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A sombra do guerreiro*

Fernando Iwasaki

Enquanto sombras milenares e familiares me envolvem, as imagens dos últimos


momentos vividos se amontoam em minha mente como uma lembrança difusa.
-Senhor Kawashita?- uma voz aflautada soou pelo interfone- Sou Yoshitaro
Kohatsu. Falei com o senhor pela manhã.
-Suba. Estou esperando.- respondi.
Enquanto esperava pelo meu visitante, pensei a respeito da curiosidade que
despertava em mim aquela inesperada entrevista. O meu pai, filho de um japonês e de
uma peruana, nunca nos levou, nem a mim e nem aos meus irmãos, a frequentar a colônia
japonesa. Tampouco falou a nosso respeito para os seus parentes e nós crescemos em
colégios católicos. Com o tempo, a universidade consolidou nossa visão ocidental do
mundo e o Japão jamais despertou em nós um sentimento atávico. Finalmente, como me
especializei em literatura inglesa, a minha ignorância em temas orientais era total. Na
verdade, a imagem confusa que eu tinha dos japoneses se debatia entre filmes de
Kurosawa e propagandas de aparelhos eletrônicos. Dito isso, quem era aquele senhor
Kohatsu que queria tratar comigo de um assunto familiar? O som da campainha me
despertou dessas reflexões.
O japonês era baixinho e de uma magreza que eu qualifiquei de “muito oriental”,
mas apesar da idade ele parecia robusto (qual seria a idade dele?). Depois de recusar
polidamente todas as bebidas oferecidas, Kohatsu me contou a sua história.
-O meu nome é Yoshitaro Kohatsu e fui conselheiro do palácio de Hokkaido. Sou
de uma linhagem que se perde na noite dos tempos e minha família foi uma das mais
importantes do Japão desde a vitória dos Minamoto- proclamou enquanto fazia profundas
reverências.
-E o que eu tenho a ver com isso?- Perguntei um pouco entediado.
-Pouca paciência ter, não parecendo neto de Takachi Kawashita- ele respondeu.
Takachi Kawashita? Então era esse o nome do meu avô? O meu pai jamais nos
falou dele e, reservadamente, a minha mãe nos contou que o avô tinha abandonado a
esposa, deixando o meu pai ainda muito pequeno para trás, razão pela qual ele lhe
devotava vestígios de ressentimento. Mas aquele senhor Kohatsu tinha vindo contar-me
coisas desconhecidas a respeito do meu avô, do Japão e de tudo. Por isso decidi ficar
calado e escutar.
-Desde que o general Yoritomo Minamoto implantou o governo militar com a
ajuda dos meus antepassados- prosseguiu- a minha família foi uma das mais importantes
do Japão. Durante oitocentos anos os generais shogun governaram as quatro ilhas, mas
em 1867 o príncipe Meiji derrotou o último shogun e a família imperial recuperou o
poder. Não me olhe assim, eu não sou tão velho. Eu nasci depois.
Então, a minha família perdeu as suas riquezas, os seus palácios e muitos foram
levados ao exílio. Quando completei vinte anos, eu conspirei contra o imperador Meiji e
fracassei, e desde aquele momento passei a ser um prófugo e um traidor. Por aquela época,
a companhia Morioka oferecia trabalho no Peru, um país distante, outro continente. Eu
estava condenado à morte e foi por isso que embarquei.
O imperador encolerizou-se. Eu tinha que morrer por ter ofendido os deuses, mas
como sou um samurai, apenas um samurai podia me matar. Takachi Kawashita, membro
de uma das famílias mais fiéis ao imperador, fez o juramento do bushido e veio em meu
encalço. Quantas vezes cruzamos as nossas espadas? Takachi era um dos guerreiros mais
valentes das quatro ilhas. Lutamos na serra e na floresta, no norte e no sul. Eu sempre
fugindo e o seu avô atrás de mim. Sei o que você pensa, um disparo de arma de fogo teria
sido mais fácil, não? Mas Takachi, sendo um bom samurai, sabia que para me executar
precisava me vencer em combate.
Quando ele finalmente me derrotou, eu o encarei. “Takachi- lhe disse- por que
lutamos? Faz mais de cinquenta anos que você me persegue e agora que eu estou em suas
mãos, o que você vai fazer? O imperador Meiji já não existe mais, o Japão perdeu a
Grande Guerra, os títulos nobiliárquicos foram abolidos e dizem que agora existe uma
república. Takachi, quem vai se lembrar no Japão do traidor Yoshitaro e do samurai que
partiu em seu encalço?”. Assim eu disse para o seu avô e amaciei o coração dele. Desde
então, o meu carrasco se converteu em meu melhor amigo. Mas já éramos velhos quando
tudo aquilo aconteceu e foi difícil recomeçar. Trabalhamos como operários, cozinheiros
e carpinteiros: nós, que tínhamos gozado dos maiores luxos na corte mais antiga do
mundo! Antes de morrer, Takachi me contou que teve uma família aqui no Peru. E eu
esperei muitos anos para cumprir com a minha promessa.
-Que promessa?- perguntei.
-O seu avô era um autêntico samurai- ele respondeu enquanto me entregava uma
espada-. Essa katana luta contra os Minamoto há mais de mil anos e nunca foi derrotada.
Ela pertence à sua família. Quando veio para o Peru, Takachi jurou ao imperador que com
ela me mataria ou se mataria, mas o seu avô morreu de infarto e não cumpriu com a
promessa. O bushido diz que um guerreiro deve cumprir com a palavra ou morrer como
um samurai.
-E por que você está dando essa espada para mim- perguntei- e não para o meu
pai? O meu avô não tinha família no Japão?
-O seu pai renegou ao seu avô -ele respondeu. -E eu não voltarei mais ao Japão
porque sou muito velho. Eu tenho economias, vou para Arequipa. Vou morrer lá. Será
como o Monte Fuji. Mas você é poeta e está escrito que a poesia recupera aquilo que o
homem perde em suas outras vidas.
-Mas o que eu vou fazer com ela?- voltei a perguntar.
-Diz a lenda que as cinco mil espadas que salvaram a família imperial da
destruição têm um poder sagrado- detendo-se em cada palavra, Kohatsu exclamou-. Essa
katana é mágica e lhe dirá o que fazer.
Recordo que depois de fazer uma reverência solene, Yoshitaro Kohatsu foi
embora. Observei a espada que brilhava sobre a mesa e uma força irresistível me obrigou
a examiná-la.
O contato com ela me fez acessar um conhecimento antigo, e por meio dele eu
soube que os relevos artísticos em sua bainha representavam paisagens do período Heian,
quando o imperador edificou a resplandecente cidade de Kyoto com suas artes mágicas.
Graças ao brilho da lâmina cortante experimentei a sensação de ter participado em mil
batalhas e pensei no bushido, o código do samurai, pensei em meu avô abandonando o
meu pai por causa da sua promessa ao imperador, e pensei em sua missão incompleta,
que mais do que um fracasso humano foi um fracasso divino porque o imperador era o
deus.
Enquanto posicionava a espada sobre o abdômen, eu pensei nos escassos cem anos
que o Japão levou para assimilar-se ao mundo ocidental, e os comparei com os minutos
que foram suficientes para que eu assumisse a sua cultura milenar. Agora que os meus
olhos fazem os seus últimos movimentos, compreendo o sentido do bushido: o imperador,
meu avô e eu somos uma mesma forma. Somos o deus... Do outro lado, sinto o aroma das
cerejeiras.

*Versão publicada originalmente em <www.pagina12.com.ar>

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