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“Satori”
Tradução de Izabel Xrisô Baroni
Ilustração de Benicio
Digitalizado por
Uedson Campos
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® 551009
ESTE É O INICIO
Tinham-no ferido no ventre e há mais de trinta horas,
estava encurralado dentro de uma oficina de carros que
estava desativada há algum tempo. Havia pó e sujeira por
todas as partes, mas felizmente o telefone continuava
funcionando, Sensei lhe instruíra: Se algum dia você se
encontrar em perigo, ligue para esse número na própria
cidade de São Francisco, diga apenas onde está e aguarde o
auxílio, que chegará de uma forma ou outra. Basta ligar
uma vez.
As horas estavam passando, a ajuda não chegara e ele
começava a se desesperar. Não podia abandonar a oficina
porque os bandidos estavam espalhados pela rua e um judoca
sem armas não podia enfrentar-se com vários criminosos
armados. Lamentava aquilo tudo porque tinha conseguido os
documentos que serviriam para arruinar a organização
perigosa que operava em toda a Ásia, mas cuja direção
central estava em São Francisco. Com aqueles documentos a
Kuro Arashi poderia destruir a organização.
A porta da oficina foi aberta silenciosamente.
— Venha — disse uma voz de mulher. — Vim para tirá-
lo daqui.
Uma mulher. Que ajuda uma mulher poderia prestar-lhe?
Talvez até estivesse colaborando com os criminosos. Não,
não devia ser aliada deles porque vários já haviam invadido a
oficina procurando-o, mas nenhum sabia que ele estava
metido entre aqueles dois fichários. Escondido como um
vira-lata assustado e só uma pessoa da Kuro Arashi viria
ajudá-lo naquelas condições.
— Vamos, não seja teimoso — insistiu a mesma voz. —
Em certas ocasiões eu também trabalho para Sensei. Saia!
Saiu do esconderijo e viu uma sombra que o fez lembrar-
se de um Ninja, um fantasma negro.
— Pode correr ou andar? — perguntou-lhe a Ninja.
— Creio que... nem sequer... respirar. Tenho uma... bala
alojada no ventre:
— Conseguiu tamponar a ferida?
— Sim... porém o sangue... continua escorrendo.
— Fique calmo, porque seus problemas serão resolvidos.
— Estou cercado de assassinos... profissionais. Se
sairmos daqui... eles nos verão.
— Pior para eles.
A Ninja desapareceu, e quase em seguida, ele sentiu uma
coisa estranha e quase desmaiou. Depois, quando abriu os
olhos viu que fora colocado em seus ombros e que a mulher
caminhava meio encurvada por causa de seu peso.
A partir desse momento, o ferido percebeu vozes
exaltadas de homens, viu os clarões dos disparos e notou que
a Ninja também atirava. Depois viu a cara de um homem
toda ensanguentada. A Ninja correndo pelos telhados,
sempre carregando-o nos ombros. Viu outros homens caindo
e ouviu vários estampidos e gritos de agonia. Caiu sobre algo
macio, viu uma lâmpada amarelenta e uma cabeleira negra.
Depois ouviu o motor do carro e pressentiu que o levavam
para fora da zona de perigo. Exato. O carro agora estava
rodando, viu o rosto da mulher e teve a sensação de ter
alcançado o satori e isso o fez recordar-se das palavras que
Sensei lhe tinha dito quando se encontraram pela última vez.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Disputa entre dois judocas
— Hajime1!
Os dois concorrentes cumprimentaram-se com uma
inclinação de cabeça antes de iniciarem o shiai que seria a
prova final. O silêncio era total no dojo que estava localizado
em uma das principais avenidas de Tóquio.
De todos os candidatos que concorreram, foram Masao
Wajima e Kenjiro Sato os dois melhores e, portanto, os dois
finalistas. O resultado não vinha causando surpresa ou
decepções. Em todas as apresentações, eles foram sempre
melhores que seus adversários e os tinham vencido com
certa facilidade. Ambos eram quinto Dan e tinham
conseguido este grau de Judô porque há anos vinham sendo
orientados por mestres de valor. Especialmente Masao
Wajima, que se criara sob a orientação de Sensei, o velho
Mestre, que, atualmente, vivia em seu modesto ryokan, uma
casa de campo onde a paz e a serenidade imperava, um lugar
muito especial onde o Mestre podia dedicar seu tempo à
meditação e à reflexão eu fortificavam o espirito e a pureza
de seus pensamentos.
A presença de Sensei em Tóquio era algo
verdadeiramente excepcional. Só um acontecimento como
aquele o traria a capital.
O Velho Mestre dispunha de vários dojos em todo o
Japão e cada um destes era supervisionado por um de seus
ex-alunos de confiança, respaldado por velhos conselheiros,
que por sua vez, também tinham sido discípulos e
continuavam sendo amigos de Sensei. Porém todos esses
dojos tinham uma só direção e este cargo de diretor-geral e
1
Comecem.
visitador de todos os dojos era a ocupação mais desejada
pela maioria dos grandes judocas e aquele que fosse
escolhido entre os melhores discípulos de Sensei, sem dúvida
alguma poderia julgar-se como o “melhor dentre todos”.
Masao Wajima era o favorito da maioria dos judocas que
enchiam o dojo naquele dia memorável no qual seria
escolhido o novo diretor-geral e visitador que iria substituir o
companheiro que havia falecido em um acidente aéreo.
