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ORIXáS
e espíritos
O debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea
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"....uma multiplicidade de enfoques
cientíâcos, que nos brinda com textos dos
melhores espedalistas; da história, da
sociologia, da antropologia, da psicologia -
com aberturas para a arte e a poesia. Do
Brasil e da África. Das religiões afro, do
catoUcismo, do pentecostalísmo, do
espiritismo. Especialistas atentos aos
encontros, aos embates, aos cruzamentos,
heranças e erranças, entre tantos universos
simbólicos."
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ORIXÁS E espíritos
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Artur César Isaia
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ORIXÁS E espíritos
o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea
EDUFU
2006
I l'NIVERSIDADE FEDERAI DE 1'BERLANDIA
Ci^NSELHO EdITORLAL
Dr. jcKsé Mapno Queiroz Luz Dr. Carlos Roherto Ribeiro
Dra. Maria Ciara Tomaz Machado Dr. Miitiiel Fanús Jorce
Dr. Ernestt» Sértíio Bertoldo Dra. Christina ila Sil\-a Roquette
Dr. Roherto Rosa Lopreati»
Dr. Mareio Chaves Tannús Dr. Decio Gatti lúnior
Dr. losé Luís Petricelli Castineira Dr. Donnnt;o< .Alves Raile
Corro Tednk o Aitminis era eivo Cm'a, Pr*>ii 11 > Gr.mtc < > i Di v» .uam-v .Ai^
.'\delnio Gonçalves Dutra Arlen Costa de Paula
Gerlaine AraÍJÍi> da Silva
Maria Amalia Rocha IMAi.EM D\ I ARA
FIi HA oAIAEUORAEU ^
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da l'Fl'/ Setor de Catalogação e Classiticação / mu/ 04/0ò
Inclui Bihliourafia
ISBN 85-7078-091-5
Av. joão Naves de .Ávila, 2121 - Bloco A - Sala LA - Campus Santa Mônica
Cep ^8400-902 - 1 1>erlândia - Minas Gerais
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.edulu.utu.hr / e-mail: livraria('í\ilu.hr
SUMÁRIO
9 Apri-:si£NTacâo
11 Prefácio
10
PREFACIO
Pierre Sanchis
11
tados e explorados: além do universo indígena, Angola, antes
mesmo da chegada dos africanos ao Brasil, África, e sua diversidade
interna, Portugal e, no fundo longínquo, o universo do imaginá
rio medieval; todos diferencialmente povoados pela convivência
com fantasmas do outro mundo, pela experiência quotidiana de
sonhos significativos, pelo curandeirismo e pela magia, pelo em
bate ambíguo entre santos e demônios. Mais recentemente, ou
tro recomeço, de origem européia, com a chegada do espiritismo,
num certo sentido fonte primária da mediunidade brasileira, mas
que irá se articular com tradições anteriores: indígenas, medievais
portuguesas, mais globalmente católicas, africanas e esotéricas, para
constituir uma camada de sentido densamente presente, nem sem
pre reconhecida e constantemente sujeita a novas inflexões. Passa
hoje, por exemplo, de uma referência hegemônica ao catolicis
mo, a uma hegemonia neo-esotérica, ou ainda tem modificado,
em favor da dimensão religiosa, o equilíbrio interno entre esta e a
dimensão médica, nas próprias intervenções terapêuticas.
Na e.spessura do tecido social, outra multiplicidade: de meios,
de grupos e segmentos da sociedade btasileita. Multiplicidade que,
sem nunca desaparecer, avançará, ao longo do tempo, num senti
do de mais ampla globalização. Já no Brasil colonial, analisa-se um
deslizamento deste universo simbólico, dos ainda "africanos" aos
crioulos, destes aos mestiços, deste mundo coloured aos brancos,
visando assim a totalidade de uma sociedade onde a convivência,
a articulação, certa osmose, por conflitual e agressiva c]ue seja,
tornou-se a lei. Do negro ao branco, do povo à elite social, afirma
outra análise, malaxando e redistribuindo, na história e em fun
ção das condições concretas da sociedade, as linhas oriundas de
tantos pontos originais.
Lirihas que, por sua vez, mesmo se concentrando nele, não
limitam o seu percurso ao domínio da religião. O duplo nível do
sistema relacionai que sinaliza e envolve a sociedade brasileira in
terfere em espaços, também eles, múltiplos: o da medicina, com a
cura, da psiquiatria, dos aparelhos de sistematização do uso da razão,
da política. Não se tetá o próprio Ogum alistado, na guerra do
Paraguai, entre as tropas brasileiras - como o tinha feito havia
séculos Sto. Antonio - modificando assim, graças a este recurso ao
12
mundo dos espíritos, a associação do grupo negro em vias de
emancipação ao processo de criação da identidade nacional? Um
leque de perspectivas, de alternativas de consciência, de opções
interpretativas e de suspeitas que vão desde a loucura até as mais
puras manifestações místicas.
Pois, na verdade, é da totalidade do grupo social brasileiro e
da totalidade dos níveis de sua operação que se trata. Esta explora
ção do forro social imaginário projetado em torno do mundo social
empírico e realmente presente nele sob forma de mediunidade
coloca de fato um problema, explicitamente presente num dos
textos que o leitor encontrará: de que modo(s)uma sociedade con
segue compatibilizar na sua operação o regime racional a que
pretende com uma mediunidade que a este regime se introjeta,
para subvertê-lo e, finalmente, revelar-se-lhe quotidianamente
complementar?
Afinal, não encontramos aqui nenhuma remanência, nem
mesmo ressurgimento, subprodutos de fases abolidas de uma his
tória cultural. Mas a ressurgência de um presente escondido.
Polimorfo, mas nem por isso menos atuante.
A alteridade não é necessariamente alienação. Ao contrá
rio, ela pode até ser o único caminho de salvação para uma
identidade." Quem sabe esta sugestão de um cientista social não
poderia ter sido escrita a propósito deste livro?
