Você está na página 1de 17

Alvorada

Não há um ato mais bárbaro do que a guerra!


Não existe um outro fato mais trágico do que a guerra!
Entretanto, essa guerra ainda continuava.
Não há um povo mais infeliz do que aquele dirigido por
líderes estúpidos.
Durante oito anos, o povo vinha suportando os
sofrimentos além de perder pais e filhos na guerra. E, nos
dias de julho de 1945, todos estavam sendo oprimidos pela
atmosfera densa de expectativa apreensiva que era a da
invasão dos americanos a qualquer momento.
Às sete horas da noite de 3 de julho, do lado de fora do
maldito portão de ferro da Prisão de Toyotama (atual Prisão
de Nakano, Tóquio), algumas pessoas permaneciam
silenciosamente, com olhos fixos para o pátio da prisão
desolada, embora aí não se visse nenhum sinal de vida.
Duas horas já se passaram e o silêncio ainda reinava no
ambiente.
Eram extensas e altas as paredes de concreto que
cercava a prisão e o calor do dia que elas absorveram não
esfriou ainda, apesar da hora crepuscular. Entretanto, o dia
quente já se despedia, e o vento suave começava a soprar, de
lá das florestas da Planície de Mussashino.

11

Nesse instante, um homem magro de meia idade, saiu


às pressas de uma pequena porta situada no canto direito
do portão de ferro. De suas mãos, pendia um volumoso
embrulho de furoshiki*. Seus passos acelerados pareciam
atrapalhar a marcha. Em direção a ele correram as pessoas
que estavam à sua espera, pronunciando algo em voz
aguda.
— Olá!
— Oh!
O homem parou abruptamente e dirigiu a face em
direção às pessoas. O brilho do sol refletiu-se de súbito,
sobre as lentes grossas de seus óculos.
— Ikue! Veio receber-me? A casa está bem?
— Não foi incendiada. Todos estão bem.
— Sim. Está bem! Está bem! disse o homem à mulher,
em tom rápido e consolador.
— Não precisa mais se preocupar. Realmente causei
dificuldades.
— Seja benvindo, titio.
— Oh' Kazuo veio também?
— Seja benvindo.
— Oh, mana! a senhora veio também me buscar?
Para receber o homem, três pessoas, vieram. Ikue, esposa
dele, a irmã e o sobrinho, Kazuo.
Yukata*, o traje leve de verão ressaltava a alta estatura do
homem. O vento levantou as extremidades de Yukata. Nisto,
apareceram duas pernas esqueléticas de pele e osso, que
pareciam duas finas bengalas.
Ikue, sua esposa, até então sorridente, sentiu repen-
tinamente um aperto no peito e estendeu as mãos para
agarrar o volumoso embrulho que seu marido levava.
furoshiki • Lenço grande para transportar os pacotes à mio. Yukata * Roupa leve
em forma de quimono e de uso no tempo de calor.

12
Kazuo, seu sobrinho, extendeu também suas mãos e
colocou-o sobre seus ombros.
— Puxa! É mais pesado do que eu pensaval
Desabrocharam sorrisos nas faces das quatro pessoas.
Todos estavam dominados por uma espécie de êxtase. Não
conseguiam sequer formular palavras, embora tivessem
tantos assuntos a dizerem, pois tinham os corações
repletos de alegria. Silenciosamente, as quatro pessoas
caminharam passo a passo, acompanhando o paredão da
prisão.
As duas senhoras usavam o traje de mompe*. e o boné
anti-aéreo, que deixavam cair pelas costas. O moço pendurava
no dorso um capacete de ferro, e as suas pernas estavam
enroladas por ataduras de soldado. Eram trajes usados para
defenderem-se contra os iminentes ataques aéreos. O homem
de meia idade, andando em seu traje de yukaía, de ombros
erguidos, como se voltasse de um banho quente, chamava a
atenção de todos.
Em consequência dos repetidos ataques aéreos, a
cidade parecia sombria justamente como o espírito das
pessoas agonizantes.
Já descera o véu escuro da noite. No fim do paredão,
virando à direita, era a rua do Nakadori, Bairro de Araityô. Não
se via quase ninguém no seu trajeto. Um pouco mais além. do
lado direito, viam-se casas enfileiradas, mas, do outro,
estendiam-se ruínas escuras como se fosse um buraco
aberto no véu noturno. Era a área devastada pelo incêndio
da guerra.
O homem de yukata parou ali e observou a treva com
olhar penetrante como se confirmasse alguma coisa.
— Como é terrível!
Mompe • Calças que as mulheres japonesas usavam nos serviços.

13

Após um suspiro profundo, começou a andar nova-


mente. Até então, ele vinha noites após noites experi-
mentando sozinho os horrores da guerra, vendo, através da
pequena Janela da prisão, o avermelhar do céu devido ao
reflexo do fogo dos bombardeios. A cada instante, meditava
com. dor no peito, sobre o curso da guerra, excitado pela
sinistra sirene que anunciava o alarme. Mas, era a primeira vez
que ele via a área devastada pelo incêndio.
Já em novembro do ano anterior, os aviões americanos
bombardeavam indistintamente as cidades japonesas, partindo
das bases fixadas nas Ilhas Marianas. Desde então até maio
de 1945. as bombas incendiárias haviam devastado quase que
totalmente a maioria das grandes cidades do Japão, como
Tóquio e Osaka. E a partir de junho, vinham atacando
diariamente as pequenas cidades regionais. Nessa altura,
cerca de 3 milhões de casas haviam sido incendiadas; foram
causados 600 mil mortos e feridos, e 10 milhões de vitimas
afluíram à ilha principal.
Embora estivesse alheio a esses pormenores, ele já os
previra. No caminho ia perguntando sucessivamente, a
respeito dos parentes e dos amigos. Soube que o bairro
popular fora devastado quase que totalmente e que dos
conhecidos de Yamate só metade estavam ainda vivos.
Mas a guerra não terminou ainda.
— Até quando pretendem continuar essa tolice! disse ele,
movendo irritadamente os lábios, como se cuspisse essas
palavras, e sem se referir à alguém. Sua voz se apagou na
escuridão, mas sua ira incendiava incandes-centemente.
O desejo da paz e felicidade é esperança de todos.
indistintamente. Nunca se deve provocar a guerra. Quem
ficará contente com a guerra? Nem os vitoriosos. nem os
derrotados! Na recente história do Japão, a guerra veio
decidindo o destino do pais. O Japão veio pagando-a