Wajima era o favorito por vários motivos: como um
verdadeiro judoca era amável, cortês, simples, bondoso,
modesto, quase humilde em sua benevolência para com o
próximo. Estava com trinta e dois anos e começara a praticar
o Judô quando tinha cinco anos de idade sob a orientação
pessoal de Sensei.
Enquanto Wajima era a gentileza personificada, Kenjiro
Sato era uma pessoa rude, que não tinha as qualidades
morais de seu oponente. Há quatro anos praticava o Judô sob
a orientação do Velho Mestre, mas este não conseguira
mudar a índole ou a personalidade do discípulo.
Isso, se julgado segundo suas características morais,
porque se o mesmo julgamento fosse feito de acordo com
seus atributos físicos, o resultado seria totalmente diferente.
Neste campo Kenjiro Sato não podia ter rival e todos que
desejavam que Wajima vencesse não tinham ilusões a esse
respeito. Por isso quando soou a ordem do hajime, o silêncio
se intensificou. Todas as cabeças se voltaram para Sensei que
presidia o joseki2 no palanque central, cercado de antigos
judocas que, como ele, viviam do Judô, para o Judô e pelo
Judô.
E para estes, Masao Wajima era a representação perfeita,
o espelho onde todos os meninos que iniciavam o
2
Remoção.
aprendizado desta disciplina milenar, podiam mirar-se, a fim
de um dia serem os grandes seguidores de Jigoro Kano, o
Grande Mestre ou o Sensei, que foi o fundador e criador do
Kodokan3 que aproveitou duas palavras chaves para nomear
sua nova arte de defesa: JU, que significa agilidade,
flexibilidade e desenvolvimento físico harmonioso e DO, via
ou caminho, isto é, o modo correto de um homem
comportar-se em todos os momentos da vida. E para
ninguém esquecer-se dos objetivos desta nova arte, o Grande
Mestre exemplificou que a cortesia é a principal regra do
Judô, que a amizade e o progresso mútuo são essenciais ao
desenvolvimento da energia humana.
Sem dúvida alguma, Kenjiro Sato havia aprendido
perfeitamente o segundo princípio, mas não o primeiro.
Quanto ao emprego da energia latente que existia dentro de
si, não precisava aprender mais nada, mas quanto à amizade
e progresso mútuo, Kenjiro chegava a zombar. Amizade? O
que significa e qual é o valor da amizade? — perguntava
rindo muitas vezes.
Naquela prova a amizade valia pouco, pois era um
confronto entre os dois melhores e a vitória significaria
prestígio relativo, embora pudesse tornar-se uma grande
glória quando o vencedor fosse enviado por Sensei a todos os
dojos do Japão e eventualmente, a outros que estavam
distribuídos em vários países, onde eram falados outros
idiomas além do japonês.
Kenjiro Sato era um homem ambicioso e sabia falar e
escrever o inglês com perfeição, bem como o francês. Era
um homem que não se detinha diante de dificuldades ou
obstáculos que surgissem em seu caminho. Tinha um metro e
3
Kodokan foi a primeira escola de judô, fundada no Japão, por Jigoro Kano,
em 1882
setenta, ombros largos, corpo musculoso e esguio, mãos
lindas, poderosas, fortes, que ninguém saberia descrever,
mas que sabiam lutar com precisão e decisão. Era um
homem de trinta e cinco anos, um quinto Dan e um
“explosivo que ninguém conseguia deter”.
Ou Masao Wajima ia poder detê-lo?
As mãos deles se cruzaram no ar, sem rudeza. Nenhum
dos dois ia se opor ao inevitável kumi kata, isto é, segurar o
quimono do oponente, já que sem isso, dificilmente poderia
haver o combate. Qualquer um deles, usando apenas uma das
mãos poderia agarrar o adversário pela roupa e arrancá-la
com um único gesto. As mãos daqueles dois homens
estavam acostumadas a lutar. Portanto, com as devidas
precauções e com uma suavidade fictícia, ambos foram se
preparando para o kumi kata, procurando um ponto
adequado para segurar o judogui do concorrente.
E logo em seguida o kiai ecoou pelo dojo.
— Dooaaaaa!...— gritou Kenjiro Sato quando iniciava o
ataque.
Um yama arashi capaz de jogar um homem com
duzentos quilos à parede. Sato prendeu o quimono de
Wajima pelo decote enquanto sua mão esquerda segurava a
manga direita do adversário. Inclinou a cabeça até quase ao
chão, enquanto seu corpo rodava para a esquerda e levantava
a perna direita, que foi se chocar nos quadris do antagonista.
Um golpe perfeito.
Todos temeram que Wajima fosse estatelar-se de costas
no chão, contra o tatami e isso seria o final do combate,
porém caiu apenas de bruços.
— Koka! — gritou o árbitro, dando a entender que já
tinha perdido alguns pontos.
Wajima sorriu e se levantou rapidamente, fugindo do
ataque de Sato, que pretendia aproveitar-se da situação para
estrangulá-lo ou lhe dar uma chave de braço que o pusesse
fora da competição.
Os olhos de Kenjiro Sato brilhavam de fúria. Como ele
pudera safar-se daquele golpe perfeito?
A assistência ficou paralisada quando Wajima iniciou um
novo ataque, mas novamente Sato usou um tukui, rodando o
corpo rapidamente e também caiu de bruços sobre o tatami.
Os homens que formavam o joseki permaneciam imóveis.
No ar parecia haver vibrações positivas e os espectadores
começavam a ter esperanças de que o preferido vencesse
aquela prova.
