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© 1990 – Antônio Vera Ramirez

“Satori”
Tradução de Izabel Xrisô Baroni
Ilustração de Benicio
Digitalizado por
Uedson Campos
® 540902
® 551009
ESTE É O INICIO
Tinham-no ferido no ventre e há mais de trinta horas,
estava encurralado dentro de uma oficina de carros que
estava desativada há algum tempo. Havia pó e sujeira por
todas as partes, mas felizmente o telefone continuava
funcionando, Sensei lhe instruíra: Se algum dia você se
encontrar em perigo, ligue para esse número na própria
cidade de São Francisco, diga apenas onde está e aguarde o
auxílio, que chegará de uma forma ou outra. Basta ligar
uma vez.
As horas estavam passando, a ajuda não chegara e ele
começava a se desesperar. Não podia abandonar a oficina
porque os bandidos estavam espalhados pela rua e um judoca
sem armas não podia enfrentar-se com vários criminosos
armados. Lamentava aquilo tudo porque tinha conseguido os
documentos que serviriam para arruinar a organização
perigosa que operava em toda a Ásia, mas cuja direção
central estava em São Francisco. Com aqueles documentos a
Kuro Arashi poderia destruir a organização.
A porta da oficina foi aberta silenciosamente.
— Venha — disse uma voz de mulher. — Vim para tirá-
lo daqui.
Uma mulher. Que ajuda uma mulher poderia prestar-lhe?
Talvez até estivesse colaborando com os criminosos. Não,
não devia ser aliada deles porque vários já haviam invadido a
oficina procurando-o, mas nenhum sabia que ele estava
metido entre aqueles dois fichários. Escondido como um
vira-lata assustado e só uma pessoa da Kuro Arashi viria
ajudá-lo naquelas condições.
— Vamos, não seja teimoso — insistiu a mesma voz. —
Em certas ocasiões eu também trabalho para Sensei. Saia!
Saiu do esconderijo e viu uma sombra que o fez lembrar-
se de um Ninja, um fantasma negro.
— Pode correr ou andar? — perguntou-lhe a Ninja.
— Creio que... nem sequer... respirar. Tenho uma... bala
alojada no ventre:
— Conseguiu tamponar a ferida?
— Sim... porém o sangue... continua escorrendo.
— Fique calmo, porque seus problemas serão resolvidos.
— Estou cercado de assassinos... profissionais. Se
sairmos daqui... eles nos verão.
— Pior para eles.
A Ninja desapareceu, e quase em seguida, ele sentiu uma
coisa estranha e quase desmaiou. Depois, quando abriu os
olhos viu que fora colocado em seus ombros e que a mulher
caminhava meio encurvada por causa de seu peso.
A partir desse momento, o ferido percebeu vozes
exaltadas de homens, viu os clarões dos disparos e notou que
a Ninja também atirava. Depois viu a cara de um homem
toda ensanguentada. A Ninja correndo pelos telhados,
sempre carregando-o nos ombros. Viu outros homens caindo
e ouviu vários estampidos e gritos de agonia. Caiu sobre algo
macio, viu uma lâmpada amarelenta e uma cabeleira negra.
Depois ouviu o motor do carro e pressentiu que o levavam
para fora da zona de perigo. Exato. O carro agora estava
rodando, viu o rosto da mulher e teve a sensação de ter
alcançado o satori e isso o fez recordar-se das palavras que
Sensei lhe tinha dito quando se encontraram pela última vez.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Disputa entre dois judocas

— Hajime1!
Os dois concorrentes cumprimentaram-se com uma
inclinação de cabeça antes de iniciarem o shiai que seria a
prova final. O silêncio era total no dojo que estava localizado
em uma das principais avenidas de Tóquio.
De todos os candidatos que concorreram, foram Masao
Wajima e Kenjiro Sato os dois melhores e, portanto, os dois
finalistas. O resultado não vinha causando surpresa ou
decepções. Em todas as apresentações, eles foram sempre
melhores que seus adversários e os tinham vencido com
certa facilidade. Ambos eram quinto Dan e tinham
conseguido este grau de Judô porque há anos vinham sendo
orientados por mestres de valor. Especialmente Masao
Wajima, que se criara sob a orientação de Sensei, o velho
Mestre, que, atualmente, vivia em seu modesto ryokan, uma
casa de campo onde a paz e a serenidade imperava, um lugar
muito especial onde o Mestre podia dedicar seu tempo à
meditação e à reflexão eu fortificavam o espirito e a pureza
de seus pensamentos.
A presença de Sensei em Tóquio era algo
verdadeiramente excepcional. Só um acontecimento como
aquele o traria a capital.
O Velho Mestre dispunha de vários dojos em todo o
Japão e cada um destes era supervisionado por um de seus
ex-alunos de confiança, respaldado por velhos conselheiros,
que por sua vez, também tinham sido discípulos e
continuavam sendo amigos de Sensei. Porém todos esses
dojos tinham uma só direção e este cargo de diretor-geral e
1
Comecem.
visitador de todos os dojos era a ocupação mais desejada
pela maioria dos grandes judocas e aquele que fosse
escolhido entre os melhores discípulos de Sensei, sem dúvida
alguma poderia julgar-se como o “melhor dentre todos”.
Masao Wajima era o favorito da maioria dos judocas que
enchiam o dojo naquele dia memorável no qual seria
escolhido o novo diretor-geral e visitador que iria substituir o
companheiro que havia falecido em um acidente aéreo.
Wajima era o favorito por vários motivos: como um
verdadeiro judoca era amável, cortês, simples, bondoso,
modesto, quase humilde em sua benevolência para com o
próximo. Estava com trinta e dois anos e começara a praticar
o Judô quando tinha cinco anos de idade sob a orientação
pessoal de Sensei.
Enquanto Wajima era a gentileza personificada, Kenjiro
Sato era uma pessoa rude, que não tinha as qualidades
morais de seu oponente. Há quatro anos praticava o Judô sob
a orientação do Velho Mestre, mas este não conseguira
mudar a índole ou a personalidade do discípulo.
Isso, se julgado segundo suas características morais,
porque se o mesmo julgamento fosse feito de acordo com
seus atributos físicos, o resultado seria totalmente diferente.
Neste campo Kenjiro Sato não podia ter rival e todos que
desejavam que Wajima vencesse não tinham ilusões a esse
respeito. Por isso quando soou a ordem do hajime, o silêncio
se intensificou. Todas as cabeças se voltaram para Sensei que
presidia o joseki2 no palanque central, cercado de antigos
judocas que, como ele, viviam do Judô, para o Judô e pelo
Judô.
E para estes, Masao Wajima era a representação perfeita,
o espelho onde todos os meninos que iniciavam o
2
Remoção.
aprendizado desta disciplina milenar, podiam mirar-se, a fim
de um dia serem os grandes seguidores de Jigoro Kano, o
Grande Mestre ou o Sensei, que foi o fundador e criador do
Kodokan3 que aproveitou duas palavras chaves para nomear
sua nova arte de defesa: JU, que significa agilidade,
flexibilidade e desenvolvimento físico harmonioso e DO, via
ou caminho, isto é, o modo correto de um homem
comportar-se em todos os momentos da vida. E para
ninguém esquecer-se dos objetivos desta nova arte, o Grande
Mestre exemplificou que a cortesia é a principal regra do
Judô, que a amizade e o progresso mútuo são essenciais ao
desenvolvimento da energia humana.
Sem dúvida alguma, Kenjiro Sato havia aprendido
perfeitamente o segundo princípio, mas não o primeiro.
Quanto ao emprego da energia latente que existia dentro de
si, não precisava aprender mais nada, mas quanto à amizade
e progresso mútuo, Kenjiro chegava a zombar. Amizade? O
que significa e qual é o valor da amizade? — perguntava
rindo muitas vezes.
Naquela prova a amizade valia pouco, pois era um
confronto entre os dois melhores e a vitória significaria
prestígio relativo, embora pudesse tornar-se uma grande
glória quando o vencedor fosse enviado por Sensei a todos os
dojos do Japão e eventualmente, a outros que estavam
distribuídos em vários países, onde eram falados outros
idiomas além do japonês.
Kenjiro Sato era um homem ambicioso e sabia falar e
escrever o inglês com perfeição, bem como o francês. Era
um homem que não se detinha diante de dificuldades ou
obstáculos que surgissem em seu caminho. Tinha um metro e

3
Kodokan foi a primeira escola de judô, fundada no Japão, por Jigoro Kano,
em 1882
setenta, ombros largos, corpo musculoso e esguio, mãos
lindas, poderosas, fortes, que ninguém saberia descrever,
mas que sabiam lutar com precisão e decisão. Era um
homem de trinta e cinco anos, um quinto Dan e um
“explosivo que ninguém conseguia deter”.
Ou Masao Wajima ia poder detê-lo?
As mãos deles se cruzaram no ar, sem rudeza. Nenhum
dos dois ia se opor ao inevitável kumi kata, isto é, segurar o
quimono do oponente, já que sem isso, dificilmente poderia
haver o combate. Qualquer um deles, usando apenas uma das
mãos poderia agarrar o adversário pela roupa e arrancá-la
com um único gesto. As mãos daqueles dois homens
estavam acostumadas a lutar. Portanto, com as devidas
precauções e com uma suavidade fictícia, ambos foram se
preparando para o kumi kata, procurando um ponto
adequado para segurar o judogui do concorrente.
E logo em seguida o kiai ecoou pelo dojo.
— Dooaaaaa!...— gritou Kenjiro Sato quando iniciava o
ataque.
Um yama arashi capaz de jogar um homem com
duzentos quilos à parede. Sato prendeu o quimono de
Wajima pelo decote enquanto sua mão esquerda segurava a
manga direita do adversário. Inclinou a cabeça até quase ao
chão, enquanto seu corpo rodava para a esquerda e levantava
a perna direita, que foi se chocar nos quadris do antagonista.
Um golpe perfeito.
Todos temeram que Wajima fosse estatelar-se de costas
no chão, contra o tatami e isso seria o final do combate,
porém caiu apenas de bruços.
— Koka! — gritou o árbitro, dando a entender que já
tinha perdido alguns pontos.
Wajima sorriu e se levantou rapidamente, fugindo do
ataque de Sato, que pretendia aproveitar-se da situação para
estrangulá-lo ou lhe dar uma chave de braço que o pusesse
fora da competição.
Os olhos de Kenjiro Sato brilhavam de fúria. Como ele
pudera safar-se daquele golpe perfeito?
A assistência ficou paralisada quando Wajima iniciou um
novo ataque, mas novamente Sato usou um tukui, rodando o
corpo rapidamente e também caiu de bruços sobre o tatami.
Os homens que formavam o joseki permaneciam imóveis.
No ar parecia haver vibrações positivas e os espectadores
começavam a ter esperanças de que o preferido vencesse
aquela prova.
Os dois judocas reiniciaram o combate sabendo que o
menor descuido seria aproveitado pelo adversário. Pequenos
ataques prosseguiram durante cinco, seis, sete minutos. O
suor escorria pelos rostos de ambos e a duração do pleito se
prolongaria por quinze minutos.
— Dooaaaaa!... — gritou novamente Kenjiro Sato.
O ataque foi rápido. Levantou a perna e aplicou o soto
gari, como se pretendesse derrubar Wajima, mas este resistiu
e contra-atacou do mesmo modo e foi Sato quem caiu.
— Mate! — gritou o árbitro, dando a entender que ambos
deviam esperar.
Masao Wajima obedeceu e deixou de lutar. Sabia que
deviam voltar ao centro da esteira, pois ambos estavam fora
dela. Tinham saído do retângulo destinado aos combates.
Porém, Sato não ouviu a ordem e continuou seu ataque,
fulminando Wajima contra o tatami. A assistência se
levantou e muitos gritaram reclamando. Wajima não disse
uma palavra. Levantou-se e foi para o centro da esteira,
enquanto o árbitro olhava para os juízes que continuavam
impassíveis, sentados à mesa. Estes apenas assentiram com a
cabeça.
Um árbitro esperou que Sato voltasse à posição inicial e o
apontou com a mão e em seguida, o condenou:
— Chui!
A cabeça do judoca girou para ele e em seguida, para os
juízes.
— Por quê? Este chui é injusto! Eu não cometi falta
grave! — gritou.
O silêncio continuou sepulcral no dojo. Os olhares
dançavam do Mestre ao judoca que não conseguia esconder
sua, irritação.
Os três juízes trocaram algumas palavras rápidas e o mais
idoso deles fez um sinal para Sato ajoelhar-se. O judoca
empalideceu, mas obedeceu.
E foi então que o árbitro exclamou:
— Keikoku!
Os assistentes sorriram. Agora. Wajima poderia vencer.
— Dooaaaaa!
O ataque foi alucinante. Sato aplicou um makikome
perfeito, colocando-se de costas para Wajima e encostando
sua anca à direita do corpo do adversário, enquanto ia
girando para a esquerda. Wajima não resistiu ao golpe e foi
lançado brutalmente para o tatami. Porém Kenjiro Sato caiu
com ele, sem o soltar.
— Wazari! — cantou o árbitro.
Sato aproveitou a ocasião muito bem: continuou
sujeitando Wajima com sua mão esquerda, enquanto a direita
estava metida sob a axila do adversário, controlando todos
seus movimentos, enquanto a parte lateral de seu corpo
parecia colada ao corpo do oponente, cortando sua
respiração.
O silêncio agora era total. O relógio eletrônico ia
marcando os segundos: dezoito, dezenove... vinte e
cinco...Sato já tinha o wazari a seu favor, pois conseguira
imobilizar Wajima durante vinte e cinco segundos.
Este ainda tentou reagir, mas não teve mais chance.
— Sore Made! — gritou o árbitro.
Competição terminada. Kenjiro se levantou rapidamente
e continuou saltando até Wajima também se levantar. Sato
esperava sorridente o momento no qual seria sagrado
vencedor, embora reconhecesse que os aplausos tinham sido
ínfimos.
Masao Wajima aproximou-se dele e o felicitou: “Boa
sorte, Kenjiro”.
— Você sabia que ia perder, não é?
— Até agora, não ganhei nenhum combate com a língua.
Você venceu e eu o felicito. Responda-me só uma coisa,
acredita que poderia vencer-me em todos os combates?
— Naturalmente.
— Se é assim que pensa, infelizmente ainda não entendeu
o propósito do Judô. É bom tomar uma ducha porque está
suando muito.
— Irei em seguida.
Os dois cumprimentaram o joseki e em seguida
abandonaram o tatami. A sessão matinal de Judô findara e
ninguém protestava por Kenjiro Sato ter vencido, embora
todos preferissem que o vitorioso fosse Wajima.
Alguns poucos se aproximaram dele para também
cumprimentarem o campeão, apenas cortesias obrigatórias. E
de repente, um destes sugeriu:
— Kenjiro Sato, não seria bom se você se desculpasse
junto ao árbitro?
— Não farei isso com ninguém! E sabe do que mais? Vou
me banhar!
Olhou mais uma vez para o joseki que continuava
reunido, tendo o Velho Mestre como presidente. Os juízes
estavam trocando algumas opiniões e conferindo as
cartelinhas com as anotações. Kenjiro saiu e foi para os
vestiários.
Vinte minutos mais tarde, os judocas reapareceram
penteados e vestidos impecavelmente. Os membros do
tribunal começaram a ler as qualificações e opiniões sobre os
participantes e finalmente, só ficaram Masao Wajima e
Kenjiro Sato, que seriam qualificados por Sensei.
O Velho Mestre se levantou e disse:
— Kenjiro Sato você mostrou muita eficiência e eu o
felicito como o vencedor deste torneio. Receberá o troféu e
minhas felicitações. O novo diretor-geral dos dojos é Masao
Wajima. Felicidades a ambos.
Novamente o silêncio inundou o dojo. O vencedor fora
Kenjiro Sato e por quê Masao Wajima ia ser o novo diretor-
geral?
Kenjiro Sato estava branco e com o cenho fechado. Não
poderia ter ouvido maior disparate em toda sua vida! Ele
ganhara a prova! Por quê? Por quê Masao Wajima ia ocupar
o cargo tão ambicionado?
— Agradeço a colaboração e a presença de todos — disse
Sensei e depois de alguns segundos de silêncio continuou:
Jita Kyoei4!
Inclinou a cabeça cumprimentando a todos e todos lhe
responderam da mesma forma. Em seguida, o Mestre
abandonou o dojo.

