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DOI: 10.4000/books.etnograficapress.1406
Editora: Etnográfica Press
Ano de edição: 2008
Online desde: 13 maio 2019
coleção: Antropologia
ISBN eletrónico: 9791036516191
http://books.openedition.org
Edição impressa
Número de páginas 174
Refêrencia eletrónica
CORDEIRO, Graça Índias (dir.) ; VIDAL, Frédéric (dir.). A Rua : espaço, tempo, sociabilidade. Nouvelle
édition [en ligne]. Lisboa : Etnográfica Press, 2008 (généré le 09 décembre 2019). Disponible sur
Internet : <http://books.openedition.org/etnograficapress/1406>. ISBN : 9791036516191. DOI :
10.4000/books.etnograficapress.1406.
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Arua como lugar estratégico para a observação da vida urbana no que esta tem de mais peculiar é
o tema central deste livro. A proposta é simples e exploratoria: procurar diferentes aproximações
a esta realidade complexa a partir do olhar da antropologia, da história, da sociología e da
arquitectura, em contextos geográficos e temporais distintos. A rua surge como problema a
identificar e como lugar privilegiado para a troca e circulação de saberes disciplinares. Enquanto
imagem e símbolo de um modo de vida urbano, lugar onde ocorrem as sociabilidades mais
“típicas” da cidade, a rua condensa e viabiliza todo um imaginário feito de discursos, memórias e
emoções, que atravessam e elaboram simbolicamente a cidade naquilo que ela tem de mais
original. Espaço, tempo e sociabilidade são apenas tres tópicos que ajudam a ler as contribuições
da presente colectânea, cujos autores partilham urna preocupação fundamental: apreender a rua
à escala de quem a vive, de perto e em situação... Na Paris popular oitocentista, nos actuais
campos de refugiados ou na Lisboa dos séculos xix e xx, vamos ao encontro dos lugares da rua.
FRÉDÉRIC VIDAL
Historiador, Centro em Rede de Investigação em Antropólogia (CRIA / ISCTE-IUL),
professor da Universidade Autónoma de Lisboa.
2
Agradecimentos
Introdução
Graça Índias Cordeiro e Frédéric Vidal
1 Falar da rua é falar da cidade. Analisar a rua como lugar estratégico para a observação
da vida citadina e urbana, no que esta tem de mais peculiar e original, é o tema central
deste livro. A rua é entendida como um recorte empírico que permite encontrar uma
multiplicidade de pontos de vista e de objectos, um recorte etnográfico possível para a
exploração e o conhecimento da vida urbana contemporânea a partir de baixo e de
dentro. A proposta é relativamente simples e exploratória: procurar diferentes ângulos
de aproximação a esta realidade complexa, reunindo um conjunto de casos
provenientes de campos disciplinares próximos mas com temas de análise e contextos
geográficos e temporais distintos. Porque os objectos não são neutros nem existem no
vazio, mas são construídos no interior de tradições científicas próprias, foi também o
olhar subjectivo do investigador formado numa determinada disciplina – a
Antropologia, a História, mas também a Sociologia e a Arquitectura – que quisemos
convocar para a discussão.
2 Contudo, o objectivo do presente livro não é pensar novas formas de
interdisciplinariedade. O encontro entre diferentes autores não se fez tanto em torno
de objectos relativamente próximos mas, sobretudo, em torno de questionamentos e
maneiras comuns de observar: de perto, em situação, procurando não reduzir
artificialmente a complexidade das formas sociais analisadas, com uma particular
atenção às mudanças históricas. Neste sentido, a rua surge como lugar privilegiado para
uma troca e circulação de saberes disciplinares. Tomar a rua como problema a
identificar e não como unidade definida a priori é, pois, o ponto de partida desta obra.
3 As realidades concretas que são trabalhadas nos capítulos que se seguem – os espaços,
as situações, os actores, os processos-abrem novas perspectivas para o debate em torno
de um tópico tão falado mas, paradoxal mente, tão pouco conhecido. Trata-se de
revelar o sentido que a interacção urbana quotidiana adquire para cada citadino, nos
lugares que habita e percorre, nos papéis que desempenha, nas representações que
fabrica. E a rua à escala de quem a vive o que nos interessa descobrir, discutir e
problematizar – a rua como lugar onde se fabricam interacções, onde se produz
sociedade, a rua que tantas vezes se inventa para além do enquadramento urbanístico
que a envolve e que assim nos surpreende.
