam o caráter humano, deslindado nas pessoas
que vinham rezar diante deles. S. João Batista e S. Francisco de Paula eram os autores dos
comentários mais ácidos em relação ao gênero humano. Um deles faz questão de lembrar uma
adultera que vinha pedir ajuda para se afastar de tal relacionamento, mas que, enquanto orava,
rememorava momentos ardorosos, o que diminua a fé, a ponto de fazê-la abandonar o recinto
sem nem mesmo completar seu pedido. Tudo isso se contrapõe aos comentários de São
Francisco de Sales.
Entre Santos.Para reforçar a sua teoria de que não se deve perder a esperança no ser
humano, conta a história de um avaro que cai no desespero quando sua esposa desenvolve
erisipela (doença que se manifesta pela inflamação da pele). Apesar de o pensamento corrente
de que a sua agonia seria provocada pelo receio de despesas funerárias, na verdade movido
por amor. E para conseguir a graça da salvação, pede a intermédio do narrador divino,
oferecendo em troca uma perna de cera. No entanto, seu raciocínio rápido se transfere para a
ida da moeda que iria custar tal artefato. Passa então a pensar em pagar em espécie mesmo.
Mas, sovina como era, tal contribuo seria por demais custosa. Apesar disso, uma opinião que
não chega a formular por completo, deixando-a no limbo de sua mente. Até que salta para um
postulado um tanto cômodo: acredita, iludindo-se convenientemente, que o espiritual é mais
importante do que o material, por isso se propõe a, no lugar da moeda, rezar 300 padres-
nossos. Nesse ponto, o seu caráter materialista entranha-se com o espiritualista, pois imagina
ser muito mais lucrativo rezar 300 padres-nossos e 300 ave-marias. De 300 passa para 1000,
mas, ao invés de expressar e, portanto, efetuar sua promessa, perde-se, maravilhado, diante
de cifra tão alta.
Entre Santos.Note nesse conto o esquema da narrativa. Um narrador lembra uma história que
foi contada por um padre e que acaba relatando a história narrada por um santo. Essa trama
dentro de trama lembra um outro tipo de texto que também usava esse mesmo procedimento e
que também apresentava histórias mirabolantes: As Mil e Uma Noites.Repare também a
postura dos santos, que se assemelha de Machado de Assis, na medida em que são
devassadores da alma humana. Tal atividade inspira ou o descrédito próximo da impaciência
diante de nossas fraquezas, assim como uma atitude de tolerância misturada com esperança.
Pode- se acreditar que Machado tenha, em sua carreira, assumido um pouco das duas.
Finalmente, observe como o conto consegue apresentar o caráter dilemático da mente humana
pela maneira como o avaro lida com sua promessa. Mostra extremo materialismo ao entregar-
se ao fervor espiritualista, conseguindo, talvez cínica, talvez inconscientemente, conciliar esses
opostos.
Uns Braços.O presente escrito tem como propósito analisar criticamente o conto Uns braços,
de Machado de Assis, buscando identificar nesse microcosmo da narrativa machadiana
elementos que evidenciem uma perspectiva Realista. Dentre esses elementos, enfatizaremos a
análise psicológica das personagens e a desconstrução do discurso romântico.Publicado
originalmente na Gazeta de Notícias, em 05/11/1885, já na maturidade do escritor, e,
posteriormente em 1893, no volume de contos intitulado Várias Histórias, o conto em análise se
constitui em uma urdidura engenhosa, que envolve o leitor, conduzindo-o a uma atmosfera de
romance, que, ao término da trama se dissolve, evidenciando a oposição entre a fantasia e a
realidade, e a conseqüente prevalência da moral socialmente estabelecida e das instituições
sobre os sonhos e as pulsões humanas.
Uns braçosTratemos de forma resumida, sob o risco evidente de simplificação, do enredo de
Uns braços. Inácio, rapaz de 15 anos, filho de um barbeiro, é colocado pelo pai como estagiário
de Borges. Este vive maritalmente com D.Severina, e abriga Inácio em sua casa, irritando-se
constantemente com as distrações do moço. A verdade é que Inácio se apaixona por D.
Severina; se encanta especialmente com os braços da jovem senhora. Quando percebe os
olhares de Inácio, a mulher passa ao conflito: ele ainda é muito jovem, ela é uma mulher
comprometida. Mas são apenas olhares. Em um domingo Borges sai de casa, e D. Severina
observa que Inácio dorme suavemente na rede. O rapaz está a sonhar com ela e, neste
instante se dá uma incrível coincidência: ao sonhar com o beijo de D. Severina, Inácio é
realmente beijado pela mulher. Depois do ato impulsivo, D. Severina passa a se reprimir pelo
que fizera e passa a tratar o rapaz secamente e a cobrir os braços com um xale. Inácio, ainda
mais distraído da realidade com seus sonhos, não percebe a mudança da senhora. Após uma
semana, Borges irá dispensá-lo sem nenhum sinal de rudez, embora não permita que Inácio se
despeça de Severina, alegando que ela estaria com muita dor-de-cabeça. Os anos se passam
e Inácio nunca teve sensação igual à daquele beijo, que para ele não passara de um sonho.
Uns braços.Dentro da tradição Realista, o conto privilegia o cenário doméstico da família
burguesa, na segunda metade do século XIX: “Passava- se isto na Rua da Lapa, em 1870.”. O
episódio em questão suscita a temática do adultério feminino, ainda que de forma
extremamente sutil, se comparado àqueles relatados em Madame Bovary (1857) ou em O
Primo Basílio (1878). A herança de Flaubert também se evidencia no tema da leitura e do
devaneio romântico. Assim como Emma Bovary, o personagem Inácio alimenta uma visão de
mundo romântica a partir da leitura de folhetins:“Inácio passava-os [os domingos] todos ali no
quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros
tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. [...]Estava cansado,
dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em
um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que
todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a
verdade é que os tinham.”Essa cena da leitura culmina com o sono e com o sonho de Inácio,
que se concretizará sem que ele perceba. Curiosamente, ao contrário das narrativas
fundadoras da escola realista, em Uns Braços não é a mulher quem se desprende da realidade
a partir da imersão em um universo romântico, mas o rapaz.
Uns braços.Desse modo, à superficialidade de Inácio contrapõe-se a profundidade da
personagem feminina. A análise psicológica, como traço Realista, se evidencia na exploração
do conflito de D. Severina. A descrição física da personagem é o ponto de partida para revelar
o caráter ambíguo típico da mulher machadiana:“Não se pode dizer que era bonita; mas
também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os
cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe
lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos
floridos e sólidos.”O fato de não se poder defini-la como sendo bonita ou feia, os cabelos
presos, o lenço escuro e a ausência de adornos apontam para a sexualidade reprimida de
mulher casada, condição sintetizada pelo paradoxo dos “vinte e sete anos floridos e sólidos”. A
sensualidade e a feminilidade mascaradas pela solidez do papel social atribuído à mulher da
época.
Uns braços.Esse equilíbrio aparente é rompido quando D. Severina percebe os olhares de
Inácio:"Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra
cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez,
desconfiou alguma coisa Rejeitou a idéia logo, uma criança! Mas há idéias que são da família
das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha
quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho
de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi
rejeitada, antes afagada e beijada). E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as
distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim."O
monólogo interior revela que a protagonista vai, gradualmente, admitindo a idéia de estar sendo
admirada pelo rapaz, passando, inclusive a comprazer-se pelo fato de ser desejada (ou
desejável). Nesse sentido, não temos em D. Severina a constituição linear das heroínas
românticas, dada a sua volubilidade. Ademais, não está ela apaixonada pelo jovem, o qual,
longe de qualquer idealização, sequer é visto como homem. De certo modo, a protagonista
apaixona-se por si própria ao descobrir sua feminilidade.
A desejada das gentes.Conto em que o protagonista rememora a um interlocutor a história de
Otília, cobiçada dama da sociedade que costumava desenganar todos que tentavam
estabelecer uma relação com ela. O narrador lembra que chegou a fazer uma aposta com seu
grande amigo, sócio de uma banca de advocacia, para ver quem angariaria o coração da
mulher.A primeira consequência é o final da amizade tão forte e o autoexílio do companheiro
em um grotão do país, onde acabara morrendo cedo. A outra consequência é o narrador perder
o controle de seus sentimentos. No entanto, apesar da maneira diferente com que o tratava,
destacando-o dos demais pretendentes, deseja deste apenas amizade. Houve um momento
em que o quadro parecia ter mudado. Primeiro, o narrador havia ficado abatido com a morte de
seu pai. Otília conforta-o, o que os aproxima. Pouco depois, era o tio dela, praticamente um
tutor, quem falece. Com a equivalência garantida pela dor, o apaixonado imagina ter caminho
aberto para o casamento. Mas seu pedido é recusado. Some por alguns dias, um pouco por
despeito, um pouco porque mergulhado em compromissos burocráticos referentes à morte do
seu parente. Quando volta, encontra uma carta de Otília, instando que a amizade se reatasse.
Promete, em troca, não se casar com ninguém. E tudo fica nesse pé, até que a dama adoece,
definhando aos poucos. Dois dias antes de morrer, casa-se com o narrador. O único abraço
que se dão foi durante o último suspiro dela, como se quisesse não o aspecto corporal da
união, mas algo próximo do espiritual.
A causa secreta.O conto A Causa Secreta um dos mais fortes de Machado de Assis. Sua
estrutura narrativa lembra um pouco a de A Cartomante, com início abrupto, flashback e
retomada do eixo em direção ao desfecho. Machado faz talvez um de seus melhores
"desenhos psicológicos". Revela-nos a personalidade de um sádico, capaz de realizar "boas
ações" desde que estas lhe permitam o exercício de seu prazer. A descrição da tortura a que
submete um rato página antológica na literatura brasileira.Em 3 pessoa, o narrador onisciente
constitui uma notável caracterização psicológica em que revela, ao fazer o estudo do
personagem Fortunato, o pince do prazer que conseguido na contemplação da desgraça
alheia. O motivo do conto explicar o verdadeiro sentido do termo "sadismo". Conta a estória de
dois homens que, após um salvar a vida do outro e passar-se algum tempo, tornam-se sócios.
Mas pouco a pouco um deles vai demonstrando tendências sádicas, torturando animais, fato
que atordoa a esposa. Quando ela morre, Fortunato, o sádico, presencia o amigo beijar a testa
da mulher e derreter-se em choro, saboreando o momento de dor do amigo que lhe traíra.Um
conto naturalista. Ainda que a ambientação seja burguesa, os personagens parecem ratos de
laboratório, uma analogia bastante explorada pelo autor na cena mais forte do texto em que o
personagem Fortunato tortura um rato, cortando-lhe as patas lentamente, revelando todo o
sadismo (patologia) que até então estivera oculto de todos, inclusive dos leitores.
A causa secreta.A análise do conto A Causa Secreta, mostra que na perfeita normalidade
social de Fortunato - um senhor rico, casado e de meia-idade, que demonstra interesse pelo
sofrimento, socorrendo feridos e velando doentes - reside, na verdade, um sádico, que
transformou a mulher e o amigo num par amoroso inibido pelo escrúpulo. Este escrúpulo, que
gera o sofrimento do par, a causa secreta do prazer de Fortunato e de sua atitude de
manipulação de que o rato, no conto, símbolo (Garcia, o protagonista, estaca perante a
representação do horror. Fascinado perante o gesto frio de Fortunato, Garcia não faz sequer
um gesto. Apenas contempla o sócio torturar lentamente um rato. Cortes meticulosos, pata a
pata, precediam a queima do mesmo no fogo. O lento ritual prolongava o prazer. O narrador no
subsumi a cena em poucas palavras, mostrando-a por inteiro ao leitor).Assim, de um narrador
onisciente, nos principia o relato de um triangulo amoroso, trama comum a diversas faces
machadianas, enriquecida aqui de uma novidade incomum nas demais, o sadismo.
A causa secreta.Começa-se com a informação de três pessoas, uma calma (Fortunato), outra
intrigada (Garcia) e ainda uma terceira, tensa (Maria Luisa). Garcia havia visto pela primeira
vez Fortunato durante a apresentação de uma peça de teatro, um dramalhão cosido a facadas.
Este dava uma atenção especial as cenas, quase como se se deliciasse. Vai embora justo
quando a obra entra em sua segunda parte, mais leve e alegre.Mais tarde, Garcia volta a vê-lo
quando do episódio de um esfaqueado, para o qual Fortunato dedica atenção especial durante
o seu estagio critico, tornando-se frio, indiferente quando a vítima melhora. Fica, portanto,
seduzido pelo mistério sobre a explicação, a causa secreta de um comportamento estranho (no
se deve esquecer que a postura de Garcia assemelha-se, guardadas as devidas proporções (já
que no dotado de onisciência), aos santos de Entre Santos, pois dotado da capacidade de
prestar atenção personalidade humana. , pois, quase um álter ego de Machado de