4
Jita Kyoei é um dos princípios básicos do Judô e significa, grosso modo,
benefício para si e para os outros.
CAPÍTULO SEGUNDO
Uma viagem inesperada

Kenjiro Sato encostou a “Honda 750” no muro da casa de


campo de Sensei e se embarafustou pela mesma, sem bater
palmas pelo menos: Atravessou o vestíbulo, a sala, e foi sair
no grande alpendre que, ficava na parte de trás e do qual o
Velho Mestre podia descortinar todo o jardim, grande, amplo
que naquele dia estava todo florido.
Tal como imaginara, viu o Mestre cercado por pássaros
que voaram assustados quando ouviram as passadas do
visitante.
Kenjiro Sato olhou para o Mestre e gritou:
— Fui eu quem venceu o shiai! Sou eu quem deve ser o
novo diretor-geral e visitador dos dojos que o senhor tem no
Japão! O senhor não foi justo, Mestre!
O barulho foi tanto que os pássaros que se tinham
protegido nos ramos das árvores mais próximas, piaram
assustados e novamente alçaram voo, dando a sensação de
que algo muito belo e delicado fora roto brutalmente. O
Mestre continuou com o braço estirado, na mesma posição,
como se ainda os passarinhos estivessem pousados nele. Sua
fisionomia continuou calma, inalterada e simplesmente seus
olhos se deslocaram para o rosto do judoca.
— Você colocou seu nome no vestíbulo? — perguntou,
sorrindo.
O rapaz, que estava furioso e disposto a gritar para impor-
se, pois estava convencido que tinha razão, fechou a boca e
murmurou:
— Não.
— Ainda pode fazer isso, por favor.
Kenjiro afastou-se com suas passadas de atleta e
novamente entrou na casa que tinha painéis corrediços
formando as paredes. Viver naquela casa silenciosa e
aprazível era como viver em um jardim repleto de flores.
Abriu o armário que estava no vestíbulo, apanhou sua
plaqueta e a colocou na porta de entrada. Este era o modo
pelo qual algum outro visitante ficaria sabendo que Sensei
não estava sozinho. Nem pensara neste pormenor quando
chegara, reconhecia que fora bastante grosseiro ao entrar na
casa, sem preocupar-se que talvez sua chegada fosse
inoportuna.
Voltou novamente ao alpendre.
— Colocou a tábua com seu nome à porta, Kenjiro?
— Sim — respondeu de má vontade.
E se sentou com as pernas cruzadas diante de Sensei que
o ficou olhando atentamente, como se ainda não conhecesse
perfeitamente as feições belas e inteligentes, os olhos
grandes, expressivos e toda a arrogância do judoca, um dos
melhores que havia passado em seu dojo. Kenjiro Sato tinha
um metro e setenta, ombros largos, corpo musculoso que
mais parecia esculpido em granito, um tipo simplesmente
impressionante. Bastava um olhar, para o adversário
perceber que ia enfrentar-se com um inimigo perigoso.
Finalmente, o rapaz compreendeu o significado daquele
olhar e suas faces enrubesceram. Ele se levantou lentamente
e foi assim que permaneceu na frente do Mestre.
Sensei desviou os olhos do discípulo e os elevou ao Céu,
pareceu ficar perdido naquela imensidão. Na opinião de
Kenjiro, o olhar do Mestre ficara perdido no infinito azul da
tarde de outono. O velhinho também impressionava com seu
corpo magrinho, cabelos brancos e um olhar severo,
persistente.
O Mestre fechou os olhos e permaneceu imóvel por mais
de uma hora. O silêncio seria total se não houvesse os piados
e trinados dos pássaros cortando o ar. As aves piavam,
cantavam, mas não se atreviam a voltar para perto do velho
ser humano.
O silêncio era tão denso que Kenjiro também ouvia o
rumor das águas da fonte caindo no lago que havia no
jardim. A sensação de paz era absoluta.
Finalmente, o Mestre abriu os olhos e os pousou em
Kenjiro.
— Falou que eu não fui justo com você?
— E não foi mesmo, Mestre!
— E está com toda a razão — concordou o ancião para a
surpresa do rapaz. — Não fui justo com você e a culpa foi só
sua.
— Eu fui culpado? Por quê?
— Eu sei que ganhou, mas eu sempre disse que para cada
lugar e em cada ocasião deve estar o homem certo no
momento adequado. Você entende isso Kenjiro?
— Entendo, Mestre.
— Obrigado. Então posso falar francamente que você não
é o homem adequado para representar-me no Japão. E muito
menos em outros países.
— E Masao está preparado?
— Sim.
— Foi o senhor quem estipulou as regras para shiai que
indicaria o novo diretor-geral, Mestre. E foi o senhor quem
falhou ao não conceder o posto ao vencedor.
— Kenjiro, você ganhou a competição no JU e Masao a
venceu no DO. Sabemos que o JU é o desenvolvimento
integral da flexibilidade e agilidade do corpo de forma
harmônica e perfeita. E o DO é o caminho, o modo correto
de o homem portar-se em todos os momentos da vida. Se o
resultado do torneio fosse nulo, eu poderia escolher qualquer
um dos dois, mas realmente, tal como está pensando, isso
somente são palavras com as quais eu tentaria justificar a
injustiça que cometi. Somente os insensatos ou os néscios
negam a verdade sobre si mesmos. E como não tenho a
pretensão de ser um néscio, admito que hoje não fui justo
com você, porém fui justo com Masao e com todos meus
discípulos do Japão.
— Sensei...
— Espere. Eu estou falando, Kenjiro. Cale-se e escute.
Diga-me se agiu corretamente quando invadiu minha casa,
gritando e me privando do prazer que os pássaros me
proporcionam?
Kenjiro Sato umedeceu os lábios com a língua e
murmurou:
— Reconheço que não agi corretamente, Sensei.
— Isso significa que você também pode ser injusto, não é
mesmo? E pode ser injusto porque não passa de um ser
humano. Eu também sou um ser humano, Kenjiro, e não um
deus. E dentro de minha condição humana posso ser injusto
em certas ocasiões. Alguma vez me ouviu dizer que sou
infalível e sábio?
— Não, Mestre.
— Isso nos leva a. uma conclusão muito lógica e natural:
nós dois somos simples seres humanos e hoje, nós dois
falhamos e fomos injustos. E não me diga que neste
intercâmbio de injustiças você perdeu mais do que eu, pois
isso poderia ser assunto de uma discussão que só terminaria
no final de meus dias. Por quê iria eu valorizar mais seu
cargo de diretor-chefe do que o prazer que sinto ao estar com
os meus pássaros? Talvez se se fizesse uma comparação, eu
fosse o mais prejudicado, não concorda comigo?
— Não sei, Mestre.
— Não sabe? Pois falemos da vida, de nossas vidas. É
provável que você ainda possa viver setenta ou oitenta anos:
se continuar se tratando como se trata. E quantos anos eu
ainda poderei viver?
— Mestre, eu lhe desejo uma vida muito longa.
— Acredito — sorriu o ancião. — Acredito porque sei
que você sempre diz o que pensa, mas nem sempre pensa o
que é correto.
— Eu não penso o correto, Mestre?
— Hoje, você está aprendendo muito. Eu tenho poucos
anos para viver ou talvez poucas semanas ou dias. Pela lei da
vida você ainda terá muitos anos pela frente e poderá
satisfazer muitas das suas vontades.
— Masao Wajima é tão jovem quanto eu e duvido que
morra antes de mim, para um dia eu poder ocupar o lugar
que ganhou hoje.
— Talvez você nunca venha a ser o diretor-geral dos
dojos, mas poderá ser muitas outras coisas na vida.
— Que satisfaçam os ideais de um judoca?...
— Antes de você ser um judoca, é um ser humano. É um
homem e como pessoa poderá escalar altos postos. Kenjiro,
como você se classifica como pessoa?
— Não sei, Mestre.
— Pois eu lhe vou dar a minha classificação: como
judoca é admirado por todos seus companheiros. É admirado
e respeitado, mas você deve ter notado que todos desejavam
que Masao Wajima ganhasse a competição.
— Sim, notei isso.
— Todos torciam por Wajima porque ele como pessoa
ocupa um posto mais elevado do que seu. Pode entender
isso?
— Sim, Mestre.
— E você entende que o Judô é uma disciplina que tem
como objetivo primordial o aprimoramento do homem, a
melhoria dos seres humanos, não só fisicamente, mas
também moralmente?
— Sim.
— Se sabe disso tudo, por quê não aprendeu o Judô tal
qual ele deve ser aprendido? Quando você veio procurar-me
pela primeira vez, já tinha fama de violento. Nunca pôde
adquirir o DO, mas mesmo assim eu o aceitei como
discípulo.
— E por quê me aceitou se sabia que eu era como sou?
— O homem sempre deve pensar, meu filho. Eu pensei
que os outros Mestres não despertaram o que havia de bom
dentro de você, fui vaidoso e certamente minha vaidade
devia ser castigada como merecia... nada consegui com você.
É um judoca hábil, mas não pode ser apontado como um
exemplo aos jovens que frequentam nossos dojos aqui no
Japão. Foi por isso que eu preferi ser injusto com você,
Kenjiro, antes de o ser com Masao Wajima e milhares de
rapazes: Preferi humilhar minha vaidade, afim dos jovens
poderem ter o melhor. Sei que estou prejudicando o
vencedor do shiai, mas pense como eu me sentiria muito
mais prejudicado se não tivesse sido justo em minha decisão.
— Sensei...
— Não me interrompa mais. Quando o Mestre fala, o
discípulo escuta. Depois, quando eu me calar, você falará e
eu o escutarei. Agora me diga se estou equivocado a seu
respeito: É um tipo violento que não gosta de ninguém, não
sabe o que significa a compaixão, a benevolência e não tem
amigos verdadeiros. É uma pessoa que jamais é cortês, por
quê?
— Não sei por que sou assim, Mestre.
— Eu sei por que é assim.
— O senhor sabe? — exclamou Kenjiro. — Diga-me
porque sou como sou.
— Não, não vou falar sobre isso porque quero que
compreenda por você mesmo, ou que pelo menos, que
encontre o caminho que o fará compreender. Contudo, devo
ser sincero, este caminho poderá ser perigoso, poderá levá-lo
até a morte.
— Morrer não é nada, Mestre.
O ancião se calou por segundos antes de responder:
— Melhor seria se dissesse que a morte não é nada para
os vivos, pois todos a desconhecem. Mas a morte deve ser
alguma coisa boa ou má, pior ou melhor do que a vida. Eu
tenho desejos de conhecer a morte. Desejos, mas não pressa,
compreende?
— Sim, Mestre. Eu quis falar que não tenho medo da
morte.
— Bem, assim a coisa já fica melhor explicada. Sei que é
um homem que não tem medo de nada e nem de ninguém.
Porém, agora pergunto: Você seria capaz de fazer algo que
talvez pudesse custar sua própria vida?
— Tudo que o senhor me pedir, Mestre.
— Não estou pedindo, simplesmente o escolhi. Poderia
tê-lo chamado há mais de três dias. Mas pensei que seria
uma injustiça privá-lo do torneio, embora só fosse ganhá-lo
fisicamente. Quis conceder-lhe essa satisfação, antes de pô-
lo no caminho.
Kenjiro Sato o fitou com surpresa.
— Então o senhor já sabia que eu seria o vencedor?
— Sim, mas já estava decidido a conceder o posto a
Masao Wajima e também sabia que você viria aqui para
pedir-me explicações — Sensei sorriu com malícia e
continuou: — Somente você se atreveria a tanto, mas eu
estava à sua espera. Agora pergunto, vai aceitar o trabalho
que tenho para você? Será capaz de arriscar sua vida?
— Aceito, Mestre.
— Na sala, em cima da mesa de chá, há um envelope
branco. Vá buscá-lo, por favor.
Kenjiro voltou quase em seguida e entregou o envelope
ao Mestre.
— Agora, você já pode sentar-se — ordenou o ancião.
O judoca mordeu os lábios e se sentou de pernas
cruzadas, após lhe ter feito uma rápida reverência. Sensei
abriu o envelope e lhe entregou um cartão. Kenjiro o
examinou com cuidado, pois no centro havia uma estrela
negra de seis pontas e no centro desta, dois orifícios que se
assemelhavam a dois olhos esbugalhados como em sinal de
fúria; a boca era formada por uma linha curva com os
extremos virados para baixo, em gesto de hostilidade e
amargura.
— Essa é a marca da Kuro Arashi5 — sorriu o Mestre. —
E todos os meus discípulos... especiais têm o direito de lutar
algumas vezes nas fileiras da Kuro Arashi. Você ainda
desconhecia essa organização porque não me parecia
oportuno informá-lo sobre ela. Porém, hoje, como foi
prejudicado, eu quero dar-lhe a oportunidade de ganhar algo.
Como sabe, tenho muitos filhos, netos e bisnetos espalhados
pelo mundo. Geralmente recebo notícias de todos eles; quase
sempre notícias de índole familiar, mas algumas vezes, estas
5
Literalmente: tempestade negra.
são diferentes, como por exemplo, algum deles informando-
me que algo não vai muito bem em alguma parte do mundo.
Então envio algum de meus discípulos para que faça cair a
“Negra Tempestade” sobre os causadores daquelas
irregularidades. Depois de estudar as informações recebidas,
medito sobre qual discípulo deverei enviar, qual é, dentre
todos, o homem mais indicado para resolvê-las. E nesta
ocasião creio que você é a pessoa indicada para ir a Bangkok
em nome da Kuro Arashi.
— Por quê eu, Mestre? O que devo fazer em Bangkok?
— Escolhi você por causa da raiva que existe em seu
íntimo. É dono de uma violência que lamentavelmente
poderá ser necessária. Na verdade, quase tenho certeza disso,
pois já me mataram dois discípulos naquela cidade.
— Dois?...
— Sim. Primeiro, mandei um aikidoka e depois, um
karateka, quando não tive mais notícias do primeiro. Para
facilitar nossa conversa, chamaremos o aikidoka de “A” e o
karateka de “K”. Ambos apareceram mortos com o crânio
esfacelado por golpes que não foram produzidos por armas.
Tenho um velho amigo chinês em Bangkok, chamado Yun
Tao e foi este quem entrou em contato com meu neto que
está lecionando na cidade e o informou sobre a morte de
meus rapazes. Talvez você esteja se perguntando pôr que não
encarreguei meu neto ou Yun Tao para intervir no caso, mas
a resposta é simples: Não quero que os residentes locais
intervenham, foi por isso que primeiro mandei “A” e depois
“K”... Assim que chegaram, eles entraram em contato com
Yun Tao que os instruiu, contando-lhes tudo que sabia a
respeito. Porém, infelizmente tanto “A” como “K” foram
encontrados mortos em ruelas desertas e ambos com os
crânios esmigalhados por golpes desferidos com as mãos e
punhos. Nada de armas, apenas golpes de mão.
— O que está acontecendo em Bangkok? Por quê o
senhor mandou “A” e “K” para lá?
— Yun Tao conhece... ou conhecia, um tailandês
chamado Tin Maeng que vive ou vivia em uma cabana perto
da sua, às margens do rio Chao Phraya. Certa noite, Yun Tao
ouviu seu vizinho falando com outro homem que não pôde
ver por causa da escuridão e não pôde segui-lo, o
desconhecido afastou-se de lancha. No entanto, do pouco
que pôde ouvir; Yun Tao soube que seu vizinho e o outro
pertenciam a uma organização especializada em assassinatos
internacionais que tem sua sede precisamente em Bangkok.
Como era de se prever, Yun Tao comunicou-se
imediatamente comigo e foi então que enviei “A” para
iniciar as investigações. Porém, dois dias mais tarde, este
apareceu morto. Imediatamente, mandei “K” para prosseguir
com as investigações... e há três dias, recebi pelo correio um
envelope procedente de Bangkok que continha algumas fotos
que você verá agora e, no mesmo dia, recebi uma nota de
Yun Tao comunicando-me que “A” também fora assassinado
e que Tin Maeng estava desaparecido.
— Mestre, se Tin Maeng desapareceu, já não dispomos
de pistas.
— Temos fotos que me foram enviadas por Yun Tao e
junto com elas veio uma informação de meu amigo: Estava
lendo à noite quando um rapaz também desconhecido bateu
na porta de sua cabana e lhe disse que um japonês lhe tinha
entregado um pacote para que o levasse àquele endereço
onde receberia cem bath. Pela descrição que ele fez do
japonês, Yun Tao percebeu imediatamente que se tratava de
“K”. Ficou com o pacote, entregou cem bath ao rapaz, mas
este pouco lhe pôde informar. Só lhe disse que um japonês
que nunca tinha visto antes lhe dera aquele pacote e o
mandara entregar naquela cabana. No dia seguinte, “K”
apareceu morto e por sua vez, Yun Tao nunca mais viu seu
vizinho, Tin Maeng. O que você está pensando a respeito de
tudo que lhe contei?
— Mestre, penso que “K” conseguiu bater essas fotos,
mas alguém percebeu que ele tinha feito essas fotografias e
começou a persegui-lo. Foi então que “K” teve a ideia de
remetê-las a Yun Tao por intermédio do rapaz chinês,
prometendo-lhe algum dinheiro. Enquanto as fotos
chegavam à cabana na beira do rio, ele continuou fugindo,
mas acabou sendo assassinado por seus perseguidores.
Também se pode pensar que “K” o mantinha sob vigilância;
resolveu mata-lo e fugir em seguida. Yun Tao recebeu as
fotos e as remeteu para o senhor, informando que o vizinho
havia desaparecido. Talvez foi isso que aconteceu e agora, só
nos resta uma pista: essas fotografias que “K” conseguiu
bater antes de ser morto.
— Kenjiro, você observou como é fácil pensar quando se
usa a inteligência com que se foi dotado? Você disse
exatamente o que pensei.
— Minha inteligência não pode ser igual a sua, Mestre.
— A inteligência não, mas o seu modo de raciocinar.
Então, quer ir a Bangkok para ver o que aconteceu com meus
dois discípulos?
— O que ganharemos com isso?
— Essa é a nossa diferença, o nosso modo de pensar. Em
certas ocasiões peço dinheiro às pessoas que se beneficiam
com o apoio da Kuro Arashi, mas esse dinheiro é destinado a
obras beneficentes. Em outras ocasiões, não podemos pedir
dinheiro a ninguém, mas se realmente existe uma
organização especializada em crime, podemos destruí-la.
— Sim, mas eu também poderei ser assassinado como os
outros dois.
— Prometo que se isso acontecer, já não enviarei um só
judoca, mas organizarei uma verdadeira expedição. E se
você precisar de ajuda, Yun Tao a prestará. Ele saberá
quando você vai chegar e poderá localizá-lo no “Hotel
Montien”.
— Mestre, porque está fazendo tudo isso?
— Porque eu já alcancei, o satori, Meu filho.
Kenjiro olhou para Sensei com surpresa. O que o satori
tinha que ver com toda aquela embrulhada que mais parecia
uma aventura incrível? Satori era como um estado de graça,
como a compreensão da Verdade e da Vida. O momento
quando a luz dá compreensão pode dotar o espírito de cada
pessoa e quando um homem alcança esse estado de graça,
também alcança o satori que dissipa todas as suas dúvidas
dando-lhe grande paz interior que o faz aceitar-se tal qual é.
E quando alguém vive uma paz interior tem mais facilidade
de viver em paz com seus vizinhos, amigos e até estranhos,
pois será mais tolerante com seus erros e poderá dar-lhes
mais amizade, mais amor e compreensão.
— Mestre, não me surpreendo e talvez algum dia eu até
entenda o significado real do satori — sussurrou Kenjiro. —
Posso ver essas fotografias que “K” bateu antes de morrer?
O Mestre entregou-lhe as fotos e Kenjiro Sato começou a
folheá-las, mas logo em seguida seus olhos se desorbitaram e
ele olhou para Sensei que sorria um sorriso malicioso por
saber qual o motivo de seu espanto.
— Ela é uma flor, não é, Kenjiro?
O rapaz confirmou sacudindo a cabeça, sem desviar os
olhos da foto. A moça que aparecia em primeiro plano era
muito linda, tinha as feições doces, delicadas, que só podiam
ser comparadas à beleza de uma flor. Seus olhos eram
negros, brilhantes e alegres; os lábios eram sensuais,
polpudos e carnosos, mais pareciam um convite a beijos de
amor. Usava um chapéu com muitas pontas retorcidas que
parecia banhado a ouro, e tinha uma rosa vermelha do lado,
o vestido também era de coloração forte, com decote amplo
que deixava os ombros completamente desnudos.
Kenjiro Sato sorriu e olhou para Sensei.
— O nome da deusa é Mai Korang, uma bailarina
tailandesa. Tem dezessete anos. Somente isso se sabe dela,
mas Yun Tao está fazendo algumas averiguações em
Bangkok e quando você chegar lá, ele o porá a par de tudo
que descobriu.
O rapaz olhou novamente para a fotografia e depois para
as outras, mas todas lhe pareceram iguais: A moça dançando
no primeiro plano e ao fundo os rostos de vários homens que
estavam sentados em torno de uma mesa que tinha várias
garrafas e copos.
— Pelo que se pode deduzir, “K” bateu as fotos dessa
bailarina porque ela deve saber algumas coisas que nos
interessam.
— Não tire conclusões precipitadas — refutou o Mestre.
— “K” não pôde informar-nos o que pode significar essas
fotos e eu penso que devem ser importantes para se descobrir
o que desejamos saber. Logicamente, se ele fotografou Mai
Korang e teve o cuidado de mandar as fotos a Yun Tao é
porque achou que, de um modo ou outro, poderiam ser
aproveitáveis para o esclarecimento das sindicâncias que
vinha realizando.
— E quando devo sair para Bangkok?
— Imediatamente se desejar. Dentro do envelope já está
o dinheiro para suas despesas. E seja prudente.
— Nos gastos?
— Com sua vida. Não gostaria de perder o terceiro
discípulo. E por favor, não se valorize, pense que “A” e “K”
também eram ótimos.
— Não tanto, porque ambos se deixaram matar
facilmente, eu destruirei os espertalhões; vou reduzi-los a
partículas, de pó.
— O pó também é matéria, Kenjiro. Acho que escolhi
você somente porque creio que em Bangkok há alguns tipos
que estão precisando enfrentar-se com alguém que abriga
muito ódio e ressentimentos em seu íntimo, mas, por favor,
seja clemente com eles, meu filho.
— Mestre, não me peça isso! Vou destroçar todas as,
pessoas que estiverem envolvidas no caso. Como me
encontrarei com Yun Tao?
— Quando o avião pousar, ele estará à sua espera no
aeroporto Don Muang de Bangkok.
— E a bailarina tailandesa?
— Ela trabalha no clube noturno do Hotel Montien, onde
você ficará hospedado. Mas é bom que seja cuidadoso
porque não sabemos o que pode estar acontecendo naquela
cidade. Espere alguns minutos mais, vou tentar obter mais
algumas informações e ficarei mais tranquilo sabendo que
parte para Bangkok com todas, as garantias... razoáveis para
regressar a Tóquio.
Minutos mais tarde, o Mestre escutava o ronco da
“Honda 750” afastando-se velozmente. O ancião levou
alguns minutos em meditação contemplando os últimos
passarinhos do dia e pensando:
— Não sei se acabo de enviar um tigre para eliminar
alguns gatos ou se acabo de enviar um gatinho ao covil dos
tigres. Só sei uma coisa com certeza, minha intenção em
relação a Kenjiro Sato é muito boa. Oxalá ele consiga
compreender e obter o que desejo!

