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Olhe por onde você anda:


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CALÇADAS
de porto alegre

Airton Cattani
Fotografias

Armindo Trevisan
Sandra Jatahy Pesavento
Textos

UFROS
EDITORA
Marcas do pcissado, soleircis da memória

Faz muito tempo que trilho as ruas de minha cidade. Aliás,é possí
vel dizer que faz mesmo muitos anos que ando nas calçadas desta
Porto Alegre, pois sou da época em que se andava na rua sem maiores
preocupações,em que se caminhava maiores distâncias a pé e em que
havia menos carros... Sou do século XIX? Não,dó recém escoado sécu
lo XX,época em que foram instaladas grande parte das calçadas por
onde andamos,praticamente sem vê-las,sem que nos detenhamos um
só instante, mobilizados pela finalidade do percurso e não pelo cami
nho a percorrer!
Sim, porque o cotidiano embota o olhar,impede que nele vejamos
os restos de beleza do passado que nele ficaram. Nosso pensamento,
quando saímos de casa todos os dias,se dirige para o tempo e o espa
ço que nos aguarda no trabalho, ou para aquilo que acabamos de
deixar para trás e que já é passado,como tempo físico escoado. Assim,
as imagens visuais, registradas na retina, não se completam no rotei
ro de ultimar a percepção,este fenômeno que ultrapassa o ver e cons
trói o olhar. Tais imagens visuais de cada dia são passageiras e aca
bam desapercebidas no plano do pensamento, como se aquilo que
vemos não deixasse registro. Isto ocorre quando tais imagens visuais
não são postas em conexão de sentido com as outras imagens mentais
do arquivo de memória que carregamos e que permite operações ima
ginárias de qualificação do real...

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Ora, pois, falamos das calçadas? Quem se lembra delas, que se
tornaram antes obstáculos a transpor do que objetos de contemplação
nesta cidade que mudou,cresceu e que pretendeu ser cada vez mais
moderna e mais bela? Mas,neste espaço da urbe continuamente reno
vada,algumas marcas do passado insistem em se mostrar: aqui e ali,
um tanto soltos e em desacerto com o entorno das demais calçadas
novas, traços antigos persistem, pedindo para serem vistos!
Velhas calçadas descuidadas, elas se convertem como que em ras
tros de um outro tempo, que só o observador atento poderá notar,
tendo um olhar sensível para nelas ver restos de beleza e de passagem
da vida no andar da cidade. Talvez, para tanto, fosse preciso dispor
de tempo para olhar, tal como oflâneur de Baudelaire, a ver mais que
os outros passantes da cidade...
Uma vez, o conhecido cronista Achylles Porto Alegre, célebre por
seus escritos onde rememorava a velha cidade que conhecera e que se
transformara, ao ser acusado de saudosista e contrário ao progresso,
defendeu-se dizendo que via a cidade com os olhos da memória.
Ou seja, desde o seu presente, ao olhar uma esquina, um prédio ou
uma rua,com a força do pensamento, Achylles conseguia ver o que ali
se erguia antes e que já desaparecera, deixando, por vezes, traços,
aqui e acolá, que ele descobria,como uma porta ou soleira de acesso à
memória. A visão do cronista nos apresenta com clareza como se pro-
cessa o que chamamos de memória voluntária: aquela na qual a evo
cação é antecedida por um ato de vontade, manifesto no desejo de
lembrar. Achylles Porto Alegre saía todos os dias a percorrer as ruas
de sua cidade, vendo, na urbe do presente, aquela do passado. Prati
cava,nesta perambulação, um esforço de reminiscência,anin:tado que
era pelo desejo de mostrar, àqueles que não mais podiam ver ou lem
brar, o que ele vivenciara e recordava. Não é preciso dizer que as
crônicas de Achylles são como que uma entrada no passado da velha
Porto Alegre, através da memória construída por ele a respeito de
lugares, gentes, ruas, bairros, prédios,costumes e valores.
Mas voltemos às nossas antigas calçadas, na busca do que restou
da cidade de um outro tempo. Muito pouco,sem dúvida, mas se não
atentarmos a elas, elas desaparecerão,fisicamente e da memória.
Sempre morei na Cidade Baixa e,desde a minha rua Venâncio Aires,
muito brinquei na calçada. Aliás,sou do tempo em que se brincava na
calçada. E - surpreendam-se ou não com isso - consigo lembrar das
calçadas antigas, onde eu pisava. Lembro mesmo das calçadas da/
frente de algumas das casas que hoje não mais existem. Fico por vezes
me perguntando por que e como consigo lembrar destes detalhes. Afi
nal, se eles surgem na minha memória,é sinal de que alguma impor
tância foi por mim concedida às tais calçadas antigas. Diga-se de
passagem, ainda há alguns pequenos trechos onde'restaram certas