13
NEGROS FEITIÇOS
129
govemicho,seguido,de 1893 a 1895,da violenta revolução fcderalista
(a tristemente célebre revolução da degola) c ciue os ilustrados re
publicanos puderam de fato começar a governar...
E neste Rio Grande republicano não havia lugar para crendi
ces, superstições, bruxarias, batuques, feitiços... Ou haveria? As
elites no poder criavam em Porto Alegre a Escola de Engenharia,
as faculdades de Medicina, Farmácia e Direito. Os homens cultos
estavam atualizados com os mais modernos debates científicos do
seu tempo, como o ilustradíssimo doutor Sebastião Leão, que re
cebera autorização do governo para instalar um laboratóric^ de
antropologia criminal na Casa de Correção da capital gaúcha,onde
tinha a população carcerária a seu dispor para realizar seus estudos
à luz das mais recentes teorias sobre o crime discutidas na Europa!
O Rio Grande era ainda sede da renomada Escola Militar de Por
to Alegre, a formar militares para o novo regime. E, no inicio do
século XX, criava-se na capital a Faculdade de Direito. Das elites às
camadas médias, havia palavras de ordem: higiene, moral, civiliza
ção, desenvolvimento técnico, normalização do social.
Mas, nesse Rio Grande que se queria moderno, nessa Porto
Alegre que se visualizava como branca e civilizada, outros persona-
gens e práticas tinham lugar, mesmo que, para efeitos de exposição
pública - pelo jornais, por exemplo -, tais religiosidades se apresen
tassem como que invisíveis. Uma outra cidade se escondia sob as
formas e a imagem da urbe dos cidadãos. Muitas práticas se realiza
vam às escondidas; de outro modo,eram condenadas c reprimidas.
Falemos, pois, de feitiços, de negros feitiços, pois tais práticas e cren
ças tinham cor determinada: eram coisa de negros, que invocavam
entidades e pareciam dominar poderes desconhecidos...
Certos ritos incomodavam as famílias de bem,com a exposição
de uma alteridade inquietante na virada do século XIX para o XX.
Afinal, neste mesmo século, cientificista, articulava-se, vitoriosa, a
idéia da supremacia da civilização européia cristã ocidental, e ma
nifestações culturais de outras raças tombavam, em versão com
placente, para o pitoresco ou o exótico e em apreciação depreciativa,
como manifestações de barbárie e ignorância. Exemplar da pri
meira postura serit^ uma narrativa como a de Antonio Alvares
Ppreira Coruja, d velho cronista e memorialista da cidade, ao se
130
referir à Porto Alegre do passado, do inicio do século XIX. Lembrava
Coruja o candomhe da Mãe Rita, que ficava na várzea, em frente
ao antigo matadouro, no terreno baldio que viria a ser chamado
de Beco do Firme (atual rua Aval). Nesse candombe, tal como no
de uma certa Baiana do Presépio, os negros se reuniam no
domingo à tarde, a cantar e a dançar,"sem que causassem maiores
cuidados à policia".-
Tais práticas dos negros eram chamadas de batuque, nome
que já fora apontado por Rugendas para descrever as danças habi
tuais dos negros com batidas cadenciadas de mãos,acompanhadas
de movimentos expressivos do corpo e cantoria, repetindo refrões.^
Mais que mera ocupação de lazer, o batuque era uma forma ritual
da religião jejê-nagô, com alguma influência do banto. No culto
que se instalava, associavam-se orixás de origem sudanesa com san
tos católicos, como nos aponta Corrêa."* Sobre os antigos hatwjues,
escrevia outro cronista, Achylles Porto Alegre, a rememorar práti
cas sociais perdidas no passado:
Não temos mais a dança dos negros, tão pitoresca e característica. O batu
que tinha alguma coisa de dança dos nossos selvagens, e tinha tanto de
diversão como de cerimônia religiosa ou fiinehre. Ha%'ia pontos da cidade
onde,aos domingos,o hatvique era infalível. O heco do Poçò,b do Jacques
e a rua da Floresta eram sítios de eleição para o hanique. Nos dias de "folia ,
jã de longe se om iam a melopea monótona do canto africano é o som cavo
de seu originalíssimo tambor. Nessas ocasiões a aguardente corria copiosa-
mente à roda, mas como o africano é de uma resistência assombrosa para
toda a espécie de álcool, nunca se davam casos escandalosos de embriaguez.
131
Outra coisa seria percorrer os jornais antigos onde, por exem
plo, choviam as reclamações sobre os batuques de pretos minas,
estabelecidos na rua da Ponte, entre as ruas Clara e do Arroio, a
incomodar a vizinhança até altas horas da noite... Comentava o
jornal Mercantil: "Esses batuques já não condizem com os progres
sos da nossa civilização".^ Mas, mesmo incomodando,os batuques
eram freqüentados. Só pelos negros? O saudosista Achylles Porto
Alegre nos dá,em suas crônicas, algumas pistas sobre esta avaliação:
Havia também os batuques ao ar livTe. Nestes tomava parte quem queria [...1
Um dos mais populares era o do Campo do Bontim,em frente à capelinha
então em construção. Cada domingo que Deus dava certo um hatuciue ali,
e o interessante é que muita gente se abalava da cidade para ir ver a dança dos
negros.'
132
lugares e lares, como empregados domésticos; nas ruas, a fazer
biscates; e a realizar toda sorte de serviço nas empresas onde eram
aceitos. Subalternos, eiifim, cidadãos de segunda classe, a engros
sar as fileiras dos excluidos. No centro da urbe que se queria bela,
higiênica, ordenada e moderna, eles povoavam os becos e as zonas
baixas e alagadiças, mas também andavam pela rua da Praia e pela
rua da Igreja, no cais do porto e na Várzea e, sobretudo, habita
vam o cinturão negro que se formara em torno da cidade: Colô
nia Africana, Areai da Baronesa e Ilhota são alguns destes lugares
com uma cor certa.
