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Contracapa

Foi neste livro que George Smiley se apresentou ao leitor


brasileiro. Ele é um espião, naturalmente, mas um espião diferente,
sem aquela aura de grande herói como tantos de seus colegas, e
apesar disso, ou talvez por isso mesmo, excitando mais ainda a
curiosidade do leitor.
Smiley parece tudo menos espião, tornando assim mais pungente
seu drama humano de espião — o drama do conflito entre o homem
social comum e aquela criatura muito especial que o submundo cada
vez maior da moderna espionagem exige, para quem são
estabelecidos critérios e leis próprios, que ele deve obedecer a fim de
poder desempenhar as complexas manobras do seu ofício, tão
sofisticadas quanto as jogadas de uma partida de xadrez disputada
por grandes mestres.
O autor, o inglês John Le Carré, dispensa apresentação, de vez
que é um nome mundialmente famoso desde o sucesso do romance
O espião que saiu do frio. É um escritor vigoroso — e precisava ser —,
para dar as exatas dimensões do drama humano vivido pelo
personagem, em meio a acontecimentos, sentimentos e reações
embaralhados de tal ponto que, logo, não se sabe mais quem é a
vítima e quem é o espião, e qual o fim visado. Talvez, então, só se
tenha uma certeza nesse complicado jogo: o culpado da história é o
mundo inseguro em que vivemos.
O morto ao telefone tem exatamente esse mundo como cenário;
nele se desenrola toda a ação do romance, num enredo
movimentado e cheio daquele ingrediente indispensável aos livros
do gênero — o suspense. Neste caso, a caçada sem tréguas movida
por Smiley a um perigoso agente inimigo... que é, por coincidência,
um amigo e ex-aluno.
A trama da história é soberba, os personagens geniais, e com este
livro Le Carré atinge novas alturas e firma ainda mais solidamente
sua posição de grande mestre da literatura contemporânea de
espionagem e aventura.
Introdução

Houve uma época em que a espionagem parecia estranhamente


desligada de nossas preocupações cotidianas. Sabíamos, é claro, que
a espionagem profissional era um fato, que a espionagem, nas
palavras de Alan Moorehead, “se desenrola, num mundo
peculiarmente seu, através das guerras e dos séculos”. Mas aquele
mundo era tão particular, tão especializado e apartada, que a
espionagem parecia ter mais realidade na ficção romântica do que no
fato objetivo.
Pois bem, na segunda metade do século XX, tudo isso mudou.
Nesta época aterradora, de destruição iminente, em que nossa
sobrevivência depende do conhecimento oportuno dos planos e das
potencialidades dos nossos inimigos, a espionagem em grande
escala tornou-se um fato importante da tida internacional. Os
governos abandonaram a simulação decorosa de outrora, os chefes
de Estado reconhecem abertamente que confiam na obtenção
clandestina de informações e os nossos meios de comunicação
inundam-nos de revelações quase diárias da fúria e do alcance da
“guerra secreta”.
A transformação operada em nossa atitude para com a
espionagem reflete-se na ficção que lemos. Já se foi o tempo em que
um autor podia escrever sobre o caráter romanesco e fantástico da
espionagem profissional e esperar ser levado a sério. As divertidas
novelas de espionagem de Ian Fleming são, por exemplo, mais
agradáveis quando são menos plausíveis. Nós as lemos não para
conhecer a verdade a respeito da moderna espionagem mas para
escapar dela.
A fórmula de Fleming não é, porém, a única nem a melhor. A
espionagem, tratada com realismo, é ainda um tema
admiravelmente empolgante de ficção. E, agora, acrescidos aos
velhos e infalíveis ingredientes do mistério e da expectativa, estão os
elementos relativamente recentes da proximidade e da importância.
Nas mãos de mestres contemporâneos como Eric Ambler, Graham
Greene, William Haggard ou Simon Harvester, as histórias de
espionagem se tornam muito mais do que meros passatempos
escapistas. Elas nos revelam, em termos humanos, algo assustador e
real acerca do mundo em que vivemos.
John Le Carré é uma das mais novas e brilhantes aquisições do
grupo ilustre de novelistas da espionagem realista. Sua novela de
sucesso mundial, O espião que saiu do frio, foi considerada sem
rodeios por Graham Greene como “a melhor história de espionagem
que já li”. Um crítico inglês, coincidentemente, empregara idênticas
palavras ao referir-se a O morto ao telefone. Pode-se concordar ou
discordar desses elogios, conforme o gosto de cada um, mas não
haverá discussão em torno de um ponto: quase a partir do momento
da publicação de seu primeiro livro, em 1961, John Le Carré chegou
bem próximo do topo de sua categoria.
Através de todas as novelas de John Le Carré, subjacente à trama
do enredo, à tensão do andamento e à inquietante fascinação da
autenticidade técnica, está uma preocupação pelos valores morais.
No fim, é essa preocupação que dá a suas novelas essa superioridade
especial. Admitimos, diz Le Carré, que a espionagem maciça é
necessária à sobrevivência na era nuclear, mas admitamos também
que a espionagem, a sabotagem e o assassinato são formas
indecentes de comportamento. Pode um homem ser um espião
decente? O que acontece a seu caráter se ele tenta?
Em O morto ao telefone, o exemplar desse dilema é George Smiley,
o espião decente e, por isso mesmo, incoerente. À medida que a
história se desenvolve, acompanhamos esse homem amável e
inteligente na procura cada vez mais tensa de um agente inimigo.
Mas o epílogo para o qual nos guia o enredo repleto de expectativas
não se reduz apenas a uma questão de êxito ou malogro. O agente
inimigo é amigo e ex-aluno de Smiley. Para Smiley o triunfo
profissional não significa mais do que angústia pessoal e ainda outro
problema revoltante e insolúvel de ética individual.
Em O espião que saiu do frio, John Le Carré, de maneira mais
amarga e um pouco mais explícita, apresentou o agente secreto em
seu papel deformador de vítima e algoz. Entre duas selvagens
explosões de fuzilaria no Muro de Berlim, Alec Leamas, colega de
Smiley, põe fim à tragédia essencial, inerente a toda a espionagem.
Apesar de todo o seu interesse por questões de consciência e
caráter, John Le Carré está longe de ser um autor didático. Se bem
que estejam implícitos por toda parte em sua obra, os problemas
morais raramente são enunciados ou discutidos. Ao contrário, as
histórias avançam velozmente através dos assombrosos meandros e
caprichos do enredo, crescendo em expectativa até os epílogos
satisfatórios e, em geral, inesperados. Le Carré maneja suas
personagens com uma mistura singularmente eficaz de penetração e
ironia, revela um conhecimento desconcertante de seus cenários às
vezes extravagantes e abrilhanta sua narrativa com um espírito
mordaz. Em suma, é um autor excepcionalmente interessante. Só
que é um pouco mais do que isso, também.
Mas creio que já é tempo de deixar que o leitor descubra tudo
isso por si mesmo. Le Carré, no fim de contas, não tem melhor
advogado do que ele próprio — um fato que ele demonstra
esmagadoramente nesta novela magistral.

JOHN KIRK
1

Breve história de George Smiley

QUANDO SE CASOU com George Smiley, pouco antes do fim da


guerra, Lady Ann Sercomb qualificou-o, ante seus atônitos amigos
de Mayfair, de espantosamente comum. Ao abandoná-lo dois anos
depois por um automobilista cubano, ela anunciou enigmaticamente
que, se não o tivesse deixado então, jamais poderia tê-lo feito; e o
Visconde Sawley fez uma visita especial a seu clube para comentar
que o gato botara as unhas de fora.
Este comentário, que durante uma curta temporada foi tomado
por um mot, só pôde ser entendido pelos que conheciam Smiley.
Baixote, gorducho e de índole tranquila, ele parecia gastar muito
dinheiro com roupas realmente ruins, que lhe pendiam em volta da
figura atarracada como a pele de um sapo engelhado. Sawley, de
fato, declarou no enlace que “Sercomb se uniu a um sapo de
chapéu”. Smiley, sem saber dessa descrição, atravessara gingando a
nave lateral da igreja em busca do beijo que o converteria num
príncipe.
Era ele rico ou pobre, camponês ou clérigo? De onde ela o tirou?
A incongruência da união era acentuada pela beleza indiscutível de
Lady Ann, o mistério estimulado pela desproporção entre o homem
e a noiva. Mas a bisbilhotice precisa ver as personagens em preto e
branco, ataviá-las de pecados e motivos facilmente transmitidos na
estenografia da conversa. E assim, Smiley, sem escola, pais,
regimento ou ofício, sem riqueza nem pobreza, viajou sem rótulos
no expresso social e logo se transformou em bagagem perdida,
destinada, quando o divórcio chegou e foi embora, a permanecer
sem dono na prateleira empoeirada das notícias de ontem.
Quando acompanhou seu astro a Cuba, Lady Ann dedicou um
pensamento a Smiley. Com relutante admiração, admitiu a si mesma
que, se houvesse apenas um homem em sua vida, Smiley seria ele.
Recordava satisfeita que havia demonstrado isso com o santo
matrimônio.
O efeito da partida de Lady Ann no ex-marido não interessou à
sociedade; esta, em verdade, não se preocupa com as consequências
dos casos sensacionais. Entretanto, seria interessante saber o que
Sawley e seu rebanho teriam dito sobre a reação de Smiley; daquela
cara carnuda, de óculos, franzida em enérgica concentração
enquanto ele mergulhava na leitura dos poetas alemães menores, as
mãos roliças e úmidas cerradas debaixo das mangas caídas. Mas
Sawley aproveitou a ocasião para o mais indiferente dar de ombros,
observando que partir c’est mourir un peu, e pareceu não ter percebido
que, embora Lady Ann tivesse apenas partido, um pouco de George
Smiley havia realmente morrido.
Aquela parte de Smiley que sobreviveu era tão incompatível com
a sua aparência como o amor, ou o culto dos poetas obscuros: era a
sua profissão, a de agente do serviço secreto. Era uma profissão que
lhe agradava e que generosamente lhe dera colegas também
humildes de personalidade e de origem. Ela proporcionara ainda o
que outrora ele amara mais do que tudo na vida: excursões
acadêmicas pelo mistério do comportamento humano, disciplinas
pela aplicação prática de suas próprias deduções.
Em certa ocasião na década de 20, quando saíra da sua escola
medíocre e tateando enveredara pesadamente pelos claustros
lôbregos do seu medíocre Colégio de Oxford, Smiley sonhara com
cursos de especialização e uma vida dedicada às obscuridades
literárias da Alemanha seiscentista. Mas o seu instrutor, que melhor
conhecia Smiley, guiou-o prudentemente para longe das honrarias
que teriam indubitavelmente sido suas. Numa bela manhã de julho
de 1928, Smiley, perplexo e afogueado, achou-se diante de uma junta
entrevistadora da Comissão Ultramarina de Pesquisa Acadêmica,
organização de que inexplicavelmente nunca ouvira falar. Jebedee (o
instrutor) tinha sido singularmente vago sobre a apresentação: “Vá
ver esses sujeitos, Smiley, eles podem querer ficar com você e pagam
o bastante para garantir uma companhia decente”. Mas Smiley
estava aborrecido e não escondeu seus sentimentos. Intrigava-o o
fato de que Jebedee, habitualmente tão incisivo, se mostrasse tão
evasivo. Ligeiramente agastado, concordou em adiar sua resposta a
All Souls até ver o “misterioso pessoal” de Jebedee.
Não foi apresentado à Junta, mas conhecia de vista metade dos
componentes. Lá estavam Fielding, o medievalista francês de
Cambridge, Sparke, da Escola de Línguas Orientais, e Steed-Asprey,
que jantou na mesa alta na noite em que Smiley fora convidado por
Jebedee. Tinha que admitir, estava impressionado. Fielding deixar
seus aposentos em Cambridge era um verdadeiro milagre!
Posteriormente Smiley sempre comparava essa entrevista a uma
dança do leque: uma progressão calculada de revelações, cada uma
exibindo partes diferentes de uma entidade misteriosa. Finalmente
Steed-Asprey, que parecia ocupar a presidência, afastou o último
véu, e a verdade surgiu diante de Smiley em toda a ofuscante nudez.
Ofereciam-lhe um posto no que, por falta de um nome mais
adequado, Steed-Asprey, ruborizado, chamava de Serviço Secreto.
Smiley pedira algum tempo para pensar. Deram-lhe uma
semana. Ninguém falara em dinheiro.
Passou aquela noite em Londres num lugar agradável e foi ao
teatro. Sentia-se estranhamente frívolo, e isso o inquietava. Sabia
muito bem que aceitaria, que poderia ter aceitado na entrevista. Uma
precaução instintiva, e talvez um desejo perdoável de impressionar
Fielding, o impediu de fazê-lo.
Em seguida a sua confirmação teve início o treinamento: casas de
campo anônimas, instrutores anônimos, inúmeras viagens e,
avultando cada vez mais, a perspectiva fantástica de trabalhar em
completa solidão.
Seu primeiro posto de operação foi relativamente agradável: uma
estada de dois anos como Englischer Dozent numa universidade
provinciana alemã: palestras sobre Keats e férias nos alojamentos
bávaros de caça com grupos d§ estudantes alemães graves e
solenemente promíscuos. No fim de cada uma dessas longas férias
trazia alguns deles para a Inglaterra, tendo já assinalado os
prováveis e transmitido suas recomendações por meios clandestinos
a um endereço em Bonn; no curso dos dois anos nunca soube se as
suas recomendações tinham sido aceitas ou ignoradas. Não tinha
meio algum de saber sequer se seus candidatos tinham sido
abordados. Na verdade não tinha nem meio de saber se suas
mensagens chegavam ao destino; e não tinha contato com o
Departamento quando estava na Inglaterra.
Suas emoções enquanto realizava essa tarefa eram mescladas e
irreconciliáveis. Intrigava-o ter de avaliar, com imparcialidade, o que
aprendera a qualificar de “potencial de agente” de um ser humano;
engendrar minúsculos testes de caráter e comportamento que o
informassem das qualidades de um candidato. Esta parte dele era
fria e desumana. Smiley, neste papel, era o mercenário internacional
de seu ofício, amoral e sem motivação afora a recompensa pessoal.
Inversamente, entristecia-se ao notar em si mesmo a morte
progressiva do prazer natural. Sempre retraído, via-se agora
esquivando-se das tentações da amizade e da lealdade humana;
resguardava-se cautelosamente de qualquer reação espontânea. Pela
força de sua inteligência, obrigava-se a observar a humanidade com
clínica objetividade, e porque não era imortal nem infalível odiava e
temia a falsidade de sua vida. .
Mas Smiley era um homem sentimental e o prolongado exílio
revigorou o seu profundo amor pela Inglaterra. Nutria-se
avidamente das lembranças de Oxford; da sua beleza, do seu
sossego racional e da madura lentidão dos seus julgamentos.
Sonhava com as férias do outono varrido pelos ventos em Hartland
Quay, com as longas caminhadas pelos penhascos da Cornualha, o
rosto liso e quente contra o vento do mar.
Esta era sua outra vida secreta, e ele chegou a odiar a obscena
intromissão da nova Alemanha, o passo pesado e o vozerio de
estudantes uniformizados, as caras marcadas, arrogantes e suas
respostas grosseiras. Indignou-se também com a intervenção da
congregação em sua disciplina: sua amada literatura alemã. E houve
uma noite, uma noite horrível no inverno de 1937, em que Smiley foi
à janela e viu uma enorme fogueira no pátio da universidade: em
volta dela agrupavam-se centenas de estudantes, as caras jubilosas e
reluzentes sob o clarão saltitante. E ao braseiro pagão atiravam livros
às centenas. Ele sabia de quem eram os livros: Thomas Mann, Heine,
Lessing e muitos outros. E Smiley, a mão úmida posta em concha ao
redor da ponta do cigarro, contemplava cheio de ódio, exultando por
ter conhecido o seu inimigo.
O ano de 1939 viu-o na Suécia, representante acreditado de um
bem conhecido fabricante suíço de armas de fogo portáteis — sua
ligação com a firma convenientemente antedatada.
Convenientemente também sua aparência se alterara um pouco, pois
Smiley descobrira em si mesmo um talento para esse papel que ia
além da mudança rudimentar imposta ao cabelo e do acréscimo de
um pequeno bigode. Durante quatro anos desempenhara o papel,
viajando para diante e para trás entre a Suíça, a Alemanha e a Suécia.
Nunca imaginara ser possível permanecer tanto tempo
amedrontado. Fizera aparecer uma irritação nervosa no olho
esquerdo que ainda o acompanhava quinze anos depois; a tensão lhe
cavara sulcos nas bochechas carnudas e na testa. Soube o que era não
dormir nunca, nunca relaxar, sentir a qualquer hora do dia ou da
noite a pancada inquieta do próprio coração; conheceu os extremos
da solidão e do desconsolo, o súbito e impulsivo desejo de mulher,
de bebida, de exercício, de qualquer narcótico que eliminasse a
tensão de sua vida.
Diante desse fundo de cena conduziu ele seu comércio e seu
trabalho de espião. Com o passar do tempo a rede se ampliou e
outros países corrigiram sua falta de previsão e de preparo. Em 1943
ele foi chamado. Ao fim de seis semanas estava ansioso por voltar
mas não lhe deram permissão:
— Você está liquidado — disse-lhe Steed-Asprey. — Prepare
novos homens, tire férias, case-se ou faça qualquer outra coisa.
Descanse.
Smiley pediu em casamento a secretária de Steed-Asprey, Lady
Ann Sercomb.
A guerra acabou. Mandaram-no embora, e ele carregou sua bela
esposa para Oxford a fim de se dedicar ao estudo dos poetas
obscuros da Alemanha seiscentista. Mas dois anos depois Lady Ann
estava em Cuba, e as revelações de um jovem criptógrafo russo em
Otava haviam criado uma nova oportunidade para homens com a
experiência de Smiley.
O serviço era novo, a ameaça impalpável e a princípio Smiley
teve prazer em executá-lo. Mas os mais moços estavam chegando,
possivelmente com ideias mais ousadas. Smiley não era material
para promoção e pouco a pouco foi compreendendo que entrara na
idade madura sem nunca ter sido jovem e que fora — da melhor
maneira possível — posto de parte.
As coisas haviam mudado. Steed-Asprey tinha ido embora,
fugira do Novo Mundo para a índia, em busca de outra civilização.
Jebedee morrera. Tomara um trem em Lille em 1941 com seu
operador de rádio, um jovem belga, e desde então não se teve mais
notícias de nenhum dos dois. Fielding estava aferrado a uma nova
tese sobre Roland. Só Maston continuava, Maston o arrivista, o
recruta da época da guerra, o Conselheiro dos Ministros em assuntos
do Serviço de Informações, “o primeiro homem”, dissera Jebedee, “a
jogar o tênis do poder em Wimbledon”. A aliança da OTAN e as
medidas violentas propostas pelos norte-americanos alteraram
completamente a natureza do Serviço de Smiley. Sepultados para
sempre estavam os dias de Steed-Asprey, em que ele transmitia as
ordens enquanto bebiam vinho do Porto em seus aposentos no
Magdalen College; o inspirado amadorismo de um punhado de
homens sumamente habilitados e mal remunerados dera lugar à
eficiência, à burocracia e à intriga de uma grande repartição
governamental — na realidade à mercê de Maston, com suas roupas
caras e sua comenda de cavaleiro, sua bem cuidada cabeleira
grisalha e suas gravatas cor de prata; Maston, que se lembrava até do
aniversário da sua secretária, cujas maneiras eram objeto da
zombaria das senhoras do arquivo; Maston, humildemente
alargando seu império e pesarosamente instalando-se em escritórios
cada vez mais amplos; Maston, promovendo reuniões elegantes em
Henley e alimentando-se dos êxitos de seus subordinados.
Tinham-no trazido durante a guerra, o funcionário público de
carreira, procedente de um departamento ortodoxo, o homem
indicado para cuidar de papéis e integrar o talento do seu pessoal na
embaraçosa máquina da burocracia. Para os Grandes era um
conforto lidar com um homem que conheciam, um homem que
podia reduzir todas as cores a cinzento, que conhecia os patrões e
sabia andar no meio deles. E o fazia tão bem. Apreciavam-lhe a
timidez quando ele se desculpava pela companhia que trazia, a
insinceridade quando defendia as excentricidades dos seus
subalternos, a flexibilidade quando formulava novas propostas. Nem
ele deixava escapar as vantagens de um homem de capa e espada
malgré lui, usando a capa para os patrões e preservando a espada
para os criados. Aparentemente, sua posição era singular. Ele não
era nominalmente o Diretor do Serviço, mas o Conselheiro dos
Ministros em assuntos do Serviço de Informações, e Steed-Asprey
tinha-lhe dado de uma vez por todas o título de Eunuco-Chefe.
Este era um mundo novo para Smiley: os corredores cintilantes
de luzes, os jovens elegantes. Sentia-se vulgar e antiquado, saudoso
da velha casa com terraços em Knightsbridge onde tudo começara.
Sua aparência refletia de certa forma esse mal-estar numa espécie de
depressão física que o tornava mais corcunda e mais do que nunca
parecido com uma rã. Piscava mais e ganhou o apelido de
“Toupeira”. Mas sua secretária debutante o adorava e
invariavelmente se referia a ele como “meu ursinho querido”.
Smiley estava agora muito velho para ir para o estrangeiro.
Maston não fizera segredo disto: — De todos os modos, meu caro, o
certo é que você está acabado depois de toda aquela correria durante
a guerra. É melhor que fique por aqui mesmo e ajude a levarmos o
barco para diante.
O que de certa forma explica por que George Smiley se achava no
banco traseiro de um táxi em Londres às duas horas da madrugada
de quarta-feira, 4 de janeiro, a caminho de Cambridge Circus.
2

Nós nunca fechamos

SENTIA-SE SEGURO no táxi. Seguro e aquecido. O aquecimento era


de contrabando, trazido da cama e armazenado contra a úmida noite
de janeiro. Seguro porque irreal: era o seu espectro que atravessava
as ruas de Londres e observava os seus infelizes catadores de
prazeres, correndo debaixo dos guarda-chuvas dos porteiros, e as
mundanas embrulhadas para presente em polietileno. Era o seu
espectro, decidiu, que havia saído do poço do sono e interrompido o
guincho do telefone na mesinha de cabeceira... Oxford Street... por
que era Londres a única das capitais do mundo que perdia sua
personalidade à noite? Smiley, enquanto se agasalhava mais dentro
do sobretudo, não podia pensar em nenhum outro lugar, de Los
Angeles a Berna, que tão facilmente abandonasse sua luta diária pela
individualidade.
O táxi dobrou em Cambridge Circus e Smiley aprumou-se no
assento com brusquidão. Lembrou-se do motivo pelo qual o Plantão
tinha telefonado, e a recordação tirou-o brutalmente dos devaneios.
A conversa voltou-lhe à mente palavra por palavra: uma façanha da
memória realizada havia muito tempo.
— Smiley, quem fala aqui é o Plantão. O Conselheiro está na
linha...
— Smiley* aqui é Maston. Você entrevistou Samuel Arthur
Fennan no Foreign Office ha quarta-feira, não foi?
— Foi... exato.
— Qual foi o caso?
— Carta anônima denunciando vinculação com o Partido em
Oxford. Entrevista de rotina, autorizada pelo Diretor da Segurança.
(Fennan não pode ter apresentado queixa, pensou Smiley, ele sabia
que eu o absolveria. Não havia nada irregular, nada.)
— Você foi duro com ele? Houve hostilidade, Smiley? Diga-me se
houve.
(Deus do céu, ele parece assustado. Fennan é capaz de ter posto todo o
Gabinete contra nós.)
— Não. Foi uma entrevista inteiramente amistosa. Nós nos
demos bem, creio. Na verdade, fui de certa forma um pouco além
das instruções.
— Como, Smiley, como?
— Bom, eu dei a entender a ele que não se preocupasse.
— Você... o quê?
— Disse a ele que não se preocupasse; via-se que ele estava muito
aperreado, por isso falei assim.
— O que foi que você disse a ele?
— Eu disse que eu não tinha poderes e que o Serviço também não
tinha; mas não encontrei nenhum motivo que' nos levasse a
incomodá-lo de novo.
— Isso é tudo?
Smiley parou um segundo; nunca vira Maston assim, nunca o
vira tão dependente.
— É, sim, é tudo. Tudo mesmo. (Ele nunca me perdoará por isso.
É o bastante para essa calma estudada, as camisas cremes e as
gravatas cor de prata, os almoços elegantes com ministros.)
— Diz ele que você pôs em dúvida a lealdade dele, que lhe
arruinou a carreira no Foreign Office, que é vítima de delatores
pagos.
— Ele disse o quê? Deve ter ficado completamente louco. Ele sabe
que está livre. O que é que ele quer ainda?
— Nada. Está morto. Matou-se às 10h30 da noite. Deixou uma
carta para o Ministro do Exterior. A polícia telefonou para uma de
suas secretárias e pediu permissão para abrir a carta. Depois nos
contou. Vai haver inquérito. Você está certo, não está, Smiley?
— Certo de quê?
— ... bom, deixe. Venha logo que puder.
Levara horas para conseguir um táxi. Telefonou para três pontos
de táxi e não obteve resposta. Por fim o de Sloane Square atendeu, e
Smiley esperou na janela do quarto de dormir, embrulhado no
sobretudo, até que viu o táxi estacionar na porta. Vieram-lhe à
memória os bombardeios aéreos na Alemanha, esta ansiedade irreal
na calada da noite.
Em Cambridge Circus mandou o táxi parar a uns cem metros do
escritório, em parte por hábito, em parte para concatenar as ideias
antes de enfrentar o interrogatório febril de Maston.
Mostrou o passe ao policial de serviço e rumou lentamente para o
elevador.
O Plantão saudou-o aliviado assim que o viu e juntos
enveredaram pelo corredor creme-claro.
— Maston foi ver Sparrow na Scotland Yard. Está havendo um
bate-boca para saber qual o departamento policial que se deve
encarregar do caso. Sparrow diz que é o Departamento Especial,
Evelyn diz que é o Departamento de Investigação Criminal e a
polícia de Surrey não sabe o que faz. Uma xaropada. Venha tomar
um café na toca do plantonista. Não tem garrafa mas se dá um jeito.
Smiley ficou contente de ver que era Peter Guillam que estava de
plantão naquela noite. Um sujeito cortês e ponderado, que se tinha
especializado na espionagem de satélites, o tipo da alma boa que tem
sempre um horário e um canivete.
— O Departamento Especial telefonou às doze e cinco. A mulher
de Fennan foi ao teatro e só o viu quando voltou sozinha às quinze
para as onze. Depois telefonou para a polícia.
— Ele morava não sei onde no Surrey.
— Walliston, transversal ao desvio de Kingston. Logo no terminal
da área metropolitana. Quando a polícia chegou, encontrou uma
carta para o Ministro do Exterior, no soalho, ao lado do corpo. O
Superintendente telefonou para o Comandante da Polícia, que
telefonou para o Plantão do Ministério do Interior, que telefonou
para o Funcionário Residente no Foreign Office e afinal obteve
permissão para abrir a carta. Aí começou a festa.
— Continue.
— O Diretor de Pessoal do Foreign Office telefonou para cá.
Queria o número da residência do Conselheiro. Disse que esta era a
última vez que a Segurança se metia com os funcionários dele, que
Fennan tinha sido um auxiliar dedicado e talentoso, e mais isso e
mais aquilo...
— Ele era mesmo. Era mesmo.
— Disse que o caso revelava claramente que a Segurança se
excedera... métodos da Gestapo que não eram atenuados sequer por
uma ameaça verdadeira... Forneci o número do Conselheiro e
disquei para ele no outro telefone enquanto o homem ia falando.
Num golpe magistral fiquei com o Foreign Office numa linha e
Maston na outra e lhe dei a notícia. Isto foi às 12h20. A uma hora
mais ou menos Maston chegou em adiantado estado de gravidez...
terá que informar o Ministro amanhã cedo.
Ficaram em silêncio por um momento, enquanto Guillam
derramava pó de café nas xícaras e adicionava água fervendo da
chaleira elétrica.
— Que tal era ele? — perguntou.
— Quem? Fennan? Bom, até hoje à noite eu podia dizer. Agora
não tem mais sentido. De aspecto, judeu, sem dúvida. De família
ortodoxa, mas largou tudo em Oxford e se tornou marxista.
Inteligente, culto... sujeito razoável. Fala mansa, ouvinte atento. Bem
educado. Bom, fatos não faltam. Quem o denunciou não mentiu: ele
pertenceu ao Partido.
— Que idade?
— Quarenta e quatro. Parece mais velho realmente. — Smiley
continuava a falar enquanto os olhos vagavam pela sala. — ... rosto
sensível... cabeleira negra e lisa, à moda dos estudantes, perfil de
vinte anos, pele fina e seca, bem pálida. Coberta de linhas também...
linhas em todas as direções, cortando a pele em quadrados. Dedos
muito finos... tipo compacto, reservado. Tem seus prazeres sozinho.
Sofria sozinho também, suponho.
Ergueram-se quando Maston entrou.
— Ah, Smiley. Entre. — Abriu a porta e estendeu o braço
esquerdo para dar passagem primeiro a Smiley. A sala de Maston
não continha um único objeto de propriedade do governo. O
Conselheiro comprara certa vez uma coleção de aquarelas do século
XIX, e algumas delas estavam penduradas nas paredes. O resto era
deslocado, decidiu Smiley. O próprio Maston estava deslocado
também. Sua roupa era leve demais para imprimir respeitabilidade;
o cordão do monóculo cruzava a invariável camisa creme. Usava
gravata cinza-claro, de lã. Um alemão o chamaria flo , pensou
Smiley; chique, é o que ele é — o verdadeiro cavalheiro dos sonhos
de uma garçonete.
— Estive com Sparrow. É um caso evidente de suicídio. O corpo
foi removido e, além das formalidades de praxe, o Chefe de Polícia
não recomendará nenhuma outra providência. Haverá uma
investigação dentro de um dia ou dois. Resolveu-se, e não é preciso
que eu exagere a importância disso, Smiley, que nenhuma palavra a
respeito do nosso antigo interesse em Fennan deve chegar ao
conhecimento da imprensa.
— Entendo. (Você é perigoso, Maston. Você está fraco e
assustado. O pescoço de qualquer um antes do seu, eu sei. Você me
olha desse jeito, medindo-me para a corda.)
— Não pense que estou fazendo críticas, Smiley; afinal, se o
Diretor da Segurança autorizou a entrevista, você não tem com que
se preocupar.
— Exceto Fennan.
— Exato. Infelizmente o Diretor da Segurança deixou de assinar a
instrução em que lhe sugeriu uma entrevista. Autorizou-a
verbalmente, sem dúvida.
— Isso mesmo. Estou certo de que ele vai confirmar.
Maston encarou Smiley outra vez, manhoso, calculador; algo
começou a grudar na garganta de Smiley.
Ele sabia que estava sendo intransigente, que Maston o queria
mais perto, queria que conspirasse.
— Sabe que o escritório de Fennan entrou em contato comigo?
— Sei.
— Vai haver um inquérito. Talvez nem seja possível manter a
imprensa a distância. A primeira coisa que tenho que fazer amanhã é
ver o Ministro do Interior. (Me assusta e tenta de novo... estou
envelhecendo... pensão a considerar... desemprego também... mas
não vou partilhar sua mentira, Maston.) — Preciso conhecer todos os
fatos, Smiley. Tenho que cumprir meu dever. Se há qualquer coisa
que você acha que deva me contar daquela entrevista, qualquer coisa
que talvez você não tenha registrado, conte agora e me deixe ser o
juiz da importância da revelação.
— Não há nada a acrescentar, realmente, ao que já está nos
arquivos e ao que eu lhe contei esta noite. Pode ser que seja útil a
você saber (o “você” saiu um pouquinho carregado, talvez)... pode
ser que seja útil a você saber que conduzi a entrevista numa
atmosfera de excepcional cordialidade. A alegação contra Fennan era
das mais inconsistentes... filiação nos tempos de estudante na década
de 30 e vagas insinuações de simpatia atual. Metade do Gabinete era
do Partido na década de 30. — Maston franziu a testa. — Quando fui
procurá-lo no Foreign Office, a sala dele me pareceu pública
demais... gente entrando e saindo o tempo todo, então que sugeri
que déssemos uma volta no parque.
— Prossiga.
— Bom, saímos. Era um dia ensolarado, frio e de certo modo
agradável. Fomos olhar os patos. — Maston fez um gesto de
impaciência. — Passamos coisa de meia hora no parque. Foi só ele
que falou. Era um homem inteligente, eloquente e interessante. Mas
nervoso também, não demais. Essa gente gosta de falar de si mesma,
e eu acho que ele estava satisfeito de poder abrir o peito. Contou a
história toda... pareceu se deleitar em citar nomes... e depois fomos a
um espresso que ele conhecia, perto de Millbank.
— Um quê?
— Um bar expresso. Vendem lá um tipo especial de café por um
xelim a xícara. Tomamos um pouco.
— Compreendo. Foi nessas... circunstâncias festivas que você lhe
disse que o Departamento não recomendaria nenhuma providência.
— Foi. Muitas vezes fazemos isso, mas em geral não o
registramos. — Maston assentiu com a cabeça. Aí estava o tipo da
coisa que ele entendia, pensou Smiley; valha-me Deus! ele realmente
é desprezível. Era emocionante descobrir que Maston era tão
desagradável quanto havia imaginado.
— E posso então presumir que o suicídio dele... e a carta,
naturalmente... é uma surpresa total para você? Não encontra uma
explicação?
— Seria de admirar que eu encontrasse.
— Não tem ideia de quem o denunciou?
— Não.
— Ele era casado, você sabe.
— Sei.
— Imagino... parece razoável pensar que a mulher dele talvez
possa encher algumas lacunas. Hesito em sugerir, mas talvez uma
pessoa do Departamento deva ir vê-la e, tanto quanto os bons
sentimentos permitirem, interrogá-la a respeito de tudo isso.
— Agora? — Smiley fitou-o, inexpressivo.
Maston estava parado em sua grande e lisa escrivaninha,
brincando com a cutelaria do homem de negócio: corta-papel,
cigarreira, isqueiro, todo o jogo químico da hospitalidade oficial.
Exibia uma polegada inteira de punho creme, pensou Smiley, e
admirava as próprias mãos alvas.
Maston ergueu os olhos, a fisionomia composta numa expressão
de simpatia.
— Smiley, sei como você se sente, mas, apesar dessa tragédia,
precisa procurar compreender a situação. O Ministro e o Ministro do
Interior vão exigir o mais completo relato desse caso e é minha tarefa
específica fornecer um. Em particular qualquer informação que
indique o estado de espírito de Fennan imediatamente depois de sua
entrevista com... conosco. Talvez ele tenha dito qualquer coisa à
mulher. Não é de supor que ele tenha dito, mas temos de ser
realistas.
— Quer que eu vá até lá?
— Alguém tem que ir. Há a questão da investigação. O Ministro
do Interior é quem decidirá sobre isso, naturalmente, mas no
momento carecemos dos fatos. O tempo é curto e você conhece o
caso, pois foi quem fez os inquéritos preliminares. Não há tempo
para outra pessoa se enfronhar no assunto. Se alguém vai, terá de ser
você, Smiley.
— Quando quer que eu vá?
— Tudo faz crer que a Sra. Fennan é uma mulher um tanto
esquisita. Estrangeira. Judia, também, suponho, muito sofrida da
guerra, o que aumenta o constrangimento. É uma mulher decidida e
relativamente impassível ante a morte do marido. Apenas
superficialmente, sem dúvida. Mas sensível e comunicativa. Pelo que
Sparrow me disse, acho que ela se mostra disposta a cooperar e
provavelmente vai recebê-lo quando você for procurá-la. A polícia
de Surrey pode avisá-la de sua ida e você pode ir de manhã cedo.
Telefono para você, depois.
Smiley se virou para sair.
— Ah, Smiley... — Sentiu a mão de Maston em seu braço e virou-
se para encará-lo. Maston usava o sorriso habitualmente reservado
para as velhas senhoras do Serviço. — Smiley, você pode contar
comigo; pode contar com meu apoio.
Deus meu, pensou Smiley: você realmente trabalha sem parar.
Um cabaré aberto vinte e quatro horas, é o que você é: “Nós nunca
fechamos.” Saiu para a rua.
3

