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OS AINU E A CULTURA POP JAPONESA

Luana Bueno Barbosa Cyríaco da Silva


Universidade Federal do Paraná
Curitiba – Paraná – Brasil

Resumo
O texto trata da comparação entre uma história mítica do povo ainu e um personagem de
quadrinhos, que tem envolvimento intimo com essa história, porém apresenta algumas diferenças da
narrativa tradicional. Além disso, vamos observar e questionar o uso dessa alteração (ou versão)
como uma espécie de “filtro” que o autor do mangá intitulado Shaman King utiliza no qual
consegue trazer uma concepção de uma cultura primária para uma sociedade contemporânea como a
nossa.

Palavras chave: ainu, cultura japonesa, cultura pop.


INTRODUÇÃO
No mangá intitulado Shaman King a história trata de pessoas especiais,
denominadas “Shamans”, que teriam habilidades de se comunicar com espíritos, e que
teriam alguns espíritos em seu serviço, emprestando-lhes suas habilidades de quando vivos
(por exemplo, um espírito de um samurai que empresta suas habilidades de combate) e os
guiando-os em seu caminho. À parte o fato de o quadrinho ser voltado para o público jovem
masculino (shonen, entre 12 e 15 anos) e por isso ser focado em batalhas de habilidades –
tendo como linha narrativa combates sucessivos que irão eleger um dos personagens como
o melhor de todos –, os personagens trazem em seus históricos uma carga cultural
diversificada. Entre eles, temos indígenas norte americanos e sul americanos, além de
habitantes originários da ilha de Okinawa e Hokkaido.
Neste trabalho, vamos focar no personagem de origem ainu chamado Usui Horokeu
(Horohoro1), que tem sua primeira aparição no capítulo 33 (lançado ainda no ano de 1998 –
volume 4). Neste volume, o personagem fala abertamente sobre suas origens no norte do
Japão, especificando que vem de Hokkaido, de uma aldeia Ainu. Também é citada
abertamente a crença animista de seu povo, e tratando com naturalidade a existência de

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Horohoro: em japonês pode significar a expressão “por uns e outros”. Horohoro também é o nome
de uma montanha nos limites entre Date e Shiraoi, em Hokkaido. Onomatopeia para lágrimas ou flores que
caem silenciosamente, gorjeio de pássaro, coisas caindo aos pedaços; Desmoronando; Derretimento (na boca).
Segundo o dicionário Jsho, também se refere à um termo culinário, nome de um prato feito de brotos de cinco
folhas, dikon em conserva, nozes, etc.
espíritos. Inclusive o personagem conta a origem de seu espirito guardião (Kororo), que
parece uma garota em miniatura. Kororo é uma Koro-Puk-Guru, um povo em miniatura
existente na mitologia ainu.
Os Koro-pok-guru (ココココ ココ), também escrito koro-pok-kuru,
korobokkuru ou koropokkur eram uma raça de pessoas pequenas, segundo o
mito do povo Ainu. O nome é tradicionalmente analisado como uma
composição tripartida de kor ou koro (Petasita), pok (debaixo, abaixo), e kur
ou kuru (pessoa) e é interpretado como “pessoas embaixo da folha de
petasita2” na linguagem Ainu.
Os Ainu acreditam que os Koro-Pok-Guru foram pessoas que viviam na terra
dos Ainu antes deles mesmos. Eles tinham baixa estatura, eram ágeis e bons
pescadores. Viviam em buracos com telhados feitos de folhas de Petasita.
Há muito tempo, os koro-pok-guru tinham boa convivência com os Ainu, e
costumavam enviar veados, peixes e outras coisas em suas trocas. Essas
pessoas pequenas odiavam ser vistas, por isso realizavam essas trocas e
entregas durante a noite, de forma sorrateira.
Um dia, um jovem ainu decidiu que iria ver com seus próprios olhos um
koro-pok-guru, então ele armou uma emboscada e esperou perto da janela
onde colocava os presentes para serem trocados com os misteriosos vizinhos.
Quando um koro-pok-guru veio para fazer a troca, o jovem o agarrou pela
mão e puxou para dentro da casa. Era uma bela mulher koro-pok-guru, e ela
ficou tão furiosa com a grosseria do ainu que o seu povo pequeno não foi
visto desde então.
Porém, os Ainu acreditam que seus buracos, potes e instrumentos de pedra
ainda permanecem espalhadas pela paisagem da terra que antes habitaram.
A.H Savage Landor – Alone with the hairy ainu3