CAPÍTULO TERCEIRO
A beleza da noite

O que vale mais no tigre: sua força ou sua astúcia?


Kenjiro Sato também pensou: mais parecia um gatinho
que estava sendo mandado a um covil de tigres esfaimados e
que, portanto, devia ocultar sua força, a fim dos inimigos não
poderem avaliá-la.
Quando o avião pousou no aeroporto de Don Muang, um
dos primeiros passageiros a pôr os pés em terra foi um turista
japonês que estava munido de câmara fotográfica, fotômetro
e outra quinquilharias ligadas à fotografia, que comumente
somente os turistas costumavam usar.
O turista japonês chamava a atenção de todo os olhares,
principalmente dos femininos; era um homão de um metro e
setenta de altura, ombros largos, tórax musculoso e mãos
fortes que poderiam abarcar meio mundo com um único
movimento: O tipo além de bonito, vestia-se esportivamente,
usando calça branca, um boné de aba, camisa listrada de
cores variadas e tênis branco.
A Tailândia estava ensolarada e calma após a rebelião
estudantil, quando vários jovens tinham sido mortos, porém
os japoneses sempre seriam bem-vindos àquela terra. E mais
uma vez, o Mestre mostrava que embora sendo ancião
continuava a mesma pessoa inteligente que sempre fora.
Poderia ter mandado um judoca de qualquer nacionalidade,
mas não, os três que tinham chegado em Bangkok eram
japoneses.
Os dois primeiros foram assassinados a golpes de mão e o
que Sensei faria se o terceiro tivesse um fim semelhante?
Enquanto procurava ver Yun Tao entre as pessoas que
estavam no aeroporto, Kenjiro Sato continuava pensando:
“Será que também iam matá-lo brutalmente? E quem
poderia fazer isso? Somente alguns homens que fingiam ser
karatekas, porque um verdadeiro seguidor do Karatê jamais
participaria de uma organização criminosa. Miseráveis! Se
eu conseguir colocar minhas mãos em cima de vocês, juro
como verão o que pode fazer um quinto Dan de Judô”.
E Mai Korang? Que mulher mais linda! Durante o voo,
muitas vezes pensara na beleza que tinha visto nas fotos. Era
quase uma adolescente, pois o Mestre falara que estava com
dezessete anos. Os retratos estavam guardados no fundo da
mala, mas ele não precisava apanhá-los... enquanto vivesse
não iria esquecer-se daquele rostinho encantador que tinha
dois olhos repousantes, brilhantes e cheios de vida.
Não viu Yun Tao em parte alguma.
Kenjiro olhou para o relógio do aeroporto, um relógio
grande, e decidiu esperar mais alguns minutos. Para passar o
tempo, comprou um guia da cidade e começou a estudá-lo,
tentando localizar a cabana de Yun Tao, às margens do rio
Chao Phraya e também, o dojo do neto de Sensei que estava
localizado em uma das artérias mais centrais de Bangkok.
Esperou até as sete horas da noite e Yun Tao não
apareceu. O sangue de Kenjiro queimava nas veias. Se o
idiota aparecesse de repente, era capaz de partir sua cara! O
que o chinês estava pensando dele? Que viajara para ficar
parado dentro de um aeroporto, bancando o besta durante
quase três horas, esperando por um imbecil? Ele que fosse
para os rincões do inferno!
Saiu do aeroporto e apanhou um ônibus que o levasse à
cidade e em nenhum instante, deixou de xingar o chinês
mentalmente, jamais alguém o tinha tratado com tanta
indiferença!
Claro que também não o aguardava no “Hotel Montien”.
Ou quem sabe se ambos até não se tinham cruzado e não se
reconheceram? Pouco provável porque como o Mestre lhe
tinha descrito Yun Tao, também devia tê-lo descrito para o
chinês.
— Vou transformar esses bastardos em montes de
estrume que secam nas estradas! — murmurou, entredentes
quando transpunha a porta do hotel.
O “Hotel Montien” era de primeira classe e
proporcionava o máximo de conforto a seus hóspedes. Eram
pouco mais de oito e meia e Kenjiro já percorrera quase todo
o hotel e jantado em um de seus restaurantes. Já visitara as
boutiques, salão de cabelereiro, saunas e massagens. Só
faltava o clube noturno que ainda continuava fechado.
Voltou a seu apartamento, levantou o fone do telefone e
pediu uma linha. Discou um número. Imediatamente uma
voz de homem atendeu e perguntou algo que Kenjiro não
entendeu. Não falava o tailandês, só o inglês e o francês. A
voz continuava perguntando e ele não entendendo.
Finalmente, decidiu falar em japonês:
— Quero falar com Osamu Inomura.
— Sou eu mesmo.
— Eu sou Sato.
— Seja bem-vindo a Bangkok.
— Muito obrigado. Eu não me encontrei com Yun Tao.
Inomura não respondeu imediatamente e quando falou,
perguntou:
— Onde você está, Kenjiro?
— No hotel.
— Não saia daí porque eu lhe telefonarei dentro de
minutos.
A comunicação foi cortada. A raiva do judoca
recrudesceu. Então era assim? Todos pensavam que ele fosse
um fantoche ou um escravo pronto para receber ordens? Não
admitia que nem mesmo o neto do Mestre o tratasse dessa
forma!
Ficou parado no meio da saleta olhando para o telefone e
decidiu:
— Vou conhecê-la! — disse em voz alta.
Saiu do apartamento e foi diretamente ao clube do hotel.
Por quê todos os outros não faziam as coisas corretamente?
Quando um homem diz que vai estar em tal lugar à tal hora,
não pode faltar!
Ainda bem que o ambiente do clube parecia agradável.
Havia pessoas de todas as raças lá dentro. Norte-americanos
brancos, branquelas, e também brancos de outras
nacionalidades, além de hindus, malaios, chineses,
holandeses. Uma mulher indiana: que estava vestindo um
sari azul ficou olhando para ele com muito interesse; mas
quase em seguida, pressentiu que alguém o fitava. Virou-se e
viu duas americanas louras, com os cabelos amarelos, feios,
asquerosos que o faziam lembrar-se de molhos de palha
ressequida.
Ao sentar-se em uma das mesas mais afastadas do salão,
ele se perguntava o porquê de aquelas duas idiotas
continuavam olhando para ele.
A orquestra estava no palco e tocava um fox americano.
Um camareiro aproximou-se e ele pediu:
— Uma tônica.
Alguns casais estavam dançando. Todo mundo fumava e
bebia. Como a humanidade era podre: beber e fumar para
arruinar a saúde e a vitalidade de um corpo sadio. Não fazia
nem vinte e quatro horas que não se exercitava e já
começava a sentir falta dos exercícios. Uma mulher branca,
presumivelmente holandesa o fitava fascinada. Ela já devia
ter uns quarenta e cinco anos e quando Kenjiro compreendeu
o significado daquele olhar embevecido, desviou o seu.
Como as pessoas eram porcas!
O camareiro trouxe-lhe a soda e ele começou a bebericá-
la, lentamente. Na realidade preferia estar bebendo água pura
e fresca! Porém estava em um bar de luxo e a contingência o
forçava a pedir algo.
Não entendia como aquelas pessoas podiam divertir-se.
Deviam ser cretinas ou hipócritas. Todas sorriam, riam e
alguns pares continuavam dançando.
Depois a orquestra deixou o tablado. Um homem e uma
mulher cantaram uma canção de sucesso. Depois, veio um
mágico acompanhado de uma auxiliar que estava
praticamente nua. Os presentes os aplaudiram com calor.
Kenjiro contemplava a tônica que continuava no copo.
Depois a orquestra retornou ao tablado e todos recomeçaram
a dançar.
Finalmente! Até que enfim, Mai Korang apareceu! Houve
um instante de silêncio e logo em seguida, todos a
aplaudiram, antes mesmo dela iniciar sua atuação. A
orquestra começou a tocar, mas Kenjiro não a ouvia. Seu
olhar estava fixo na dançarina que se movimentava com uma
graciosidade, uma leveza indescritível. Jamais! Jamais vira
uma mulher tão linda, nem mesmo quando foi assistir uma
apresentação de gueixas!
Sem se dar conta, ele se levantou da mesa e se aproximou
do palco para contemplar a moça mais de perto. Kenjiro
estava enfeitiçado e não podia afastar os olhos de Mai
Korang.
E de repente, ela o fitou, talvez por puro acaso, mas
olhara para ele! Até então, ela dançava, com um sorriso
muito doce nos lábios e seu rosto parecia o de uma boneca,
mas quando seu olhar se cruzou com o de Sato os olhos de
Mai Korang brilharam com mais intensidade e algo muito
especial parecia ter acontecido no mundo.
A dança chegou ao fim e ela foi muito aplaudida. Kenjiro
tinha certeza de que olharia de novo para ele antes de retirar-
se definitivamente. E foi o que aconteceu. Um olhar rápido,
breve, que só poderia ser captado por alguém que o estivesse
esperando. Em seguida, ela desapareceu por trás das cortinas
e o judoca teve a impressão de que todas as luzes do mundo
se apagavam em um mesmo momento.
Esperou mais um pouco e depois, voltou a sua mesa.
Soltou algumas cédulas em cima da toalha e abandonou o
clube noturno do “Hotel Montien”.
Agora sabia o que deveria fazer em primeiro lugar. Era
um homem inteligente e não precisava que alguém viesse
orientá-lo.
CAPÍTULO QUARTO
Uma visita à cabana de Yun Tao

A lancha parou em frente à cabana que fora construída


sobre colunas à margem de um dos canais que cortavam a
cidade de Bangkok, também chamada de “Veneza Asiática”,
cujos klong sempre acabavam desembocando no Chao
Phraya ou o “Grande Rio” como também era conhecido. A
cidade tinha mais de trezentos templos dourados que se
mantinham iluminados durante as noites e eram suas luzes
que se refletiam nas águas dos klong dando-lhes um colorido
variado.
Isso só acontecia dentro da cidade propriamente dita,
porque nos canais mais afastados, onde havia grandes
agrupamentos de cabanas, tudo era escuridão.
A de Yun Tao estava escura e silenciosa. Kenjiro até
pensou em voltar para o hotel, a fim de esperar a chamada de
Osamu Inomura, mas evidentemente não foi isso que fez.
— Espere-me aqui — ordenou ao dono do barco.
O tailandês entendeu seu francês e concordou com a
cabeça. Kenjiro subiu a escada de madeira limosa com
cuidado, pois facilmente alguém poderia escorregar pelos
degraus. Quando acabou de subi-la, viu somente uma cabana
pequena que tinha uma janela sem postigos e um vão na
parede sem a porta, ambos fechados somente por cortinas
esfarrapadas.
— Yun Tao — chamou Kenjiro, mas não obteve resposta.
Aproximou-se da porta, afastou a cortina e entrou na
choupana.
— Yun Tao?
Silêncio. E de repente, sentiu o mau cheiro, o fedor de
corpo apodrecendo. O mau cheiro estava tão forte que ele
tampou o nariz com as mãos, enquanto lágrimas lhe
escorriam pelo rosto. Sentia náuseas horríveis.
E foi naquele momento que pressentiu um movimento às
suas costas, perto da porta de entrada. Voltou-se velozmente
e viu a sombra que caía sobre ele.
A reação do judoca foi instantânea e fulminante. Inclinou
o ombro esquerdo e o encostou-se ao ventre da sombra, seu
braço esquerdo passou por entre as pernas do sujeito e subiu
pelas costas, enquanto a mão direita o segurava pelo peito do
blusão. O silêncio foi rasgado por um grito de pavor,
enquanto o corpo ia estatelar-se contra a parede que chegou a
estremecer com o peso do homem.
Naquele mesmo instante, outra sombra se lançava contra
o judoca que girou ligeiramente o corpo para evitar um
choque maior, mas aproveitou a oportunidade para pegar sua
roupa com a mão esquerda, levantou-o do chão e o jogou de
encontro à parede de madeira.
Novamente estas estremeceram e no mesmo instante,
ouviu-se o ruído do motor da lancha afastando-se
rapidamente. O tailandês devia ser daqueles que pensavam
que cada homem devia resolver seus próprios problemas.
Kenjiro procurava aspirar fundo para normalizar a
respiração quando recebeu uma joelhada sobre os rins. Outra
pessoa em seu lugar certamente teria caído, mas ele apenas
deu dois passos à frente e se virou velozmente. O terceiro
agressor não teve tempo para defender-se e rugiu de pavor
quando também se sentiu voando de encontra à parede.
Kenjiro só teve tempo de retroceder quando viu o brilho
do aço que vinha em sua direção, mas tropeçou em alguma
coisa que estava no chão e caiu de costas.
Escutou homens falando à sua volta. Não compreendia o
que falavam, mas sabia que eles queriam matá-lo. Não se
levantou e o tipo que empunhava a faca tentou esfaqueá-lo.
Kenjiro apenas encolheu as pernas e as distendeu, fazendo
com que fossem chocar-se contra o ventre do assaltante,
enquanto sua mão direita segurava o desconhecido pelos
cabelos e também o projetava de encontro à janela, em um
perfeito tomoe nage.
Naquele instante ouviu uma voz gritando: Kenjiro,
aguente firme por que nós já chegamos!
Várias vozes falavam ao mesmo tempo na escuridão.
Fssss! A faca passou silvando e Kenjiro soltou um gemido
quando o aço gelado penetrou em suas costelas. Puxou o
cabo rapidamente e foi nesse instante que alguns homens
entraram na cabana, enquanto outros procuravam fugir.
O judoca soltou o punhal no chão e tentou impedir que
fugissem, mas agora estava perdendo muito sangue e sua
cabeça estava zonza.
Osamu Inomura acendeu uma lanterna e o rapaz
reclamou:
— O que está pretendendo? Que deixar-me cego?
Inomura continuou contemplando o judoca que estava
com as mãos manchadas de sangue sobre o rosto, procurando
proteger os olhos da luz. Em seguida, abaixou o foco
luminoso para o chão e viu o cadáver.
— É Yun Tao — murmurou.
Kenjiro se ajoelhou ao lado do corpo e ficou olhando para
o rosto que estava rígido, mas parecendo entalhado em
madeira envelhecida. Os olhos do chinês estavam abertos,
mas já não havia luz alguma neles, pareciam duas bolas de
vidro sujo.
— Quando você me disse que Yun Tao não estava no
aeroporto, imaginei que tivesse havido alguma coisa com
ele. Desconfiei logo que o tivessem assassinado e que seus
matadores continuassem aqui na cabana, esperando capturar
um de seus amigos. Querem saber tudo sobre o chinês.
— O que você está falando, Osamu? — resmungou
Kenjiro.
— Tenho certeza que Yun Tao cometeu alguma
imprudência que chamasse a atenção daqueles homens e por
isso, vieram até aqui para capturá-lo com vida, mas o velho
chinês lutou até a morte. Seus assassinos continuaram aqui,
esperando por algum de seus amigos. Estão querendo saber o
que Yun Tao fazia, o que sabia e sabem seus amigos.
Quantos homens estavam aqui quando você chegou?
— Não sei, mas seis ou sete e talvez você tenha razão...
porque logo de início, eles não tentaram matar, apenas me
atacavam com mãos, mas quando perceberam que eu tenho
mais técnica, apanharam as facas.
— Você não é nada modesto, Kenjiro.
— Eu poderia ter acabado com todos eles se não tivessem
chegado em momento tão inoportuno!
— Pois eu acredito que ele o teriam apunhalado se não
tivéssemos vindo.
— Bah! — disse o judoca com menosprezo.
Osamu Inomura riu e desviou a lanterna, deslizando o
foco de luz por toda a choupana e então que viu um outro
homem caído no chão.
Era de raça asiática, talvez tailandês. Abaixou-se perto
dele e o examinou.
— Está morto e tem a espádua fraturada — comunicou.
— Certamente foi o que recebeu o yama arashi —
esclareceu Kenjiro.
— É bom a gente ir embora de uma vez, antes que o
homem da lancha volte com a polícia. Já percebeu que se
você fosse menos afoito, poderíamos capturar alguns deles
ainda vivos?
— Osamu Inomura, é bom que saiba que eu sempre faço
o que quero! Por isso, deixe-me, em paz!
— Vamos apanhar minha lancha. Iremos ao dojo para ver
essa ferida.
— E Yun Tao?
— Nada mais podemos fazer por ele... As autoridades
farão seu enterro.
— Seu avô avisou-me que não queria moradores de
Bangkok intervindo diretamente caso.
— Você vai voltar ao hotel?
— Não se preocupe comigo porque posso arranjar
sozinho.
Os dois se levantaram e caminhavam para porta, Osamu
um pouco mais atrás que o judoca; de repente, ele levantou a
mão e aplicou tegatana ate na nuca do convencido.
Tudo aconteceu tão rápido que Kenjiro Sato nem
percebeu o que estava acontecendo.
CAPÍTULO QUINTO
A casa de Yam Prang