E os feitiços? Os ventos da ilustração republicana iriam acen
tuar esta postura condenatória. As denúncias partiam de uma
constatação muito clara: as práticas religiosas de negros eram pri
mitivas e irracionais, colocavam-se na contra-ordem desta socieda
de que se queria progressista e civilizada. Do batuque ao feitiço,
passando pela negritude, é todo um imaginário que se compõe e
associa cor com atraso, selvageria e crença, que se opunham ao
pensamento científico. Não era, pois, colocada em causa a posição
da igreja católica frente à religião afro-brasileira, mas sim da ra
zão, da cultura e da civilização frente à barbárie e à ignorância.
Havia, ainda, um novo jornalismo, moderno, a estetizar o
cotidiano, fazendo de cada acontecimento, por pequeno que fos
se, um fato surpreendente, um incidente sensacional; á mostrar que
mesmo a pequena cidade de Porto Alegre abrigava segredos e per
sonagens terríveis! A cidade conhecia a fama de um certo negro
Antonio. Na rua dos Pretos Forros, no arrabalde do Menino Deus,
ele retirava maus espíritos que se alojavam no corpo da clientela
que a ele acorria a fim de curar os males que a afligiam...
Mas outros pretos "mandingueiros", também, atingiam a ce
lebridade através das páginas dos jornais. Assim é que, em setem
bro de 1894, o Jornal do Comércio anunciava que a policia fizera "o
feitiço virar contra o feiticeiro"! Fora de surpresa bater à porta do
tugúrio na travessa do Carmo,às lOh da noite, onde oficiavam Pai
Firmino e Luiza Berta-Pau... O periódico relatava para seus leito
res que o miserável casebre se configurava como um templo, onde
eram praticados "os mistérios insondáveis da feitiçaria"!^ Lá, fo
ram encontrados não os fiéis, mas uma moxinifada do Pai Firmino:
133
"santos e búzios, missangas e conchas, oratórios c tripoidcs, moe
das e tijelas, alcaças e acarajés, alimento dos santos, um barrete
que era uma tiara, à moda persa, de largas badanas caídas, toda
cravejada de caramujos e contas, cheias de bordaduras e
arabescos"d° Tudo a indicar a cultura africana da terra distante,
mas nada disso era,sem dúvida, assinalado; tendo, antes, o móvel
de pintar ao leitor o quadro diabólico do ambiente onde se reali
zavam ritos exóticos.
Para completar o cenário e escandalizar o público, o jornalis
ta assinalava que
134
torturas do coração, o mal secreto e indefinível que se chama
amor".'- A descrição do ambiente mostrava ao leitor a mistura de
elementos da religião católica - imagem do Senhor dos Passos à
entrada, junto a uma bandeja para as oferendas dos fiéis - com
elementos rituais e secretos de uma magia africana: no quarto ao
lado, roupas imundas de homens e mulheres eram atadas em nó
cego, para o ritual de feitiçaria.
A Gazeta da Tarde comentava ser realmente triste ver-se, no
meio de uma sociedade civilizada, gente supersticiosa que acreditava
em feitiços... Era preciso que a polícia se opusesse à ação nefasta
daquela "súcia de africanos" que explorava a "credulidade dos
néscios".'^
Comentando o mesmo incidente, o Mercantil dizia que,como
em todas as cidades, em Porto Alegre também lavrava,"impune e
discreta", a feitiçaria, abrigada em "antros" que muitas vezes passa
vam "desapercebidos aos olhos da polícia".'"' Bastava aparecer al
guém dotado de persuasão,com capacidade de influenciar os espí
ritos simples, para cjue logo se visse rodeado de um cortejo de
tolos dispostos a pagar alto preço por todo tipo de serviços, que
iam do sucesso no amor à predição do futuro, passando pela enco
menda de trabalhos e descoberta de segredos. Esta pessoa era, em
geral, "um preto velho, encanecido, de olhar quase a apaganse,
em bruxoleios nas órbitas frias, pisadas pela velhice, pelos anos"...''
Avançando na notícia, a narrativa compunha para o leitor
uma cena ritual de grande efeito que teria lugar naquele antro, só
freqüentado pelos crentes: após o badalar da meia-noite dos sinos
da catedral, a cerimônia começava com a entrada do vidente, acom
panhado de um coro, e que acabava por sentar-se em um trono de
ossos humanos,coberto em dossel por um pano vermelho, a pare
cer "um incêndio a lavrar medonhamente", iluminado pelo cla
rão de um braseiro a fumegar. Tio Pedro,figura central deste rito,
encenaria magistralmente seu papel, dando a mão a beijar e fa
lando de maneira profética, com largos gestos.
O caráter de farsa e o conteúdo satânico do rito colocavam-se
como evidentes. Negros a realizar magia negra, por certo! Mas a
narrativa prosseguia, para a informação do leitor: esta "morada
sombria" era ainda repleta de objetos relacionados à magia, como
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se fosse a exposição de "um arsenal de feitiçaria: frascos de cores,
cheios de líquidos que não se conhecem, rãs estendicfas, mortas,
nas paredes, bonecos vestidos carnavalescamente, capacetes de
papel prateado, sabres, armas, um rolo de cordas pendente"... A
descrição é de molde a levar o leitor a realizar todas as associações
possíveis: ossos humanos com canibalismo, homicídios com selva-
geria, crueldade com o emprego do veneno, o ridículo da fantasia
encenada com a realidade de crimes.
Quem, porém, freqüentaria tais ambientes? Os jornais adi
antavam: fora possível à policia chegar aos arquivos de tio Pedro e
descobrir toda uma série de bilhetes, cartas, recados, com inciuie-
tantes pedidos a aterradoras confidencias ao preto velho - e o que
era mais alarmante: muitas escritas pelo punho de senhoras! Eram
elas, por certo, dotadas de espíritos fracos e influenciáveis, as prin
cipais vítimas da feitiçaria negra. Alertava-se, portanto, para a
nefasta atração exercida pela bruxaria sobre as mulheres, cpie ali
acorriam em busca de filtros misteriosos ou de venenos vingadores
para um ajuste de contas diante do amor próprio ferido!