14
com sacrifícios cada vez maiores e vivendo as infelici-dades.
Como mudar esse destino?
O pensamento deste homem, porém, que acabara de sair
da prisão, era completamente diferente do de outros homens da
época, os quais viviam afogados nos turbilhões da guerra.
Mesmo na prisão, não possuía rancor nem remorso.
Tampouco havia necessidade de auto-crítica do seu pro-
cedimento. Ele sabia, porém, quão fanático e estúpido era o
governo militarista. Quão injusto e violento era para com os
compatriotas.' Estava certo de que a causa daquela loucura
devia ser única e exclusivamente ao Xintoismo, que eivava o
eixo espiritual do governo militarista.
Contava ele, então, 45 anos de idade. Antes de ser
aprisionado, seu peso atingira quase que 70 quilos, porém,
depois não chegava nem a 40 quilos.
Aquela libertação pode parecer, para muitos, um
panorama vutgar da saída de um prisioneiro qualquer em época
de guerra. No entanto, este homem de meia idade e de cabeça
raspada, trajando yuKata, era justamente Jossei Toda!
Seu respeitoso mestre, Presidente Makiguti, voltara
daquela prisão, saindo por aquele portão, com a morte. Ele,
agora, saiu pelo mesmo portão com vida.
Os dois princípios da vida e da morte são obras
místicas de um só espírito.
Tanto Tsunessaburo Makiguti como Jossei Toda em
nada se diferiam no tocante ao desejo ardente da Paz
Mundial.
Através das veias destes dois princípios da unicidade
mestre e discípulo e da unidade vida e morte, o sangue da
revolução humana se transferira.
Antes de mais nada, sentia ele o fervor da vingança.
Isso porém não significava o piarão de uma desforra dó
natureza política contra o governo militarista, mas

15
visava exatamente ir contra o inimigo invisível que conduzira o velho
e respeitoso mestre à prisão, levando-o em seguida à morte. O inimigo
deixou-o cerca de dois anos encarcerado como prisioneiro, fez
também sofrerem uma família e seus parentes, e mais ainda, trouxe
miséria e sofrimento para uma nação de mais de dezenas de milhões
de pessoas-
Prometia firmemente, consigo mesmo, vingar-se desse inimigo
invisível, causador dessas calamidades.
O Budismo é a lei da vitória ou derrota. É necessário provar a
vitória para que a justiça sempre prevaleça.
Não se pode afirmar que a origem da miséria baseia-se na
ordem social ou formas de governo de uma nação. Toda soube pela
própria experiência, sentida na sua carne, que a percepção aguda de
Nitiren Daishonin, de que acima de tudo a miséria tem causa nas
religiões heréticas e nas doutrinas falsas, é uma verdade evidente.
Isso e!e não percebeu agora pela primeira vez; durante
a guerra, já na intensa atividade de Soka-Kyoiku-Gak-kai,* cujo
presidente era o Sr. Makiguti, quando ele servia como diretor geral,
florescia essa profunda convicção. A sua convicção não fora quebrada
mesmo após a prisão;
entretanto, embora contra sua vontade, precisava reconhecer sua
derrota, devido ao trabalho infrutífero na imaturidade do tempo.
Subitamente, ele parou e interrompeu a respiração, ao sentir que uma
der aguda vinha do seu coração. Aquele cheiro desagradável,
proveniente dos restos de incêndio, vinha pairando ao local.
Novamente, começou a andar a passos lentos. Era a Avenida
Wasseda. O ambiente todo era escuro devido a medidas anti--aéreas.
Nessa escuridão, podia-se, ver, vagamente, as

" Soka l<yoiku Gakkei " Literalmente, Sociedade Educacional de Criação


de Valor, fundado em 1930. por Tsunessaburo MakigutÍ, o 1.°
Presidente.

16
casas ao longo da Avenida, graças ao reflexo da visibilidade do
pavimento. Seguindo adiante a uma certa distância e virando à
direita, já se via à frente, a estação de Nakano. As pequenas luzes
cobertas ao longo da plataforma, mostravam-se aos olhos como uma
fila de pontilhados longínquos- Dali para a frente, era só entrar no
trem. Sobre o muro de pedra, à esquerda, gramas estendiam-se
desordenadamente. Ele se sentou sobre a grama e deu um suspiro.
— Vamos descansar um pouco? chamou a família.
interrompendo a respiração.
— Isso mesmo, Kazuo, deixando cair imediatamente ao chão
aquele volumoso embrulho de furoshiki.
— Como é pesado, tio!
— Sim. Ai estão contidos os livros. Até que enfim, depois de
tanto tempo, consegui estudar um pouco, disse Toda, coçando os
flancos despreocupadamente.
— Não trouxe a toalha?
No momento em que sua esposa, Ikue, ia sentar-se ao seu lado,
entregando-lhe a toalha. Toda disse, rindo gostosamente:
— Se chegar muito perto assim, você irá receber os presentes.
— ?!.. .
— Piolhos. São as criaturas a quem reparti o meu sangue.
Foram tão bonzinhost
Limpando a testa e o pescoço coberto de suor. deu mais um
suspiro. Fugindo da solidão do isolamento, agora ele respirava
profundamente o ar livre e suave. Depois de dois anos, veio respirar
novamente aquele ar saboroso. Um vento suave soprava, acariciando
o seu rosto.
Os pedrestes iam passando apressadamente, ignorando as
quatro pessoas que ali permaneciam na escuridão da noite.
O céu estendia-se sem fim. Não se viam as estrelas.

17
Era um céu escuro. Entretanto, Toda reconhecia no seu íntimo uma
luz incandescente que inflamava o seu coração. Ninguém jamais
podia percebê-la. Nem havia meios para que os outros pudessem
compreender. Era Justamente aquela luz iluminada na solidão do
isolamento, a qual nunca iria se apagar para o resto de sua vida.
Nesse momento, ele certificava secretamente que, mesmo
diante da opressão dos ventos do mundo corrupto, aquela luz nunca
se poderia estremecer. E-te estava satisfeito.
— Que coisa terrível.
Ele se levantou, varrendo o enxame de pernilongos que vinha
invadir o seu rosto e as extremidades de seus membros.
— Vamos andando.
Os quatro começaram a marchar vagarosamente em direção à
estação Nakano.
Estavam escuros, tanic a estação como o interior do bonde.
Todos os homens usavam polainas e bonés; outros que possuíam
capacete de ferro ou capota para o abrigo anti-aéreo, dependuravam-
nos em seus ombros como se estivessem seguindo as instruções
pré-determi-nadas. As passageiras, embora em pequeno número,
trajavam calças gaúchas do tipo "mompe" e carregavam chapéus para
o abrigo anti-aéreo.
No meio dessa multidão de pessoas assim trajadas, 'eis que
aparece subitamente um homem com o traje folgado de verão à
yukata. Olhares franzidos de espanto dessas pessoas dirigiram-se
todos em direção a esse homem. O homem de yukata tornara-se
imediatamente um elemento de suspeiçào e de curiosidade aos olhos
daquelas. Seu traje, tão natural na época do verão, parecia naquele
momento muito estranho aos passageiros. Só podia atribuir tal fato a
um fenómeno estranho, resultante da guerra. Os passageiros, ao
invés de reconheceis
18