Assis).Tempos depois, passam a se encontrar constantemente no mesmo transporte, o que
solidifica uma amizade. a oportunidade para que o homem misterioso convide o amigo para
conhecer casa e esposa. Estreitada a relação, duas consequências surgem. A primeira a
identificação entre Garcia e Maria Luisa, mulher do amigo. A sorte que não se desenvolve nada
mais do que isso. A segunda a clínica que os dois homens vão abrir em sociedade. Nela,
Fortunato vai-se destacar como um médico atencioso, principalmente para os doentes que se
encontram no pior estágio de sofrimento.
A causa secreta.E para aprimorar suas técnicas, pelo menos o que confessa a cônjuge, o
personagem dedica-se a dissecar animais. Chocada com o sofrimento dos bichos, Maria Lusa
pede intervenção a Garcia, que faz com que Fortunato não praticasse mais tal ato, pelo menos,
ao que parece, na clínica, tão perto da esposa.A narrativa torna-se mais critica quando
Fortunato flagrado vingando-se de um rato que supostamente teria roído documentos
importantes: de forma paciente vai cortando as patas e rabo do bicho e aproximando do fogo,
com cuidado para que o animal não morresse de imediato, possibilitando, assim, o
prosseguimento do castigo. Maria Luisa havia pedido para Garcia interromper aquela cena, que
foi a que justamente provocou o início do conto. A partir dai, encaminhamo-nos para o
desfecho.
A causa secreta.A mulher desenvolve tuberculose. quando seu marido dedica-lhe atenção
especial, extremada no momento terminal, ao qual ela não resiste. O final do texto crucial para
a total compreensão da história. Velando o corpo fica Garcia, enquanto Fortunato dorme. Em
certa hora da noite, este acorda e vai até o local onde está a defunta. Vê Garcia dando um
beijo naquela que amou. Ia dar um segundo beijo, mas não aguentou, entregando-se as
lágrimas. Fortunato, ao invés de ficar indignado com a possibilidade de triângulo amoroso,
aproveitou aquela dor deliciosamente longa. Descobre-se, assim, o seu caráter
sádico.interessante notar como o autor deslinda aqui um comportamento doentio que norteia
ações que aos olhos da sociedade podem parecer da mais completa bondade e dedicação ao
próximo. Uma temática muito comum em Machado de Assis a ideia de que a aparência opõe-
se radicalmente a essência.
Trio em lá menor.Este é um conto alegórico que apresenta a história de Maria Regina,
sofredora de um dilema, pois não consegue decidir-se entre dois homens, Miranda e Maciel.
Este se apresenta como cheio de vivacidade, alegria, mas que logo se transforma em
futilidade, pois está apegado a aspectos mundanos, como fofocas e moda. Aquele é mais velho
e, portanto, mais sério e circunspeto. Não tem a vivacidade do primeiro, mas é uma companhia
de mais conteúdo, que não enfastia.É um conflito que lembra Esaú e Jacó. No final a heroína
se perde nos sonhos, em que vê, como uma metáfora de sua situação, a encantadora imagem
de uma estrela dupla que se aparenta com um único astro. Termina por ouvir uma voz
fantástica que lhe diz: É a tua pena, alma curiosa de perfeição; a tua pena é oscilar por toda a
eternidade entre dois astros incompletos, ao som desta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...
Fica a tese de que a conciliação de opostos é impossível e a busca da perfeição, conciliadora
dessas contradições, só faz mergulhar na angústia da indecisão.
 Adão e Eva.Outro conto que apresenta o esquema de história dentro de história. Em meio à
degustação de doces, começa a discussão sobre quem é mais curioso: o homem ou a mulher?
Um dos convivas apresenta uma narrativa com um quê de enigmático e que vem de um livro
apócrifo (livro que não é reconhecido pela Igreja e que, portanto, está fora da Bíblia) da Bíblia.É
um relato que inverte a história de Adão e Eva. Primeiro porque apresenta a criação do
Universo como fruto da ação do Diabo Deus é que ia consertando as falhas provocadas pela
malignidade. Dentro desse aspecto está a criação do homem e da mulher. Na forma crua,
estavam dominados por instintos ruins. O toque divino atribui-lhes alma, tornando-os sublimes,
sendo levados para o Paraíso. Inconformado com a destruição de sua obra, mas
impossibilitado de entrar no campo divino, convence sua criação dileta, a serpente, a tentar
Adão e Eva a comerem o fruto proibido. De pronto o animal o atende, mas, por mais que
insistisse, não obteve sucesso. Satisfeito com tal proeza de caráter, Deus conduz os dois para
o caminho da glória.Termina assim o relato que deixa incrédulos entre a plateia, a maioria
achando que tudo não passava de brincadeira do seu narrador. No entanto, o comentário final
de um dos convivas é bastante interessante: Pensando bem, creio que nada disso aconteceu;
mas também, D. Leonor, se tivesse acontecido, não estaríamos aqui saboreando este doce,
que está, na verdade, uma coisa primorosa. Além de o conto apresentar o oposto (mais uma
vez a visão dilemática machadiana!) de uma questão, ou seja, uma outra história da criação, há
uma ideia já desenvolvida, por exemplo, em Dom Casmurro: a graça de nossa existência está
justamente na imperfeição em que se processa.
O Diplomático..Outro conto que trata das fraquezas humanas. Trata-se da história de Rangel,
homem de sonhos gigantescos e ações minúsculas, quase nulas. Tanto que alcança a meia
idade sem ter casado, pois sempre procurava uma mulher de posição.É mais uma personagem
machadiana, pois, preocupada com status, prestígio social, não enxergando o prejuízo que tal
comportamento trazia para si mesma. Até que flagramo-la em um encontro de amigos. Tentará
seu último golpe, considerado pelo narrador um amor de outono, dessa vez sobre a jovem
Joana. Mas, típico de seu comportamento, vacila muito entre a idéia e a ação. Até que surge
um furacão em meio à festa: Queirós. Chega de forma repentina e da mesma maneira
consegue a atenção e o carisma de todos os presentes, menos do protagonista, que sente um
misto de ciúme e inveja, piorado quando seu alvo afetivo, Joana, torna-se mais uma das
conquistas do novo conviva. Derrota fragorosa, que fica clara quando o protagonista mergulha
no choro no instante em que está sozinho, de volta à sua casa. É o resultado da inércia
inutilizando toda uma vida.
O Enfermeiro.O conto O Enfermeiro está, certamente, entre os melhores contos de Machado
de Assis. Narrado em primeira pessoa a um interlocutor imaginário, a história do último
enfermeiro do rabugento coronel Felisberto, que esgana seu indócil paciente.Sofre o drama de
consciência, intensificado pela herança do pecúlio do velho, mas a culpa arrefece quando se v
reconhecido por sua dedicação extrema. São todos exemplos maduros do realismo
machadiano.O narrador nos relata a história de uma vez em que tinha ido trabalhar como
enfermeiro para um riquíssimo senhor de nome Felisberto. Era tão rico quanto ranheta, o que
havia motivado os inúmeros pedidos de demisso de enfermeiros anteriores. Por causa disso, o
narrador tratado pelo padre da pequena cidade interior em que estão com toda a atenção, já
que quase a última esperança.Corre a seu favor o fato de o senhor estar muito doente e,
portanto, beira da morte. Por sorte, o protagonista se mostra como o mais paciente que já havia
sido contratado, o que angaria alguma simpatia do velho. Mas a lua-de-mel durou pouco
tempo: logo o doente mostrou o seu gênio e começou a tratar rispidamente o enfermeiro. De
primeira, aguentou, até que atingiu seu limite e pediu demissão. Surpreendentemente, o
oponente amansou, pedindo desculpa e confessando que esperava do enfermeiro tolerância
para o seu gênio de rabugento. As pazes voltaram, mas por pouco tempo. A tortura retoma, até
o momento em que o idoso atira uma vasilha d’água que acerta a cabeça do enfermeiro. Este,
cego com a dor, voa sobre o velho, terminando por matá-lo esganado.
O Enfermeiro.Começa então o processo mais interessante do conto. O narrador reme-se de
remorso, mas começa a arranjar desculpas em sua mente para arejar sua consciência (trata-se
de uma temática muito comum em Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas
ela já havia aparecido, num capítulo em que o narrador a metaforizava. Quando fazemos
coisas erradas, como se nossa consciência ficasse numa casa sufocada, com todas as portas
e janelas fechadas. Então inventamos desculpas, muitas vezes nos enganamos mesmo,
lembramos de outros fatos, como se fosse possível, por meio de uma boa ação, real ou
inventada, compensarmos falhas, ou seja, abrir a janela da casa e arejar a consciência): o
velho tinha um aneurisma em estágio terminal que iria estourar a qualquer hora mesmo. No
entanto, para complicar sua situação, quase que como uma ironia, o testamento do velho
declara que o enfermeiro era o único herdeiro. O protagonista mergulha num conflito interior,
que pensa eliminar doando a fortuna, mais uma maneira de tentar arejar a consciência.Quando
as pessoas vem elogiar sua paciência com um velho tão insuportável, resolve elogiá-lo o
máximo possível em público, como maneira de ocultar para a opinião alheia todo vestígio do
crime. O pior que acaba até se iludindo, eliminando de toda a sua consciência qualquer resto
de crise. Nem sequer se livra, pois, da herança. Chega a fazer doações, como recurso de,
digamos, arejamento de consciência. Fica, portanto, a ideia de que muitas vezes o universo de
valores internos (o enfermeiro foi criminoso ao assassinar Felisberto) não corresponde ao de
valores externos (uma cidade inteira o elogia pela paciência e dedicação a um velho
rabugento). E o mais incrível que, mesmo sabendo do seu próprio universo interno e, portanto,
da verdade, o narrador ilude a si mesmo. A literatura machadiana encara esse processo como
comum no ser humano.
Mariana.É um conto de lição cruel, mas realista, ao narrar as mudanças por que passou uma
paixão no espaço de 18 anos.Evaristo e Mariana mantiveram uma relação tórrida e
descabelada, entrando em crise no momento em que, por pressões, ela estava para se casar
com Xavier. Diante do amante, nosso protagonista, jura que a união oficial não ia diminuir a
intensidade do enlace que, clandestinamente, estabeleciam. Pouco depois, por meio de
flashback, sabemos que Mariana havia tentado suicídio, provavelmente em nome do
sentimento que tinha por Evaristo, conflitante com a união que iria contrair. Este é impedido de
vê-la. Parte, então, para a Europa num quase autoexílio, desligando-se quase que por
completo das coisas do Brasil.Sem grande explicação, 18 anos depois sente necessidade de
voltar à pátria. Ao chegar, visita Mariana, encontrando-a mergulhada na dor de ter o marido,
Xavier, doente terminal. É o que o impede de um contato mais aprofundado. Com a morte do
moribundo, fica sabendo por meio de várias pessoas da intensidade do amor que havia entre o
casal, o que já tinha sido indicado pela dor dela quando do último suspiro do esposo. Pouco
depois, flagra-a voltando da igreja e percebe que ela fez de conta que não o havia visto.Uma
paixão tão fulminante fora esmagada pelo tempo, pois terminava de forma tão fria, ela
evitando-o, ele encarando o fato num misto de indiferença e chiste.
Viver!Conto de temática alegórica e grandiosa. Além disso, sua estrutura aproxima-o por
demais do teatro. Trata-se do diálogo entre Ahasverus e Prometeu.A primeira personagem
recebera a maldição de, por menosprezar Cristo em seu calvário, vagar pelo mundo sem
encontrar abrigo e ser desprezada até que o último homem desaparecesse. Sua longevidade,
portanto, deu-lhe uma experiência massacrante sobre o gênero humano.A segunda
personagem pertence à mitologia clássica e havia criado o homem, sendo, portanto,
condenada pelos deuses a ter uma águia comendo seu fígado por toda a eternidade. Diante
dessa revelação, Ahasverus fica indignado e faz com que Prometeu volte para o seu castigo,
de onde havia escapado. No entanto, a entidade mitológica declara que faria de Ahasverus o
início de uma nova espécie, mais forte do que a anterior, que estava findando na figura do
rejeitado, que agora se tornaria o rei dessa nova raça. Diante desse futuro grandioso,
Ahasverus mergulha em devaneios, feliz com sua nova condição, esquecendo até o fato de
estar morrendo para realizá-la. Como observam duas águias que voavam por ali, ainda na
morte mostra um enorme apego à vida.
O cônego ou metafísica do estilo.
Conto metalinguístico que em alguns aspectos antecipa as sondagens introspectivas e
intimistas da prosa modernista.É a história de um cônego que se dedicava à escritura de um
sermão. Tem sua tarefa interrompida porque não conseguia achar um adjetivo que se ligasse
adequadamente ao substantivo que havia colocado em seu texto. Esforçava-se, mas a palavra
não vem.Enquanto o protagonista espairece, para descansar a mente e buscar inspiração, o
narrador mergulha no cérebro da personagem, defendendo a ideia de que as palavras têm
sexo. Assim, o substantivo, masculino, que é nomeado como Sílvio, está procurando um
adjetivo, feminino, designado Sílvia. É interessante nesse ponto como todo o universo de
elementos que povoam nossa mente sonhos, impressões, sensações, lembranças é bem
metaforizado ao ser apresentado como os obstáculos que o casal tem de suplantar até que
finalmente consiga efetuar o seu encontro. Concretizada a união, o estalo mental surge para o
cônego. Finalmente conseguia dar prosseguimento a redação de seu sermão, terminando-o.