Avinculação mulher-vitima e negro-feiticeiro avançaria um
pouco mais na escala do perigo social quando se anunciou, logo a
seguir, que o caso tio Pedro complicava-se, com a descoberta de
uma sociedade secreta formada em sua casa. Revelava-se a existên
cia de uma irmandade de caráter religioso, constituída de homens
e mulheres residentes na capital e que freqüentavam os "mistérios
do feiticeiro"."' Adiantava o jornal c]ue ainda não se conheciam
todos" os nomes da tal sociedade,só "alguns"... Mas,investido na
tarefa de garantir a moral pública, o periódico ameaçava que em
breve se teria conhecimento de toda a lista, a ser publicada para
"escarcéu do público" e para que os faltosos recebessem o "mereci
do castigo"! Mais ainda: descobrira-se que a admissão na sociedade
secreta era dada mediante pagamento de 40 mil réis, o que, sem
dúvida, explicava a soma inusitada de mais de um conto de réis
depositada em uma caderneta da Caixa Econômica ciue tio Pedro
tinha em seu poder!
Cidade pequena, a Porto Alegre do final do século xix encon
trava nas páginas d© periódico uma forma de controle social, com
amea^ça de execração pública dos comportamentos desviantes. Po-
136
deria o leitor de tais notícias se indagar: os homens tidos como de
bem e as mulheres consideradas honestas seriam,de fato, virtuosos?
Ou tudo era só fachada, e uma outra cidade, capaz de realizar
orgias e rituais demoníacos,vicejava ao lado da dita boa sociedade?
As associações se processavam com rapidez: negro-feiticeiro-
luhricidade-crime. A Gazeta da Tarde comentava que não era desca
bida a hipótese de que a tal sociedade pudesse ser responsável pela
morte rápida e sem causa aparente dos três filhos de um corretor
de câmbio da cidade. Pois se sabia que um dos membros da seita
havia dirigido uma ameaça à mãe das crianças, dizendo que ne
nhum filho seu, varão,se criaria... Ü certo é que a polícia começara
a receber indicações anônimas que estavam a ajudar na elucidação
do caso!
O que mais atemorizava, contudo, eram os nomes dos parti
cipantes de tal circulo secreto, que o jornal apontava serem das
"primeiras camadas da sociedade", envolvidas "nos sortilégios de
um negro boçal, em fundos de espelunca".'' Alegava-se a indepen
dência da imprensa e a moral social, frente à qual todos deviam
ser iguais. Portanto, as revelações de identidade seriam feitas:"quem
meteu-se na história que agüente", ameaçava o jornalista. Tais
denúncias,contudo, não tiveram prosseguimento,e isso tnpstrava
que, se verdadeiro o tal arquivo do tio Pedro, o peso dos bons no
mes se fez valer frente a tal imprensa justiceira. Restava, contudo,
a culpa de tio Pedro, demonizado pelo jornal e preso pela polícia
em 1895.
Ora, um preto dado a feitiçarias, promotor de orgias,
desencaminhador de senhoras casadas e potencial criminoso
poderia bem ser o mandante ou o cérebro de uma cadeia de assas
sinatos. Para incriminá-lo ainda mais, andava bem trajado e,como
se viu, fora encontrada em seu poder uma caderneta da Caixa
Econômica. Um africano bem vestido e com dinheiro? Boa coisa
não deveria ser. "Negro de luva é sinal de chuva", lembrava o
ditado popular para destacar o inusitado da situação...
O pensamento lombrosiano da época, tão caro à antropolo
gia criminal, marcava sua presença na apreciação do caso. A
fisionomia de tio Pedro, por certo, revelava seu íntimo. Se era
malvado e degenerado, isso devia transparecer no seu rosto:
137
[...] é um negro africano, bem proporcionado, de corpo, olhar csperf'
crâneo ponteagudo, usando uma barbinha no queixo. O tio Pedro t^la
desembaraçadamente o português,seu acento nada tem de africano, expf
mindo-se corretamente.Tem na fisionomia uma expressão «.le maKadez
o toma repelente. Quem o olha adivinha logo que ali está um mau sujeito e
não pode debcar de dizer com seus botões;"Este negro tem muitos crimes na
consciência".'®
138
em seu "imundo casebre" os crédulos que ali acorriam e entre-
8^^'am a ele parte de seus ganhos em troca de suas artes. Sua fama
®^tre o povo crescia e até se dizia na vizinhança que ele havia
das costas de uma mulher "uma galinha preta, aranhas e
^tna cobra de guizo
O tema dos feiticeiros ganhava as páginas dos jornais, e a poli-
se pôs no encalço deles, recolhendo-os à cadeia. Em setembro de
^^^5, foi presa, como feiticeira, a negra Maria Joaquina Pereira da
^'Iva. Gazeta da Tarda denunciava ainda que nas ruas do Arvore-
(atual Fernando Machado), Avahy e General Vitorino existiam
°'''tras casas dedicadas a tais misteres, as tais "explorações imorais",--
quais não se devia dar tréguas. Em outubro do mesmo ano, era
^^scoberto no Beco do Jacques (atual rua 24 de Maio) mais um
centro de feitiçaria! Tratava-se de uma cartomante, espécie de "di-
^hidade sobrenatural"-^ que lia o destino dos crédulos nas cartas...