Elsa Fennan

MERRIDALE LANE é um daqueles recantos do Surrey onde os


moradores travam uma batalha sem tréguas contra o estigma dos
subúrbios. Árvores, adubadas e criadas com mimos em todos os
jardins, quase ocultam as acanhadas “residências de caráter” que se
agacham por trás delas. A rusticidade do ambiente é acentuada pelas
corujas de madeira que montam guarda aos nomes das casas e pelos
indefectíveis anões esfacelados que se equilibram à beira dos
tanques de peixinhos dourados. Os habitantes de Merridale Lane
não pintam seus anões, suspeitando que este seria um vício
suburbano, nem, pela mesma razão, envernizam as corujas; mas
esperam pacientemente que os anos confiram a esses tesouros um
aspecto de antiguidade resistente à ação do tempo, até que chega o
dia em que as próprias vigas da garagem ostentam besouros e
brocas.
A ruela não é exatamente um beco sem saída, embora os
corretores de imóveis insistam em que é; o ponto mais afastado da
entrada pelo desvio de Kingston reduz-se timidamente a uma trilha
de cascalho, que por sua vez degenera num deplorável caminho de
barro através de Merries Field — levando a outra ruela
indistinguível de Merridale. Até mais ou menos 1920 esse caminho
conduzia à igreja paroquial, mas a igreja está situada agora no que é
praticamente uma ilha de tráfego adjacente ã estrada de Londres, e o
caminho que outrora guiava os fiéis ao culto proporciona uma
ligação supérflua entre os habitantes de Merridale Lane e Cadogan
Road. A faixa de terra devoluta chamada Merries Field já alcançou
uma eminência bem acima de suas aspirações: introduziu uma
cunha profunda no Conselho Distrital, separando fomentadores e
preservadores, e de maneira tão efetiva que em certa ocasião toda a
máquina da administração local em Walliston ficou paralisada. Uma
espécie de conciliação natural estabeleceu-se então: Merries Field
não está nem desenvolvida nem preservada pelos três pilares de aço
colocados a intervalos regulares dentro do terreno. Ao centro está
uma choça de canibal com um teto de colmo, chamada “O Asilo
Comemorativo da Guerra”, erigido em 1951 em memória dos que
tombaram em duas guerras, como um refúgio para os fatigados e
velhos. Ninguém parece ter perguntado que negócio poderiam ter os
velhos e fatigados em Merries Field, mas as aranhas pelo menos
encontraram um abrigo no teto, e como local de descanso de
construtores de pilares, a cabana era extraordinariamente
confortável.
Smiley chegou aí pouco depois das oito horas daquela manhã,
tendo estacionado o carro na delegacia de polícia, que distava uns
minutos a pé.
Chovia torrencialmente, chuva impetuosa e fria, tão fria que doía
no rosto.
A polícia de Surrey não tinha maior interesse no caso, mas
Sparrow despachara por sua conta um funcionário do Departamento
Especial , para permanecer na delegacia e agir, se necessário, como
elemento de ligação entre a Segurança e a polícia. Não havia dúvida
acerca das circunstâncias da morte de Fennan. Fora ele atingido nas
têmporas por uma bala disparada diretamente contra o alvo por
uma pistola francesa fabricada em Lille em 1957. A arma foi
encontrada debaixo do corpo. Todos os pormenores eram
compatíveis com suicídio.
O número quinze em Merridale Lane era uma casa baixa, estilo
Tudor, com os quartos nas empenas e uma garagem de tijolo com
vigas expostas. Podia ter sido ocupada por artistas, pensou Smiley.
Fennan não parecia se ajustar aqui. Fennan era mais do tipo
Hampstead e pequenas babás estrangeiras.
Levantou o ferrolho do portão e caminhou vagarosamente pela
passagem de carros até a porta da frente, procurando em vão
vislumbrar algum sinal de vida no outro lado das janelas providas
de caixilhos de chumbo. Fazia muito frio. Tocou a campainha.
Elsa Fennan abriu a porta.
— Telefonaram para perguntar se eu me incomodaria. Não soube
o que dizer. Tenha a bondade, entre. — Um vestígio de sotaque
alemão.
Ela devia ser mais velha do que Fennan. Uma mulher esbelta,
ardente, de cinquenta e poucos anos, cabelo bem curto e tingido de
cor de nicotina. Apesar de frágil, dava a impressão de resistência e
coragem, e os olhos castanhos que brilhavam em seu rostinho
recurvado eram de uma intensidade espantosa. Era um rosto gasto,
torturado e arruinado desde muito, x> rosto de uma criança
envelhecida de fome e esgotamento, o rosto da eterna refugiada, o
rosto dos campos de prisioneiros, pensou Smiley.
Ela lhe estendia a mão — era raquítica e rósea, ossuda ao tato. Ele
deu o nome.
— Você é o homem que entrevistou meu marido — disse ela — a
respeito de lealdade. — Levou-o para a sala de visitas, baixa e
escura. Não havia fogo. Smiley sentiu-se subitamente angustiado e
miserável. Lealdade a quem, a quê? Ela não parecia ressentida. Ele
era um opressor, mas ela aceitava a opressão.
— Eu apreciava muito o seu marido. Ele teria sido absolvido.
— Absolvido? Absolvido de quê?
— Havia uma presunção a justificar a investigação... uma carta
anônima. Encarregaram-me do caso. — Conteve-se e olhou para ela
com verdadeira solicitude. — A senhora sofreu uma perda terrível,
Sra. Fennan... deve estar esgotada. Passou a noite toda sem dormir...
Ela não correspondeu a essa manifestação de pesar:
— Muito obrigada, mas não espero dormir hoje. Dormir não é
um luxo de que eu gozo. — Lançou um olhar de esguelha para o
próprio corpo magro. — Meu corpo e eu temos de tolerar um ao
outro vinte e quatro horas por dia. Já vivemos mais do que a maioria
das pessoas. Quanto à perda terrível... Sim, suponho que sim. Mas,
eu lhe digo, Sr. Smiley, durante tanto tempo eu não possuí
outra coisa senão uma escova de dentes; de modo que estou
realmente habituada à ideia de posse, mesmo depois de oito anos de
casamento. Além disso, tenho a experiência de sofrer com discrição.
Inclinou a cabeça para ele, indicando-lhe que podia sentar-se, e
com um gesto singularmente antiquado espalhou a saia sob o
próprio corpo e sentou-se diante de Smiley. Estava muito frio na
sala. Smiley estava em dúvida se devia falar; não ousava encará-la,
mas olhava com vaga atenção, para a frente, procurando a todo o
custo em sua mente devassar o rosto cansado e viajado de Elsa
Fennan. Pareceu-lhe ter decorrido um bom tempo antes que ela
tornasse a falar.
— O senhor disse que o apreciava. Não foi esta a impressão que
ele teve, evidentemente.
— Não vi a carta do seu marido, mas ouvi falar do conteúdo, —
A cara grave, pesada, de Smiley voltava-se agora para ela: — E não
faz sentido, de modo algum. A bem dizer, eu disse a ele que não...
que nós recomendaríamos que a questão não fosse levada adiante.
Ela estava imóvel, disposta a ouvir. O que ele podia dizer: —
Lamento ter matado seu marido, Sra. Fennan, mas apenas cumpria o
meu dever. (Dever para com quem, santo Deus?) Ele foi do Partido
Comunista em Oxford, há vinte anos atrás; sua recente promoção
deu-lhe acesso a informações sumamente secretas. Um abelhudo nos
mandou uma carta anônima e não tivemos alternativa senão apurar
a verdade. A investigação fez nascer um estado de melancolia em
seu marido e o conduziu ao suicídio. — Mas Smiley ficou calado.
— Foi uma troça — disse ela de repente — uma estúpida
acrobacia de ideias; não tinha nada que ver com ele nem com
nenhuma pessoa viva. Por que o senhor se incomoda conosco? Volte
para Whitehall e procure outros espiões nas suas pranchetas. — Fez
uma pausa, não dando sinais de emoção além do ardor dos seus
olhos escuros. — É uma velha doença essa de que o senhor sofre, Sr.
Smiley — continuou ela tirando um cigarro da caixa — e eu Já vi
muitas vítimas dela. A mente se separa do corpo; pensa sem
realidade, governa um reino de papel e projeta sem emoção a ruína
de suas vítimas de papel. Mas às vezes a divisão entre o seu mundo
e o nosso está incompleta; os registros criam cabeças e braços e
pernas, e esse é um momento terrível, não é? Os nomes têm famílias
assim como passado e motivos humanos que explicam os tristes
dossiês e os falsos pecados. Quando isso acontecer, eu tenho pena do
senhor.
Parou um instante e depois continuou:
— É como o Estado e o Povo. O Estado é um sonho também, um
símbolo do nada, um vazio, uma mente sem corpo, um jogo
disputado com as nuvens no céu. Mas os Estados fazem guerra, não
fazem? e encarceram as pessoas. Sonhar com doutrinas... como é
puro! Meu marido e eu estamos purificados agora, não é verdade?
Ela o olhava fixamente. Seu sotaque era mais nítido agora.
— O senhor se chama a si mesmo o Estado, Sr. Smiley; o senhor
não tem lugar entre pessoas de carne e osso. Deixou cair uma bomba
do céu: não desça até aqui para ver o sangue, ouvir os gritos.
Ela não elevara a voz; olhava por cima dele, agora, para longe.
— O senhor parece alarmado. Eu devia estar chorando, suponho,
mas já não tenho lágrimas, Sr. Smiley. Sou estéril. Os filhos do meu
pesar estão mortos. Agradeço-lhe por ter vindo, Sr. Smiley. Pode
voltar agora. Não há nada que o senhor possa fazer aqui.
Ele estava sentado na ponta da cadeira, as mãos gorduchas
cruzadas sobre os joelhos. Tinha um ar preocupado e beato, como
um merceeiro lendo o termo de multa. A pele do rosto era branca e
luzidia nas têmporas e no lábio superior. Apenas sob os olhos havia
algum colorido: meias-luas de cor de malva seccionadas pela pesada
armação dos óculos.
— Olhe, Sra. Fennan; aquela entrevista foi quase uma simples
formalidade. Eu creio que o seu marido gostou dela, acho até que ele
se sentiu feliz por tê-la concedido.
— Como pode dizer uma coisa destas, como pode, agora que...
— Mas é a pura verdade; ora, nem sequer realizamos a coisa
numa repartição pública... quando cheguei lá notei que o gabinete de
Fennan era uma espécie de passagem entre duas outras salas. Assim,
saímos para o parque e fomos terminar a conversa num café. Não se
pode chamar a isso de inquirição, veja bem. Cheguei até a dizer a ele
que não se preocupasse... eu disse isto a ele. Não posso entender a
carta... ela não...
— Não é na carta, Sr. Smiley, que estou pensando. É no que ele
me contou.
— O que quer dizer?
— Ele saiu profundamente perturbado da entrevista, foi o que
me contou. Quando voltou na segunda-feira de noite, estava
desesperado, quase incoerente. Deixou-se cair numa cadeira e eu o
persuadi a ir deitar-se. Dei-lhe um sedativo que o fez dormir metade
da noite. Na manhã seguinte continuava falando na entrevista. Ela
lhe ocupou o espírito até morrer.
O telefone estava tocando lá em cima. Smiley ergueu-se.
— Com licença. Deve ser da repartição. Posso subir?
— É o quarto da frente, exatamente em cima desta sala.
Smiley subiu vagaroso a escada num estado de completo
atordoamento. Que diabo iria dizer a Maston agora?
Levantou o receptor, relanceando mecanicamente o número do
aparelho.
— Walliston 2944.
— Telefônica, bom dia. Sua chamada das oito e trinta.
— Ah... ah, sim, muito agradecido.
Desligou, aliviado com a folga temporária. Passou rapidamente
os olhos pelo quarto. Era o próprio quarto de dormir de Fennan,
austero mas confortável. Havia duas poltronas defronte da lareira a
gás. Smiley lembrou-se então de que Elsa Fennan estivera acamada
três anos depois da guerra. Era provavelmente uma herança
daqueles anos que eles ficassem sentados no quarto durante a noite.
Os vãos da parede em ambos os lados da lareira estavam cheios de
livros. No ângulo mais distante, uma máquina, de escrever em cima
de uma mesinha. Havia algo íntimo e tocante na arrumação, e
possivelmente pela primeira vez Smiley foi invadido pelo sentido
imediato da tragédia da morte de Fennan. Retornou à sala de visitas.
— Era para a senhora. A central telefônica avisando-a da
chamada das oito e trinta.
Percebeu ter havido uma pausa e fitou sem curiosidade a mulher.
Mas ela se afastara e estava de pé, olhando pela janela, as costas
esguias, eretas e imóveis, o cabelo esticado, curto, escuro de encontro
à luz da manhã.
De súbito ele a encarou. Ocorrera algo que ele devia ter notado lá
em cima no quarto, algo tão improvável que por um instante seu
cérebro não pôde captar. Mecanicamente ele se pôs a falar; tinha de
sair dali, afastar-se do telefone e das perguntas histéricas de Maston,
afastar-se de Elsa Fennan e da sua casa escura, intranquila. Sair e
pensar.
— Já a importunei demais, Sra. Fennan; agora sigo seu conselho e
volto para Whitehall.
Uma vez mais a mão frágil e fria, as murmuradas expressões de
pesar. Apanhou a capa no vestíbulo e saiu. O sol de inverno acabava
de surgir por um momento depois da chuva e repintava em cores
pálidas e úmidas as casas e árvores de Merridale Lane. O céu ainda
estava cinzento-escuro, e o mundo, embaixo, estranhamente
luminoso, refletindo a claridade que roubara ninguém sabia de
onde.
Caminhou devagarinho pela trilha de cascalho, receoso de que o
chamassem de volta.
Chegou à delegacia, dominado por pensamentos desordenados.
Para começar, não foi Elsa Fennan que tinha solicitado à central
telefônica uma chamada para as oito e trinta daquela manhã.
4

Fountain Café

O SUPERINTENDENTE do Departamento de Investigação Criminal


em Walliston era uma alma boa, afável, que media a competência
profissional pelos anos de serviço e não via defeito no hábito. O
Inspetor Mendel, de Sparrow, por outro lado, era um cidadão
magro, de cara de fuinha, que falava muito depressa pelo canto da
boca. Smiley em segredo comparava-o a um guarda-caça, um
homem que conhecia seu território e detestava intrusos.
— Tenho um recado do seu Departamento, senhor. Telefonar
para o Conselheiro imediatamente. — O Superintendente indicou o
seu telefone com uma mão enorme e saiu pela porta aberta do seu
gabinete. Mendel ficou. Smiley, como uma coruja, fitou-o por um
momento, avaliando-o.
— Feche a porta. — Mendel foi até a porta e empurrou-a
calmamente.
— Preciso obter uma informação do centro telefônico de
Walliston. Quem é o contato mais provável?
— O Supervisor Assistente. O Supervisor está sempre nas
nuvens; o Supervisor Assistente é quem faz o trabalho.
— Alguém no número 15 de Merridale Lane pediu para ser
chamado pelo centro às 8h30 da manhã de hoje. Quero saber a que
horas foi feito o pedido e quem o fez. Quero saber se há solicitação
permanente para essa ligação matinal, e em caso afirmativo gostaria
de conhecer os detalhes.
— Sabe o número?
— Walliston 2944. Assinante Samuel Fennan, creio eu.
Mendel foi ao telefone e discou 0. Enquanto aguardava a
resposta, disse a Smiley: — Não quer que ninguém saiba disto, não é
verdade?
— Ninguém. Nem mesmo você. Provavelmente não há nada
nisto. Se a gente começa a tagarelar a respeito de assassinato...
Mendel estava em contato com o centro e pedia para falar com o
Supervisor Assistente.
— Aqui é o DJ.C. de Walliston, gabinete do Superintendente.
Queremos uma informação... sim, naturalmente... ligue para mim,
então... D.I.C., linha externa, Walliston 2421.
Recolocou o fone no gancho e ficou esperando a chamada do
centro. — Moça sensata — murmurou, sem olhar para Smiley. O
telefone tocou e ele começou a falar imediatamente.
— Estamos investigando um roubo em Merridale Lane. Número
18. É possível que tenham usado o n<? 15 como ponto de observação
para um serviço na casa da frente. Você tem algum meio de
descobrir se houve chamadas feitas ou recebidas por Walliston 2944
nas últimas vinte e quatro horas?
Houve uma pausa. Mendel tampou o bocal com a mão e virou-se
para Smiley, esboçando um sorriso. De repente Smiley achou-o um
ótimo sujeito.
— Ela está perguntando às moças — disse Mendel — e vai
examinar os registros. — Tornou ao telefone e começou a rabiscar
algarismos no bloco do Superintendente. Empertigou-se
bruscamente e inclinou-se para a escrivaninha.
— Ah, sim. — A voz era descuidada, em contraste com a atitude.
— Quando será que ela fez o pedido? — Outra pausa. — 19h55... um
homem, é? A moça tem certeza disto, tem?... Ah, entendo, ah, bom,
isso explica tudo. Ainda assim, muito obrigado. Bem, pelo menos
sabemos onde estamos... não há de quê, foi uma grande ajuda... não,
só um palpite, somente... temos de pensar tudo de novo, não é
mesmo? Bom, muito obrigado. Muito gentil. Guarde segredo disso...
Até logo. — Desligou, arrancou a folha do bloco e enfiou-a no bolso.
Smiley falou apressado: — Há um café na estrada e eu preciso
comer qualquer coisa. Venha tomar uma xícara de café. — O telefone
tocou; Smiley podia quase ver Maston na outra extremidade do fio.
Mendel encarou-o um instante e pareceu compreender. Deixaram o
aparelho tocando e saíram do posto policial em disparada, rumando
para a rua principal.
O Fountain Café (proprietária Miss Glória Adam) era todo Tudor,
ferraduras, meio local e meio xelim mais caro do que em qualquer
outra parte. A própria Miss Adam servia o mais nauseabundo café
registrado ao sul de Manchester e tratava os fregueses de “meus
amigos”. Miss Adam não fazia negócio com amigos; simplesmente
roubava-os, o que de certo modo aumentava a ilusão de refinado
amadorismo que Miss Adam desejava tanto preservar. Sua origem
era obscura, mas com frequência ela se referia ao seu falecido pai
como “o Coronel”. Propalava-se entre os amigos de Miss Adam, que
pagavam particularmente caro pela amizade, que a patente de
coronel em questão fora concedida pelo Exército da Salvação.
Mendel e Smiley sentaram-se a uma mesa de canto, perto da
lareira, esperando pela comida. Mendel lançou um olhar de
estranheza a Smiley: — A moça lembra-se claramente da chamada;
chegou no fim do turno dela: cinco para as oito, ontem à noite. Uma
solicitação para uma chamada às 8h30 da manhã de hoje. Foi feita
pelo próprio Fennan. A moça foi categórica a esse respeito.
— Como?
— A verdade é que esse tal de Fennan tinha telefonado para o
centro no dia de Natal e a mesma moça estava de serviço. Queria
desejar Boas Festas a todas elas. A moça ficou toda assanhada.
Bateram um longo papo. Ela está convencida de que ontem foi a
mesma voz. “Um senhor muito culto”, disse ela.
— Mas isso não tem pé nem cabeça. Ele escreveu uma carta de
suicida às 10h30. O que aconteceu entre 8 e 10h30?
Mendel apanhou uma pasta velha e surrada. Não tinha fecho —
mais como uma pasta de música, pensou
Smiley. Tirou de dentro dela uma folha de papel amarelo-claro,
dobrada, e entregou-a a Smiley.
— Fac-símile da carta. O Superintendente mandou-lhe dar um
exemplar. Vão mandar o original para o Foreign Office e outra cópia
diretamente para Marlene Dietrich.
— Que diabo de mulher é essa?
— Desculpe, senhor. É como nós chamamos o seu Conselheiro. É
comum lá no Departamento. Desculpe.
Formidável, pensou Smiley, inteiramente formidável. Desdobrou
o papel e olhou a cópia. Mendel continuava a falar:
— Primeira carta de suicida que eu vejo que foi datilografada. A
primeira que eu vejo que vem com a hora em que foi escrita. A
assinatura parece correta, apesar de tudo. Confrontada lá no posto
com um recibo que ele assinou, de objeto perdido. Igualzinha.
A carta era datilografada, provavelmente em máquina portátil.
Como a denúncia anônima: foi batida também numa portátil. O
papel trazia a assinatura nítida, legível, de Fennan. Sob o endereço
impresso no alto da página, vinha a data e mais embaixo a hora:
10h30 p.m.:

“Caro Sir David.


Depois de alguma hesitação resolvi dar cabo da minha vida. Não
posso passar o resto dos meus dias carregando o rótulo de traidor e
suspeito. Entendo que minha carreira está arruinada, que sou vítima
de delatores pagos.
Respeitosamente,
SAMUEL FENNAN.”

Smiley leu várias vezes, a boca enrugada pela concentração, as


sobrancelhas um pouco levantadas pela surpresa. Mendel
perguntava alguma coisa:
— Como é que você descobriu?
— Descobri o quê?
— Esse telefonema de hoje de manhã.
— Ah, ouvi o telefone tocar. Pensei que fosse para mim. Não era.
Era o centro telefônico com essa história. Na hora mesmo não atinei
com a coisa. Presumi que fosse para ela. Desci e dei o recado.
— Desceu?
— Sim. O telefone deles está no quarto. É uma espécie de quarto
de dormir e sala de estar, realmente... a mulher era inválida, você
sabia? Acho que eles deixaram o quarto no estado em que era então.
Uma banda é gabinete de trabalho: livros, máquina de escrever,
mesa etc.
— Máquina de escrever?
— Sim. Portátil. Imagino que bateu esta carta nela. Mas quando
recebi aquele telefonema esqueci que não podia ter sido a Sra.
Fennan quem o solicitara.
— Por que não?
— Ela tem insônia... ela mesma me contou, achando até graça na
coisa. Sugeri que fosse descansar um pouco e ela me respondeu:
“Meu corpo e eu temos que tolerar um ao outro vinte e quatro horas
por dia. Já vivemos mais do que a maioria das pessoas.” E tem mais:
disse que não desfrutava do luxo de dormir. Então por que
precisaria dessa chamada às 8h30?
— E o marido? Por que precisaria disso? E afinal, quem
precisaria? Era quase hora do almoço. Deus guarde o Serviço
Público.
— Exatamente. Isso me confunde também. Se não me engano, o
Foreign Office abre tarde: às dez, acho. Mas, mesmo assim, Fennan
teria que correr para se vestir, fazer barba, tomar café e pegar o trem
na hora se não acordasse até 8h30. Além disso, a mulher dele podia
acordá-lo.
— Ela bem que podia estar fazendo fita com esse negócio de não
dormir — disse Mendel. — As mulheres sempre fazem: é insônia, é
dor de cabeça, sei lá o que mais. Faz a gente pensar que elas são
nervosas e temperamentais. Conversa fiada, quase sempre.
Smiley balançou a cabeça: — Não, ela não podia ter feito a
ligação, podia? Não estava em casa até as 10h45. Mas, mesmo
supondo que se enganou sobre a hora em que voltou, ela não podia
ter ido até o telefone sem ver primeiro o cadáver do marido. E você
não vai me dizer que a reação dela ao ver o marido morto foi subir a
escada e pedir que ligassem para ela de manhã cedo.
Beberam o café em silêncio durante algum tempo.
— Outra coisa — disse Mendel.
— Diga.
— A mulher de Fennan voltou do teatro às quinze para as onze.
Certo?
— É o que ela diz.
— Foi sozinha ao teatro?
— Não tenho ideia.
— Aposto que não foi. Aposto que teve que dizer a verdade aí, e
pôs a hora na carta para arranjar um álibi.
A mente de Smiley retornou a Elsa Fennan, à sua raiva, à sua
submissão. Parecia ridículo falar dela desse modo. Não: não Elsa
Fennan. Não.
— Onde encontraram o corpo? — Smiley perguntou.
— No pé da escada.
— No pé da escada?
— Exato. Atravessado no soalho da entrada. O revólver por baixo
do corpo.
— E a carta? Onde estava?
— Ao lado dele, no chão.
— Alguma outra coisa?
— Sim. Um caneco de chocolate na sala de visitas.
— Compreendo. Fennan resolve suicidar-se. Pede ao centro
telefônico que o chame às 8h30. Prepara um pouco de chocolate e
deixa-o na sala de visitas. Sobe a escada e datilografa sua carta de
despedida. Desce e se mata, sem tocar no chocolate. Tudo isso se
ajusta que é uma beleza.
— Como não? A propósito, não é conveniente você ligar para a
sua repartição?
Ele olhou para Mendel com uma expressão equívoca:
— Isso marca o fim de uma bela amizade — falou. Quando
caminhava para uma caixa de moedas ao lado de uma porta
marcada “Privativo”, ouviu Mendel dizer:
— Aposto que vai dizer isso aos rapazes. — Sorria realmente
enquanto pedia o número de Maston.
Maston queria vê-lo imediatamente.
Voltou para a mesa. Mendel estava mexendo outra xícara de café
como se isso exigisse toda a sua concentração. Comia um enorme
pão redondo.
Smiley ficou em pé ao lado dele.
— Vou ter de voltar a Londres.
— Bom, isso vai pôr o gato no meio dos pombos. — A cara de
fuinha virou-se bruscamente para Smiley: — Será que vai mesmo? —
Falava com a parte da frente da boca enquanto a parte de trás
continuava a lidar com o pão.
— Se Fennan foi assassinado, não há poder na terra que impeça a
imprensa de tomar conta da história — e acrescentou para si mesmo:
— Não creio que Maston vá gostar disso. Prefere o suicídio.
— Mas temos de enfrentar a situação, não é verdade?
Smiley calou-se, franzindo o cenho com ar grave. Já podia ouvir
Maston fazendo pouco de suas suspeitas, enxotando-as com uma
risada impaciente. — Não sei — disse. — Para falar a verdade, não
sei.
De volta a Londres, pensou, de volta ao Lar Ideal de Maston, de
volta à corrida de ratos, para saber de quem é a culpa. E de volta à
irrealidade de incluir uma tragédia humana num relatório de três
páginas.
Chovia novamente, agora uma chuva morna e incessante. No
breve percurso entre o Fountain Café e o posto policial ele se molhou
completamente. Tirou o sobretudo e atirou-o no assento de trás do
carro. Era um alívio estar deixando Walliston — mesmo que
estivesse indo para Londres. Ao dar a volta para pegar a estrada
principal, viu pelo canto do olho o vulto de Mendel estoicamente
caminhando pela calçada em direção ao posto, o chapéu de feltro
cinzento deformado e enegrecido pela chuva. Não ocorrera a Smiley
que o outro podia querer uma carona para Londres, e sentiu-se
descortês. Mendel, sem se perturbar com a sutileza da situação,
abriu a porta de passageiros e entrou.
— Isso é que é sorte — comentou. — Tenho horror a trens.
Cambridge Circus, não é para lá que você vai? Pode-me deixar no
caminho de Westminster, não pode?
Partiram e Mendel sacou uma desbotada lata verde de fumo e
enrolou um cigarro para si mesmo. Ia colocá-lo na boca, mas mudou
de ideia e ofereceu-o a Smiley, acendendo-o com um isqueiro
espetacular que produziu uma chama azul, de duas polegadas. —
Você está abafado, hem? — disse Mendel.
— Estou.
Houve uma pausa. Mendel falou:
— É o diabo quando a gente não sabe o que fazer.
Prosseguiram por mais sete ou oito quilômetros, quando Smiley
parou o carro à beira da estrada. Voltou-se para Mendel.
— Seria muito incômodo para você se a gente voltasse a
Walliston?
— Boa ideia. Vá lá e faça umas perguntas a ela.
Smiley fez a volta e tocou devagarinho para Walliston, para
Merridale Lane. Deixou Mendel no automóvel e percorreu a pé a
conhecida trilha de cascalho.
Ela abriu a porta e conduziu-o para a sala de visitas sem dar uma
palavra. Trajava o mesmo vestido, e Smiley procurou imaginar como
ela passara o tempo desde que a deixara naquela manhã.
Estivera ela andando de um lado para outro dentro de casa ou
ficara sentada, imóvel, na sala de visitas? Ou lá em cima no quarto
de dormir com as cadeiras de couro? Como se veria ela a si mesma
em sua recente viuvez? Levava já a sério seu novo estado, ou estava
ainda naquela disposição de ânimo secretamente exaltada que se
segue imediatamente à aflição? Ainda se olhava nos espelhos,
tentando divisar a mudança, o horror no próprio rosto, e chorando
quando não notava?
Nenhum dos dois se sentou. Ambos evitavam instintivamente a
repetição do encontro daquela manhã.
— Houve uma coisa que eu achei que lhe devia perguntar,
Senhora Fennan. Lamento muito ter de incomodá-la de novo.
— A respeito da chamada, imagino: a chamada matinal da
estação telefônica.
— Isso mesmo.
— Imaginei que isso ia intrigá-lo. Uma mulher que sofre de
insônia pedir que a chamem de manhã cedinho. — Ela tentava falar
com animação.
— Sim. É um pouco esquisito. A senhora vai com frequência ao
teatro?
— Vou. Uma vez de quinze em quinze dias. Sou sócia do Clube
do Teatro de Repertório de Weybridge, compreende? Costumo ir ver
tudo o que eles apresentam. Tenho lugar reservado automaticamente
para mim na primeira terça-feira de cada temporada. Meu marido
trabalhava até tarde nas terças-feiras. Nunca me acompanhava: só ia
ver os clássicos.
— Mas ele gostava de Brecht, não é? Pareceu muito emocionado
com os espetáculos do Berliner Ensemble em Londres.
Ela o encarou por um instante e depois, de súbito, sorriu: a
primeira vez que ele a via sorrir. Era um sorriso encantador:
iluminava-lhe todo o rosto, como o sorriso de uma criança.
Smiley teve uma visão fugaz de Elsa Fennan quando menina:
uma garota ágil, estabanada, esguia como a Petite Fade e de George
Sand — meio mulher, meio volúvel, menina enganosa. Via-a como
um Backfisch engabelador, lutando como gato pelo que era seu só, e
via-a também, esfaimada e encolhida num campo de prisioneiros,
desapiedada no combate pela própria sobrevivência. Era patético ver
naquele sorriso a luz de sua antiga inocência e uma arma acerada na
luta pela sobrevivência.
— Acho que a explicação daquela chamada é muito tola — disse
ela. — Tenho uma memória péssima. Infame, realmente. Saio para
fazer compras e esqueço o que vou comprar, assumo um
compromisso pelo telefone e esqueço-o no mesmo instante em que
desligo o aparelho. Convido gente para o fim de semana e quando os
amigos chegam não estamos em casa. Às vezes, quando há alguma
coisa que não pode ser esquecida de forma alguma, faço uma ligação
para o centro e peço que me chame poucos minutos antes da hora
marcada. É como o nó dado no lenço. Só que um nó não pode fazer
tocar uma campainha, não é mesmo?
Smiley olhou-a com atenção. Teve de engolir em seco antes de
falar.
— E para que era a chamada desta vez, Sra. Fennan?
Novamente o sorriso encantador:
— Aí é que está. Esqueci inteiramente.
5

Maston e luz de velas

ENQUANTO RUMAVA lentamente para Londres, Smiley ia-se


tornando cada vez maios consciente da presença de Mendel.
Tinha havido uma época em que o simples ato de dirigir um
carro era um alívio para ele; época em que encontrava na irrealidade
de uma viagem longa e solitária um paliativo para o cérebro agitado,
em que a fadiga de várias horas na direção de um automóvel fazia-o
esquecer preocupações mais sombrias.
Era talvez um dos marcos mais sutis da idade madura o fato de já
não lhe ser possível dominar a mente. Precisava agora de medidas
mais drásticas: chegara mesmo em certa ocasião a planejar na cabeça
um passeio por uma cidade europeia — ir registrando as lojas e
edifícios por onde passava, por exemplo, em Berna, uma caminhada
do Münster até a Universidade. Mas, apesar desse enérgico exercício
mental, os fantasmas do tempo presente intrometiam-se e
afugentavam-lhe os sonhos. Foi Ann quem lhe arrebatou a paz, Ann
que outrora tornara o presente tão importante e lhe ensinara o hábito
da realidade. E quando ela se foi embora, nada restou.
Ele não podia acreditar que Elsa Fennan tivesse assassinado o
marido. O instinto levava-a a defender-se, a acumular os tesouros da
sua vida, a construir em torno de si mesma os símbolos da existência
normal. Não havia agressão nela, nenhuma vontade, exceto a
vontade de preservar.
Mas quem podia adivinhar? O que foi que Hesse escreveu?
“Estranho perambular na névoa, cada um está só. Nenhuma árvore
conhece a vizinha. Cada uma está só.” Nada sabemos um do outro,
nada, Smiley dizia para si mesmo. Por maior que seja a nossa
intimidade, a qualquer hora do dia ou da noite em que pensemos
mais profundamente um no outro, nada sabemos. Como vou eu
julgar Elsa Fennan? Creio que compreendo os seus sofrimentos e as
suas mentiras assustadas, mas o que sei a respeito dela? Nada.
Mendel apontava para um poste com letreiro.
— ... é ali que eu moro. Mitcham. Nada mau, realmente. Estou
farto dos alojamentos de solteiros. Comprei uma casinha razoável,
geminada, lá embaixo. Para minha aposentadoria.
— Aposentadoria? Está muito distante.
— Sim. Três dias. É por isso que escolhi esse trabalho. Nada para
fazer, nenhuma complicação. Deixe tudo com o velho Mendel; ele
fará uma embrulhada dos diabos.
— Está bem. Acredito que na segunda-feira estaremos sem
emprego.
Levou Mendel até a Scotland Yard e foi para Cambridge Circus.
Ao entrar no edifício teve a impressão de que todo mundo sabia.
Era o modo como eles se portavam; uma ligeira diferença no olhar,
na atitude deles. Rumou direto para a sala de Maston. A secretária
de Maston achava-se à escrivaninha e ergueu a vista quando Smiley
entrou.
— O Conselheiro está?
— Está. À sua espera. Sozinho. Pode bater e entrar.
Mas Maston já abrira a porta e chamava-o. Vestia um paletó preto
e calças de riscas finas e cores diferentes. Lá está o cabaré, pensou
Smiley.
— Faz muito tempo que venho tentando entrar em contato com
você. Não recebeu meu recado? — perguntou Maston.
— Recebi, mas não creio que ia poder falar com você.
— Como? Não estou entendendo.
— Bom, não acredito que Fennan se tenha suicidado... acho que
foi assassinado. Não lhe podia dizer isso pelo telefone.
Maston tirou os óculos e fitou Smiley com verdadeiro assombro.
— Assassinado? Por quê?
— Ora, Fennan escreveu sua carta às 10h30 ontem à noite, se
aceitamos como correta a hora indicada na carta.
— E daí?
— Daí? As 7h55 ele fez uma ligação para o centro telefônico e
pediu que o chamassem no outro dia de manhã às 8h30.
— Como é que você sabe disso?
— Eu estava lá hoje de manhã quando o centro telefonou. Atendi
pensando que podia ser do Departamento.
— Como é que você pode saber que foi Fennan que pediu a
chamada?
— Mandei fazer uma investigação. A moça do centro conhecia
bem a voz de Fennan; estava convencida de que foi ele e de que ele
telefonou às cinco para as oito ontem à noite.
— E Fennan e a moça se conheciam?
— Não. Apenas trocavam amabilidades de vez em quando.
— E você conclui daí que ele foi assassinado?
— Bem, eu interroguei a mulher dele a respeito desse
telefonema...
— E...?
— Ela mentiu. Disse que foi ela mesma quem pediu a chamada.
Pretende fazer crer que é incrivelmente distraída: pede ao centro que
a chame de vez em quando, o que é o mesmo que dar nó num lenço,
sempre que tem um compromisso importante. E outra coisa: antes
de se matar, ele preparou um pouco de chocolate para beber. E não
bebeu.
Maston ouvia em silêncio. Por fim, sorriu e levantou-se.
— Parece que temos objetivos desencontrados — disse ele. —
Mando você descobrir por que Fennan se matou. Você volta e me diz
que ele não se matou. Não somos policiais, Smiley.
— Não. Às vezes fico sem saber o que somos.
— Você soube de qualquer coisa que afete a nossa situação aqui...
qualquer coisa que explique o gesto de Fennan? Enfim, qualquer
coisa que justifique a carta do suicida?
Smiley hesitou antes de responder. Já havia farejado a
aproximação daquele instante.
— Sim. Entendo, pelo que me disse a Sra. Fennan, que o homem
ficou inteiramente transtornado depois da entrevista. — Era até
melhor que Maston ouvisse toda a história. — Ficou obcecado. Não
pôde mais dormir. Ela foi obrigada a lhe dar um sedativo. O relato
que ela fez da reação de Fennan à entrevista que teve comigo
fundamenta plenamente a carta. — Guardou silêncio por um
momento, piscando aparvalhado. — O que eu quero dizer é que não
creio na mulher. Não creio que Fennan tenha escrito aquela carta
nem que tivesse intenção alguma de se matar. — Virou-se para
Maston. — Nós não podemos de forma alguma pôr de lado as
incoerências. E tem mais uma coisa — continuou precipitadamente
— não mandei fazer um exame pelos peritos, mas há certa
semelhança entre a carta anônima e a nota que Fennan deixou. Os
tipos parecem idênticos. É ridículo, eu sei, mas que se vai fazer?
Devemos chamar os policiais e fornecer-lhes os fatos.
— Fatos? — disse Maston. — Que fatos? Suponha que ela
mentiu. É uma mulher esquisita sob todos os aspectos, estrangeira,
judia. Só Deus sabe o que se passa na mente dela. Disseram-me que
ela sofreu muito na guerra, foi perseguida e outras coisas mais. Pode
ver em você o opressor, o inquisidor. Imagina que você está
tramando alguma coisa, entra em pânico e conta a você a primeira
mentira que lhe vem à cabeça. Isso a transforma numa assassina?
— Então por que Fennan fez a ligação? Por que preparou uma
bebida para dormir?
— Quem pode dizer? — A voz de Maston era mais envolvente
agora, mais persuasiva. — Se você ou eu, Smiley, fôssemos levados
um dia àquele ponto terrível em que resolvemos dar cabo de nossas
vidas, quem neste mundo poderia dizer quais foram os nossos
últimos pensamentos? E no caso de Fennan? Vê sua carreira
arruinada, a vida sem mais nenhum sentido. Não é admissível que
ele desejasse, num momento de fraqueza ou irresolução, ouvir outra
voz humana, sentir de novo o calor do contato humano antes de
morrer? Fantasioso, sentimental, é possível; mas não improvável
num homem tão superexcitado, tão dominado pela ideia de acabar
com a própria vida.
Smiley tinha de lhe render homenagem: era um bom
desempenho. E ele, Smiley, não podia rivalizar com Maston quando
as coisas chegavam a esse ponto. De súbito sentiu no íntimo o
alarma crescente de uma frustração intolerável. Com o alarma veio
uma fúria incontrolável contra esse parasita simulador, esse maricas
obsceno, de cabelos grisalhos e sorriso finório. Alarma e fúria
formaram uma torrente forte, inundando-lhe o peito, banhando-lhe
o corpo todo. Sentiu o rosto quente e vermelho, os óculos enevoados,
e as lágrimas brotaram-lhe nos olhos, aumentando-lhe a humilhação.
Compassivamente alheado, Maston prosseguia: — Você não
pode esperar que eu sugira ao Ministro do Interior, baseado em tais
provas, que a polícia chegou a uma falsa conclusão. Você sabe como
é tênue o nosso vínculo com a polícia. De um lado, temos as suas
suspeitas de que, em suma, o comportamento de Fennan ontem à
noite não foi coerente com a intenção de se matar. A mulher dele
parece ter mentido a você. Contra isso temos a opinião de detetives
experimentados, que não encontraram nada de anormal nas
circunstâncias da morte, e temos o testemunho da Sra. Fennan de
que seu marido ficou transtornado após a entrevista. Desculpe,
Smiley, mas a verdade é esta.
Fez-se completo silêncio. Smiley ia-se recompondo pouco a
pouco, e o processo deixou-o entorpecido e mudo. O olhar míope
fitava um ponto vago à sua frente, a cara gorda e enrugada ainda
conservava certo rubor, a boca relaxava-se, estupidificada. Maston
esperava uma palavra, mas Smiley estava cansado, subitamente
desinteressado de tudo. Sem olhar para Maston, levantou-se e foi-se
embora.
Chegou à sua sala e sentou-se. Mecanicamente examinou a mesa
de trabalho. A bandeja dos papéis recebidos continha pouca coisa:
circulares e uma carta endereçada a G. Smiley Esq., Ministério da
Defesa. A caligrafia era desconhecida; abriu o envelope e leu a carta.