O Uraguai, de Basílio da Gama

1. Basílio da Gama
2. Basílio da Gama (1741-1795) Ingressa na Cia. de Jesus aos 16 anos, MAS é expulso, pouco
depois, por fazer sátiras constantes aos padres. Tenta o contato novamente com os jesuítas
em Roma, MAS é logo expulso novamente por fazer poemas sarcásticos contra seus
professores.Ao voltar para o Brasil, é condenado por Pombal ao exílio em Angola por práticas e
ligações jesuíticas, abominadas e perseguidas no período.
3. Contexto da obra• Publicada em 1769;• Puxa-saco do Marquês de Pombal (1º Ministro que
decretou a expulsão dos jesuítas do Brasil, em 1759);• Antijesuitismo;• Dedicado a Francisco
Xavier de Mendonça Furtado (Irmão do Marquês de Pombal);• Arcadismo: Resgate da epopeia;
4. Estrutura Epopeia, que é um gênero clássico. (Dedicatória, Invocação, Proposição,
Narrativa, Epílogo) MAS Reverteu o esquema épico tradicional: 1) começa em plena ação; 2)
elimina a mitologia; 3) harmoniza a paisagem à ação; 4) trata os indígenas como matéria
poética, não apenas como algo exótico.Dividido em 5 Cantos - Versos decassílabos brancos,
sem estrofação
5. TemaLuta pela expulsão dos Jesuítas do território dasMissões, por ocasião do tratado de
Madrid (1750), tendo como herói o português Gomes Freire de Andrade. Basílio da Gama
alega que os jesuítas apenasdefendiam os índios para serem eles mesmo seus senhores.
6. Personagens• General Gomes Freire de Andrade: chefe das tropas portuguesas;• Catâneo:
chefe das tropas espanholas;• Cacambo: chefe indígena;• Cepé: guerreiro índio;• Balda: jesuíta
administrador de Sete Povos das Missões;• Caitutu: guerreiro indígena; irmão de Lindóia;•
Lindóia: esposa de Cacambo;• Tanajura: indígena feiticeira.
7. Enredo Canto I: Saudação ao General Gomes Freire de Andrade. Chegada de Catâneo.
Desfile das tropas. Andrade explica as razões da guerra. A primeiraentrada dos portugueses
enquanto esperam reforço espanhol.O poeta apresenta já o campo de batalha coberto de
destroços e de cadáveres, principalmente de indígenas, e, voltando no tempo, apresenta um
desfile do exército luso-espanhol, comandado por Gomes Freire de Andrade.
8. Canto II: Partida do exército luso-castelhano. Soltura dos índios prisioneiros. É relatado o
encontro entre os caciques Cepê e Cacambo e ocomandante português, Gomes Freire de
Andrade, à margem do rio Uruguai. O acordo é impossívelporque os jesuítas portugueses se
negavam a aceitara nacionalidade espanhola. Ocorre então o combate entre os índios e as
tropas luso-espanholas. Os índios lutam valentemente, mas são vencidos pelas armas de fogo
dos europeus. Cepé morre em combate. Cacambo comanda a retirada.
9. Canto III: O General acampa às margens de umrio. Do outro lado, Cacambo descansa e
sonha com o espírito de Cepê. Este incita-o a incendiar o acampamento inimigo. Cacambo
atravessa o rio e provoca o incêndio. Depois, regressa para a sede. Surge Lindóia. A mando de
Balda, prendem Cacambo e matam-no envenenado. Balda é o vilão da história, que deseja
tornar seu filho Baldeta,cacique, em lugar de Cacambo. Observa-se aqui uma forte crítica aos
jesuítas. Tanajura propicia visões a Lindóia: a índia “vê” o terremoto de Lisboa, a reconstituição
da cidade pelo Marquês de Pombal e a expulsão dos jesuítas.
10. Importante!• A ideia de choque cultural se sobrepõe à celebração do herói;• Há antecipação
de tendências da 1ª Geração Romântica (indianismo);• A descrição rápida e densa da natureza
também é um prelúdio do Romantismo.