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4 A cidade tem sido olhada como um símbolo, “primeira forma material da modernidade”
afirma Michel Agier que, no primeiro capítulo, analisa o caso dos campos de refugiados.
É precisamente a relação entre esta materialidade urbana – a cidade histórica – e a
produção de espaços de vida urbana que interessa problematizar nestes espaços
liminares, precários ou vazios que permitem discutir a génese da vida urbana, tanto na
sua materialidade como nas formas de organização social e cultural. O factor mínimo de
urbanidade está lá, são implantações relativamente permanentes e densas de
indivíduos heterogéneos. E o tempo é crucial na dinâmica destes espaços: ao nível da
sua organização, da sua apropriação simbólica, das sociabilidades que se vão
desenvolvendo, das formas de expressão simbólica, até das formas emergentes de acção
política. “O campo é um espaço em si que cria a sua própria dinâmica.” Analisar os
quadros de identificação local que nascem em situações de extrema precariedade, neste
e noutros espaços liminares, permite repensar a localidade e o próprio facto urbano em
si.
5 O mote está dado: espaço, tempo e sociabilidade são apenas três tópicos que nos ajudam
a ler, de um modo coerente, as contribuições da presente colectânea. Se olharmos um
pouco para o contexto histórico e científico da reflexão sobre a rua podemos ver que a
sua abordagem tem oscilado entre, por um lado, um excesso de visibilidade, no sentido
em que a cidade tem sido, muitas vezes, lida a partir do ponto de vista da rua – de uma
certa rua, de uma certa imagem de rua – confundindo-se, até, com ela, e, por outro lado,
um limitadíssimo conhecimento empírico destes espaços concretos, com uma
consequente lacuna na sua teorização. Este aparente paradoxo, entre a força de uma
certa “ideia de rua” e a pouca nitidez na percepção das múltiplas, diversas e muitas
vezes contrastantes “experiências de rua” traduz uma real dificuldade na apreensão
destes espaços de vida urbana, lugares cruciais na vida das nossas cidades.
6 Enquanto imagem e símbolo de um “modo de vida urbano”, lugar onde se acredita
ocorrerem as formas de interacção social “mais típicas da cidade”, a rua condensa e
viabiliza todo um imaginário composto por bipolarizações classificatórias (casa/rua;
público/privado; urbano/tradicional), discursos, imagens, memórias e emoções que
atravessam, elaboram e estruturam simbolicamente a cidade naquilo que ela tem de
mais originalmente urbano. Desde a identificação do par proximidade geográfica/distância
social pela chamada Escola de Chicago que não têm conta as variações mais ou menos
sofisticadas desta relação constitutiva da vida citadina em qualquer latitude. Nesta
busca da especificidade da vida social urbana, a rua surge, inequivocamente, como o
elemento central ao nível da prática social e do imaginário.
7 Num primeiro momento de reflexão sobre a urbanidade e o facto urbano em si,
reportando-nos à emergência das primeiras cidades industriais, a rua surge com um
valor metafórico evidente e, até mais do que isso, parece condensar e sintetizar em si
mesma aquilo que traduz a modernidade que se confunde com o modo de vida urbano: a
rua é a cidade, sinónimo de espaço público. Se nos lembrarmos de alguns autores
clássicos que basearam a sua percepção da cidade a partir do espaço público onde se
inclui a “rua”, vemos como a identificação de um novo tipo de relacionamento social,
baseado no contrato e no anonimato, se confunde com o espaço público e ganha uma
grande relevância. Como se, nestes primeiros tempos de definição de conceitos e de
matrizes de interpretação da realidade, a rua fosse um objecto com demasiada
visibilidade, capaz de suscitar um imenso interesse traduzido numa multiplicidade de
olhares, quase cinematográficos, como o flâneur de Baudelaire que tanto inspirou os
5
lado, e uma abordagem em várias escalas e um enfoque situacional, por outro, são
algumas das preocupações partilhadas nestes dois textos.