Caro Smiley.
É imprescindível que almocemos juntos amanhã no Compleat
Angler, em Marlow. Por favor, faça o possível para estar lá à uma
hora. Tenho umas coisas para lhe contar.
Do seu
SAMUEL FENNAN

A carta estava escrita a mão e trazia a data do dia anterior, terça-


feira, 3 de janeiro. O carimbo do correio de Whitehall mostrava a
hora: 6h p.m.
Encarou-a estupidamente durante vários minutos, segurando-a
rigidamente diante de si e inclinando a cabeça para a esquerda. Em
seguida colocou-a sobre a mesa, abriu uma gaveta e tirou uma folha
de papel. Escreveu uma carta a Maston, pedindo demissão, e juntou
a ela, pregado com um alfinete, o convite de Fennan. Apertou o
botão da campainha para chamar a secretária, pôs a carta na bandeja
dos papéis despachados e rumou para o elevador. Como sempre, o
elevador estava empatado no subsolo com o carrinho de chá do
arquivo. Depois de uma breve espera, começou a descer as escadas.
No meio da caminhada lembrou-se de que tinha deixado o
impermeável e umas coisas miúdas lá na sua sala. Não importa,
pensou, eles mandarão entregar.
Sentou-se no carro estacionado, fitando através do para-brisa
ensopado.
Estava pouco ligando, tanto fazia. Sem dúvida ficara surpreso.
Surpreso de ter quase perdido o controle. As entrevistas tinham
desempenhado grande papel na vida de Smiley, e desde muito ele se
considerava imunizado contra todas elas: disciplinares, pedagógicas,
médicas e religiosas. Seu temperamento reservado detestava a
finalidade de todas as entrevistas, a intimidade opressiva, a
realidade inelutável de todas elas. Recordou um jantar
delirantemente feliz com Ann no Quaglino, quando descreveu para
ela a tática “Chameleon–Armadillo” de vencer o entrevistador.
Haviam jantado à luz de velas; a pele branca e as pérolas —
estavam bebendo conhaque — os olhos grandes e úmidos de Ann, só
para ele; Smiley bancando o amante e fazendo o papel
admiravelmente bem; Ann o amando e vibrando com a harmonia
que reinava entre os dois.
— ... e assim aprendi primeiro a ser camaleão.
— Então você ficou sentado lá, arrotando, seu sapo branco?
— Não, é uma questão de cor. Os camaleões mudam de cor.
— É claro que eles mudam de cor. Nas folhas verdes ficam
verdes. Você ficou verde, seu sapo?
Os dedos dele passearam de leve sobre os lábios dela.
— Escuta, cadelinha, enquanto eu te explico a técnica Smiley
Camaleão-Tatu de enfrentar o entrevistador impertinente. — O rosto
de Ann estava bem junto ao seu e ela o adorava com os olhos. — A
técnica se baseia na teoria de que o entrevistador, não amando
ninguém como a si mesmo, se deixa atrair pela própria imagem.
Então você assume a exata cor social, temperamental, política e
intelectual do inquisidor.
— Sapo bombástico. Mas amante inteligente.
— Silêncio. Às vezes este método esbarra na imbecilidade ou na
malevolência do inquisidor. Neste caso, entra o tatu.
— Usando cintos lineares, não é, sapo?
— Não, põe-se ele numa posição tão incongruente que a gente
fica superior a ele. Quem me preparou para a crisma foi um bispo
aposentado. Eu era todo o rebanho dele e recebi na metade das férias
orientação suficiente para uma diocese. Mas ao contemplar a cara do
bispo e imaginar que sob o meu olhar ela se cobria de pelos, garanti
a minha superioridade. A partir de então a habilidade aumentou. Eu
podia transformá-lo num macaco, engasgá-lo nos caixilhos das
janelas, mandá-lo nu aos banquetes maçônicos, condená-lo, como a
serpente, a andar de barriga no chão...
— Malvado sapo-amante.
E assim fora. Mas nas últimas entrevistas com Maston o poder de
se isolar tinha-o abandonado; Smiley comprometia-se demais.
Quando Maston deu os primeiros passos, Smiley estava já
demasiado cansado e enfastiado para competir. Supunha que Elsa
Fennan havia assassinado o marido, que ela tinha alguma razão
forte, mas isso já não o preocupava. O problema não existia mais;
suspeita, experiência, percepção, bom-senso — para Maston não
eram esses os elementos de fato. Papel era fato, Ministros eram fato,
Ministros do Interior eram fato sólido. O Departamento não se
interessava pelas impressões vagas de um funcionário isolado
quando elas estavam em conflito com a linha oficial.
Smiley estava cansado, profunda, tremendamente cansado. Sem
pressa dirigiu o carro para casa. Jantar fora esta noite. Coisa especial.
Era ainda hora de almoço — passaria a tarde perseguindo Olearius
através do continente russo em sua viagem hanseática. Depois,
jantar no Quaglino e um brinde solitário ao homicida triunfante, a
Elsa talvez, em sinal de gratidão por ter posto fim à carreira de
George Smiley com a vida de Sam Fennan.
Lembrou-se de apanhar a roupa lavada em Sloane Street e
finalmente chegou a Bywater Street, encontrando espaço para
estacionar num ponto situado umas três casas depois da sua. Saltou
carregando o embrulho de papel pardo da lavanderia, fechou o carro
cuidadosamente e como de costume rodeou-o todo, experimentando
as maçanetas. Continuava caindo uma chuva fininha. Alguém
estacionara outra vez defronte da sua casa, e isto o aborrecia.
Felizmente a Sra. Chapei fechara a janela do quarto de dormir; de
outra forma a chuva teria...
De repente pôs-se em guarda. Alguma coisa tinha-se movido na
sala de visitas. Uma luz, uma sombra, uma forma humana; uma
coisa qualquer, tinha certeza. Foi a vista ou o instinto? Foi a perícia
latente do ofício? Algum sentido ou nervo aguçado, alguma
faculdade remota de percepção prevenia-o agora, e ele dava atenção
ao aviso.
Sem pensar sequer, deixou cair as chaves no bolso do sobretudo,
galgou os degraus que levavam à porta de sua casa e tocou a
campainha.
Ela ecoou estridente pela casa. Houve um momento de silêncio.
Depois, chegou aos ouvidos de Smiley o som nítido de passos que se
aproximavam da porta, firmes e confiantes. Um rangido leve da
corrente, um estalido do trinco Ingersoll e a porta se abriu
rapidamente e sem dificuldade.
Smiley nunca o vira antes. Alto, louro, simpático, uns trinta e
cinco anos. Terno cinza claro, camisa branca e gravata cor de prata:
habillé en diplomate. Alemão ou sueco. A mão esquerda permanecia
negligentemente dentro do bolso do paletó.
Smiley encarou-o como se pedisse desculpas:
— Boa tarde. Pode-me dizer se o Sr. Smiley está?
A porta se abriu em toda a extensão. Pequena pausa.
— Está, sim. Não quer entrar?
Por uma fração de segundos ele hesitou.
— Não, muito obrigado. Pode fazer o favor de entregar isso a ele?
— Passou-lhe o pacote de roupa, desceu as escadas, e foi para o
carro. Sabia que ainda era observado. Pôs o carro em movimento, fez
a volta e entrou em Sloane Square sem olhar na direção de sua casa.
Encontrou uma brecha para estacionar em Sloane Street, meteu-se
nela e apressadamente anotou na caderneta sete séries de números.
Pertenciam aos sete carros parados ao longo de Bywater Street.
O que devia fazer? Chamar um policial? Fosse quem fosse,
àquela altura era provável que já se tivesse ido embora. Além disso,
havia outras considerações. Fechou outra vez o carro e dirigiu-se a
uma cabine de telefone público do outro lado da rua. Chamou a
Scotland Yard, comunicou-se com o Departamento Especial e
perguntou pelo Inspetor Mendel. Mas tudo indicava que o Inspetor,
tendo-se apresentado ao Superintendente, havia discretamente
antecipado os prazeres da aposentadoria e fora para Mitcham.
Smiley conseguiu o endereço dele depois de muito embuste e uma
vez mais partiu em seu carro, cobrindo três lados de uma praça e
desembocando em Albert Bridge. Comeu um sanduíche, tomou uma
boa dose de uísque num bar novo que dava vista para o rio e, quinze
minutos depois, atravessou a ponte a caminho de Mitcham, a chuva
batendo ainda em seu carrinho despretensioso. Estava preocupado,
muito preocupado de fato.
6

Chá e simpatia

QUANDO CHEGOU, ainda estava chovendo. Mendel encontrava-se


no jardim e tinha na cabeça o chapéu mais extravagante que Smiley
já vira. Começara a viver como um Anzac, mas a aba imensa
descaíra inteiramente, de modo que dava ao dono a aparência de um
cogumelo incrivelmente alto. Mendel tinha o olhar fixo num toco de
árvore, e de sua vigorosa mão direita pendia obediente um alvião
ameaçador.
Considerou Smiley por um momento, e depois um sorriso largo
cruzou-lhe vagarosamente o rosto fino enquanto estendia a mão.
— Chateação — disse Mendel.
— É. Chateação.
Smiley seguiu-o pelo caminho e entrou na casa. Suburbana e
confortável.
— A sala está sem aquecimento... cheguei ainda há pouco. Que
tal uma xícara de chá na cozinha?
Foram para a cozinha. Smiley entre teve-se em observar a
limpeza extrema, o arranjo quase feminino de todas as coisas. Só um
calendário policial na parede desmanchava a ilusão. Enquanto
Mendel punha a chaleira no fogão e se ocupava com xícaras e pires,
Smiley ia relatando tranquilamente o que acontecera em Bywater
Street. Quando concluiu, Mendel fitou-o longo tempo em silêncio.
— Mas por que ele o convidou a entrar?
Smiley pestanejou e corou ligeiramente.
— Isso é o que eu queria saber. Vacilei um instante. A sorte é que
eu tinha o embrulho.
Tomou um gole de chá.
— Embora eu não creia que ele se deixou engabelar pelo
embrulho. Pode ser, mas tenho minhas dúvidas. Dúvidas sérias.
— Será que não?
— Bom, eu não teria. Homenzinho num Ford entregando pacotes
de roupa lavada. Quem seria? Além disso, perguntei por Smiley e
depois disse que não queria vê-lo... ele deve ter achado isso muito
estranho.
— Mas ele andava atrás de quê? Que é que ele teria feito com
você? Quem ele imaginou que você fosse?
— O problema é exatamente esse, exatamente, compreende?
Acho que era por mim que ele estava esperando, mas é claro que não
imaginava que eu fosse tocar a campainha. Desnorteei-o. Acho que
ele me queria matar. Por isso é que me convidou a entrar:
reconheceu-me, mas é provável que só me conhecesse de fotografia.
Mendel fitou-o em silêncio um instante.
— Puxa! — disse por fim.
— Suponha que eu estou certo — Smiley continuou — que eu
tenho razão. Suponha que Fennan foi assassinado ontem à noite e
que eu quase o fui hoje de manhã. Bom, ao contrário do seu mundo,
o meu normalmente não acusa um homicídio por dia.
— Isso quer dizer o quê?
— Não sei. Não sei bem. Talvez antes de avançarmos você
pudesse conseguir algumas informações sobre esses carros para
mim. Estavam estacionados em Bywater Street hoje de manhã.
— Por que você mesmo não consegue?
Smiley encarou-o, confuso, por um segundo. Depois lembrou-se
de que não mencionara o pedido de demissão.
— Ah, desculpe. Não lhe contei, será que contei? Pedi demissão
hoje de manhã. Só tive o tempo exato de encaminhá-la antes de ser
demitido. Assim, estou livre como o vento. E também sem emprego
à vista.
Mendel pegou a lista de números e foi à entrada telefonar.
Minutos depois estava de volta.
— Vão nos telefonar em uma hora — disse ele. — Venha cá.
Quero mostrar a propriedade. Entende alguma coisa de abelhas?
— Um pouquinho, sim. Peguei o micróbio da História Natural
em Oxford. — Ia contar a Mendel como havia lutado com a
descrição goethiana das metamorfoses de plantas e animais na
esperança de descobrir, como Fausto, “o que sustenta o mundo em
seu ponto mais recôndito”. Queria explicar por que era impossível
entender a Europa do século XIX sem um conhecimento eficaz das
Ciências Naturais, sentia-se grave e cheio de pensamentos
importantes e sabia intimamente que isto se devia ao fato de seu
cérebro estar em luta com os acontecimentos do dia, de estar ele
próprio num estado de excitação nervosa. As palmas de suas mãos
estavam úmidas.
Mendel levou-o para fora pela porta dos fundos; três cortiços
bem tratados estavam encostados ao muro baixo de tijolo que corria
ao longo do fim do quintal. Mendel falava enquanto estavam de pé
sob a chuvinha fina:
— Sempre tive vontade de criá-las, de ver como se comportam.
Observo tudo: é de arrepiar, posso garantir. Tratantezinhas. —
Balançou a cabeça umas duas vezes em reforço desta opinião, e
Smiley voltou a examiná-lo com interesse. O rosto era magro mas
musculoso, a expressão inteiramente reservada; o cabelo cinzento-
escuro era curto e pontudo. Parecia indiferente ao tempo, e o tempo
a ele. Smiley conhecia perfeitamente a vida que se ocultava em
Mendel, vira em policiais do mundo inteiro a mesma pele curtida, as
mesmas reservas de paciência, amargura e raiva. Podia adivinhar as
longas horas infrutíferas de vigilância sob quaisquer condições
atmosféricas, à espera de alguém que podia não vir nunca... ou vir e
ir-se embora muito depressa. E sabia quanto Mendel e os outros
como ele estavam à mercê de personalidades caprichosas e
arrogantes, nervosas e instáveis, raramente sensatas e amistosas.
Sabia como homens inteligentes podiam ser inutilizados pela
estupidez de seus superiores, como semanas de trabalho paciente
noite e dia podiam ser postas de lado por tais pessoas.
Mendel conduziu-o pela trilha irregular coberta de pedra partida
até os cortiços e, ainda esquecido de que estava chovendo, começou
a desmontar um, demonstrando e explicando. Falava aos arrancos,
com pausas demoradas entre frases, indicando precisa e lentamente
com seus dedos finos.
Por fim voltaram para dentro de casa e Mendel mostrou-lhe as
duas peças do andar térreo. A sala de visitas era toda flores: cortina e
tapete floridos, floridas as capas dos móveis. Numa mesinha de
canto viam-se alguns vasos Toby e um par de esplêndidas pistolas
ao lado de uma taça de tiro ao alvo.
Smiley acompanhou-o ao andar superior. Pairava no ar um
cheiro de querosene proveniente da estufa no patamar da escada, e
da caixa do banheiro saía um borborejo desagradável.
Mendel mostrou o quarto onde dormia.
— A alcova nupcial. Comprei a cama numa liquidação por uma
libra. Colchão e estrado de molas. Incrível o que a gente cata por aí.
Os tapetes são ex-Rainha Elizabeth. São trocados todos os anos.
Comprei-os numa loja de Watford.
Smiley ficou na porta, um pouco embaraçado. Mendel voltou-se,
passou por ele e abriu a porta do outro quarto.
— E este é o seu quarto. Se você quiser. — Virou-se para Smiley.
— Eu não passaria a noite na sua casa se fosse você. Nunca se sabe,
não é mesmo? Além disso, dormirá melhor aqui. O ar é mais
saudável.
Smiley pôs-se a protestar.
— Isso é lá com você. Faça o que quiser. — Mendel ficou irritado
e atrapalhado. — Para ser franco, não entendo o seu trabalho, assim
como você não conhece o trabalho da polícia. Faça o que achar
melhor. Pelo que eu vi, você sabe cuidar-se.
Desceram a escada. Mendel acendera a lareira a gás da sala de
visitas.
— Bom, pelo menos deixe-me oferecer-lhe o jantar desta noite.
O telefone tocou no saguão. Era a secretária de Mendel com
informações a respeito dos números dos carros.
Mendel retornou. Deu a Smiley uma lista de sete nomes e
endereços. Quatro podiam ser postos de lado: os endereços
registrados eram de Bywater Street. Restavam três: um carro de
aluguel da firma Adam Scarr & Sons de Ba ersea, uma camioneta de
carga pertencente à Severn Tile Company, de Eastbourne, e o
terceiro era dado como propriedade do embaixador panamenho.
— Tenho uma pessoa na embaixada do Panamá. Aí não haverá
dificuldade... a frota da embaixada é de apenas três carros.
— Ba ersea não é longe — Mendel continuou. — Podíamos dar
um pulo até lá juntos. No seu carro.
— Mas claro — Smiley apressou-se em dizer — e jantaremos em
Kensington. Reservarei uma mesa no Entrechat.
Eram quatro horas. Ficaram algum tempo sentados, conversando
de maneira um tanto desconexa acerca de abelhas e questões
domésticas, Mendel inteiramente à vontade e Smiley ainda
acanhado e desajeitado, tentando encontrar um modo de falar,
procurando não bancar o inteligente. Podia adivinhar o que Ann
teria dito a respeito de Mendel. Ela teria gostado dele, tê-lo-ia
transformado numa personagem de ficção, teria arranjado uma voz e
uma cara especiais para o imitar, teria inventado uma história com
ele até que ele se ajustasse a suas vidas e deixasse de ser um
mistério: “Queridinho, quem diria que ele era tão tagarela! A última
pessoa que eu podia imaginar que me fosse dizer onde comprar
peixe barato. E que casinha gostosa... não chateia!... ele deve saber
que os jarros Toby são de morte mas não dá bola para isso. Acho-o
um doce. Convide-o para jantar, seu sapo. Tem de convidá-lo. Não
para fazer mangação, mas para gostar.” Ele não o teria convidado, é
claro, mas Ann estaria contente — tinha achado um meio de gostar
dele. E feito isto, esquecê-lo.
Era isso que Smiley queria, realmente: um meio de gostar de
Mendel. Não era tão veloz quanto Ann em encontrar um. Mas Ann
era Ann... certa vez ela quase matou um sobrinho de Eton porque ele
bebeu clarete com peixe, mas se Mendel acendesse um cachimbo
enquanto ela estivesse comendo crêpe suze e, era provável que ela
nem notasse.
Mendel preparou mais chá e ambos beberam-no. Por volta de
quinze para as cinco partiram para Ba ersea no carro de Smiley. No
percurso Mendel comprou um vespertino. Lia-o com dificuldade,
aproveitando a claridade das lâmpadas da rua. Depois de alguns
minutos, explodiu indignado:
— Bárbaros. Bárbaros sanguinários. Como são abomináveis!
— Bárbaros?
— Bárbaros. Boches, tedescos. Alemães sanguinários. Não daria
um caracol por todos eles. Cordeiros rubicundos e carnívoros.
Escoiceando os judeus de novo. No meio de nós. Derrotá-los,
soerguê-los. Perdoar e esquecer. Por que diabo esquecer, diga-me?
Por que esquecer roubos, assassinatos e estupros só porque milhões
os cometeram? Basta um pobre-diabo de bancário afanar dez xelins
para toda a polícia cair em cima dele. Mas Krupp e toda a sua
quadrilha... ah, não. Puxa, se eu fosse um judeu na Alemanha, eu...
Smiley despertou subitamente: — O que é que você faria? O que
é que você faria, Mendel?
— É, acho que me sujeitaria. O negócio agora é política,
estatística... Não tem sentido dar bombas H a eles. Política... E os
ianques... milhões de judeus na América. O que é que eles fazem?
Bolas! Dão aos boches mais bombas. Todos amigos... danem-se!
Mendel estava trêmulo de raiva. Smiley, em silêncio, pensava em
Elsa Fennan.
— Qual é a solução? — perguntou depois de algum tempo, só
para dizer alguma coisa.
— Sei lá! — respondeu Mendel, afobado.
Entraram em Ba ersea Bridge Road e pararam junto a um guarda
que estava na calçada. Mendel mostrou o cartão da polícia.
— A garagem de Scarr? Bom, nem chega a ser uma garagem, é só
um pátio. Negócio de sucata e carros de segunda mão. Quem não vai
atrás de uma coisa, vai atrás de outra, é o que Adam diz. Sigam pela
Príncipe de Gales até o hospital. Está encravada lá entre duas casas
prefabricadas. Terreno bombardeado. O velho Adam ajeitou-o com
escória de hulha e ninguém o pôs para fora.
— Você parece bem informado a respeito dele — disse Mendel.
— Tenho que estar. Andei fazendo umas visitinhas a ele. São
poucas as trapalhadas em que Scarr não andou metido. É um • dos
nossos fregueses mais constantes.
— ótimo, então. Há alguma coisa contra ele no momento?
— Não sei dizer. Mas pode-se pegá-lo a qualquer instante por
aposta ilegal. E Adam já está praticamente nos estatutos.
Rumaram para o Hospital de Ba ersea. O parque à direita deles
era escuro e hostil por trás das lâmpadas da rua.
— Que história é essa de estatutos? — perguntou Smiley.
— Piada do guarda. Quer dizer que o cara está há muito tempo
maduro para a detenção preventiva. Anos e anos. Pelo jeito é o meu
tipo — continuou Mendel. — Deixe-o comigo.
Encontraram o pátio tal como o guarda tinha descrito, entre duas
casas prefabricadas e arruinadas, numa fileira irregular de barracas
no terreno bombardeado. Por toda parte entulho, escória, lixo.
Fragmentos de asbesto, madeira e ferro velho, presumivelmente
adquiridos por Scarr para revenda ou adaptação, estavam
empilhados num canto, vagamente iluminados pelo clarão amarelo
procedente da casa mais afastada. Os dois homens olharam em
volta, calados. Então Mendel deu de ombro, pôs dois dedos na boca
e emitiu um apito estridente.
— Scarr! — gritou. Silêncio. A lâmpada do lado de fora da casa
acendeu-se, tornando indistintamente visíveis três ou quatro carros
velhos, de antes da guerra, em vários estágios de ruína.
A porta abriu-se vagarosamente e uma garota de uns doze anos
apareceu no limiar.
— Teu papai está em casa, belezinha? — perguntou Mendel.
— Não. Deve andar no Vitelo.
— Tá bom, meu bem. Obrigado.
Voltaram para a estrada.
— Que diabo é Vitelo, pode-me dizer? — perguntou Smiley.
— Vitelo do Filho Pródigo. Taverna lá da esquina. Dá para ir a
pé... é pertinho. Deixe o carro aqui mesmo.
Passava pouco da hora de abrir. O bar para o público estava
vazio, e enquanto esperavam o taberneiro a porta abriu-se para dar
passagem a um sujeito muito gordo de roupa preta. Ele foi direto ao
balcão, no qual começou a bater com uma moeda de meia coroa.
— Wilf — bradou. — Bota a cabeça de fora. Olha os fregueses,
seu felizardo. — Virou-se para Smiley: — Boa noite, amigo.
Do fundo da taverna uma voz respondeu: — Diga a eles que
deixem o dinheiro no balcão e voltem mais tarde.
O gordo fitou atentamente Mendel e Smiley por um momento e
depois disparou numa gargalhada: — Esses não, Wilf... eles são tiras!
— Gostou tanto da pilhéria que foi obrigado a sentar-se no banco
que corria ao longo da parede da sala, com as mãos sobre os joelhos,
os ombros enormes sacudindo-se de riso, as lágrimas escorrendo
pelas bochechas. De vez em quando dizia: “Essa é boa”, enquanto
tomava alento antes de novo acesso de riso.
Smiley encarou-o com interesse. Vestia um colarinho branco
engomado e muito sujo, de pontas redondas, uma gravata vermelha
florida cuidadosamente presa com alfinete por fora do colete preto,
botas militares e um terno preto lustroso, bastante surrado e sem
vestígio de vinco nas calças. Os punhos da camisa estavam negros de
suor, sujo de óleo de carro, e eram mantidos no lugar por clipes
torcidos que formavam um nó.
O taberneiro veio atendê-los. O estranho pediu uísque e
gengibirra e levou-os imediatamente para o salão de primeira classe,
onde havia uma lareira a carvão. O taberneiro olhou-o com ar de
reprovação.
— Tinha de ser ele mesmo, esse safado. Não quer pagar os preços
do salão, mas gosta da lareira.
— Quem é ele? — perguntou Mendel.
— Esse daí? Scarr é o nome dele. Adam Scarr. Por que Adam
ninguém sabe. Já o imaginou no paraíso? Grotesco pra burro, não é
não? Dizem por aí que se Eva lhe desse uma maçã ele comeria até as
sementes. — O taberneiro chupou os dentes e sacudiu a cabeça. Em
seguida gritou para Scarr: — Ô Adam, você não topa fazer negócio?
Os cidadãos vieram de muito longe para falar com você, ô monstro
do espaço sideral. Venha ver. Adam Scarr: um olhar e você assina o
compromisso de não beber mais.
Nova gargalhada. Mendel virou-se para Smiley.
— Vá me esperar no carro... é melhor ficar fora desse negócio.
Tem cincão aí?
Smiley tirou cinco libras da carteira, entregou-as a Mendel,
assentiu com a cabeça e saiu. Não podia imaginar nada mais terrível
do que lidar com Scarr.
— Scarr é você? — perguntou Mendel.
— Acertou, amigo.
— TRX 0891. É seu carro?
Scarr franziu a testa para o uísque e a gengibirra. A pergunta
parecia entristecê-lo.
— É? — disse Mendel.
— Era, patrão, era.
— Que diabos quer dizer com isso?
Scarr ergueu a mão direita e deixou-se cair novamente.
— Águas turvas, patrão, águas tenebrosas.
— Escute aqui. Já pesquei peixes maiores do que você pode
imaginar. Não sou de vidro, compreende? Não tenho nenhum
interesse nas suas negociatas. Onde está aquele carro?
Scarr pareceu dar o devido valor às palavras do outro.
— Estou vendo a luz, amigo. Você quer informação.
— É claro que eu quero.
— Tempos difíceis esses, patrão. O custo de vida, não é bom nem
falar, está nas alturas. Informação é mercadoria, mercadoria
vendável, não acha?
— Diga-me quem alugou o carro e não deixo você morrer de
fome.
— Não estou morrendo de fome, amigo. Só quero comer melhor.
— Cincão.
Scarr terminou de beber e repôs o copo na mesa com estrondo.
Mendel levantou-se e foi comprar outro trago.
— Foi roubado — disse Scarr. — Eu o tinha há alguns anos para
alugar sem chofer. Para o depo.
— Para o quê?
— O depo... o depósito. O sujeito quer um carro por um dia. A
gente recebe um depósito de vinte libras em dinheiro vivo, certo?
Quando o cara volta, está devendo quarenta xelins, compreende? A
gente dá a ele um cheque de trinta e oito libras, que anota nos livros
como prejuízo, e o negócio vale dez soberanos. Morou?
Mendel fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Pois bem, há três semanas chegou um sujeito. Alto. Escocês.
Bem de vida. Usava bengala. Pagou o depósito, levou o carro e
nunca mais tornei a vê-lo nem ao carro. Roubo.
— Por que não deu parte à polícia?
Scarr fez uma pausa e tomou um trago. Lançou um olhar triste a
Mendel.
— Muitos fatores contraindicam essa medida, patrão.
— Quer dizer que você mesmo o tinha roubado?
Scarr pareceu chocado.
— Tenho ouvido muitos boatos desfavoráveis sobre o indivíduo
que me vendeu o veículo. É só o que posso dizer — acrescentou,
compungido.
— Quando alugou o carro, o sujeito deve ter preenchido certos
papéis, não? Seguro, recibo etc. Onde estão eles?
— Falsos, todos falsos. Deu-me um endereço em Ealing. Fui lá e o
endereço não existe. Não tenho dúvida de que o nome era fictício
também.
Mendel enrolou o dinheiro no bolso e estendeu-o por cima da
mesa a Scarr. Sem nenhum constrangimento, Scarr desenrolou-o e
contou-o diante de quem quisesse ver.
— Sei onde encontrá-lo — disse Mendel — e sei de algumas
coisas dele. Se o que você me contou é conversa fiada eu torço o seu
pescoço.
Voltara a chuva e Smiley desejava ter trazido um chapéu.
Atravessou a estrada, entrou na transversal que acomodava o
estabelecimento de Scarr e dirigiu-se para o automóvel. Não havia
ninguém na rua, que estava singularmente quieta. A uns duzentos
metros o Hospital Geral de Ba ersea, pequeno e elegante, lançava
múltiplos raios de luz pelas janelas sem cortinas. A calçada estava
molhada e o eco das passadas de Smiley era nítido e chocante.
Parou à altura da primeira das duas casas prefabricadas que
demarcavam o pátio de Scarr. Um carro estava estacionado no pátio
com as luzes laterais acesas. Curioso, Smiley afastou-se da rua e
caminhou para o veículo. Era uma velha limusine MG,
provavelmente verde ou daquele marrom que esteve em moda antes
da guerra. A placa com o número estava mal iluminada e suja de
lama. Procurou decifrá-la, passando o indicador pelas letras: TRX
0891. Claro — aí estava um dos números que havia anotado de
manhã.
Ouviu passos pelas costas e se ergueu, virando-se para olhar.
Começara a levantar o braço quando recebeu a pancada.
Foi um golpe terrível — parecia rachar seu crânio em duas
metades. Ao cair sentiu o sangue quente correr livremente pela
orelha esquerda. “Basta, meu Deus, basta”, pensou Smiley. Mas
quase não sentiu o resto: apenas uma visão do próprio corpo, muito
longe, partindo-se lentamente como uma pedra; fendido e dividido
em fragmentos; depois, nada mais. Nada senão o calor do sangue
escorrendo pelo rosto e caindo no chão coberto de escória de carvão,
e bem longe as pancadas dos mineiros. Mas não aqui. Bem longe.
7

A história de Scarr

MENDEL O CONTEMPLAVA e o julgava morto, talvez. Esvaziou os


bolsos do sobretudo e estendeu-o cuidadosamente nos ombros de
Smiley. Em seguida correu, correu como um louco para o hospital,
precipitou-se pelas portas de vaivém do ambulatório para o interior
iluminado. Um jovem médico negro estava de plantão. Mendel
mostrou seu cartão, gritou-lhe alguma coisa, puxou-o pelo braço,
tentou levá-lo para a estrada. O médico sorriu, balançou a cabeça e
telefonou para uma ambulância.
Mendel voltou correndo pela estrada e aguardou. Alguns
minutos depois a ambulância chegou e homens adestrados
recolheram Smiley e o levaram.
— Vão enterrá-lo — pensou Mendel. — Aquele bastardo vai me
pagar.
Ficou ali um instante, fitando a nesga de terra empapada de lama
e escória de carvão onde Smiley tinha caído; o clarão vermelho das
luzes traseiras do carro não lhe revelava coisa alguma. O terreno
tinha sido irremediavelmente revolvido pelos pés dos homens da
ambulância e de alguns moradores das casas prefabricadas que
tinham chegado e saído como abutres espectrais. Complicações. E
não gostavam de complicações.
— Cachorro — disse Mendel ofegante e voltou lentamente para o
bar.
O salão estava quase cheio. Scarr fazia outro pedido no balcão.
Mendel agarrou-o pelo braço. Scarr virou-se e disse:
— Alô, amigo. Já de volta? Venha tomar um trago.
— Cale-se — disse Mendel. — Quero falar de novo com você.
Vamos lá para fora.
Scarr balançou a cabeça e chupou os dentes com uma expressão
afável.
— Nada feito, amigo, nada feito. Tenho companhia.
Indicou com a cabeça uma loura de dezoito anos, com os lábios
pintados quase de branco e seios inverossímeis, que estava
inteiramente imóvel a uma mesa de canto. Seus olhos pintados
tinham um ar permanentemente assustado.
— Escute — sussurrou Mendel — em dois segundos eu lhe
arranco essas orelhas imundas, seu mentiroso safado.
Scarr confiou sua bebida aos cuidados do taberneiro e saiu a.
passos lentos e dignos. Não olhou para a moça.
Mendel conduziu-o pela rua até as casas prefabricadas. As luzes
laterais do carro de Smiley iluminava-os da estrada, a uns sessenta
metros.
Entraram no pátio. A MG ainda estava lá. Mendel mantinha Scarr
firmemente preso pelo braço, pronto, se necessário, a torcer o
antebraço para trás e para cima, quebrando ou deslocando a junta do
ombro.
— Veja só — gritou Scarr com evidente satisfação.
— Ele voltou ao seio dos antepassados.
— Roubado, foi? — disse Mendel. — Roubado por um escocês
alto, de bengala e endereço em Ealing. Foi muita gentileza dele
devolver o carro, não foi? Atitude simpática, depois de todo esse
tempo. Você se enganou nesse seu maldito negócio, Scarr. — Mendel
tremia de raiva. — E por que estão acesas as luzes laterais? Abra a
porta.
Scarr voltou-se para Mendel na escuridão, a mão livre tateando
nos bolsos em busca das chaves. Sacou um molho de três ou quatro,
experimentou-as e por fim abriu a porta do carro. Mendel entrou,
procurou a lâmpada do teto e acendeu-a. Começou metodicamente a
investigar o interior do carro. Scarr, do lado de fora, esperava.
Mendel deu uma busca rápida, mas completa. Porta-luvas,
assentos, piso, ressalto da janela traseira: nada. Enfiou a mão no
bolso da porta de passageiros e retirou um mapa e um envelope. O
envelope era comprido e chato, de cor azul cinza com um remate de
linho. Do continente, pensou Mendel. Não havia nada escrito nele.
Abriu-o, rasgando. Dentro estavam dez cédulas usadas de cinco
libras e um pedaço de cartão-postal. Mendel levantou-o para a luz e
leu a mensagem escrita com caneta esferográfica:

“ACABADO AGORA. VENDA-O.”