Mai Korang subiu ao palco e seu coração disparou


quando viu o rapaz japonês sentado a uma das mesas do
salão. As pernas também começaram a tremer e ela teve
medo de nem poder apresentar seu número àquela noite.
Tinha pensado algumas vezes no turista japonês, mas, há três
noites ele não aparecia no clube do hotel.
Estava tão absorta que não ouvia os aplausos; não via
nada além dos olhos negros do homem que a fitava com
muito interesse.
Quando os aplausos estouraram, a jovem teve a
impressão de estar voltando de um sonho e quando
caminhava para o camarim parecia que os pés nem tocavam
no chão. Estava em um mundo irreal, de fantasia e chegou a
se surpreender quando Yam Prang surgiu à sua frente: como
sempre tinha permanecido ali, esperando que ela terminasse
o número.
E como sempre, foi reunir-se a ela no camarim. Podia ser
apenas uma casualidade, mas já tinha notado que ele sempre
entrava em seu camarim no instante em que estava
completamente nua, sem os trajes que usara para dançar e
quando se preparava para vestir suas roupas comuns.
Casualidade ou não, ela notara esta coincidência, e por
isso, aprendeu como utilizar o biombo adornado com
motivos chineses e se Yam a olhasse por cima deste, apenas
poderia ver seus ombros, pescoço e cabeça.
Yam Prang devia ter uns trinta e cinco anos, era alto,
magro, elegante e forte. Sobre essa força não tinha mais
dúvidas desde o dia em que o vira curvando uma barra de
ferro para fazer uma pequena demonstração às crianças,
enquanto ria, divertido.
— Ainda está faltando muito, Mai? — perguntou,
espiando por cima do biombo.
— Não. Já estou quase vestida e sairei em seguida, Yam.
— O homem se sentou em uma das poltroninhas e
acendeu um cigarro americano. Ela adorava o cheiro
daqueles cigarros americanos. Será que o turista japonês
também fumava cigarros perfumados?
— Hoje você esteve magnífica! — disse Yam Prang, de
repente.
— Pensei que eu sempre dançava bem — riu a bailarina.
— É verdade. Você sempre dança divinamente, foi por
isso, que eu consegui esse contrato no “Hotel Montien” para
você se apresentar diariamente no clube. Mas hoje você
dançou diferente. Você não estava sentindo alguma coisa?
— Claro que não. Por quê me faz esse pergunta?
— Bem, você não é tola e sabe das facilidades que
existem em Bangkok: É só a gente descuidar-se um
pouquinho e logo aparecem as drogas.
— Pare de falar tolices! — exclamou Mai.
A moça acabou de vestir-se e apareceu no centro do
camarim, terminando de abotoar o vestido branco, vaporoso,
que estava usando. Era jovem de corpo muito bem feito e
qualquer peça que vestisse, esta sempre lhe ficava bem e
destacava a sinuosidade do corpo que Yam Prang conhecia
perfeitamente, pois muitas vezes a tinha visto despida e de
outras vezes, apenas as peças mais íntimas. Agora, naquele
instante, ele pensava se Mai não o estava evitando
propositalmente... parecia que ela fazia de tudo para impedir
que ele a visse despida ou com pouca roupa. Ela teria
pressentido que seu sangue vivia fervendo quando eles
estavam juntos?
— Yam, já podemos ir.
O carro estava no estacionamento do hotel. Era um
modelo antigo, americano, que Yam comprara há pouco
mais de um ano de um chinês que precisou sair
precipitadamente de Bangkok. O carro viera em uma hora
muito boa, aliás. Ultimamente não podia queixar-se da vida
que estava levando. As oportunidades boas de uma saída são
poucas e quando alguma se aproxima, deve ser agarrada com
as duas mãos e com toda força.
— Vou deixá-la em casa e sair em seguida — avisou
Yam Prang, abrindo a porta do camarim. — Não posso
perder um instantinho de meu tempo. E depois...
Calou-se quando viu um japonês parado no meio do
corredor, com um ramo de flores na mão. Era mais baixo do
que ele, estava usando um terno bege de corte impecável e
sua expressão era amigável. O chinês não prestou atenção
em seus ombros, mãos ou pescoço que pareciam talhados em
alabastro. Só olhou para a cara do sujeito quando o ouviu
falar em francês irrepreensível:
— Senhorita Korang, sou um admir...
— Afaste-se! — disse Yam. Prang, pondo a mão em seu
braço e o empurrando.
O japonês continuou no mesmo lugar e sorrindo.
— Só tento expressar minha admiração pela senhorita
Ko...
— Já o mandei afastar-se! — agora Prang quase gritou,
empurrando-o com mais força.
Teve a impressão de querer mover um encouraçado que
estivesse enterrado na areia. Só então, olhou para o japonês
com surpresa e o empurrou de novo, mas Kenjiro não olhava
para ele, seus olhos continuavam fitando Mai Korang que
agora estava muito mais pálida.
— Senhorita, meu nome é...
— Já disse para afastar-se! — rugiu Yam Prang,
empurrando-o com mais força e obtendo mesmo resultado.
O judoca dessa vez olhou para ele e Prang viu algo no
fundo de seus olhos que o assustou e sua reação foi algo
inexplicável. Disparou o punho contra o homem
desconhecido, gritando:
— Eu já mandei você desaparecer daqui! A cabeça de
Kenjiro oscilou e isso foi tudo. Prang começou a se sentir
mais aterrorizado quando viu aquela luzinha fosforescente
surgir no fundo das pupilas do desconhecido.
— Por favor, senhor — interveio a moça, em francês. —
Por favor, afaste-se.
O japonês olhou para ela, como se já nem se lembrasse de
Prang. Inclinou a cabeça e se afastou. O chinês continuou
parado no mesmo lugar, como se não tivesse entendido o que
havia acontecido. Sentia um nó na garganta e um frio
estranho no estômago.
— Quem é ele? — quase gritou. — De onde você o
conhece?
— Não o conheço, mas creio que estava no clube esta
noite.
— Não quero que você aceite as atenções de quem quer
que seja. De ninguém! Entendeu?
— Sim, Yam. Você sabe que eu sempre o obedeço.
O japonês havia desaparecido e o chinês se sentiu mais
calmo. Olhou à volta e respirou mais aliviado: ainda bem
que ninguém tinha presenciado o incidente. Pouco depois,
cruzavam o vestíbulo e saíam à rua. Apanharam o carro e
rodaram para casa.
Quinze minutes mais tarde, chegavam à avenida onde,
um ano atrás, Yam Prang comprara uma casa em centro de
terreno e cercado por jardins.
Entrou pelo portão e manobrou o carro para deixá-lo
virado para a saída, pois de forma alguma poderia faltar
àquela reunião que lhe poderia proporcionar grandes
vantagens. Melhores do que todas que vinha conseguindo
nestes últimos tempos. Agora estavam organizando os
grupos de assassínio e ele, Yam Prang, já estava chefiando
um desses. Talvez, depois da reunião, fosse mandado para
Hong Kong, Tóquio ou até mesmo, aos Estados Unidos. Não
queria pensar nessas possibilidades, as coisas estavam muito
boas para ele e um homem inteligente tem que agir com
inteligência e calma.
— Você nem precisa entrar — disse Mai Korang. — Eu
posso...
— Não, vou entrar para ver os meninos.
Mai mordeu os lábios, contrariada. Sabia que ele não
estava interessado nas crianças, mas queria ficar mais tempo
com ela. Já era tarde e os meninos deviam estar no bom do
sono.
E não errara ao prever isso, pois todos os cinco dormiam
profundamente em um mesmo quarto que Yam tinha
mandado pintar com motivos alegres. Pelo chão e pelas
cadeiras muitos brinquedos, quase todos americanos. Yam
Prang somente tinha acendido a lâmpada do corredor. Parou
perto da porta, viu-os dormindo nas cinco caminhas e sorriu:
Mai Korang também estava sorrindo quando lhe disse:
— Eles estão bem e você já pode ir descansado.
Yam inclinou-se para ela e lhe perguntou:
— Por quê todas as noites você fecha a porta de seu
quarto à chave?
A jovem não respondeu e ficou muito séria quando o
homem deslizou a ponta dos dedos pelo seu rosto. Em
seguida, ele saiu da casa sem nem olhar para a velha
serviçal. Sabia que quando voltasse, Na Paeng estaria
dormindo. Mai também deveria estar dormindo, mas a porta
de seu quarto certamente estaria chaveada. Qualquer noite
dessas ia perder o resto da calma e romperia aquela
fechadura com um só golpe!
Saiu da casa e entrou no carro... quando ia ligar a chave
de contato, uma mão passou rente a seu rosto. Yam não teve
tempo para nada porque logo em seguida, o braço começou a
apertar seu pescoço. Tanto o braço quanto a mão pareciam
de aço. Em seguida uma segunda mão se juntou à primeira e
ele pressentiu que seria estrangulado.
— O que é... — ainda tentou esbravejar.
Porém a pressão das mãos aumentou. Procurou livrar-se
delas, mas foi inútil. Conhecia alguns golpes de judô e viu
que estava recebendo um hadaka jime perfeito
Olhou pelo espelho retrovisor e viu que seus olhos já
estavam arregalados, não conseguia encontrar ar para
respirar e... também viu seu agressor, o mesmo japonês que
estava no corredor para entregar um ramalhete de flores a
Mai.
Simulando que estava praticamente fora de combate,
procurou apanhar a “Derringer” que sempre trazia no bolso
interno do casaco. E aí tudo piorou. A pressão diminuiu na
garganta, pois o japonês soltou seu pescoço, mas com a mão
esquerda apertou a direita de Yam, impedindo-o de segurar a
arma, colocou a sua direita sobre a nuca do chinês e a
apertou fazendo-o mover o pescoço rapidamente. A dor foi
intensa e Kenjiro logo a seguir, socou sua cabeça diversas
vezes no guidão.
Yam Prang estava aterrado. Sentia o sangue escorrendo
pelo rosto e de repente, ficou completamente relaxado, como
se estivesse morto.
Kenjiro Sato levantou-se com facilidade e o pôs no banco
traseiro. Sentou-se ao volante do carro, ligou a chave de
contato e saiu do jardim. Seis ou sete minutos mais tarde,
reaparecia a pé. Atravessou o jardim e bateu à porta.
— Quem é? — perguntou uma voz meiga.
— Sou um amigo do dono da casa — respondeu em
francês. — Ele acaba de sofrer um acidente.
Depois ouviu vozes excitadas e quase em seguida, a porta
foi aberta.
— O que aconteceu com... — começou Mai Korang, mas
se calou bruscamente ao reconhecê-lo.
A seu lado estava a velha Na Paeng, que parecia muito
assustada com a presença do jovem japonês. Porém, este
somente tinha olhos para Mai, que estava usando apenas um
quimono azul, transparente.
De repente, Kenjiro Sato sorriu, meteu a mão direita
dentro do paletó e apanhou o ramalhete de flores; já bastante
amarrotado...
— Com minha admiração, senhorita Korang.
Mai esboçou um sorriso luminoso ao aceitar as flores.
— Obrigada. Lamento pelo que aconteceu no clube.
— Aquilo não teve importância.
— O senhor assustou Na Paeng. Ela pensou que tivesse
dito que o dono da casa sofreu um acidente. Suponho que
usou esse ardil para lhe abrirmos a porta.
— As pessoas velhas geralmente não escutam muito bem
— sorriu Kenjiro. — Permite que eu entre?
— Não! Por favor, não! Agradeço-lhe pelas flo...
Kenjiro Sato a empurrou suavemente e entrou na casa,
fechando a porta em seguida. A velha Na Paeng falou
alguma coisa em tailandês e Mai lhe respondeu no mesmo
idioma. O judoca olhou para ambas e sorriu divertido.
— Por favor, enquanto estiverem em minha presença só
poderão falar em francês, inglês ou japonês. Só entendo e sei
falar esses três idiomas. Há alguém mais em casa?
— Alguns criados que...
— Não, sei que não há mais ninguém — atalhou-a,
sorrindo. — Mande essa velha deitar e que não nos aborreça
tão cedo.
A empregada começou a falar novamente em tailandês e
Mai começou a negar com a cabeça. A testa de Kenjiro ficou
cheia de rugas leves que demonstravam contrariedade;
levantou o dedo indicador da mão direita e o apontou para
Na Paeng. A anciã soltou um grito e se lançou contra o
visitante, brandindo um pequeno punhal de aço brilhante.
Nos primeiros segundos, ele pareceu surpreso e
sobressaltado, retrocedeu rapidamente e a anciã perdeu o
equilíbrio, caiu de joelhos a seus pés e ainda deixou a faca
escorregar até o chão.
Kenjiro deu dois passos e se aproximou dela e deixou a
mão cair em seu ombro. Mai Korang começou a gritar e lhe
dar alguns tapas e tabefes. O rapaz nem lhe deu atenção, mas
apertou os nervos que estavam alojados nos ombros de Na
Paeng, perto do pescoço. A velha perdeu os sentidos em
frações de segundo. A moça ficou apalermada, mas quando
reagiu, recomeçou a agredir o rapaz com tapas, unhadas e
tabefes.
Kenjiro Sato não era homem de contemplações. Segurou-
a pelos cabelos que estavam soltos e praticamente jogou-a no
chão. O golpe foi rápido é brusco e quando Mai se preparava
para sentar-se, sentiu as mãos masculinas em seu peito e em
seguida foi posta de pé. Com aquele movimento bruto, o
quimono rasgou, deixando-a praticamente despida. Kenjiro
ficou maravilhado com a visão que estava à sua frente: Mai
Korang, primeiro ficou vermelha como uma papoula, depois
cruzou os braços, procurando encobrir os seios e saiu
correndo para a escada que ia dar nos dormitórios.
Kenjiro jogou longe os pedaços de pano que tinha nas
mãos e com duas passadas pôde segurá-la novamente pelos
cabelos negros, lustrosos e longos que caíam pelos ombros e
costas. Fez com que ela ficasse à sua frente e disse:
— Acho que chega de fazer tolices, Mai Korang! Posso
degolá-la e matar todos os habitantes desta casa em questão
de minutos! Vocês não são os únicos que sabem matar!
A moça contemplou-o com perplexidade e estupefação.
— Do que está falando? Quem... está matando?
— Digo que já chega de tantas asneiras! Não tolero
maltratar mulheres, principalmente quando uma é jovem e a
outra é quase decrépita! Agora quero que me diga quem
matou Yun Tao!
— Eu... não sei... do que está falando.
— Escute uma coisa, flor: Meus amigos viviam dizendo
que eu tenho um gênio horroroso e eu negava, mas creio que
não me conhecia muito bem. Meu sangue está fervendo e
não me aborreça mais! Só me dê as informações que preciso
para poder vingar a morte de dois judocas e de um chinês
que se chamava Yun Tao.
— Eu não sei do que está falando.
— Sei que sabe e também sei que você faz parte do
grupo. E foi por isso que a fotografaram diversas vezes! Não
tenho outra pista. Você deve me dar as informações que
estou procurando! Fale ou eu arrebento seus ossos!
— Não sei do que está falando!
Mai começou a chorar, mas outras pessoas também
estavam chorando dentro daquela casa.
Kenjiro Sato teve a impressão de ter recebido uma
bofetada. Soltou os cabelos da moça, olhando para todos os
lados... quando olhou para o alto da escada, viu meninos,
todo eles chorando e chamando Mai e Na aos gritos. Olhou
para Mai Korang e a jovem também continuava soluçando, e
parecia muito assustada.
O rapaz teve de fazer um esforço, enorme para esconder a
emoção desconhecida que se apossara dele e quando
conseguiu dominá-la, fechou os olhos. E aquela foi a
primeira que Kenjiro Sato, quinto Dan de Judô, desejou
morrer.
CAPÍTULO SEXTO
O significado das fotografias