11 Em que medida o modo de identificação dos domicílios pode ter a sua história? No texto
de Frédéric Vidal, a morada surge como uma forma de identificação socialmente
construída, ponto de encontro entre “modelos normativos” e “lógicas de tipo
comunitário”. A análise de diferentes práticas em curso na Lisboa do século XIX –
nomeadamente a organização da posta domiciliária, as declarações nos registos
paroquiais, a percepção da organização do espaço urbano em alguns textos novelísticos
– permite focalizar pontos de articulação e de interacção entre dimensões por vezes
conflituais: os factores individuais e colectivos; os meios sociais organizados segundo
lógicas próprias e as práticas administrativas de gestão do espaço urbano; as lógicas
relacionais pré-existentes e as normas regulamentares inovadoras. O autor consegue
assim descobrir uma cidade dinâmica e complexa, organizada social e culturalmente a
partir de zonas de negociação incertas. Entre os sítios, os bairros e as paróquias, a rua
vai surgindo aqui como principal elemento de identificação, mas sempre em tensão
com outros, desde o nível mais amplo do reconhecimento geral do espaço urbano,
através do uso da categoria administrativa, até ao nível mais restrito da memória
partilhada, transmitida através das redes de conhecimento interpessoal. Face à
progressão de uma percepção cada vez mais normalizada do espaço, a rua é, de certo
modo, um compromisso entre “diferentes níveis de apreensão e de leitura do espaço
urbano”. Pois a rua aparece aqui, antes de tudo, como “um lugar de negociação entre
vários interesses e hábitos”.
12 E igualmente a partir dos usos sociais e, muito concretamente, das práticas
profissionais de um corpo de agentes de uma esquadra da polícia de Lisboa que Susana
Durão analisa diferentes formas de percepção da cidade e seus territórios, percepção
esta que não decorre de uma apreensão passiva mas sim de um quotidiano activo de
“socialização da rua” e de produção de “ordens socioespaciais, de poder e morais para a
cidade”. Aqui, como no texto anterior, há uma preocupação em cruzar vários níveis de
apreensão e leitura da cidade, desta vez através do olhar sensível e atento da
etnografia. Certas definições policiais que discriminam, por exemplo, os bairros de
“gente de bem” dos “problemáticos” e que suscitam atitudes e visibilidades
contrastantes, remetem-nos para um nível de conhecimento concreto do território
cujas fronteiras e tipificações decorrem de uma prática que não coincide, por vezes,
com as definições oficiais. A identificação de algumas das possíveis “ruas dos polícias”
cujo significado depende das rotinas e dos serviços desempenhados (patrulha apeada,
carro-patrulha e apoio a idosos) mostra como os saberes profissionais e urbanos da
polícia se constroem, em última análise, na relação com os territórios e as populações,
desde a sua forma mais itinerante e territorializada – como na patrulha apeada – até
modos de relacionamento em rede, dirigidos pessoalmente a certas casas e pessoas –
como no apoio aos idosos. O que está em causa neste texto é, claramente, a análise dos
diferentes saberes desenvolvidos na actividade policial e de que modo este
conhecimento vai moldando aquilo que a autora designa como cartografias policiais.
13 E chegamos às ruas dos bairros, de bairros novos que vão surgindo na Lisboa do século
XX, tanto os que são planeados pelos poderes públicos como os que surgem fruto do
improviso e da iniciativa privada. A relação entre a rua enquanto “lugar físico
construído” e as múltiplas formas de apropriação de quem a usa e nela vive é um dos
eixos que organiza os três capítulos que se seguem. A diversidade dos casos
7
lados desta rua ela continua a ser central para um sem número de actividades, pois é o
espaço mais próximo dos dois bairros. A reinvenção permanente da utilização desta e
doutras ruas faz sobressair aqueles que dominam e controlam o seu espaço: jovens
africanos, ciganos e, com um maior protagonismo, hindus, com as suas lojas e templo e,
sobretudo, com os seus rituais-performance cíclicos que transformam a rua de todos os
dias numa “rua ritualizada”. “E na rua que melhor podemos observar os fenómenos da
diferenciação cultural”, afirma a autora, defendendo que estudar formas de viver na
rua é a melhor maneira de nos aproximarmos das pessoas e, assim, evitar a distância do
olhar.