Não havia assinatura.


Saiu do carro e agarrou Scarr pelos cotovelos. Scarr recuou
apressado: — Qual é o seu problema, amigo? — perguntou.
Mendel falou em voz baixa: — Não é meu problema, Scarr, é seu.
O maior problema que você já teve. Conluio visando homicídio,
tentativa de homicídio, delitos nos termos da Lei de Segurança
Nacional. E pode acrescentar a isso a contravenção ao Código de
Trânsito, a conspiração para fraudar o Imposto de Renda e umas
quinze outras acusações que me ocorrerão enquanto você estiver
ninando seu problema no leito de uma cela.
— Um momento, calma. Não precisa exaltar-se. De que se trata?
Quem foi que falou em homicídio?
— Escute, Scarr, você é um pobre-diabo, que vive cercando os
graudões. Pois bem, agora você é o graudão. Acho que isso lhe vai
custar uns quinze anos.
— Olhe, por favor, não diga isso.
— Digo, seu trouxa. Você foi apanhado entre dois graudões,
compreende? E você é o pexote. E que é que vai fazer? Vou morrer
de rir enquanto você apodrece nas grades e contempla a pança
gorda. Está vendo aquele hospital? Tem um cara morrendo lá
dentro, assassinado por esse seu escocês alto. Foi encontrado há
coisa de meia hora, esvaindo-se em sangue como um porco em seu
pátio. Há outro morto em Surrey, e pelo que sei há um em cada
condado. Por isso, este é o seu problema, bobalhão, não o meu. E
outra coisa, você é a única pessoa que sabe quem ele é, não é isso?
Ele bem que podia querer liquidar essa pista também, não podia?
Scarr deu lentamente a volta, passando para o outro lado do
carro.
— Entre aí — disse ele.
Mendel sentou-se na boleia e destravou a porta de passageiros
pelo lado de dentro. Scarr sentou-se a seu lado. Não acenderam a
luz.
— Estou indo bem de negócio por aqui — disse Scarr
calmamente — e o lucro é pequeno mas constante. Ou era até que
apareceu esse indivíduo.
— Que indivíduo?
— Vamos por partes, não me apresse. Faz uns quatro anos. Eu
não acreditava em Papai Noel até o dia em que ele apareceu.
Holandês, ele disse que era do ramo de diamantes. Não fingi
acreditar que ele era legal, veja bem, não sou tão biruta assim. Nunca
perguntei o que fazia nem ele me disse, mas imaginei que fosse
contrabando. Dinheiro tinha para tocar fogo, caía dele como as
folhas no outono. “Scarr”, disse ele, “você é um homem de negócios.
Eu não gosto de publicidade, nunca gostei, e ouvi dizer que somos
da mesma laia. Quero um carro. Não para ficar com ele, mas para
alugar.” Ele não colocou as coisas nesses termos por causa da
geringonça que ele falava, mas o sentido era esse. “Qual é sua
proposta?”, digo eu. “Faça a sua proposta.”
— “Bom”, diz ele. “Sou cauteloso. Quero um carro que não traga
complicações, supondo que eu sofra algum acidente. Mas um carro
para mim, Scarr, um bom carro velho com algo debaixo da capota.
Compre em seu nome”, diz ele, “e guarde-o para mim. Aí estão
quinhentas libras para começar, e vinte libras por mês pela garagem.
E vou-lhe dar uma gratificação, Scarr, por cada dia que eu levar o
carro. Mas sou cauteloso, compreende? E você não me conhece. O
dinheiro é para isso”, diz ele. “É para você não saber quem sou.”
— Nunca esqueci esse dia. Chovia muito, e eu curvado sobre um
velho táxi que apanhei de um sujeito em Wandsworth. Devia
quarenta libras a um corretor de apostas, e os policiais andavam
chateados comigo por causa de um carro que eu tinha comprado na
valsa e passado adiante em Clapham.
Scarr inalou o ar e depois expeliu-o com jeito de cômica
resignação.
— E lá estava ele, observando-me como a minha própria
consciência, derramando sobre mim suas cédulas de cinco libras
como se fossem bilhetes usados das corridas.
— Qual era o aspecto dele? — perguntou Mendel.
— Bem moço. Alto, louro. Mas frio, frio como gelo. Não o vi mais
desde esse dia. Mandava-me cartas de Londres, datilografadas em
papel sem timbre. Só dizia isso: “Esteja pronto segunda-feira de
noite”, “Esteja pronto quinta-feira de noite” e assim por diante.
Estava tudo combinado. Eu deixava o carro aqui fora no pátio, cheio
de gasolina e em ponto de bala. Ele nunca dizia quando ia voltar.
Chegava na hora de fechar ou mais tarde, deixava as luzes acesas e
as portas trancadas. Colocava duas libras no bolso da porta para
cada dia que tinha estado ausente.
— O que acontecia quando alguma coisa dava errado, quando
você tinha algum contratempo pela frente?
— Tínhamos um número de telefone. Ele me falou que eu podia
discar e perguntar por um nome.
— Que nome?
— Mandou-me escolher um. Escolhi Blondie. Ele não parece ter
achado muita graça nesse nome, mas ficou valendo. Primrose 0098.
— Você telefonou alguma vez?
— Sim, há uns dois anos fui passar dez dias com uma pequena
em Margate. Achei que devia preveni-lo. Uma moça atendeu o
chamado. Holandesa também, pelo jeito de falar. Ela disse que
Blondie estava na Holanda e que eu podia deixar o recado. Mas
depois disso não incomodei mais.
— Por que não?
— Comecei a reparar, veja bem, que ele vinha regularmente uma
vez de quinze em quinze dias, na primeira e na terceira terça-feira,
exceto em janeiro e fevereiro. Esta foi a primeira vez que ele veio em
janeiro. Trazia o carro de volta sempre na quinta-feira. É estranho
que ele tenha vindo hoje à noite. Mas este é o fim dele, não é? —
Scarr segurava na mão enorme o pedaço de cartão-postal que tinha
recebido de Mendel.
— Nunca faltava? Não passava muito tempo sem aparecer?
— No inverno demorava mais para aparecer. Em janeiro nunca
vinha, nem em fevereiro. Como eu disse.
Mendel tinha ainda na mão as 50 libras. Atirou-as na barriga de
Scarr.
— Não pense que você está com sorte. Não queria estar na sua
pele nem por dez vezes essa quantia. Eu voltarei.
Scarr pareceu preocupado.
— Eu não ia delatar — disse ele — mas não quero me meter
nisso, compreende? A não ser que a velha pátria vá sofrer, não é,
patrão?
— Ah, cale essa boca — disse Mendel. — Estava cansado. Tornou
a pegar o postal, saiu do carro e foi a pé para o hospital.
Não havia novidade no hospital. Smiley continuava inconsciente.
O D.I.C. fora informado. O que Mendel tinha de fazer era deixar
nome e endereço e ir para casa. O hospital telefonaria assim que
tivesse qualquer notícia. Depois de longa discussão, Mendel recebeu
da irmã a chave do carro de Smiley.
Mitcham, ele decidiu, era um péssimo lugar para morar.
8

Reflexões numa enfermaria de hospital

ELE ODIAVA A CAMA da mesma forma que um homem que se está


afogando odeia o mar. Odiava os lençóis que o aprisionavam,
impedindo-o de mexer a mão ou o pé.
E odiava a sala porque ela o assustava. Havia um carrinho junto à
porta, cheio de instrumentos, tesouras, ataduras e frascos, objetos
estranhos que traziam o terror do desconhecido, envoltos em linho
branco para os últimos sacramentos. Havia jarros altos, meio
cobertos com guardanapos, que pareciam águias brancas
aguardando o momento de lhe dilacerar as entranhas, outros
pequenos, de vidro, com tubos de borracha enroscados no interior
como cobras. Odiava tudo e estava com medo. Sentia calor e o suor
escorria-lhe do corpo, sentia frio e o suor empapava-o, percorrendo-
lhe as costelas como sangue frio. A noite e o dia alternavam-se sem
que Smiley os reconhecesse. Travava uma batalha contínua contra o
sono, pois quando fechava os olhos, eles pareciam voltar-se para
dentro do caos do seu cérebro; e quando às vezes, em virtude do
próprio peso, as pálpebras se encontravam, ele empregava toda a
sua força para separá-las e voltar a fitar a pálida luz que bruxuleava
no alto.
Então chegou o dia abençoado em que alguém devia ter
descerrado as venezianas e deixado entrar a claridade acinzentada
do inverno. Ouviu o barulho do tráfego lá fora e compreendeu que
ia viver. '
Assim, o problema da morte uma vez mais se tornara acadêmico
— um débito que iria adiando até ficar rico e poder pagar à sua
maneira. Era um sentimento esplendoroso, quase de pureza. Sua
mente estava maravilhosamente lúcida, abarcando como Prometeu
todo o seu mundo; onde ouvira isso: “a mente se separa do corpo,
governa um reino de papel...”? Estava saturado da luz acima dele e
desejava ter mais o que ver. Estava saturado das uvas, do cheiro de
mel de abelha e flores, dos chocolates. Queria livros e revistas
literárias; como podia estar em dia com suas leituras se não lhe
davam livros? Pesquisava-se tão pouco sobre o seu período, havia
tão pouca crítica criadora sobre o século XVII.
Passaram-se três semanas antes que Mendel obtivesse permissão
para visitá-lo. Apareceu na sala com um chapéu novo e um livro
sobre abelhas. Colocou o chapéu na extremidade da cama e o livro
na mesinha de cabeceira. Exibia um sorriso largo.
— Comprei um livro para você — disse ele — sobre abelhas. São
umas tratantezinhas habilidosas. Poderá interessá-lo.
Sentou-se na ponta da cama.
— Comprei um chapéu novo. Tolice, realmente. Para comemorar
minha aposentadoria Ah, sim, esqueci. Você está encostado também.
— Ambos riram e ficaram em silêncio outra vez.
Smiley pestanejou.
— Tenho a impressão de que você não está muito visível no
momento. Não me deixam usar meus velhos óculos. Vão-me arranjar
uns novos. — Fez uma pausa. — Você não sabe quem fez isso
comigo, sabe? .
— Talvez. Depende. Tenho uma pista, parece. Não sei o bastante.
Aí é que está a dificuldade. Sobre o seu serviço, quero dizer. A
Missão do Aço da Alemanha Oriental tem alguma significação para
você?
— Creio que sim. Chegou aqui há uns quatro anos para tentar
alguma coisa junto ao Ministério do Comércio.
Mendel deu conta de suas transações com Starr.
— Disse que era holandês. O único meio que Scarr tinha de
entrar em contato com ele era ligar para um número de telefone em
Primrose. Na lista de assinantes constava a Missão do Aço da
Alemanha Oriental, em Belsize Park. Mandei um sujeito bisbilhotar.
Tinha partido. Não havia nada lá, nem móveis. Tudo desocupado. Só
o telefone e assim mesmo fora do encaixe.
— Quando partiram?
— 3 de janeiro. Mesmo dia em que Fennan foi assassinado. —
Olhou ironicamente para Smiley. Este pensou um pouco e disse :
— Vá buscar Peter Guillam no Ministério da Defesa e traga-o
aqui amanhã. Pelo pescoço.
Mendel apanhou o chapéu e caminhou para a porta.
— Até — disse Smiley. — Muito obrigado pelo livro.
— Até amanhã — Mendel disse e saiu.
Smiley jazia de costas na cama. A cabeça doía. Bolas, pensou, não
agradeci o mel. Tinha vindo de Fortnums também.
Por que o telefonema de manhã? Isso era o que mais o intrigava.
Bobagem, realmente, supunha Smiley, mas, de todas as coisas
inexplicáveis, essa era a que mais o inquietava.
A explicação de Elsa Fennan fora tão tola, tão visivelmente
inverossímil. Ann, sim; ela faria o centro telefônico andar de cabeça
para baixo se lhe desse na veneta, mas não Elsa Fennan. Nada havia
naquele rostinho vivo, inteligente, nada em sua total independência
que apoiasse a ridícula pretensão de ser distraída. Ela podia ter dito
que o centro cometera um engano, telefonara no dia errado,
qualquer coisa. Fennan, sim; ele era distraído. Era uma das
incoerências extravagantes do caráter de Fennan que vieram à tona
nos inquéritos antes da entrevista. Um leitor voraz de romances de
faroeste e um enxadrista inveterado, músico e filósofo nas horas
vagas, um homem de pensamento profundo, mas distraído. Tinha
havido mesmo certa vez uma confusão dos diabos pelo fato de ter
ele tirado alguns documentos secretos do Foreign Office, e depois se
descobriu que ele os colocara na pasta dos despachos, juntamente
com seu Times e o jornal da tarde, antes de ir para casa em
Walliston.
Teria Elsa Fennan, em pânico, posto sobre si o manto do marido?
Ou o motivo do marido? Teria Fennan solicitado a chamada para
lembrar-se de alguma coisa e Elsa ter-se-ia então apropriado do
motivo? Mas de que Fennan precisava se lembrar — e que tornou
sua mulher tão empenhada em esconder?
Samuel Fennan. O novo mundo e o velho encontravam-se nele. O
eterno judeu, culto, cosmopolita, resoluto, industrioso e inteligente:
para Smiley, imensamente atraente. O filho do seu século:
perseguido, como Elsa, e enxotado de sua Alemanha adotiva para a
universidade na Inglaterra. Graças ao simples peso da sua
competência, vencera desvantagens e preconceitos e finalmente
entrara para o Foreign Office. Fora um feito notável, devido
exclusivamente ao seu talento. E se era um pouco presumido, um
pouco avesso a acatar a decisão de mentes mais prosaicas do que a
sua, quem poderia culpá-lo? Houvera certo embaraço quando
Fennan se pronunciou a favor de uma Alemanha dividida, mas tudo
se desvanecera, ele fora transferido para um departamento asiático e
o caso fora esquecido. Quanto ao mais, tinha sido de uma
generosidade enorme e gozara de popularidade tanto em Whitehall
como em Surrey, onde dedicava várias horas todos os fins de
semana a obras de filantropia. Sua grande paixão era esquiar. Todos
os anos gozava suas férias de uma vez só e passava seis semanas na
Suíça ou na Áustria. Visitara a Alemanha só uma vez, lembrava-se
Smiley; fora com a mulher há uns quatro anos.
Era perfeitamente natural que Fennan tivesse militado na
esquerda em Oxford. Era então a fase da grande lua de mel do
comunismo universitário, e as causas defendidas pelos esquerdistas
estavam bem próximas do coração de Fennan. A ascensão do
fascismo na .Alemanha e na Itália, a invasão japonesa da Manchúria,
a insurreição de Franco na Espanha, a depressão na América e acima
de tudo a onda de antissemitismo que varria a Europa: era inevitável
que Fennan procurasse uma saída para sua cólera e repulsa. Além
disso, o partido era respeitável na época; o malogro do Partido
Trabalhista e do governo de coalizão havia convencido muitos
intelectuais de que só os comunistas ofereciam alternativa eficaz ao
capitalismo e ao fascismo. Havia a excitação, um ar de conspiração e
camaradagem que devia ter exercido atração sobre o temperamento
ardente de Fennan, consolando-o em sua solidão. Falava-se em ir
para a Espanha; alguns tinham ido, como Cornford, de Cambridge,
para nunca mais voltar.
Smiley podia imaginar Fennan naquela época: volátil e
apaixonado, sem dúvida levando aos companheiros a experiência do
sofrimento real, um veterano entre recrutas. Seus pais tinham
morrido: o pai, que era banqueiro, fora bastante previdente para
abrir uma conta modesta na Suíça. Não era grande coisa, mas dava
para manter o filho em Oxford e protegê-lo contra o vento gelado da
pobreza.
Smiley lembrava-se nitidamente da entrevista que tivera com
Fennan: uma entre muitas, mas diferente. Diferente por causa de
linguagem. Fennan era tão eloquente, tão vivaz, tão seguro. “O
maior dia deles”, dissera, “foi aquele em que os mineiros vieram.
Eles vinham da Rhondda, e para os camaradas parecia que o espírito
da Liberdade os acompanhava desde o alto das colinas. Era uma
marcha da fome. Creio que o Grupo não se deu conta de que os
manifestantes podiam realmente estar famintos, mas eu me dei.
Alugamos um caminhão e as moças prepararam cozido — toneladas
de cozido. Conseguimos a carne barata com um açougueiro
simpatizante da causa no mercado. Fomos de caminhão ao encontro
deles. Comeram o cozido e prosseguiram. Não gostavam de nós,
realmente, não tinham confiança em nós.” Deu uma risada. “Eram
tão baixinhos... lembro-me perfeitamente disso... baixinhos e escuros
como duendes. Esperávamos que cantassem e eles cantavam. Mas
não para nós — para eles mesmos. Aquela foi a primeira vez que me
encontrei com os galeses. Fez-me entender melhor minha própria
raça, acredito. Sou judeu, você sabe.”
Smiley fizera um sinal afirmativo com a cabeça.
“Eles não sabiam o que fazer depois que os galeses partiram. O
que é que se faz quando um sonho se converte em realidade?
Compreenderam então que o partido não dava muita atenção aos
intelectuais. Creio que se sentiam desprezíveis, principalmente, e
envergonhados. Envergonhados de suas camas e de seus quartos, de
suas barrigas cheias e de seus ensaios engenhosos. Envergonhados
de seus talentos e de seu humor. Estavam sempre contando como
Keir Hardie aprendera estenografia com um pedaço de giz no rosto
coberto de carvão. Estavam envergonhados de ter lápis e papel. Mas
não é justo escorraçá-los, é? Foi isso que aprendi no fim de tudo.
Suponho que foi por isso que larguei o partido.”
Smiley queria perguntar como ele próprio, Fennan, se sentira,
mas Fennan estava novamente com a palavra. Não eram homens,
mas crianças, que sonhavam com explosões libertárias, música
cigana e o mundo sem fronteiras de amanhã, que montavam em
cavalos brancos do outro lado do Golfo de Biscaia ou com prazer
infantil compravam cerveja para os duendes famintos do País de
Gales; crianças que não tinham forças para resistir ao sol do Leste e
obedientemente inclinavam suas cabeças despenteadas na direção
dele. Amavam-se uns aos outros e acreditavam amar a humanidade,
combatiam uns aos outros e acreditavam combater o mundo.
Em pouco tempo achou-os cômicos e comoventes. A seu ver, eles
podiam perfeitamente tricotar meias para soldados. A desproporção
entre o sonho e a realidade levou-o a um exame atento de ambos;
pôs toda a energia na leitura filosófica e histórica e encontrou, para
surpresa sua, consolação e paz na pureza intelectual do marxismo.
Banqueteou-se na implacabilidade intelectual da doutrina,
emocionou-se com seu destemor, com sua inversão formal de todos
os valores tradicionais. No fim de contas foi ela, não o partido, que o
fortaleceu em sua solidão, uma filosofia que reclamava sacrifício
total a uma fórmula inalterável, que o humilhava e inspirava; e
quando por fim encontrou sucesso, prosperidade e integração,
voltou tristemente as costas para ela como um tesouro que havia
acumulado e devia deixar em Oxford com os dias da sua juventude.
Foi assim que Fennan o descrevera e Smiley havia entendido.
Não foi a narrativa de ira e ressentimento que Smiley chegara a
esperar em tais entrevistas, mas (talvez por causa disso) pareceu
mais real. Havia outra coisa acerca daquela entrevista: a convicção
de Smiley de que Fennan deixara de contar algo importante.
Havia alguma conexão concreta entre o incidente em Bywater
Street e a morte de Fennan? Smiley censurou-se por se ter
empolgado. Visto em perspectiva, não havia outra coisa, senão a
sequência de acontecimentos, que sugerisse que Fennan e Smiley
eram dados de um único problema.
A sequência de acontecimentos, essa sim, e o valor da intuição de
Smiley, da experiência ou do que fosse — o sexto sentido que lhe
ordenara que tocasse a campainha e não usasse a chave, o sentido
que, contudo, não o avisara da presença de um criminoso oculto na
calada da noite com um pedaço de cano de chumbo.
A entrevista correra sem formalidades, era verdade. O passeio no
parque lembrava-lhe mais Oxford do que Whitehall. O passeio no
parque, o café de Millbank — sim, o método fora diferente, mas que
importância tinha? Um funcionário do Foreign Office passeando no
parque, conversando animadamente com um homenzinho
anônimo... A menos que o homenzinho não fosse anônimo!
Smiley pegou uma brochura e pôs-se a escrever a lápis:
“Admitamos o que de alguma forma está provado: que o
assassinato de Fennan e a tentativa de assassinar Smiley estejam
relacionados. Que circunstâncias ligaram Smiley a Fennan antes da
morte de Fennan?

1. Antes da entrevista na segunda-feira, 2 de janeiro, eu não


conhecia Fennan. Li sua ficha no Departamento e estava a par
das investigações preliminares.
2. No dia 2 de janeiro fui sozinho ao Foreign Office de táxi. O
FO arranjou a entrevista, mas não sabia de antemão quem iria
conduzi-la. Portanto, Fennan não tinha conhecimento prévio da
minha identidade, como não tinha ninguém mais fora do
Departamento.
3. A entrevista dividiu-se em duas partes: a primeira no FO,
quando as pessoas entravam ha sala e dela saíam sem nos
darem atenção; a segunda fora de lá, quando qualquer um
poderia ter nos visto.”

E o que se seguiu?
Nada, a menos que...
Sim, aquela era a única conclusão possível: a menos que quem os
viu juntos tenha reconhecido não somente Fennan, mas Smiley
também e se tenha oposto violentamente àquela associação.
Por quê? De que modo Smiley era perigoso? Seus olhos
repentinamente se escancararam. Naturalmente... de um modo, de
um único modo — como funcionário da segurança.
Largou o lápis.
E assim, quem matou Sam Fennan queria por todos os meios
evitar que ele falasse a um funcionário da segurança. Alguém do
Foreign Office, talvez. Mas, para todos os efeitos, alguém que
também conhecia Smiley. Alguém que Fennan conhecera em Oxford,
conhecera quando comunista, alguém que temia alguma delação,
que julgava que Fennan ia falar, que já tivesse falado, talvez? E se já
tivesse falado, então, é claro, Smiley teria de morrer, e morrer logo,
antes que pudesse encaminhar seu relatório.
Isso explicaria o assassinato de Fennan e o assalto a Smiley. Tinha
certa razão de ser, mas não muita. Ele construíra um castelo de
cartas muito alto, mas ainda tinha cartas na mão. E o que dizer de
Elsa, de suas mentiras, de sua cumplicidade, de seus temores? E que
dizer do carro e do telefonema das 8h30? E da carta anônima? Se o
criminoso estava assustado com o encontro de Smiley e Fennan, não
ia então chamar a atenção sobre Fennan, denunciando-o. Quem
então? Quem?
Recostou-se e fechou os olhos. A cabeça latejava de novo. Talvez
Peter Guillam pudesse ajudar. Era a única esperança. A cabeça
rodava. Doía terrivelmente.
9

Pondo as coisas em ordem

COM UM VASTO sorriso, Mendel introduziu Peter Guillam na


enfermaria.
— Está aí o homem — disse ele.
A conversa foi embaraçosa; forçada para Guillam pelo menos, em
face da lembrança do brusco pedido de demissão de Smiley e da
incongruência do encontro num hospital. Smiley vestia um camisão
azul, o cabelo pontudo e desgrenhado por cima das ataduras. Na
têmpora esquerda ainda era visível a marca de uma grave contusão.
Após um silêncio particularmente incômodo, Smiley falou:
— Olhe aqui, Peter, Mendel deve ter contado a você o que me
aconteceu. Você é o especialista... o que é que sabemos a respeito da
Missão do Aço da Alemanha Oriental?
— Pura como a neve que cai, meu caro, exceto quanto à partida
repentina. Só uns três homens e um cachorro na coisa. Arrancharam-
se em Hampstead, não sei onde. Ninguém sabia exatamente por que
estavam aqui logo que chegaram, mas fizeram um trabalho decente
nos últimos quatro anos.
— Quais são os pontos de referência deles?
Só Deus sabe. Acho que, quando chegaram, imaginavam que iam
persuadir o Ministério do Comércio a romper os laços com a
comunidade europeia do aço, mas não conseguiram nada. Então
penderam para a atividade consular com ênfase na maquinaria
pesada e nos produtos manufaturados no intercâmbio de
informações industriais e técnicas e assim por diante. Nada que ver
com o que vieram fazer aqui ao chegar, mas bem mais aceitável,
suponho.
— Quem eram eles?
— Ah... uns dois técnicos... Professor Doktor Fulano de Tal e
Doktor Beltrano de Tal... duas moças e um secretário para tudo.
— Quem era o secretário?
— Não sei. Algum diplomata novo para quebrar galhos. Temos
as fichas deles todos no Departamento. Acho que posso lhe mandar
detalhes.
— Se não lhe causar incômodo...
— De modo algum.
Houve outra pausa embaraçosa. Smiley disse:
— Fotografias seriam uma boa ajuda. Podia arranjar isso? .
— Sim, sim, claro. — Guillam olhou para longe de Smiley com
certo constrangimento. — Não sabemos muita coisa a respeito dos
alemães orientais, realmente. Temos uns dados avulsos, colhidos
aqui e ali, mas no conjunto eles são um mistério para nós. Se operam
mesmo, não o fazem sob o disfarce das missões comerciais ou
diplomáticas. Por isso é que, se vocês estão certos a respeito desse
fulano, é estranho que ele venha da Missão do Aço.
— Oh! — exclamou Smiley, deprimido.
— Como é que eles operam? — perguntou Mendel.
— É difícil tirar conclusões dos pouquíssimos casos isolados que
conhecemos. Minha impressão é que mandam seus agentes
diretamente da Alemanha sem contato algum entre supervisor e
agente na zona de operação.
— Mas isso deve limitá-los tremendamente — bradou Smiley. —
Nesse caso é preciso esperar meses e meses até que o agente possa
viajar para um ponto de reunião fora do seu país. Pode ser que ele
não tenha a necessária cobertura para fazer a viagem.
— Bom, é evidente que limita, mas seus alvos parecem ser tão
insignificantes. Preferem enviar indivíduos de outras
nacionalidades... suecos, poloneses expatriados e outros mais, em
missões de curto período, onde as limitações da técnica não têm
grande importância. Em casos excepcionais, onde contam com um
agente que reside no país visado, empregam a tática do correio, que
corresponde ao padrão soviético.
Smiley estava atento agora.
— Na verdade — continuou Guillam — os americanos
interceptaram um correio, faz pouco tempo, e por ele aprendemos o
pouco que sabemos a respeito da técnica da RDA.
— Como é ela?
— Ah, bem, nunca esperar no local do encontro, nunca chegar na
hora marcada, mas vinte minutos antes; sinais de reconhecimento...
todos os truques mágicos habituais que dão certo brilho a
informações de segunda ordem. Também se metem com essa história
de nomes. Um correio pode ter de entrar em contato com três ou
quatro agentes. Um supervisor pode dirigir até quinze. Nunca
inventam nomes supostos para si mesmos.
— Que quer dizer? Sem dúvida têm de inventar.
— Deixam que o agente faça isso para eles. O agente escolhe um
nome, qualquer nome que queira, e o supervisor adota-o. Um
estratagema realmente... — interrompeu-se, olhando com surpresa
para Mendel.
Mendel tinha-se levantado de um salto.
Guillam recostou-se na cadeira e ficou em dúvida se era
permitido fumar. Resolveu a contragosto que não era. Precisava de
um cigarro.
— E então? — disse Smiley. Mendel havia narrado a Guillam a
entrevista com Scarr.
— Bate — disse Guillam. — Claro que bate com o que sabemos.
Mas então não sabemos muita coisa. Se Blondie era um correio, é um
caso excepcional... para meu conhecimento pelo menos... isso de usar
uma delegação comercial como ponto fixo.
— Você disse que a Missão passou quatro anos aqui — falou
Mendel. — Blondie procurou Scarr pela primeira vez há quatro anos
atrás.
Ninguém falou durante algum tempo. Então Smiley disse
convicto:
— Peter, é possível, não é? Quero dizer: em certas condições
operacionais eles podem precisar de um posto aqui além dos
correios.
— Bom, naturalmente, se têm em vista alguma coisa realmente
importante, bem que podem.
— Você está querendo dizer que é possível no caso de eles terem
em ação um agente bem situado no país.
— Sim, é mais ou menos isso.
— E supondo que eles tivessem tal agente, um Maclean ou Fuchs,
é concebível que estabelecessem um posto aqui sob o disfarce de
missão comercial, sem nenhuma função operacional, exceto
controlar o agente?
— É, é concebível, sim. Mas isso é coisa muito alta, George. O que
você está sugerindo é que o agente é dirigido do exterior, servido
pelo correio e o correio servido pela Missão, que é também o anjo da
guarda pessoal do agente. Teria de ser um agente e tanto.
— Não estou sugerindo isso precisamente... Mas quase. E admito
que o sistema exija um agente de alta categoria. Não se esqueça de
que só temos a palavra do Blondie como garantia de que ele veio do
exterior.
Mendel se intrometeu:
— Esse agente... podia ele entrar em contato direto com a
Missão?
— Nunca, ora! — disse Guillam. — Provavelmente emprega um
método de emergência para entrar em contato com eles... um código
telefônico ou coisa parecida.
— Como é que isso funciona? — perguntou Mendel.
— Varia. Pode ser a tática do número errado. Você disca o
número numa cabina e pede para falar com George Brown.
Respondem que George Brown não mora lá. Você pede desculpas e
desliga. O momento e o local do encontro são combinados
previamente... o sinal de emergência está contido no nome da pessoa
que você chamou. Alguém irá ao encontro.
— Que mais faria a Missão? — perguntou Smiley.
— Difícil dizer. Pagá-lo, provavelmente. Marcar um local para a
entrega dos relatórios. O supervisor trataria de todos esses arranjos
para o agente, é claro, e através do correio lhe diria o que tinha de
fazer. Operam em grande parte pelo princípio soviético, como já
disse... mesmo os menores detalhes são da atribuição do supervisor.
O pessoal que faz o serviço goza de pouquíssima independência.
Houve outro silêncio. Smiley olhou para Guillam, depois para
Mendel, pestanejou e disse:
— Blondie nunca procurava Scarr em janeiro e fevereiro, não é
isso?
— É, sim — disse Mendel; — este foi o primeiro ano.
— Fennan sempre ia esquiar em janeiro e fevereiro. Essa foi a
primeira vez em quatro anos que ele deixou de ir.
— Não sei — disse Smiley — se devia ir ver Maston outra vez.
Guillam estirou-se comodamente e sorriu:
— Pode tentar. Ele vai ficar emocionado quando souber que você
foi agredido. Tenho a secreta impressão de que ele pensará que
Ba ersea fica na costa, mas não se incomode. Conte a ele que você
foi atacado enquanto vagueava no pátio de um sujeito... ele
compreenderá. Fale do seu agressor, também, George. Você nunca o
viu, lembre-se disso, nem sabe o nome dele, mas é um correio do
Serviço de Informações da Alemanha Oriental. Maston lhe dará
apoio; ele sempre dá. Especialmente quando tem de apresentar
relatório ao Ministro.
Smiley olhou para Guillam e não disse nada.
— Depois dessa pancada na sua cabeça, também — Guillam
acrescentou — ele compreenderá.
— Mas Peter...
— Eu sei, George, eu sei.
— Está bem. Deixe-me dizer-lhe outra coisa. Blondie ia buscar
seu carro na primeira terça-feira de cada mês.
— E daí?
— Essas eram as noites em que Elsa Fennan ia ao teatro de
Weybridge. Fennan trabalhava até tarde nas terças-feiras; é o que ela
diz.
Guillam ergueu-se.
— Vou bisbilhotar por ai, George. Até já, Mendel. É provável que
eu lhe dê um telefonema hoje de noite. Não vejo o que é que a gente
pode fazer agora, de qualquer modo, mas seria ótimo saber, não
seria? — Alcançou a porta.
— A propósito, onde andam os objetos de Fennan... carteira,
diário, etc.? As coisas que encontraram no cadáver?
— Com certeza ainda na delegacia — respondeu Mendel — até
que terminem as investigações.
Guillam fitou Smiley um instante, procurando o que dizer.
— Quer alguma coisa, George?
— Não, muito obrigado... Ah, sim, há uma coisa.
— Diga.
— Você podia tirar o D.I.C. das minhas costas? Já é a terceira vez
que me visitam e naturalmente não chegaram a conclusão nenhuma.
Podia fazer disto um problema do Serviço de Informações por
enquanto? Ser misterioso, apaziguador?
— Creio que posso, sim.
— Sei que é difícil, Peter, porque eu não sou...
— Ah, outra coisa para animá-lo. Mandei fazer a comparação
entre a nota deixada por Fennan e a carta anônima. Foram feitas por
pessoas diferentes na mesma máquina. Pressões e espaçamento
diferentes, mas tipo idêntico. Até logo, velho. Empanturre-se de uva.
Guillam fechou a porta atrás de si. Ouviram-lhe as passadas
ecoando nitidamente no corredor nu.
Mendel enrolou um cigarro.
— Puxa — disse Smiley. — Nada o assusta? Você não viu a irmã
aqui?
Mendel arreganhou os dentes e balançou a cabeça.
— Só se morre uma vez — disse ele, colocando o cigarro entre os
lábios finos. Smiley observava-o. Mendel puxou o isqueiro, tirou a
tampa, fez girar a roda com o polegar manchado, cercando-o
imediatamente com ambas as mãos em concha e aproximando a
chama da ponta do cigarro. Era de imaginar que um furacão
estivesse soprando.
— Bem, você é o especialista em crime — disse Smiley. — Em
que pé estamos?
— Em plena confusão — disse Mendel. — Mixórdia.
— Por quê?
— Pontas soltas por toda parte. Nenhum trabalho policial. Nada
comprovado. Como álgebra.
— Que é que tem a álgebra a ver com isso?
— É preciso provar o que pode ser provado, em primeiro lugar.
Descobrir as constantes. Ela foi mesmo ao teatro? Foi sozinha? Os
vizinhos ouviram quando ela voltou? Se ouviram, qual foi a hora?
Fennan trabalhava realmente até tarde nas terças-feiras? Sua mulher
ia regularmente ao teatro, de quinze em quinze dias, como ela
afirmou?
— E o telefonema das 8h30. Você pode tirar isso a limpo para
mim?
— Esse telefonema não lhe sai da cabeça, não é?
— É, sim. De todas as pontas soltas, essa é a mais solta. Penso
nisso sempre e me parece completamente sem sentido. Estudei o
horário dos trens de Fennan. Ele era um homem pontual... muitas
vezes chegava ao FO antes de qualquer outra pessoa e abria seu
armário. Podia pegar o trem de 8h54, o de 9h08 ou, na pior das
hipóteses, o de 9h14. O de 8h54 o deixaria no destino às 9h38... ele
gostava de estar em sua sala às 9h45. Não podia então acordar às
8h30.
— Talvez apreciasse o som de campainhas — disse Mendel,
erguendo-se.
— E as cartas — continuou Smiley. — Datilógrafos diferentes
mas a mesma máquina. Afora o assassino, duas pessoas tinham
acesso àquela máquina: Fennan e sua mulher. Se admitimos que
Fennan bateu a nota do suicídio ... e certamente assinou-a... temos de
admitir que foi Elsa que bateu a denúncia. Por que ela fez isso?
Smiley estava cansado e satisfeito porque Mendel se ia embora.
— Vou ver se ponho as coisas em ordem, se descubro as
constantes.
— Vai precisar de dinheiro — disse Smiley e ofereceu-lhe algum
da carteira que estava ao lado da cama. Mendel aceitou-o sem
cerimônia e saiu.
Smiley tornou a deitar-se. A cabeça latejava com força, em fogo.
Pensou em chamar a enfermeira e a covardia não permitiu. Pouco a
pouco a palpitação foi passando. Ouviu, vindo do exterior, o retinir
da sereia de uma ambulância no momento em que ela dobrava a
esquina da estrada Príncipe de Gales e entrava no pátio do hospital.
“Talvez apreciasse o som das campainhas”, murmurou e adormeceu.
Despertou-o o barulho de uma altercação no corredor: ouviu a
voz da Irmã, protestando alto; ouviu passos e a voz de Mendel,
insistente, argumentando. A porta abriu-se de repente e alguém
acendeu a lâmpada. Smiley pestanejou e sentou-se na cama, olhando
de relance para o relógio. Quinze para as seis. Mendel dizia-lhe
qualquer coisa, quase aos berros. O que é que ele estava tentando
dizer? Alguma coisa acerca de Ba ersea Bridge... a polícia fluvial...
desaparecido desde ontem... Smiley despertou completamente.
Adam Scarr estava morto.
10