Morte e Vida Severina


O poema dramático "Morte e Vida Severina" é a obra-prima do poeta pernambucano João Cabral de
Melo Neto (1920-1999). Escrito entre 1954 e 1955, trata-se de um auto de Natal de temática
regionalista.
O poeta, que nasceu no Recife, transformou em poesia visceral a condição do retirante nordestino, sua
morte social e miséria.
Resumo da Obra
Morte e Vida Severina retrata a trajetória de Severino, que deixa o sertão nordestino em direção ao
litoral em busca de melhores condições de vida. Severino encontra no caminho outros nordestinos que,
como ele, passam pelas privações impostas ao sertão.
A aridez da terra e as injustiças contra o povo são percebidas em medidas nada sutis do autor. Assim, ele
retrata o enterro de um homem assassinado a mando de latifundiários.
Assiste a muitas mortes e, de tanto vagar, termina por descobrir que é justamente ela, a morte, a maior
empregadora do sertão. É a ela que devem os empregos, do médico ao coveiro, da rezadeira ao
farmacêutico.
Nota, ao vagar pela Zona da Mata, onde há muito verde, que a morte a ninguém poupa. Retrata,
contudo, que a persistência da vida é a única a maneira de vencer a morte.
No poema, Severino pensa em suicídio jogando-se do Rio Capibaribe, mas é contido pelo carpinteiro
José, que fala do nascimento do filho.
A renovação da vida é uma indicação clara ao nascimento de Jesus, também filho de um carpinteiro e
alvo das expectativas para remissão dos pecados.
Personagens
Severino é o narrador e personagem principal, um retirante nordestino que foge para o litoral em busca
de melhores condições de vida.
Seu José, mestre carpina, é o personagem que salva a vida de Severino, impedindo este de tomar sua
própria vida.
Análise da Obra
Morte e Vida Severina é um poema de construção dramática com exaltação à tradição pastoril. Ele foi
adaptado para o teatro, a televisão, o cinema e transformado em desenho animado.
Por meio da obra, João Cabral de Melo Neto, que também era diplomata, foi consagrado como autor
nacional e internacional.
Como diplomata, o autor trabalhou em Barcelona, Madri e Sevilha, cidades espanholas que permitiram
clara influência sobre sua obra.
João Cabral de Melo Neto foi seduzido pelo realismo espanhol e confessou ter, daquela terra, o reforço
ao seu anti idealismo, antiespiritualismo e materialismo.
Os instrumentos lhe permitiram escrever com mais clareza sobre o nordeste brasileiro em Morte e Vida
Severina e outros poemas.
A obra é, acima de tudo, uma ode ao pessimismo, aos dramas humanos e à indiscutível capacidade de
adaptação dos retirantes nordestinos.
O poema choca pelo realismo demonstrado na universalidade da condição miserável do retirante,
desbancando a identidade pessoal.
Trechos da Obra
Para compreender melhor a linguagem que João Cabral utiliza na obra, confira abaixo alguns trechos:
O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de
romaria, deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas
Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.
O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR POR SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O
VERÃO
— Antes de sair de casa aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida. Sei que há
muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas sei que há simples arruados, sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário cujas contas fossem vilas, de que a estrada fosse a linha. Devo rezar tal
rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila.
CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR
TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA
— Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva só a morte
tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida severina (aquela
vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais severina para o homem que retira).
O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE
— Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias. O que me fez retirar não foi a grande cobiça o
que apenas busquei foi defender minha vida de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta se na
serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda. Mas
não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais
mínima.
O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE DE NADA
— Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não
vale mais saltar fora da ponte e da vida nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga é difícil
defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina mas se responder não
pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.

RESUMO

Na abertura da peça, o retirante Severino se apresenta à plateia e se dispõe a narrar sua trajetória. Sai do
sertão nordestino em direção ao litoral, em busca da vida que escasseava em sua terra. Ao longo do
caminho, mantém uma série de encontros com tipos nordestinos. Logo de saída encontra os irmãos das
almas, lavradores encarregados de conduzir a um cemitério distante o corpo de um colega, assassinado a
mando de latifundiários. Aos poucos, assiste à seca do rio Capiberibe, que Severino segue em sua viagem
ao litoral. Passa por um lugarejo e ouve uma cantoria vinda de uma casa. Trata-se do canto de
excelências, isto é, fúnebre, em honra a outro Severino morto.  
Com a morte definitiva do rio, Severino pensa em desistir de sua viagem, mas acaba por optar pelo
prosseguimento. Assim, planeja instalar-se naquele mesmo lugar. Conversando com uma moradora,
percebe que nenhuma das atividades que poderia desempenhar – agricultura e pecuária – encontraria
espaço ali, mas apenas aquelas ligadas à morte, como rezadeira e coveiro. 

Severino continua sua jornada e passa pela Zona da Mata, região de relativa prosperidade no interior do
sertão. Encanta-se com a natureza verdejante do lugar, mas percebe ainda a presença da morte ao
testemunhar o funeral de um lavrador que se realiza no cemitério local. Abandona o pensamento inicial
de encerrar ali a busca que mantinha pela vida e continua sua viagem. 

Por fim, chega ao Recife, onde resolve descansar ao pé de um muro. Trata-se de um cemitério, e
Severino escuta então o diálogo entre dois coveiros. Os trabalhadores conversam sobre o trabalho que
lhes dão os retirantes que saem de suas casas sertanejas para morrer ali, fazendo-o ademais no seco e
não no rio – o que lhes daria menos serviço e mais sossego. Diante desse novo encontro com a morte,
Severino resolve entregar-se a ela e se matar, atirando-se em um dos rios que cortam a cidade. 

Ao se aproximar do rio, inicia um diálogo com José, mestre carpina (carpinteiro), morador ribeirinho.
Pergunta-lhe se aquele ponto do rio era propício ao suicídio. O mestre responde positivamente, mas
tenta convencer o retirante a não se atirar. Severino pede então que lhe dê uma única razão para não
fazê-lo. 

A resposta do mestre é interrompida pelo anúncio do nascimento de seu filho. José o celebra com
vizinhos e conhecidos, recebe os presentes pobres que lhe trazem, ouve as previsões pessimistas de
duas ciganas a respeito do futuro da criança e, por fim, recordando-se da pergunta de Severino, dispõe-
se a respondê-la. Afirma então que ele, José, não tem a resposta para a questão de saber se a vida vale
ou não a pena, mas que o nascimento de seu filho funciona como resposta, representando a
reafirmação da vida diante da morte.

CONTEXTO

Sobre o autor
João Cabral é o maior poeta da terceira fase modernista. Mais do que isso: forma, ao lado de Carlos
Drummond de Andrade e Manuel Bandeira o trio de poetas mais importantes da nossa história. É o poeta
da pesquisa formal, da exatidão, da linguagem enxuta cuja matriz está, reconhecidamente, em Graciliano
Ramos. 
Importância do livro
Em Morte e Vida Severina, sem abrir mão do rigor imagético e da síntese expressiva, João Cabral
alcança uma comunicabilidade maior, talvez em função do fato de ter sido desafiado a escrever uma
peça de teatro – destinada, portanto, a um público mais amplo do que aquele que sua poesia poderia
alcançar. A abordagem do drama da seca é feita de tal forma a dialogar com o romance Vidas Secas, de
Graciliano Ramos, do qual funciona quase como continuação. 

Período histórico 
Os anos 1950 se caracterizam na história brasileira pelo desenvolvimentismo do governo de Juscelino
Kubitscheck. Trata-se de um período de grande entusiasmo cultural e intelectual, que atinge o campo da
literatura em autores como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, além do próprio João Cabral.

ANÁLISE

João Cabral classificou sua peça de auto de natal pernambucano, levando em conta tanto a forma popular
dos versos curtos, comuns nos autos medievais, quanto a circunstância de tratar de um nascimento (natal)
e de ambientar-se no sertão pernambucano. O título promove uma proposital inversão entre vida e morte,
colocando esta em primeiro lugar. Essa troca da ordem natural indica os encontros com a morte e a vitória
da vida, no final.  

Além disso, o nome próprio Severina é usado como adjetivo no título, sugerindo uma ampliação de
sentido que é confirmada logo nas primeiras palavras do retirante, que, ao tentar se apresentar, evidencia
que sua situação particular é, na verdade, uma metonímia do que ocorre com outros sertanejos,
igualmente vítimas da seca. 
Em seu caminho em direção ao litoral, Severino alterna diálogos e monólogos. Os primeiros
representam os encontros sucessivos com figuras simbólicas da morte – irmãos de almas, carpideiras,
rezadeiras, funeral –, inseridas no fundo social da peça, que é a disputa pela terra. Já os monólogos
mostram as reflexões do retirante, que tenta redefinir seus rumos depois de cada diálogo.

Os pontos culminantes da trajetória fatalista do retirante são a morte do rio cujo percurso ele acompanha
até o litoral – representação de um meio que se rende à morte como o morador instalado nele – e o
paradoxo do contato com ofícios que demonstram vitalidade justamente porque associados à morte –
rezadeira, coveiro, farmacêutico etc. 
A chegada à cidade é a desilusão final do retirante. O diálogo travado entre os coveiros funciona como
sua sentença de rendição à morte, ato máximo de seu desespero. Por outro lado, o nascimento de uma
criança instala a contradição entre a opção de saltar fora da vida, desistindo dela e a alternativa de
agarrar-se à existência e resistir à morte opressora. Nesse sentido, a simbologia da criança – para além
de figurar o nascimento de Cristo, em sua condição de filho de carpinteiro – abarca a ideia da
purificação, da limpeza de toda a podridão associada à morte.  

A peça não resolve a contradição, já que sua última fala é a do carpina propondo a vida a Severino, sem
que se saiba a opção feita por este. No entanto, o título da peça, que propõe o encontro final com a
vida, parece sugerir a vitória da resistência e da insistência na esperança.

Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnie

Primeira peça de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam black-tie, de 1958, foi encenada pela primeira
vez quando o movimento Cinema Novo começava a surgir e a convocar a arte ao neo-realismo. No lugar
de cenários pomposos e figurinos luxuosos, ficaram apenas os elementos de cena indispensáveis. Ao
invés de personagens ricos e nobres, operários e moradores do morro tomaram o palco. Ali, em plenos
anos 50, negros eram cidadãos comuns. Pela primeira vez, os conflitos da realidade brasileira ganhavam
espaço na caixa cênica.

Eles não usam black-tie situa-se numa favela, nos anos 50, e tem como tema a greve, e ao lado da greve
a peça tem como pano de fundo um debate sobre as grandes verdades eternas, reflexões universais
sobre a frágil condição humana, sobre os homens e seus conflitos. É a história de um choque entre pai e
filho com posições ideológicas e morais completamente opostas e divergentes, o que, por sinal, dá a
tônica dramática ao texto.

O pai, Otávio, é operário de carreira, um sonhador, um idealista, leitor de autores socialistas e, ao


mesmo tempo um revolucionário por convicção e consciente de suas lutas. Forte e corajoso entre os
seus companheiros, experimentou várias lideranças, algumas prisões, com isso ganha destaque entre os
seus transformando-se num dos cabeças do movimento grevista.

O filho, Tião, em razão das prisões do pai grevista, é criado praticamente, na cidade, longe do morro,
com os padrinhos, sem conviver com esse mundo de luta e reivindicação da classe operária. Hoje adulto
e morando no morro com os pais, vive um dos maiores conflitos de sua vida. Em primeiro lugar não quer
aderir à greve, pois acha que essa é uma luta inglória, sem maiores resultados para a classe. Em segundo
lugar pretende se casar com Maria, moça simples, porém determinada e leal ao seu povo, e está
esperando um filho seu. Desta forma, Tião está mais preocupado com o seu futuro do que com a luta de
seus companheiros, que sonham com melhores salários. Para Tião, greve é algo utópico. Ele não tem
tempo para esperar, precisa resolver seus problemas de imediato, ou seja, se casar.