17 A diferenciação sociocultural nas ruas de Lisboa e Barcelona é um dos pontos analisados
por Joan J. Pujadas, que arrisca a comparação entre dois bairros históricos – o Raval e a
Madragoa – cujas transformações urbanísticas e sociais testemunham fases diferentes
do processo de crescimento da cidade pós-industrial. Muito embora tais realidades
possam ser aproximadas pelo fenómeno da gentrificação que a ambos afectou, a
observação etnográfica revela diferenças abissais nas formas de integração dos seus
velhos habitantes, no tipo de vida de rua, no próprio espaço público em si. Com efeito,
enquanto a Madragoa dos finais dos anos 1980 se caracteriza ainda por um sistema de
relações vicinais relativamente denso, baseado em espaços de convívio e de interacção
fortemente controlados pelos seus habitantes – onde a rua é (ainda) um espaço semi-
privado –, o Raval surpreende pelo anonimato visível nas suas ruas, pela insegurança,
“pela sociabilidade tensa e conflituosa, que substitui formas anteriores de interacção
vicinal”, pela variedade de instituições ali existentes e pela heterogeneidade dos
actores que por ali circulam.
18 O último estudo apresentado neste livro permite explorar uma outra dimensão da rua
como espaço do político. Fátima Sá e Melo Ferreira leva-nos ao universo das festas
revolucionárias e contra-revolucionárias em Portugal, na primeira metade do século
XIX. Na realidade, parte da história política dos séculos XIX e XX pode ser lida através da
evolução dos modos de ocupação da rua, espaço de tensão onde se confrontam
memórias e simbologias concorrentes na luta pelo poder. Reencontramos aqui o tema
da “rua ritualizada” analisado por Rita Cachado, mas, neste caso, a historiadora
debruça-se sobre a génese de novas formas de mobilizações políticas. Neste estudo a
autora propõe-se comparar as festas e outros rituais públicos instituídos em Portugal, a
partir da revolução de 1820, com o repertório festivo que a contra-revolução elaborou
em resposta a estes novos modos de ocupação simbólica do espaço público. Convoca,
para o efeito, não apenas as dimensões de encenação do poder e da ordem social
presentes nas celebrações do Antigo Regime, mas também as dimensões arcaizantes e
carnavalescas que nelas subsistiam e eram passíveis de promover a mobilização política
das camadas populares.
19 Terminamos com as palavras de encerramento de Yves Lequin, em jeito de balanço
provisório. Este “historiador insatisfeito” insiste nos caminhos que ainda falta
percorrer. A fabricação das ruas tem ainda muitos mistérios por descortinar. Existe
todo um campo da história económica das formas urbanas para explorar. Sobretudo
fica a questão: “Será que a rua ainda é a rua?”. Apesar da relativa estabilidade do
objecto material em si ao longo da história das cidades – uma via de circulação e alguns
edifícios – esta recolha de textos permite dar conta da grande diversidade de usos e de
formas sociais, pelas quais nem sempre é fácil encontrar uma continuidade no tempo e
no espaço. Na cidade moderna, a partir do século XIX, a rua é espaço de circulação onde
9
a ordem tem de se impor. Existe, sem dúvida, uma ruptura nesta época. Todavia, será
que as sociabilidades de rua, os encontros e as formas de interacção que permanecem
até hoje, têm de ser considerados como simples arcaísmos, marcas e vestígios de formas
tradicionais da vida urbana? Em que medida, ainda hoje, vamos reinventando formas de
ocupação do lugar da rua?
AUTORES
GRAÇA ÍNDIAS CORDEIRO
Antropóloga, Departamento de Antropologia e Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do
ISCTE.
FRÉDÉRIC VIDAL
Historiador, Centro em Rede de Investigação em Antropólogia (CRIA / ISCTE-IUL), professor da
Universidade Autónoma de Lisboa.