História da virgem

MENDEL dirigia muito bem, com uma espécie de rigorismo


professoral que Smiley teria considerado cômico. A estrada de
Weybridge estava abarrotada de veículos como de costume. Mendel
odiava motoristas. Entregue-se um carro a um homem e ele logo
deixa a humildade e o bom-senso na garagem. Não havia diferença:
já vira bispos com toda a dignidade puxando setenta em zona
residencial, azucrinando os pedestres. Gostava do carro de Smiley.
Gostava da maneira meticulosa como era conservado, dos acessórios
sensatos, espelhos laterais e farol de reversão. Era um carrinho
decente.
Gostava de gente que tinha cuidado com as coisas, que concluía o
que começava. Gostava de inteireza e precisão. Nada de cabriolas.
Como esse criminoso. O que dissera Scarr? “Moço, mas frio. Frio
como gelo.” Conhecia aquele olhar, e Scarr o conhecera também... o
olhar de completa negação que repousa nos olhos de um jovem
assassino. Não o olhar de um animal selvagem, não a ferocidade
sorridente de um maníaco, mas o olhar nascido da suprema
eficiência, experimentada e comprovada. Era uma etapa além da
aventura da guerra. O espetáculo da morte na guerra constitui uma
experiência peculiar; mas mais além, bem mais além, está a
convicção de superioridade no coração do matador profissional. Sim,
Mendel já vira antes: o sujeito que se mantinha à margem da
quadrilha, olhos pálidos, inexpressivos, o tipo que as garotas
perseguiam, de que falavam sem sorrir. Sim, esse era frio.
A morte de Scarr assustara Mendel. Fez Smiley prometer que não
voltaria para Bywater Street quando recebesse alta do hospital. Era
uma sorte não ter morrido. A morte de Scarr provava uma coisa,
evidentemente: o assassino estava ainda na Inglaterra, ainda
desejoso de pôr as coisas em ordem. “Quando eu me levantar”,
Smiley havia dito na noite anterior, “temos de tirá-lo do buraco
outra vez. Atraí-lo com uns pedacinhos de queijo.” Mendel sabia
quem ia ser o queijo: Smiley. Obviamente, se tinham razão a respeito
do motivo, haveria outro queijo também: a mulher de Fennan. De
fato, pensou Mendel sombrio, não é muito abonador para ela o fato
de não ter sido assassinada. Sentiu-se envergonhado e dirigiu o
pensamento para outras coisas. Tais como Smiley ainda uma vez.
Sujeito danado, esse Smiley. Fazia Mendel recordar um
rapazinho gorducho com quem jogara futebol na escola. Não sabia
correr, não sabia chutar, cego como um morcego, mas como se
empenhava! Só ficava satisfeito quando estava todo estropiado.
Lutava boxe, também. Entrava de peito aberto, sacudindo os braços
desordenadamente. Estava semimorto antes que o juiz encerrasse a
luta. Cabra danado, também.
Mendel parou num café à beira da estrada para tomar uma xícara
de chá e comer um pão. Depois seguiu para Weybridge. O Teatro de
Repertório estava localizado numa rua de mão única, transversal da
rua principal, onde era impossível estacionar. Por fim, deixou o carro
na estação ferroviária e voltou a pé para a cidade.
As portas da frente do teatro estavam fechadas. Mendel foi até o
oitão do edifício, onde havia uma arcada de tijolo. Uma porta verde
estava aberta e escorada. Tinha trancas de empurrar pelo lado de
dentro e as palavras “porta dos artistas” garatujadas a giz. Não
havia campainha; um cheiro fraco de café vinha do corredor interno,
pintado de verde-escuro. Mendel passou pela porta e foi andando
pelo corredor, no fim do qual encontrou uma escada de pedra com
um corrimão de metal que lá no alto ia dar noutra porta verde. O
cheiro de café era mais forte. Ouviu o rumor de vozes.
— Que disparate, querido, francamente. Se os abutres culturais
do venturoso Surrey querem Barrie três meses seguidos, que o
tenham, digo eu. É ou Barrie ou “Um Cuco no Ninho” pelo terceiro
ano consecutivo e para mim Barrie ganha por uma cabeça mínima —
dizia uma voz feminina de meia-idade.
Uma queixosa voz masculina replicou: — Bem, Ludo pode fazer
Peter Pan, não pode, Ludo?
— Cadelinha, cadelinha — disse uma terceira voz, também
masculina, e Mendel abriu a porta.
Estava nos bastidores do palco. À sua esquerda havia uma tábua
grossa, com cerca de uma dúzia de interruptores, montada num
painel de madeira. Uma absurda cadeira rococó, cheia de dourados e
adorno^ estava colocada ali debaixo para o ponto e factótum.
No meio do palco dois homens e uma mulher, sentados em
barris, fumavam e tomavam café. O cenário representava o convés
de um navio. Um mastro, com aparelho e escadas de corda, ocupava
o centro do palco, e um enorme canhão de papelão apontava
desconsolado para um pano de fundo de mar e céu.
A conversa parou bruscamente quando Mendel apareceu no
palco. Alguém murmurou: — Olha aí, o fantasma na festa — e todos
se voltaram para ele, procurando abafar o riso.
A mulher foi a primeira a falar: — Está à procura de alguém,
querido?
— Desculpe a intromissão. Com quem se fala para ser assinante
do teatro? Queria inscrever-me no clube.
— Aqui mesmo, é claro. Quanta bondade — disse ela, erguendo-
se e indo ao encontro dele. — É muita bondade sua. — Tomou-lhe a
mão esquerda em ambas as suas e apertou-a, ao mesmo tempo em
que recuava e estendia os braços em todo o comprimento. Era sua
atitude de castelã — Lady Macbeth recebe Duncan. Inclinou a cabeça
para um lado e sorriu como uma mocinha, reteve-lhe a mão e
conduziu-o pelo meio do palco para os bastidores do lado oposto.
Uma porta dava acesso a um minúsculo escritório entulhado de
velhos programas e cartazes, produtos para maquilagem, cabeleiras
e peças berrantes de uniformes náuticos.
— Viu a nossa pantomima este ano? “Ilha do Tesouro.” Que
sucesso recompensador. E com muito mais conteúdo social... não
acha?... do que essas vulgares histórias infantis.
Mendel disse: — Sim, pois não — sem ter a menor ideia daquilo
que ela estava falando, quando seu olho deu com uma pilha de
contas reunidas com certo cuidado e presas por um clipe imenso. A
de cima era dirigida à Sra. Ludo Oriel e se vencera quatro meses
antes.
Ela o observava manhosamente através dos óculos. Era baixinha
e morena, com rugas no pescoço e muita pintura no rosto. As rugas
por baixo dos olhos tinham sido disfarçadas pela maquilagem mas o
efeito não durara muito. Trajava calças compridas e um pulôver
grosso liberal e tumultuariamente sarapintado. Fumava sem parar.
A boca era bastante larga, e enquanto conservava o cigarro no centro
dela, em linha reta debaixo do nariz, os lábios formavam uma
exagerada curva convexa, deformando-lhe a metade inferior do rosto
e dando-lhe um ar mal-humorado e impaciente. Mendel achou que
ela era provavelmente difícil e hábil. Era um consolo pensar que não
podia saldar suas contas.
— Você quer mesmo ser sócio do clube, não quer?
— Não.
Ela teve um acesso de raiva: — Se você é outro maldito
negociante, pode ir embora. Disse que pago e pagarei. Não precisa
me infernar a paciência. Se vão deixar os outros pensar que estou
acabada, eu me acabarei mesmo e vocês é que sairão perdendo, não
eu.
— Não sou um credor, Sra. Oriel. Vim-lhe oferecer dinheiro.
Ela estava esperando.
— Sou agente de divórcio. Cliente rico. Queria lhe fazer algumas
perguntas. Estamos preparados para lhe pagar pelo seu tempo.
— Ainda bem — disse ela, aliviada. — Por que não disse logo? —
Ambos riram. Mendel contou cinco libras, depositando-as em cima
da pilha de faturas.
— Bem — disse Mendel; — como é que a senhora sustenta sua
lista de subscritores? Quais são as vantagens dos sócios?
— Bom, servimos café aguado no.palco todas as manhãs, às onze
horas em ponto. Os sócios do clube podem confraternizar com o
elenco no intervalo dos ensaios, de 11 até 11h45. Pagam por tudo que
consomem, é claro, mas a entrada é rigorosamente limitada aos
sócios do clube.
— Perfeito.
— Essa provavelmente é a parte que lhe interessa. Acho que de
manhã só aparecem invertidos e ninfômanas.
— É possível. E as outras atividades?
— Montamos um espetáculo diferente em cada quinzena. Os
sócios podem reservar localidades para um determinado dia, por
exemplo: a segunda quarta-feira de cada temporada, e assim por
diante. Sempre lançamos uma peça nova nas primeiras e terceiras
segundas-feiras do mês. A sessão começa às 7h30 e mantemos as
reservas do clube até 7h20. A moça da bilheteria tem a planta das
localidades e à medida que vende os lugares vai cancelando um por
um. As reservas do clube estão assinaladas em vermelho e só são
vendidas na última hora.
— Compreendo. Assim, se um dos sócios não vem buscar sua
reserva habitual, ela é cancelada na planta das localidades.
— Só se é vendida.
— Naturalmente.
— Em geral não temos casa cheia depois da primeira semana.
Estamos procurando lançar um espetáculo por semana, mas não é
fácil obter... hum... as facilidades. Não temos público para
temporadas de duas semanas, realmente.
— Sei, sei, exato. E guardam as velhas plantas de localidades?
— Às vezes, para a escrituração.
— Guardaram a de terça-feira, 3 de janeiro?
Ela abriu um armário e tirou um maço de plantas impressas.
— Esta é a segunda quinzena de nossa pantomima. Tradição.
— Exato — disse Mendel.
— Muito bem. Em quem é que o senhor está tão interessado? —
perguntou a Sra. Oriel, apanhando um livro Razão na escrivaninha.
— Uma loura. Quarenta e dois ou quarenta e três anos. Chamada
Fennan. Elsa Fennan.
A Sra. Oriel abriu o livro. Sem nenhum pudor, Mendel pôs-se a
olhar por cima do ombro dela. Os nomes dos sócios do clube
estavam registrados cuidadosamente na coluna da esquerda. Um
sinal vermelho no canto esquerdo da página indicava que o sócio
havia pago a subscrição. No lado direito da página estavam as
anotações das reservas de lugares, feitas para o ano todo. Havia uns
oitenta sócios.
— Não me recordo do nome. Onde ela se senta normalmente?
— Não tenho a menor ideia.
— Ah, sim, aqui está. Merridale Lane, Walliston. Merridale!...
Aqui. Vamos ver. Poltrona dos fundos no fim da fila. Escolha bem
extravagante, não acha? Cadeira número R2. Mas não sei é se ela
ocupou sua reserva no dia 3 de janeiro. Não sei se ainda temos a
planta, embora eu nunca tenha jogado nada fora em minha vida. As
coisas simplesmente se evaporam, não é verdade? — Olhou para ele
pelo canto do olho, imaginando se já teria merecido suas cinco libras.
— Sabe de uma coisa? Vamos perguntar à Virgem. — Levantou-se e
caminhou para a porta. — Fennan... Fennan... — disse ela. — Espere!
Estou-me lembrando. Não sei bem por quê. Ah, que bobagem... a
pasta de música... é claro! — Abriu a porta. — Onde está a Virgem?
— perguntou ela a alguém no palco.
— Quem sabe lá?
— Idiota. — disse a Sra. Oriel e tornou a fechar a porta. Virou-se
para Mendel: — A Virgem é a nossa última esperança. Rosa em
botão, louca por teatro, filha de um advogado da cidade, toda meias
de Lille e não-me-toques. É o fim! De vez em quando entregamos um
papel a ela porque o pai paga pelas aulas que damos à pequena. Às
vezes, nas noites de muito movimento, ela vai para a bilheteria
ajudar a Sra. Torr, a arrumadeira, que faz máscaras. Quando as
coisas estão calmas, a Sra. Torr faz o serviço sozinha e a Virgem fica
nos bastidores esperando que a atriz principal caia morta de repente.
— Fez uma pausa. — Estou certa de que me lembro de Fennan.
Inteiramente certa. Por onde andará aquela vaca? — Desapareceu
por alguns instantes e voltou com uma moça alta e bonitona, de
cabelos louros encrespados e bochechas rosadas, boa no tênis e na
natação.
— Aqui está Elizabeth Pidgeon. Ela nos poderá ajudar. Querida,
precisamos descobrir uma tal de Sra. Fennan, sócia do clube. Você
não nos poderá dizer alguma coisa a respeito dela?
— Posso sim, Ludo. — Ela devia imaginar que estava sendo
encantadora. Dirigiu um sorriso insípido para Mendel, inclinou a
cabeça para um lado e entrelaçou os dedos. Mendel sacudiu a cabeça
para o lado dela.
— Você a conhece? — perguntou a Sra. Oriel.
— Ah, sim, Ludo. Ela é louca por música. Pelo menos acho que
deve ser porque ela sempre traz suas músicas. É bem magrinha e
esquisita. Ela é estrangeira, não é, Ludo?
— Por que esquisita? — perguntou Mendel.
— Ah, bem, da última vez que ela veio aqui teve uma verdadeira
crise de nervos por causa da cadeira ao lado da dela. Era uma
reserva do clube, compreende, e já passava muito das oito horas. A
sessão de pantomima já tinha começado e havia milhões de pessoas
querendo entrar, e por isso eu vendi o lugar. Ela não parava de dizer
que o assinante viria, que ele nunca faltava...
— E ele veio mesmo? — perguntou Mendel.
— Não, e eu vendi o lugar. Ela deve ter ficado uma fúria porque
saiu depois do segundo ato e esqueceu de levar sua pasta de música.
— Esse assinante que ela garantiu que vinha... — disse Mendell
— é... atencioso com a Sra. Fennan?
— Bem, eu penso que sim. É o marido dela, não é?
Mendel encarou-a durante um minuto e depois sorriu: — Não se
podia arranjar uma cadeira para Elizabeth? — disse ele.
— Ah, obrigada — disse a Virgem, e sentou-se na ponta de uma
velha cadeira ornada de dourados como a cadeira do ponto nos
bastidores. Colocou as mãos gordas e vermelhas sobre <os joelhos e
inclinou-se para a frente, sorrindo o tempo todo, emocionada por ser
o centro de tanto interesse. A Sra. Oriel fitava-a com um olhar cheio
de veneno.
— O que é que leva você a pensar que ele era o marido dela,
Elizabeth? — Havia na voz dele uma curiosidade que não se notara
antes.
— Bem, é verdade que chegavam separados, mas eu pensei que
como eles tinham cadeiras afastadas do restante das reservas do
clube, deviam ser marido e mulher. E, como é natural, ele também
vem sempre com uma pasta de música.
— Entendo. Há mais alguma coisa de que você se lembre a
respeito daquela noite, Elizabeth?
— Muitas coisas realmente, porque... sabe como é, não é?... eu
fiquei abafada por ela ter saído naquele estado... e depois, bem mais
tarde naquela noite, ela telefonou. A Sra. Fennan telefonou, quero
dizer. Deu o nome e disse que tinha saído antes de terminado o
espetáculo e que tinha esquecido sua pasta de música. Tinha perdido
também a senha e estava transtornada. Creio que chorava. Ouvi uma
voz ao fundo, e então ela disse que alguém viria buscar a pasta, se
podia ser, sem a senha. Eu disse que podia, e daí a meia hora o
homem chegou. Um bonitão. Alto e louro.
— Está bem — disse Mendel. — Muito obrigado, Elizabeth, você
foi muito gentil.
— De nada, ora! — Levantou-se.
— A propósito — disse Mendel —, esse homem que veio buscar a
pasta de música da Sra. Fennan... não seria por acaso o mesmo
homem que se senta ao lado dela no teatro?
— É, sim. Puxa! Desculpe. Eu devia ter dito isso.
— Você falou com ele?
— Bem, só para dizer “aqui está a pasta” ou coisa parecida.
— Como era a fala dele?
— Ah, estrangeira, como a da Sra. Fennan. Ela é estrangeira, não
é? Foi o que eu imaginei logo... todo aquele barulho e nervosismo.,.
temperamento estrangeiro.
Sorriu para Mendel, esperou um instante, depois foi-se embora
como Alice.
— Vaca — disse a Sra. Oriel, olhando para a porta fechada.
Depois voltou-se para Mendel. — Bem, espero que o senhor tenha
encontrado o que queria pelas suas cinco libras.
— Acho que sim — disse Mendel.
11

Um clube nada respeitável

MENDEL ENCONTROU Smiley sentado numa poltrona e todo


enfarpelado. Peter Guillam estava comodamente estirado na cama,
segurando negligentemente uma pasta verde desbotada. Lá fora, o
céu estava negro e ameaçador.
:— Entra o terceiro assassino — disse Guillam quando Mendel
chegou. Mendel sentou-se na ponta da cama e, satisfeito, fez um
sinal com a cabeça para Smiley, que parecia pálido e deprimido.
— Meus parabéns. Folgo em vê-lo em pé.
— Obrigado. Desconfio que, se você não me visse aqui onde
estou, não me daria os parabéns. Sinto-me mais fraco do que um
gatinho recém-nascido.
— Quando lhe vão dar alta?
— Não sei ainda...
— Você não perguntou?
— Não.
— Seria bom perguntar. Trago notícias para você. Não sei o que
significam, mas devem significar alguma coisa.
— ótimo, então — disse Guillam. — Todo mundo tem notícias
para todo mundo. Não é formidável? George andou passando os
olhos pelo meu álbum de família — ergueu ligeiramente a pasta
verde — e reconheceu todos os seus velhos camaradas.
Mendel sentiu-se frustrado e- posto à margem dos fatos. Smiley
interveio:
— Eu lhe contarei tudo amanhã à noite durante o jantar. Vou sair
daqui de manhã, digam eles o que disserem. Acho que descobrimos
o assassino e mais uma porção de coisas. Agora conte-nos as suas
novidades. — Não havia triunfo em seus olhos. Apenas ansiedade.
O quadro de sócios do clube a que Smiley pertencia não figura
entre as respeitáveis aquisições daqueles que ornamentam as
páginas do Who’s Who. Foi fundado por um jovem renegado do
Junior Carlton, chamado Steed-Asprey, que havia sido repreendido
pelo Secretário por ter blasfemado ao alcance do ouvido de um bispo
sul-africano. O moço persuadiu sua antiga estalajadeira em Oxford a
abandonar a casinha tranquila de Hollywell e ir tomar conta de duas
salas e um porão em Manchester Square que um parente
endinheirado havia posto à disposição dele. O clube tivera outrora
quarenta sócios que pagavam por cabeça cinquenta guinéus por ano.
Restavam trinta e um. Não havia mulheres nem regulamento, nada
de secretário nem bispos. Podia-se comer sanduíches e comprar uma
garrafa de cerveja, podia-se comer sanduíches e não comprar coisa
alguma. Desde que o sujeito se mantivesse razoavelmente sóbrio e
tratasse de sua vida, ninguém queria saber o que usava, fazia ou
dizia, ou quem o acompanhava. A Sra. Sturgeon já não batalhava no
bar nem levava a costeleta de mesa em mesa no porão aquecido, mas
administrava com jovialidade os serviços de dois sargentos
reformados de um pequeno regimento de fronteira.
Como era natural, quase todos os sócios eram mais ou menos
contemporâneos de Smiley em Oxford. Ficara decidido de uma vez
por todas que o clube deveria servir apenas a uma geração, que
envelheceria e morreria com seus membros. A guerra dera cabo de
Jebedee e outros, mas ninguém jamais sugerira a eleição de novos
sócios. Além disso, o prédio agora era deles, garantira-se o futuro da
Sra. Sturgeon e o clube era solvente.
Era uma noite de sábado e não havia ali mais do que meia dúzia
de pessoas. Smiley encomendara o jantar, e uma mesa foi preparada
para eles no porão, onde o carvão ardia numa lareira de tijolos.
Estavam a sós, havia lombo e clarete; lá fora a chuva caía sem parar.
Para os três o mundo parecia um lugar tranquilo e decente naquela
noite, apesar do estranho assunto que os reunira.
— Para tornar compreensível o que eu tenho a dizer-lhes —
começou afinal Smiley, dirigindo-se principalmente a Mendel —
terei de falar demoradamente de mim mesmo. Sou um funcionário
do Serviço de Informações, como vocês sabem. Estou no Serviço
desde o Dilúvio, muito antes de nos envolvermos em política de
poder com Whitehall. Naquela época éramos mal assistidos e mal
remunerados. Depois do costumeiro período de treinamento e
experiência na América do Sul e na Europa Central, consegui um
posto de professor numa universidade alemã, caçando talentos entre
os jovens alemães dotados de potencial de agente. — Interrompeu-
se, sorriu para Mendel e disse: — Perdoe o jargão. — Mendel
assentiu gravemente com a cabeça e Smiley continuou. Sabia que
estava sendo pomposo, mas não via como deixar de sê-lo.
— Foi pouco antes da última guerra, um momento terrível na
Alemanha de então. A intolerância atingia o auge. Seria loucura
tratar eu mesmo de abordar qualquer estudante. Só me restava ser o
mais anônimo possível, político e socialmente incolor, e sugerir
candidatos que seriam recrutados por outra pessoa. Tentei trazer
alguns à Inglaterra por breves períodos, em excursões estudantis.
Fazia questão de não ter contato nenhum com o Departamento
quando aqui chegava, porque não tínhamos nenhuma ideia naquele
tempo da eficiência da contraespionagem alemã. Nunca sabia quem
era abordado, e naturalmente era muito melhor assim. Caso me
pegassem, quero dizer.
— Minha história realmente começou em 1938. Uma noite, no
verão, eu estava só em meus aposentos. Tinha feito um dia
maravilhoso, quente e tranquilo. Era como se o fascismo nem
existisse. Estava trabalhando em mangas de camisa numa
escrivaninha perto da minha janela. Não podia nem trabalhar muito
com uma noite tão bonita.
Parou, embaraçado por algum motivo, e um pouco perturbado
Com o vinho do Porto. Dois pontos róseos apareciam-lhe nas
bochechas. Sentia-se ligeiramente ébrio, embora tivesse bebido
muito pouco vinho.
— Continuemos — disse ele, e julgou-se um asno. — Desculpem,
não estou sabendo expressar-me... Enfim, eu estava ali sentado
quando ouvi baterem na porta e um estudante entrou. Tinha
dezenove anos, realmente, mas parecia mais moço. Chamava-se
Dieter Frey. Era meu aluno. Rapaz inteligente e de aspecto invulgar.
— Smiley interrompeu-se de novo, fitando um ponto qualquer à sua
frente. Talvez fosse o seu estado de saúde, a sua fraqueza, que
tornava tão vividas as lembranças.
— Dieter era um tipo simpático, dono de uma fronte alta e de
uma cabeleira negra e rebelde. A parte inferior do seu corpo era
deformada, creio que pela paralisia infantil. Usava bengala e
arrimava-se pesadamente a ela quando caminhava. Naturalmente
fazia uma figura romântica numa universidade provinciana;
achavam-no byroniano e outras coisas mais. De minha parte nunca o
achei romântico. Os alemães, como vocês sabem, têm a mania de
descobrir jovens gênios, desde Herder até Stefan George... há sempre
alguém para apadrinhar as celebridades desde o berço. Mas era
impossível apadrinhar Dieter. Havia nele uma independência feroz,
uma falta de sentimentalismo que rechaçava o benfeitor mais
obstinado. Esse retraimento de Dieter derivava não somente de sua
deformidade mas também de sua raça, que era judia. Como ele
conseguia manter seu lugar na universidade nunca pude entender.
Era possível que não soubessem que ele era judeu... sua beleza podia
ser meridional, suponho, italiana, mas mesmo assim não posso
entender. Para mim ele era obviamente judeu.
— Dieter era socialista. Não fazia segredo de suas opiniões
naquele tempo. Cheguei até mesmo a pensar em recrutá-lo, mas
parecia uma bobagem escolher alguém que estava de modo tão
evidente marcado para o campo de concentração. Além disso, ele era
estouvado demais, excessivamente inflamável, imodesto, arrogante.
Dirigia todas as sociedades de universidade: políticas, de debate, de
poesia etc. Em todas as associações atléticas ocupava postos
honoríficos. Tinha a coragem de não beber numa universidade em
que o calouro para provar sua virilidade passava quase todo o
primeiro ano embriagado.
— Assim era Dieter, então: um aleijado alto, simpático,
dominador, o ídolo da sua geração. Um judeu. E foi esse o homem
que me veio ver naquela noite de verão.
— Dei-lhe uma cadeira e ofereci um trago, que ele recusou. Creio
que fiz um pouco de café num fogareiro a gás. Conversamos
vagamente acerca de minha última palestra sobre Keats. Eu me
queixara da aplicação de métodos críticos alemães à poesia inglesa, e
isto redundara, como sempre, numa discussão em torno da
interpretação nazista da “decadência” da arte. Dieter trouxe tudo à
baila novamente e tornou-se cada vez mais franco em sua
condenação da Alemanha moderna e finalmente do próprio
nazismo. É claro que eu estava em guarda ... penso que naquele
tempo eu era menos tolo do que sou hoje. No fim, ele me perguntou
sem meias palavras o que eu pensava dos nazistas. Respondi de
modo bastante incisivo que não me sentia inclinado a criticar meus
anfitriões e que, de resto, não achava a política divertida. Jamais
esquecerei a resposta que me deu. Furioso, erguendo-se com
dificuldade, bradou: “Von Freud ist nicht die Rede!... “Não estamos
falando de divertimento!” — Smiley interrompeu-se e olhou para
Guillam no outro lado da mesa: — Perdão, Peter, creio que estou
sendo um pouco verboso.
— Bobagem, meu velho. Conte sua história como achar melhor.
— Mendel resmungou sua aprovação; sentava-se com certa rigidez,
as mãos em cima da mesa à sua frente. Não havia luz no salão,
exceto a claridade da lareira, que lançava sombras elevadas na
parede tosca por trás deles. Três quartos da garrafa de vinho do
Porto estavam vazios; Smiley se serviu de um pouco de vinho e
continuou:
— Ele esbravejou contra mim. Não compreendia como eu podia
aplicar um padrão de crítica independente à arte e permanecer tão
insensível à política, como podia choramingar a respeito de
liberdade artística quando um terço da Europa estava agrilhoada.
Não significava nada para mim que a civilização contemporânea
estivesse sangrando e morrendo? O que havia de tão sagrado no
século XVIII para que eu repelisse o século XX? Ele me tinha
procurado porque gostara dos meus seminários e me julgara um
homem esclarecido, mas agora via que eu era pior do que o resto.
— Deixei-o ir-se embora. Que mais eu podia fazer? Pelos papéis
ele era suspeito, de qualquer modo. Um judeu insubmisso com um
lugar na universidade e ainda misteriosamente livre. Mas eu o
observava. O período letivo estava quase terminando e em breve
começariam as férias grandes. No último debate do período, três
dias depois, ele foi terrivelmente franco. Realmente assustava os
demais, compreendem? E eles ficavam silenciosos e apreensivos.
Chegou o término das aulas e Dieter partiu sem se despedir de mim.
Não esperava encontrá-lo de novo.
— Passaram-se uns seis meses. Fui visitar uns amigos perto de
Dresden, a cidade natal de Dieter, e ao voltar cheguei à estação meia
hora antes da passagem do trem. Ao invés de ficar na plataforma,
resolvi dar um passeio. A uns cem metros da estação deparei com
um casarão alto e escuro do século XVII. Diante dele havia um pátio
cercado por varões de ferro e um portão de ferro batido. Era
evidente que tinha sido convertido em prisão temporária: um grupo
de prisioneiros de cabeça raspada, homens e mulheres, exercitava-se
ao ar livre, caminhando dentro do perímetro do pátio. Dois guardas
postavam-se no centro, equipados com metralhadoras. Observando-
os, avistei um vulto conhecido, mais alto do que os outros, coxeando,
esforçando-se por acompanhar o passo deles. Era Dieter. Tinham-lhe
tirado a bengala.
— Ao pensar nisso depois, naturalmente, compreendi que a
Gestapo não teria prendido o elemento mais popular da
universidade enquanto ele ainda estivesse em atividade. Esqueci
meu trem, voltei à cidade e procurei o nome dos pais dele na lista
telefônica. Eu sabia que o pai era médico, e assim não foi difícil
encontrar. Dirigi-me ao endereço e só encontrei a mãe dele. O pai já
tinha morrido num campo de concentração. Ela não estava disposta
a falar de Dieter, mas parecia que ele não fora para uma prisão de
judeus e sim para uma prisão geral, e tudo fazia crer que apenas por
um “período de correção”. A mãe esperava que ele estivesse de volta
ao cabo de três meses. Deixei um recado para ele, dizendo que ainda
tinha alguns livros seus e que teria prazer em devolvê-los na
primeira visita que ele me fizesse.
— Acho que os acontecimentos de 1939 exigiram o melhor de
mim, pois não creio que tenha voltado a pensar em Dieter naquele
ano. Logo depois do meu regresso de Dresden, o Departamento
ordenou-me que voltasse para a Inglaterra. Arrumei as malas e parti
em quarenta e oito horas, encontrando Londres completamente
tumultuada. Deram-me nova missão, que exigia preparação
intensiva, instruções complexas e muito treinamento. Tinha de voltar
ao continente o mais breve possível e pôr em ação na Alemanha
agentes quase despreparados que tinham sido recrutados naquela
emergência. Pus-me a decorar uma porção de nomes e endereços.
Vocês podem imaginar minha reação quando entre eles encontrei
Dieter Frey.
— Lendo o dossiê, descobri que ele mesmo se tinha praticamente
alistado ao entrar um belo dia no consulado em Dresden e exigir que
lhe dissessem por que ninguém fazia nada para pôr cobro à
perseguição aos judeus. — Smiley fez uma pausa e riu para si
mesmo: — Dieter era insuperável em conseguir que os outros
fizessem as coisas. — Olhou de relance para Mendel e Guillam.
Ambos tinham os olhos fixos nele.
— Suponho que minha primeira reação foi de ressentimento. O
rapaz esteve nas minhas barbas e eu não o considerara apto... que
diabo andara eu fazendo em Dresden? E de súbito fiquei alarmado
por ter nas mãos esse estouvado, cujo temperamento impulsivo
podia custar a minha vida e a de outras pessoas. Apesar das ligeiras
modificações da minha aparência e do novo disfarce sob o qual eu ia
operar, teria evidentemente de me apresentar a Dieter como George
Smiley da universidade, expondo-me assim às suas críticas. Isso me
parecia um péssimo começo, e estava quase decidido a formar a
minha rede sem Dieter. A verdade é que eu me tinha enganado. Ele
se mostrou um agente magnífico.
— Não reprimiu sua impetuosidade, mas usava-a habilmente
como uma espécie de blefe duplo. A deformidade conservou-o fora
do serviço militar, e ele arranjou um emprego no escritório dos
serviços ferroviários. Em nenhum momento chegou a ocupar um
posto de grande responsabilidade, e a quantidade de informações
que obtinha era fantástica. Detalhes dos transportes de tropas e
munições, destino e data das viagens. Depois apresentava relatórios
da eficácia de nossos bombardeios, indicava os alvos principais. Era
um brilhante organizador e acho que foi isso que o salvou. Fez um
serviço esplêndido nas ferrovias, tornou-se indispensável, trabalhava
a qualquer hora do dia ou da noite; tornou-se quase intocável.
Deram-lhe uma condecoração civil em reconhecimento de méritos
excepcionais, e suponho que a Gestapo julgou conveniente perder a
sua ficha.
— Dieter tinha uma teoria que era puro Fausto. O pensamento
sozinho era inútil. Era preciso agir para que o pensamento tivesse
eficácia. Dizia que o maior erro cometido pelo homem consistia em
distinguir entre o espírito e o corpo: uma ordem não existe quando
não é cumprida. Gostava muito de citar Kleist: “Se todos os olhos
fossem feitos de vidro verde e se tudo que parece branco fosse
realmente verde, quem seria o mais sábio?” Uma coisa assim.
— Como eu disse, Dieter era um agente magnífico. Chegava
mesmo ao ponto de conseguir que certas cargas fossem
transportadas em noites propícias aos voos, para maior comodidade
de nossos bombardeiros. Tinha ardis muito pessoais... uma
predisposição natural para os meandros da espionagem. Parecia
absurdo imaginar que isso pudesse durar muito, mas o efeito de
nossos bombardeios era tão vasto que teria sido infantil atribuí-lo à
traição de um único indivíduo... quanto mais a um homem tão
sabidamente sem papas na língua como Dieter.
— No que diz respeito a ele, a minha tarefa era das mais fáceis.
Dieter viajava um bocado. Tinha passe especial para se deslocar de
um lado para outro. A comunicação era “café pequeno” em
comparação com alguns outros agentes. De vez em quando nós nos
encontrávamos. e conversávamos num bar, ou ele me apanhava num
carro oficial e me levava oitenta ou noventa quilômetros numa
estrada principal, como se me estivesse dando uma carona. Mas na
maioria das vezes tomávamos o mesmo trem e trocávamos nossas
pastas no corredor ou íamos ao teatro levando embrulhos e
permutávamos as senhas do vestiário. Raramente me fornecia
informes originais mas apenas cópias das instruções de tráfego. Sua
secretária vivia atarefadíssima... era obrigada a manter um arquivo
especial que ele “destruía” de três em três meses, esvaziando-o’ em
sua pasta de documentos na hora do almoço.
— Bom, em 1943 fui chamado de volta. Acho que minha
cobertura comercial estava bem rala e que eu começava a me
complicar. — Parou e tirou um cigarro da cigarreira de Guillam.
— Mas não deixemos de ver Dieter em sua perspectiva própria —
continuou. — Ele era o meu melhor agente, mas não era o único sob
meu controle. Tinha minhas próprias dores de cabeça. Orientá-lo era
fácil em comparação com os outros. Quando terminou a guerra,
procurei saber por intermédio do meu sucessor o que fora feito de
Dieter e dos demais. Alguns tinham começado vida nova na
Austrália e no Canadá, outros haviam voltado para o que restava de
suas antigas cidades natais. Dieter hesitava, suponho. Os russos
estavam em Dresden, como se sabe, e ele pode ter tido algumas
dúvidas. No fim ele foi... ele tinha mesmo de ir por causa de sua
mãe. Afinal, odiava os americanos. E, como já disse, era socialista.
— Depois me contaram que ele havia feito carreira lá. A
experiência administrativa ganha durante a guerra proporcionou-lhe
uma função no governo da nova república. Suponho que a reputação
de rebelde e o sofrimento da sua família lhe abriram o caminho.
Deve ter feito uma carreira brilhante.
— Por quê? — perguntou Mendel.
— Ele estava aqui até o mês passado dirigindo a Missão do Aço.
— E isso não é tudo — Guillam apressou-se em dizer. — Se você
pensa que já está com sua taça cheia, tem mais, Mendel. Eu poupei a
você outra visita a Weybridge hoje de manhã e falei com Elizabeth
Pidgeon. Foi ideia de George. — Virou-se para Smiley: — Ela é uma
espécie de Moby Dick... a baleia branca devoradora de homens.
— E daí? — disse Mendel.
— Mostrei a ela um retrato daquele jovem diplomata de nome
Mundt que eles traziam a reboque para apanhar as sobras. Elizabeth
reconheceu-o imediatamente como o bonitão que foi buscar a pasta
de música de Elsa Fennan. Não é bacana?
— Mas...
— Sei o que você vai dizer, meu amigo. Você quer saber se
George também o reconheceu. Bem, George reconheceu. É o mesmo
sujeitinho maligno que tentou atrair George para dentro de casa em
Bywater Street. Não está ficando famoso?
Estavam a caminho de Mitcham e Mendel ia dirigindo. Smiley
estava exausto. Chovia novamente e fazia frio. Smiley apertou o
sobretudo à sua volta e, apesar do cansaço, observou com tranquilo
prazer escoar-se a movimentada noite londrina. Sempre gostara das
longas viagens. Mesmo agora, se pudesse escolher, cruzaria a França
de trem e não de avião. Ainda sabia apreciar os mágicos ruídos de
uma viagem por terra através da Europa, os repiques peculiarmente
dissonantes e as vozes francesas despertando-o subitamente de
sonhos ingleses. Ann também gostava disso e ambos tinham viajado
duas vezes por terra a fim de partilhar as duvidosas alegrias daquela
jornada incômoda.
Quando chegaram, Smiley foi direto para a cama e Mendel foi
fazer chá. Beberam-no no quarto de Smiley.
— E agora? — perguntou Mendel.
— Estava pensando em ir amanhã a Walliston.
— Você devia era passar o dia na cama. Que é que vai fazer lá?
— Ver Elsa Fennan.
— Não devia ir só. É melhor que eu o acompanhe. Fico no carro
enquanto você conversa. Ela é iídiche, não é?
Smiley fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Meu pai era iídiche. Nunca fez nenhum barulhão em torno
disso.
12

Sonho em liquidação

ELA ABRIU A PORTA e fitou-o um momento em silêncio.


