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Análise do conto “A Cartomante” de Machado de Assis

O conto “A Cartomante” de Machado de Assis foi publicado no jornal Gazeta de


Notícias do Rio de Janeiro no ano de 1884, e em 1896 no livro Várias Histórias.

Em “A Cartomante” somos apresentados a uma fase mais madura do autor, onde


Machado de Assis apresenta as ideias realistas do momento. Ele escrevia várias obras
com um tom de ironia (uma das características machadianas) e uma forte crítica a
sociedade daquele período a partir de comportamento de determinados personagens.

Apesar da temática central ser o adultério, o conto prioriza também a questão da


contradição humana, a partir do embate entre razão X emoção.

Já no início da história, o autor faz uma citação de Hamlet, de Shakespeare, utilizando o


recurso da intertextualidade. De primeira vista, o leitor associa a frase a fala de Rita,
mas a medida que o leitor vai lendo percebe que a frase acaba justificando o desfecho
do conto

“Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu


e na terra do que sonha a nossa filosofia. “

O fio condutor que faz o desenrolar da história é o triângulo amoroso entre Villela, Rita
e Camilo. Este último mantém uma amizade de longa data com Vilela, que acaba se
estendendo para a esposa de Vilela, Rita. Camilo e Rita passam a viver um caso
amoroso as escondidas.

A história se inicia com Rita indo visitar uma cartomante, querendo saber se seu amante
ainda a queria, após notar a ausência do mesmo. Camilo, afim de evitar despertar
suspeitas de seu amigo Vilela, decide parar de frequentar a casa dos dois após receber
bilhetes anônimos, onde a pessoa que escrevia afirmava saber do romance com a esposa
de seu melhor amigo. Camilo ri da decisão de sua amada, pois ele não acredita em
superstições.
Em um primeiro momento, acreditamos que Camilo era mais seguro e menos ingênuo
que Rita, mas no decorrer do conto, ao deparar-se com uma situação que lhe causa
medo e insegurança, o homem que até então nos passava uma imagem de “seguro”,
acaba por buscar amparo em algum lugar. É nesse momento que temos a segunda
aparição da personagem que dá nome ao conto.

O narrador, nos apresentou um Camilo que desdenhava da crença de Rita, mas que após
receber um bilhete de seu amigo Vilela, pedindo para que compareça urgentemente em
sua casa, o mesmo se rende ao desespero e não somente acaba por procurar ajuda nas
cartas, mas acredita plenamente na fala da cartomante, que o tranquiliza.

No entanto, ao contrário daquilo que a cartomante tinha lhe falado, ao chegar na casa de
Vilela, Camilo se depara com uma Rita “morta e ensanguentada”, e logo acaba sendo
assassinado por dois tiros de revólver disparados por seu então amigo. Após esse
episódio o conto é finalizado.

Villela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal,


e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pode sufocar
um grito de terror – ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e
ensanguentada. Villela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de
revólver, estirou-o morto no chão.

Como observamos, Camilo molda sua própria consciência e interpreta as palavras das
outras pessoas segundo seus próprios interesses, como o fato de acreditar que o bilhete
que recebeu de Vilela não constituía uma ameaça à sua vida. Essa mudança de
comportamento de Camilo ao longo da história representa a mudança de valores na
consciência diante de certos interesses. O desfecho da história pode ser interpretado
como uma crítica a necessidade desse olhar do outro para podermos construir nossa
consciência.

O cenário de fundo da história é o Rio de Janeiro do século XIX, a narrativa acontece


em espaços abertos e fechados. Assim como em outras de suas obras, Machado de
Assis, trás a forte presença de referências às ruas da cidade e caminhos que os
personagens vão percorrendo, como por exemplo no seguinte fragmento:
Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de
Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha,
olhando de passagem para casa da cartomante.

A primeira personagem que o autor nos apresenta é a jovem Rita, com 30 anos é
descrita pelo autor como uma dama graciosa, formosa e viva nos gestos e com olhos
cálidos. Camilo tem 26 anos de idade, trabalha como funcionário público, não possui
intuição, de começo aparenta ser alguém seguro, mas com passar vai se mostrando uma
pessoa ingênua e inexperiente. Já Villela, é o marido e um advogado, que apesar de ter
apenas 29 anos, aparenta ser mais velho que sua mulher, Rita. Temos também a
cartomante, uma mulher italiana de olhos esbugalhados e grande, magra e na faixa dos
40 anos de idade

A história é contada por um narrador onisciente, que está posicionado de forma superior
aos personagens. O narrador ocupa uma posição de mediador, ele não toma parte direta
dos eventos que acontecem, apenas relata-os. Ele detém conhecimento total do que já se
passou e transfere ao leitor informações referentes aos personagens e acontecimentos
que se envolveram. Outro traço presente, é a intrusão do narrador, como quando expõe
os sentimentos e percepções dos personagens, ou faz comentários referente a vida dos
mesmos, assim como defende a Tipologia de Friedman. (VER LÍGIA