Passou alguns minutos com uma sensação angustiosa e


quando abriu os olhos, Mai Korang já não estava ali. Olhou
para o patamar da escada e a viu consolando os pequeninos,
que começavam a se tranquilizar.
E foi naquele momento que Kenjiro viu como num filme
relâmpago, Sensei sentado no jardim com os passarinhos
pousados em seu braço.
— Por favor — suplicou Mai Korang, — não suba,
espere-me na sala.
Só podia concordar, jogou os pedaços de panos para ela e
desceu, sem saber o que podia fazer. De repente, virou-se e
viu a velha empregada que ainda continuava desacordada.
Parou perto dela, sentou-a no chão e lhe aplicou um suave
kuatsu na nuca. A técnica de reanimação surtiu efeito
imediato. Na Paeng abriu os olhos, mas, quando o viu,
fechou-os de novo. Kenjiro engoliu a saliva com dificuldade
e murmurou:
— Suba, os meninos estão assustados, compreende?
Ajudou-a levantar-se e a empregada subiu a escada
correndo. O judoca passou a mão pelo rosto e notou que as
faces estavam suadas e geladas.
E de repente, pôde concentrar-se. O passado se tornou
presente em sua mente.
“Tudo estava tão longe, tão afastado que pensei que já
estivesse esquecido, mas a realidade jamais poderá ser
enterrada totalmente...” — pensou. — “Não, não, não podia
ser enterrada e sempre podia ressurgir no presente”.
***
— Você é Kenjiro?
— Sim — respondeu um menino de oito anos. — Sou eu
mesmo. Meu nome é Kenjiro Sato.
— Pois escute uma coisa, Kenjiro: Nunca mais volte aqui
para ganhar comida. Os moradores desta casa só dão
comida para nós que moramos aqui perto. Você mora longe,
perto de Chuo. Volte para lá e nunca mais ponha os pés
aqui!
— Tenho amigos que moram por aqui — respondeu o
menino Kenjiro. — Eles me disseram que eu podia vir
procurá-los sempre que tivesse fome.
— Nosso grupo é maior e estamos proibindo você de
voltar aqui, Sato Kenjiro! O que seus amigos falaram não
vem ao caso.
O menino Kenjiro Sato olhou para os outros garotos que
estavam à sua frente. Sim, eles eram muitos, talvez uns doze,
quinze ou até vinte e todos eram maiores do que ele, com
mais ou menos doze, treze ou catorze anos. Kenjiro
compreendia muito bem a situação, mas estava com fome.
Não tinha pai, não tinha mãe, só tinha fome. Muita fome. E
só porque estava sentindo muita fome, tinha andado de Chuo
que ficava longe, sem se importar com a escuridão da noite,
com o frio, com os carros que passavam correndo ou com as
pessoas que andavam pelas ruas.
— Eu não vou sair daqui enquanto estiver corá fome —
falou.
Não se intimidou, abaixou-se e apanhou um punhado de
esterco que estava no meio da rua e o jogou na cara de um
dos garotos, com um goshi perfeito. Aos oito anos, Kenjiro
Sato já usava o movimento inicial ao conhecimento e
execução de todas as projeções do corpo que fossem
alicerçadas nos quadris.
Derrubou outro menino aplicando-lhe um tai otoshi,
puxando-lhe o braço com tanta força que os ossos chegaram
a estalar, enquanto sua cabeça se estatelava no chão. Outro
recebeu um ippon seoi que praticamente o projetou sobre
alguns que se preparavam para ataca-lo. Mas ele era um só
contra muitos. Kenjiro continuou lutando, mas acabou
perdendo a noção do tempo, da escuridão, da dor e da fome
quando todos os garotos caíram sobre ele, dando-lhe
mordidas, pontapés.
Quando despertou estava em uma cama de hospital e não
se recordava de nada. Daqueles dias somente ainda se
lembrava da enfermeira loura e bonita que o cuidava com
tanto carinho. Seus olhos eram azuis, brilhantes e ela vivia
sorrindo.
Passou vários dias sem poder falar, mas já sabia que
estava muito machucado, que os garotos tinham fraturado
seu nariz, o braço esquerdo e a perna direita. Mas no
hospital não sentia fome.
***
Abriu os olhos e tudo pareceu estar cheio de luz, da luz,
que brotara dos olhos de Mai Korang.
— Como foi? — perguntou quase em sussurro.
— Os meninos se acalmaram e Na Paeng ficou com eles.
— Ótimo. Então tudo está bem.
— Por favor, não nos cause problemas. Não sei o que
quer, mas pode levar tudo que desejar. Nós nunca...
matamos... o senhor falou coisas horríveis.
— Meu nome é Kenjiro Sato — ele murmurou.
— E o senhor está bem? Eu acho que está muito pálido.
— Estou bem, não se preocupe comigo. Só quero que me
diga uma coisa. Essas fotos são suas? — perguntou quando
lhe entregava as fotografias.
A moça pareceu surpresa e respondeu francamente:
— Sim... Claro que sou eu durante uma de minha
atuações. Como essas fotos estão com o senhor?
— Um companheiro que estava vigiando um homem
chamado Tin Maeng foi quem as bateu. Este tal de Tin
Maeng desapareceu e acreditamos que meu companheiro
conseguiu outra pista, mas não sabemos qual seja. Você
conhecia Tin Maeng?
— Não,
— E por acaso conhecia Yun Tao?
— Também não, senhor Sato.
— Vejamos... Quem mais vive aqui, além de você, a
anciã e as crianças? Algum homem mora nesta casa?
— Sim, meu cunhado, Yam Prang. O senhor o conhece, é
o homem que me acompanhava quando nos encontramos no
clube e ele também aparece em todas as fotografias que me
mostrou.
Kenjiro apanhou as fotos da mão de Mai e esta apontou
Yam que aparecia ao fundo, bebendo e conversando com
outros homens.
— Este aqui é o meu cunhado.
Agora começava a compreender a pista que “K” tinha
encontrado. Era Yam Prang, mas nem ele ou Sensei
souberam interpretá-la. Simulando fotografar a dançarina,
havia fotografado o chinês, esperando que os amigos
descobrissem o homem que todos procuravam. No entanto,
nem o Mestre nem Osamu Inomura, que o retivera alguns
dias em seu dojo até passar o perigo da infecção do
ferimento à faca sofrido na cabana de Tao, chegaram àquele
resultado.
— Por quê seu companheiro me fotografou? Ele me
conhecia ou queria que o senhor me conhecesse?
Kenjiro apenas sacudiu a cabeça negativamente. Na
realidade “K” não fotografara Mai Korang, mas Yam Prang,
que também aparecia em todas as fotos. Por quê? Ele devia
estar relacionado com Tin Maeng. Só podia ser por esse
motivo. Certamente já os vira juntos e resolveu vigiá-lo
também. Como sabia que Yam Prang era desconhecido para
a Kuro Arashi, decidiu fotografá-lo. Porém, alguém devia ter
percebido que ele estava fotografando as pessoas que
estavam sentadas àquela mesa e quando “K” saiu do clube
percebeu que estava sendo seguido, que iam matá-lo. Foi
então que tirou o filme da câmara e conseguiu entregá-lo a
um rapazinho para que este o levasse à cabana de Yun Tao,
prometendo-lhe que receberia cem bath.
Yam Prang! E pensar que ele estivera em suas mãos!
— De que vive seu cunhado?
— Não sei. Yam vive fazendo negócios. Antigamente
não tinha muito dinheiro, mas logo após a morte de minha
irmã, começou a ter mais sorte. Comprou esta casa e pediu
que eu viesse morar com ele para ajudá-lo na educação das
crianças, porque Na Paeng não podia fazer tudo sozinha. Foi
ele quem me arranjou o emprego no clube, mas sempre me
acompanha, levando e me trazendo todos os dias de carro.
— Então... os meninos... são seus sobrinhos?
— Sim.
— E Yam. Prang? Por quê ele saiu hoje de noite?
— Não sei, disse-me que tinha uma reunião.
Kenjiro não se conformava. O homem das fotos estivera
em suas mãos e ao invés de obrigá-lo a falar, ou melhor, de
segui-lo com o táxi que já estava estacionado perto da casa,
apenas lhe tinha quebrado a cara.
Gastou alguns segundos olhando para Mai Korang que o
fitava com doçura. Nunca vira olhos tão belos e tão puros.
Como pudera pensar que ela tivesse alguma ligação com
uma organização internacional do crime?... Absolutamente
impossível!
— A partir deste momento, vou chamá-la de Maiko —
sorriu Kenjiro. — É um nome que parece japonês e eu gosto.
Sayonara, Maiko.
— Já vai embora? — murmurou a jovem.
— Sim, mas não para sempre — segurou o rosto da moça
com suas mãos e a beijou nos lábios.
Maiko fechou os olhos e permaneceu imóvel por alguns
segundos, mas em seguida, colocou as mãos sobre as dele. O
beijo foi longo, suave e delicado.
Quando ele afastou os lábios dos dela, Maiko sussurrou:
— Kenjiro Sato, meu amor!
O judoca teve vontade de beijá-la mais vezes, mas a
soltou e se dirigiu para a porta da casa.
Saiu sem olhar para trás e se encaminhou para onde
deixara o carro de Yam Prang, mas o veículo já não estava
mais estacionado naquele local.
O rapaz ficou pensando no que devia fazer: Poderia voltar
à casa de Prang, mas isso talvez fosse perigoso, pois ele
certamente chegaria na companhia de alguns de seus
comparsas e o pior, é que o tinha visto pelo retrovisor e
naturalmente o havia reconhecido. Também já devia
suspeitar que estivesse hospedado no “Hotel Montien”.
Vinte minutos mais tarde, estava batendo a campainha da
casa de Osamu Inomura que ficava no mesmo prédio onde o
dojo estava instalado. Já era bastante tarde, mas foi o próprio
Inomura quem veio abrir a porta, vestindo apenas um calção.
— Preciso dar um telefonema, Osamu — foram suas
primeiras palavras.
O neto de Sensei não escondeu o seu aborrecimento, mas
afastou-se para o judoca entrar. A saleta era decorada com
gosto e na parede principal estavam os retratos de Jigoro
Kano e de Sensei:
Quase em seguida, veio do interior da casa uma mulher,
japonesa bem jovem e muito bonita.
— É Sato, querida — disse Osamu. — Ela é minha
esposa Kikuko
Kikuko sorriu, inclinou-se diante da visita e murmurou:
— Já o conheço de nome. Como está?
— Muito bem, obrigado. Encantado por conhecê-la.
— Espero que volte a meu lar, outro dia.
— Claro, claro que voltarei para visitá-los.
A moça sorriu novamente e se retirou. Osamu mostrou o
telefone que estava em cima da mesa. Kenjiro só pôde ligá-
lo depois de explicar a seu novo amigo tudo que tinha
acontecido e foi o dono da casa quem consultou a lista
telefônica para saberem qual era o número do telefone de
Yam Prang.
Foi Osamu quem fez a ligação e falou em tailandês com
Mai e em seguida, entregou-lhe o fone.
— Sato, meu amor — foram as primeiras palavras que ele
escutou.
— Maiko, Prang já voltou?
— Não; ainda não.
— Não quero que ele saiba que eu estive aí. Fale com Na
Paeng e com os meninos.
— Não sei se poderei conseguir isso, Sato. Na fará minha
vontade, mas as crianças, não sei.
— Maiko, seu cunhado é um assassino e está trabalhando
para outros criminosos. Você percebe o que isso significa?
— Não acredito no que está me dizendo!
— Por quê eu ia mentir para você, Maiko? Eu só falei a
verdade e Yam Prang não pode nem desconfiar que estive
em sua casa. Eu ligarei amanhã para saber como você se
arranjou com ele. A que horas eu posso chamá-la?
— De manhã bem cedo. Yam chega tarde e dorme até
tarde.
— Oito horas?
— Sim, este horário será ótimo.
— Adeus, Maiko.
— Sato, meu amor...
O judoca desligou e olhou para Osamu que parecia
divertido e irritado ao mesmo tempo.
— Sato, meu amor — repetiu com sarcasmo. — Você
não disse que meu avô não queria que o pessoal de Bangkok
interviesse no caso? Teve de apanhar para eu trazê-lo ao dojo
para receber um tratamento adequado e agora, vem me
procurar em minha residência particular.
— Osamu, pare de reclamar. O dojo estava fechado e eu
preciso de uma motocicleta para amanhã de manhã. Ou
talvez um carro.
— Por quê não um elefante? Na Tailândia há os melhores
do mundo,
— Eu não estou brincando — explodiu Kenjiro.
— Nem eu tampouco. Sabe o que eu e Kikuko estávamos
fazendo quando você chegou?
— Não.
— Pense um pouco e veja se adivinha...
Kenjiro Sato refletiu alguns segundos e de repente, deu
um sorriso amplo.
— Perdão, Osamu, eu nem pensei nisso, mas agora
poderão continuar. Espero que minha presença neste sofá
não vá intimidá-los. As paredes não são de papel e eu vim
para dormir e não para ouvir dois pombinhos arrulhando, só
para satisfazer minha curiosidade, sua mulher é boa quando
faz amor?
— Os dois estamos nos aperfeiçoando no dia-a-dia —
sorriu Osamu, finalmente. — Meu avô vive dizendo que
cada dia é um passo para o aperfeiçoamento do homem.
Sabe que em alguns momentos eu simpatizo com você?
Amanhã de manhã, você terá a motocicleta a seu dispor.
Agora deite-se, trate de dormir e não nos aborreça mais.
Combinado?
— Estou cansado e vou dormir como um boi.
— Às vezes me pergunto se meu avô escolheu o homem
certo para este caso?
— Não admito que você fale de meu Mestre! Fale
novamente de Sensei e conhecerá toda a força de Kenjiro
Sato!
— Decididamente, você está me parecendo simpático.
Boa-noite porque agora vou dar um pouco de prazer a minha
esposa.
— Desejo-lhes uma noite feliz — sorriu o judoca.
CAPÍTULO SÉTIMO
O passado não morre.