É preciso esclarecer que Tiäo, ao contrário de seu amigo Jesuíno, malandro, fraco e oportunista, é um
jovem corajoso, mesmo porque fura a greve sem medo dos companheiros, achando que está agindo
corretamente. Por essa atitude, acaba perdendo a amizade de todos de seu grupo, restando apenas um
colega da fábrica e João, irmão de Maria, um homem ponderado e maduro capaz de compreender a
situação conflitante vivida pelo amigo Tião e ainda apoiar sua irmã neste momento difícil.

Na realidade, Tião não tem medo do confronto com o inimigo. O seu medo é outro, é o grande medo de
toda a sociedade, o medo de ser pobre, por isso quer subir na vida e deixar para trás a condição difícil e
miserável do morro, que, por sinal, é desafiada cotidianamente pela coragem e bravura de Romana, sua
mãe, mulher de pulso e determinação e responsável pelo equilíbrio da casa e da família.

Eles não usam black-tie é um texto político e social, sempre atual no qual Gianfracesco
Guarnieri criou de um lado, personagens marcantes e populares como Terezinha, Chiquinho,
Dalvinha e Jesuíno que nos revelam um mundo alegre, descontraído e aparentemente feliz. Já
por outro lado a peça se apresenta forte e densa revelando de maneira real os conflitos que
atormentam personagens como Otávio, Romana, Tião, Maria e Bráulio. São tais encontros e
são esses momentos alegres e comoventes , que nos provocam o riso e a dor, alegria e
tristeza. Assim, se por um lado mostra um olhar profundo dentro da sociedade brasileira, por
outro esse olhar vem embalado por um valor poético materializado na visão romântica do
mundo de seus personagens.

Embora, na convencional teoria de dramaturgia teatral não se enquadre essa abordagem, o


drama social é de natureza épica e por isso mesmo uma contradição em si mesma. Aqui,
novamente Guarnieri quebrou também outra regra essencial, presente nos manuais do "bom
drama": ao invés de trazer personagens "superiores" como protagonistas, ele se utilizou de
gente humilde, trabalhadores comuns, para conduzir sua história. Mesmo as mais simples
metáforas, foram pinçadas nos mais básicos valores de nossa cultura popular, como por
exemplo, na metáfora do amor, o feijão, prato massivo na América do Sul, teria um "coração de
mãe".

A temática não é política, muito menos panfletária. O que discorre são relações de amor,
solidariedade e esperança diante dos percalços de uma vida miserável. Assim, a peça alia
temas como greve e vida operária com preocupações e reflexões universais do ser humano.
Sob o olhar de Karl Marx, em um retrato iluminado por um feixe de luz na parede do cenário, o
debate entre a coletividade e o individualismo, simultaneamente cru e sensível, vai crescendo.

Eles não usam black-tie é um marco do teatro de temática social.

Foi com a encenação de Eles não usam black-tie, que se iniciou uma produção sistemática e
crítica de textos dispostos a representar as classes subalternas, com ênfase para a
representação do proletariado. Nesse sentido, a peça de Guarnieri insere-se num quadro que
se ampliou a partir da década de 1950, quando surgiu uma dramaturgia com preocupações
ligadas à representação de uma camada específica da sociedade brasileira e, para além disso,
em busca da construção de uma identidade nacional pautada em variedades culturais internas.

Escrita por Gianfrancesco Guarnieri para o Teatro de Arena em 1958, a histó ria narrada em Eles
não usam black-tie se passa em uma favela durante os anos 50. A narrativa tem como tema central a
greve dos operá rios, mas adota como pano de fundo reflexõ es universais sobre a fragilidade e os
conflitos humanos. De fato, a temá tica nã o é política, muito menos panfletá ria. O autor discorre, na
verdade, sobre relaçõ es de amor, solidariedade e esperança diante dos percalços de uma vida
miserá vel.
A obra conta a histó ria do conflito entre pai e filho com posiçõ es ideoló gicas e morais
completamente opostas, o que dá uma tô nica dramá tica ao texto. O pai, Otá vio, é um operá rio de
carreira, sonhador, idealista, leitor de autores socialistas e revolucioná rio convicto. Forte e
corajoso, assumiu a liderança vá rias vezes entre seus companheiros e foi preso em diversas
oportunidades, ganhando destaque entre seus colegas e transformando-se em um dos líderes do
movimento grevista. Já o filho, Tiã o, em razã o das prisõ es do pai, foi criado pelos padrinhos longe
do morro, sem convívio com o mundo de luta e reivindicaçõ es da classe operá ria. Mais tarde, voltou
a morar com seus pais na favela, onde viveu os maiores conflitos de sua vida.
Tudo começa em uma noite de chuva, quando Maria, namorada de Tiã o e sua companheira de
trabalho, lhe conta que está grá vida. Por esse motivo, eles marcam o noivado para dali dez dias e o
casamento para pouco tempo depois.
As coisas parecem ir razoavelmente bem: Otá vio está solto e a família vai se arranjando; Tiã o e
Maria vã o se casar, mesmo com as dificuldades. Mas a exploraçã o continua, o arrocho prossegue e a
perseguiçã o à s lideranças é constante.
Estoura a greve. Otá vio está no piquete, megafone na mã o. Tiã o, porém, entra para trabalhar e, aos
berros, incentiva os demais a furar a greve. Ao contrá rio do pai, Tiã o considera a greve uma utopia,
uma luta ingló ria sem grandes conquistas para os trabalhadores. Além disso, está mais preocupado
com seu futuro do que com a luta dos operá rios (como está prestes a se casar, nã o quer arriscar seu
emprego). Seu ú nico temor é nã o crescer na vida, nã o conseguir deixar para trá s a vida difícil e
miserá vel do morro, desafiada diariamente pela bravura de sua mã e, Romana, mulher de pulso,
determinada e responsá vel pelo equilíbrio da casa e da família.
O confronto entre pai e filho na porta da fá brica retrata os dilemas de toda uma classe. Nos olhos
dos dois está a mú tua rejeiçã o. Ambos terã o que encarar as consequências de suas escolhas.
Tiã o é um jovem corajoso, fura a greve sem medo dos companheiros. Por essa atitude, porém, acaba
perdendo a amizade dos colegas de trabalho, restando apenas Joã o, irmã o de Maria, um homem
ponderado e maduro, capaz de compreender a situaçã o conflitante vivida pelo amigo e apoiar a
irmã neste momento difícil.
Já Otá vio acaba sendo preso mais uma vez pelo DOPS. Assim que é liberado, volta para o morro, e
embora reconheça a coragem do filho, pede a Tiã o que se retire de sua casa, conforme lhe alertara
Joã o. O jovem já vinha se preparando para alugar um quarto na cidade e voltar depois para buscar
Maria, mas esta lhe diz que nã o vai sair do morro, seu lugar é ali. Tiã o, entã o, vai embora sozinho,
mas seus pais acreditam que ele voltará um dia, assim que enxergar melhor a vida.
Ao fim, Otá vio e Romana fazem uma espécie de balanço da situaçã o. Sentados à mesa, catando
feijã o, os dois permanecem em silêncio. Essa passagem, porém, diz mais que qualquer palavra,
resumindo o perfeito casamento de forma e conteú do presente em Eles não usam black-tie.
Personagens principais:
Nesta obra, Gianfrancesco Guarnieri quebra uma regra essencial presente nos manuais do “bom
drama”: ao invés de trazer personagens “superiores” como protagonistas, ele se utiliza de gente
humilde, trabalhadores comuns, para conduzir sua histó ria.
Dentre os personagens, destacam-se:
• Tião: Filho de Otá vio e Romana, Tiã o é um jovem criado pelos padrinhos na cidade, longe do
morro e da luta operá ria. Ao contrá rio do pai, nã o acredita na greve e acaba furando o movimento
com receio de perder o emprego, pois está prestes a se casar. Sonha em sair do morro e deixar pra
trá s a vida difícil e miserá vel da favela.
• Otávio: Pai de Tiã o, Otá vio é um revolucioná rio convicto, agitador de greve.
• Romana: Mãe de Tiã o, Romana é uma mulher de pulso, determinada, que trabalha como
lavadeira. É responsá vel pelo equilíbrio da casa e da família.
• Maria: Noiva de Tiã o e sua companheira de trabalho, é fiel a seu povo e se recusa a sair do morro.
• João: Irmã o de Maria, Joã o é um homem ponderado e maduro que fica ao lado de Tiã o quando o
amigo fura a greve e é abandonado pelos companheiros de trabalho.
• Chiquinho: Irmã o de Tiã o, é um jovem aprontador, que vive dormindo e de namoro com
Terezinha.
• Bráulio: Amigo de Otá vio e seu braço direito na greve. Quando fica sabendo da traiçã o de Tiã o,
procura o jovem para tirar satisfaçõ es.
• Jesuíno: Amigo de Tiã o, é malandro, fraco, oportunista. Fica dos dois lados na greve.

Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum


Relato de um certo Oriente, de 1989, primeiro romance de Milton Hatoum, debruça-se sobre um tema
bastante comum: a família e seus dramas. A procura por mostrar as dificuldades presentes na
convivência diária de familiares e amigos entre si, com seus diferentes segredos e comportamentos, faz
deste um grande enredo.

O romance mostra que o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido e isolado na sua
própria história, quase que incomunicável com outro mundo que não seja o dele.

A memória, a identidade e a reconstituição de lembranças são os temas deste romance. A personagem


protagonista de Relato de um certo Oriente consegue, por meio da rememoração de seu passado e com
a ajuda das lembranças de outros, enriquecer sua vida, dar sentido e valor à sua origem.

Em Relato de um Certo Oriente a (re)construção do passado é interessante, pois a narradora utiliza de


diferentes recursos para reanimá-lo. Seja um odor, seja uma voz, seja um lugar, não importa. Esses e
outros recursos serão utilizados como modos de recuperar a memória perdida.

A obra é um relato composto de outros relatos (metarrelatos), distribuídos em oito capítulos, os quais
se assemelham ou resgatam a forma oral do narrar, em que uma história é evocada para completar
outras à medida que é um ou outro narrador quem detém a posse de certa informação que vai
esclarecer uma outra apontada anteriormente (anáfora), ou outra que ainda virá (catáfora). Fala-se em
narrativa de encaixe porque se vão reunindo pequenos relatos para que o todo seja/esteja completo.