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pedras e desenhos antigos. São muito poucos, mas eu os identifico, e
em alguma parte de mim ocorre uma espécie de gratificação por este
reconhecimento.
Dos pés à cabeça,o caminho se retraça. As calçadas destas minhas
ruas - desaparecidas ou remanescentes - são recortes do espaço que
se incorporaram à vivência e se impuseram à memória. Mas se elas
persistem como um objeto que retém a minha atenção,é porque este
espaço é e foi mais do que um trecho geométrico da superfície: elas,as
"minhas" calçadas,foram um território e um lugar.
Foram um território na acepção de terem sido um espaço apropria
do^ ao qual foi conferida uma função. As calçadas eram "nossas",das
crianças de então,como um território de brincadeira. Eram um espaço
que nos pertencia e que por isso se impõe à lembrança. Mas este espaço
era dotado de um sentido, pois se incorporou às representações que
faço da cidade neste tempo.Logo,o espaço das calçadas era um lugar,
dotado de significados precisos e reconhecíveis! Enquanto lugar da
cidade,elas permitem a identificação e a memória,ocupando um lu
gar no imaginário da cidade.Pelo menos,no da minha/nossa cidade...
Calçadas, pois sim. Não as temos ou tivemos como as de Lisboa, por
certo,lindas nos seus desenhos caprichosos e que ainda hoje dão lugar a
cartões postais.Também não tivemos o destino do Rio,como sede da Corte
e capital da República, que recebeu calçadas mais belas que as nossas.
Nossas calçadas são mais modestas, mas não menos importantes.

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o que restou destas calçadas antigas nos aparece hoje como um
mosaico disperso. São como que as contas de um colar que se partiu:
nesta rua um trecho bem marcado,a exibir cores e desenhos;ali adian
te somente restos de um detalhe que teimou em ficar, sabe-se lá por
que,em meio à renovação urbana; por vezes,são apenas fragmentos
solitários, que mais parecem pedir socorro diante da cidade que se
transformou.
Não gostaria de parecer saudosista ou contrária à renovação de
uma urbe. Antes, por dever de ofício e sensibilidade - como historia
dora que sou -,me agradaria chamar a atenção para estes cacos do
passado que subsistem, antes que desapareçam de todo.
São por certo indícios de um outro tempo,a atestar requintes,cui
dados e sensibilidades. Se a cidade pode ser considerada como um
livro de pedra, oferecendo-se à leitura, como apontou Walter Benja-
min,tais calçadas talvez não constituam um capítulo, mas certamen
te perfazem alguns parágrafos desta história da cidade que se insi
nua na sua materialidade. Isto,se conseguirmos olhar por onde pisa
mos,completando este percurso dos pés à cabeça e libertando a ima
ginação. Estou certa que outras cidades vão surgir,como fantasmas,a
iluminar a Porto Alegre de hoje.

Sandra Jatahy Pesavento

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Airton Cattani I Armindo Trevisan I Sandra Jatahy Pesavento

Olhe por onde você anda:


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DE PORTO ALEGRE

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