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Petasita: Petasites japonicus, também chamado de “Fuki”. É uma planta herbácea perene na família
Asteraceae. Existe não só no Japão, mas em muitos lugares na Europa.
3
SAVAGE LANDOR, A.H. “Alone with the hairy Ainu” (1893).
Segundo o que o antropólogo Donald Alexander Mackenzie escreveu no seu livro
Myths of China and Japan esse povo pequeno pode ter realmente existido4, e explicaria
algumas das cerâmicas que os Ainu possuíam (conseguidas através de trocas, pois eles eram
essencialmente caçadores e não produziam esse tipo de peça) e que eles talvez tenham sido
exterminados pelos próprios ainu habitantes das ilhas Kurile.
Esse registro data do século XIX, o que significa que é posterior à junção dos Ainu
das ilhas Sahkahalin e Kurile com os de Hokkaido (o que aconteceu depois da guerra entre
Japão e Russia, onde definiram-se os territórios e Hokkaido ficou com o Japão), segundo os
antropólogos, esse mito seria uma forma de explicar o sumiço dos Koro-Puk-Guru, e que é
bem aceita entre os Ainu, que consideram como fato.

Metodologia
Após a aquisição dos textos, foi feita uma leitura da história tradicional ainu que
conta sobre a existência dos Koro-Puk-Guru em paralelo à leitura dos capítulos específicos
de apresentação (primeira aparição) do personagem de origem ainu Horokeu no mangá
Shaman King de Hiroyuki Takei. Foram feitas comparações entre as duas histórias,
analisando os pontos em comum e as diferenças.
Após a leitura, percebemos que o autor faz uso de um tipo de adaptação, que
segundo podemos perceber devido às diferenças culturais e às divergências históricas e
sociais das duas culturas (ainu e japonesa) se faz necessária para a compreensão básica
dessa pequena narrativa tradicional, bem como da figura de um ainu. Esse “filtro” que o
autor utiliza ajuda a sociedade contemporânea (seu publico, especialmente jovens entre 12 e
15 anos) a captar certos aspectos de uma cultura diferente, com raízes primárias.

Apresentação dos achados


Não podemos deixar de observar as questões históricas que envolvem os Ainu e
Wajin (antiga denominação dos japoneses). Enquanto o império japonês tomava forma nas
ilhas de Honshu e Kyushu, muitos povos indígenas da região norte de Honshu (chamados

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Em Hokkaido, existe uma região chamada Ashoro, onde crescem petasitas gigantes, chamadas
“Rawanbuki”. Isso sugere que os Koro-puk-guru poderiam não ser assim, tão pequenos. O que reforçaria a
teoria de Mackenzie sobre a extinção de uma cultura com menos indivíduos na região.
apenas de emishi) travaram batalhas por territórios e também realizavam trocas com os
wajin. Aos poucos os ainu dessa região foram se concentrando em Hokkaido. Sendo uma
terra um tanto inóspita devido ao clima frio, por muitos séculos os japoneses encaravam os
Ainu em parte como aliados, porém a partir de meados do século XIII (Periodo Muromachi)
o império japonês toma uma atitude de dominação dos territórios que ainda eram habitados
por alguns povos “emishi”. A dominação da região norte de Honshu e Sul de Hokkaido é
intensificada. Entre 1400 e 1789 os Ainu resistem à investida japonesa, tendo as batalhas de
Kosyamain (1457), Syakyain (1669) e Kunarisi-menasi (1789) como marcos da resistência,
porém durante esse período os ainu foram aos poucos dominados pelo império Japonês.
No entanto, segundo Sakata5, apesar das animosidades, ainda existiam relações de
trocas entre ainu e wajin durante esse período, e era isso o que mantinha parte da relação
amistosa. Mesmo depois do domínio dos Ainu, a manutenção do comércio de trocas entre
os dois povos, ajudou a manter certa cordialidade entre eles. E ainda segundo Sakata, as
relações se mantiveram assim até o período Meiji (muito embora estivessem sob o domínio
do império) e foi somente depois da proibição da troca entre os povos (Na metade do século
XIX) é que os ainu consideraram que os japoneses “romperam a amizade”. No periodo
Meiji os ainu sofreram muitas restrições com relação à sua cultura, língua e religião, sendo
impedidos de realizar seus ritos publicamente e inclusive tendo que adotar nomes
japoneses, bem como a cultura.
No final do século XIX, os ainu de Hokkaido iniciaram ações referentes à
reestruturação do povo Ainu. Com essas ações conseguiram criar distinções entre os
japoneses e os ainu, conseguindo aos poucos se reorganizar culturalmente. No entanto a
origem ainu era tabu. Eles só foram reconhecidos pelo governo japonês como povo
indígena no ano de 2008, graças a ações das comunidades ainu e ao deputado de origem
ainu Kayano Shigeru, que obteve entre 1994 e 1998 várias conquistas para a manutenção e
difusão da cultura de seu povo.
Segundo a matéria da CNN publicada em fevereiro de 2015 a estimativa da
população Ainu era de 24.000, mas achar um que falasse fluentemente a linguagem era
difícil. O projeto “Endangered Language Project” estimava em 10 o número de falantes da