Os dois judocas reiniciaram o combate sabendo que o
menor descuido seria aproveitado pelo adversário. Pequenos
ataques prosseguiram durante cinco, seis, sete minutos. O
suor escorria pelos rostos de ambos e a duração do pleito se
prolongaria por quinze minutos.
— Dooaaaaa!... — gritou novamente Kenjiro Sato.
O ataque foi rápido. Levantou a perna e aplicou o soto
gari, como se pretendesse derrubar Wajima, mas este resistiu
e contra-atacou do mesmo modo e foi Sato quem caiu.
— Mate! — gritou o árbitro, dando a entender que ambos
deviam esperar.
Masao Wajima obedeceu e deixou de lutar. Sabia que
deviam voltar ao centro da esteira, pois ambos estavam fora
dela. Tinham saído do retângulo destinado aos combates.
Porém, Sato não ouviu a ordem e continuou seu ataque,
fulminando Wajima contra o tatami. A assistência se
levantou e muitos gritaram reclamando. Wajima não disse
uma palavra. Levantou-se e foi para o centro da esteira,
enquanto o árbitro olhava para os juízes que continuavam
impassíveis, sentados à mesa. Estes apenas assentiram com a
cabeça.
Um árbitro esperou que Sato voltasse à posição inicial e o
apontou com a mão e em seguida, o condenou:
— Chui!
A cabeça do judoca girou para ele e em seguida, para os
juízes.
— Por quê? Este chui é injusto! Eu não cometi falta
grave! — gritou.
O silêncio continuou sepulcral no dojo. Os olhares
dançavam do Mestre ao judoca que não conseguia esconder
sua, irritação.
Os três juízes trocaram algumas palavras rápidas e o mais
idoso deles fez um sinal para Sato ajoelhar-se. O judoca
empalideceu, mas obedeceu.
E foi então que o árbitro exclamou:
— Keikoku!
Os assistentes sorriram. Agora. Wajima poderia vencer.
— Dooaaaaa!
O ataque foi alucinante. Sato aplicou um makikome
perfeito, colocando-se de costas para Wajima e encostando
sua anca à direita do corpo do adversário, enquanto ia
girando para a esquerda. Wajima não resistiu ao golpe e foi
lançado brutalmente para o tatami. Porém Kenjiro Sato caiu
com ele, sem o soltar.
— Wazari! — cantou o árbitro.
Sato aproveitou a ocasião muito bem: continuou
sujeitando Wajima com sua mão esquerda, enquanto a direita
estava metida sob a axila do adversário, controlando todos
seus movimentos, enquanto a parte lateral de seu corpo
parecia colada ao corpo do oponente, cortando sua
respiração.
O silêncio agora era total. O relógio eletrônico ia
marcando os segundos: dezoito, dezenove... vinte e
cinco...Sato já tinha o wazari a seu favor, pois conseguira
imobilizar Wajima durante vinte e cinco segundos.
Este ainda tentou reagir, mas não teve mais chance.
— Sore Made! — gritou o árbitro.
Competição terminada. Kenjiro se levantou rapidamente
e continuou saltando até Wajima também se levantar. Sato
esperava sorridente o momento no qual seria sagrado
vencedor, embora reconhecesse que os aplausos tinham sido
ínfimos.
Masao Wajima aproximou-se dele e o felicitou: “Boa
sorte, Kenjiro”.
— Você sabia que ia perder, não é?
— Até agora, não ganhei nenhum combate com a língua.
Você venceu e eu o felicito. Responda-me só uma coisa,
acredita que poderia vencer-me em todos os combates?
— Naturalmente.
— Se é assim que pensa, infelizmente ainda não entendeu
o propósito do Judô. É bom tomar uma ducha porque está
suando muito.
— Irei em seguida.
Os dois cumprimentaram o joseki e em seguida
abandonaram o tatami. A sessão matinal de Judô findara e
ninguém protestava por Kenjiro Sato ter vencido, embora
todos preferissem que o vitorioso fosse Wajima.
Alguns poucos se aproximaram dele para também
cumprimentarem o campeão, apenas cortesias obrigatórias. E
de repente, um destes sugeriu:
— Kenjiro Sato, não seria bom se você se desculpasse
junto ao árbitro?
— Não farei isso com ninguém! E sabe do que mais? Vou
me banhar!
Olhou mais uma vez para o joseki que continuava
reunido, tendo o Velho Mestre como presidente. Os juízes
estavam trocando algumas opiniões e conferindo as
cartelinhas com as anotações. Kenjiro saiu e foi para os
vestiários.
Vinte minutos mais tarde, os judocas reapareceram
penteados e vestidos impecavelmente. Os membros do
tribunal começaram a ler as qualificações e opiniões sobre os
participantes e finalmente, só ficaram Masao Wajima e
Kenjiro Sato, que seriam qualificados por Sensei.
O Velho Mestre se levantou e disse:
— Kenjiro Sato você mostrou muita eficiência e eu o
felicito como o vencedor deste torneio. Receberá o troféu e
minhas felicitações. O novo diretor-geral dos dojos é Masao
Wajima. Felicidades a ambos.
Novamente o silêncio inundou o dojo. O vencedor fora
Kenjiro Sato e por quê Masao Wajima ia ser o novo diretor-
geral?
Kenjiro Sato estava branco e com o cenho fechado. Não
poderia ter ouvido maior disparate em toda sua vida! Ele
ganhara a prova! Por quê? Por quê Masao Wajima ia ocupar
o cargo tão ambicionado?