^ incidente banal tornava-se notícia no relato de jornal, pois a prá-
tica costumeira de ler as cartas era associada a outros pecados maio-
em que a ignorância arrastava para o vicio. A dita cartomante,
*^hamada de "ladra da consciência alheia" e de "messalina esperta",
acusada de separar casais, arrumar casamentos e propiciar
Concubinatos. Feitiçaria, quiromancia e prostituição eram vistas em
conexão, e a Gazetinha clamava à policia para deitar a mão sobre
este "crime horrendo",esta "fonte de esperteza, origem da decadên
cia social, tudo em nome da moralidade, do respeito e do isossego
'íoméstico e, por conseqüência, da felicidade da família".-'*
A vinculação expressa era com a prostituição, essa hidra con-
*^ta a c]ual a fin-de-siècle sulina realizava verdadeira batalha pelos
jornais, a demandar enérgicas providências das autoridades. Pois
uão é que neste mesmo Beco do Jacques, próximo a tal cartoman
te, havia uma estalagem de "Don Juans e de senhoras gradas, que
prostituem-se por gosto, indo consultar a tal cartomante"!"' A fa-
inília estava, pois, ameaçada, e cartomantes-feiticeiras eram como
que uma porta aberta à devassidão, à "podridão social, ao lodo da
imoralidade" e da corrupção! Não era, no caso, indicada a cor da
tal cartomante, o que eqüivalia dizer que era branca... Talvez o
dado representasse um perigo maior; pessoas da dita boa socieda
de, indivíduos brancos, dedicados a tais sortilégios e desvios mo-
139
rais? Era preciso esclarecer os leitores, engajá-los neste combate às
crenças primitivas e às contravenções que concíuziam ao crime.
Notemos que tais noticias partiam de jornais populares, dirigi
dos a leitores das camadas médias urbanas, principais consumidores
deste tipo de notícia "espetaculosa" e, igualmente, principais defen
sores da moral. Eles eram,sem sombra de dú\ãda,cidadãos, pagadores
de impostos e obedientes à lei, a exigir dos poderes públicos o cum
primento de suas funções. Queriam marcar e delimitar bem os ter
ritórios que os separavam dos tais vadios e "turbulentos", a tal gente
sem "ofício nem benefício" que era propensa à desordem,ao pecado
e ao crime. Para tanto, havia de se acentuar a positividade dos valo
res do trabalho e da família, esteios da ordem. Ne.ssa medida, a ação
moralizadora se coadunava bem com a missão civilizadora das elites,
cientificista e técnica, a combater os sinais evidentes do atraso e da
ignorância que se denotavam no corpo social.
O novo século daria continuidade a essas associações. A
do Commercio publicava,em 1903,"^ denúncias contra um certo tio
Firmiano, negro que, de carroceiro e cangueiro, passara às artes
do curandeirismo. Tio Firmiano medicava com chás de ervas e
ungüentos, aplicações de pomádas e rezas, para curar não exata-
• mente os males do corpo, mas os da alma, provocados pela igno
rância do povo: mulheres queriam saber das traições do marido,
outras de amores não correspondidos, algumas, à beira do pecado
do adultério, buscavam seduzir um terceiro etc. Entretanto, sua
fama era tão grande que mesmo alguns médicos lhe repassavam
os doentes, como no caso de um homem que padecia de uma
ferida na perna. Em certo momento do tratamento, tio Firmiano
foi denunciado aos jornais pela mulher do doente, pois este conti
nuava a sofrer dores e não sarava."^ Pequena cidade, onde mesmo
uma perna doente era noticia, mas justamente porque era tratada
por um preto curandeiro!
A figura do negro curandeiro era bastante ambivalente: por
um lado, era reconhecido na comunidade,como se viu, para além
dos crédulos que o procuravam, e até por alguns médicos da cida
de; por outro,o que se passava de fato na casa de tio Firmiano que
levava alguns vizinhos.a dar queixa à polícia? Barulho, cantos, re
zas, ajuntamento de gente, negros e brancos, todos na busca para
140
solução e alívio de males: tio Firmiano era, pois, um alerta e um
perigo, a mostrar que outras estratégias e práticas se realizavam na
urbe, cujos códigos não eram do conhecimento e controle dos
cidadãos. Além disso, se eram procurados pela população, aberta
mente ou às escondidas, era sinal de que havia uma distância clara
entre os discursos acusatórios dos jornais e a preferência popular,
usuária das artes dos tais curandeiros ou feiticeiros.
Não se estava diante de uma nova religiosidade, mas sim de
um caso de ignorância, crendice e exploração da boa fé. Nem tio
Firmiano nem os outros que o precederam nas páginas dos jor
nais eram declarados como chefes religiosos ou espirituais. No
máximo, eram os chefes de uma "seita".
Outro jornal, Ü Independente, dedicou-se também, no início
do século XX, a combater a ignorância que convivia junto às for-
mas civilizadas da vida social, apontando para o incentivo ao rela
xamento moral que acompanhava tais práticas, desviando as ca
madas subalternas do bom caminho:
141
pobre que a circundava. O interessante é ver a estratégia dos tais
repórteres "à americana",como eram chamados, na sua "descida aos
infernos" da cidade, em narrativa folhetinesca e seriada, que visava
fornecer, aos poucos, aos leitores do jornal a visão de uma outra cida
de, aquela não freqüentada pelos bons cidadãos. Minuciosa, a repor
tagem começa pela dificuldade do repórter em achar a tal casa na
Colônia Africana, pois ela não se distinguia das demais pela sua apa
rência extema,salvo - e eis aí o detalhe a chamar a atenção do repór-
ter-detetive...- pelo fato de não ter Janelas nas paredes laterais... Logo,
esta casa, aparentemente igual às outras, devia ocultar segredos!
A personagem que abrira a porta ao repórter, que ali ha\'ia bati
do para consultar a "Dona"- pois assim era chamada a tal feiticeira e
cartomante -era descrita em termos lombrosianos:"pálido,levemente
estrábico, com uma expressão de vicio e quase cretinismo estampada
no rosto".-' Nesse relato, desenvolve-se a narrativa de uma feiticeira
branca em território negro. A casa era descrita com detalhes, dando
a ver ao leitor uma habitação estreita, típica da cidade de então, com
porta e duas janelas e um pequeno lance de degraus na entrada. No
interior, o acesso a tal "Dona" era intermediado por um primeiro
contato com sua irmã, uma mulher de meia-idade e com sotaque
affancesado. O repórter, manifestando desejo de indagar sobre o fu
turo e o passado, forneceu referências falsas, ante a solicitação dc
deixar seus dados por escrito com a tal francesa, chamada Jeanne.