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Capítulo 1. O “Acampamento”, a
cidade e o começo da política1
Michel Agier
1 Vou começar com algumas considerações que podemos tomar mais como uma
perspectiva de reflexão na medida em que eu não vou falar exactamente das cidades,
nem do que se costuma chamar de cidade histórica, no sentido de cidades concebidas ao
longo da história. A minha consideração preliminar é que o tempo de hoje já não é o
tempo dessa cidade histórica, em crise, em grande transformação. O modelo da cidade
histórica corresponde a uma certa representação da organização social e económica.
Sabemos – já muito foi escrito por historiadores, especialistas das cidades – que as
cidades foram fundadas para aproximar os indivíduos, para pô-los juntos a viver e
trabalhar, interagir a menos custos, ou seja, uma aglomeração de pessoas que
organizam num espaço um sistema social complexo, a que Durkheim chamou
“solidariedade orgânica”. Este sistema dispõe num espaço delimitado uma rede de
dependências entre categorias, classes ou indivíduos que estão envolvidos na
modernidade, modernidade social, modernidade económica. Isto foi, de certa forma, a
grande figura do século XIX. A cidade era um símbolo e ao mesmo tempo uma das
principais formas materiais da modernidade, da organização social moderna, sendo a
fábrica outra forma correspondente a essa cidade, o que correspondia também a uma
certa determinação da maior transformação civilizacional. Muitos pesquisadores do
início do século XX, entre eles os da Escola de Chicago, por exemplo, consideraram que
as cidades se tornavam um facto de civilização. Pensava-se na “sociedade urbana”:
primeiro, foi assim definida por oposição com a sociedade tradicional, como Park, por
exemplo, colocou nos anos 20, sendo a cidade “o lugar de emergência do indivíduo
como unidade de pensamento e de acção”; segundo, mais recentemente e de maneira,
digamos, mais antecipadora, Henri Lefebvre, nos anos 70, extrapolando as cidades
existentes, colocava a ideia da sociedade urbana não no sentido de uma cultura urbana
própria da cidade, mas no sentido da generalização planetária dos espaços e dos modos
de vida urbanos. Era um todo urbano.
2 As cidades históricas, as cidades antigas formadas antes mesmo de se pensar nesta
generalização (e aqui vocês têm material para pensar nisso), estas cidades históricas
11
8 Esses lugares, a príori, estão duplamente fora da cidade, ou nascem como uma negação
da cidade. Primeiro, porque fisicamente eles se situam fora dos espaços ou das
estruturas formais oficiais daquilo a que chamamos cidade, cidade oficial, cidade
delimitada, cartografada, transformada pelas políticas públicas. São os espaços mais
abandonados, às vezes espaços edificados longe de quaisquer estabelecimentos
humanos. Há campos de refugiados que estão exactamente no meio do deserto, ou ao
lado de uma pequena aldeia de 500 ou 1000 habitantes, e assim aparecem campos de
refugiados de 150 000 habitantes no meio de um deserto, no meio de uma floresta, etc. E
a outra negação, na qual esses lugares se definem, é a negação provocada pelas próprias
políticas de exclusão, de abandono, de distanciamento. Esses espaços, de certa forma,
emergem no vazio, no indefinido, como no terreno vago das políticas públicas.
9 Colocam-se nesses espaços pessoas das quais não se sabe o que fazer. Há uma
proximidade entre esses espaços humanitários e as margens actuais do urbano, as
periferias e favelas, invasões, os bairros chamados de espontâneos (déguérpi como
temos na África). São espaços mantidos à distância e o destino desses espaços ele
próprio é mais, e mais frequentemente, sujeito a um tratamento, não social ou político,
mas a um tratamento profilático, ou policial, comunitário ou humanitário.