— Agradeço a colaboração e a presença de todos — disse
Sensei e depois de alguns segundos de silêncio continuou:
Jita Kyoei4!
Inclinou a cabeça cumprimentando a todos e todos lhe
responderam da mesma forma. Em seguida, o Mestre
abandonou o dojo.
4
Jita Kyoei é um dos princípios básicos do Judô e significa, grosso modo,
benefício para si e para os outros.
CAPÍTULO SEGUNDO
Uma viagem inesperada
CAPÍTULO TERCEIRO
A beleza da noite
— Sato... Sato!
Kenjiro abriu os olhos e os cobriu com as mãos para
protegê-los da luz da lanterna.
— Quem é? — perguntou em um murmúrio.
— Sou eu, Yam Prang.
O japonês se sentou rapidamente no chão e teve de
morder os lábios para evitar um gemido de dor.
— O que veio fazer aqui? — perguntou.
— Sato, você precisa ajudar-me! É o único que poderá
fazer alguma coisa!
— Do que está falando? — perguntou o judoca.
— Ásia quer acabar com nós todos. Quer exterminar
minha família. Escutei quando alguns convidados
comentavam sobre meus filhos. Ásia quer nos matar.
— Não estou entendendo nada e é bom que não tente
enganar-me, Yam.
O chinês estava respirando com dificuldade quando falou:
— Ásia tem medo que seus amigos tenham localizado
minha casa, Sato. Disse que se isso acontecer, toda minha
família estaria correndo perigo. Achou melhor que eu
trouxesse todos para cá. Foi o que fiz, porém agora, ele quer
matar todos nós. A nós oito!
— Oito? Que oito pessoas são essas?
— Eu, Mai Korang, Na Paeng e os cinco meninos.
— Ásia também quer matar as mulheres e as crianças?
Por quê?
— Mai só enganou a você porque eu a obriguei. Ontem
de noite, quando me atacou, saí para procurar reforços e
quando voltei com alguns amigos, você já tinha abandonado
minha casa. Conversei com Mai e fiz com que me contasse
tudo que havia acontecido em minha ausência. Hoje de
manhã, quando falaram pelo telefone, ela estava muito
assustada porque eu lhe tinha dito que se você conseguisse
escapar, o meu chefe mandaria matar meus cinco filhos. Só
por isso, decidiu seguir minhas instruções e nós nos
preparamos para prendê-lo. Quando ela saiu de casa para
encontrar-se com você, nós a seguimos, mas não pudemos
acompanhar a motocicleta. Depois, só soubemos de vocês,
quando ela deixou o reservado para encomendar o jantar no
“Hotel Angkor”.
— Entendo — falou Kenjiro com sarcasmo.
— Acredite, Mai somente o traiu porque desejava salvar
a vida dos sobrinhos. Praticamente trocou a vida de ambos
pelas dos meninos.
— Está querendo que eu acredite que trocou nossas vidas
quando o mais certo seria dizer que trocou minha vida pelas
vidas dos meninos?
— Sato, você ainda não entendeu, ela desejou morrer
com você, mas antes quis passar algumas horas sozinha em
sua companhia. Desejou gozar da plenitude do amor em seus
braços! Chegou a dizer que se alguém o matasse se
suicidaria em seguida. Nós o capturamos vivo porque essa
foi a vontade de Ásia. Depois, foi ele mesmo quem sugeriu
que eu trouxesse todos para cá, onde os meninos ficariam
mais protegidos e agora, descobri que me mentiu, que apenas
estava forjando as coisas para matar-nos. Andou falando que
poderia ser perigoso nos deixar vivos, pois muitas pessoas já
sabem que Yam Prang tem ligações com a organização
criminal que ele fundou. Só você pode ajudar-nos, Sato!
Kenjiro cobriu o rosto com as mãos e se manteve nesta
posição por alguns segundos. Aos poucos, ia compreendendo
o que Maiko havia feito. Agora tinha certeza que ela o
amava e que só agira para salvar as crianças e Na Paeng.
Maiko o amava tão sinceramente que decidira entregar-se
totalmente a ele, no entanto Kenjiro Sato não soube valorizar
a grandeza de seu gesto e tinha passado o tempo todo
imaginando de que modo poderia aproveitar-se dela para
capturar seu cunhado. Nem de longe poderia supor que
Maiko estivesse planejando morrer para poder salvar seus
cinco sobrinhos. Quanta abnegação em um espírito tão
jovem!
— Sato, tem de ajudar-me, preciso salvar meus filhos! E
eles querem me matar! — insistiu Yam Prang.
Por quê Maiko ia matar-se por ele? Só por amor! Ela
poderia fazer o máximo para salvar as crianças, mas jurou
suicidar-se caso ele fosse assassinado. E por quê ia fazer
isso? Porque o amava!
Estava realmente estupefato. O mundo estava ficando
diferente? Podia existir algo mais lindo do que a
generosidade e o amor de Maiko? Algumas horas de amor
total e absoluto e logo, a troca de duas vidas por seis. Estava
no mesmo planeta que tinha vivido até então?
— Sato... Os meus filhos e Maiko já estão aqui — disse
Yam.
— Onde?
— Estão em um calabouço, neste mesmo corredor. Um
pouco mais confortável porque foi preparado para ser
dormitório dos homens que se associarem à organização
desse monstro! Não quero que matem meus filhos!
— Converse com Ásia. De que modo as crianças poderão
prejudicá-lo?