— Bom-dia, Maiko! — exclamou Kenjiro quando parou


perto do lugar onde tinham marcado o encontro. — Suba
na garupa!
Mai Korang vacilou ligeiramente, mas achou que o tom
empregado pelo judoca não admitia hesitações. Sentou-se no
banco de trás da “Yamaha”, que imediatamente saiu em
disparada.
Ela tinha vindo em um samlor e assim que deixara o
triciclo, a motocicleta já estava encostando na calçada.
— Não corra tanto, Sato! — pediu, gritando.
Kenjiro Sato não a ouviu ou fingiu não a ter ouvido,
porque continuou correndo com a mesma velocidade e
percorrendo várias ruas e ruelas, sem tomar uma direção
exata. Parecia que tinha medo que alguém os estivesse
seguindo e só reduziu a velocidade quase sete minutos mais
tarde, quando se aproximavam de um parque muito lindo.
Estacionou à entrada do mesmo e falou à moça:
— Desça!
Mal Korang tirou as mãos de sua cintura dura como o
aço, desceu da moto e sorriu quando Kenjiro a imitou. O
judoca ficou olhando para seus olhos luminosos, para a boca
que parecia um convite a beijos. Segurou seu rosto com as
duas mãos e pousou os lábios nos dela, mas naquela manhã
radiosa, Mai Korang não permaneceu impassível ao beijo,
abraçou-o pela cintura e correspondeu à carícia, provocando
mil sensações deliciosas e inquietantes ao homem que a
despertava para a vida.
Ao redor deles tudo era silêncio. Um silêncio muito doce,
somente cortado pelos trinados dos pássaros e algumas vozes
infantis.
— Sato, meu amor — suspirou quando as bocas se
afastaram.
— Tem certeza de que ninguém a seguiu?
— Não sei.
— Mas deve saber se havia alguns homens em sua casa.
— Na minha casa não havia homem algum, até Yam saiu
bem cedo esta manhã. E eu aproveitei a folga para vir
encontrar-me com você.
— Quem sabe se ele não saiu cedo somente para dar uma
oportunidade de nós dois ficarmos juntos e então, ele e seus
camaradas poderem atacar-me com mais facilidade? Ou
talvez só esperassem esta oportunidade para me matarem
com um tiro? E foi por isso que Yam Prang saiu tão cedo.
Seus homens quando viram você sair, pouco depois, bem
poderiam tê-la seguido... até quando subiu na moto, porque a
partir daí, juro como ninguém mais nos pôde seguir.
— Você fala como se Yam soubesse que esteve lá em
casa ontem de noite.
— E ele não sabe?
— Eu já lhe disse ao telefone que não, Sato!
— Está bem. Vamos passear pelo parque, Maiko. Eu
gostaria de lhe pedir uma coisa, mas...
— Sato, nós estamos juntos hoje, porém não sabemos
quando nos veremos de novo. Por quê? Por que não vamos a
um lugar onde podemos ficar sozinhos, longe de todos os
bulícios da vida?
Kenjiro Sato a fitou fixamente e Maiko sorriu com
doçura. O judoca novamente sentiu várias coisas estranhas
ocorrendo em seu corpo.
— É isso que você deseja realmente: nós dois em um
recanto só nosso?
— Sato, meu amor — murmurou com meiguice.
Não podia haver mentira naqueles nem naqueles lábios
jovens que ele beijou de novo.
— Está bem, suba na moto. Buscaremos um lugar como
você deseja.
Era um restaurante chamado “Angkor” que estava
localizado às margens do rio Chao Phraya. Não era um lugar
elegante, bem ao contrário, era até modesto e um tanto
misterioso como correspondia a um local onde alugavam
compartimentos reservados, cheios de exotismo: uma saleta
aconchegante e um quarto de banho minúsculo. O janelão
dava para o rio e perto dele estava uma mesa baixa, rodeada
de almofadões coloridos. Em um dos cantos da saleta
estavam as esteiras de palha recheadas de penas. Tudo
simples e discreto.
Kenjiro explicou em francês que tinham vindo para
almoçar, mas só fariam o pedido mais tarde. Não houve
perguntas e pouco depois, eles estavam sozinhos em um dos
reservados. Em uma cesta havia várias velas aromáticas, Mai
Korang acendeu uma destas e o aposento ficou impregnado
de perfume. No teto havia um ventilador, mas o dia estava
agradável e não havia necessidade de ligá-lo.
— O lugar é agradável, Sato.
— Não, não é. Creio que deveríamos ir embora, você
merece coisa melhor, Maiko.
— Todos os lugares do mundo são bons para o amor,
Sato.
O judoca a fitou espantado.
— Essas palavras parecem dignas de meu Mestre.
— Seu Mestre... Quem é ele?
— A pessoa que me enviou a Bangkok para acabar com
essa organização criminosa da qual seu cunhado faz parte.
— Por que não comunica à polícia?
— Não posso. Sensei não quer que eu recorra à polícia
porque em certas ocasiões, os policiais se deixam subornar.
E nós da Kuro Arashi nunca avisamos à polícia. Sensei
prefere confiar em seus discípulos quando certas
providências precisam ser tomadas. A prova é dura, mas
sempre nos submetemos a ela. Eu daria até minha vida para
obedecer a meu Mestre! Embora ultimamente eu não esteja
satisfeito com ele. Não foi justo comigo e eu odeio
injustiças, Maiko... e ele sabe disso melhor do que ninguém.
Tive vários Mestres durante minha vida, mas foi Sensei o
que mais afinidade teve comigo. Parece que ele penetra em
meus pensamentos. Disse-me que agiu daquele modo porque
desejava ajudar-me e eu continuo pensando que ele é meu
Mestre preferido. Porém, não me conhece tão bem como
pensa.
Mai Korang se soltou de seus braços, segurou as mãos do
judoca e o puxou para as esteiras recheadas de penas.
Os dois se sentaram nas esteiras e a moça ficou olhando
para as mãos de Sato. Eram mãos fortes, viris, bonitas e
delicadas, apesar dos dedos polegar e anular estarem
bastante deformados pelos exercícios e golpes que tivera de
aplicar no decorrer dos anos.
***
Kenjiro Sato acabou de dobrar cuidadosamente seu
quimono e o amarrou com a faixa preta. Tinha então
dezenove anos e estava representando sua escola no
campeonato de Judô do Japão nos pesos médios e em todas
as categorias também. Para as competições de peso pesado,
ele não tinha muitas esperanças, mas em sua categoria, o
nome de Kenjiro Sato era o preferido entre todos e todos
falavam dele como se já fosse o campeão. Dentro de quatro
horas, o torneio estaria terminado e ele, Kenjiro Sato
poderia ser o campeão do Japão.
Foi naquele momento que alguém bateu à porta do
quarto onde morava, uma pensão perto de Ginza. Abriu-a e
ficou olhando para os dois rapazes que estavam parados no
corredor.
— Kenjiro Sato? — perguntou um deles.
— Sim, sou eu.
Mais quatro homens apareceram no corredor, mas estes
já eram homens feitos, com mais de vinte e cinco anos. Sem
falarem uma palavra, todos entraram em seu quarto e
fecharam a porta.
— Nós somos de outra escola e não queremos que você
se apresente como finalista. Creio que já entendeu o que
queremos, não é?
— Quem vocês querem que vença?
— Isso não interessa a você.
— Como não? E tem mais, tenho certeza de que estão
mentindo porque nenhum judoca aceitaria uma sujeira como
essa que me propõem. Cada um de nós que chegamos às
finais temos lealdade em nossos corações. Aquele que
vencer, vencerá por seu próprio mérito. Estão mentindo
porque um verdadeiro judoca não desceria a um nível tão
baixo. Nós sabemos qual é o valor da dignidade!
— É bom que desista por bem — riu outro. — Estamos
aqui, porém nosso protegido desconhece nossas intenções.
Se você se apresentar hoje, ele não terá chance de ganhar,
mas se você desistir, ele será o campeão.
— Tratem de sair do meu quarto porque já estamos...
Algo sibilou no ar e a corrente de metal bateu em sua
mão direita. A dor foi tão forte que Kenjiro quase desmaiou
e em seguida, a corrente novamente bateu em suas costas.
E foi a dor intensa que o fez reagir. A ideia explodiu em
sua mente inesperadamente: Como um segundo Dan de
judô, aspirante ao campeonato do Japão, ia permitir ser
derrotado em seu quarto de pensão?
Levantou-se de um salto e segurou a corrente no
momento em que ia receber outro manrikigusari e a puxou
com força. O homem que a movimentava, perdeu o controle
e veio junto. Kenjiro segurou-o pelas lapelas do casaco,
levantou-o do chão e o jogou de encontro a parede, onde
caiu desmaiado.
No entanto, outra corrente já sibilava pelo ar e foi cair no
ombro do judoca. O golpe foi tão forte que ele foi lançado
longe, mas se firmou imediatamente. Sentiu uma raiva
infinita e soltou um kiai estrondoso!
— Toooiiiiiaaaaa...!
Correu para o homem que estava com a corrente
enrolada na mão, balançou o corpo, levantou a perna
direita e a deixou cair em seu rosto. Ao mesmo tempo,
Kenjiro recebia um tambo na nuca que o fez estremecer,
enquanto o bastão continuava a açoitá-lo. O judoca caiu de
bruços, com um corte na cabeça que sangrava
abundantemente. Agora só via nuvens negras a sua volta e
continuava escutando o ruído da corrente que sibilava no ar
e... quando parecia estar mergulhando naquele negrume
infinito, a dor que sentia na mão, fez com que reagisse e
recuperasse os sentidos.
Quando se levantou, o quarto mais parecia um barco
depois de ter enfrentado uma tempestade. A porta estava
aberta e alguns hóspedes da pensão estavam no corredor e o
contemplavam com olhares de comiseração.
Então, como se estivesse despertando de um pesadelo,
Kenjiro Sato olhou para suas mãos, começou a chorar!
***
— Sato, meu amor, você nem me está escutando.
Olhou assustado para as mãos e respirou aliviado. Tudo
ocorreta há mais de onze anos. Sorriu e olhou para Maiko.
— Do que estávamos falando?
— De seu Mestre, parece que ele não o entende
perfeitamente.
— Maiko, não...
— Não fale, meu amor — sussurrou, pondo o dedo sobre
seus lábios. — Só quero que você me ame.
A tentação era grande demais. Kenjiro a abraçou e
novamente gozou da frescura de seus lábios.
CAPÍTULO OITAVO
Lágrimas de pesar tardio

— Você está feliz, Sato?


Kenjiro se ergueu de lado para poder vê-la melhor,
contemplar toda a beleza que havia em seus olhos.
— Nunca me senti tão feliz em toda minha vida, Maiko,
mas...
— Por quê, mas? — reclamou, fingindo-se zangada.
— Estou com muita fome.
Maiko começou a rir e seu riso parecia chegar
diretamente do céu aos ouvidos do judoca.
Então, acho que este é o momento para pedirmos a
comida porque eu também estou com muita fome, Kenjiro
Sato! Já é tarde, talvez quase cinco horas.
— Se já é tão tarde, podemos esperar mais duas horas e
encomendar logo o jantar, meu amor.
Ela fechou os olhos e entreabriu os lábios.
— Faço tudo que você quiser, Sato.
Quase às sete horas, quando o céu começava a ficar
avermelhado, Kenjiro sentou-se na esteira e disse:
— Chega! Se eu não comer agora mesmo, vou morrer!
— Muito bem, sou eu quem vai escolher o cardápio, você
ficaria sem saber o que pedir. Gosta de comida picante?
— Não.
— Pena, porque eu poderia encomendar prikinou. São
pimentões pequenos gostosos e picantes. Mas não faz mal,
hoje comeremos só Gang Tom Yan e Gang Pet. Você gosta
de porco?
— Com a fome que estou, comeria até prikinou.
— Antes de pedir o menu, seria bom eu ver o que podem
servir-nos. Espero encontrá-lo aqui quando voltar, Sato.
— E está pensando que eu a soltaria sozinha em um lugar
destes?
Os dois se levantaram, Kenjiro ainda a ajudou a vestir-se
e ela saiu do reservado. O rapaz também se vestiu e se
debruçou na janela. Logo, as águas do rio refletiriam o
colorido das luzes que começavam a aparecer em vários
pontos da cidade.
Kenjiro fechou os olhos e imaginou Maiko dançando só
para ele como a vira dançar naquela noite. Até aquele dia,
Kenjiro Sato o quinto Dan de judô não percebera quanta
beleza havia na vida. Conhecera muitas mulheres, algumas
lindíssimas, mas nenhuma tinha a classe e a beleza de
Maiko. Só agora, depois de ter conhecido Maiko,
compreendia que a beleza era algo tangível, real e não
somente um conjunto de cores, sons e palavras.
— Em que você está pensando, Sato? — perguntou
Maiko ao entrar.
— Não sei. Estou perturbado. E você?
— Eu, não. Estava me sentindo muito bem, mas já estou
diferente diante de suas perturbações — riu ela.
— Você já tinha amado anteriormente?
— Sato, você sabe que isso nunca tinha acontecido! —
exclamou a jovem, com as faces pegando fogo.
— Não foi isso que eu quis perguntar, meu amor. Eu só
queria saber se as coisas ficaram mais bonitas, de repente. Se
as luzes começaram a ficar mais brilhantes.
— Não sei, Sato...
Ele a abraçou de encontro ao peito e ambos ficaram
calados, olhando para o rio que começava a escurecer,
lentamente.
Quando trouxeram o jantar que Maiko havia
encomendado, ambos ainda permaneciam na janela,
observando as águas mansas do Chao Phraya que
começavam a ter reflexos de várias cores, de acordo com as
lâmpadas que iam sendo acesas. Kenjiro olhou para a comida
e perguntou com voz carregada de preocupação:
— Quando o seu cunhado vai voltar, meu amor? Se ele
desconfiasse que passamos o dia juntos...
— Não se preocupe com Yam Prang — respondeu a
moça com um fio de voz, enquanto servia a comida nos
pratos.
— Está com aspecto apetitoso — sorriu o judoca. —
Espero que realmente também o esteja. O que está
acontecendo? Por quê você me olha assim?
Mai Korang abriu a boca como se fosse falar e... de
repente, começou a soluçar. Kenjiro ficou aturdido. Sentou-
se a seu lado, abraçou-a pelos ombros e murmurou:
— O que está acontecendo, Maiko? É por minha causa?
Está arrependida por tudo que aconteceu, não é?
— Não, não, não me arrependo pela tarde maravilhosa
que: tivemos! Eu amo você, Sato!
— Então pare de chorar e me diga por que está chorando!
Por favor, querida, diga-me alguma coisa! Maiko, você já é
minha vida!
A porta foi aberta com brusquidão. Kenjiro Sato virou a
cabeça com os olhos chispando de raiva: como alguém podia
invadir o reservado que tinha alugado?
Porém, no mesmo instante, todas as cores fugiram de seu
rosto ao reconhecer o homem que estava parado no umbral e
com vários remendos de esparadrapo no rosto: Era Yam
Prang e atrás deste havia mais quatro sujeitos portando
porretes.
Kenjiro estava perplexo e a moça agora chorava com
mais força. Ele a soltou e a fitou, desesperado.
— Não, Maiko, não foi você. Não acredito que você
pudesse delatar-me. Maiko, diga que não foi você!
— Prendam o homem, mas eu o quero vivo! — ordenou
Yam Prang.
Kenjiro olhou para o chinês e novamente Yam Prang
assustou-se ao ver o brilho estranho que havia nos olhos do
japonês. Retrocedeu rapidamente, enquanto Kenjiro
levantava-se.
— Tenham cuidado com ele porque é um tipo perigoso
— avisou aos homens que o acompanhavam. — Lembrem-
se do que aconteceu na casa de Yun Tao.
Kenjiro entrecerrou os olhos e pensou que tudo estava
saindo melhor do que tinha esperado que não errara ao
suspeitar de Prang.
— Toooiiiiiaaaa!...— atacou com furor.
Um dos homens tentou interceptar sua passagem, mas
Kenjiro lhe deu um golpe no rosto que o fez cair
desacordado. Em seguida, ele pegou Yam Prang pela gola da
roupa e o sacudiu no ar, enquanto suas mãos subiam ao
pescoço do chinês. Ia estrangulá-lo, mas dessa vez, parecia
que a estrela do judoca não brilhava com muito fulgor.
Quase no mesmo instante, recebeu um golpe de porrete
nas costas e outro na orelha esquerda. A dor foi violenta, seu
corpo cambaleou e quando recebeu o terceiro golpe, caiu
desacordado.
CAPÍTULO NONO
Os planos de Ásia

Escutou o ruído do motor e percebeu o balanço da lancha.