10 Os pesquisadores que entram nesse tipo de espaços não podem, acho eu, satisfazer-se
com uma questão que hoje em dia é muito divulgada nas ciências sociais da cidade e
cuja origem é mais técnica e gestionária do que propriamente antropológica. A
pergunta a fazer é se, e como, a cidade faz ou não faz sociedade. Ouve-se muito “a
cidade já não faz sociedade”; essa problemática parece-me ligada a uma representação
do poder estruturante da cidade histórica cujo poder é muito colocado em questão
pelos fenómenos da regionalização, da mundialização, no plano económico, no plano
político, no plano do mercado de emprego, no plano da polícia, no plano dos conflitos,
dos deslocamentos de população. Frequentemente os mesmos dizem que já não há
cidade hoje em dia, que é o fim da cidade, e ao mesmo tempo dizem que “a cidade não
faz mais sociedade”. Então prefiro inverter a pergunta e interrogar como é que os
grupos, as sociedades, ou mais precisamente, as situações, as acções “fazem” a cidade. E
por isso eu preciso de me destacar de uma representação dominante da cidade que diz
que a cidade é o que é institucional, funcional, formal, material, constituída como a
imagem que nós temos da cidade. Eu tenho pesquisado durante 20 anos em lugares que
parece que não são cidades, são lugares de barracas, lugares de acampamentos, lugares
onde há um mínimo de materialidade; às vezes não têm materialidade, e são as próprias
pessoas que fazem essa materialidade, e ao mesmo tempo elas fazem as relações que
vão com a materialidade. E então a gente encontra-se em situações onde, de forma
muito concreta, material, e de forma muito social, as pessoas fazem a cidade. São
citadinos sem a cidade, e as cidades vêm depois. Têm o espaço, a aglomeração, um certo
vazio: é onde essas pessoas fazem a cidade.
11 É esta a minha problemática, a questão que eu coloco, sem negar obviamente o peso
desses constrangimentos institucionais, políticos, materiais, que fazem, num certo
momento, uma cidade constituída. Mas podemos de cada vez refazer a génese dessas
fabricações de cidade e, de certa forma, trabalhar nos espaços liminares, precários ou
vazios, que permitem fazer e repensar essa génese.
12 Abordo dessa maneira a investigação sobre campos de refugiados. A abordagem que eu
tenho é explicitamente a de uma etnologia urbana dos campos de refugiados. Não há,
repito, nenhum carácter normativo evolucionista nessa questão.
14
13 Fazendo essa pergunta eu não olho os campos em função de um objectivo que eles
teriam que alcançar, e que seria a forma da cidade conhecida como organização do
espaço, como formas arquitectónicas, como instituições urbanas. Eu procuro ver e
entender as criações sociais, as mudanças culturais, eventualmente as novas formas
políticas que aparecem nesses contextos a partir do momento em que, como diz Louis
Wirth (um dos primeiros pesquisadores da Escola de Chicago), existe “uma implantação
relativamente permanente e densa de indivíduos heterogéneos”. E isso é o que eu vejo
num campo de refugiados. Qualquer que seja ele, é a definição que Louis Wirth dá do
que é uma cidade!
14 Os próprios espaços dos campos de refugiados podem ser muito diversos. E muito raro
que no conjunto dos campos de refugiados que existem hoje em dia no mundo hajam
tendas. A figura, o modelo, que conhecemos das tendas como sendo um campo de
refugiados é algo que muda rapidamente: pessoas e organizações humanitárias
constroem rapidamente barracas, casas de madeira, casas de terra, no lugar das tendas.
O factor tempo é muito importante. A transformação dos espaços é importante. Um
campo que tem 5 anos de existência, por exemplo, pode parecer um enorme bairro de
lata. Às vezes não se vê na materialidade uma grande diferença entre uma favela e um
campo de refugiados, às vezes pode-se pensar, como no caso do Quénia, numa espécie
de museu etnográfico onde cada um tenta reproduzir o que sabe fazer de casa. Cada um
faz o tipo de casa que sabe fazer, redondo, quadrado, com tecto assim com tecto assado,
e no final temos um tipo de espaço multicultural na forma das construções, ainda mais
porque são construídas com materiais recuperados do material humanitário, têm
cobertas com as cores do ACNUR, branco e azul, que são usadas para fazer cortinas, ou
portas, o material das latas que é usado para fazer janelas ou mesas, etc. Temos então
um espaço colorido, muito diverso, híbrido, que é a própria materialidade do campo.
