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A CONFUSA HISTORIA(O)-GRAFIA DE ARAPIRACA: BREVES REFLEXÕES

Arapiraca se aproxima de completar seu primeiro século enquanto um espaço


burocrático, ou seja, de sua emancipação. É a partir de quando se torna um município
independente que se inicia todo seu processo de organização política administrativa própria,
não mais vinculada a Limoeiro de Anadia. Obviamente que devemos sim fazer do ano de seu
centenário um ano de muitas comemorações e eventos que demarquem a importância do
momento. Isto é, se deve compreender suas manifestações artísticas e culturais, seus aspectos
de importância política para alagoas, e principalmente sua história. E que sua história seja o
foco dos historiadores locais, que estes sejam comprometidos com a historiografia que seja
capaz de problematizar a cidade em seu centésimo aniversário de emancipação. E que
superem o que chamo de confusa historiografia de Arapiraca.

Fazer historiografia é decifrar enigmas nos vestígios deixados pelos mais diversos
meios e lugares em que os indivíduos percorreram e demarcaram, enquanto indícios, sua
passagem e imprimi-los para dar testemunho sobre a história desses indivíduos e das
sociedades em que viveram. É de se concordar que as fontes materiais podem nem sempre
existir de forma a responder as questões da pesquisa historiográfica. Dessa maneira, o
historiador que se debruça sobre o urbano deve tentar perceber a cidade em sua sensibilidade.
Por essa perspectiva,

Cada cidade é um palimpsesto de histórias contadas sobre si mesma, que revelam


algo sobre o tempo de sua construção e quais as razões e as sensibilidades que mobilizaram
a construção daquela narrativa. Nesse curioso processo de superposição de tramas e
enredos, as narrativas são dinâmicas e desfazem a suposta imobilidade dos fatos.
Personagens e acontecimentos são sucessivamente reavaliados para ceder espaços a novas
interpretações e configurações, dando voz e visibilidade a atores e lugaresi

Olhar a cidade em sua sensibilidade significa apreender elementos que nos ajudem a
construir um arsenal de palavras que nos sirvam para nomear a cidade. Dizer a cidade
também é uma forma de construir seus significados, “Fala-se e conta-se, então, dos mortos,
dos lugares que não mais existem, de sociabilidades e ritos já desaparecidos, de formas de
falar desusadas, de valores desatualizados. Traz-se ao momento do agora, de certa forma, o
testemunho de sobreviventes de outro tempo, de habitantes de uma cidade que não mais
existemii”

Assim, o conhecimento histórico opera no sentir. Dessa forma, “O conhecimento


sensível opera como uma forma de reconhecimento e tradução da realidade que brota não do
racional ou das construções mentais mais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do íntimo
de cada indivíduoiii”. Pode-se traduzir essa sensibilidade em uma espécie de poética do
conhecimento, pois os homens aprendem a sentir e a pensar, ou seja, a traduzir o mundo em
razões e sentimentos. As sensibilidades seriam, pois, as formas pelas quais indivíduos e
grupos se dão a perceber, comparecendo como um reduto de representação da realidade
através das emoções e dos sentidos.

A sensibilidade orienta o historiador a captar as representações que são elaboradas no


espaço urbano, e a cidade é um arquivo de informações que podem ser de grande valia na
produção do conhecimento histórico e ajudam compor a virtude do real, pois “demonstram
um esforço de revelação/ocultamento dado tanto pelas imagens reais (cenários, paisagens de
rua, arquitetura) como pelas imagens metafóricas (da literatura, pintura, poesia, discurso
técnico e higienista etc.)iv” Dessa forma, conclui-se que a “cidade é objeto de múltiplos
discursos e olhares, que não se hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se
contradizem, sem, por isso, serem uns mais verdadeiros ou importantes que os outros v”.
Assim, a cidade de Arapiraca, deve ser tomada em sua multiplicidade pela qual se busca
compreender o processo de elaboração de sua visibilidade e dizibilidade como espaço
construído pelos indivíduos que participam de sua história.

QUEM CONFUNDE ARAPIRACA?

Esses dias, andando pelas ruas de Arapiraca, deparei com diversas demolições. Casas
antigas, velhos imóveis, arquitetura de outrora. Tudo que fora construído, e que não serve
mais para a paisagem urbana atual tem sido posto em escombros. Esses escombros levam
consigo fragmentos da história da cidade, dia arcaica, dia moderna. Cidade confusa, usando
uma expressão do cineasta arapiraquense, Leandro Alves.

Pensando nessa confusão, me ponho a questionar o seguinte: Quem confunde


Arapiraca? Quem faz essa cidade confusa? Há várias formas sérias de se responder esse
questionamento, e a especulação aqui provocada é uma destas. A história da cidade, posta em
escombros, é uma enorme perda para as identidades locais, para as gerações futuras. Essas
referências históricas destroçadas em nome da moderna ideia de tornar a cidade moderna
causam o apagamento do passado que jaz com os mortos. Os mortos, construtores, já sendo
mortos, são facilmente superados pelos que, sendo vivos, não se sabe até onde e quando, não
passam de demolidores, nada constroem a não ser o presente fragmento confuso do agora.
Cabe então, o historiador ir até o que disse Benjamin, que afirma que “O dom de despertar no
passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que
também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer vi”. E o inimigo tem
vencido.