— Se eu falar com ele, saberá que já estou a par de seus
planos e dará ordens para tudo ser feito com rapidez. Tem
medo que os meninos tenham escutado alguma conversa e
comentem sobre o que ouviram. Foi por esse mesmo motivo
que tivemos de matar Tin Maeng!
— E agora será sua vez.
— E vão matar Maiko! — exclamou Yam Prang. —
Pensei em tirá-los daqui, mas sei que me encontrarão.
— Por que não solicita a colaboração da polícia?
— Não adianta, Ásia tem vários comparsas policiais.
Kenjiro sorriu mais uma vez. Sensei raciocinara com
clareza e agora, tinha certeza de que ele não se equivocara
com Mai Korang. Era verdade que não tinha prestado
atenção nos homens que apareciam nas fotos, mas quando
ele lhe perguntara quem era a dançarina que devia estar
informada sobre o caso, recebera a seguinte resposta: — Não
tire suas próprias conclusões. “K” não pôde dizer-nos o que
significam estas e podem significar muitas coisas.
— E como podemos sair daqui? — perguntou a Yam.
— Eu tenho uma pistola e tudo poderá ser resolvido mais
facilmente se eu contar com sua ajuda. Só há seis homens na
casa. Você precisa levar-nos para um lugar onde fiquemos
sob a proteção da Kuro Arashi. Se fizer isso, eu lhe direi
tudo que sei sobre Ásia!
— Sobre a organização e seu fundador não preciso de
mais informações, agora estou mais interessado em Maiko.
Há alguém no corredor?
— Não. Todos os homens estão descansando na
biblioteca. Avisei que vinha ver meus filhos e eles não
desconfiaram nem suspeitaram que eu viria falar com você.
— Vamos sair daqui.
Yam abriu a porta, olhou para um lado e outro do
corredor e quando viu que este estava deserto, avisou
Kenjiro. Ambos se dirigiram à cela onde estava Mai e as
crianças. Quando Yam abriu a porta com a chave que lhe
fora entregue por um dos companheiros, a jovem e Na Paeng
se levantaram imediatamente.
— Sato, meu amor! — balbuciou a moça assim que o viu.
Ele aproximou-se dela e a beijou nos lábios.
— Maiko, meu amor! — sussurrou.
— O que está acontecendo? — perguntou a anciã.
— Precisamos sair daqui imediatamente — disse Yam
Prang. — Não desperte os meninos! Você e Mai tomarão
conta deles e aconteça o que acontecer, eu e Sato
resolveremos todas as dificuldades que surgirem durante
nossa fuga. Não se preocupem conosco, mas apenas com
meus filhos.
— Mas... — começou Mai Korang.
— Eles resolveram matá-los — disse Kenjiro. — Maiko,
obedeça e siga todas as instruções de Yam Prang.
— Sim, Sato.
Este foi o primeiro a sair daquela cela. Yam seguiu-o,
empunhando a pistola. Depois foi a vez de Na Paeng, que
saiu dando a mão ao menino que estava com quatro anos e
atrás deste vinham os três maiores. Mai foi a última que
abandonou aquele calabouço, carregando o mais novo nos
braços.
Percorreram o corredor das celas e chegaram a uma sala
pequena e perto da porta desta estava a escada de pedra.
Kenjiro fez um sinal para as mulheres subirem com as
crianças e quando Yam Prang ia segui-las, ele colocou a mão
em seu braço.
— Não — sussurrou. — Nós não podemos ir ainda. Se
perceberem nossa fuga, iniciarão uma perseguição e então,
não poderemos escapar. A fuga passaria a ser impossível e
ainda exporíamos os meninos a perigos desnecessários.
Primeiro, devemos deixar tudo arrumado, entende?
— Está sugerindo que matemos os seis homens... agora?
— Talvez não seja necessário chegarmos aos extremos.
Esperemos que elas saiam da casa com os meninos e que
todos fiquem em segurança. Há alguém lá em cima?
— Não. Os convidados estão dormindo e Ásia está em
sua oficina, consertando seus “amigos pessoais”.
— Pois bem, esperemos mais dois minutos.
Mai quando viu que eles tinham parado no meio da
escada também se deteve, mas Kenjiro fez-lhe sinais para
continuar. Logo em seguida, olhou para a porta que estava
no final do corredor, a mesma por onde entrara há algumas
horas antes quando se encontrou com Ásia e seus
convidados.
— Yam, abra essa porta e chame dois deles — sussurrou
o japonês. — Chame-os com naturalidade, entendeu?
— Sim.
Kenjiro se encostou à parede, junto da porta, enquanto
Yam a abria e chamava dois companheiros. Disse-lhes
algumas palavras em tailandês e, instantes mais tarde, saíram
dois auxiliares de Ásia, ambos com caras zangadas por terem
sido acordados durante as horas de repouso. Yam não
precisava de novas instruções, deu com a coronha da arma
na cabeça de um deles e naquele mesmo instante, Kenjiro
golpeava a fronte do outro, que caiu fulminado.
O ruído chegou até dentro da biblioteca e ambos ouviram
vozes exaltadas. O japonês abaixou-se e apanhou as pistolas
dos homens que estavam estatelados no chão e fez um sinal
para Kenjiro abrir a porta completamente. Eles entraram
empunhando as armas e dessa forma, puderam surpreender
os quatro vigilantes que estavam descansando.
— Yam, que todos se desarmem — falou em francês.
— Joguem as armas no chão! — ordenou Yam em
tailandês.
Os vigilantes obedeceram e jogaram as armas no sofá.