15 Mas a questão que eu coloco neste caso, nesses espaços, é que se trata de um espaço que
é literalmente desconhecido. Ele é desconhecido do próprio pesquisador mas ele é
também desconhecido das pessoas que chegam aqui, pois quando se chega não se sabe
com antecedência o que é que vai ser o mundo no qual se vai viver, não se tem
referência deste mundo. Depois de um certo tempo entre indivíduos que têm uma
heterogeneidade étnica, um desenraizamento social, uma pobreza económica muito
forte, e sendo todos eles colocados à distância do resto do mundo, das cidades, ou dos
Estados-nação, a pergunta é: como se vai fazer cidade entre essas pessoas, no sentido
relacional, a urbs, o espaço de trocas como experiência do outro, como experiência da
alteridade, no sentido político, o da polis, no sentido do mundo onde se cria uma
comunidade de palavra, onde as pessoas acabam por se identificar umas com as outras?
16 Uma maneira de observar isso é olhar pela entrada da organização do espaço. A
organização do espaço é uma maneira de ver como se transformam e se organizam
socialmente as pessoas nesses campos de refugiados. Por exemplo, no Nordeste do
Quénia há um conjunto de três campos com 150 000 habitantes, “moradores”, de certa
forma, dos campos. O espaço é a priori definido da seguinte maneira: o ACNUR constrói
cercas com arame farpado, com material de madeira, enfim, vários tipos de cerca no
perímetro dos campos, mas também no seu interior, criando assim a separação de 10 a
15 sectores. No interior de cada campo existe um traçado ortogonal das ruas, das vias,
dos blocos e, em cada “sector”, ou “bloco”, as pessoas chegam a ser agrupadas por lugar
de origem, por etnia, por clã, etc.
15
17 Esses agrupamentos existem nos sectores onde as pessoas fazem os seus abrigos e, às
vezes, há alguns grupos, como por exemplo o sector sul-sudanês, que reorganizam
completamente o seu espaço, que fecham com uma cerca o conjunto do espaço e vão
construindo, o que parece ser uma cidade em miniatura ou um povoado próprio,
protegido, fechado dos vizinhos. Frequentemente, nesses casos, há conflitos, disputas
com os vizinhos que são de um grupo diferente, mas também há circulação das crianças
que vão de um grupo para o outro. Então isso quer dizer que há uma certa
transformação linguística, cultural, na vida social, que acontece nesses lugares mesmo
que a priori as pessoas cheguem e tentem fechar-se para se proteger umas das outras.
Existem esses intercâmbios e existem também outros lugares no próprio espaço do
campo que são lugares abertos onde as pessoas têm encontros, no bar, num pequeno
mercado, em pequenas feiras na entrada dos campos, etc.
18 A questão que eu coloco a partir daí é que se nós temos, após um ou dois anos, uma
certa materialidade que já não é essa das tendas, mas uma que reorganiza o espaço
onde os moradores reorganizam um espaço, e se temos também uma certa
sociabilidade, certas formas sociais que começam a desenvolver-se, então a questão que
se coloca rapidamente é a questão política, de uma certa “desordem” criada pela acção
dos refugiados, distinta da ordem inicialmente prevista do campo.