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Sakata. Minako no artigo Possibilities os reality, variety of versions: the historical consciousness of
Ainu folktales.
língua. Hoje em dia, o site tem a conta de apenas 2 falantes fluentes. Porém desde 1997 por
esforços do governo, é estimulado o aprendizado e difusão da cultura e linguagem ainu.
Segundo a cultura ainu, a divindade habita em todas as coisas que o rodeiam, desde
animais, fenômenos da natureza, plantas. São de religião animista. Dessa forma, na
compreensão Ainu, a existência dos Koro-Puk-Guru é tão real quanto a existência deles
próprios. O mito então, não é mito, é realidade.
Sob essa perspectiva, o personagem Horokeu não teria duvidas quanto à existência
dos espíritos e menos ainda que Kororo fora uma pessoa que realmente existiu. Na
realidade de Shaman King, os xamãs conseguem conceber a existência do que nós
chamaríamos de fenômenos sobrenaturais. Mas o publico vê a história como sendo
fantasiosa. Incluindo a explicação dos Ainu para a existência (para nós, questionável) dos
Koro-Puk-Guru. E aqui vemos que o autor se utiliza de explicações para que o público
entenda a respeito do personagem e seu contexto.
A história contada por Horokeu sobre Kororo apresenta alguns aspectos diferentes
da história tradicional. Ele menciona abertamente que seus antepassados aprenderam com
os Koro-Puk-Guru sobre caça, pesca e construção (e isso também existe na história dos
Ainu), porém a forma como ele narra remete até as narrativas sobre Okikirmui, uma
entidade (kamui) que ensinou aos ainu sobre a caça, pesca e demais aspectos culturais e
práticos. Mas a principal diferença está no fato de que na história do mangá, Horokeu diz
que devido à exploração da natureza em sua região, os Koro-Puk-Guru estão perdendo suas
casas (que seriam as Petasitas, um tipo de planta da região) e que eles correm risco de
extinção.
Dessa forma, vemos que o autor utilizou da história registrada no século XIX e a
adaptou à contemporaneidade. Como se os Koro-Puk-Guru não tivessem sumido por um
desentendimento com os Ainu, mas pela exploração da natureza feita pelos humanos.
Ao assumir abertamente a origem Ainu do personagem, o autor não deixa dúvidas
sobre a presença de pessoas dessa cultura e etnia na sociedade japonesa atual (a história
ocorre na contemporaneidade, embora não seja citada uma data especifica), e apesar de
trazer uma visão comum às sociedades não primitivas sobre povos indígenas (a ligação com
a natureza, ecoequilibrio e crenças “místicas”), e ainda manter os personagens dessas
origens como secundários (tanto o Ainu Horokeu quando os outros personagens de
diferentes etnias indígenas), o autor apresenta Horokeu como um jovem contemporâneo de
origens ainu. Ele tem noção e respeito sobre sua origem indígena, mas percebe-se que está
inserido na sociedade. Ele não é anacrônico. Alguns pontos facilmente perceptíveis são as
vestimentas, com padrões típicos dos ainu estampados em sua bermuda, camiseta, bandana
e mesmo em sua prancha de snowboarding, trajes tipicamente urbanos e até com traços da
cultura Hip-Hop.
Enquanto por um lado o autor do mangá Shaman King, Hiroyuki Takei, lança mão
da difusão de aspectos da cultura ainu abertamente, por outro, temos o anime de longa
metragem The Great Adventure of Horus, prince of the sun (Taiyou no oji Horusu no
daibouken), de Isao Takahata, que utiliza a história “The sun above Chikisani” (Chikisani
no Taiyou) criado pelo escritor Kazuo Fukazawa (em reinterpretação do yukar ainu
“Okikirmui to akuma no ko”) como base para sua narrativa. O anime não só não menciona
a origem ainu da história como transfere o cenário dela para a Escandinávia, negando com
isso completamente a cultura ainu (muito embora seja dela que se utilize).
A escolha de Isao Takahata, no entanto, não parte dele mesmo, mas sim da empresa
produtora, Toei, que recusou o roteiro com aspectos ainu, visto que na época do
lançamento, em 1968, a utilização da cultura ainu era tabu e acreditavam que isso afetaria
negativamente a venda do produto. Esse problema do preconceito possivelmente não
atingiu o trabalho de Hiroyuki Takei em Shaman King, pois um ano antes do lançamento do
mangá, fora aprovada a Ainu Shinpo.
Em julho de 1997, o governo japonês finalmente introduz a “Aino Shinpo”
(Nova Lei Ainu). A proposta dessa nova lei é “para perceber uma sociedade
em que o orgulho étnico do povo Ainu é respeitado e contribuir para o
desenvolvimento de diversas culturas no país, através da implementação de
medidas para a promoção da cultura Ainu, a propagação de conhecimentos
relacionados às tradições Ainu, e a educação da nação, referindo-se à
situação das tradições e da cultura Ainu a partir do qual o povo Ainu
encontra o seu orgulho étnico". De acordo com o artigo 3 da Ainu Shinpo, o
governo nacional deve se esforçar “para promover medidas a fim de nutrir o
carinho daqueles que hão de herdar a cultura Ainu, a fecundidade das
atividades educacionais voltadas às tradições Ainu, bem como a promoção
do estudo da cultura Ainu.
Tjeerd de Graaf “The Ainu in Japan”6