— Podia ter-me avisado que vinha — disse ela.
— Achei mais seguro não avisar.
Ela guardou silêncio outra vez. Por fim disse: — Não sei o que
quer dizer com isso. — Essas palavras lhe eram penosas.
— Posso entrar? — disse Smiley. — Não dispomos de muito
tempo.
Ela parecia velha e cansada, menos jovial talvez. Introduziu-o na
sala de visitas e com um gesto de resignação indicou uma cadeira.
Smiley ofereceu-lhe um cigarro e tirou um para si mesmo. Ela
estava perto da janela. Ao mirá-la, ao observar-lhe a respiração
rápida, os olhos febris, ele compreendeu que ela tinha quase perdido
o poder de se defender.
Quando ele se pôs a falar, a voz era suave, compreensiva. Para
Elsa Fennan deve ter-se assemelhado a uma voz longamente
esperada, irresistível, que oferecia toda a força, conforto, compaixão
e segurança. Lentamente ela se afastou da janela e sua mão direita,
que estivera agarrada ao peitoril, arrastou-se tristonhamente, depois
caiu ao longo do corpo num gesto de submissão. Sentou-se diante de
Smiley, os olhos fixos nele em completa dependência, como os olhos
de uma amante.
— Você deve ter estado terrivelmente só — disse ele. — Ninguém
pode suportar isso sempre. Requer coragem, também, é tão difícil ser
bravo sozinho. Eles nunca compreendem, não é verdade? Nunca
sabem quanto custa... a artimanha sórdida de mentir e enganar, o
isolamento em relação às pessoas comuns. Imaginam que é possível
prosseguir no tipo de combustível deles... a bandeira desfraldada e a
música. Mas precisa-se de um tipo diferente de combustível quando
se está só, não é assim? Tem-se de odiar e a gente necessita de força
para odiar o tempo todo. E o que a gente deve amar é tão remoto, tão
vago, quando não se faz parte dele. — Interrompeu-se. Daqui a
pouco, pensou, daqui a pouco você cederá. Desejava ardentemente
que ela o aceitasse, aceitasse o consolo que ele lhe trazia. Olhou para
ela. Em breve ela cederia. — Eu disse que não dispúnhamos de
muito tempo. Sabe o que eu quero dizer?
Ela tinha as mãos cruzadas no regaço e o fitava. Ele viu as raízes
escuras de seu cabelo e perguntou a si mesmo por que diabo ela o
tingia. Ela não dava sinais de ter ouvido a pergunta dele.
— Quando eu a deixei naquela manhã há um mês atrás, fui para
minha casa em Londres. Um homem tentou matar-me. E na noite
daquele mesmo dia ele quase que conseguiu: atingiu-me na cabeça
três ou quatro vezes. Acabo de sair do hospital. Parece que tive sorte.
Depois foi a vez do garagista que alugava aquele carro. A polícia
fluvial encontrou o corpo dele no Tâmisa há poucos dias. Não
mostrava sinais de violência... o homem estava só cheio de uísque. A
polícia não tem explicação para o caso. Fazia muitos anos que o
homem não chegava nem perto do rio. Estamos lidando com um
sujeito competente, então, não é verdade? Um assassino
experimentado. Parece que ele está procurando eliminar qualquer
pessoa que possa vinculá-lo com Samuel Fennan. Ou com- sua
mulher, é claro. Há também aquela moça loura do Teatro de
Repertório...
— O que é que está dizendo? — murmurou ela. — O que é que
está tentando dizer-me?
Smiley teve então desejo de magoá-la, de esmagar os últimos
vestígios da vontade dela, de vencê-la completamente como inimiga.
Durante muito tempo ela o tinha assediado enquanto ele jazia
inerme, tinha sido um mistério e uma força.
— Em que jogos vocês pensavam que estavam tomando parte,
vocês dois? Acreditam que podem namorar com um poder como o
deles, que podem dar um pouco e não dar tudo? Pensam que vocês
podem parar a dança... controlar a força que lhes dão? Que sonhos
vocês acalentavam, Sra. Fennan, que 'tinham tão pouca relação com
a realidade?
Ela enterrou o rosto nas mãos e ele viu as lágrimas correrem-lhe
por entre os dedos. Seu corpo estremeceu com grandes soluços, e as
palavras saíam lentas, atormentadas.
— Não. Não eram sonhos. Meu único sonho era ele. Ele, sim, ele
tinha um sonho... um grande sonho. — Continuou a chorar,
sucumbida, e Smiley, meio triunfante, meio envergonhado, esperou
que ela voltasse a falar. De súbito ela ergueu a cabeça e encarou-o, as
lágrimas descendo-lhe ainda pelas faces. — Olhe para mim — disse
ela. — Que sonho eles me deixaram? Sonhei com cabelos longos e
dourados e eles me rasparam a cabeça, sonhei com um corpo belo e
eles o aniquilaram de fome. Vi o que os seres humanos são, e como
podia eu acreditar numa fórmula para os seres humanos? Eu disse a
ele, sim, eu disse a ele mil vezes: “Não façamos tantas leis, nem belas
teorias, nem julgamentos, e as pessoas poderão amar, mas basta lhes
darmos uma teoria, basta deixá-los inventar um slogan, para que o
jogo recomece.” Eu disse isso a ele. Discutimos noites a fio. Mas tudo
inútil, o menino queria ter o seu sonho, e se um mundo novo ia ser
construído, Samuel Fennan devia construí-lo. Eu disse a ele: “Escute.
Eles lhe deram tudo o que você tem, uma casa, dinheiro e confiança.
Por que fazer isso com eles?” E ele me respondia: '“Eu faço isso por
eles. Sou o cirurgião e um dia eles irão compreender.” Era uma
criança, Sr. Smiley. Os outros o conduziam como a uma criança.
Ele não ousou falar, não ousou pôr nada à prova.
— Há cinco anos atrás ele encontrou Dieter. Numa cabana de
esquiadores perto de Garmisch. Freitag nos contou depois que
Dieter havia planejado o encontro daquela maneira... Dieter não
podia esquiar por causa das pernas. Nada parecia real então; Freitag
não era um nome real. Fennan batizou-o Freitag como o Sexta-feira
de Robinson Crusoé. Dieter achou isso muito engraçado e mais tarde
nós nunca falávamos de Dieter mas sempre do Sr. Robinson e
Freitag. — Ela se interrompeu e olhou para Smiley com um sorriso
quase imperceptível: — Desculpe — disse ela; — não estou sendo
muito coerente.
— Compreendo — disse Smiley.
— Aquela moça... o que foi que você disse a respeito daquela
moça?
— Ela está viva. Não se preocupe. Continue.
— Fennan gostava de você. Freitag tentou matá-lo... por quê?
— Porque eu voltei, suponho, e a interroguei acerca do
telefonema das 8h30. Você falou disso a Freitag, não falou?
— Oh, meu Deus — disse ela, levando os dedos à boca.
— Você telefonou, não foi? Assim que fui embora?
— Foi, sim. Eu estava assustada. Eu queria avisá-lo para que
fossem embora, ele e Dieter, para que fossem e não voltassem nunca
mais, porque eu sabia que você os descobriria. Se não hoje, em outro
dia qualquer, mas eu sabia que você acabaria descobrindo. Por que
eles não me deixariam em paz? Eles estavam alarmados comigo
porque sabiam que eu não tinha sonhos, que eu só queria Samuel,
queria-o são e salvo, para amá-lo e cuidar dele. Eles sabiam disso.
Smiley sentiu a cabeça palpitar, errante.
— Assim, você telefonou imediatamente — disse ele. — Tentou
logo o número de Primrose e não conseguiu ligação.
— Sim — disse ela vagamente. — Sim, é verdade. Mas ambos os
números eram de Primrose.
— Então você discou o outro número, o alternativo...
Ela caminhou para a janela, repentinamente exausta e vacilante;
parecia mais feliz agora — a tempestade deixara-a reflexiva e, de
certo modo, contente.
— Sim. Freitag sabia arranjar alternativas.
— Qual era o outro número? — Smiley insistiu. Fitava-a com
ansiedade enquanto ela contemplava o jardim.
— Por que quer saber?
Ele foi até a janela e parou ao lado de Elsa, examinando-lhe o
perfil. Sua voz tornou-se áspera e enérgica.
— Eu disse que a moça estava bem. Você e eu estamos vivos
também. Mas não pense que isso vai durar.
Ela voltou-se para ele com o medo estampado nos olhos,
encarou-o um instante, depois inclinou a cabeça. Smiley pegou-a
pelo braço e guiou-a até a cadeira. Ele devia preparar para ela uma
bebida forte ou outra coisa qualquer. Ela sentou-se maquinalmente,
quase com a indiferença da loucura incipiente.
— O outro número era 9747.
— E o endereço... você tinha um endereço?
— Não, nada de endereço. Só o telefone. Tudo pelo telefone.
Nada de endereço — repetiu ela, com extraordinário vigor, de sorte
que Smiley ficou em dúvida. Um pensamento súbito veio à mente
dele: a habilidade de Dieter para estabelecer contatos.
— Freitag não se encontrou com você na noite em que Fennan
morreu, não é verdade? Ele não foi ao teatro.
— É.
— Aquela foi a primeira vez que ele faltou, não foi? Você ficou
apavorada e saiu antes de terminado o espetáculo.
— Não... sim, sim. Eu me apavorei.
— Não! Você saiu mais cedo porque tinha de fazê-lo, estava
combinado. Por que você saiu mais cedo? Por quê?
Ela cobriu-o rosto com as mãos.
— Ainda está louca? — bradou Smiley. — Ainda imagina que
pode controlar o que fez? Freitag vai matar você, matar a moça,
matar, matar, matar. Quem é que você quer proteger, uma moça ou
um assassino?
Ela chorava e não respondeu. Smiley curvou-se para ela, ainda
gritando.
— Vou-lhe dizer por que você saiu mais cedo, posso? Vou-lhe
dizer o que penso. Foi para pegar a última mala do correio de
Weybridge naquela noite. Freitag não tinha ido ao teatro, vocês não
tinham permutado as senhas do vestiário, tinham? Você obedeceu às
instruções, mandou a senha pelo correio, o que quer dizer que você
tem um endereço, não escrito mas guardado na memória, guardado
para sempre: “Se houver algum contratempo, se eu não puder
comparecer, aqui está o endereço.” Foi o que ele disse? Um endereço
para não ser usado e de que não se podia falar, um endereço
esquecido e lembrado para sempre. Está certo? Responda!
Ela se levantou, a cabeça virada para o outro lado, foi até a
escrivaninha e pegou um pedaço de papel e um lápis. As lágrimas
continuavam a escorrer-lhe pelas faces. Com dolorosa lentidão
escreveu o endereço, a mão vacilante e quase parando entre uma
palavra e outra.
Ele recebeu o papel, dobrou-o cuidadosamente em dois e enfiou-
o na carteira.
Então foi preparar chá para ela.
Ela parecia uma criança salva do mar. Sentada na ponta do sofá,
segurava com força a xícara nas mãos frágeis, apertando-a de
encontro ao corpo. Seus ombros magros curvavam-se para a frente,
os pés e tornozelos juntos. Vendo-a, Smiley sentia que havia
quebrado alguma coisa que nunca deveria ter tocado porque era
demasiado delicada. Considerou-se um rufião obsceno e grosseiro, e
o oferecimento do chá lhe pareceu uma recompensa inútil da sua
inépcia.
Não encontrava nada para dizer. Depois de alguns instantes, ela
falou: — Ele gostava de você, sabia disso? Ele realmente gostava de
você... disse que você era um homenzinho inteligente. E era tão raro
Samuel considerar alguém inteligente. — Balançava a cabeça
vagarosamente. Era talvez a reação que a fazia sorrir: — Ele dizia
que havia duas forças no mundo: a positiva e a negativa. “O que
farei então?” ele me perguntava. “Deixá-los arruinar a colheita
porque me dão pão? Criação, progresso, poder, todo o futuro da
humanidade aguarda à porta: não os deixarei entrar?” Eu então
respondia: “Mas Samuel, talvez as pessoas sejam felizes sem essas
coisas.” Mas ele não pensava nas pessoas desse jeito. E eu não podia
fazê-lo parar. Sabe o que havia de mais estranho em Fennan? Apesar
de todas aquelas reflexões e conversas, fazia muito tempo que ele
havia tomado suas resoluções. O resto era só poesia, Ele não era
coordenado, eu costumava dizer-lhe isso...
— ... e no entanto você o ajudava — observou Smiley.
— Sim, eu o ajudava. Ele precisava de auxílio e eu dava. Ele era a
minha vida.
— Entendo.
— Isso foi um erro. Ele era um menino, compreende? Esquecia-se
das coisas, como um garotinho. E tão vaidoso. Tomara a decisão de
agir e agia tão mal. Não pensava nisso como você pensa, ou como eu
penso. Não pensava nisso assim. Era sua tarefa e pronto! E tudo
começou de maneira tão simples. Uma noite trouxe para casa a
minuta de um telegrama, mostrou-me e disse: “Acho que Dieter
devia ver isso.” Não disse mais nada. Eu não podia acreditar que
começasse assim... que ele fosse um espião, quero dizer. Porque ele
era, não era? E pouco a pouco fui percebendo tudo. Passaram a
pedir-lhe coisas especiais. A pasta de música que eu recebia de
Freitag começou a conter ordens e algumas vezes dinheiro. Eu disse
a ele: “Veja o que estão mandando para você... você quer isso?” Não
sabíamos o que fazer do dinheiro. No fim nós o distribuímos quase
todo. Não sei por quê. Dieter ficou furioso naquele inverno quando
contei a ele.
— Qual foi o inverno? — perguntou Smiley.
— O segundo que passamos com Dieter... 1956 em Mürren. Nós o
conhecemos em janeiro de 1955. Foi aí que tudo começou. Posso lhe
dizer uma coisa? A Hungria não fez diferença para Samuel,
nenhuma diferença. Dieter ficou preocupado com ele nessa época, eu
sei disso, porque Freitag me contou. Quando Fennan me entregou as
coisas para que eu levasse para Weybridge naquele novembro, quase
enlouqueci. Disse-lhe gritando: “Não vê que é a mesma história de
sempre? Os mesmos canhões, as mesmas crianças morrendo nas
ruas? Só o sonho é que mudou, o sangue é da mesma cor. É isso que
você quer?” E perguntei: “Vai fazer isso para os alemães também?
Sou eu que estou jogada na sarjeta, vai permitir que façam isso
comigo?” Mas ele se limitou a dizer: “Não, Elsa, isso é diferente.” E e
eu fui levar a pasta de música. Você compreende?
— Não sei. Não sei mesmo. Talvez eu compreenda.
— Ele era tudo o que eu tinha. Era a minha vida. Eu me protegia,
suponho. E pouco a pouco me tornei parte de tudo. E depois era
tarde demais, não podia parar... Mas, você sabe? — disse ela, num
sussurro — havia momentos em que eu estava alegre, momentos em
que o mundo parecia aplaudir o que Samuel estava fazendo. A nova
Alemanha não era um panorama agradável para nós. Velhos nomes
voltavam à tona, nomes que nos tinham aterrado quando éramos
crianças. Voltava o orgulho categórico, tenebroso, a gente podia vê-lo
até mesmo nas fotografias da imprensa. Eles marchavam com o
velho ritmo. Fennan sentia isso também, mas, graças a Deus, ele não
tinha visto o que eu vi. Nós estávamos num campo de concentração
nas vizinhanças de Dresden, onde morávamos. Meu pai era
paralítico. Ele sentia mais falta de fumo do que de tudo no mundo e
eu costumava fazer cigarros para ele com qualquer porcaria que
encontrava no campo... só para fazer de conta. Um dia um guarda o
viu fumando e pôs-se a rir. Meu pai segurava o cigarro na mão
paralítica e seus dedos estavam-se queimando. Ele não sabia,
compreende? Sim, quando tornaram a fornecer armamentos aos
alemães, a dar-lhes dinheiro e uniformes, então às vezes... só por
alguns momentos... eu me sentia satisfeita com o que Samuel tinha
feito. Somos judeus, você sabe, e assim...
— Sei, sim. Compreendo — disse Smiley. — Eu vi um pouco
disso, também.
— Dieter nos disse.
— Dieter disse isso?
— Sim. Dise a Freitag. Ele disse a Freitag que você era um
homem muito hábil. Você enganou Dieter certa vez antes da guerra,
e só muito tempo depois foi que ele descobriu. Foi isso que Freitag
contou. Disse que você era o melhor que havia conhecido.
— Quando Freitag lhe disse isso?
Ela o encarou durante longo tempo. Ele nunca vira em rosto
nenhum tanta aflição desesperada. Lembrou-se como ela lhe dissera
antes: “Os filhos do meu pesar estão mortos.” Ele entendia isso
agora, e ouviu-o em sua voz quando ela afinal falou:
— Ora, não é óbvio? Na noite em que ele matou Samuel. Essa é a
grande pilhéria, Sr. Smiley. No momento mesmo em que Samuel
podia fazer tanto por eles, não apenas um bocado aqui e outro ali,
mas o tempo todo...
nesse momento o medo os destruiu, transformou-os em animais
e levou-os a matar o que tinham criado. Samuel sempre dizia: “Eles
vencerão porque conhecem e os outros perecerão porque .não
conhecem; os homens que trabalham por um sonho, trabalharão
sempre”, é o que ele dizia. Mas eu conhecia o sonho deles, eu sabia
que nos destruiria. E o que não nos destruiu? Nem mesmo o sonho
de Cristo.
— Foi Dieter, então, que me viu no parque com Fennan?
— Foi, sim.
— E pensou...
— Sim. Pensou que Samuel o tinha atraiçoado. Mandou Freitag
matar Samuel.
— E a carta anônima?
— Não sei. Não sei quem a escreveu. Alguém que conhecia
Samuel, suponho, alguém da repartição, que o observava e sabia de
tudo. Ou de Oxford, do partido. Não sei. Samuel também não sabia.
— Mas a carta do suicídio...
Ela o encarou, e seu rosto se abateu. Estava quase chorando de
novo. Curvou a cabeça.
— Eu a escrevi. Freitag trouxe o papel e eu a escrevi. A assinatura
já estava lá. A assinatura de Samuel.
Smiley aproximou-se dela, sentou-se a seu lado no sofá e segurou
sua mão. Ela se virou para ele, enfurecida, e pôs-se a gritar, histérica:
— Tire suas mãos de mim! Pensa que estou do seu lado porque
não pertenço a eles? Vá-se embora! Vá matar Freitag e Dieter, vá, o
jogo não pode parar, Sr. Smiley. Mas não pense que estou do seu
lado, está ouvindo? Porque eu sou a judia errante, a terra de
ninguém, o campo de batalha para os seus soldados de brinquedo.
Pode me dar pontapés, pode me espezinhar, mas nunca, nunca me
toque, nunca me diga que lamenta, está ouvindo? Agora vá-se
embora! Vá! Vá matar.
Ali sentada, tremia como se estivesse com frio. Ao chegar à porta,
ele se virou para vê-la. Não havia lágrimas nos olhos dela.
Mendel esperava por ele no carro.
13

A ineficiência de Samuel Fennan

CHEGARAM A MITCHAM na hora do almoço. Peter Guillam


aguardava-os pacientemente em seu carro.
— Muito bem, crianças. Quais são as novas?
Smiley passou-lhe o pedaço de papel que tirou da carteira.
— Havia também um número de emergência... Primrose 9747. É
bom verificar, embora não creia que valha grande coisa.
Peter desapareceu no saguão e começou a telefonar. Mendel
ocupou-se uns dez minutos na cozinha e.voltou depois com cerveja,
pão e queijo numa bandeja. Guillam retornou e sentou-se sem dizer
uma palavra. Parecia preocupado.
— Bom — disse por fim — o que foi que ela contou, George?
Mendel tirava a mesa enquanto Smiley concluía o relato da
entrevista daquela manhã.
— Compreendo — disse Guillam. — Que chateação! Mas é assim
mesmo, George. Tenho de pôr isso no papel hoje e vou falar com
Maston imediatamente. Apanhar espiões mortos é realmente
desagradável... e causa a maior infelicidade.
— Que acesso tinha ele ao M.E.? — perguntou Smiley.
— Ultimamente quase total. É por isso que acharam que ele devia
ser entrevistado.
— Mas que tipo de material, principalmente?
— Não sei ainda. Até pouco tempo ele estava num departamento
asiático, mas seu novo serviço era diferente.
— Americano, creio eu — disse Smiley. — Peter!
— Sim.
— Peter, você chegou a pensar no motivo por que desejavam
tanto matar Fennan? Quero dizer, supondo que ele os atraiçoara,
como acreditavam, por que matá-lo? Não tinham nada a ganhar.
— Sim, suponho que não tinham. Isso precisa de alguma
explicação, quando a gente pensa... mas será mesmo? Se Fuchs ou
Maclean os tivesse traído, imagino o que teria acontecido.
Suponhamos que tivessem razão para temer uma reação em cadeia...
não aqui precisamente mas na América... no mundo inteiro? Eles não
o matariam para impedir tal reação? Há muita coisa que nós nunca
saberemos.
— Como o telefonema das 8h30? — disse George.
— Até já. Não saia daqui enquanto eu não lhe telefonar, está
bem? Maston deve estar querendo ver você. Eles sairão
desembestados pelos corredores quando eu lhes contar as
novidades. Vou ter de usar aquele sorriso especial que reservo para
transmitir notícias realmente desastrosas.
Mendel levou-o à porta e depois retornou à sala de visitas.
— A melhor coisa que você tem a fazer é descansar um pouco —
disse ele. — Está precisando disso.
“Ou Mundt está aqui, ou não está”, refletia Smiley deitado na
cama, de colete, as mãos cruzadas sob a cabeça. “Se não está, não
temos mais nada a fazer. Cabe a Maston decidir o que fazer com Elsa
Fennan, e minha impressão é que ele não fará nada. Se Mundt está
aqui, seria por um destes três motivos: A, porque Dieter lhe disse
que ficasse e observasse o pó assentar; B, porque está mal visto e
teme regressar; C, porque tem negócios a liquidar. A é improvável
porque não é próprio de Dieter assumir riscos desnecessários. De
qualquer maneira, é uma ideia confusa. B é improvável porque,
embora Mundt possa estar com medo de Dieter, é de se presumir
que também o assusta a possibilidade de ser acusado de assassinato
aqui. Seu plano mais sensato seria o de ir para outro país. C é mais
provável. Se eu estivesse na pele de Dieter estaria louco de
preocupado com Elsa Fennan. A menina Pidgeon é insignificante...
sem Elsa para encher os claros, não representa perigo sério. Não era
conspiradora e não há motivo para que ela deva recordar
especialmente o amigo de Elsa no teatro. Não, Elsa constitui o perigo
real.”
Havia, é claro, uma última possibilidade, que Smiley era incapaz
de apreciar: a possibilidade de que Dieter tivesse outros agentes aqui
vigiando através de Mundt. De modo geral estava inclinado a não
levar isso em conta, mas o pensamento sem dúvida cruzara a mente
de Peter.
Não... ainda não fazia sentido... não estava nos eixos. Resolveu
recomeçar.
O que sabemos? Sentou-se à procura de lápis e papel e
imediatamente a cabeça começou a latejar. Obstinado, levantou-se
da cama e tirou um lápis do bolso interno do paletó. Havia um bloco
de papel na valise. Voltou à cama, arrumou os travesseiros da forma
que lhe convinha, tirou quatro aspirinas do frasco que estava em
cima da mesinha e recostou-se nos travesseiros, as pernas curtas
estiradas à sua frente. Começou a escrever. Primeiro escreveu o
cabeçalho numa letra caprichada, legível, e sublinhou-o.
O que sabemos?
Em seguida passou a narrar, etapa por etapa e tão objetivamente
quanto possível, a sequência dos acontecimentos até aquele instante:
Na segunda-feira 2 de janeiro Dieter Frey me viu no parque
conversando com seu agente e concluiu... Sim, o que Dieter
concluiu? Que Fennan tinha confessado, ia confessar? Que Fennan
era meu agente?”... e concluiu que Fennan era perigoso, por motivos
ainda desconhecidos. Na noite seguinte, primeira terça-feira do mês,
Elsa Fennan levou os relatórios do marido numa pasta de música
para o Teatro de Repertório de Weybridge, conforme o combinado, e
deixou a pasta no vestiário em troca de uma senha. Mundt devia
trazer sua própria pasta de música e fazer a mesma coisa. Elsa e
Mundt trocariam então as senhas durante a representação. Mundt
não apareceu. Diante disso, ela seguiu o método de emergência e pôs
no correio a senha para um endereço previamente arranjado, tendo
deixado o teatro mais cedo a fim de pegar a último correio saindo de
Weybridge. Então foi para casa onde encontrou Mundt, que já tinha
assassinado Fennan, provavelmente por ordem de Dieter. Alvejara-o
de muito perto, logo que o vira no saguão. Conhecendo Dieter,
suspeitou que muito antes tomara a precaução de conservar em
Londres algumas folhas de papel em branco com amostras, forjadas
ou autênticas, da assinatura de Sam Fennan, para o caso de ser
necessário comprometê-lo ou usar chantagem contra ele. Admitindo
essa hipótese, Mundt levou uma folha para datilografar a carta de
suicídio, acima da assinatura, na própria máquina de Fennan. Na
cena dolorosa que deve ter se seguido com a chegada de Elsa, Mundt
compreendeu que Dieter interpretara erroneamente o encontro de
Fennan com Smiley, mas recorreu a Elsa para preservar a reputação
do marido morto — para não mencionar a própria cumplicidade
dela. Mundt estava portanto razoavelmente salvo. Mundt fez Elsa
datilografar a carta, talvez porque não tivesse confiança nos próprios
conhecimentos de inglês. (Observação: Mas quem datilografou a
primeira carta, a denúncia?)
Então Mundt, presumivelmente, pediu a pasta de música que
não fora buscar e Elsa lhe disse que, em obediência às instruções,
havia enviado pelo correio a senha do vestiário para o endereço de
Hampstead, deixando a pasta no teatro. Mundt reagiu como era de
se esperar: obrigou-a a telefonar para o teatro e arranjar as coisas de
tal modo que ele pudesse pegá-la naquela noite quando voltasse
para Londres. Portanto, ou o endereço para o qual a senha foi
enviada já não era válido ou Mundt pretendia naquela altura voltar
cedo para casa na manhã seguinte sem ter tempo de ir buscar a
senha e a pasta.
Smiley visita Walliston na manhã de quarta-feira 4 de janeiro e na
primeira entrevista atende uma ligação do centro telefônico, às 8h30,
que (fora de qualquer dúvida razoável) Fennan solicitara às 7h55 da
noite anterior. POR QUÊ?
Mais tarde, naquela mesma manhã, S. volta a Elsa Fennan para
perguntar sobre a ligação das 8h30, que ela mesma (conforme
admitiu) sabia que iria “me preocupar” (sem dúvida a descrição
lisonjeira que Mundt fizera de meus poderes produziu efeito). Tendo
contado a S. uma história tola sobre sua falta de memória, ela se
acovarda e telefona para Mundt.
É de presumir que Mundt, de posse de uma fotografia ou de uma
descrição feita por Dieter, decide liquidar S. (a mando de Dieter?) e à
noite quase atinge seu objetivo. (Observação: Mundt só devolveu o
carro à garagem de Scarr na noite do dia 4. Isso não prova
necessariamente que Mundt não tivesse planos de pegar o avião
mais cedo naquele dia. Se tivesse pretendido viajar de manhã
poderia perfeitamente ter deixado antes o carro na garagem de Scarr
e ido para o aeroporto de ônibus.)
Parece bem provável que Mundt tenha alterado seus planos
depois do telefonema de Elsa. Não está evidenciado que ele os tenha
mudado por causa do telefonema dela. Teria Mundt realmente sido
levado ao pânico por Elsa? O pânico o fez ficar, assassinar Adam
Scarr?, Smiley perguntava a si mesmo.”
O telefone tocava no saguão...
— George, aqui é Peter. Nada feito com o endereço e o número
do telefone. Nada.
— Como é isso?
— O número do telefone e o endereço levavam ao mesmo lugar...
um apartamento alugado em Highgate.
— E então?
— Alugado por um piloto da Lufteuropa. Ele pagou dois meses
no dia 5 de janeiro e ainda não voltou.
— Bolas!
— A proprietária lembra-se bem de Mundt. O amigo do piloto.
Um cavalheiro muito amável, para um alemão, muito mão aberta.
Muitas vezes dormia no sofá.
— Ah, meu Deus!
— Andei vasculhando o quarto. Havia uma escrivaninha no
canto. Todas as gavetas estavam vazias, menos uma, que continha
uma senha de vestiário. Não sei de onde teria vindo... Bom, se você
quer dar boas risadas venha até Cambridge Circus. O Olimpo inteiro
está numa atividade febril. Ah, a propósito...
— Sim.
— Estive também no apartamento de Dieter. Outro fracasso. Ele
partiu no dia 4 de janeiro. Não avisou ao leiteiro.
— E a correspondência dele?
— Nunca recebia nada, a não ser contas. Também dei uma
espiada no ninho do camarada Mundt: dois quartos por cima da
Missão do Aço. A mobília foi embora com o resto da troçada.
Lamento muito.
— Sei.
— Mas vou-lhe contar uma boa, George. Lembra-se de que eu
pensei em olhar os objetos pessoais de Fennan... carteira, agenda
etc.? Lá na polícia.
— Lembro-me.
— Pois bem, dei uma olhada. Seu diário tem o nome completo de
Dieter anotado na seção de endereços, com o número do telefone da
Missão ao lado. Que desfaçatez!
— É mais do que isso. É loucura.
— Depois, para o dia 4 de janeiro a anotação é: “Smiley C. A.
Telefonar 8h30”. Está comprovada por uma anotação para o dia 3,
que dizia: “Solicitar chamada para 4^ de manhã”. Aí está seu
misterioso telefonema.
— Ainda sem explicação. — Uma pausa.
— George, mandei Felix Taverner ao FO para fazer umas
investigações. É pior do que temíamos em certo sentido, mas melhor
em outro.
— Por quê?
— Bem, Taverner examinou o protocolo do arquivo nesses dois
últimos anos. Pôde efetuar um levantamento das pastas requisitadas
pela seção de Fennan. Sempre que uma pasta era particularmente
solicitada por aquela seção, guardavam uma fórmula de requisição.
— Estou escutando.
— Felix descobriu que três ou quatro pastas eram habitualmente
requisitadas por Fennan na sexta-feira de tarde e devolvidas na
segunda-feira de manhã; a inferência é que ele carregava o material
para casa nos fins de semana.
— Puxa!
— Mas o curioso, George, é que durante os últimos seis meses,
desde a sua nomeação para o posto, ele tendeu a levar para casa
material inclassificado que não teria interesse para ninguém.
— Mas foi durante os últimos seis meses que ele começou a lidar
principalmente com documentos secretos — disse Smiley. — Ele
podia levar para casa o que quisesse.
— Eu sei, mas ele não levava. Na verdade podia-se quase dizer
que era de propósito. Levava para casa material de baixíssima
categoria que nada tinha que ver com seu trabalho diário. Seus
colegas não podem entender isso, agora que estão pensando no
caso... ele chegava mesmo a solicitar alguns documentos que
tratavam de assuntos estranhos ao campo de ação de seu
departamento.
— E inclassificados.
— Sim... de nenhum valor informativo imaginável.
— E antes, antes que ele ocupasse o novo posto? Que tipo de
material levava então para casa?
— O que se podia esperar... documentos que utilizava durante o
dia, diretrizes e coisas desse tipo.
— Secretos?
— Alguns, outros não. À medida que iam aparecendo.
— Mas nada inesperado... nenhum material particularmente
delicado que não lhe dissesse respeito?
— Não, nada. Teve oportunidades enormes, para falar com
franqueza, e não aproveitou. Fanfarrão, suponho.
— Devia ser mesmo, já que anotava o nome do seu supervisor na
agenda.
— E faça disto o uso que quiser: ele tinha conseguido no FO ficar
de folga no dia 4... o dia seguinte ao de sua morte. Um
acontecimento, sem dúvida... dizem que ele era um monstro para
trabalhar.
— O que é que Maston anda fazendo a respeito disso?
— perguntou Smiley, depois de uma -pausa.
— Investigando a papelada no momento e me amolando de dois
em dois minutos com perguntas terrivelmente bobas. Acho que se
está sentindo só, ali dentro, com os fatos concretos.
— Ah, ele os vencerá, Peter, não se preocupe.
— Já está dizendo que todo o processo contra Fennan se baseia
no testemunho de uma mulher neurótica.
— Obrigado pelo telefonema, Peter.
— Até outra hora, meu velho. Vá descansar.
Smiley repôs o fone no gancho e teve vontade de saber onde
andava Mendel. Havia um vespertino em cima da mesa da saleta.
Passou os olhos vagamente pela manchete: “Linchamento: Os Judeus
do Mundo Inteiro Protestam” e viu pouco abaixo a descrição do
linchamento de um comerciante judeu em Dusseldorf. Abriu a porta
da sala de visitas. Mendel não estava lá. Viu-o então pela janela,
usando o chapéu de jardinagem, retalhando ferozmente um toco de
árvore no jardim da frente. Smiley contemplou-o um momento,
depois subiu a escada para repousar mais um pouco. Ao chegar ao
último degrau o telefone começou a tocar de novo.
— George... desculpe incomodá-lo outra vez. É acerca de Mundt.
— Sim...
— Voou para Berlim ontem à noite pela B.E.A. Viajou sob outro
nome, mas foi facilmente identificado pela aeromoça. Isso é tudo. Má
sorte, meu velho.
Smiley comprimiu o gancho com a mão por um instante, em
seguida discou Walliston 2944. Ouviu o sinal de chamada no outro
extremo. De repente o sinal se interrompeu e no lugar dele ouviu a
voz de Elsa Fennan:
— Alô... Alô... Alô!
Vagarosamente ele recolocou o fone. Ela estava viva.
Por que agora? Por que Mundt viajava agora, cinco semanas
depois de assassinar Fennan, três semanas depois de assassinar
Scarr; por que eliminara o perigo menor — Scarr — e deixara Elsa
Fennan incólume, neurótica e amargurada, capaz de pôr de lado, de
um momento para outro, a própria segurança e contar tudo? Que
efeito não teria tido aquela noite terrível sobre ela? Como podia
Dieter confiar agora numa mulher ligada a ele por ilaços tão tênues?
O bom nome do marido já não podia ser preservado; não poderia
ela, por vingança ou arrependimento — e só Deus poderia dizer —,
deixar escapar toda a verdade? Evidentemente um pequeno lapso
devia transcorrer entre o assassinato de Fennan e o assassinato de
sua mulher, mas que acontecimento, que informação, que perigo
havia feito com que Mundt regressasse na noite anterior? Um plano
implacável e minucioso de resguardar o segredo da traição de
Fennan era agora, ao que tudo indicava, posto de lado, inconcluso. O
que acontecera no dia anterior e chegara ao conhecimento de
Mundt? Ou era a escolha do momento de sua partida uma simples
coincidência? Smiley recusava crer que fosse. Se Mundt permanecera
na Inglaterra, após os dois assassinatos e a agressão a Smiley, fora a
contragosto, enquanto esperava uma oportunidade ou um
acontecimento que o liberasse. Não ficaria um momento além do
necessário. E todavia, o que fizera ele desde a morte de Scarr?
Escondido em algum quarto isolado, afastado da luz e das notícias.
Então por que regressava agora repentinamente?
E Fennan — que espião era esse que selecionava informações
inócuas para seus patrões quando tinha tantas preciosidades ao
alcance da mão? Mudança de sentimento, talvez? Enfraquecimento
de propósitos? Então por que não contara à esposa, para quem seu
crime era um pesadelo constante e que se teria rejubilado com sua
conversão? Parecia agora que Fennan jamais demonstrara qualquer
preferência por papéis secretos. Ele simplesmente levava para casa
os documentos que o ocupavam normalmente em sua função. Mas
certamente um enfraquecimento de propósitos explicaria o estranho
convite para almoçar em Marlow e a convicção de Dieter de que
Fennan o traía. E quem escreveu a carta anônima?
Nada fazia sentido, nada. O próprio Fennan, brilhante, fluente e
simpático, enganara com tanta naturalidade, com tanta perícia.
Smiley chegara realmente a gostar dele. Por que então havia esse
refinado impostor cometido o disparate incrível de anotar o nome de
Dieter em sua agenda... e revelado tão pouco discernimento ou
interesse' na seleção das informações?
Smiley subiu a escada para empacotar os poucos objetos que
Mendel trouxera para ele de Bywater Street. Estava tudo encerrado.
14