Notemos que todo esse relato se dera ex-post aos fatos aconte
cidos, permitindo ao leitor acompanhar os desdobramentos e as
estratégias levadas a efeito para desmascarar a cartomante. Assim
é que o repórter foi despachado para voltar daí a uma semana,
quando "Dona" o receberia, desvendando passado, presente e
futuro. No dia marcado, o repórter voltou c foi introduzido em
nova peça da casa, fracamente iluminada, a "Chamara Vermelha",
com as paredes forradas dessa cor. Lá, "com olhos felinos", uma
mulher alta e vestida com uma longa bata branca esperava. Com
traços irregulares, intrigantes, ela parecia ostentar - dizia o jovem
repórter - um pouco daquilo que os franceses chamavam de "beauté
du diable".^'' Mais que isso, "Dona" revelou saber que os dados a
ela fornecidos eram'falsos - pois o tarô não mentia jamais! -, o
que obrigara o repórter a mudar imediatamente de tática: sim.
142
havia mentido, mas porque eram tais os prodígios relatados, que
ele havia duvidado... Lisonjeada,"Dona" passou a revelar que re
cebia poderes especiais de seus Superiores - os seres sobrenaturais
- e que, com isso, se distinguia de cartomantes e feiticeiros.
Praticava, pois, uma "alta" quiromancia,distinta daquela,baixa,
praticada por charlatães. Mostrou ao repórter até um misterioso
quarto, a "Câmara dos Espelhos", toda forrada,como o nome indi
cava, de espelhos e iluminada por vários candelabros com velas. O
cenário era de molde a impressionar, e o tal rapaz auxiliar, descrito
como sendo um misto de "cretino e cão",^' mostrara ter muito medo
dessa peça. Mas, à parte toda essa encenação, aceita pelo repórter,
que se havia tornado íntimo da casa, um derradeiro incidente reve
laria a extensão das práticas que ali tinham lugar: um dia,"Dona"
pedira ao moço, já habitual freqüentador da casa, a manter altas
conversações com Jeanne, "em francês", que não retomasse antes
de uma semana, pois devia receber um cliente muito especial, que
não poderia ser visto por ninguém. Vigiando a casa, o matreiro
repórter conseguira divisar, ao cair da tarde, duas mulheres envol
tas em mantilhas, que, sem serem identificadas, apearam de um
carro e entraram na casa. O mistério continuava e, no retorno ao
lar, o repórter relata aos seus leitores um fato que "certamente im
pressionaria qualquer pessoa, por pouco supersticiosa que fosse'•}-
caíra e torcera o pé, o que o obrigara a guardar o leito por 15 dias...
Mandinga da bruxa? O certo é que o repórter, até então ocu
pado em construir uma narrativa destinada a desvelar os embus
tes da superstição e charlatanismo, introduz no leitor uma dúvida,
deixando entrever que talvez ele próprio fosse vítima de uma es
pécie de sortilégio. Na continuidade do relato de real-ficção, em
tom de folhetim, quando conseguira voltar à casa da tal "Dona ,
na Colônia Africana, ela havia sumido, tal como seus auxiliares.
Tendo conseguido entrar na casa, a pretexto de alugá-la, vira que
os quartos,vermelho e dos espelhos,também haviam desaparecido.
E assim, a seqüência de relatos se encerrava, deixando no ar um
tom de mistério. Quem eram as mulheres de mantilha? O repór
ter só vira a um canto da casa abandonada panos ensangüentados,
a sugerir um aborto, talvez, e a mostrar que, na seqüela da crendi
ce, superstição e feitiço, outros pecados e crimes se misturavam.
143
Assim, o fenômeno parecia ao público mais perigoso ainds-
não só pululavam na cidade os tais negros feitiços, mas outros tantos
agentes, brancos e mesmo distintos na aparência, até estrangeiros,
eram dados às tais comunicações com os seres sobrenaturais. No
caso da Colônia Africana, pareciam vizinhar nos mesmos espaços:
a alta quiromancia, branca, se dava no mesmo território, negro,
em que atuavam os pretos mandingueiros. Era preciso, pois, que
as autoridades agissem com energia.
Assim é que a polícia e a justiça foram dar uma "batida" na
casa de feitiçaria do Pai Celeste e de Mãe Joana, ambos de cor
niista e moradores da rua Baronesa do Gravataí, no famigerado
Areai da Baronesa.'^ Interpelado pela polícia. Pai Celeste revelou
que seu "tratamento" aos clientes consistia em surrá-los para reti'
rar-lhes do corpo o mau espírito que ali se alojara.
O jornal descrevia que no "templo" de Pai Celeste tinham
sido encontrados relhos variados, vidros de remédio com ervas
medicinais, quadros com registros de santos e muitos outros objetos,
tudo a atestar as artes da feitiçaria. Mesmo que as ervas fossem
medicinais ou que santos católicos se fizessem presentes, nenhum
registro de uma prática religiosa ou medicinal não canônica foi
assinalado,salvo a de que tudo não passava de embuste e bruxaria.
Para corroborar tal interpretação das práticas ali empregadas, o
oficial de justiça foi até o Beco do Pau Bate, na rua João Alfredo,
antiga rua da Margem, onde encontrou, em um dos casebres aí
existentes, uma mulher miserável, deitada em um catre e em esta
do desesperador por ter ingerido um dos remédios que lhe havia
sido aplicados por Mãe Joana.
Tinha continuidade uma campanha contra tais práticas de
eurandeirismo, alternativas à medicina formal e, a priori,
identificadas como feitiçaria,^'* sempre associadas à exploração da
boa-fé de uma população ignorante e que,via de regra, acobertavam
ações contra a moral e os bons costumes. Mais c]ue isso, a carto
mancia e as curas milagrosas anunciadas eram estratégias
empregadas por aqueles que se apresentavam avessos ao trabalho
e que se dedicavam a viver à custa dos ingênuos.
Na rua Clara, n.4 - denunciava ofómal do Comércio -, morava
um médico-vigarista: Octavio de Assis, que benzia, dava santinhos.