rem a estranheza da sua própria mudança de atitude psíquica,


lançavam olhares hostis àquele homem magro, como se o estivessem
censurando a ponto de dizerem;
"Este traidor da nação
Toda não deu importância àquela atmosfera. Era um Ifder que
sempre vivia com o povo, seja no meio da cidade, seja dentro do
bonde.
O povo é como a grama. Assim sendo, como as árvores podem
florir e dar frutos onde não podem crescer nem a grama? Às vezes, a
força e o pensamento do povo contêm mais forças e mais verdades do
que os dos filósofos ou dos estadistas.
Com o pescoço fino e estendido, ele se absorvia nas
conversações com o passageiro ao seu lado. A palestra era franca e
animada. Um homem sadio que aparentava uns cincoenta anos,
palestrava segurando cuidadosamente sobre os seus Joelhos uma
bacia e uma panela já desgastadas. Relatava seriamente o aspecto do
intenso bombardeio da noite de maio:
— Era um inferno de fogo. Bastava dizer isso. Ao alvorecer, era
um extenso campo de incêndio. Sobre a devastação restavam alguns
abrigos anti-aéreos. aqui e acolá. O meu abrigo, como foi construído
um pouco mais reforçado, nós, os quatro sobreviventes, pais e filhos,
como se vê, podemos ainda viver tá.
Através das conversações dos passageiros, Toda lembrou
subitamente aquele desastroso terremoto de Kanto, em 1923. Fazia
três anos que estava em Tóquio, vindo de Hokkaido. O bairro popular
de Tóquio fora incendiado durante dois dias consecutivos. Lembrou-
se daquela época em que mesmo um cobertor ou um nabo eram
artigos preciosos. Era ainda um rapaz de vinte e quatro anos. Até
agora, não podia se esquecer daquele gosto da sopa de "missô",
ingerida na manhã do quarto dia, que foi a mais saborosa do mundo.

19
Disse ele ao passageiro:
— Foi como aquele incêndio em 1923?
— Não. Não. Nem diga isso. O incêndio foi três vezes
mais extenso que o de 1923 e o tremor, cinco vezes mais
intenso. Onde o senhor esteve?
— Eu... gaguejou ele.
Não disse que estava na prisão de Toyotama.
— É porque me retirei lá para a estrada de Oume.
— Compreendo. Também fui obrigado a me retirar do
local, no incêndio de 1923. Agora é a segunda vez. É
lamentável. Duas vezes numa existência, tive que passar por
esses apuros. Mas, no incêndio de 1923, o culpado foi o
terremoto. Não havia a quem pudéssemos dirigir a nossa
revolta. Desta vez é Yankee. Só de pensar, causa irritação.
Nem quero saber dessa tolice e tais coisas pertubam muito o
nosso estado nervoso. O que será que o governo está
pensando disso? Pelo que está passando, parece briga de
adulto e criança. Realmente..."
Dizendo estas palavras, o passageiro calou-se de repente,
procurando observar ao redor com atitude de temor.
Toda continuou tentando manter as conversações, mas
o passageiro emudecera e apenas respondia monos-
silabicamente. Certamente estava tomando precaução a fim de
que o que dissera não fosse aos ouvidos da polícia secreta
ou Kempei-tai.
O bonde entrou na estação de Shinjuku, e Toda e seu
grupo desceram para tomar outro bonde da linha Yamate.
Fosse com quem fosse, Toda procurava palestrar com as
pessoas que dele se aproximavam. No início, as pessoas
sentiam-se estranhas para com o homem de yukata, mas,
pela sua espontaneidade, iam-se desinibindo e até havia
pessoas que lhe informavam minuciosamente as ocorrências
da catástrofe.
Ao chegar à estação de Harajuku, os passageiros

20
imediatamente fizeram continências em direção ao lado da janela,
com a atitude mostrando a maior reverência. Toda fixou o olhar
nessa direção, mas viu apenas uma floresta com densas folhagens.
Quando ele percebeu que era o jardim do Templo Xintoista de Meiji,
o bonde já estava perto de Shibuya.
Ele murmurou consigo.
— A ignorância religiosa destrói a nação. Os deuses não
atendem às preces falsas. É , o ensinamento do Grande Mestre. Não
há proteçào dos deuses budistas sem respeitar a Verdadeira
Doutrina. Entretanto, o governo militar pronunciou a prisão e enviou à
morte o defensor do Verdadeiro Budismo, o Presidente Makiguti.
Subitamente, a sua fisionomia se transformou em dor, cheia de
tristeza. Em silêncio, lançava seus olhares à vasta planície incendiada,
estendida na escuridão, fora da janela. Dentro daquela escuridão,
estava o povo deslocando-se em movimentos vê r m i formes,
carregando os pesados fardos do terror e do desespero.
Ele meditava seriamente sobre o destino desse povo
perseguido, que não tinha onde ir e só tinha que aguentar os horrores
da guerra.
Hoje, não há quem desconheça este Itder do povo, Jossei Toda.
Mas, na época, quase ninguém conhecia o seu nome. Mesmo que
alguém o conhecesse, eram somente aquelas autoridades que
tratavam dele como um acusado de transgressor da Lei da
Preservação da Segurança Pública, ou de violador do respeito à lei do
Governo. Com essas calúnias assim dirigidas contra ele, o governo
militar desejava impedir a atividade de propagação da Soka-Kyoiku-
Gakkai.
A Lei de Preservação da Segurança Pública foi abolida mais
tarde por ordem do General Douglas Mac-Arthur, imediatamente após
a guerra- Ao mesmo tempo, muitos "criminosos" políticos ou religiosos
foram liber-

21
tados. Após a rejeição desta lei, entretanto, não houve um caso
sequer de violação da segurança nacional. Isto mostra claramente que,
o preceito mau, por ser mau, perde sua eficácia.
Esta lei, criada para sufocar o comunismo, fez muitos prisioneiros
inocentes. A lei pode criar muitos criminosos e ao mesmo tempo
conduzir a vida de muitas pessoas para o profundo desespero. O
número de vítimas desta lei foi além da imaginação.
No período final da guerra, a aplicação desta lei foi ampliada,
transformando-se numa lei de repressão e com isto, o governo militar
pretendia obter sua segurança. Como é irracional uma lei que visa
somente preservar um punhado de classes! Como trouxe infelicidade e
sofrimento a tantas e tantas pessoas! Daqui para a frente, devemos
observar, com rigor, o espírito da lei.
Embora a liberdade da religião estivesse garantida na
Constituição, o Presidente Tsunessaburo Makiguti fora obrigado a
morrer na prisão, por causa desta lei infame. A morte do Presidente
Makiguti estava em flagrante contradição com o espírito da lei. Assim,
pode-se dizer que há mais criminosos fora do que dentro da prisão.
Como se pode admitir que uma pessoa que deseja o bem ao seu
país e que se dedica para o bem do povo seja levada à prisão? Por
outro lado, como se pode permitir que permaneçam sempre à vontade
aqueles que aproveitam a vida só para si, que continuam pregando a
falsidade e que levam o povo à degradação? O julgamento do certo e
do errado, do bem e do mau, não está justamente contrário ao que
deveria ser?
A quem cabe o direito de julgar arbitrariamente a pessoa
humana?
É impossível fazer um julgamento certo se não se basear na
única Lei Suprema, imutável para sempre. Se