Presumiu que estivessem navegando, mas não sabia para
onde. Via tudo negro e só depois de alguns minutos percebeu
que estava com uma venda sobre os olhos, com as mãos e
pés imobilizados. De repente, escutou uma música e
imaginou que estivesse em uma lancha de recreio.
A cabeça doía horrivelmente, o pescoço também e sentia
que o ferimento nas costelas estava sangrando novamente.
Maiko! Kenjiro Sato sentiu uma tristeza profunda e
durante alguns minutos chegou a esquecer-se da realidade de
sua situação. Sentiu tristeza, mas merecia o que tinha
acontecido. Por acaso não havia pensado em usar Maiko para
através dela chegar ao grupo de criminosos? A organização
da qual Yam Prang fazia parte? E era por isso que se sentia
mais triste. Como pudera enganar uma jovem que se
entregara integralmente em suas mãos? E como ela pudera
mentir, enganar a pessoa que dizia amar? Isso era possível,
razoável?
O ruído do motor cessou e em seguida, ele ouviu vozes
em tailandês. Não entendia nada. A lancha continuava
deslizando suavemente, em silêncio, e finalmente parou.
Sentiu que era levantado e colocado sobre os ombros de um
homem que o carregava como se estivesse carregando um
saco de farinha. Primeiro, as pisadas soaram levemente,
deduziu que estivessem caminhando na areia e depois, os
passos ressoaram mais fortes. Depois de estar andando sobre
tijolos ou pedras. Depois escutou quando desceram uma
escada pequena. Ouviu o ruído de maçanetas e deduziu que
fechavam ou abriam portas. E em seguida o deixaram cair no
chão, como se se tratasse de um fardo.
A partir de então, só o silêncio e depois de quase uma
hora, escutou que abriam a porta novamente. Alguém
desatou seus pés e mãos e arrancou a venda que cobria seus
olhos. A luz era tanta que parecia cegá-lo. Depois o fizeram
caminhar pelo corredor.
Pensou que estivesse em um porão onde havia muitas
portas. Em seguida, subiram uma escada de pedra e
percorreram outro corredor, este bem iluminado. Aos
poucos, ia tomando conhecimento das coisas e viu que
estava cercado por seis homens fortemente armados.
Dois destes abriram a porta que ficava no final do
corredor e o fizeram entrar em um salão muito bem
mobiliado, que parecia ser uma biblioteca. A peça era grande
e tinha várias poltronas estofadas que, naquele instante,
estavam ocupados por um casal de raça branca, bem
vestidos, os homens de smoking branco e as mulheres de
vestido de noite, ricos e elegantes.
Kenjiro Sato foi colocado diante dessas pessoas e
repentinamente, viu um homem que tinha aspecto de
asiático, mas com o rosto tão marcado pela varíola que
dificilmente alguém poderia afirmar se era um chinês,
japonês ou malaio.
Mais parecia um anão, baixinho e esmirrado, que quase
desaparecia na poltrona florida. Também usava smoking
branco, mas sua aparência era grotesca.
Todos olhavam para Kenjiro, os homens com indiferença
e as mulheres com admiração. O anão abriu uma gaveta e
apanhou uma caixa preta pequena, que mais parecia uma
calculadora, colocou-a sobre a mesa e quando falou, sua voz
era horrível e anasalada.
— Disseram-me que o senhor Sato domina o francês com
perfeição.
— Sim — respondeu o japonês.
— Então, vamos nos entender. Quer tomar um pouco de
mekhong, isto é, de uísque tailandês? — ofereceu, mostrando
a garrafa que estava na mesa.
— Não costumo beber e não vou mudar meus hábitos.
— Certo, senhor Sato. Um homem deve ter ideias
próprias — sorriu o anão. — Como vê, estou recebendo
algumas visitas importantes que estão interessadas em meus
negócios. Só não entendo porque antes do senhor chegar já
dois japoneses tentaram prejudicar-me. Os dois primeiros
mandei eliminar, creio que o senhor entende onde quero
chegar, não é?
— Perfeitamente. Yam Prang é um de seus
colaboradores, não é?
— Ele trabalha para mim.
— Então o senhor também deve ter alguma ligação com a
associação de crimes?
O anão e seus convidados sorriram.
— Por favor, senhor Sato, reconheça meu valor. Eu sou o
fundador, o diretor e o único chefe dentro de minha
organização. E agora estou interessado em expandi-la pelos
outros continentes. A propósito, meu nome é Ásia.
— E quem são seus convidados?
— Prefiro não revelar seus nomes, que continuem no
anonimato pelo menos por agora — sorriu Ásia. — Porém
como pode ver todos são pessoas ricas, influentes e
poderosas que vivem no continente asiático. Como o senhor
sabe, muitos americanos têm interesses em nosso continente
e são estas pessoas que mais se interessam por minha
organização.
— Pelo jeito tudo está bem planejado.
— Sim, pensei em tudo, senhor Sato.
— Inclusive nos futuros assassinatos, atos de sabotagens
e atentados políticos?
— Sim e em outras coisas mais — admitiu Ásia. —
Minha organização é considerada a mais perfeita dentre
todas as organizações criminais e se destina a servir pessoas
influentes de todos os continentes. Como sabe, os métodos
usados pelos assassinos ocidentais são por demais
reveladores e se uma alta personalidade da Ásia for
assassinada por esses métodos, o crime ficará facilmente
solucionado. Porém, se os assassinos utilizarem os métodos
asiáticos, dificilmente alguém poderá determinar a origem do
golpe que matou essa personalidade ou destruiu um grupo
político. Uso somente métodos asiáticos que me permitem
servir a grupos americanos ou europeus que têm interesses
na Ásia. Atuo sem levantar suspeitas.
— E quais são os métodos que utiliza, Ásia?
— Agora, presentemente, estou tentando reunir um grupo
especialista em lutas orientais que atue usando apenas as
mãos ou armas orientais. Os serviços serão executados com
rapidez e segurança pela “Ásia”.
— O senhor é quem ficará encarregado por todos os
casos?
— Não. A organização que fundei tem meu nome e como
eu dizia, a “Ásia” executará todas as encomendas que
recebermos, usando exclusivamente os métodos asiáticos.
Ninguém poderá desconfiar de nós se um grupo de
estrangeiros, um empresário ou um general, aparecer
degolado por um kris malaio ou enforcado com dug, um
cordão de seda que somente é usado pelos indianos quando
estrangulam uma pessoa. Os ocidentais só poderão imaginar
que as mortes foram motivadas por vingança. Agora já está
começando a compreender quais são meus projetos, senhor
Sato?
— Creio que sim.
— Magnífico! Como pode ver estou cercado por pessoas
de alto nível que não aprovariam métodos violentos ou
brutais.
— Porém esses métodos poderão causar complicações
diplomáticas ou confrontos militares — murmurou Kenjiro.
— Sim. Porém todos os “trabalhos” serão realizados com
muito cuidado, senhor Sato. Sempre serão programados com
antecedência. Por exemplo, quando se tratar de um golpe
militar contra um país vizinho, pode ficar certo que este
somente se realizará, se os clientes da “Ásia” o desejarem.
Nossos “serviços” sempre serão meticulosamente planejados
e é por isso que não admito que algum sujeito tente
prejudicar minha organização. Quando o primeiro japonês
apareceu, julguei que fosse algum policial e dei ordens para
matá-lo, porém aproveitei a oportunidade para fazer algumas
demonstrações a meus homens.
— Do que está falando?
— Espere e descobrirá tudo, senhor Sato. Quando o
segundo japonês apareceu, analisei os métodos que
empregava e verifiquei que estes eram diversos dos usados
pela polícia. Yam Prang e outros colaboradores perceberam
que ambos os japoneses mantinham Tin Maeng sob
vigilância. Os dois japoneses foram mortos sem responder a
perguntas, porém com o senhor será diferente. Quando
chegou, fiquei preocupado. Sabe por quê?
— Não, mas espero que me diga.
— É um homem muito inteligente e um lutador notável.
Qual é sua especialidade?
— Judô.
— Judô é interessante. Bem, vou dizer-lhe porque fiquei
preocupado. Desconfiei que eles e o senhor pertencessem a
uma organização e que tivessem o mesmo objetivo: eliminar-
me sumariamente. Estou certo?
Kenjiro Sato sorriu e se arrependeu em seguida, pois o
rosto estava machucado e os ferimentos doeram
horrivelmente.
— Está sorrindo, senhor Sato? Por acaso falei alguma
tolice?
— Pelo contrário, acertou em cheio, Ásia. Pertenço a uma
organização.
— E qual é esta?
— A Kuro Arashi.
— “Negra Tempestade”? Um nome curioso. O que
significa?
— Significa que uma tempestade negra cairá sobre as
cabeças de todos os homens que estejam praticando o mal. A
Kuro Arashi significa morte aos criminosos, Ásia.
— E quem dirige essa organização?
Kenjiro apertou os lábios e continuou em silêncio. Os
convidados americanos cada vez pareciam estar mais
interessados e ouviam a conversa com alguma curiosidade.
— Senhor Sato, dei ordens para o manterem vivo, porque
queria que me respondesse a todas as perguntas, entendeu?
Não vou admitir respostas evasivas.
O silêncio prosseguiu.
— Então, não vai responder?
— Não.
— Não seja estúpido. Sabe que tenho métodos que o
forçarão a falar. Por que morrer com dor?
Kenjiro fechou os olhos e rapidamente teve a impressão
de estar vendo a imagem de Sensei no jardim, cercado por
pássaros, reviu seus cabelos brancos e sua expressão
inalterável de paz no gozo do satori que tinha obtido depois
de tantos anos de luta e de suportar a convivência de seres
humanos que mais pareciam feras. Depois a cena mudou em
sua mente e ele viu vários homens desconhecidos invadindo
a residência do Mestre e o assassinando brutalmente.
— Não direi mais nada — falou com firmeza.
— Senhor Sato, parece que não me está levando a sério.
— Eu sei que é perigoso, mas nada mais falarei, Ásia.
A expressão do anão se modificou, olhou para os
convidados e perguntou-lhes:
— Gostaria de presenciar uma pequena demonstração?
Os homens sorriram e as mulheres demonstraram certa
curiosidade. Depois, Ásia olhou para seus auxiliares e lhes
fez um pequeno sinal que não passou despercebido para o
judoca que se voltou para a porta e viu os seis homens que o
tinham acompanhado desde o calabouço.
Os tipos guardavam as pistolas e apanhavam pequenos
bastões de madeira que tinham correias trançadas em uma
das extremidades. Estas começaram a girar no alto,
formando verdadeiros arabescos no ar.
Kenjiro não era um ingênuo e sabia que aqueles sujeitos
poderiam matá-lo facilmente e em questão de segundos,
poderiam transformá-lo em uma massa sanguinolenta, sem
forma ou feitio e só agora compreendia por que o tinham
levado com vida àquela casa. O homúnculo queria que ele
lhe desse todas as informações que pedisse e quando ficasse
sabendo de tudo que desejava, daria ordens para matá-lo, tal
como fizera com “A”, e “K”.
E isso ia ser seu fim? De que adiantara tanta luta e tanto
sofrimento em sua vida? Ia permitir que o triturassem com os
nunchaku?
Lap! A primeira lambada estalou em suas costas. Kenjiro
chegou a gritar de dor e antes que alguém pudesse entender o
que estava acontecendo, lançou-se contra Ásia,
surpreendendo a todos.
Poderia morrer, mas morreria matando aquela víbora e
destruindo a organização que o miserável criara!
Que esperassem porque não ia entregar-se facilmente!
Segurou o anão pelos cabelos crespos, levantou-o com
facilidade e se quisesse, poderia arrebentá-lo como se fosse
um melão maduro!
Lap! Recebeu outra lambada no ombro e quando
procurava dominar a dor que estava sentindo, recebeu mais
outra. A dor se generalizou por todo o corpo, ele teve que
soltar Ásia e encolher-se, enquanto uma onda de fúria
explodia dentro de seu ser, talvez nunca tivesse sentido tanto
ódio em toda sua vida.
— Parem! Não batam mais nele! — gritou Ásia,
colocando-se em um canto mais protegido da biblioteca.
Kenjiro levantou-se, quase gemendo de dor. Os
convidados americanos agora olhavam para ele com olhares
assustados, enquanto os capangas do anão continuavam á
postos, esperando só uma ordem para recomeçarem, mas
aconteceu algo diferente.
— Prepare-se, Sato, porque amanhã quando meus
convidados já estiverem longe daqui continuaremos nossa
entrevista. Hoje somente desejo humilhá-lo, judoca! Muito
bem, prepare-se e nos mostre que a essência do judô é a
inteligência!
Ásia apertou um dos botões daquela caixa preta que
deixara em cima da mesa. Era um computador.
Imediatamente, todos ouviram ruídos suaves e esquisitos e
quase em seguida, passos pesadões pelo assoalho. Logo
depois, as mulheres começaram a gritar quando dois robôs
enormes, com mais de dois metros de altura, saíram de trás
de um dos biombos que enfeitavam a sala. Duas imitações
grotescas de um corpo humano. Ambos caminhavam na
direção de Kenjiro que não sabia o que fazer para afastar-se
dos monstros eletrônicos.
— Senhor Sato, de todos os meus auxiliares, estes são os
de minha maior confiança. Foram programados para lutar
qualquer tipo de luta. Acabará sendo morto por seus golpes.
Veja se pode derrubá-los, senhor Sato!
Os dois robôs já estavam perto dele. Ásia apertou outro
botão e ambos levantaram os braços para atacá-lo. E o pior é
que o judoca não sabia como proteger-se dos malditos.
FSSSS!... O braço de um deles passou rente a sua cabeça.
— Vamos! — ria Ásia. — Mostre-nos sua classe de
judoca!
Falava e ria e foi então que Kenjiro pensou que seria um
absurdo atacar aquele aparelho de aço, mas não custava
tentar e... ao invés de afastar-se, aproximou-se mais um
pouco dos robôs e quando estes levantavam os braços para
atacá-lo, o rapaz deu dois passos à frente e o murro
eletrônico se perdeu no vazio. No entanto, o judoca agiu com
rapidez. Primeiro, quase encostou as costas no peito de um
dos monstros, segurou-lhe a mão direita com a sua esquerda
sempre encostada ao peito do boneco de ferro. Depois,
passou sua mão direita por baixo do braço eletrônico, sem
deixar de movimentar seu próprio corpo para reunir a
energia de que ia precisar. As mulheres começaram a gritar
quando ele levantou o boneco que pesava mais de duzentos
quilos e o deixou cair sob um vibrante hane goshi. O ruído
da queda foi espetacular, os olhos luminosos apagaram-se e
o boneco ficou sem movimento. A ação de Kenjiro foi
decisiva e instantânea.
— Não! — gritou Ásia, prevendo o que ia acontecer. —
Detenham esse homem!
Ficou tão nervoso que se esqueceu de acionar o pequeno
computador que controlava os movimentos dos robôs e o
segundo permaneceu imóvel com o braço direito levantado.
O que aconteceu foi fantástico, o judoca abraçou o boneco
de ferro pela cintura com seu braço direito, levantou o
esquerdo que colocou no ombro do monstro, girou o corpo e
o segundo robô voou praticamente para estatelar-se de
encontro à parede, enquanto no ar continuava ressoando o
kiai de Kenjiro Sato:
— Toiiiiiiaaaa!
Porém no mesmo instante, os nunchaku se abateram
sobre o corpo do judoca.
CAPÍTULO DÉCIMO
O final de um império