O grupo de Dresden

DETEVE-SE NO DEGRAU da porta e pôs a valise no chão, remexendo


nos bolsos em busca da chave. Ao abrir a porta, lembrou-se de
Mundt ali, parado, fitando-o com seus olhos de um azul pálido,
calculadores, fixos. Era esquisito pensar em Mundt como discípulo
de Dieter. Mundt havia procedido com a inflexibilidade de um
mercenário traquejado — eficiente, resoluto, estreito. Não houvera
nada de original em sua técnica: fora em tudo uma sombra do seu
mestre. Era como se os brilhantes e imaginosos estratagemas de
Dieter tivessem sido comprimidos num manual que Mundt
aprendera de cor, acrescentando apenas o sal da própria brutalidade.
De propósito, Smiley não deixara o novo endereço, e uma pilha
de correspondência jazia no capacho da porta. Apanhou-a, colocou-a
na mesa da saleta e passou a abrir portas e olhar à sua volta, com
uma expressão desorientada, perplexa, estampada no rosto. A casa
lhe parecia estranha, fria e bolorenta. Enquanto andava lentamente
de um cômodo para outro, começou pela primeira vez a perceber
como a sua vida se tornara vazia.
Procurou fósforos para acender a lareira a gás, mas não
encontrou. Sentou-se numa poltrona da sala de estar e seus olhos
percorreram as estantes e as bugigangas que trouxera das viagens.
Quando Ann o abandonara, ele se pusera com todo o rigor a excluir
todos os vestígios dela. Chegara ao ponto de se desfazer dos livros
da mulher. Mas paulatinamente foi deixando que os poucos
símbolos restantes que vinculavam a sua vida à dela se
reafirmassem: os presentes de núpcias, recebidos de amigos íntimos
e que significavam muito para serem jogados fora. Havia um croqui
de Wa eau, lembrança de Peter Guillam, e um grupo de Dresden,
dado por Steed-Asprey.
Levantou-se da poltrona e foi até o armário do canto, onde estava
o grupo. Agradava-lhe admirar a beleza daquelas figuras, a
minúscula cortesã rococó em traje de pastora, as mãos estendidas
para um amante extasiado, o rosto miúdo lançando olhares para
outro. Sentia-se deslocado diante daquela frágil perfeição, como se
sentira diante de Ann quando iniciou a conquista que assombrara a
sociedade. De qualquer modo aquelas figurinhas consolavam-no: era
inútil esperar fidelidade de Ann como dessa pequenina pastora em
sua redoma de vidro. Steed-Asprey comprara o grupo em Dresden
antes da guerra, considerava-o a principal peça da sua coleção e o
tinha presenteado a eles. Talvez tivesse adivinhado que um dia
Smiley poderia precisar da filosofia simples que o grupo propunha.
Dresden: dentre todas as cidades alemãs, a favorita de Smiley.
Ele lhe admirara a arquitetura, aquela mistura singular de
construções medievais e clássicas, às vezes sugerindo Oxford, suas
cúpulas, torres e agulhas, seus tetos azinhavrados cintilando ao sol.
Seu nome significava “cidade dos moradores da floresta”, e foi lá
que Venceslau da Boêmia cumulara os menestréis de dádivas e
privilégios. Smiley recordou a última vez em que lá estivera,
visitando um colega da universidade, professor de Filosofia, que
conhecera na Inglaterra. Foi nessa visita que avistara Dieter Frey,
coxeando em volta do pátio da prisão. Podia vê-lo ainda, alto e
colérico, monstruosamente alterado pela cabeça raspada, parecendo
grande demais para aquela pequena cadeia. Dresden, lembrava, era
o lugar de nascimento de Elsa Fennan. Rememorou os dados
pessoais dela, existentes no Foreign Office: Ela née Freimann,
nascida em 1917 em Dresden, Alemanha, de pais alemães; educada
em Dresden; prisioneira de 1938-45. Tentou situá-la em seu lar, o de
uma família judaica patrícia sobrevivendo entre insultos e
perseguições. “Sonhei com cabelos longos e dourados e eles me
rasparam a cabeça.” Compreendeu com repugnante exatidão por
que ela tingira o cabelo, Ela podia ter sido como essa pastora, bonita
e de seios redondos. Mas o corpo fora torturado pela fome e era
frágil e feio, como a carcaça de um passarinho.
Podia imaginá-la na terrível noite em que deparou com o
assassino ao lado do cadáver do marido; podia ouvir-lhe a
explicação ofegante, entrecortada de soluços, do motivo pelo qual
Fennan estivera no parque com Smiley; e Mundt impassível,
esclarecendo e argumentando, obrigando-a por fim a conspirar mais
uma vez contra a vontade nesse crime horripilante e desnecessário,
arrastando-a para o telefone e forçando-a a comunicar-se com o
teatro, deixando-a depois de tudo, torturada e exausta, enfrentar
sozinha os inquéritos que se seguiriam, e até mesmo datilografar,
acima da assinatura de Fennan, aquela inútil carta de suicídio. Era
inacreditavelmente desumano e, acrescentou para si mesmo, um
risco fantástico para Mundt.
Era evidente que ela se revelara no passado uma cúmplice
bastante fidedigna, serena e, o que não deixa de ter certa ironia, mais
hábil do que Fennan nas técnicas da espionagem. Além disso, santo
Deus! para uma mulher que acabara de passar uma noite como
aquela, sua representação no primeiro encontro com Smiley fora um
prodígio.
Enquanto contemplava a pastorinha eternamente indecisa entre
seus dois admiradores, Smiley concluiu tranquilamente que havia
outra solução para o caso de Samuel Fennan, uma solução que
ajustava todos os pormenores circunstanciais, conciliava as
incômodas contradições evidentes no caráter de Fennan. A
conclusão foi a princípio um exercício formal, sem referência a
personalidades; Smiley manobrava as personagens como peças de
um quebra-cabeças, torcendo-os de um modo, depois de outro, a fim
de as encaixar na complexa moldura de fatos consumados — e
então, num instante, o quadro se recompusera inopinadamente com
tal certeza que deixava de ser um jogo.
Seu coração bateu mais apressado quando, com espanto cada vez
maior, Smiley tornou a recitar para si mesmo toda a história,
reconstruindo cenas e incidentes à luz da sua nova descoberta.
Agora sabia por que Mundt saíra da Inglaterra naquele dia, por que
Fennan escolhia pouca informação de valor para Dieter, por que
solicitara a chamada das 8h30 e por que sua mulher escapara à
selvajaria sistemática de Mundt. Agora enfim sabia quem escrevera a
carta anônima. Viu como tinha sido o joguete do seu próprio
sentimentalismo, como havia traído o poder de sua mente.
Dirigiu-se ao telefone e discou o número de Mendel. E assim que
acabou de falar com ele, comunicou-se com Peter Guillam. Em
seguida, pôs o chapéu e o sobretudo e dobrou a esquina de Sloane
Square. Numa banca de jornais ao lado de Peter Jones comprou um
postal da Abadia de Westminster. Encaminhou-se para a estação do
metrô e rumou para o norte até Highgate, onde saltou do trem.
Comprou um selo no correio e endereçou o postal, em maiúsculas
rígidas, continentais, a Elsa Fennan. No espaço reservado à
correspondência escreveu com uma caligrafia pontuda: “Queria que
você estivesse aqui.” Enfiou o cartão na caixa e anotou a hora; depois
disso, voltou para Sloane Square. Nada mais podia fazer.
Dormiu profundamente naquela noite, levantou-se bem cedinho
no dia seguinte, sábado, e foi até a esquina para comprar croissant e
café em grão. Preparou um bocado de café e sentou-se na cozinha,
lendo o Times e fazendo seu desjejum. Sentia-se estranhamente
calmo e quando, por fim, o telefone tocou, dobrou cuidadosamente o
jornal e subiu a escada para atender ao chamado.
— George, é Peter — a voz era impetuosa, quase triunfante. —
George, ela caiu, juro que caiu!
— O que aconteceu?
— O correio chegou precisamente às 8h35. Às 9h30 ela saía de
casa a toda pressa. Foi diretamente à estação e apanhou o trem das
9h52, para Victoria. Deixei Mendel no trem e saí em disparada no
carro, mas cheguei aqui depois do trem.
— Como vai entrar novamente em contato com Mendel?
— Dei a ele o número do Grosvenor Hotel, onde estou agora. Ele
vai me telefonar na primeira oportunidade e eu irei para onde ele
estiver.
— Peter, você está aceitando isso serenamente, não está?
— Mas é claro, rapaz. Acho que ela está perdendo a cabeça. Anda
como um galgo.
Smiley desligou. Apanhou de novo o Times e começou a
examinar a coluna de teatro. Ele devia estar certo... tinha de estar»
Depois disso a manhã passou com dolorosa lentidão. Às vezes
ele se punha à janela, as mãos nos bolsos, espiando as moças esguias
de Kensington que iam fazer compras acompanhadas de belos
rapagões de pulôver azul-claro, ou a brigada dos limpadores de
carros que trabalhavam alegremente diante de suas casas, em
seguida se juntavam para falar de automóveis e finalmente seguiam
decididos pela rua em busca da primeira cerveja do fim de semana.
Afinal, depois do que pareceu uma demora interminável, a
cigarra da porta da frente soou e Mendel e Guillam entraram, rindo
satisfeitos e totalmente esfaimados.
— Anzol; linha e chumbada — disse Guillam. — Mas deixe que
Mendel lhe conte... foi ele que fez todo o serviço. Eu entrei só na
hora de dar o golpe final.
Mendel narrou sua história com meticulosa exatidão, os olhos no
chão alguns passos à sua frente, a cabeça ligeiramente inclinada para
um lado.
— Ela pegou o trem de 9h52 para Victoria. Eu me mantive
afastado dela no trem e fui encontrá-la no momento em que
atravessava o portão. De lá ela tomou um táxi para Hammersmith.
— Um táxi? — Smiley interveio. — Deve estar fora de si.
— Ela está louca. De qualquer modo, anda depressa demais para
uma mulher, mas quase sai correndo pela plataforma. Saltou na
Broadway e foi a pé para o Teatro Sheridan. Empurrou as portas da
bilheteria, mas estavam trancadas. Hesitou um momento e andou
uns cem metros até chegar a um bar naquela rua. Pediu café e pagou
logo. Uns quarenta minutos depois voltou ao Sheridan. A bilheteria
estava aberta e eu me meti atrás dela na fila. Comprou duas
poltronas para quinta-feira, fila T, 27 e 28, Quando saiu do teatro,
botou um ingresso num envelope e fechou-o. Depois colocou-o na
caixa do correio. Não pude ver o endereço, mas o selo no envelope
era de seis perece.
Smiley estava imóvel.
— Não sei... — disse — não sei se ele virá.
— Fui encontrar-me com Mendel no Sheridan — disse Guillam.
— Ele a viu entrar no café e me telefonou. Depois disso, ele foi atrás
dela.
— Deu vontade de tomar café também — Mendel continuou. —
Guillam me acompanhou. Deixei-o lá quando fui para a fila da
compra de ingresso, e ele saiu do bar um pouco depois. Foi um
serviço limpo, sem aborrecimentos. Ela está desvairada, garanto.
Mas não suspeita de nada.
— E depois, o que foi que ela fez? — indagou Smiley.
— Voltou para Victoria. E lá nós a deixamos de lado.
Ficaram em silêncio por um momento. Depois Mendel falou:
— O que vamos fazer agora?
Smiley pestanejou e encarou fixamente o rosto cinzento de
Mendel.
— Reservar ingressos para o espetáculo de quinta-feira no
Sheridan.
Os outros tinham ido embora e ele estava só outra vez. Ainda não
começara a enfrentar a correspondência que se acumulara em sua
ausência. Circulares, catálogos dos Blackwells, contas e a coleção
habitual de certificados de qualidade de sabão, cupões de ervilha
congelada, formulários da loteria de futebol e algumas cartas
particulares continuavam fechados em cima da mesa da saleta.
Carregou tudo para a sala de visita, acomodou-se numa poltrona e
tratou de abrir primeiro as cartas pessoais. Uma era de Maston. Leu-
a com um sentimento que se aproximava do embaraço.

“Meu caro George.


Foi com tristeza que soube, por intermédio de Guillam, do seu
acidente, e espero que agora você já esteja completamente restabelecido.
Você deve estar lembrado de que no ardor do momento me
endereçou um pedido de demissão antes do seu infortúnio, e quero que
saiba que naturalmente não levo a sério esse pedido. Algumas vezes,
quando os acontecimentos nos oprimem, nosso senso de perspectiva
nos abandona. Mas velhos batalhadores como nós, George, não se
deixam enganar tão facilmente. Confio em que o teremos conosco logo
que você se sinta com bastante força para retornar, e enquanto isso
continuamos a considerá-lo como um velho e leal membro do nosso
serviço.”

Smiley pôs esta de lado e virou-se para a outra carta. Apenas por
um instante não reconheceu a letra; por um momento contemplou
atarantado o selo suíço e o dispendioso papel de correspondência do
hotel. De súbito sentiu-se ligeiramente tonto, sua vista se toldou e
quase não teve força suficiente nos dedos para abrir o envelope. O
que ela queria? Se era dinheiro, podia ter tudo o que ele possuía. O
dinheiro era dele, para gastar no que quisesse; se lhe dava prazer
esbanjá-lo com Ann, ele o faria. Não tinha mais nada para lhe dar...
ela já levara tudo muito antes. Levara a coragem, o amor, a
compaixão, metera-os lepidamente em sua caixinha de joias para
acariciá-los numa ou noutra tarde em que o tempo custasse a passar
sob o sol cubano, para talvez acenar com eles diante dos olhos de seu
mais novo amante, para compará-los mesmo com idênticos
berloques que outros antes ou desde então lhe tinham trazido.

Meu querido George.


Quero lhe fazer uma oferta que nenhum cavalheiro poderia aceitar.
Quero voltar para você.
Estarei no Baur-au-Lac, em Zurique, até o fim do mês. Responda-
me.
ANN.

Smiley segurou o envelope e examinou o verso: ‘Madame Juan


Alvida.” Não, nenhum cavalheiro podia aceitar tal oferta. Nenhum
sonho podia sobreviver à evidência da partida de Ann com seu
latino meloso, de dentes sempre arreganhados. Smiley vira uma vez
um noticiário cinematográfico em que Alvida aparecia vencendo
uma corrida em Monte Carlo. O que notara de mais repelente nesse
indivíduo, lembrava Smiley, fora o pelo dos braços. Com os óculos
de proteção, as manchas de óleo e aquela ridícula grinalda de louros,
ele se assemelhava exatamente a um chimpanzé caído de uma
árvore. Usava camisa branca de tênis, de mangas curtas, que se
manteve imaculadamente limpa durante a corrida, fazendo avultar
com repulsiva clareza aqueles simiescos braços negros.
Aquela era Ann: Responda-me. Resgate a sua vida, veja se ela
pode ser vivida de novo e me responda. Cansei do meu amante, meu
amante se cansou de mim, deixe-me destroçar outra vez o seu
mundo: o meu me aborrece. Eu quero voltar para você... eu quero...
eu quero...
Smiley se ergueu, a carta ainda na mão, e parou diante do grupo
de porcelana. Ficou ali vários minutos, contemplando a pastorinha.
Ela era tão bonita.
15

O último ato

“EDUARDO II”, produção em três atos do Teatro Sheridan, vinha


sendo encenado para casas cheias. Guillam e Mendel ocupavam
cadeiras contíguas na extremidade do balcão nobre, que formava um
amplo U de frente para o palco. A extremidade esquerda do balcão
proporcionava uma visão das últimas poltronas da plateia, que de
outro modo estariam ocultas. Uma cadeira vazia separava Guillam
de um grupo de estudantes que aguardavam o espetáculo com
ansiedade.
Os dois homens contemplavam atentamente o mar de cabeças
irrequietas e programas adejantes, agitando-se em ondas súbitas
quando chegavam os retardatários. A cena lembrava a Guillam uma
dança oriental, onde os diminutos gestos de mãos e pés animam um
corpo imóvel. De vez em quando ele atirava um olhar às últimas filas
da plateia, mas não havia sinal de Elsa Fennan nem do seu
convidado.
No momento mesmo em que soavam os últimos acordes da
abertura gravada, tornou a lançar um rápido olhar na direção das
duas poltronas vazias da última fila, e seu coração deu um salto
inesperado quando ele divisou a figura franzina de Elsa Fennan, tesa
e imóvel na cadeira, olhando fixamente o auditório como uma
criança aprendendo a ficar sentada. A poltrona da direita, mais perto
da coxia, ainda estava desocupada.
Lá fora, na rua, os táxis paravam apressados à entrada do teatro e
uma agradável seleção de abastados e remediados dava gorjetas
generosas aos choferes e passava cinco minutos procurando os
ingressos. O táxi de Smiley levou-o um pouco além do teatro e
depositou-o no Clarendon Hotel. Smiley desceu a escada, indo
direto ao restaurante e bar.
— Estou esperando um telefonema a qualquer momento — disse
ele. — Meu nome é Savage. Pode-me avisar, por favor?
O barman se virou para o telefone nas suas costas e falou com a
recepcionista.
— E um uísque com soda, por favor; toma um também?
— Obrigado, senhor. Não bebo.
O pano ergueu-se, mostrando um palco em penumbra, e
Guillam, observando o fundo do auditório, tentou a princípio sem
êxito romper a escuridão repentina. Pouco a pouco seus olhos se
habituaram à débil claridade lançada pelas lâmpadas das saídas de
emergência até que ele pôde distinguir Elsa na meia-luz; e ainda
estava desocupada a cadeira ao lado dela.
Apenas uma divisão baixa separava as últimas filas da plateia do
corredor que se estendia ao longo dos fundos do auditório, e por trás
dele diversas portas comunicavam com o saguão, o bar e os
vestiários. Por um instante uma das portas se abriu e um feixe
oblíquo de luz projetou-se como que de propósito sobre Elsa Fennan,
iluminando com uma réstia tênue um lado do seu rosto,
enegrecendo-lhe em contraste as cavidades. Ela inclinou levemente a
cabeça, como se tivesse escutado alguma coisa atrás de si, levantou-
se um pouco, tornou a sentar-se, decepcionada, e retomou a atitude
anterior.
Guillam sentiu no braço a mão de Mendel, voltou-se e viu o rosto
magro do outro estender-se para a frente. Acompanhando o olhar de
Mendel, baixou a vista para o poço do teatro, onde um vulto alto
avançava em direção às últimas filas da plateia; era um tipo
impressionante, ereto e másculo, com uma mecha de cabelos negros
caída na testa. Era para ele que Mendel olhava como que fascinado,
para esse titã elegante que manquejava coxia acima. Havia algo
diferente nele, algo que chamava atenção e perturbava. Através dos
óculos, Guillam observava-lhe o andar lento e decidido, admirava a
graça e a cadência do seu passo irregular. Era um homem à parte,
um homem que ninguém esquecia, um homem que faz vibrar uma
nota profunda na experiência de cada um, um homem com o dom
da familiaridade universal: para Guillam era um componente vivo
de todos os nossos sonhos românticos, erguia-se no mastro com
Conrad, procurava a Grécia perdida com Byron, e com Goethe
visitava as trevas de infernos clássicos e medievais.
Ao caminhar, impelindo para a frente a perna sadia, revelava
uma independência, uma autoridade, que não podia passar
despercebida. Guillam reparou como cabeças se voltavam na plateia
e olhos o seguiam obedientes.
Passando apressado por Mendel, Guillam atravessou num átimo
a saída de emergência que dava para um corredor. Deu mais alguns
passos pelo corredor e chegou afinal ao saguão. A bilheteria estava
fechada, mas a moça ainda se debruçava em desespero sobre uma
página de algarismos laboriosamente compilados, cobertos de
emendas e rasuras.
— Com licença — disse Guillam — preciso usar o seu telefone. É
urgente. Está bem?
— Psiu! — Ela acenou impaciente com um lápis, sem levantar a
vista. Seu cabelo era cor de rato, a pele oleosa brilhava com a fadiga
das noites mal dormidas e do regime de batatas fritas. Guillam
esperou um momento, sem saber quanto tempo levaria ela para
encontrar uma solução que combinasse aquele emaranhado de
aranhosos algarismos com a pilha de cédulas e moedas na caixa
aberta ao lado dela.
— Escute — ele insistiu. — Sou da polícia... tem lá em cima um
casal de heróis que anda atrás do seu dinheiro. Não me vai deixar
usar o seu telefone?
— Ah, meu Deus! — disse ela com uma voz cansada, e olhou
para ele pela primeira vez. Usava óculos e era muito simples. Não
estava alarmada nem impressionada: — Quem me dera que
levassem esse maldito dinheiro. Ele está-me deixando louca. —
Empurrando as contas para um lado, abriu uma porta do
quiosquezinho e Guillam se espremeu todo para entrar.
— Infecto, não? — disse a moça com um sorriso franco. Sua voz
denotava certo refinamento... provavelmente uma universitária de
Londres fazendo seu biscate, pensou Guillam. Ligou para o
Clarendon e pediu para falar com o Sr. Savage. Quase de imediato
ouviu a voz de Smiley.
— Ele está aqui — disse Guillam — estava aqui o tempo todo.
Deve ter comprado uma entrada extra. Estava sentado nas primeiras
filas. De repente Mendel localizou-o manquejando pela coxia.
— Mancando?
— Sim. Não é Mundt, não. É o outro. Dieter.
Smiley não respondeu, e depois de um instante Guillam falou: —
George... você está aí?
— Desconfio que fomos logrados, Peter. Não temos nada contra
Frey. Pode mandar embora os rapazes. Eles não encontrarão Mundt
esta noite. Já acabou o primeiro ato?
— Deve estar perto do intervalo.
— Estarei aí em vinte minutos. Não largue Elsa... se eles se
separarem, Mendel deve seguir Dieter. Você fique no saguão no
último ato. Pode ser que eles saiam antes de terminar.
Guillam desligou e voltou-se para a moça.
— Obrigado — disse ele e colocou quatro moedas em cima da
mesa. Ela juntou-as e guardou-as firmemente na mão.
— Pelo amor de Deus — disse ela — não queira aumentar as
minhas dificuldades.
Guillam foi até a rua e conversou com um homem à paisana que
estava na calçada. Em seguida, subiu correndo a escada e juntou-se a
Mendel no momento em que o pano caía sobre o primeiro ato.
Elsa e Dieter estavam sentados lado a lado. Conversavam
alegremente, Dieter rindo, Elsa animada e eloquente como um
fantoche em quem o dono tivesse insuflado vida. Mendel
contemplava-os fascinado. Ela riu com alguma coisa dita por Dieter,
curvou-se para a frente e pôs a mão no braço dele. Mendel viu os
dedos finos dela pousados no dinner jacket do companheiro, viu
Dieter inclinar a cabeça e murmurar alguma coisa, de modo que ela
riu outra vez. Mendel ainda estava observando quando as luzes do
teatro se apagaram e o ruído da conversa cessou, com os
espectadores se preparando para o segundo ato.
Smiley saiu do Clarendon e caminhou vagarosamente pela
calçada até o teatro. Pensando naquilo agora, compreendeu que era
perfeitamente normal que Dieter tivesse vindo, que teria sido
loucura enviar Mundt. Perguntava a si mesmo quando iriam Elsa e
Dieter descobrir não ter sido Dieter que a convocara, nem ter sido
Dieter que enviara o postal por um mensageiro de confiança. Esse,
refletiu, deve ser um momento interessante. Tudo o que desejava
agora era a oportunidade de mais uma entrevista com Elsa Fennan.
Minutos depois ele se enfiava de mansinho na cadeira vazia ao
lado de Guillam. Fazia muito tempo que vira Dieter pela última vez.
Ele não mudara. Era o mesmo romântico inverossímil, com a
magia de um charlatão; era a mesma figura inesquecível que
claudicara sobre as ruínas da Alemanha, implacável nos propósitos,
satânico na execução, sinistro e ágil como os Deuses do Norte.
Smiley mentira aos companheiros naquela noite no clube; Dieter era
desmesurado; sua astúcia, sua presunção, sua força e seu sonho —
tudo isso era maior do que na vida real, não diminuído pelo influxo
moderador da experiência. Era um homem que pensava e agia em
termos absolutos, sem paciência nem transigência.
Naquela noite, enquanto se sentava na escuridão do teatro e
observava Dieter no meio de uma multidão de rostos imóveis, as
lembranças se apoderaram de Smiley, lembranças de perigos
partilhados, de confiança mútua quando cada um tinha nas mãos a
vida do outro... Por um segundo Smiley ficou em dúvida se Dieter o
vira, tinha a impressão de que tinha sobre si os olhos de Dieter,
observando-o na penumbra.
Smiley se levantou quando o segundo ato se aproximava do fim;
quando o pano caiu, afastou-se rápido pela saída lateral e esperou
discretamente no corredor até que a cigarra tocou anunciando o
terceiro ato. Mendel veio se juntar a ele pouco antes do fim do
intervalo e Guillam foi ocupar seu posto no saguão.
— Temos barulho — disse Mendel. — Estão discutindo. Ela
parece assustada. Não para de falar e ele só faz balançar a cabeça.
Ela está apavorada, penso eu, e Dieter parece preocupado. Ele
começou a olhar em volta do teatro como se tivesse caído numa
armadilha e estivesse examinando o lugar, fazendo planos. Chegou a
olhar para o ponto onde você estava sentado.
— Ele não vai deixar que ela saia sozinha — disse Smiley. — Vai
esperar e sair com a multidão. Não se irão embora antes de
terminada a peça. Provavelmente sabe que está cercado: vai tentar
confundir-nos, separando-se dela inesperadamente no meio da
multidão... como se se perdessem um do outro.
— E nós, o que faremos? Por que não vamos lá e os agarramos?
— Não. Vamos esperar. Não sei exatamente para quê. Não temos
prova. Nenhuma prova de assassinato nem de espionagem até que
Maston resolva fazer alguma coisa. Mas lembre-se: Dieter não sabe
disso. Se Elsa está sobressaltada e Dieter preocupado, então vão
fazer alguma coisa. Isto é certo. Contanto que eles pensem que a
brincadeira acabou, nós temos uma oportunidade. Deixemo-los
discutir, brigar, tudo. Contanto que façam alguma coisa...
O teatro estava novamente às escuras, mas pelo canto do olho
Smiley viu Dieter curvado, cochichando ao ouvido de Elsa e
segurando-lhe o braço com a mão esquerda. Toda a atitude dele era
de quem via a urgência de persuadir e tranquilizar.
A peça se arrastava, os brados dos soldados e os gritos do rei
demente enchiam o teatro, aproximando-se do clímax aterrador da
morte infame do monarca, quando um suspiro audível ergueu-se
das poltronas embaixo deles. Dieter envolvia agora os ombros de
Elsa com o braço. Juntara-lhe as dobras do fino xale em volta do
pescoço e protegia-a como se ela fosse uma criança adormecida.
Assim permaneceram até o pano baixar pela última vez. Nenhum
dos dois aplaudiu. Dieter apanhou a bolsa de Elsa, disse-lhe alguma
coisa tranquilizadora e colocou a bolsa no regaço da moça. Ela
assentiu muito de leve com a cabeça. Um rufar de tambores
admoestou os espectadores a ficarem de pé para o hino nacional.
Smiley ergueu-se instintivamente e notou surpreso que Mendel
tinha desaparecido. Dieter levantou-se lentamente, e enquanto ele se
punha de pé, Smiley compreendeu que alguma coisa tinha
acontecido. Elsa continuava sentada e, embora Dieter a induzisse
suavemente a erguer-se, não respondia. Havia algo singularmente
deslocado na maneira como ela se sentava, na maneira como sua
cabeça pendia dos ombros...
A última frase do hino nacional ia começando quando Smiley se
precipitou para a porta, embarafustou pelo corredor, desceu a
escada de pedra que ia dar no saguão. Chegou tarde demais... já a
primeira onda de espectadores pressurosos se lançava para a rua em
busca dos táxis. Procurou atabalhoadamente Dieter no meio da
multidão e compreendeu que era inútil, que Dieter tinha feito o que
ele mesmo teria feito, tinha escolhido uma das diversas saídas de
emergência que conduziam à rua e à segurança. A custo conseguiu
fazer com que seu corpo roliço rompesse a multidão e chegasse até a
entrada da plateia. Enquanto se torcia ora para um lado, ora para o
outro, enfiando-se por entre os que vinham em sentido contrário,
avistou Guillam à margem da corrente, procurando
desesperadamente Dieter e Elsa. Smiley chamou-o com um grito e
Guillam voltou-se instantaneamente.
Avançando sempre, Smiley achou-se afinal junto à divisão baixa
e viu Elsa Fennan sentada imóvel, enquanto à sua roda os homens se
levantavam e as mulheres pegavam capas e bolsas. Foi então que
ouviu o grito, inesperado, breve e claramente indicativo de horror e
repugnância. Uma moça, parada na coxia, fitava Elsa. Era jovem e
muito bonita, os dedos de sua mão direita roçavam-lhe a boca, o
rosto não tinha uma gota de sangue. Seu pai, um homem alto e
macilento, estava atrás dela. Ele a agarrou logo pelos ombros e
puxou-a para trás ao ver diante de si aquela coisa funesta.
O xale de Elsa escorregara-lhe dos ombros e a cabeça pendia
sobre os seios.
Smiley tivera razão. “Deixemo-los discutir, brigar, tudo...
contanto que façam alguma coisa..E aí estava o que eles tinham feito:
esse infeliz corpo destroçado era testemunha do pânico que se
apossara deles.
— É melhor chamar a Polícia, Peter. Eu vou para casa. Deixe-me
fora disso, se for possível. Você sabe onde me encontrar. — Fez um
sinal afirmativo com a cabeça, como que para si mesmo: — Eu vou
para casa.
O nevoeiro era denso e caía uma chuva fina enquanto Mendel
quase corria pela Fulham Palace Road na perseguição de Dieter. Os
faróis dos carros surgiam na bruma molhada a uns vinte passos de
distância; o barulho do tráfego era estridente e irritante, com os
veículos avançando às tontas.
Não tinha alternativa senão manter-se perto dos calcanhares de
Dieter, nunca mais de uma dúzia de passos atrás dele. As tavernas e
os cinemas já tinham cerrado as portas, mas os cafés e boates ainda
atraíam grupos ruidosos que se apinhavam nas calçadas. Enquanto
Dieter claudicava à sua frente, Mendel media-lhe o avanço pelos
postes de iluminação, observando a silhueta fazer-se visível todas as
vezes que entrava num cone de luz.
Dieter andava depressa, apesar de coxear. Quando alongava a
passada, a manqueira se tornava mais pronunciada, de sorte que ele
parecia atirar a perna esquerda para a frente graças a um súbito
esforço de seus ombros largos.
Havia uma curiosa expressão no rosto de Mendel, não de ódio ou
de firme propósito, mas de franco desagrado. Para Mendel a
bizarrice da profissão de Dieter nada significava. Via na sua presa
apenas a sordidez de um criminoso, a covardia de um homem que
pagava outros para que matassem em seu lugar. Quando Dieter se
separara dos outros espectadores e se encaminhara para a saída
lateral, Mendel viu aquilo por que estivera esperando: a ação
dissimulada de um criminoso comum. Era algo que previa e
compreendia. Para Mendel havia apenas uma categoria de'
criminosos, do punguista e larápio reles ao figurão que adultera
estatutos sociais; estavam fora da lei, e era sua função desagradável
mas necessária mandá-los para o xadrez. Acontecia que este era
alemão.
O nevoeiro se tornava espesso e amarelo. Nenhum dos dois tinha
sobretudo. Mendel queria saber o que a Sra. Fennan faria agora.
Guillam cuidaria dela. Ela nem vira quando Dieter se esgueirara. Era
uma mulher estranha, toda pele e ossos e obras de caridade — a
julgar pela aparência. Vivia de torradas e extrato de carne.
Dieter enveredou inopinadamente por uma transversal à direita e
depois por outra à esquerda. Fazia quase uma hora que estava
andando e ele não dava sinal de afrouxar o passo. A rua parecia
deserta; na verdade Mendel não podia ouvir outras passadas além
das de ambos, firmes e secas, cujo eco era corrompido pelo nevoeiro.
Estavam numa rua estreita de casas vitorianas com fachadas
açodadamente planejadas em estilo Regência, pórticos pesados e
janelas corrediças. Mendel achou que estavam nas vizinhanças de
Fulham Broadway, talvez um pouco além, mais perto de King’s
Road. Ainda assim o passo de Dieter não fraquejava, a sombra
arqueada continuava a avançar no nevoeiro, certa de seu caminho,
intensificada em seu objetivo.
Quando se aproximaram de uma artéria principal, Mendel
tornou a ouvir o gemido lamentoso do tráfego, quase paralisado pela
cerração. Então, de um ponto qualquer acima deles, uma lâmpada
amarela da rua emitiu um pálido clarão, seu contorno desenhado
claramente como o halo de um sol de inverno. Dieter hesitou um
instante no meio-fio; em seguida, aventurando-se no meio do tráfego
fantasmal que abria caminho e passava por eles, vindo ninguém sabe
de onde, atravessou a rua e penetrou imediatamente numa das
inúmeras transversais que levavam, Mendel estava convicto, ao rio.
A roupa de Mendel estava ensopada, e a chuva fina lhe batia no
rosto. Deviam estar perto do rio agora; julgou que podia captar o
cheiro de alcatrão e coque, sentir a frieza insidiosa da água negra.
Por um instante imaginou que Dieter tivesse sumido. Apressou o
passo, quase caiu num meio-fio, avançou novamente e avistou à sua
frente a balaustrada do aterro. Degraus conduziam a um portão de
ferro que estava entreaberto no alto da balaustrada. Deteve-se no
portão e ficou à espreita, fitando o rio lá embaixo. Havia uma sólida
prancha de madeira, e Mendel ouviu o eco irregular quando Dieter,
oculto pela cerração, seguiu seu estranho curso até a beira da água.
Mendel aguardou um pouco; depois, cauteloso e sem fazer ruído,
caminhou para a prancha. Tratava-se de coisa permanente, com
pesados corrimãos de pinheiro de ambos os lados. Mendel calculou
que fora posta ali há algum tempo. A extremidade inferior da
prancha estava ligada a uma balsa comprida, feita de tábua e
tambores de petróleo. Três arruinadas casas flutuantes avultavam na
cerração, embalando-se suavemente em suas amarras.
Sem fazer ruído, Mendel arrastou-se furtivamente até a balsa,
examinando cada uma das casas flutuantes. Duas estavam juntas,
unidas por uma prancha. A terceira estava amarrada um pouco mais
longe, e havia luz no beliche da proa. Mendel voltou ao aterro,
fechando cuidadosamente o portão de ferro atrás de si.
Começou a andar vagarosamente pela rua, ainda em dúvida
quanto ao rumo a tomar. Uns cinco minutos depois, a calçada levou-
o subitamente para a direita e o solo começou a se elevar. Uma
ponte, pensou. Acendeu o isqueiro, e a chama alongada lançou um
clarão sobre um muro de pedra à direita. Moveu o isqueiro para a
frente e para trás até que finalmente deu com uma suja e úmida
placa de metal onde leu as palavras: “Ponte Ba ersea”. Voltou ao
portão de ferro, parou um instante, buscando orientar-se à luz de
sua descoberta.
Em algum lugar no alto e à sua direita erguiam-se, ocultas no
nevoeiro, as quatro maciças chaminés da Usina Elétrica de Fulham.
À esquerda estendia-se Cheyne Walk, com sua fileira de barquinhos
elegantes, até a Ponte Ba ersea. O lugar em que se achava agora
assinalava a linha divisória entre o requinte e a sujeira: o ponto em
que Cheyne Walk se encontra com Lots Road, uma das ruas mais
feias de Londres. A parte sul dessa estrada compõe-se de vastos
armazéns, trapiches e moinhos. A parte norte apresenta uma linha
ininterrupta de casas pardacentas típicas das ruas transversais de
Fulham.
Foi à sombra das quatro chaminés, talvez a uns vinte metros do
ancoradouro de Cheyne Walk, que Dieter Frey encontrou asilo. Sim,
Mendel conhecia bem o lugar. Estava apenas a uns duzentos metros
daquela parte do rio de onde os restos mortais de Adam Scarr
tinham sido retirados dos braços inflexíveis do Tâmisa.
16

Ecos da neblina

PASSAVA MUITO da meia-noite quando o telefone de Smiley tocou.