22
não avaliarmos a justiça por meio desta Lei Fundamental, nunca
poderemos fazer jus ao julgamento.
O Diretor Geral Jossei Toda, embora fosse libertado da prisão
após cerca de dois anô^ estava com seu corpo a um passo aquém da
caquexia. As suas empresas, organizadas antes da prisão, foram
todas ao colapso.
Toda foi conhecido entre. a geração nova com o nome de Jogai
Toda, autor de um livro intitulado "Guia para os Estudos da Matemática
pelo Raciocínio". Este livro é muito rico em originalidades, e a tiragem
ultrapassou na época, mais de um milhão de volumes- Muitos sentiram
a alegria de poder matricular-se na escola com sucesso por meio deste
livro, superando as dificuldades próprias da matemática no exame de
admissão. Os meninos que tiveram esta satisfação devem ter sido
tantos milhões. Hoje, as pessoas com idade dos quarenta certamente
lembrarão, com saudade indescritível, aquele livro "Guia para o Estudo
da Matemática pelo Raciocínio". Os que conheceram o nome do autor
Jogai Toda na sua infância, também não poderão nunca esquecê-lo
durante toda a sua existência.
Nessa época, todavia ninguém sabia quem era esse estranho
homem alto de meia idade, passageiro do bonde sujo da linha Yamate
com as vidraças das janelas quebradas aqui e acolá.
Num canto do interior daquele veículo, havia um grupo de quatro
ou cinco operários que discutiam em altas vozes, que chegavam a
abafar até o barulho do bonde em movimento.
Súbito, ele aguçou os ouvidos. O assunto da discussão era sobre
a tampa da bomba incendiária.
— Seja o que for, aquele ferro do Yankee, como posso explicar,
sua qualidade é excelente. Experimentei fazer uma pá com aquilo e
consegui fazer um instrumento

23
formidável, disse um homem, orgulhosamente, procurando explicar
corn o movimento das mãos e de todo o corpo.
— Sim, disse um outro, eu experimentei fazer facas de cozinha.
Formidável! Com uma tampa apenas consegui fazer dez facas.
— Que? Dez? Nào é possível fazer tanto assim. No máximo, é
possível cinco ou seis- Replicou energicamente um homem de
pequeno porte que até então permanecia quieto.
O inventei da faca de cozinha perdeu então a paciência:
— Não diga tolice. Garanto que conseguirá até dez facas.
— Não tente querer muito. Não adianta. Conseguirá no máximo
cinco ou seis.
— Oh! Sim' Engana-se! Conseguirá dez facas, com absoluta
certeza!
O orgulho dos artífices chocaram-se teimosamente.
Toda sorriu. Desejava elogiar sinceramente a inteligência
construtiva do povo, que dos restos dos fragmentos da bomba
incendiária fazem facas e pás.
Toda se levantou, procurou aproximar-se dos operários, mas,
nisto, o bonde diminuiu sua marcha para entrar na estação de
Meguro Ao descer, disse simpaticamente a esses dedicados
participantes do debate:
— Senhores! Por favor, façam bastante pás e facas. Muito
obrigado!
Todos eles olharam subitamente uns aos outros com embaraço.
Procuraram lembrar quem era esse companheiro. Ao saberem que era
um desconhecido e que nunca o haviam visto antes, todos cafram em
animada gargalhada.
O bonde partiu da estação levando os operários. Ao
perceberem o homem de yukata na plataforma escura,

24 .
todos eles Juntos abanaram intensamente as mãos, de corpo para
fora da janela do bonde, dizendo:
— Sayonara! Boa noite!
Pareciam ter reforçado a própria convicção da ideia de invenção
com o incentivo repentino de um desconhecido.
Para Jossei Toda, a escadaria da estação de Meguro. que
deixara de passar por cerca de dois anos, cada degrau era uma
saudade. Foi. porém, muito penoso, para seu corpo bastante
enfraquecido, galgar aquela escadaria. Com muito custo, conseguiu
subir, mas precisou descansar novamente depois de passar pelo
guiché.
Sua esposa, sua irmã e seu sobrinho aproximaram-se com a
intenção de ampará-lo, mas logo (kue afastou-se do grupo em direçào
â rua. Procurou algo ao seu redor, na escuridão, mas era impossível
que nessa época houvesse algum táxi na rua. Havia um carro parado
sob a luz do último poste quase que imperceptível. A luz daquele
poste era o melhor ob)eto de referência para indicar o caminho para
sua casa em Shirogane. Ela voltou e informou que o bonde estava à
espera.
Toda abanou a cabeça em sinal de concordância, e começou a
andar como se flutuasse ao vento, à frente de todos, com seu corpo
emagrecido. Saindo para fora. ele atravessou sozinho a rua,
desviando-se da direção do bonde,
Com os passos aceterados, os três voltaram e seguiram-no
atrás, dizendo:
— Vamos de bonde?
— Sim. Antes disso, vamos ver a ruína que o incêndio deixou.
Olhando atrás, para sua esposa, Toda mostrou a direçào
apontando-a com o queixo. Havia um caminho que formava um
ângulo à direita com a rua que eles acabaram de cruzar. Era uma
descida suave. Situado à