Kenjiro apanhou um dos cinturões e o enfiou pelos guarda-
matos das armas. Em seguida, afivelou-o e o pendurou ao
pescoço. Depois saiu e voltou imediatamente, arrastando os
dois outros guardas que estavam desmaiados, enquanto
Prang continuava apontando a arma para os quatro.
— Yam, diga para seus amigos se comportarem e
permanecerem calmos. Vamos chavear a porta pelo lado de
fora e nada faremos contra eles.
Yam Prang traduziu tudo para e tailandês e os olhos dos
prisioneiros não se desviavam do rosto de Kenjiro.
Os dois saíram novamente e quando já estavam no
corredor, depois da porta já estar trancada à chave, Yam
Prang sorriu e exclamou:
— Não pensei que fosse ser tão fácil!
— Esta parte está resolvida, agora iremos matar Ásia, eu
faço questão de encarregar-me dele e não necessito dessas
porcarias — disse Kenjiro, entregando o cinturão com as
armas para Yam.
Este arregalou os olhos e gritou:
— Não... Espere!
— Não vamos esperar mais nada! Kenjiro Sato vai Matar
a víbora agora e ela não porá mais ovos.
— Não, não podemos matá-lo... Não podemos.
— Veja uma coisa, fui paciente, cordato com esses seis
homens. Apenas desarmei-os e os tranquei em uma sala.
Estou disposto a perdoá-los, mas Ásia deve morrer. Meu
Mestre quando me escolheu disse que sempre há um homem
adequado, no momento adequado. Meu Mestre escolheu a
mim e agora sei porque fui o escolhido. Vamos até ele.
— Não pode ir procurá-lo!
— Por quê?
— Antes de ir procurá-lo, eu mato você!
Plop! A pistola provida de silenciador detonou e a bala
passou roçando pelo pescoço de Kenjiro, que girou
rapidamente, ficando de costas para Yam. Pegou seu braço
com as duas mãos e o torceu, a dor foi tanta que o chinês
caiu sentado no chão, enquanto os ossos chegavam a ranger
conforme se esfacelavam e pouco depois, as lascas ósseas
principiavam a perfurar a carne, enquanto o sangue
começava a gotejar em vários pontos do braço.
— Você está louco? Então, pensava matar Ásia?
— Maldito! Cretino! Vagabundo! — gritou o judoca ao
perceber que caíra na armadilha. — Você mentiu! Usou seus
filhos para me comover, pensando que eu fosse levá-lo a
presença de Sensei. Você queria matar meu Mestre!
— Fique sabendo que qualquer um de nós, auxiliares de
Ásia, o mataremos! Ásia não admite rivais!
A mão direita de Kenjiro se levantou e ficou parada sobre
a cabeça de Prang que se encolheu, procurando proteger-se
do golpe que ia desabar sobre ele. Sabia que um judoca ou
um carateca muitas vezes aplica certos golpes que chegam a
ser mortais.
Esperou, mas a mão de Kenjiro não desceu com a
violência esperada.
Ele continuou com a mão levantada, pensando que na
vida há muitas coisas boas e más. Viu mentalmente os cinco
garotos chorando no primeiro degrau da escada e reviu
Maiko acalentando-os. Como o cafajeste tivera coragem de
utilizar aqueles anjos para matar Sensei? Tentou abaixar a
mão, mas não conseguiu, apenas murmurou:
— Prang, não posso esquecer seus filhos e nem tenho
coragem de deixá-los sem pai! Você é um cretino! Eu não o
matarei, mas sei que qualquer dia um judoca fará isso por
mim!
Apanhou as pistolas que estavam no chão e deu com a
coronha de uma delas na fronte do chinês que caiu
desmaiado. Em seguida, atravessou o corredor novamente e
foi sair no vestíbulo.
O local estava silencioso e parecia que ninguém estava se
apercebendo das coisas que aconteciam naquela mansão.
Continuou examinando tudo com muito cuidado, pois não
gostaria de ser apanhado de surpresa... e de repente viu uma
réstia de luz brilhando sob uma das portas.
Certamente, Ásia estava trabalhando em sua oficina.
Abriu a porta com cuidado e viu o anão disforme na
frente de uma banca de ferramentas eletrônicas e em cima de
outra mesa, estava um dos robôs, com o “ventre” aberto.
Ásia estava debruçado sobre o boneco de ferro, mexendo
em fios elétricos e outros apetrechos necessários ao bom
funcionamento de seu “melhor amigo”.
Escutou o barulho da porta, levantou a cabeça e não
conseguiu esconder sua surpresa.
— Sato, o que veio fazer aqui?
Enquanto falava seus olhos se moviam por toda a sala
como se procurassem algo que não aparecia.
Kenjiro sorriu e lhe explicou:
— Desista, Ásia, porque Yam Prang ficou no porão. Sou-
lhes grato por todas as facilidades que ambos me
proporcionaram para eu poder escapar, mas jamais permitirei
que alguém mate meu Mestre! Ninguém poderá matá-lo!
— Então você sabia de nosso plano? Sabia de toda a
verdade?
— Sim, Ásia, não saberia precisar a partir de quando, mas
eu já estava desconfiando da verdade. Agora, prepare-se
porque eu vou acabar com você.
— Não! Não se aproxime de mim e nem me toque! Eu
não tenho armas e nem tenho forças para defender-me!
— Tampouco as tinham todas as pessoas que mandou
matar. Mandou assassinar dezenas de pessoas só para
satisfazer o orgulho e a ambição que existe dentro de você.