Ele se levantou da poltrona diante da lareira a gás e se arrastou pela
escada acima até o quarto de dormir, a mão direita agarrando-se
firmemente ao corrimão enquanto subia. Era Peter, sem dúvida, ou a
polícia, e Smiley teria de prestar declarações. Ou talvez a imprensa.
O crime ocorrera a tempo de sair nos jornais de hoje e felizmente
tarde demais para o noticiário radiofônico da noite passada. Como
falariam do crime? “Louco mata no teatro”? “Mulher assassinada no
teatro”? Odiava a imprensa como odiava publicidade e televisão,
odiava os meios de comunicação em massa, os inexoráveis meios de
persuasão do século XX. Tudo quanto admirava ou amava era
produto de intenso individualismo. Por isso odiava Dieter agora,
mais do que nunca odiava aquilo que Dieter defendia: a fabulosa
impertinência de renunciar ao indivíduo em favor da massa.
Quando haviam as filosofias da massa produzido benefícios ou
sabedoria? Dieter não se interessava pela vida humana: sonhava
apenas com exército de homens sem rosto, ligados por seus mais
baixos denominadores comuns; queria moldar o mundo como se
fosse uma árvore, podando o que não se ajustasse à imagem
uniforme; para isto construía autômatos inexpressivos, sem alma,
como Mundt. Mundt não tinha rosto como o exército de Dieter, era
um assassino traquejado, rebento da mais requintada linhagem de
assassinos.
Tirou o fone do gancho e disse o número. Era Mendel.
— Onde está você?
— Perto do aterro de Chelsea. No Balão, um bar de Lots Road. O
dono é um amigo meu. Bati na porta e ele me... Escute, o amiguinho
de Elsa está numa casa flutuante perto do moinho de Chelsea. Ele é
um prodígio na neblina. Deve ter-se orientado por Braille.
— Quem?
— O namorado dela, que a levou ao teatro. Acorde, Sr. Smiley.
Que é que há com você?
— Você seguiu Dieter?
— Naturalmente que segui. Foi isso que você mandou dizer por
Guillam, não foi? Ele devia tomar conta da mulher e eu do homem...
Aliás, como é que Guillam se arranjou? Para onde foi Elsa?
— Para lugar nenhum. Ela estava morta quando Dieter saiu.
Mendel, está-me ouvindo? Escute. Pelo amor de Deus, como é que
posso me encontrar com você. Onde fica esse lugar? A polícia sabe
onde é?
— Sabe, sim. Diga aos rapazes que o homem está numa antiga
barcaça de desembarque chamada Sunset Haven. Está ancorada na
banda oriental do trapiche Sennen, entre os moinhos e a Usina
Elétrica de Fulham. Eles sabem... mas a cerração está pesada, veja
bem, muito pesada.
— E onde eu me encontro com você?
— Venha direto para o rio. Eu estarei esperando ali onde a Ponte
Ba ersea faz ligação com a margem norte do rio.
— Vou já, assim que falar com Guillam.
Possuía um revólver que não sabia onde estava e por um
momento pensou em procurá-lo. Mas, no fim de contas, a arma lhe
pareceu inútil. Além disso, refletiu sombriamente, haveria a maior
celeuma se ele a empregasse. Telefonou para Guillam, que estava em
seu apartamento, e transmitiu o recado de Mendel: — E outra coisa,
Peter. Eles devem cobrir todos os portos e campos de pouso; ordene
uma fiscalização especial do tráfego fluvial e das embarcações que se
dirigem para o mar. Eles sabem como agir.
Vestiu um velho impermeável, calçou um par de grossas luvas de
couro e rapidamente internou-se na neblina.
Mendel aguardava-o perto da ponte. Cumprimentaram-se com
um gesto de cabeça e Mendel levou-o imediatamente pelo aterro,
conservando-se rente ao muro do rio para evitar as árvores da rua.
De repente Mendel parou, agarrando Smiley pelo braço, à espera.
Ficaram imobilizados, escutando. Então, Smiley ouviu também o
som oco de passos num piso de madeira, irregulares como os passos
de um coxo. Ouviram o rangido de um portão de ferro, a pancada ao
fechar-se, depois novamente as passadas, firmes agora na calçada,
tornando-se cada vez mais audíveis, aproximando-se deles. Nenhum
dos dois se mexia. Mais audíveis, mais próximas, em seguida
vacilaram, estacaram. Smiley prendeu a respiração, tentando
desesperadamente ao mesmo tempo enxergar um metro extra no
nevoeiro, divisar o vulto espreitante que sabia estar ali.
Então, inesperadamente, o homem partiu, precipitando-se como
um imenso animal selvagem, estourando no meio deles, separando-
os de um golpe como se fossem crianças e disparando na carreira,
perdido outra vez, o eco irregular sumindo ao longe. Voltaram-se e
começaram a persegui-lo,' Mendel na frente e Smiley seguindo-o
como podia, vivida em sua mente a imagem de Dieter, arma na mão,
irrompendo sobre eles do meio do nevoeiro noturno. Adiante, a
sombra de Mendel dobrou inopinadamente para a direita e Smiley
acompanhou-a às cegas. Mas então já o ritmo era outro, de luta.
Smiley correu para frente, ouviu o som inconfundível de uma arma
pesada atingindo um crânio humano, e chegou aonde eles estavam.
Viu Mendel no chão e Dieter curvado sobre ele, erguendo o braço
para o atingir de novo com a grossa coronha de uma pistola
automática.
Smiley estava sem fôlego. O peito ardia, cheio de névoa amarga e
rançosa, a boca quente e seca, com um gosto de sangue. Afinal
conseguiu tomar alento e gritou alucinado.
— Dieter!
Frey levantou a vista para ele, inclinou a cabeça e disse:
— Servus, George — e aplicou em Mendel um golpe duro e
brutal com a pistola. Ergueu-se lentamente, empunhando a pistola
para o chão e usando ambas as mãos para engatilhá-la.
Smiley arrojou-se sobre ele cegamente, esquecido de que era bem
pouca a habilidade que possuía, sacudindo os braços curtos, batendo
com as mãos espalmadas. A cabeça foi de encontro ao peito de
Dieter e Smiley empurrou-o para a frente, esmurrando-lhe as costas
e os flancos. Estava desvairado e, descobrindo em si mesmo a
energia da loucura, pressionou Dieter ainda mais na direção da
balaustrada da ponte, enquanto o outro, desequilibrado e
atrapalhado pela perna aleijada, cedia terreno. Smiley sabia que
Dieter o atingia, mas o golpe decisivo não vinha. Gritava para Dieter:
— Porco, porco! — e quando Dieter recuou um pouco mais, Smiley
viu-se com as mãos livres e uma vez mais bateu-lhe no rosto com
murros desajeitados, infantis. Dieter inclinou-se para trás e Smiley
avistou a curva da garganta e do queixo, e com toda a força de que
era capaz levantou a mão aberta. Seus dedos se fecharam sobre o
queixo e a boca de Dieter, forçando-o a retroceder ainda mais. As
mãos de Dieter estavam na garganta de Smiley, mas de súbito
agarraram-se ao colarinho. Dieter procurava libertar-se, pois ia
lentamente caindo de costas. Frenético, Smiley golpeou-lhe os braços
até que sentiu que estava solto e Dieter ia caindo, caindo no nevoeiro
rodopiante debaixo da ponte. Silêncio. Nenhum grito, nenhuma
pancada na água. Tinha desaparecido; ofertado como um sacrifício
humano ao fog londrino e ao rio sujo e negro que corria lá embaixo.
Smiley debruçou-se na balaustrada, a cabeça latejando
desordenadamente, o sangue escorrendo-lhe do nariz, os dedos da
mão direita dando a sensação de estarem quebrados e inúteis. As
luvas tinham-se perdido. Perscrutou a cerração e não pôde enxergar
nada.
— Dieter! — gritou angustiado. — Dieter!
Tornou a gritar, mas sentiu a voz embargada e lágrimas lhe
vieram aos olhos.
— Ó meu Deus, o que foi que eu fiz? ó Cristo! Dieter, por que
você não me impediu, por que não me bateu com a pistola, por que
não atirou? — Levou as mãos ao rosto, sentindo o sangue salgado
nas palmas misturado com sal das suas lágrimas. Encostou-se ao
parapeito e chorou como uma criança. Em alguma parte, debaixo
dele, um aleijado se debatia na água suja, perdido e exausto,
entregando-se por fim à treva fétida até que ela o subjugou e
arrastou para o fundo.
Despertou e viu Peter Guillam sentado na ponta da cama,
servindo-se de chá.
— Olá, George. Seja bem-vindo. São duas da tarde.
— E hoje de manhã...?
— Hoje de manhã, meu amigo, você foi encontrado cantando
alegremente na Ponte Ba ersea com o camarada Mendel.
— Como está ele... Mendel, quero dizer?
— Naturalmente envergonhado do que fez. Em franca
recuperação.
— E Dieter...
— Morto.
Guillam passou-lhe uma xícara de chá e biscoitos de licor, de
Fortnums.
— Quanto tempo faz que você está aqui, Peter?
— Bom, chegamos aqui numa série de saltos táticos, por assim
dizer. O primeiro foi no hospital de Chelsea, onde cuidaram de suas
feridas e lhe deram um tranquilizante bem eficaz. Em seguida
voltamos para cá e botei você na cama. Isso foi entediante. Depois,
andei dando uns telefonemas e, por assim dizer, saí por aí com um
bastão comprido pondo ordem no caos. De vez em quando, vinha
ver como você estava. Cupido e Psiqué. Ou você estava roncando
como um porco ou recitava Webster.
— Valha-me Deus!
— A Duquesa de Malfi, creio eu. “Eu te ordenei, quando estava
fora de mim, que matasses o mais caro dos meus amigos, e tu o
fizeste!” Tremendo disparate, George, me parece.
— Como a polícia nos encontrou... Mendel e eu?
— Talvez fosse melhor você não saber, George, mas você estava
vociferando desaforos a Dieter como se...
— Sim, é claro. Você ouviu.
—- Nós ouvimos.
— E Maston? O que Maston diz de tudo isso?
— Acho que ele quer falar com você. Mandou um recado para
você aparecer logo que se sentir bem. Não sei o que ele pensa a
respeito disso. Nada de nada, imagino.
— Que é que você quer dizer?
Guillam serviu mais chá.
— Use o miolo, George. Todos os três principais protagonistas
desse conto de fadas foram a essa altura devorados pelos ursos.
Nenhuma informação secreta ficou comprometida nos últimos seis
meses. Pensa mesmo que-Maston deseja demorar-se nos
pormenores? Acredita mesmo que ele está ansiando por dar a boa
nova ao Foreign Office... e admitir que só pegamos espiões quando
tropeçamos em seus cadáveres?
A cigarra da porta da frente tocou e Guillam desceu para ver
quem era. Com certo alarma Smiley ouviu-o introduzir o visitante na
saleta, em seguida o som moderado de vozes e passos galgando a
escada. Houve uma batida na porta e Maston entrou. Trazia um
ramalhete absurdamente grande e parecia que estava chegando de
uma recepção festiva. Smiley lembrou-se que era sexta-feira; sem
dúvida ele iria para Henley nesse fim de semana. Maston era todo
sorrisos. Devia ter subido a escada com os dentes à mostra.
— Então, George, na guerra outra vez!
— É o que parece. Outro acidente.
Sentou-se na ponta da cama, reclinando-se nela, apoiado num
braço estendido pelo outro lado das pernas de Smiley.
Houve uma pausa e depois ele falou:
— Recebeu meu bilhete, George?
— Recebi.
Outra pausa.
— Fala-se na criação de uma nova seção no Departamento,
George. Nós (o seu Departamento, quero dizer) sentimos que
devemos dedicar maior energia à espionagem de satélites. Esse é
também o ponto de vista do Ministério do Interior, posso afirmar.
Guillam concordou em assessorar em termos de referência. Não sei
se você aceitaria encarregar-se dela para nós. Dirigi-la, melhor
dizendo, com a necessária promoção, naturalmente, e a opção para
ampliar o seu serviço depois da idade da aposentadoria
compulsória. Nisso conto com o apoio da seção de pessoal.
— Muito obrigado... gostaria de pensar um pouco primeiro, é
possível?
— Claro... claro — Maston pareceu ligeiramente amolado. —
Quando você me dará uma resposta? Vai ser necessário contratar
gente nova e surge também a questão de espaço... Tire o fim de
semana para pensar nisso e dê-me uma resposta na segunda-feira. O
Ministro estava desejoso de que você...
— Está certo. Eu lhe darei uma resposta. É muita gentileza sua.
— Em absoluto. Além disso, como você sabe, sou apenas o
Conselheiro, George. Esta é de fato uma decisão interna. Sou
somente o mensageiro da boa nova, George; estou na minha função
habitual de moço de recados.
Maston encarou Smiley seriamente por um instante, hesitou e
depois disse: — Pus os Ministros a par... até onde é necessário.
Discutimos a atitude que temos de assumir. O Ministro do Interior
também estava presente.
— Quando foi isso?
— Hoje de manhã. Alguns problemas muito sérios foram
ventilados. Estudamos um protesto junto aos alemães orientais e
uma ordem de extradição para esse tal de Mundt.
— Mas nós não reconhecemos a Alemanha Oriental.
— Exato. Essa foi a dificuldade. É porém possível encaminhar o
protesto através de um intermediário.
— A Rússia?
— A Rússia mesmo. No caso, todavia, certos fatores militaram
contra essa solução. Notou-se que a publicidade, qualquer que seja a
sua forma, redundaria no fim de contas em desfavor dos interesses
nacionais. Já existe considerável hostilidade pública neste país ao
rearmamento da Alemanha Ocidental. Observou-se que qualquer
sinal de intriga alemã na Grã-Bretanha, seja ou não inspirada pelos
russos, poderá incentivar essa hostilidade. Não há, veja bem, prova
positiva de que Frey estivesse agindo no interesse dos russos. Pode
perfeitamente parecer ao público que ele agia por sua conta ou em
nome de uma Alemanha unida.
— Compreendo.
— Até o momento pouquíssimas pessoas realmente estão a par
dos fatos. Isso é uma sorte enorme. Da parte da polícia, o Ministro
do Interior concordou em princípio que fará o possível para não dar
muito destaque ao fato... E esse tal de Mendel? Que tal é ele? É de
confiança?
Smiley odiou Maston pela pergunta.
— É — disse.
Maston levantou-se.
— Bom — disse ele — bom. Devo ir agora. Qualquer coisa que
você queira, qualquer coisa que eu possa fazer...
— Não, muito obrigado. Guillam está cuidando de mim
admiravelmente.
Maston chegou à porta.
— Bem, boa sorte, George. Aceite o posto se for possível. — Disse
isto rapidamente, em voz baixa e com um sorriso oblíquo como se a
questão tivesse especial significação para ele.
— Grato pelas flores — disse Smiley.
Dieter estava morto e ele o tinha assassinado. Os dedos
quebrados da mão direita, a rigidez do corpo e a tontura da cabeça, a
náusea da culpa, tudo isso servia de testemunha. E Dieter permitira,
não disparara a arma, recordara a amizade antiga, quando Smiley a
esquecera. Tinham combatido numa nuvem, na corrente a montante
do rio, numa clareira no meio de uma floresta eterna: tinham-se
encontrado, dois amigos que se reuniam de novo, e lutaram como
duas feras. Dieter se lembrara e Smiley não. Tinham vindo de
diferentes hemisférios da noite, dois mundos diferentes de
pensamento e conduta. Dieter, explosivo, autoritário, lutara para
construir uma civilização. Smiley, racionalista, defensivo, lutara para
impedi-lo.
— ó Deus! — exclamou Smiley em voz alta — quem foi então o
cavalheiro...?
Com esforço levantou-se da cama e começou a se vestir. Sentiu-se
melhor de pé.
17

Caro conselheiro

ENCONTRO-ME AFINAL em condições de responder à oferta que me foi


feita pela Seção de Pessoal de um posto mais elevado no Departamento.
Lamento ter demorado tanto para dar essa resposta, mas, como é do seu
conhecimento, não tenho passado bem ultimamente e, além disso, tive
de enfrentar uma série de problemas de ordem pessoal que nada têm
que ver com o Departamento.
Como não estou inteiramente refeito de minha indisposição, creio
que seria imprudente da minha parte aceitar a oferta. Peço-lhe a fineza
de transmitir esta decisão à Seção de Pessoal.
Estou certo de que posso contar com sua compreensão.
Seu
GEORGE SMILEY

“Caro Peter.
Junto a este uma nota sobre o caso Fennan. Só tenho essa cópia.
Por favor, entregue-a a Maston depois que a tiver lido. Pensei que seria
útil registrar os acontecimentos — mesmo que eles não tenham
ocorrido.
Do
GEORGE

O CASO FENNAN
Na segunda-feira 2 de janeiro entrevistei Samuel Arthur Fennan,
funcionário de categoria ão Foreign Office, a fim de elucidar certas
alegações formuladas contra ele numa carta anônima. A entrevista
foi combinada de acordo com o processo costumeiro, isto é, com a
anuência do FO Não sabíamos de nada desfavorável a Fennan além
de ter sido simpatizante do comunismo quando estudava em Oxford
na década de 30, ao que pouca importância era atribuída. A
entrevista foi portanto, em certo sentido, mero trabalho de rotina.
A sala de Fennan no Foreign Office foi considerada imprópria e
concordamos em continuar nossa conversa em St. James’ Park,
beneficiando-nos do bom tempo reinante.
Posterior mente transpirou a notícia de que fôramos
reconhecidos e observados em nossa conversa por um agente ão
Serviço de Informações da Alemanha Oriental, que havia cooperado
comigo durante a guerra. Não é certo se ele havia colocado Fennan
sob alguma forma de vigilância ou se sua presença no parque foi
pura coincidência.
Na noite de 3 de janeiro a polícia de Surrey informou que Fennan
se tinha suicidado. Uma carta do suicida, datilografada e com a
assinatura de Fennan, dizia que ele fora vítima das autoridades de
segurança.
No curso das investigações, porém, os seguintes fatos se
evidenciaram, sugerindo ter havido trapaça:

1. Às 7h55 da noite de sua morte, Fennan solicitara ao centro


telefônico de Walliston que o chamasse às 8h30 da manhã
seguinte.
2. Fennan preparara para si mesmo uma xícara de chocolate
pouco antes de morrer e não o bebera.
3. Supunha-se que ele se tivesse matado no vestíbulo, no pé
da escada. A carta estava ao lado do corpo.
4. Parecia incoerente ter ele datilografado sua última carta,
quando raramente usava a máquina de escrever, e era ainda
mais estranho que descesse a escada para se matar.
5. No dia de sua morte pôs no correio uma carta
convidando-me, em termos que davam a entender certa
urgência, a almoçar com ele em Marlow no dia seguinte.
6. Transpirou também mais tarde que Fennan havia pedido
para não comparecer ao trabalho na quarta-feira, 4 de janeiro.
Tudo faz crer que não falou disto à sua mulher.
7. Observou-se também que a carta do suicídio fora
datilografada na própria máquina de Fennan — e que continha
certas peculiaridades, no texto datilografado, idênticas às
encontradas na carta anônima. O exame de laboratório concluiu,
porém, que as duas cartas não tinham sido batidas pelas
mesmas mãos, embora proviessem da mesma máquina.

A Sra. Fennan, que tinha ido ao teatro na noite em. que seu
marido morreu, foi convidada a explicar o telefonema das 8h30 e
alegou falsamente tê-lo solicitado ela própria. O centro foi categórico
ao dizer que tal não era o caso. A Sra. Fennan afirmou que seu
marido tinha estado nervoso e deprimido desde a entrevista com o
representante do serviço de segurança, o que corroboram o
testemunho da carta deixada pelo morto.
Na tarde de 4 de janeiro, tendo visitado a Sra. Fennan na parte da
manhã, voltei para minha casa em Kensington. Tendo num relance
avistado alguém à janela, toquei a campainha da porta da frente. A
porta foi aberta por um homem que desde então foi identificado
como membro do Serviço de Informações da Alemanha Oriental.
Convidou-me a entrar na casa, mas declinei do oferecimento e voltei
ao meu carro, anotando ao mesmo tempo os números de carros
estacionados na vizinhança.
Naquela noite fui a uma pequena garagem em Ba ersea a fim de
averiguar a origem de um desses carros, o qual estava registrado no
nome do proprietário da garagem. Fui atacado por um agressor
desconhecido que me deixou inconsciente. Três semanas depois o
proprietário da garagem, Adam Scarr, foi encontrado morto no
Tâmisa, perto da Ponte Ba ersea. Ele estava bêbado no momento em
que se afogou. Não havia sinais de violência e o homem era tido
como beberrão inveterado.
Cumpre assinalar que Scarr vinha nos últimos quatro anos pondo
um carro à disposição de um estrangeiro anônimo e recebendo em
troca generosas recompensas. Os acordos entre os dois visavam a
esconder a identidade do estranho até mesmo do próprio Scarr, que
só conhecia seu cliente pelo apelido de “Blondie” e com quem só
podia se comunicar pelo telefone. O número do telefone é
importante: era o da Missão do Aço da Alemanha Oriental.
Enquanto isso, o álibi da Sra. Fennan para a noite do crime fora
submetido a investigações, tendo vindo à luz informações valiosas:

1. A Sra. Fennan frequentava o Teatro de Repertório de


Weybridge duas vezes por mês, nas primeira e terceira terças-
feiras. (N. B.: O cliente de Adam Scarr ia buscar seu carro nas
primeira e terceira terças-feiras do mês.)
2. Ela sempre levava uma pasta de música e deixava-a no
vestiário.
3. No teatro ela era sempre acompanhada por um homem
cuja descrição correspondia à do meu agressor e cliente de
Scarr. Foi até mesmo admitido erroneamente por uma
funcionária do teatro que esse homem era o marido da Sra.
Fennan. Ele também levava uma pasta de música e deixava-a no
vestiário.
4. Na noite do crime a Sra. Fennan saíra do teatro antes de
terminada a representação, verificando-se o não-
comparecimento de seu amigo, e esquecera de reclamar sua
pasta de música. Mais tarde, na mesma noite, ela telefonou para
o teatro para saber se podia mandar buscar a pasta
imediatamente. Tinha perdido a senha do vestiário. A pasta foi
afinal recobrada... pelo amigo habitual da Sra. Fennan.

Nesse ponto foi o estranho identificado como funcionário da


Missão do Aço da Alemanha Oriental, cujo nome era Mundt. O chefe
da Missão era Herr Dieter Frey, colaborador do nosso Serviço
durante a guerra, com extensa experiência nesse tipo de atividade.
Depois da guerra pôs-se a serviço do governo da zona soviética da
Alemanha. Devo mencionar que Frey havia trabalhado comigo
durante a guerra em território inimigo e se mostrara um agente
brilhante e engenhoso.
Resolvi então levar a efeito uma terceira entrevista com a Sra.
Fennan. Ela sucumbiu e confessou ter atuado como correio de
informações para seu marido, que tinha sido recrutado por Frey
cinco anos antes, quando esquiava nas férias. Ela própria cooperara
de má vontade, em parte por lealdade ao marido e em parte para
protegê-lo, de vez que ele era negligente no desempenho de seu
papel de espião. Frey tinha visto Fennan conversando comigo no
parque. Supondo que eu ainda continuasse na ativa, tinha concluído
que Fennan ou estava sob suspeita ou era agente dúplice. Deu
instruções a Mundt para liquidar Fennan, e a mulher deste fora
forçada a guardar segredo em face de sua própria cumplicidade. Ela
tivera mesmo de datilografar o texto da carta do suicida na máquina
de Fennan, acima de um exemplar da assinatura do marido.
O meio de que ela se valia para entregar a Mundt as informações
obtidas por seu marido é digno de nota. Ela punha apontamentos e
cópias de documentos numa pasta de música que levava para o
teatro. Mundt carregava uma pasta idêntica, contendo dinheiro e
instruções, e, como a Sra. Fennan, deixava-a no vestiário. Bastava-
lhes apenas permutar as senhas do vestiário. Tendo Mundt deixado
de comparecer ao teatro na noite em questão, a Sra. Fennan,
obedecendo instruções, colocou no correio a senha para um
endereço em Highgate. Saiu do teatro mais cedo a fim de apanhar a
última mala postal de Weybridge. Quando mais tarde naquela noite,
Mundt lhe pediu a pasta de música, ela contou o que tinha feito.
Mundt insistiu em ir buscar a pasta naquela noite, pois não queria
fazer outra viagem a Weybridge.
Quando entrevistei a Sra. Fennan na manhã seguinte, uma de
minhas perguntas (acerca do telefonema das 8h30) alarmou-a a tal
ponto que ela telefonou para Mundt. Isso explica a agressão feita a
mim à noite.
A Sra. Fennan forneceu-me o endereço e o número do telefone
que utilizava quando entrava em contato com Mundt — a quem.
conhecia pelo nome suposto de Freitag. Ambos levavam ao
apartamento de um piloto da Lufteuropa que recebia Mundt com
frequência e o alojava de vez em quando. O piloto (é de presumir
que se trata de um correio do Serviço de Informações da Alemanha
Oriental) não voltou a este país desde 5 de janeiro.
Este, então, era o resumo das revelações da Sra. Fennan, as quais,
em certo sentido, não levavam a parte alguma. O espião estava
morto, seus assassinos tinham sumido. Restava apenas avaliar a
extensão dos prejuízos. Seguiu-se então uma consulta oficial ao
Foreign Office, e o Sr. Felix Taverner recebeu instruções para
calcular, através do exame dos registros do Foreign Office, a
quantidade de informação comprometida. Isso implicou no
levantamento de todos os papéis a que Fennan tivera acesso desde
que fora recrutado por Frey. Contrariando a expectativa, a pesquisa
revelou não ter havido aquisição sistemática de documentos
secretos. Fennan não retirara documentos secretos, exceto os que
tinham relação direta com as funções. Durante os últimos seis meses,
quando seu acesso a papéis importantes aumentou
consideravelmente, ele na verdade não levou para casa documentos
classificados de secretos. Os documentos que levou para casa
durante esse período eram de categoria inferior e alguns versavam
assuntos realmente fora do alcance de sua seção. Isto não se ajustava
ao papel de Fennan como espião. Era, todavia, possível que ele
houvesse perdido o ânimo e que o convite que me fez para o almoço
fosse o primeiro passo para a confissão. Com isso em mente, poderia
ter ele escrito também a carta anônima com a finalidade de
estabelecer contato com o Departamento.
Dois fatos ulteriores devem ser aqui mencionados. Sob nome
suposto e com passaporte falso, Mundt deixou o país por via aérea,
um dia depois da confissão da Sra. Fennan. Ludibriou as
autoridades do aeroporto, mas foi retrospectivamente identificado
pela aeromoça. Segundo, a agenda de Fennan continha o nome
completo e o número do telefone oficial de Dieter Frey — violação
flagrante da mais comezinha norma de espionagem.
Era difícil entender por que Mundt aguardara três semanas na
Inglaterra depois de assassinar Scarr, e ainda mais difícil conciliar as
atividades de Fennan, como tinham sido descritas por sua mulher,
com a escolha obviamente não planejada e improdutiva de
documentos. O reexame dos fatos conduzia reiteradamente a esta
conclusão: o único testemunho de que Fennan era espião provinha
de sua esposa. Se os fatos eram como ela os narrou, por que então
ficara ela a salvo da decisão de Mundt e Frey de eliminar os que
estavam de posse de segredos comprometedores?
Por outro lado, não podia ser ela própria a espiã?
Isso explicaria a data da partida de Mundt: ele viajou assim que
foi persuadido pela Sr a. Fennan de que eu aceitara sua engenhosa
confissão. Explicaria a anotação na agenda de Fennan: Frey era um
companheiro eventual de férias e um frequentador ocasional de
Walliston. Justificaria a escolha de documentos por parte de Fennan
— se Fennan deliberadamente selecionava papéis inclassificados
numa fase em que seu trabalho era em grande parte secreto, só podia
haver uma explicação: ele começara a suspeitar da mulher. Daí o
convite para o almoço em Marlow, seguindo-se naturalmente ao
nosso encontro do dia anterior. Fennan decidira falar-me de suas
apreensões e para tanto tirara um dia de folga — fato que sua esposa
parecia desconhecer. Isso também explicaria por que Fennan se
denunciou numa carta anônima: desejava pôr-se em contato conosco
como passo preliminar para denunciar sua mulher.
Continuando a suposição, era digno de nota que, nas questões do
ofício, somente a Sra. Fennan fosse eficiente e conscienciosa. A
técnica usada por ela e Mundt lembrava a de Frey durante a guerra.
O ajuste secundário de enviar pelo correio a senha do vestiário em
caso de não se realizar o encontro era típico do planejamento
meticuloso de Frey. A Sra. Fennan, ao que tudo indica, agira com
uma precisão dificilmente compatível com sua alegação de ser uma
parceira relutante da traição do marido.
Conquanto logicamente houvesse então indícios de ser a Sra.
Fennan uma espiã, não havia razão para acreditar que seu relato do
que aconteceu na noite da morte de Fennan fosse necessariamente
falso. Se tivesse sabido da intenção de Mundt de liquidar Fennan, ela
não teria levado a pasta de música ao teatro e não teria posto no
correio a senha do vestiário.
Parecia não haver meio de provar a alegação contra ela a não ser
que fosse possível reativar as relações entre a Sra. Fennan e o homem
que a controlava. Durante a guerra, Frey arquitetara um código
engenhoso para comunicações de emergência, o qual consistia em
utilizar instantâneos e cartões-postais. O próprio conteúdo da
fotografia encerrava a mensagem. Um conteúdo religioso, como a
reprodução de uma madona ou uma igreja transmitia um convite
para um encontro imediato. Cabia ao destinatário enviar em
resposta uma carta desprovida de qualquer alusão ao fato, tendo o
cuidado de datá-la. Efetuava-se então o encontro em hora e local
previamente combinados, exatamente cinco dias depois da data da
carta.
Era perfeitamente possível que Frey, cujo ofício, ao que tudo
fazia crer, sofrerá tão pouca alteração desde a guerra, continuasse
apegado a esse sistema — o qual, no fim de contas, só raramente se
tornava necessário. Confiado nisto foi que eu enviei a Elsa Fennan,
pelo correio, o postal de uma igreja. O cartão tinha o carimbo de
Highgate. Eu esperava, não sem certa apreensão, que ela acreditasse
que o postal lhe chegara às mãos através da agência de Frey, Ela
reagiu imediatamente, enviando a um endereço desconhecido, no
exterior, um ingresso para um espetáculo teatral em Londres, a
realizar-se daí a cinco dias. A comunicação da Sra. Fennan alcançou
Frey, que a encarou como um chamado urgente. Ciente de que
Mundt fora comprometido pela “confissão” da Sra. Fennan, Frey
resolveu vir em pessoa.
Encontraram-se, como é sabido, no Teatro Sheridan, de
Hammersmith, na quinta-feira, 15 de fevereiro.
A princípio cada um supôs que a iniciativa do encontro partira
do outro, mas ao perceber que se tinham reunido em virtude de um
logro, Frey agiu de maneira drástica. Pode ser que tenha suspeitado
de ter sido arrastado para uma armadilha pela Sra. Fennan e que
tenha compreendido que estava sob observação. Nunca saberemos
ao certo. O fato é que ele matou a Sra. Fennan. O método que
empregou para fazê-lo foi competentemente descrito pelo
magistrado encarregado de investigar o caso: “um grau único de
pressão foi aplicado à laringe, em particular às pontas da cartilagem
da tireoide, causando morte quase instantânea. Dir-se-ia que o
agressor da Sra. Fennan não era nenhum leigo nessas matérias.
Frey foi perseguido até chegar a uma casa flutuante ancorada
perto de Cheyne Walk, e, enquanto opunha violenta resistência à
prisão, caiu dentro do rio, de onde seu corpo já foi retirado.”
18

Entre dois mundos

O CLUBE NADA RESPEITÁVEL de Smiley estava normalmente vazio


aos domingos, mas a Sra. Sturgeon deixava a porta apenas encostada
para o caso de aparecer algum sócio. Ela adotava, para com seus
cavalheiros, a mesma atitude rígida, imperiosa dos dias de
estalajadeira em Oxford, quando conseguia dos seus afortunados
hóspedes mais respeito do que toda a legião de lentes e censores.
Perdoava tudo, mas lograva sempre sugerir que seu perdão era
único e nunca, nunca haveria de se repetir. Certa vez fizera com que
Steed-Asprey pusesse dez xelins na caixa dos pobres por ter trazido
sete convidados sem prévio aviso, e depois providenciara um jantar
memorável.
Estavam sentados na mesma mesa de antes. Mendel parecia um
pouco mais pálido, um nadinha mais velho. Quase não falou
durante a refeição, manejando a faca e o garfo com a mesma
cuidadosa precisão que dedicava a qualquer tarefa. Guillam era
quem praticamente sustentava a conversa, pois Smiley, também,
estava menos loquaz do que de costume. Sentiam-se à vontade na
companhia uns dos outros e nenhum deles demonstrava excessiva
necessidade de falar.
— Por que ela fez isso? — perguntou Mendel de repente.
Smiley balançou a cabeça vagarosamente: — Acho que sei,, mas
só podemos fazer conjeturas. Penso que ela sonhava com um mundo
sem conflitos, regulado e preservado pela nova doutrina. Certa vez,
enraivecida comigo, gritou: “Eu sou a judia errante”, disse ela; “a
terra de ninguém, o campo de batalha dos seus soldados de
brinquedo.” Quando viu a nova Alemanha reconstruída à imagem
da antiga, quando viu retornar o orgulho categórico, como ela
mesma disse, creio ter julgado que era demais; acho que comparou a
inutilidade do seu sofrimento com a prosperidade dos seus
perseguidores e se rebelou. Há cinco anos, disse-me ela, conheceram
Dieter numa cabana de esquiadores na Alemanha. Por aquela época
estava em marcha acelerada o soerguimento da Alemanha como
grande potência ocidental.
— Ela era comunista?
— Não creio que lhe agradassem os rótulos. Acredito que ela
queria ajudar a construir uma sociedade que pudesse viver sem
conflitos. Paz é uma palavra suja hoje em dia, não é? Acho que ela
queria paz.
— E Dieter? — perguntou Guillam.
— Só Deus sabe o que Dieter queria. Glória, penso eu, e um
mundo socialista. — Smiley deu de ombros. — Sonhavam com paz e
liberdade. Agora são assassinos e espiões.
— Deus Onipotente! — exclamou Mendel.
Smiley calou-se outra vez, fitando sua taça. Afinal falou:
— Não posso esperar que vocês compreendam. Vocês viram
apenas o fim de Dieter. Eu vi o começo. Ele completou o ciclo. Acho
que ele nunca se refez do desgosto de ter sido um traidor durante a
guerra. Tinha de passar isso a limpo. Era um daqueles construtores
de mundo que parecem não fazer outra coisa senão destruir: nada
mais.
Guillam aproveitou a oportunidade para perguntar: — E que diz
do telefonema das 8h30?
— Acho que está perfeitamente esclarecido. Fennan queria ver-
me em Marlow e tirou um dia de folga. Não pode ter contado a Elsa
que não ia trabalhar, senão ela teria tratado de me dar. uma
explicação. Ele se valeu do telefonema a fim de arranjar uma
desculpa para ir a Marlow. É o meu palpite, pelo menos.
O fogo crepitava na grande lareira.
Pegou o avião da meia-noite para Zurique. A noite era bela, e
através da janelinha ele contemplava a asa cinzenta, imóvel contra o
céu estrelado, um lampejo de eternidade entre dois mundos. A visão
apaziguava-o, aquietava-lhe os temores e as dúvidas, tornava-o
fatalista em relação ao desígnio inescrutável do universo. Tudo
parecia ter tão pouca importância: a patética busca do amor ou o
retorno à solidão.
Logo depois as luzes da costa francesa estavam à vista. Enquanto
observava, ia sentindo vicariamente a vida estática lá embaixo: o
cheiro violento de cigarro Gaulloise Bleu, alho e boa comida, o ruído
de vozes no bistrô. Maston estava a milhões de quilômetros de
distância, encerrado com seus áridos papéis e seus cintilantes
políticos.
Smiley proporcionava aos companheiros de viagem um
espetáculo curioso: um homem baixo e gordo, um pouco taciturno,
que de repente sorria, pedindo algo para beber. O jovem louro que
se sentava a seu lado examinou-o detidamente pelo canto do olho.
Conhecia bem o tipo: o diretor de empresa numa escapada para se
divertir. Nojento, pensou.
Digitalização

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