25
direita dessa descida, havia Jishu-Gakkan, a escola particular de
Toda, onde outrora lecionara, mas que se transformara numa ruína
devido à devastação do incêndio, Ao seu redor, tudo era campo
devastado pelo incêndio. No meio de um silêncio tenebroso, ouviram-
se apenas os passos das qualro pessoas como um único ruído deste
mundo. Construção e destruição — Destruição e construção — Será
isto, a eterna transformação das coisas do universo? Não seria
possível que a humanidade não pudesse construir uma sociedade
indesmoronável? Por outro lado, não haveria a possibilidade de
conseguir uma vida feliz para a humanidade com o congraçamento de
todas as raças? As ruínas do incêndio permaneciam abandonadas.
Apesar de que já se haviam Mssado dois meses, ainda se emanavam
cheiros peculiares da queimada.
Sentado sobre uma pedra de alicerce que havia perto, disse ele,
como se lembrasse de súbito:
— Não tem cigarros?
— Tenho, sim.
Mexendo dentro da sacola, Ikue tirou alguns cigarros e entregou-
os a ele; Ikue havia-os recebido como quotas do racionamento e havia
guardado cuidadosamente na sua sacola, como sendo primeira coisa a
oferecer no encontro, logo que ele saísse da prisão. Prometera isso
consigo mesma, porém os havia esquecido comple-tamente.
Enquanto tragava saborosamente, a fumaça branca do cigarro
ia nadando na escuridão até desaparecer.
A ruína incendiada a sua frente fora outrora o seu próprio castelo.
Em 1922, no ano em que Tsunessaburo Makiguti foi transferido da
Escola Primária de Mikassa para Shirogane, com o mesmo cargo de
diretor. Toda pediu a demissão do cargo de instrutor do ensino pri-
mário, para que no ano seguinte, em 1923, pudesse

26
fundar ali uma escola particular denominada Jishu--Gakkan.
Ao tornar-se o dono de um castelo com vinte e quatro anos de
idade, prosseguiu nesta escola, sem impedimento de ninguém, a
aplicação da "Prática da Criação do Valor em Pedagogia" idealizada
pelo seu saudoso mestre, Prof-Makiguti.
Transformar qualquer um, mesmo o mais retardado, em
excelente aluno, era a sua convicção sobre a prática pedagógica. De
fato, os alunos do primário em sua escola foram sendo
sucessivamente aprovados nos exames das escolas a que aspiravam
e assim prosseguiam nos cursos posteriores-
Entre os meninos e as meninas de todo o distrito de Shirogane
surgiram boatos: — Não adianta frequentar o curso diurno; precisamos
frequentar o curso noturno. O curso diurno, ou seja, a escola primária
municipal não merecia simpatia dos alunos. Os professores
inconscientes e incompetentes aborreciam-se ao ouvir Jishu-Gakkan.
Ao cair da tarde, os alunos reuniam-se com entusiasmo no curso
noturno, isto é em Jishu-Gakkan.
Disse um filósofo uma vez: — O objetivo da educação não é
formar máquinas, e sim, valores humanos. O mais importante na
formação humana consiste, sem dúvida, na educação. A educação é
técnica. A base do processo educacional é decidida pela existência ou
não de um tipo de doutrina pedagógica que os educadores possuem.
Sinceramente, deve-se dizer que são felizes aqueles que receberam
instruções dos grandes educadores durante o curso de
aperfeiçoamento de sua personalidade.
O método pedagógico de Toda era realmente soberbo.
Captando a atenção da intensa curiosidade da criança, ele
apresentava conceitos matemáticos, partindo .de um ponto de vista
concreto, e sobre esse ponto colocava

27
o raciocínio que os fazia compreender automaticamente tais
conceitos elevados e complexos. Além disso era divertido e os alunos
aprendiam sem sacrifício. Eles então áentiam prazer de estudar,
Não há coisa mais sensível do que a alma de uma criança.
Responde prontamente como um termómetro.
Ele sempre entrava na classe com sorriso alegre, dizendo: —
Olá.' vocês estão bem? Os meninos arteiros corriam apressadamente
aos seus assentos e abaixavam as cabeças, dizendo: — Boa noite!
Aguardavam com ansiedade e indagavam, com brilho nos olhos, qual
seria o assunto divertido dessa noite.
Ele começava a falar, sorrindo para as crianças:
— Alguém daqui deseja um cão? E, então, as crianças
aquietavam-se com expectativa. — Darei um cão a quem desejar.
As mãos ievantavam-se intensamente, aqui e acolá.
— Professor, eu quero.
— Professor, dá para mim.
— A mim também.
— Eu quero também.
A classe tornava-se turbulenta. Ele observava a classe com
sorriso no semblante, dizendo: — A quem poderia dar então0
Dava meia volta, e de costa para os alunos, ia ao quadro negro
e pegava o giz.
No meio do quadro negro ele escrevia "CÃO".
— O que é isto?
— CÀO.
— É?
— Stm. • — Não tem erro.
— Não.
— Então, quem quiser pode levar,

28
Assim, todas as crianças ficavam atrapalhadas. En;
seguida um rapaz respondia: — Que nada! É letra!
Vozes e gargalhadas dominavam a sala de aula.
Ele apontava a letra "CÃO" e continuava:
— É CÀO? não tem erro? Então darei para quem quiser.
De fato, é um cão, mas não pode levá-lo como presente. — As
crianças não conseguiam perceber onde estava o erro.
Ele ia ensinando que a tetra era o símbolo que representava o
CÃO. Exemplificando, em seguida, com casos semelhantes e
interessantes, introduzia na pequenina mente da criança o conceito
básico de que a matemática era o estudo baseado nos símbolos. Eles
começavam a fazer aplicações ativas de tais princípios, através da
própria habilidade.
As boas sementes criam plantas excelentes e dão belas flores.
As boas crianças transformam-se em jovens excelentes e no futuro,
tornam-se eficientes lideres da sociedade- Jossei Toda distribuía
apostilas aos alunos. como material para o estudo. Essa apostila foram
colacionadas depois, a pedido dos interessados, numa obra intitulada
"Orientação de Matemática Através do Raciocínio" da autoria de Jogai
Toda, cuja publicação tornou-se popular pela sua originalidade. A
venda surpreendente desse livro levou-o a criar uma editora.
A sua habilidade em dirigir organizações de trabalhos fez
também com que criasse várias outras editoras. Fundou uma agência
financeira e seus negócios expan-tíiram-se tanto, a ponto de poder
organizar uma companhia de seguros com escritório em Kabuto-tyo,
no centro de Tóquio.
No dia 4 de julho de 1943, Tsunessaburo Makiguti fora preso
subitamente pela polícia, em Shímoda; dois dias depois, pela manhã,
Toda era conduzido da sua