Mandava matar para comprazer seu ego homicida e por quê
não posso matá-lo agora, pelo menos para vingar as mortes
de tantos homens dignos e honrados? Enfrente-me como
homem!
Kenjiro riu, sem nem de longe poder imaginar qual a
morte que ele ia escolher.
O anão introduziu a mão direita dentro do “ventre” do
robô que estava consertando e puxou um molho de fios. As
faíscas começaram a aparecer profusamente.
Kenjiro Sato viu quando Ásia recebeu a descarga elétrica,
como seu corpo foi sacudido e como os dentes brilharam,
para em seguida, ele cair fulminado. Na queda, com a mão
ainda dentro do robô, puxou o boneco de ferro que caiu
despejando milhões de faíscas azuladas.
O judoca retrocedeu agilmente ao perceber que estas
ficavam cada vez maiores, mais numerosas e que outras
faíscas começavam a aparecer em vários lugares diferentes,
da sala, provocando o início de um curto-circuito.
Como o jogo pirotécnico era lindo e perigoso! Primeiro,
tudo começou a estalar, começou a ganhar um colorido
diferente até as labaredas irromperem em vários lugares ao
mesmo tempo.
Kenjiro saiu da oficina, atravessou o vestíbulo correndo,
enquanto as chamas iam aumentando. Agora ouvia várias
pessoas gritando e seus passos correndo de um lado para o
outro.
Um dos convidados americanos debruçou-se no corrimão
da escada, chamando Ásia aos berros, perguntando em
francês o que estava acontecendo. De repente, viu Sato
iluminado pelas chamas.
Virou-se para trás e pediu em inglês:
— Harold, traga-me uma pistola! Tudo é obra do maldito
japonês!
O judoca não esperou que alguém lhe entregasse a arma.
Abriu a primeira porta lateral que viu e saiu para o jardim.
A escuridão era total, continuou andando sem saber para
onde ir e foi então que escutou:
— Sato! Sato!
A voz da mulher amada orientou-o naquela escuridão e
quase em seguida, a moça apareceu a sua frente. Segurou sua
mão, puxando-o.
— Ande depressa, Sato! Já estamos na lancha esperando
por vocês. Onde está Yam Prang?
Kenjiro abriu a boca para falar, mas naquele momento
houve uma grande explosão.
— Ele se virou depressa e ainda pôde ver as primeiras
labaredas enfeitando e clareando a noite. Em seguida, uma
sequência de estampidos, estouros e a casa ficou totalmente
iluminada.
— Onde está Yam Prang? — insistiu Maiko.
O judoca olhou para ela sem saber o que podia responder-
lhe e terminou lhe contando parte da verdade.
— Quando fugíamos para cá, alguém o matou, Maiko.
Yam deu a vida para salvar seus filhos. Venha, vamos correr
para a lancha e fugir deste inferno!
Pouco depois, a lancha afastava-se do embarcadouro.
Kenjiro estava satisfeito tinha destruído a organização
“Ásia”. Agora as chamas consumiam tudo que um anão
assassino havia construído.
Abraçou Maiko pensando que a viagem a Bangkok fora
muito útil: Conseguira destruir um ninho de víboras
peçonhentas e conhecera a mulher que o destino lhe tinha
reservado.
***
Chegou ao chalé de Sensei e lhe relatou tudo que havia
acontecido em Bangkok.
O silêncio era tão intenso que ele somente ouvia o rumor
da água na fonte, o canto dos passarinhos e o sussurro do
vento entre os bambus.
Kenjiro Sato continuava sentado na frente de Sensei
esperando o que o Mestre lhe ia dizer. Depois de uma longa
meditação, Sensei olhou para o judoca e disse:
— Você fez tudo com muito capricho e eu gostaria de
atender qualquer pedido que me faça. Você pode pedir o que
desejar, meu filho.
— Quero voltar para Bangkok, Mestre.
— Por quê quer voltar para lá se já terminou tudo?
— Mestre, eu gostaria... de trabalhar no dojo de Osamu.
Gostaria de ser seu ajudante.
— Isso é absurdo, Kenjiro. Seu grau é superior ao de
Osamu. Este desejo não será uma demonstração de falsa
humildade?
— Não, Mestre. Quero ficar residindo em Bangkok por
algum tempo, até os sobrinhos de Maiko crescerem e ficarem
adultos. Então, talvez, eu e ela voltemos para Tóquio ou
ficaremos em Bangkok mesmo, onde envelheceremos.
Mestre, o senhor nem pode imaginar como aquela flor
tailandesa é linda!
— Se ela viesse para cá talvez murchasse — sorriu
Sensei. — Você aprendeu muito, Kenjiro. Pode retornar a
Bangkok e tenho certeza que meu neto o receberá de braços
abertos. Que mais você quer?
— Nada, Mestre.
— Estou espantado, filho. Pensei que me ia pedir mil
coisas.
— Já não desejo mais ser o diretor-geral e nem o
visitador dos seus dojos, Mestre.
— Por quê não?
— Porque compreendi que Masao Wajima pode fazer
isso melhor do que eu faria, mas também compreendi que
posso fazer outras coisas melhor do que ele. Por exemplo,
minha atuação em Bangkok foi ótima. Mestre, eu só quero
continuar trabalhando e servindo à Kuro Arashi!
— Então gostou de arriscar sua vida, gostou de expô-la
ao perigo?
— Não, mas foi por isso que compreendi certas coisas,
Mestre... Coisas surpreendentes. O senhor sabia que isso ia
acontecer comigo?