144
t>reves, tirava o diabo do corpo, curava caiporismo, acertava vida
às avessas etc. Tudo em troca de dinheiro ou de que o paciente lhe
^^^■Umasse uma moça bonita para cliente... Denunciado à polícia,
falso médico rumou para o xadrez.''
A elite ilustrada buscava reforço na fala autorizada da épo-
ninguém menos do que Cesare Lombroso dissertava sobre os
^l"iarlatães. "O charlatão recruta a clientela entre os doentes da
^'^aginacão, gente de bons haveres, desocupada e de gênio um
bouco melancólico e que, por não ter em que pensar, cuida em
^^''tar doente. O charlatão era ardiloso, pois conseguia fazer o
'ndivíduo achar o médico um ignorante - porque não lhe diag-
nosticava nenhum mal - enquanto granjeava para si reconheci-
'^^nto e simpatia, ao explicar-lhe, com paciência, a extensão de
^tíus males! Dessa habilidade e da força de auto-sugestão, asseve-
'"ava Lombroso, curas milagrosas ocorriam para doentes
irriaginários!
Em 1913, O Indetyendente rememorava o caso do Pai Celeste,
qual os leitores deviam estar "perfeitamente lembrados"; uma
Pobre mulher apanhara tanto para ter o diabo tirado do corpo
que enlouquecera!" A feitiçaria era um mal, era prejudicial e no
civa e não podia ser tolerada em nome de uma liberdade que não
Podia existir! Havia, espalhados por toda a cidade - mas com focos
uiuito preciso, como se viu -, "uma infinidade de exploradores
que, sob o pretexto de desvendarem o futuro ou de, pela feitiça-
'"ht, adcjuirir aciuilo que se ciuer, atraem as pessoas crédulas".'®
Por um lado, é possivel dizer que a liberdade de exercício da
profissão e de dispensa do diploma, disposição integrante da orde-
Uação positivista da sociedade sulina, colhia frutos e que o feitiço
se virara contra o feiticeiro! Em defesa da higiene e no combate à
ignorância, O Independente passara, em 1907, a publicar uma série
de reportagens de um médico homeopata de Bagé - que se assina
va Ferdinando Martino -, onde eram narrados casos acontecidos
que envolviam curandeirismo. Notemos que, nesse contexto, a
homeopatia já se revelava uma alternativa à medicina formal e
alopata, consolidada em torno da Faculdade de Medicina de Porto
Alegre e ciue se batia contra a liberdade de profissão e dispensa do
diploma para clinicar. Mas, alopatas e homeopatas se voltavam
145
contra outras artes de curar à margem da ciência médica, como se
dava com a prática do curandeirismo.
Em um desses casos narrados no jornal, o médico contava ter
sido chamado pelo pai de uma criança - um "pardo" - à sua casa
para tratar do filho menor que estava doente. Ao entrar na casa
do "crioulo", sentira um mal-estar devido à aglomeração de gente
sem nenhum asseio, a exalar um cheiro pestilento e repugnante e
que rodeava a mãe da criança; esta, sentada em um caixote, trazia
o pequeno enfermo no colo, abafado entre cobertores e um xale
de lã."Uma china de cinqüenta e poucos anos de idade, correntina,
soltando fortes baforadas de fumo, tirava de um grosso e compri
do cigarro, mais ou menos assim se expressou: 'Este menino, a
meu ver, tem muita bicha'.
A criança apresentara convulsões, c a mãe quisera chamar
um médico; mas a curandeira, estando nas redondezas, diagnosti
cou um "ataque das bichas" e administrou-lhe chá de kísna, chá de
sabugueiro com açúcar, essência e cachaça e, por último, um chá
de carrapicho com mel, com o que o menino agora se achava a
dormir, sossegado. Chegando o médico, constatou-se logo que a
criança se achava morta,e não dormindo! Em meio à confusão de
gritos de dor que se seguiram,a curandeira aproveitou para escapar.
Um segundo caso narrava a história de uma viúva com seu
filhinho doente e diante da qual uma "entendida" .se impusera
para impedir que levasse ao médico, dizendo que o mal que atin
gia a criança - "embate" e "quebranto" - doutor nenhum cura
ria... Dizia chamar-se Maria Fausta das Neves e já ter salvado, com
benzeduras e chás, centenares de crianças cjue os médicos diziam
sofrer de "fecção castro entertinal". Tal como no caso anterior, a
criança era levada tardiamente ao médico e acabava por morrer.
Um terceiro caso discorria sobre uma menina de 6 me.ses de
idade, de cor parda,que falecera, pois o tratamento receitado pelo
médico não fora seguido; em vez, foi aplicado o da curandeira
Venância Flores.''®
Em outro relato, o médico-repórter chegava a descrever uma
cerimônia oficiada por feiticeiros no casebre de uma moça "parda"
que estava possuída pqr upi mau espírito. A jovem era acometida
de ataqçies, quando então se retorcia, mordia a si prcipria e dava
146
gritos pavorosos. Era dada como enfeitiçada, por sofrer de ata
ques histéricos e jazia contorcida de dores, gemendo e atirada em
uma cama, em uma casinha "de paredes sujas e enfumaçadas" de
vido a um fogareiro onde queimavam enxofre e raízes secas de
diversas plantas.*^^ Na sessão de reza que tinha lugar em torno da
doente, um feiticeiro e uma feiticeira entoavam cânticos, monó
tonos e cadenciados, que eram repetidos pela assistência, cerca de
umas 12 pessoas:
Santa Maria
Meu Santo Antônio
Atugenta os espíritos
Afugenta o demônio
Estrelinha do céu
Ar serenado ^
Tira os feitiços
Cura o pecado ^ ,
Santa Thereza
Santa Belém
Mata o feitiço
Jesus Amém.''-
147
Alegre podiam identificar e fazer analogias com os casos cjiie havi
am presenciado ou ouvido falar, sucedidos na capital do Estado.
Por outro lado, o discurso médico se amparava no da justiça, de
nunciando crimes e contravenções que se associavam a tais práti
cas e também ao da imoralidade.