29
residência para a delegacia de Takanawa. Ao todo, vinte e um
dirigentes da Soka-Kyoiku-Gakkai foram presos. Ao mesmo tempo
eram confiscadas as empresas de sua direçâo. que eram, então, em
número de dezassete, além de uma empresa de exploração de Minas
de Carvão em Kyushu e de uma outra, produtora de óleo e gorduras
em Osaka.
Uma filosofia excelente, verdadeira e profunda, oferece energia
vital propulsora das atividades da vida coti-diana, da sociedade e
também da criação de valores. Do contrário, nada mais seria do que
fatia de pão pintada no quadro.
Jishu-Gakkan, prédio de três andares, fora berço da obra de
Toda e também o seu castelo principal.
Agora, ao sair do presídio, sentado sobre as rufnas do incêndio,
parecia como s° estivesse sobre as ruínas do castelo vencido.
Toda permaneceu sobre as ruínas do incêndio, apenas por um
intervalo de tempü que lhe permitiu fumar um cigarro. Sua memória,
porém, percorreu rapidamente para o passado- Sobre as ruínas da
devastação, já começava a crescer em alguns lugares as gramas de
verão. Debaixo da grama formou-se a morada dos pernilongos e não
lhe foi possível ficar sentado por muito tempo no lugar. A visão
panorâmica, contemplada de lá do platô do campo incendiado, parecia
estar condensada devido à atmosfera escura, e viam-se apenas as
pequeninas luzes trémulas, em alguns lugares.
O grupo de quatro pessoas voltou à estação de bonde e sentou-
se um ao lado do outro, dentro do veiculo vazio, todo aberto. Não se
via o motornelro e nem o condutor. Após o toque do sinaleiro,
entraram apressados ambos, o motcrneiro e o condutor, e o bonde
partiu. Por incrível que pareça, nessa rua havia casas que ainda não
foram queimadas e que permaneciam umas ao lado das outras. O

30
bonde chegou a Shirogane-Daímati em pouco tempo- A esquerda do
pavimento em declive, havia a mansão de Fussanossuke Kubara, que
ocupava uma área espaçosa com grandes árvores negras que cobriam
o céu noturno. Lá reinava um silencio absoluto,
Jossei Toda entrou na soleira da casa. Realmente foi um alívio;
livre, após dois anos de prisão, O que o tr^nquilizoL- profundamente
foi o fato de sua casa estar ainda íntegra como ouirora. Disse a
esposa, sentando-se na sala de visita:
— Quero trocar todas as roupas do corpo. Por favor, enrole tudo
juntos e jogue água fervente. Já chega de piolhos da pnsáo.
Ikue ajudou-o a tirar toda as roupas do corpo, inclusive a intima,
para fazè-lo vestir um novo yukata. Ao olhar o corpo do marido, quase
grilou de susto e horror. porém imediatamente engoliu a voz.
No caminho de volta, ela havia notado a magreza de seu marido
e dos ombros esticados através do traje de yukata, mas não imaginara
que o seu corpo estivesse tão enfraquecido. Não se via carne. Tanto
os membros superiores como os inferiores pareciam um par de
bengalas Além disso, o ventre estava bem intumecido Sem duvida,
era o aspecto de um desnutrido completo no seu ultimo estágio.
Ikue não pode ver esse aspecto, por multo tempo O choque de
horror obrigou-a a desviar os olhos.
— Não acha melhor descansar no quarto de cima? Nesse
momento, entrou na sala de visita o pai de Ikue, Seiji Matsui.
— Oh, pai! Toda cumprimentou atenciosamente o seu sogro. Há
muito tempo venho lhe causando preocupações. Agradeço muito pela
sua dedicação. Como o senhor está vendo, estou bem disposto,

31
— Pois bemi Pois bem! Estou satisfeito em ver todos seguros.
Também estou aqui aos cuidados da família.
Pestanejando constantemente, SeiJi Matsui mostrou--se tão
contente, a ponto de pegar as mãos de Toda.
A residência de Seiji Matsui estivera sob a açào de
desapropriação na primavera anterior, mas a mesma estava agora
destruída. Deixando a família num lugar seguro do distrito de Shonan,
ele trabalhava como empregado numa empresa e morava na casa de
sua filha, cujo mando encontrava-se na prisão.
Atém disso, sua irmã Tatsu Tamakura, cuja casa fora
incendiada pelo bombardeio, em maio, veio em seguida a abrigar-se
na casa de Shirogane, trazendo consigo seu filho Kazuo, estudante do
ginásio. Esta casa de variada convivência, tornou-se de repente
animada com a volta de Toda.
— Ikue, Já está quente o banho quente de furo? disse Matsui a
Ikue,
Com certeza, durante a ausência de Toda, Matsui deve ter
procurado escassas lenhas para aquecer as águas do banho para
este dia.
— Papai, por favor, tome o banho primeiro, disse Toda a Matsui,
mas este negou firmemente, discordando com o movimento da
cabeça.
— Hoje o meu banho fica para depois.
— Papai, por favor, tome primeiro, porque Irei descansar um
pouco no quarto de cima.
Dizendo assim, Toda subiu. Para deixá-lo descansar, Ikue seguiu
atrás, mas, ao chegar no quarto, ele sentou-se diante do altar familiar,
curvou-se diante do-Gohonzon' e imobilizou-se.
Após então, levantou os olhos e observou atenta-
Gohonzon * Objeto de adoração da Nitireo Shoshu-32

mente o Gohonzon. As recordações de dois anos de sofrimentos e


dificuldades foram distanciando-se rapidamente até sumir no passado
longínquo — Derreteram-se num instante como se em degelo.
Jossei Toda conseguiu reconhecer o seu próprio Eu nesse
instante, claramente representado na sua mente.
Com serenidade, começou a fazer as preces de Gon-gyo. Atrás,
dele, Ikue seguia o Gongyo com o juzu* na mão, mas o pescoço
emagrecido do marido prendia seus olhos. Não somente o pescoço;
todo o aspecto do corpo, visto por detrás após anos de ausência, era
como se estivesse bem mais encolhido que antes.
Fervorosamente, ela orava ao Gohonzon pela recuperação da
saúde do marido.
Serenamente, Toda entrou no Daimoku. Sem saber porque, as
lágrimas transbordavam sucessivamente dos olhos de Ikue. Ela não
conseguia contê-las. Ela vinha orando dia e noite, durante aqueles
dois anos, pela segurança do seu marido ausente e pela sua libertação
o mais breve possível. Seu marido, agora, encontrava-se salvo diante
do Gohonzon. O longo e almejado desejo de Ikue foi finalmente
realizado, após muitos sofrimentos e dificuldades que não podiam
sequer imaginar como e quando iriam acabar.
Mal dominando a vontade de chorar, tentava harmonizar sua voz
às preces de seu marido.
Lá embaixo, fazia barulho, pois o sobrinho Já declarava a fome.
O jantar preparado pela irmã, ainda que atrasada, estava sobre a
mesa. Era comida procurada com muita dificuldade, pois, nas
circunstâncias da época, havia excassez de géneros alimentícios.
Havia saké, sementes de ervilhas verdes e, para completar, peixes sal-
gados e pedaços de bacalhau.

Juzu * Rosário cor" 108 contas.