A trama se passa numa cidade marcada pelo hibridismo cultural e atravessada pelas idéias de fronteira e
trânsito: Manaus, uma capital que se separa da floresta pelas águas fluviais e se situa num estado que
faz divisa com três outros países. Ela também é a cidade natal do escritor. No livro também estão
presentes a diversidade de costumes, línguas, e a convivência entre indivíduos de diferentes
nacionalidades.

Em Relato de um certo Oriente, uma mulher visita a cidade de sua infância depois de ter passado quase
20 anos fora. E, a partir dos acontecimentos que se desenrolam após sua chegada, ela vai relembrando e
descobrindo histórias do seu passado e da família que a criou.

Ao retornar a Manaus, após ter permanecido internada em uma clínica de repouso em São Paulo, a
narradora chega justamente na noite que precede o dia da morte de Emilie, sua mãe adotiva.
Inicia-se, então, um outro trabalho, o de recuperar Emelie através da memória, não apenas a sua, mas
também a de outros personagens que entrelaçaram seu percurso de forma significativa ao daquela
família: o filho mais velho, o único a aprender o árabe e que também irá se distanciar de todos, ao
mudar-se para o sul; o alemão Dorner, amigo da família e fotógrafo; o marido de Emelie, recuperado,
mesmo depois de morto, através da memória de Dorner, e Hindié Conceição, amiga sempre presente, a
partilhar com a conterrânea a solidão da velhice. Muitas vozes a compor um mosaico, nem sempre
ordenado, nem sempre claro naquilo que revela, mas sobretudo rico em pequenos detalhes de extrema
significação.

No intuito de enviar uma carta ao irmão, que se encontra em Barcelona, a fim de lhe revelar a morte de
Emilie, acaba escrevendo um relato com depoimento de membros da família e de amigos, conforme o
irmão lhe pedira na última correspondência que lhe enviara. Esses testemunhos proporcionam uma
verdadeira viagem à memória, com regresso à infância e aos fatos marcantes da vida familiar.

Logo no primeiro capítulo, a narradora nos descreve uma parte da casa na qual acabara de acordar, em
Manaus. A descrição das duas salas contíguas é repleta de marcas identificatórias do Oriente, indicando
uma representação estilizada desse território: tapete de Isfahan, elefante indiano e reproduções de
ideogramas chineses são alguns dos objetos de consumo dos ocidentais, tomados como símbolos, que
estão presentes nos cômodos.

Em Relato de um certo Oriente as histórias falam das possibilidades e das dificuldades do trabalho com a
memória, das tensões e da convivência de culturas, religiões, línguas, lugares, sentimentos e sentidos
diferentes das personagens em relação ao mundo. A casa de Emilie, matriarca da família na narrativa do
Relato, é um microcosmo onde estas tensões aparecem e são vividas cotidianamente.

O que mantêm a tensão no romance é a narrativa centrada em incidentes – o atropelamento de Soraya


Ângela, o afogamento de Emir.

A obra, em sua estrutura e estratégia de composição, parece transitar e oscilar entre a narração – em
que a figura do narrador é extremamente importante e o relato é feito principalmente com base nas
tradições orais, como uma tentativa de rememoração das experiências coletivas do passado – e o
romance, que apareceria como um gênero literário decorrente das transformações da sociedade
capitalista, que destrói cada vez mais a possibilidade que a experiência comum viva e se revele no relato
dos narradores.

Clara dos Anjos, de Lima Barreto

Análise da obra
Concluído em 1922, ano da morte de Lima Barreto, o romance Clara dos Anjos é uma denúncia áspera
do preconceito racial e social, vivenciado por uma jovem mulher do subúrbio carioca.
O Realismo-naturalismo, que tanto influenciou Lima Barreto na composição de Clara dos Anjos, é
cientificista e determinista, considerando que as ações humanas são produtos de leis naturais: do meio,
das características hereditárias e do momento histórico. Portanto, os romances naturalistas
procuravam, através da representação literária, demonstrar teses extraídas de teorias científicas. Para
isso, o Naturalismo buscou compor um registro implacável da realidade, incluindo seus aspectos
repugnantes e grotescos. São exatamente esses os aspectos que mais chamam à atenção na narrativa
exagerada de Clara dos Anjos.
Em Clara dos Anjos relata-se a estória de uma pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio, que
apesar das cautelas excessivas da família, é iludida, seduzida e, como tantas outras, desprezada, enfim,
por um rapaz de condição social menos humilde do que a sua. É uma estória onde se tenta pintar em
cores ásperas o drama de tantas outras raparigas da mesma cor e do mesmo ambiente. O romancista
procurou fazer de sua personagem uma figura apagada, de natureza "amorfa e pastosa", como se nela
quisesse resumir a fatalidade que persegue tantas criaturas de sua casta.
Espaço
O romance passa-se no subúrbio carioca e Lima Barreto descreve o ambiente suburbano com riqueza de
detalhes, como os vários tipos de “casas, casinhas, casebres, barracões, choças” e a vida das pessoas
que ali vivem.
Ao descrever o subúrbio, Lima Barreto aborda o advento dos “bíblias”, os protestantes que alugam uma
antiga chácara e passam a conquistar novos fiéis para seu culto:
“Joaquim dos Anjos ainda conhecera a "chácara" habitada pelos proprietários respectivos; mas,
ultimamente, eles se tinham retirado para fora e alugado aos "bíblias"… O povo não os via com
hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já por
encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, já por procurarem, em outra
casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das dores que
seguem toda e qualquer existência humana.” E reflete sobre a nova seita:
“Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees fundadores de novas seitas cristãs. De
quando em quando, um cidadão protestante dessa raça que deseja a felicidade de nós outros, na terra e
no céu, à luz de uma sua interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima seita,
põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os quais não sabem muito bem por que foram
para tal novíssima religiãozinha e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.”
A crítica às “novas seitas cristãs” revela também a ojeriza de Lima Barreto à influência americana no
Brasil. Como o colocou Antônio Arnoni Prado, o autor de Clara dos Anjos “interessou-se pelos Estados
Unidos, em virtude do tratamento desumano que este país dispensava aos seus cidadãos de cor. (…)
Censurou duramente a discriminação racial americana, assim como o expansionismo imperialista dos
‘yankees’, que, através da diplomacia do dólar, ia, a seu ver, convertendo o Brasil num autêntico
protetorado.” Nada mais profético.
Personagens
Marrameque - Poeta modesto, semiparalisado, Marramaque freqüentara uma pequena roda de
boêmios e literatos e dizia ter conhecido Paula Nei e ser amigo pessoal de Luís Murat.
Lima Barreto denuncia, na figura de Marramaque, a influência das rodas literárias, grupos fechados que
abundam no Brasil; a cultura da oralidade, dos que aprendem “muita coisa de ouvido e, de ouvido,
falava de muitas delas”, tendo um cultura superficial, de verniz; e o azedume dos que não conseguem
brilhar nas “rodas de gente fina”.
Clara: a “natureza elementar” - Clara era a segunda filha do casal, “o único filho sobrevivente…os
demais…haviam morrido.” Tinha dezessete anos, era ingênua e fora criada “com muito desvelo, recato e
carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava
nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.”
O autor reitera sempre a personalidade frágil da moça – sua “alma amolecida, capaz de render-se às
lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o
conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor” – como resultado de sua educação reclusa
e “temperada” pelas modinhas:
“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus
pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-
la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia
toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o
tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de
suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor.”
Essa “natureza elementar” de Clara se traduzia na ausência de ambição em melhorar seu modo de vida
ou condição social por meio do trabalho ou do estudo:
“Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a
aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela,
mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido,
quando casada. (…) Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar
dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma mulher.”
A descrição de Clara reforça os malefícios da formação machista, superprotetora, repressiva e limitadora
reservada às mulheres na nossa sociedade. Ecoa, portanto, a descrição de Luísa, do romance O Primo
Basílio, de Eça de Queirós, ou a Ana Rosa de O Mulato, de Aluísio de Azevedo. Todas são, na verdade,
herdeiras diretas da figura de formação débil, educada nas leituras dos romances românticos, que é
Emma Bovary, criada por Gustave Flaubert no romance inaugural do Realismo, Madame Bovary (1857).
Cassi: o corruptor - Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim passa a receber em casa o pretendente
de Clara, Cassi Jones de Azevedo, que pertencia a uma posição social melhor. Assim o descreve Lima
Barreto:
“Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de
corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado "modinhoso", além de o ser também por outras
façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer
traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da rua do Ouvidor; mas, pelo apuro
forçado e o degagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em
descobrir aquele aperfeiçoadíssimo "Brandão", das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A
única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de
óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio — a famosa "pastinha". Não
usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por
um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.”
O padrinho Marramaque, que já lhe conhecia a fama, tenta afastá-lo de Clara quando percebe seu
interesse. Na festa de aniversário da afilhada, provoca Cassi e deixa claro que ele não é bem-vindo ali e
que seria melhor que se retirasse. Cassi vinga-se de modo violento: junta-se a um capanga e ambos
assassinam Marramaque. Clara, que já suspeitava das ameaças do rapaz ao padrinho, passa a temê-lo,
mas ele consegue seduzi-la, principalmente ao confessar seu crime, dizendo que matou por amor a ela.
Malandro e perigoso, Cassi já havia se envolvido em problemas com a justiça antes, mas sempre fora
acobertado pela sua família, especialmente sua mãe, que não queria que fosse preso. Assim, conseguia
subornar a polícia e continuar impune, mesmo depois de ter levado a mãe de uma de suas vítimas ao
suicídio e da perseguição da imprensa.
O exagero narrativo de Lima Barreto torna-se patente ao descrever a figura do sedutor. Branco,
sardento e de cabelos claros, é a antítese de Clara. Como o apontou Lúcia Miguel Pereira: “Até os
animais da predileção de Cassi, os galos de briga, são apresentados com visível má vontade:
‘horripilantes galináceos’ de ‘ferocidade repugnante’.”
Joaquim dos Anjos - carteiro, acredita-se músico escreveu a polca, valsas,tangos e acompanhamentos
de modina. polca: siti sem unhas; valsa: mágos do coração.
Uma polca sua - "Siri sem unhas" - e uma valsa - "Mágoas do Coração: - tiveram algum sucesso, a ponto
de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas pianos da Rua
do Ouvidor. O seu saber musical era fraco; adivinha mais do que empregava noções teóricas que tivesse
estudo.
Aprendeu a "artinha" musical da terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas
de igrejas a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora
gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na "artinha"
de Francisco Manuel, que sabia de cor, mas não saíra dela, para ir além" (p.21/22)
Natural de Diamantina, filho único. A convite de um inglês, pesquisador, foi para o Rio de Janeiro e lá
ficou. Confiava em todos que o rodeavam.
"Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos
outros, e a boa fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também
não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém,
porque isso lhe fazia mal à consiência." (p.115)
Dona Engrácia - era católica, romana, filhos trazidos na mesma religião, era caseira, insegura, e rude.
Calado - músico e compositor brasileiro (polcas "Cruzes, minha prima!")
Patápio Silva - "Uma polca sua - "Siri sem unha"- e uma valsa - "Mágoas do coração" - tiveram algum
sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de
música e piano da Rua Ouvidor." (p.21).
João Pintor - era um cidadão que visitava "os bíblias" aqueles que pregavam o evangelho. "era preto
retinto, grossos lábios, malares proeminentes, testa curta dentes muito bons e muitos claros, longos
braços, manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés que não havia calçado."(p.25).
Mr. Shays - chefe da seita bíblica, homem tenaz cheio de eloqüência bíblica faz seus adeptos ouvir a
palavra. Quando os adeptos se acham preparados põem-se a propagá-la.
Eduardo Lafões - religiosamente ia aos domingos à casa de Joaquim para jogar o solo. Eduardo Lafões
gostava dos assuntos do comércio. Era um homem simplório, que só tinha agudeza de sentidos para o
dinheiro. Vivendo sempre em círculos limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no
parentesco, ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era dele,
para se interessar generosamente por alguém.
Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo - pais de Cassi. O pai não gostava dos
procedimentos do filho, enquanto a mãe, cobria-lhe as desfeitas com as proteções.
Dona Margarida Weber Pestana - viúva, mãe de Ezequiel, descendente de Alemão; ela, russa. Casou no
Brasil com tipógrafo que falecera dois anos após o casamento. Era dona de uma pensão, mulher
corajosa.
"O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinho de Amor chulo. Certo dia,
ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas
galinhas da sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha,
e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade que era mulato, mais tinha
os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos - olhos tão
estranhos e nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno." (p.60)
D. Laurentina Jácone - gostava de rezer, ficar zelando a igreja.
D. Vicêntina - cartomante.
"Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na vizinhança também e vivia a deitar
cartas e cortar "cousas feitas". O seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de
cartomante com toda a seriedade e convicção."(p.60)
Praxedes Maria dos Santos - "gostava de ser tratado por doutor Praxedes. Foi um dos convidados de
Joaquim. Era um homem bom. Ficou indeterminada das correspondência de Clara com o Cassi.
Etelvina - crioula, colega de Clara, notou a impaciência de Clara porque o rapaz Cassi ainda não chegara
à festa.
Leonardo Flores - grande poeta.
Velho Valentim - era português.
Barcelos - um português fichado na detenção.
Arnaldo - era um colega do grupo dos valdevino (desoculpados que andava com Cassi).
"Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do Nascimento, cuja rua e cujo número
lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido procurar por "Seu" Menezes, que ele conhecia.
- Se ele não estiver? - indagou Arnaldo.
- Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem estar, entre outros o aleijadinho
que anda sempre fardado. Ele não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você ouvir,
guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse dele."
(p.91).
Menezes - o dentista da família. Intermediário dos bilhetes e cartas de Cassi para Clara. Senhor Monção
- caixeiro vendedor; Belmiro Bernedes & Cia. - "tocava realejo", era um moço português, simpático,
educado, e bom porte.
Helena - tia de Marramaque, econômica, prendada, costurava para o arsenal do governo.
D. Castolina - mulher de Meneses.
Leopoldo - marinheiro. Cedo, saiu de seio da família para melhorar de vida. Há 30 anos não via família.
Meneses com a sua pobreza tratou de visitar o imrão já que eram os únicos vivos da família.
Enredo
Clara é uma mulata pobre, que vive no subúrbio carioca com seus pais, Joaquim e Engrácia, mulher
“sedentária e caseira.” Joaquim era carteiro, “gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava
flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como
outrora”. Também “compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.” Além da música, a
outra diversão do pai de Clara era passar as tardes de domingo jogando solo com seus dois amigos: o
compadre Marramaque e o português Eduardo Lafões, um guarda de obras públicas.
Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Convencida pela vizinha, dona Margarida, que procurara na
tentativa de conseguir um empréstimo e fazer um aborto, ela confessa o que está acontecendo à sua
mãe. É levada a procurar a família de Cassi e pedir “reparação do dano”. A mãe do rapaz humilha Clara,
mostrando-se profundamente ofendida porque uma negra quer se casar com seu filho. Clara “agora é
que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos
seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não
era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos.”
O autor representa, na figura de Clara e no seu drama, a condição social da mulher, pobre e negra,
geração após geração. No final do romance, consciente e lúcida, Clara reflete sobre a sua situação:
“O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como
possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra todos
os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a
fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...”
E, na cena final, ao relatar o que se passara na casa da família de Cassi Jones para a sua mãe, conclui, em
desespero, como se falasse em nome dela, da mãe e de todas as mulheres em iguais condições: “— Nós
não somos nada nesta vida.”