Outro fora o caso de Leonor, de 16 anos, moça dada também
por enfeitiçada, apresentando ataques histéricos e estando com as
regras" suspensas de três para quatro meses... O feiticeiro, cha
mado pelos pais, a fizera beber, todas as noites uma "água suja',
que se conservara por 24 horas no gargalo de uns castiçais de ccv
bre, "enzinhavrados" e sebentos. Os efeitos da poção mágica so
bre a moça enfeitiçada haviam sido surpreendentes:
148
"mandingueiro" Ramão,com um pedaço de fumo e repetidas bo
chechas d'água, eshorrifava no rosto dos presentes da pobre
família..."*'' A cena devia ser realmente hilariante, mas atestava
para os leitores até que ponto podia levar a ignorância e a crendice
do povo, a obedecer às mais absurdas exigências de um charlatão!
O escandalizado doutor dera parte na polícia, que levou pre
so o "perverso negro dos espíritos". Amarrado em seu corpo, en
tre a camisa e o casaco, foram encontrados em um saquinho ver
melho mais de 30 bichos cabeludos, insetos variados, bolas de ca
belo, agulhas, alfinetes, pedaços de cal, de gesso, de capim, apetre-
chos todos que o mandingueiro vomitava diariamente, fazendo
crer que expelia os maus espíritos captados dos pacientes... Ramão
foi''estaqueado" - ou .seja, preso por pés e mãos a uma certa altura
do solo, amarrado a quatro tocos -, sem água e comida, por 24
horas, e depois foi obrigado pelas autoridades a deixar o municí
pio. Como se vê, deram ao bárbaro mandingueiro um tratamento
igualmente bárbaro. Quanto à enfeitiçada, deixou de ter seus ata
ques de histeria e depois de alguns meses deu à luz a seu feitiço,
um gordo nenê",causa de seus males... O episódio, por estapafúrdio
que possa ser, revela a associação cjue se evidenciava,
reiteradamente: a feitiçaria acobertava desvios de conduta, como
o caso da gravidez que se mascarava em feitiço.
Em 1914, o jornal A hloite iniciou uma campanha cc^ntra o
que chamou de "explorações torpes", exercidas por indivíduos ig
norantes, mas espertalhões, que se apoiavam na crendice popu
lar.'*^ A situação era aproveitada para que se fizesse uma crítica ao
governo: no Rio Grande do Sul, a constituição estadual, para ga
rantir a liberdade profissional, impedia a correta aplicação das
punições previstas no Código Penal da República. Cóm isso, os
charlatães se sucediam, a vender beberagens e xaropadas, panacéi-
as que desafiavam a higiene e o bom senso... Outros se dedicavam
a curar males de amor ou a provocar paixões súbitas nos mais
indiferentes; outros ainda vendiam talismãs e fórmulas mágicas
para o sucesso nos negócios. Urgia coibir tudo isso, comentava o
articulista, pedindo que a polícia pusesse termo a tais "baboseiras,
só próprias da gente africana".'"'
Notemos a persistência das associações imaginárias de sentido.
149
ante uma realidade que negava, em parte, tal correspondência-
Muitos charlatães não eram negros, mas mesmo assim se indicava
que agiam como se o fossem: o feitiço, a medicina alternativa e a
cartomancia andavam juntas,como coisa de negro,e descambavam
logo para outras contravenções mais sérias.
Muito próximo da feitiçaria estaria aquilo c]ue o jornal deno'
minava de "baixo espiritismo", coisa de ignorantes, distinto de um
outro, a que chamava de espiritismo cientifico:
Quem obser\'asse com olhos maliciosos diria que Porto Alegre é uma cidade
do outro mundo,tal a afluência dos espíritos que descem a com ersar con'
os viventes que aqui moram.Os"médiuns" pululam sob todos os aspectos.
Temo-los videntes,escreventes,conscientes, inconscientes,de toiltis os jeitos,
enfim.""
150
^OTAS
1:
Ibid.
n
^Ja^eta da Tarde, 11 maio 1895.
Ibid.
i-í
15
Mercantil, 12 maio 1895.
Ibid.
lü
Oa^eta da Tarde, 15 maio 1895.
17
Oa::eta da Tarde, 16 maio 1895.
18
i<)
Cmzeta da Tarde, 15 maio 1895.
SJazeta da Tarde, 14 maio 1897.
:o
O lndel>endente, 13 maio 1907.
Gaveta da Tarde, 7 abr. 1897.
Gaveta da Tarde, 10 set. 1895.
Gaíetirilia, 27 out. 1895.
Za
Ibid.
25
Ibid.
2ij
Gazeta do Commercio, 20 mar. 1903.
27
Id., 24 mar.; 12 maio 1903.
28
G Indejyendente, 4 jun. 1905.
20
Ibid.
^0
CD Indelvndente, 8 jun. 1905.
^1
O Independ ente, 18 jun. 1905.
Ibid.
O Indejyetulente, 25 out. 1908.
M
Sobre essa c]ucstão, cf.: Wrber, Beatriz Teixeira. As artes de curar. Medicina,
151
religiãOj magia e positivismo na República Rio-Grandense (1889- 1928). Baiiru:
EDUSC; Santa Maria: UFSM, 1999.
O Independentey 11 oiit. 1905.
Jomaldo ComérciOy 11 out. 1905.
O Independentey 14 jun. 1913.
Ibid.
O Independentey 26 set. 1907.
Id., 29 set. 1907.
Id., 13 out. 1907.
42
Id., 13 out. 1907.
Id., 20 out. 1907.
Id., 27 out. 1907.
A Noitey 27 abr. 1914.
Ibid.
A Noite, 28 abr. 1914.
Esta vem a ser uma outra etapa de um projeto de pesquisa em curso na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul(i 'FRGs), com o apoio do CNPq,
Os sete pecados da capital Espaços, personagens e práticas na contramão da
ordem na cidade de Porto Alegre.
152
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ISBN 857078091 -5
Editora filiada à
798570 780910