— Sato... Sato!
Kenjiro abriu os olhos e os cobriu com as mãos para
protegê-los da luz da lanterna.
— Quem é? — perguntou em um murmúrio.
— Sou eu, Yam Prang.
O japonês se sentou rapidamente no chão e teve de
morder os lábios para evitar um gemido de dor.
— O que veio fazer aqui? — perguntou.
— Sato, você precisa ajudar-me! É o único que poderá
fazer alguma coisa!
— Do que está falando? — perguntou o judoca.
— Ásia quer acabar com nós todos. Quer exterminar
minha família. Escutei quando alguns convidados
comentavam sobre meus filhos. Ásia quer nos matar.
— Não estou entendendo nada e é bom que não tente
enganar-me, Yam.
O chinês estava respirando com dificuldade quando falou:
— Ásia tem medo que seus amigos tenham localizado
minha casa, Sato. Disse que se isso acontecer, toda minha
família estaria correndo perigo. Achou melhor que eu
trouxesse todos para cá. Foi o que fiz, porém agora, ele quer
matar todos nós. A nós oito!
— Oito? Que oito pessoas são essas?
— Eu, Mai Korang, Na Paeng e os cinco meninos.
— Ásia também quer matar as mulheres e as crianças?
Por quê?
— Mai só enganou a você porque eu a obriguei. Ontem
de noite, quando me atacou, saí para procurar reforços e
quando voltei com alguns amigos, você já tinha abandonado
minha casa. Conversei com Mai e fiz com que me contasse
tudo que havia acontecido em minha ausência. Hoje de
manhã, quando falaram pelo telefone, ela estava muito
assustada porque eu lhe tinha dito que se você conseguisse
escapar, o meu chefe mandaria matar meus cinco filhos. Só
por isso, decidiu seguir minhas instruções e nós nos
preparamos para prendê-lo. Quando ela saiu de casa para
encontrar-se com você, nós a seguimos, mas não pudemos
acompanhar a motocicleta. Depois, só soubemos de vocês,
quando ela deixou o reservado para encomendar o jantar no
“Hotel Angkor”.
— Entendo — falou Kenjiro com sarcasmo.
— Acredite, Mai somente o traiu porque desejava salvar
a vida dos sobrinhos. Praticamente trocou a vida de ambos
pelas dos meninos.
— Está querendo que eu acredite que trocou nossas vidas
quando o mais certo seria dizer que trocou minha vida pelas
vidas dos meninos?
— Sato, você ainda não entendeu, ela desejou morrer
com você, mas antes quis passar algumas horas sozinha em
sua companhia. Desejou gozar da plenitude do amor em seus
braços! Chegou a dizer que se alguém o matasse se
suicidaria em seguida. Nós o capturamos vivo porque essa
foi a vontade de Ásia. Depois, foi ele mesmo quem sugeriu
que eu trouxesse todos para cá, onde os meninos ficariam
mais protegidos e agora, descobri que me mentiu, que apenas
estava forjando as coisas para matar-nos. Andou falando que
poderia ser perigoso nos deixar vivos, pois muitas pessoas já
sabem que Yam Prang tem ligações com a organização
criminal que ele fundou. Só você pode ajudar-nos, Sato!
Kenjiro cobriu o rosto com as mãos e se manteve nesta
posição por alguns segundos. Aos poucos, ia compreendendo
o que Maiko havia feito. Agora tinha certeza que ela o
amava e que só agira para salvar as crianças e Na Paeng.
Maiko o amava tão sinceramente que decidira entregar-se
totalmente a ele, no entanto Kenjiro Sato não soube valorizar
a grandeza de seu gesto e tinha passado o tempo todo
imaginando de que modo poderia aproveitar-se dela para
capturar seu cunhado. Nem de longe poderia supor que
Maiko estivesse planejando morrer para poder salvar seus
cinco sobrinhos. Quanta abnegação em um espírito tão
jovem!
— Sato, tem de ajudar-me, preciso salvar meus filhos! E
eles querem me matar! — insistiu Yam Prang.
Por quê Maiko ia matar-se por ele? Só por amor! Ela
poderia fazer o máximo para salvar as crianças, mas jurou
suicidar-se caso ele fosse assassinado. E por quê ia fazer
isso? Porque o amava!
Estava realmente estupefato. O mundo estava ficando
diferente? Podia existir algo mais lindo do que a
generosidade e o amor de Maiko? Algumas horas de amor
total e absoluto e logo, a troca de duas vidas por seis. Estava
no mesmo planeta que tinha vivido até então?
— Sato... Os meus filhos e Maiko já estão aqui — disse
Yam.
— Onde?
— Estão em um calabouço, neste mesmo corredor. Um
pouco mais confortável porque foi preparado para ser
dormitório dos homens que se associarem à organização
desse monstro! Não quero que matem meus filhos!
— Converse com Ásia. De que modo as crianças poderão
prejudicá-lo?
— Se eu falar com ele, saberá que já estou a par de seus
planos e dará ordens para tudo ser feito com rapidez. Tem
medo que os meninos tenham escutado alguma conversa e
comentem sobre o que ouviram. Foi por esse mesmo motivo
que tivemos de matar Tin Maeng!
— E agora será sua vez.
— E vão matar Maiko! — exclamou Yam Prang. —
Pensei em tirá-los daqui, mas sei que me encontrarão.
— Por que não solicita a colaboração da polícia?
— Não adianta, Ásia tem vários comparsas policiais.
Kenjiro sorriu mais uma vez. Sensei raciocinara com
clareza e agora, tinha certeza de que ele não se equivocara
com Mai Korang. Era verdade que não tinha prestado
atenção nos homens que apareciam nas fotos, mas quando
ele lhe perguntara quem era a dançarina que devia estar
informada sobre o caso, recebera a seguinte resposta: — Não
tire suas próprias conclusões. “K” não pôde dizer-nos o que
significam estas e podem significar muitas coisas.
— E como podemos sair daqui? — perguntou a Yam.
— Eu tenho uma pistola e tudo poderá ser resolvido mais
facilmente se eu contar com sua ajuda. Só há seis homens na
casa. Você precisa levar-nos para um lugar onde fiquemos
sob a proteção da Kuro Arashi. Se fizer isso, eu lhe direi
tudo que sei sobre Ásia!
— Sobre a organização e seu fundador não preciso de
mais informações, agora estou mais interessado em Maiko.
Há alguém no corredor?
— Não. Todos os homens estão descansando na
biblioteca. Avisei que vinha ver meus filhos e eles não
desconfiaram nem suspeitaram que eu viria falar com você.
— Vamos sair daqui.
Yam abriu a porta, olhou para um lado e outro do
corredor e quando viu que este estava deserto, avisou
Kenjiro. Ambos se dirigiram à cela onde estava Mai e as
crianças. Quando Yam abriu a porta com a chave que lhe
fora entregue por um dos companheiros, a jovem e Na Paeng
se levantaram imediatamente.
— Sato, meu amor! — balbuciou a moça assim que o viu.
Ele aproximou-se dela e a beijou nos lábios.
— Maiko, meu amor! — sussurrou.
— O que está acontecendo? — perguntou a anciã.
— Precisamos sair daqui imediatamente — disse Yam
Prang. — Não desperte os meninos! Você e Mai tomarão
conta deles e aconteça o que acontecer, eu e Sato
resolveremos todas as dificuldades que surgirem durante
nossa fuga. Não se preocupem conosco, mas apenas com
meus filhos.
— Mas... — começou Mai Korang.
— Eles resolveram matá-los — disse Kenjiro. — Maiko,
obedeça e siga todas as instruções de Yam Prang.
— Sim, Sato.
Este foi o primeiro a sair daquela cela. Yam seguiu-o,
empunhando a pistola. Depois foi a vez de Na Paeng, que
saiu dando a mão ao menino que estava com quatro anos e
atrás deste vinham os três maiores. Mai foi a última que
abandonou aquele calabouço, carregando o mais novo nos
braços.
Percorreram o corredor das celas e chegaram a uma sala
pequena e perto da porta desta estava a escada de pedra.
Kenjiro fez um sinal para as mulheres subirem com as
crianças e quando Yam Prang ia segui-las, ele colocou a mão
em seu braço.
— Não — sussurrou. — Nós não podemos ir ainda. Se
perceberem nossa fuga, iniciarão uma perseguição e então,
não poderemos escapar. A fuga passaria a ser impossível e
ainda exporíamos os meninos a perigos desnecessários.
Primeiro, devemos deixar tudo arrumado, entende?
— Está sugerindo que matemos os seis homens... agora?
— Talvez não seja necessário chegarmos aos extremos.
Esperemos que elas saiam da casa com os meninos e que
todos fiquem em segurança. Há alguém lá em cima?
— Não. Os convidados estão dormindo e Ásia está em
sua oficina, consertando seus “amigos pessoais”.
— Pois bem, esperemos mais dois minutos.
Mai quando viu que eles tinham parado no meio da
escada também se deteve, mas Kenjiro fez-lhe sinais para
continuar. Logo em seguida, olhou para a porta que estava
no final do corredor, a mesma por onde entrara há algumas
horas antes quando se encontrou com Ásia e seus
convidados.
— Yam, abra essa porta e chame dois deles — sussurrou
o japonês. — Chame-os com naturalidade, entendeu?
— Sim.
Kenjiro se encostou à parede, junto da porta, enquanto
Yam a abria e chamava dois companheiros. Disse-lhes
algumas palavras em tailandês e, instantes mais tarde, saíram
dois auxiliares de Ásia, ambos com caras zangadas por terem
sido acordados durante as horas de repouso. Yam não
precisava de novas instruções, deu com a coronha da arma
na cabeça de um deles e naquele mesmo instante, Kenjiro
golpeava a fronte do outro, que caiu fulminado.
O ruído chegou até dentro da biblioteca e ambos ouviram
vozes exaltadas. O japonês abaixou-se e apanhou as pistolas
dos homens que estavam estatelados no chão e fez um sinal
para Kenjiro abrir a porta completamente. Eles entraram
empunhando as armas e dessa forma, puderam surpreender
os quatro vigilantes que estavam descansando.
— Yam, que todos se desarmem — falou em francês.
— Joguem as armas no chão! — ordenou Yam em
tailandês.
Os vigilantes obedeceram e jogaram as armas no sofá.
Kenjiro apanhou um dos cinturões e o enfiou pelos guarda-
matos das armas. Em seguida, afivelou-o e o pendurou ao
pescoço. Depois saiu e voltou imediatamente, arrastando os
dois outros guardas que estavam desmaiados, enquanto
Prang continuava apontando a arma para os quatro.
— Yam, diga para seus amigos se comportarem e
permanecerem calmos. Vamos chavear a porta pelo lado de
fora e nada faremos contra eles.
Yam Prang traduziu tudo para e tailandês e os olhos dos
prisioneiros não se desviavam do rosto de Kenjiro.
Os dois saíram novamente e quando já estavam no
corredor, depois da porta já estar trancada à chave, Yam
Prang sorriu e exclamou:
— Não pensei que fosse ser tão fácil!
— Esta parte está resolvida, agora iremos matar Ásia, eu
faço questão de encarregar-me dele e não necessito dessas
porcarias — disse Kenjiro, entregando o cinturão com as
armas para Yam.
Este arregalou os olhos e gritou:
— Não... Espere!
— Não vamos esperar mais nada! Kenjiro Sato vai Matar
a víbora agora e ela não porá mais ovos.
— Não, não podemos matá-lo... Não podemos.
— Veja uma coisa, fui paciente, cordato com esses seis
homens. Apenas desarmei-os e os tranquei em uma sala.
Estou disposto a perdoá-los, mas Ásia deve morrer. Meu
Mestre quando me escolheu disse que sempre há um homem
adequado, no momento adequado. Meu Mestre escolheu a
mim e agora sei porque fui o escolhido. Vamos até ele.
— Não pode ir procurá-lo!
— Por quê?
— Antes de ir procurá-lo, eu mato você!
Plop! A pistola provida de silenciador detonou e a bala
passou roçando pelo pescoço de Kenjiro, que girou
rapidamente, ficando de costas para Yam. Pegou seu braço
com as duas mãos e o torceu, a dor foi tanta que o chinês
caiu sentado no chão, enquanto os ossos chegavam a ranger
conforme se esfacelavam e pouco depois, as lascas ósseas
principiavam a perfurar a carne, enquanto o sangue
começava a gotejar em vários pontos do braço.
— Você está louco? Então, pensava matar Ásia?
— Maldito! Cretino! Vagabundo! — gritou o judoca ao
perceber que caíra na armadilha. — Você mentiu! Usou seus
filhos para me comover, pensando que eu fosse levá-lo a
presença de Sensei. Você queria matar meu Mestre!
— Fique sabendo que qualquer um de nós, auxiliares de
Ásia, o mataremos! Ásia não admite rivais!
A mão direita de Kenjiro se levantou e ficou parada sobre
a cabeça de Prang que se encolheu, procurando proteger-se
do golpe que ia desabar sobre ele. Sabia que um judoca ou
um carateca muitas vezes aplica certos golpes que chegam a
ser mortais.
Esperou, mas a mão de Kenjiro não desceu com a
violência esperada.
Ele continuou com a mão levantada, pensando que na
vida há muitas coisas boas e más. Viu mentalmente os cinco
garotos chorando no primeiro degrau da escada e reviu
Maiko acalentando-os. Como o cafajeste tivera coragem de
utilizar aqueles anjos para matar Sensei? Tentou abaixar a
mão, mas não conseguiu, apenas murmurou:
— Prang, não posso esquecer seus filhos e nem tenho
coragem de deixá-los sem pai! Você é um cretino! Eu não o
matarei, mas sei que qualquer dia um judoca fará isso por
mim!
Apanhou as pistolas que estavam no chão e deu com a
coronha de uma delas na fronte do chinês que caiu
desmaiado. Em seguida, atravessou o corredor novamente e
foi sair no vestíbulo.
O local estava silencioso e parecia que ninguém estava se
apercebendo das coisas que aconteciam naquela mansão.
Continuou examinando tudo com muito cuidado, pois não
gostaria de ser apanhado de surpresa... e de repente viu uma
réstia de luz brilhando sob uma das portas.
Certamente, Ásia estava trabalhando em sua oficina.
Abriu a porta com cuidado e viu o anão disforme na
frente de uma banca de ferramentas eletrônicas e em cima de
outra mesa, estava um dos robôs, com o “ventre” aberto.
Ásia estava debruçado sobre o boneco de ferro, mexendo
em fios elétricos e outros apetrechos necessários ao bom
funcionamento de seu “melhor amigo”.
Escutou o barulho da porta, levantou a cabeça e não
conseguiu esconder sua surpresa.
— Sato, o que veio fazer aqui?
Enquanto falava seus olhos se moviam por toda a sala
como se procurassem algo que não aparecia.
Kenjiro sorriu e lhe explicou:
— Desista, Ásia, porque Yam Prang ficou no porão. Sou-
lhes grato por todas as facilidades que ambos me
proporcionaram para eu poder escapar, mas jamais permitirei
que alguém mate meu Mestre! Ninguém poderá matá-lo!
— Então você sabia de nosso plano? Sabia de toda a
verdade?
— Sim, Ásia, não saberia precisar a partir de quando, mas
eu já estava desconfiando da verdade. Agora, prepare-se
porque eu vou acabar com você.
— Não! Não se aproxime de mim e nem me toque! Eu
não tenho armas e nem tenho forças para defender-me!
— Tampouco as tinham todas as pessoas que mandou
matar. Mandou assassinar dezenas de pessoas só para
satisfazer o orgulho e a ambição que existe dentro de você.
Mandava matar para comprazer seu ego homicida e por quê
não posso matá-lo agora, pelo menos para vingar as mortes
de tantos homens dignos e honrados? Enfrente-me como
homem!
Kenjiro riu, sem nem de longe poder imaginar qual a
morte que ele ia escolher.
O anão introduziu a mão direita dentro do “ventre” do
robô que estava consertando e puxou um molho de fios. As
faíscas começaram a aparecer profusamente.
Kenjiro Sato viu quando Ásia recebeu a descarga elétrica,
como seu corpo foi sacudido e como os dentes brilharam,
para em seguida, ele cair fulminado. Na queda, com a mão
ainda dentro do robô, puxou o boneco de ferro que caiu
despejando milhões de faíscas azuladas.
O judoca retrocedeu agilmente ao perceber que estas
ficavam cada vez maiores, mais numerosas e que outras
faíscas começavam a aparecer em vários lugares diferentes,
da sala, provocando o início de um curto-circuito.
Como o jogo pirotécnico era lindo e perigoso! Primeiro,
tudo começou a estalar, começou a ganhar um colorido
diferente até as labaredas irromperem em vários lugares ao
mesmo tempo.
Kenjiro saiu da oficina, atravessou o vestíbulo correndo,
enquanto as chamas iam aumentando. Agora ouvia várias
pessoas gritando e seus passos correndo de um lado para o
outro.
Um dos convidados americanos debruçou-se no corrimão
da escada, chamando Ásia aos berros, perguntando em
francês o que estava acontecendo. De repente, viu Sato
iluminado pelas chamas.
Virou-se para trás e pediu em inglês:
— Harold, traga-me uma pistola! Tudo é obra do maldito
japonês!
O judoca não esperou que alguém lhe entregasse a arma.
Abriu a primeira porta lateral que viu e saiu para o jardim.
A escuridão era total, continuou andando sem saber para
onde ir e foi então que escutou:
— Sato! Sato!
A voz da mulher amada orientou-o naquela escuridão e
quase em seguida, a moça apareceu a sua frente. Segurou sua
mão, puxando-o.
— Ande depressa, Sato! Já estamos na lancha esperando
por vocês. Onde está Yam Prang?
Kenjiro abriu a boca para falar, mas naquele momento
houve uma grande explosão.
— Ele se virou depressa e ainda pôde ver as primeiras
labaredas enfeitando e clareando a noite. Em seguida, uma
sequência de estampidos, estouros e a casa ficou totalmente
iluminada.
— Onde está Yam Prang? — insistiu Maiko.
O judoca olhou para ela sem saber o que podia responder-
lhe e terminou lhe contando parte da verdade.
— Quando fugíamos para cá, alguém o matou, Maiko.
Yam deu a vida para salvar seus filhos. Venha, vamos correr
para a lancha e fugir deste inferno!
Pouco depois, a lancha afastava-se do embarcadouro.
Kenjiro estava satisfeito tinha destruído a organização
“Ásia”. Agora as chamas consumiam tudo que um anão
assassino havia construído.
Abraçou Maiko pensando que a viagem a Bangkok fora
muito útil: Conseguira destruir um ninho de víboras
peçonhentas e conhecera a mulher que o destino lhe tinha
reservado.
***
Chegou ao chalé de Sensei e lhe relatou tudo que havia
acontecido em Bangkok.
O silêncio era tão intenso que ele somente ouvia o rumor
da água na fonte, o canto dos passarinhos e o sussurro do
vento entre os bambus.
Kenjiro Sato continuava sentado na frente de Sensei
esperando o que o Mestre lhe ia dizer. Depois de uma longa
meditação, Sensei olhou para o judoca e disse:
— Você fez tudo com muito capricho e eu gostaria de
atender qualquer pedido que me faça. Você pode pedir o que
desejar, meu filho.
— Quero voltar para Bangkok, Mestre.
— Por quê quer voltar para lá se já terminou tudo?
— Mestre, eu gostaria... de trabalhar no dojo de Osamu.
Gostaria de ser seu ajudante.
— Isso é absurdo, Kenjiro. Seu grau é superior ao de
Osamu. Este desejo não será uma demonstração de falsa
humildade?
— Não, Mestre. Quero ficar residindo em Bangkok por
algum tempo, até os sobrinhos de Maiko crescerem e ficarem
adultos. Então, talvez, eu e ela voltemos para Tóquio ou
ficaremos em Bangkok mesmo, onde envelheceremos.
Mestre, o senhor nem pode imaginar como aquela flor
tailandesa é linda!
— Se ela viesse para cá talvez murchasse — sorriu
Sensei. — Você aprendeu muito, Kenjiro. Pode retornar a
Bangkok e tenho certeza que meu neto o receberá de braços
abertos. Que mais você quer?
— Nada, Mestre.
— Estou espantado, filho. Pensei que me ia pedir mil
coisas.
— Já não desejo mais ser o diretor-geral e nem o
visitador dos seus dojos, Mestre.
— Por quê não?
— Porque compreendi que Masao Wajima pode fazer
isso melhor do que eu faria, mas também compreendi que
posso fazer outras coisas melhor do que ele. Por exemplo,
minha atuação em Bangkok foi ótima. Mestre, eu só quero
continuar trabalhando e servindo à Kuro Arashi!
— Então gostou de arriscar sua vida, gostou de expô-la
ao perigo?
— Não, mas foi por isso que compreendi certas coisas,
Mestre... Coisas surpreendentes. O senhor sabia que isso ia
acontecer comigo?
— Não desvalorize suas experiências, Kenjiro. Eu não
sabia e nem poderia saber o que ia acontecer. Porém sabia
que quando está em jogo a vida e a morte, o homem
consegue reconhecer as verdades que lhe passavam
despercebidas. Você foi tratado injustamente em várias
épocas de sua vida e...
— Sensei, o senhor sabia que isso tinha acontecido
comigo?
— Sim, costumo saber tudo sobre os discípulos que
começam a caminhar pelo caminho do bem e do progresso.
Sei que quando você era pequeno levou uma surra de um
grupo de garotos porque estes não queriam que fosse buscar
comida na zona que consideravam exclusiva deles. Sei que
perdeu seus pais bem cedo e que sua infância foi amarga. Sei
que quando adolescente esteve disputando um campeonato
que nunca conseguiu vencer. Kenjiro, sou velho, mas ainda
tenho capacidade para amar aqueles que estão comigo. E se
eu os amo, vivo com eles e sofro com eles. Até há poucos
dias, você era um homem que apenas via o sofrimento e as
desgraças que grassavam pelo mundo. Era um ser implacável
e duro, mas eu sabia que no fundo você era diferente. Podia
ter gasto dias e meses falando, mas você continuaria sendo
como era, pelo menos agora, eu o vejo mais humano, agora é
um rapaz que sabe que a vida oferece coisas boas e más.
Filho, aprenda a amar as boas e suportar as más e acima de
tudo, jamais se esqueça que nunca estará sozinho, nem nas
horas alegres ou nas de dor ou sofrimento. Entende o que
estou tentando transmitir para você, Kenjiro?
— Sim, Mestre.
— Você acaba de fazer uma coisa da qual jamais se
esquecerá. Sei que não há beleza em se matar alguém,
mesmo o maior bandido do mundo, mas é lindo saber que foi
você quem destruiu uma organização que vivia para o crime
e para grassar a infelicidade em todas as partes da Terra.
Outra beleza da vida é amar e ser amado. É saber que em
cada aurora o sol aparecerá antes do desaparecimento da
última estrela que cintilou na noite. Se você meditar sobre
tudo isso, um dia há de alcançar o satori, filho. Ou quem
sabe se já não o alcançou?
O quinto Dan de Judô olhou para as árvores cheias de
passarinhos, o bambuzal, as flores. Tudo parecia tão lindo e
cercado de paz. Pensou que em Bangkok, lá, alguém o
esperava com ansiedade, uma moça que teria morrido de
amor.
— Não sei, Mestre. Qual é sua opinião?
— Penso que ainda não chegou ao estado de graça, meu
filho, mas já está vislumbrando um pontinho luminoso onde
antigamente só havia trevas. Kenjiro, você está no caminho
certo, mas deve ter muito cuidado para não perder esse
pontinho luminoso de vista... e um dia, muito antes do que
possa pensar, encontrar-se-á com o satori.
O Mestre sorriu seu sorriso de bondade e continuou:
— Agora, volte o mais rápido possível a Bangkok. Nem
eu e nem o satori queremos atrapalhar seu romance de amor.

ESTE É O FINAL
Finalmente despertou e viu a Ninja que estivera em todos
os seus sonhos. Era linda, tinha cabelos negros e olhos azuis.
Estava sentada perto da cama, sorria-lhe e seu sorriso era tão
maravilhoso como o satori, talvez até mais doce.
— Como está? — ela perguntou.
— Bem — respondeu quase sem voz.
Kenjiro Sato olhou à volta e viu que estava em um quarto
confortável. Olhou para a janela e viu uma gaivota. O cheiro
do mar chegava até sua cama. O sol estava brilhante,
refulgente.
— Onde estou? — perguntou.
— Em um chalé ao sul de São Francisco, pertinho da
praia. Felizmente está recuperando-se rapidamente e em
breve poderá visitar o Sensei e lhe contar como tudo
aconteceu enquanto cumpria sua missão. Já remeti a ele
todos os papéis que encontrei em seus bolsos, Kenjiro Sato.
— É uma Ninja?
— Não, não sou uma Ninja — riu a mulher.
— Então, como conseguiu tirar-me daquela ratoeira?
— Talvez por sorte ou por ter um pouco de... experiência
em situações parecidas. Agora está bem medicado, bem
melhor e nós nos despediremos aqui. Porém, faço questão
que quando voltar ao Japão cumprimente Sensei em meu
nome.
— Agora sei quem é — exclamou Kenjiro. — É a
repórter Brigitte Montfort! Eu já vi você em revistas e na
televisão!
— Porém, jamais me tinha visto correndo pelos telhados
e disparando contra vários homens. Agora, por favor,
esqueça-se de que um dia me viu, que conversou comigo
conforme fizemos neste instante.
— Não me peça uma coisa que não poderei cumprir —
sussurrou Kenjiro. — Nunca, nunca comentarei que um dia
eu a vi correndo pelos telhados, carregando um homem nos
ombros. Isso jamais comentarei, mas não me peça para
esquecê-la. Não poderei esquecer-me da pessoa que salvou
minha vida.
— Prometa que pelo menos tentará.
— Não, não posso. Conhecer você foi, para mim... como
alcançar o satori.
— Se foi esta a sensação que está tendo, sinto-me
recompensada — sorriu a senhorita Montfort, levantando-se.
— Então, agora nós dois nos entendemos e estamos em paz.
Boa sorte, Kenjiro Sato!

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