Recentemente, foram demolidos aspectos do cotidiano do povo de ontem, expressos


no mural do Artista plástico Ismael Pereira de Azevedo, que vivia na parede do salão de
festas do, hoje escombros, clube dos fumicultores. E quando me refiro ao povo de ontem,
estou falando de uma gama de pessoas que derramaram suor para construir essa Arapiraca
que está sendo gradativamente demolida pelos senhores do agora. E os senhores do agora, são
os ditos modernizadores, os que pensam apenas no imediato, ou no lucro imediato. Uma
gente nefasta, iletrada. Gente que despreza a história, e o legado deixado pelos nossos
recentes antepassados.

Outro fato a ser destacado é a demolição do clube do saudoso fumicultores, um


exemplo de desprezo pela história local. Aquele lugar tinha imprimido em seus ladrilhos,
seus corredores e até nas grades que o protegia, o registro de memórias de grandes eventos
culturais, eventos políticos que decidiram os rumos de nosso município em dada época e
contexto. É certo que outra estrutura, dita moderna, está sendo construída, mas isso não
reconstrói a história do monumento anterior. Além de monumento, o clube que foi posto a
baixo era um documento vivo e pulsante da história local. Uma parte da história da cidade
acabou nessa triste e horrenda demolição. E um dos aspectos que deve ser observado em
relação a esses monumentos é sua característica de transmissão de lembranças através de sua
comunicação em uma linguagem que pretende um movimento de visita e revisita do passado.

Assim, considerando que deve haver um diálogo entre o monumento e seu


observador, se deve considerar que isso nos mostra o caráter de comunicação deste em
relação aos seus espectadores, pois “o que designamos por alma do monumento é sempre sua
parte principal. Ela consiste, seja em inscrições, seja em figuras pintadas ou esculpidas que
podem ser históricas ou alegóricasvii”. Fechar os olhos para a destruição dos monumentos
históricos de Arapiraca é, no mínimo, uma grande covardia. A alma desses monumentos é
violentada pelos donos do poder com a conivência dos intelectuais locais que nada fazem,
nada dizem. São várias as demolições de prédios antigos das regiões centrais de Arapiraca,
assim como das periferias. Outro agravante é a conivência do poder público, que assiste esses
atentados sem mover nenhum esforço para evitar. A cidade, aos olhos da população, é uma
confusão sem dimensões.

Essa confusão proposital é um ato dos visionários baluartes da especulação


imobiliária, do comércio atacado varejista e da gestão municipal, que há muito defende os
interesses de grupos específicos, menos os interesses do povo. AQUI TUDO VIRA
COMÉRCIO! O confuso para os que vivem Arapiraca intensamente será tomado como o
“nada-disso” para os que vierem depois de nós, que não construímos, mas assistimos
chorosos os que só sabem demolir a história, o passado, o futuro. Que possamos ao menos
fazer um álbum de fotografias para levarmos aos nossos túmulos quando virarmos escombros
dessa enorme confusão.

Diante do exposto até aqui, mais alguns questionamentos devem ser levantados para
que haja reflexões sobre como se construir uma historiografia arapiraquense: é importante
que no centenário de Arapiraca, os fazedores da historiografia, profissionais ou amadores
devam continuar disputando as verdades sobre o mito fundador do que seria Arapiraca? Será
possível que ninguém consegue enxergar que a pratica da ciência histórica deve debruçar-se
sobre os problemas da sociedade atual? Se, ao invés de escreverem tratados imensos
desprovidos de referencial teórico metodológico, pautados na descrição de documentos
frágeis, memórias cada vez mais seletivas e individuais, esses intelectuais buscarem entender
os processor que trazem Arapiraca à luz de uma confusão sem dimensões? A quem interessa
que o que se convém chamar de história de Arapiraca?
Notas.
i
(PESAVENTO, Sandra. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de
História, 2007, vol.27, n. 53.
ii
(Ibdem, p.20).
iii
(PESAVENTO, 2 Sensibilidades no tempo, tempo das sensibilidades. Universidade Federal do Rio Grande
do Sul/BR. Nuevo Mundo Mundos Nuevos n°4, 2004.
iv
(PESAVENTO, Sandra. Muito Além do Espaço: Por Uma História Cultural do Urbano. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 16, 1995.
v
PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2002.
vi
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 10. reimpr. São Paulo: Brasiliense,
1996. v. 1: magia e técnica, arte e política.
vii
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XIX: Do monumento aos
valores. São Paulo: Estação da Liberdade, 2009.

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