— Não desvalorize suas experiências, Kenjiro. Eu não
sabia e nem poderia saber o que ia acontecer. Porém sabia
que quando está em jogo a vida e a morte, o homem
consegue reconhecer as verdades que lhe passavam
despercebidas. Você foi tratado injustamente em várias
épocas de sua vida e...
— Sensei, o senhor sabia que isso tinha acontecido
comigo?
— Sim, costumo saber tudo sobre os discípulos que
começam a caminhar pelo caminho do bem e do progresso.
Sei que quando você era pequeno levou uma surra de um
grupo de garotos porque estes não queriam que fosse buscar
comida na zona que consideravam exclusiva deles. Sei que
perdeu seus pais bem cedo e que sua infância foi amarga. Sei
que quando adolescente esteve disputando um campeonato
que nunca conseguiu vencer. Kenjiro, sou velho, mas ainda
tenho capacidade para amar aqueles que estão comigo. E se
eu os amo, vivo com eles e sofro com eles. Até há poucos
dias, você era um homem que apenas via o sofrimento e as
desgraças que grassavam pelo mundo. Era um ser implacável
e duro, mas eu sabia que no fundo você era diferente. Podia
ter gasto dias e meses falando, mas você continuaria sendo
como era, pelo menos agora, eu o vejo mais humano, agora é
um rapaz que sabe que a vida oferece coisas boas e más.
Filho, aprenda a amar as boas e suportar as más e acima de
tudo, jamais se esqueça que nunca estará sozinho, nem nas
horas alegres ou nas de dor ou sofrimento. Entende o que
estou tentando transmitir para você, Kenjiro?
— Sim, Mestre.
— Você acaba de fazer uma coisa da qual jamais se
esquecerá. Sei que não há beleza em se matar alguém,
mesmo o maior bandido do mundo, mas é lindo saber que foi
você quem destruiu uma organização que vivia para o crime
e para grassar a infelicidade em todas as partes da Terra.
Outra beleza da vida é amar e ser amado. É saber que em
cada aurora o sol aparecerá antes do desaparecimento da
última estrela que cintilou na noite. Se você meditar sobre
tudo isso, um dia há de alcançar o satori, filho. Ou quem
sabe se já não o alcançou?
O quinto Dan de Judô olhou para as árvores cheias de
passarinhos, o bambuzal, as flores. Tudo parecia tão lindo e
cercado de paz. Pensou que em Bangkok, lá, alguém o
esperava com ansiedade, uma moça que teria morrido de
amor.
— Não sei, Mestre. Qual é sua opinião?
— Penso que ainda não chegou ao estado de graça, meu
filho, mas já está vislumbrando um pontinho luminoso onde
antigamente só havia trevas. Kenjiro, você está no caminho
certo, mas deve ter muito cuidado para não perder esse
pontinho luminoso de vista... e um dia, muito antes do que
possa pensar, encontrar-se-á com o satori.
O Mestre sorriu seu sorriso de bondade e continuou:
— Agora, volte o mais rápido possível a Bangkok. Nem
eu e nem o satori queremos atrapalhar seu romance de amor.
ESTE É O FINAL
Finalmente despertou e viu a Ninja que estivera em todos
os seus sonhos. Era linda, tinha cabelos negros e olhos azuis.
Estava sentada perto da cama, sorria-lhe e seu sorriso era tão
maravilhoso como o satori, talvez até mais doce.
— Como está? — ela perguntou.
— Bem — respondeu quase sem voz.
Kenjiro Sato olhou à volta e viu que estava em um quarto
confortável. Olhou para a janela e viu uma gaivota. O cheiro
do mar chegava até sua cama. O sol estava brilhante,
refulgente.
— Onde estou? — perguntou.
— Em um chalé ao sul de São Francisco, pertinho da
praia. Felizmente está recuperando-se rapidamente e em
breve poderá visitar o Sensei e lhe contar como tudo
aconteceu enquanto cumpria sua missão. Já remeti a ele
todos os papéis que encontrei em seus bolsos, Kenjiro Sato.
— É uma Ninja?
— Não, não sou uma Ninja — riu a mulher.
— Então, como conseguiu tirar-me daquela ratoeira?
— Talvez por sorte ou por ter um pouco de... experiência
em situações parecidas. Agora está bem medicado, bem
melhor e nós nos despediremos aqui. Porém, faço questão
que quando voltar ao Japão cumprimente Sensei em meu
nome.
— Agora sei quem é — exclamou Kenjiro. — É a
repórter Brigitte Montfort! Eu já vi você em revistas e na
televisão!
— Porém, jamais me tinha visto correndo pelos telhados
e disparando contra vários homens. Agora, por favor,
esqueça-se de que um dia me viu, que conversou comigo
conforme fizemos neste instante.
— Não me peça uma coisa que não poderei cumprir —
sussurrou Kenjiro. — Nunca, nunca comentarei que um dia
eu a vi correndo pelos telhados, carregando um homem nos
ombros. Isso jamais comentarei, mas não me peça para
esquecê-la. Não poderei esquecer-me da pessoa que salvou
minha vida.
— Prometa que pelo menos tentará.
— Não, não posso. Conhecer você foi, para mim... como
alcançar o satori.
— Se foi esta a sensação que está tendo, sinto-me
recompensada — sorriu a senhorita Montfort, levantando-se.
— Então, agora nós dois nos entendemos e estamos em paz.
Boa sorte, Kenjiro Sato!