Nove Noites, de Bernardo Carvalho


Nove Noites, sexto livro de Bernardo Carvalho, narra uma investigação sobre a misteriosa morte de um
antropólogo americano, Buell Quain, que aos 27 anos, em 1939, se suicida após uma estada em uma
aldeia indígena situada no Tocantins, no Brasil, quando subitamente regressava à civilização. No meio da
floresta, Quain, sem motivos aparentes, retalhou-se e enforcou-se na frente de dois índios horrorizados
que o acompanhavam na volta para a cidade da Carolina.

Este é o ponto de partida da narrativa de Bernardo Carvalho: um caso trágico, senão mórbido, perdido
nos anos e na memória. Bernardo decidiu, a partir de tão poucas informações, tecer um romance
utilizando a história fatídica de Buell Quain como base, entrelaçando história e ficção, texto jornalístico e
um estranho narrador que entrecorta todo o livro.

O narrador / confessor do antropólogo responde pela parte ficcional de Nove Noites, ao passo que o
próprio Bernardo Carvalho encarna e responde pelo lado jornalístico, do levantamento de dados que
indiquem os reais motivos que levaram Buell Quain a dar cabo de sua existência. Não se sabe quem
investiga, até porque ninguém nunca lhe perguntou a razão da sua curiosidade. Há a desculpa de querer
escrever um livro, que vai adiantando para não levantar suspeitas. A mistura que o autor tenta levar a
termo é extremamente interessante como recurso literário: insere fotos e personagens da década de
1930 na história, como pessoas reais ou imaginárias, o leitor nunca sabe exatamente onde está pisando.
Pela sua mão somos guiados por entrevistas com pessoas que privaram com Quain, arquivos públicos, e
memórias deixadas em cartas, escritas pelo suicida antes de morrer, e por um seu amigo, com quem
partilhou nove noites de conversas e revelações.

São vários mistérios que se interligam, e adensam a narrativa, em que o leitor partilha a claustrofobia e
evasão de identidade das personagens. Da mesma forma, Bernardo Carvalho abre um campo de
especulação na mente do leitor, não somente sobre os motivos que ocasionaram a morte de Buell
Quain, mas principalmente sobre o significado e as conseqüências da transferência de um jovem norte-
americano para o interior das florestas brasileiras. O autor junta habilmente a realidade e a ficção, o
romance e a investigação que desenvolveu sobre os índios e sobre o antropólogo. Como nos diz o
próprio autor nos agradecimentos é uma combinação de memória e imaginação, - como todo o
romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta.

Em outras palavras, Nove Noites é um excelente exemplo do nem sempre salutar choque cultural.

Nove Noites desconstrói as estratégias da narrativa realista e propõe um jogo com o real, jogo no qual,
além de desconstruir as estratégias da narrativa realista, este romance desafia os modos nos quais a
cultura de massas "consome" realidade.

A história de Quain é verdadeira. O autor soube dela por um artigo no "Jornal de Resenhas", da "Folha
de S. Paulo", escrito pela antropóloga Mariza Corrêa, em que o caso era citado de passagem.

A história do escritor, ao menos em parte, também procede: na orelha do livro há uma foto de Carvalho,
aos seis anos, ao lado de um índio do Xingu, região onde seu pai de fato fora proprietário de terras. O
resto permanece em suspense - e nem o próprio autor parece disposto a separar fato de ficção.

Enredo

O antropólogo americano Buell Quain suicidou-se em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar uma
aldeia indígena no interior do Brasil. No fim dos anos 60, um menino de seis anos de idade, contrariado,
freqüenta a região do Xingu, onde o pai comprou uma fazenda. Mais de 30 anos depois, o menino se
transformou num escritor empenhado em reconstruir a trajetória de Quain e, por conseqüência,
passagens da própria infância.

Em Nove Noites, o personagem histórico "biografado" – o Bell Quain - e o narrador "biógrafo" não se
relacionam alegoricamente, mas sim metonimicamente. A obsessão pelo suicídio do antropólogo no
Xingu revela um trauma do próprio narrador, que teria convivido na infância com os índios: a
representação do inferno (...) fica no Xingu da minha infância (p. 60). Na busca de dados sobre Quain, o
narrador volta ao Xingu para ouvir o que os índios lembram do Quain. Mas não consegue nenhuma
informação, e em troca é ele quem lembra da infância, quando acompanhava o pai nas viagens pelas
suas fazendas de Mato Grosso e Goiás.

Alegórica ou metonimicamente, a subjetividade do autor-narrador se coloca no texto através de um


mergulho numa outra subjetividade com a qual o narrador estabelece um jogo. E em ambos os casos o
que relaciona essas duas subjetividades é um trauma: o trauma dos intelectuais na ditadura, num caso,
e o trauma da morte no outro.
Na obra de Bernardo Carvalho a figura do mártir está ausente, e o romance se desvia assim de uma
trilha traçada por toda uma tradição de romances que mostraram o índio como vítima: Quarup, Maíra,
entre outros. Pelo contrário, em Nove Noites os índios exercem uma certa "violência" (psicológica) sobre
os brancos, digamos que o encontro do branco com o índio constitui, no romance um trauma.