A posição social e midiática com relação ao Ainu iria apresentar mudanças no


passar dos anos. Horokeu possivelmente tenha sido um dos beneficiados, podendo então ser
exposto publicamente como Ainu e não ter problemas de aceitação do público quanto a
isso.
Dessa forma, a criação do personagem e seu contexto, embora tenha falhas por ainda
tratar dos aspectos Ainu com o uso de alguns estereótipos, é mais benéfico do que maléfico
no que se refere à difusão dessa cultura. Isso porque traz alguns aspectos culturais
possivelmente desconhecidos do público, podendo criar curiosidade e identificação com os
ainu, e quem sabe sendo o estopim de uma aproximação mais séria desses aspectos
culturais, ou mesmo da aceitação dessa cultura diferente como parte da sociedade japonesa.

REFERÊNCIAS
BATCHELOR, Jon “The Ainu of Japan” Pyrrhus Press (2016)
MACKENZIE, Donald A. “Myths of China and Japan” The Gresham Publishing Company
LTD. 66 Chandos St. Covert Garden London (1923)
SAKATA, Minako “Possibilities of reality. Variety of versions: the historical consciousness
of Ainu folktales” (2011)
SAVAGE LANDOR, A.H. “Alone with the hairy Ainu” (1893). CreateSpace Independent
Publishing Plataform (2012)
TAKEI, Hiroyuki. “Shaman King”, volume 4, Shueisha (1998/1999)
WALKER Brett L. “The conquest of Ainu lands – Ecology and culture in Japanese
expansion 1590-1800” University of California Press (2006)
Digitais:

6
“the Ainu in Japan” de Tjeerd de Graaf (Fryske Akademie, Ljouwert) publicado em 19 de
janeiro de 2016 no site da UNESCO.
“the Ainu in Japan” de Tjeerd de Graaf (Fryske Akademie, Ljouwert) publicado em 19 de
Janeiro de 2016 no site da Unesco.
“Japan’s hidden people: Ainu try to keep ancient traditions alive” por Dean Irvine,
CNN publicado em 9 de fevereiro de 2015

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