33
Enfim, recepcionando Toda, que vinha saindo do banho,
começaram o Jantar debaixo de uma luz racionada.
Ikue serviu sakê, a seu pai e ao marido.
Um ar florido penetrava no lar, depois de tanto tempo. Toda
pegou o cálice de sakê e levou-o para sua boca.
Provou o gosto várias vezes, mas, de repente, largou-o
sobre a mesa. Para ele, devia ser uma bebida festiva,
depois de muito tempo. Entretanto...
— Está amargo! disse ele.
Quem mais se surpreendeu foram Ikue e Seiji Matsui. Para Toda,
não podia haver outro prazer maior do que o sakê.
Espantada pelo fato inacreditável assim ocorrido, Ikue ficou a
olhar com os olhos espantados a fisionomia de Toda.
— Será que este sakê não está bom? disse Matsui e provou-o
diversas vezes a fim de confirmar o sabor, e então balançou a cabeça
em sinal de dúvida.
— Não parece estar tão ruim assim, murmurou ele.
— Não papai, é que o meu corpo ainda não está me obedecendo.
Tampando o cálice, acrescentou:
— O sakê não tem culpa.
O seu organismo estava tão debilitado que nem podia aceitar o
sakê, o seu aperitivo favorito.
Ele estava não somente desnutrido mas também acometido de
tuberculose, que era seu mal crónico, asma, cardiopatia, diabete,
hemorróida e reumatismo. Além disso continuava a sofrer de diarreia
crónica, doença característica dos desnutridos. A sua forte miopia fez
diminuir terrivelmente a sua capacidade visual, a ponto de quase
perder uma das vistas.
No entanto, ele permanecia, sereno e tranquilo. Lançando a mão
sobre o prato cheio de amendoim torrado, começou a devorar o
monte dizendo;

34

— Como é saboroso!
O seu corpo estava visivelmente doente, sem sombra de dúvida;
mas â energia vital que ele continha era poderosíssima.
A teoria da inseparabilidade do corpo e espirito é a visão mais
correia para compreender a filosofia da vida, e somente assim
poderemos entender melhor os fenómenos que dificiimente são
explicáveis.
Ele continuou a relatar os detalhes acerca das condições da
penitenciária. Era um mundo completamente estranho e excepcional,
totalmente desligado da sociedade humana; mas as passagens tristes
e dramáticas foram adquirindo vida, entusiástica e vigorosa, graças
aos retoques humorísticos do seu relato.
Em certos momentos, todos riam em gargalhadas.
Desabrochava, enlim, a flor da alegria no lar onde de há muito não
existia o sorriso.
Em toda família, há um grau maior ou menor de infelicidade.
Numa existência, há dias de chuva e de sol, de tristeza e de alegria. É
quase ímpossíve' passar a vida toda em paz e em alegria. A paz
familiar tem mais valor do que muitas fortunas, O líder do pais. só
merece esse título quando consegue dar a felicidade aos lares de seu
povo.
Quatro dias antes, Toda fora transferido, de repente, da
penitenciária de Sugamo para a prisão de Toyotama. Não sabia qual
era o motivo. E agora ele era um libertado. Em período de confusão
total que era, não podia imaginar a razão da sua libertação. Talvez os
três anos de pena fossem encurtados para três dias. Acreditou então,
no princípio budista de Tenju-Kyoju.*
— Está tudo bem! Está bem assim! Todos nós pudemos nos
encontrar assim vivos. Ikue está salva,

Tcnju-Kyoju " Transformar o pecado pesado em mais leve.

35
— Como é saboroso!
O seu corpo estava visivelmente doente, sem sombra de dúvida;
mas â energia vital que ele continha era poderosíssima.
A teoria da inseparabilidade do corpo e espirito é a visão mais
correia para compreender a filosofia da vida, e somente assim
poderemos entender melhor os fenómenos que dificiimente são
explicáveis.
Ele continuou a relatar os detalhes acerca das condições da
penitenciária. Era um mundo completamente estranho e excepcional,
totalmente desligado da sociedade humana; mas as passagens tristes
e dramáticas foram adquirindo vida, entusiástica e vigorosa, graças
aos retoques humorísticos do seu relato.
Em certos momentos, todos riam em gargalhadas.
Desabrochava, enlim, a flor da alegria no lar onde de há muito não
existia o sorriso.
Em toda família, há um grau maior ou menor de infelicidade.
Numa existência, há dias de chuva e de sol, de tristeza e de alegria. É
quase ímpossíve' passar a vida toda em paz e em alegria. A paz
familiar tem mais valor do que muitas fortunas, O líder do pais. só
merece esse título quando consegue dar a felicidade aos lares de seu
povo.
Quatro dias antes, Toda fora transferido, de repente, da
penitenciária de Sugamo para a prisão de Toyotama. Não sabia qual
era o motivo. E agora ele era um libertado. Em período de confusão
total que era, não podia imaginar a razão da sua libertação. Talvez os
três anos de pena fossem encurtados para três dias. Acreditou então,
no princípio budista de Tenju-Kyoju.*
— Está tudo bem! Está bem assim! Todos nós pudemos nos
encontrar assim vivos. Ikue está salva,

Tcnju-Kyoju " Transformar o pecado pesado em mais leve.

35
Kyoiti acha-se em Itinosseki, nada tenho a reclamar. Assim está tudo
bom! disse Toda, com profunda emoção, olhando as fisionomias de
todos os membros da família, como se quisesse, com isso, convencer
a si mesmo.
Kyoiti, filho único de Toda, estava no quarto ano primário. Corfi
a intensificação dos bombardeios, os alunos foram sendo dispensados
da escola. A irmã mais nova de Toda desposara-se numa família em
Itinosseki e morava numa casa de campo. Preocupada com a prisão
de Toda, ela chamou Kyoiti para abrigar-se lá.
Ao saber disso na prisão, Toda enviou uma carta para seu filho
de dez anos.
— Soube que você está em Itinosseki. Lorde Kussu-noki
Massatsuna sucedeu o pai com onze anos. Você já tem dez anos.
Para se tornar um cidadão japonês exemplar, deve se preparar
sozinho em sua jornada. Viva justa e fortemente. A base de todo o
exercício para a perfeição da personalidade é, antes de mais nada,
tornar-se "sadio" e formar um corpo de homem forte. Para tornar-
-se "sadio" é necessário ter, de inicio, a convicção de que será forte e,
de resto, a inteligência encarregar-se-á de encontrar um meio para
torná-lo forte.
Seu pai não poderá vê-lo por muito tempo. Desejo fazer um
trato. Faça Daímoku ao Gohonzon cem vezes numa hora determinada
de manhã de acordo com sua conveniência. Nessa hora, seu pai
também fará preces de Daimoku cem vezes. Nesse Ínterim, as "duas
intenções" comunicar-se-ão como o telégrafo sem fio. Assim
poderemos conversar. Denominaremos a isso 'aliança Pai-Filho'. Se
os avós e a mãe desejarem fazer companhia poderá deixá-los aliar à
sua vontade. É favor enviar-
-me a hora determinada.
Assim escreveu Toda, no interior da prisão, uma carta de
encorajamento ao filho Kyoiti. Toda sempre enviava a