“O narrador em terceira pessoa simula um


registro contínuo, focalizando a personagem
nos momentos precisos que interessam ao
andamento da história e à materialização
dos seres que a vivem.” (BRAIT, 2002, p.56)

Ainda que onisciente e com informações privilegiadas a respeito do desenrolar da


história, pode se perceber um conhecimento especial do narrador em relação a Camilo,
ele sabe dos medos, das intenções e os pensamentos, como pode-se notar no trecho:

“Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria


arrancar-lhe as ilusões”

Se o narrador já sabe o que Camilo ia fazer, mas não fez, e suas razões para não fazer,
podemos imaginar que o narrador se trata do próprio Camilo no futuro, ou que ele está
em uma posição privilegiada em relação ao personagem e aos acontecimentos . Isso fica
mais evidente nas últimas páginas do conto, no seguinte trecho:

“Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete,


mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas,
ou então- o que era ainda pior- eram-lhe murmuradas ao
ouvido, com a própria voz de Vilela. ‘Vem já, já, a nossa casa:
preciso falar-te sem demora’. Ditas assim, pela voz do outro,
tinham um tom de mistério e ameaça. Vem já, já, para quê?
A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o
que iria passar, que chegou a crê-lo. Positivamente, tinha
medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se
nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo
depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo (...)”

No excerto acima, podemos perceber que o narrador não descreve as ações de Camilo,
mas sim seu raciocínio, pensamentos e sentimentos em relação a situação que o mesmo
se encontra, com suposições de ações jamais realizadas, por exemplo a ideia de levar a
arma para ir ao encontro de seu amigo

Com a invenção do discurso indireto livre por Flaubert, que “tinha preferência por
narrar como se não houvesse um narrador conduzindo as ações e as personagens”
(LÍGIA, 1985), o narrador onisciente intruso foi perdendo espaço. Machado de Assis
foi um dos únicos a continuar utilizando esse tipo em suas obras.

Além do narrador onisciente intruso, podemos notar outras características marcantes do


estilo Machadiano, o fato de deixar muitos mistérios no ar e o uso de metáforas
constantes. Um fato que deixa o leitor bem curioso é quando se termina a história, e
mesmo assim fica com as seguintes questões pairando no ar: Como Villela descobriu
sobre a traição? Quem era o autor das cartas anônimas? Foi cartomante que revelou ao
marido sobre a traição? Ou ele teria descoberto através de alguma das cartas trocadas
entre os dois? E até mesmo o fato de se a cartomante realmente tinha o dom da vidência,
pois ao confirmar para Camilo sobre seu futuro, o que aconteceu foi totalmente o
oposto.

Perguntas como essa a história não consegue responder, então vai do imaginário de cada
leitor criar um fim ideal.
O tempo da história é cronológico, contém marcadores explícitos de temporalidade,
como vemos no fragmento: “(...) numa sexta-feira de novembro de 1989 (...)” e (...) era
perto de uma hora da tarde (...)”, além disso os acontecimentos da narrativa são
dispostos de uma forma em que o leitor é capaz de organizar cronologicamente o tempo
em que eles ocorreram.

A história é muito interessante, principalmente pelo fato de surpreender o leitor, que


conforme vai lendo, a narrativa vai apontando para um determinado desfecho, mas no
final é surpreendido por uma situação totalmente oposta da qual parecia ser.

Uma das características dos personagens de Machado de Assis é o fato de apresentarem


como seres dotados de contradições, com atitudes boas e más, generosas e desprezíveis.
Não dá para se dizer que no conto há um herói ou vilão, todos os personagens possuem
aspectos positivos e negativos. Todos são vítimas dos personagens com quem se
relacionam.

Ao longo do texto, não nos deparamos com nenhum juízo de valor sobre as atitudes
expostas. O narrador passa para quem está lendo, o encargo de julgar o comportamento
dos personagens em questão

Assim como em outras obras, onde Machado de Assis faz críticas sociais a sociedade da
época, em A Cartomante ele aborda temas como o adultério, a traição e a sustentação de
um casamento vazio para manter as aparências. Há uma hipótese de que o conto tenha
sido inspirado em uma história de um casal denunciada nos jornais daquela época.

REFERÊNCIAS:

BRAIT, Beth. A personagem. Série Princípios. São Paulo: Editora Ática, 2002.

https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2018/12/BRAIT-Beth-A-
personagem.pdf

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. Série Princípios São Paulo: Editora
Ática, 1985.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4864345/mod_resource/content/0/Chiappini_O
%20Foco%20Narrativo.pdf

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