No livro uma experiência traumática se configura como uma máquina de tempo, que relaciona
momentos da história nacional. Assim, a história do suicídio de Bell Quain acaba mexendo com o trauma
do próprio narrador. Quando ele está no hospital acompanhando o pai no seu leito de morte,
testemunha a última hora de um velho desconhecido, que ocupa a cama do lado, e que está morrendo
em solidão. O velho, no seu delírio, chama o narrador de "Bill Cohen", confundindo-o com um amigo de
juventude. Muitos anos depois, o nome de "Buell Quain", mencionado num jornal, traz no narrador a
reminiscência daquele outro nome que ouvira pronunciado pelo velho. Mas não é o mesmo nome, o
narrador o deixa bem claro: de repente me lembrei de onde o tinha ouvido antes e, fazendo a devida
correção ortográfica na minha cabeça, descobri de quem falava o velho americano no hospital (p. 147)
(...)em momento nenhum deixei de desconfiar da possibilidade, ainda que pequena, de uma confusão ou
de um delírio da minha parte. Podia ter ouvido errado, os meses que precederam a morte do meu pai
foram especialmente tensos, e eu não andava com a cabeça no lugar (p.153). Ou seja, a leitura do nome
do antropólogo no jornal se torna disparador da experiência traumática, entendendo por ela a resposta
a um evento ou eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente
compreendidos quando acontecem, mas que retornam mais tarde em flash- backs, pesadelos e outros
fenômenos repetitivos.

A morte do pai, que ocorrera estando ele ausente, apenas é relatada: era o dia da minha partida. Minha
vida seguiu o seu rumo. Meu pai morreu três meses depois. Fiquei três anos fora. Até a própria sintaxe -
seca, mínima - desloca a importância do fato da morte do pai. No entanto, se o narrador chega – na
imaginação do velho - como substituto de Quain; em troca o velho oferece a possibilidade de
testemunhar sua morte, em substituto da morte do pai, que ocorrera quando ele já tinha partido. Essa
troca de papéis (a morte do velho substituindo a do pai, a chegada do narrador substituindo a do velho
amigo Quain) funciona como um deslocamento, que pode explicar por que o mistério da morte de
Quain provoca uma obsessão, uma vez que ele remete à cena misteriosa de primeira vez que o narrador
vira um homem morrer e, é claro, ao mistério da morte silenciosa do pai. O narrador e sua irmã têm
disputado a herança do pai com a última mulher dele, que é quem acaba ficando com tudo: o pai só
deixa aos filhos seu silencio como herança. Como disse o testamento de Manoel Perna, único amigo de
Quain no Brasil: o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que
se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do
mistério, para acabar morrendo de curiosidade (p. 7).

Esse mistério (da morte de Quain e, segundo a nossa hipótese, também da morte do próprio pai)
provoca uma obsessão no narrador, mas não pode senão ficar como mistério, buraco negro da
narrativa. Assim, o testamento de Manoel Perna, o amigo que passara "nove noites" com Quain, que é
um documento chave da pesquisa, no entanto, é escrito – inventado - pelo próprio narrador (segundo
ele próprio confessa, quase no final do romance, desestabilizando completamente o estatuto de
verdade dos fatos narrados). Ou seja, a "prova" principal, o fio narrativo da historia de Quain, é
declarada falsa "na cara" do leitor. E, apesar da decepção, o interesse se mantém, e até aumenta depois
dessa revelação, pois o que interessa é mais a própria pesquisa do que alguma suposta verdade sobre
Quain: interessa a relação do narrador com essa história e aonde ela o conduzirá.

A pesquisa sobre a morte de Quain vai construindo uma trama pseudo-policial no romance, mas se
revela menos como caminho à verdade do que como elaboração do trauma, pois é o trauma da infância
que aproxima afetivamente ao narrador com Quain: Buell Quain também havia acompanhado o pai em
viagens de negócios (...) Mas se para Quain, que saía do Meio-Oeste para a civilização, o exótico foi logo
associado a uma espécie de paraíso (...) para mim as viagens com o meu pai proporcionaram antes de
mais nada uma visão e uma consciência do exótico como parte do inferno. (p.64) Quando retorna junto
aos índios, como exigência da sua pesquisa, esse encontro é descrito como infernal. Lacan considera que
o real se apresenta sob a forma do inassimilável do trauma; ele aporta a noção de "tyché" como uma
forma de nomear o real como encontro falido. Ao se tratar de um trauma (ou seja, aquilo que não pode
ser narrado, nem representado), é evidente por que cada um dos documentos que o narrador encontra
ao mesmo tempo que revelam, encobrem. As cartas que documentam aspectos da história teriam sido
duvidosamente traduzidas, sobre elas se constrói o testamento, que sabemos falso. O narrador vai em
busca do filho do velho que morrera no hospital, achando que esse velho poderia ter sido o fotografo
amigo de Quain, mas quando o encontra, acha que seus traços se parecem não aos do velho mas aos de
Quain. Quer dizer, a escrita se torna totalmente paranóica (e isto é típico dos romances de Carvalho), ao
ponto que nada mais parece confiável. A "realidade" da ficção se desmancha. As histórias dependem
antes de tudo da confiança de quem as ouve (p. 8), diz o narrador. Mas as armadilhas do texto, que
transita entre o documentário e o ficcional, entre o subjetivo e o histórico, e mistura tudo, não oferecem
ao leitor nenhuma possibilidade de confiar.

Em Nove noites o passado não deixa de retornar (na estrutura em abismo, na qual um tempo contém o
passado e o futuro), retornam os rostos, as lembranças, as experiências. 
Trecho do livro (páginas 114 a 117)

Isto é para quando você vier. Ele voltou a Carolina sem sapatos. Queria passar o aniversário na cidade.
Naquela noite, me falou de outra ilha. Me disse que eu não podia imaginar. Eu já não tinha imaginado
antes, quando me falara da ilha onde havia passado dez meses entre os nativos do Pacífico, já fazia
quatro anos, do outro lado do mundo. Agora, já não falava da mesma.

Não era a ilha em que adormecera sob as estrelas, embalado pelas histórias que um nativo lhe contava
do crepúsculo à aurora, ao longo de semanas ininterruptas. Me lembro de vê-lo rindo pela primeira vez
da própria história, quando chegou a Carolina, quando me falou da ilha no Pacífico, ainda na primeira
noite em que bebemos juntos, fazia mais de dois meses, comentando as cutucadas que o nativo lhe dava
em vão, para mantê-lo acordado, e de como fiquei sem graça quando ele de repente parou de rir para
assumir uma expressão grave e prosseguir o relato, dizendo que o nativo, diante da inutilidade das
tentativas de mantê-lo desperto, terminava por se deitar ao seu lado também.

Fiquei constrangido com a idéia de que pudesse pensar que eu estava cansado de suas histórias e de
que, sem perceber, ele insinuasse alguma coisa ao me contar aquela.

Quando o etnólogo acordava na sua ilha do Pacífico, o sol já estava alto e o contador de histórias tinha
ido embora. Quando voltou a Carolina no final de maio, me mostrou orgulhoso a foto e o desenho que
fizera de próprio punho, retratos de negros enormes e fortes, para que eu pudesse ter um a idéia do que
me dizia. Eu não podia ter imaginado que a aldeia não ficava na praia, mas morro acima, até ele me
falar da Floresta Interior, governada por um chefe que mantinha um dente de baleia pendurado no peito
como símbolo de poder.

Na ilha, os chefes eram sagrados, assim como tudo que eles tocavam. As aldeias na costa foram
aculturadas pelos invasores de outras ilhas, que por sua vez foram influenciados pelos europeus. Só os
nativos do interior mantinham intacto aquilo que ele procurava: uma sociedade em que, a despeito da
rigidez das leis, os próprios indivíduos decidiam os seus papéis dentro de uma estrutura fixa e de um
repertório predeterminado.
Havia um leque de opções, embora restrito, e uma mobilidade interna. Foi o que ele me disse. sempre
teve fascínio pelas ilhas. São universos isolados. Arrumou o primeiro emprego com apenas quinze anos e
foi trabalhar, durante as férias de 1928, como " controlador do tempo e das horas" – foi nesses termos
canhestros que ele tentou me explicar, com o auxílio de gestos, a sua tarefa no canteiro de obras de uma
estrada de ferro numa região inexplorada no coração do Canadá, com a poesia involuntária dos que não
conhecem a língua em que tentam se exprimir.

Aproveitava os dias de folga para explorar as ilhas da região, rascunhando mapas que mandava para
casa no lugar de cartas e que mostravam a sua posição no mundo. Avançava por rochedos e florestas de
abetos, horas a fio a desbravar regiões desérticas em sua fantasia de pioneiro solitário, a embrenhar-se
na natureza até não restar outra fronteira para sua liberdade além dos limites do próprio corpo, até
nada além do corpo impedir a fusão com a paisagem em que já se dissolvera em espírito.

Eram territórios que trilhava sozinho no verão ártico, infestado de mosquitos, e cujos mapas eram uma
indissociável combinação da sua experiência e da sua imaginação. Assim como o que tento lhe
reproduzir agora, e você terá que perdoar a precariedade das imagens de um humilde sertanejo que não
conhecendo o mundo e nunca viu a neve e já não pode dissociar a sua própria imaginação do que ouviu.
Mas não foi de nenhuma dessas ilhas que ele me falou quando voltou a Carolina descalço e humilhado
no final de maio. Foi de uma outra, à qual se chegava de balsa, depois de duas horas de trem, vindo da
cidade. Uma ilha que conheceu adulto. Falou de uma casa com vários quartos, todos ocupados por
amigos. Já não se expressava com tristeza nem com alegria. E eu não saberia dizer que sentimentos
guardava daquela lembrança.

Contou de uma tarde em que, voltando de uma caminhada solitária pela praia, onde abandonara os
colegas, deparou com a casa excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes de
poder se apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma máquina fotográfica e registrou para
sempre o espanto e o desconforto do antropólogo recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido
pelo desconhecido. Numa das noites em que veio à minha casa durante a sua passagem por Carolina, no
final de maio, o dr. Buell confessou que viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada
naquele retrato.

Como um desafio e uma aposta que fizera consigo mesmo. Havia sido traído pelo intruso e sua câmera.
Não podia admitir que aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: a expressão de espanto diante do
desconhecido. Havia sido pego de surpresa pelo fotógrafo, antes de poder dizer qualquer coisa. E
embora depois tenham se tornado amigos, por muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto
dele. Até irromper um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a fotografá-lo de qualquer jeito,
depois de ter sabido que ele estava de partida para o Brasil.

Queria uma lembrança do amigo antes de embarcar para a selva da América do Sul. Eu só sei que esse
estranho era você.

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