36
cada membro de sua família cem Daimoku suplementares apôs os
seus dois mil Daimoku da manhã e da noite.
Por outro lado, prevendo a chegada inevitável da derrota, ele
pedia um amparo ao Dai-Gohonzon em todas as eventualidades
desastrosas que poderiam ocorrer após a invasão.
Na cela solitária do presidio não havia Gohonzon, nem vela, nem
incenso. Ele colecionou, então, as tampas das garrafas de leite que
eram distribuídas nas celas e passou um fio no meio delas, para
compor com isso um juzu.
Era uma luta desesperadora dentro da prisão, acima de
quaisquer descrições.
— Dai-Gohonzon! Salvaguardai a minha vida. a vida de minha
esposa e a de meu filho. Eles poderão ser capturados e humilhados
pêlos inimigos. Poderão ser mortos pela baioneta do inimigo. Se isto
acontecer, que sejam sempre dignos de ser a esposa e o filho de
Jossei Toda, o devoto do Myoho. Assim, ao chegar a Ryojusen,
receberão a hospitalidade de Nhiren Daishonin. Com certeza serão
recebidos condignamente-
A sua prece, no meio da trilha da morte, continha a forte
convicção da sua resolução,
Ele tinha certeza, pela experiência do estado de iluminação que
atingira misteriosamente pela primeira vez na prisão, de que as suas
preces seriam alcançadas.
Agora, enfim, ete conseguiu sua liberdade. Desde muitas horas
antes da sua saída do presidio até chegar à mesa do Jantar em seu
próprio lar, vinha palestrando constantemente. Parecia dar testemunha
da sua libertação após cerca de dois ancs de vida presidiária. As
conversações não chegavam ao fim, apesar das altas horas da noite,
(kue estava Impacientemente preocupada com o cansaço do marido.
Kazuo já estava dormindo no outro quarto. Por fim. Seiji Matsui e a
irmã caíram no silêncio.
37
Parecia uma noite de paz.
De repente, porém, a sirene de alerta contra o bombardeio
rasgou o silêncio. Já passava da meia-noite. A janela foi coberta de
cortina negra. O rádio anunciava a chegada de uma enorme formação
de 120 bombardeios P-51, conduzidos pêlos 3 bombardeiros B-29, os
quais voavam por cima das águas da Península de Bosso em direção
à ilha principal.
Logo em seguida ressoava insistentemente a sirene, noticiando
o bombardeio. Os membros da família foram se proteger no abrigo
anti-aéreo. Somente Toda foi ao andar de cima.
Na sirene dessa noite, Ikue sentiu um medo estranho, não
experimentado antes. O tremor do seu corpo parecia não parar
nunca.
Apesar de já haver passado dezenas de vezes por debaixo de
bombardeios, nunca se sentira assim. Para ela, não importava a
guerra; tampouco dava importância às dificuldades de viver nem à
falta de alimentos.
Mesmo quando o perigo se aproximava, nada lhe importava,
senão uma coisa — adormecida ou acordada, o seu mundo todo era a
segurança de seu marido que lhe fora arrebatado.
— Que ele volte seguro o quanto antes — durante meses de
espera, a sua vida dependia apenas desse único desejo.
Mas, nessa noite, a situação era diferente A volta de Toda com
liberdade, preencheu todo o seu mundo-
Pouco antes do toque da sirene, Toda apesar de seriamente
doente e bastante desnutrido, dizia-lhe com ternura consoladora:
— Não se preocupe. Já estou de volta, assim. Não há com que
se preocupar, mesmo como vamos viver daqui para frente.
iKue reconheceu que a luta de longos anos lermi-

38
nara com vitória. Parecia voltar de novo àquele estado de calma e
de normalidade. ..
E nesse instante, sentiu pela primeira vez, após o ressoar da
sirene, uma inquietação no peito e perturbou--se pelo medo de
bombardeio. Por outro lado, no quarto de cima, forrado de cortinas
negras, Toda sentou-se diante do altar familiar.
O silêncio fúnebre da noite sob a açao do bombardeio envolvia o
ambiente. Prendendo uma folha de shi-kimi* nos lábios, despregou
vagarosamente o Joju-Go-honzon do seu altar. A seguir, tirou os
óculos.
Procurou observar cada letra do Gohonzon, tão perto dos seus
olhos que sua face quase chegava a escorregar rente à Inscrição.
— É isso mesmo. Não há dúvida. É exatamente igual como
naquela vez.
Falando consigo mesmo, em murmúrio, ele confirmou que
aquela cerimónia solene e misteriosa de Kokuê* estava sendo
representada sob a forma de disposição das ideografias do Gohonzon.
Cheio de emoção, as lágrimas quentes de alegria escorreram pela
sua face. Suas mãos estavam trémulas. Bradou claramente em seu
espírito.
— Gohonzon! Senhor Nitiren Daishonin! Eu Jossei Toda, prometo
realizar infalivelmente a Paz Mundial (Kossen-rufu).
Sentiu no peito o calor de um fogo intenso que lançava uma luz
incandescente. Era uma luz que ninguém podia apagar. Em outras
palavras, aquele fogo ardia além da sua consciência. Era como o fogo
da alvorada do Kossen-rufu que nunca iria desaparecer, que se acen-
deu nesse instante, dentro do coração de Toda.
Após então, ele colocou novamente o Gohonzon den-
Shikimi * Ramos de folhas verdes e perduráveis, Kokuê "
Cerimónia no Ar

39
tro do altar e observou seu redor. No momento, não havia nenhum
meio para transmitir o seu sentimento de profun-ra emoção. Uma
sensação de solidão, de desamparo, invadiu-lhe o coração. Então,
falava novamente consigo mesmo:
— Não se afobe. Não tenha pressa. Deve agir pacientemente.
Haja o que houver, deve consegui-lo a qualquer custo.
Nessa noite, já avançada e escura, dobrava o sino anunciando
o início da alvorada no coração de Toda. Entretanto, ninguém o podia
perceber
Essas ondas sonoras, até que atingissem tenuemente os
ouvidos dos outros, precisariam levar meses e anos. Porém, a
alvorada do Japão já iniciou exatamenie nesse momento. Um dia, no
futuro, a história irá comprová-to claramente.
A escuridão era demais.
O futuro da nação era uma treva. Ao mesmo tempo, o mundo, ao
seu redor, também estava profundamente escuro. Apenas dentro do
seu espírito havia a alvorada.
— Quanto mais densa a escuridão, mais próximo deve estar o
clarão do céu, pensava ele.
O rádio transmitiu a noticia em altas vozes: — Os bombardeiros
P-51 atacaram as prefeituras de Tiba e Iba-raki e dirigiram-se ao sul
de Kashima.
E o alarme do bombardeio cessou.

40

Você também pode gostar