19 Podemos destacar duas maneiras de falar dos acampamentos. Uma é genérica, é a do
campo como forma genérica, como expressão de um “bio-poder”, para dizê-lo à la
Foucault, em que o campo organiza o controlo sobre a vida de quem lá está. Assegura a
vida mas também controla as pessoas, é uma certa negação da existência social dos
indivíduos, das identidades de cada um. Todo o mundo é vítima ou todo o mundo é
acusado, ou todo o mundo é designado como sendo, devendo ser, controlado ou
devendo ser ajudado. Fora disso não têm existência. Ora, é possível falar de uma outra
maneira dos campos. Aos poucos vai-se vendo o que acontece com o meio social de vida,
alguns líderes aparecem nos campos de refugiados, algumas pessoas vão falar com os
responsáveis das organizações humanitárias em nome dos refugiados para dizer que
não estão satisfeitos com tal, tal e tal, e uma certa forma de contestação aparece. Essas
formas de contestação que aparecem são da maior importância a meu ver, porque elas
fazem sair as pessoas dessa identidade de vítimas sem palavra – na ordem dos campos,
elas não precisam de falar porque são vítimas e têm direito, num certo momento, a uma
ajuda alimentar, mas num outro momento, quando as organizações decidem que elas
não são mais vítimas porque a guerra acabou lá no outro lado ou porque o tempo
passou e a situação melhorou, então decidem da noite para o dia que aquelas pessoas já
não são vítimas e não têm mais ajuda. Quer dizer que ser vítima é ter alguns direitos,
chamados de “direitos humanos”, mas que se perde da noite para o dia o direito aos
direitos humanos, a partir do momento em que se sai da categoria humanitária que o
define como “vulnerável”, como “vítima” ou o que quer que seja. Ora, quando os
refugiados começam a fazer política eles usam esse discurso das Nações Unidas – das
“U. N.”, como eles lhes chamam. O discurso das Nações Unidas é reutilizado pelos
refugiados para criar reivindicações, com acções que são a meu ver acções políticas. Por
exemplo, como as que aconteceram na Guiné, em Julho-Agosto de 2003, manifestações
de rua no meio do campo, organizadas por mulheres que reclamavam telas plásticas
para os tectos das barracas porque chovia e os outros já tinham recebido e elas não; elas
usavam a retórica humanitária da vulnerabilidade dizendo que eram viúvas da guerra:
“temos filhos, então entramos na categoria de vulnerabilidade do ACNUR, está aí no
16
papel, e temos direito às nossas telas plásticas”. Foram recusadas, ocuparam a rua
principal (porque o campo também tinha uma rua central). Fizeram parar os veículos
das organizações humanitárias, sequestraram os humanitários – que não entenderam
porque os refugiados faziam isto, porque eles estavam ali para os ajudar. Os refugiados
foram falar com responsáveis do campo do ACNUR; e finalmente conseguiram um
encontro com o responsável local da administração guineense, e em dois dias
receberam as telas plásticas para as casas.
20 O interessante é que há um desentendimento, um conflito de significados, entre os
refugiados e as pessoas das organizações humanitárias, porque, usando a mesma
linguagem, os refugiados fazem dessa linguagem um discurso a partir do qual eles
podem agir em termos políticos. Noutro campo há líderes que se formam entre os
refugiados, representantes de tendas colectivas, para negociar, para organizar as coisas
com os representantes da administração do ACNUR e das ONGs no campo. Os refugiados
designam pessoas para falar. Em pouco tempo essas pessoas tornam-se líderes de
sector, chamados “líderes de comunidade”, e acontece que esses que emergem como
líderes já não são os mais precários, geralmente são pessoas que já têm na sua
trajectória de pré-refugiados, antes de chegar ao campo, um certo status social: são
comerciantes, são pastores de igrejas pentecostais, são professores de l.° grau, são
pessoas que têm um certo status, – e então os refugiados consideram que são pessoas
que podem representá-los e negociar com a administração dos campos. As pessoas das
organizações humanitárias reagem negativamente, porque esses não são os
“verdadeiros” refugiados, porque eles não parecem “sofrer”, porque eles não estão tão
mal como os outros que vimos aqui neste campo, e não querem falar com eles. Eles não
são reconhecidos como possíveis interlocutores enquanto, de facto, o que ocorre é
mesmo o processo da representação política, diferente do modelo da
representatividade categorial. Ou seja, para o discurso humanitário o modelo do
interlocutor é o modelo da vítima: é a mulher sofrendo com o bebé inocente nos braços,
essa é que é a figura para as organizações humanitárias, alguém sofrendo. Se o
interlocutor não está magro, não é pobre, fala bem e negoceia com agressividade, com
listas de reivindicações, então as organizações humanitárias e o ACNUR não gostam de
tratar com esse tipo de pessoas, porque consideram que são políticos, e de facto é uma
acção política que se introduz no campo.
21 A conclusão que eu quero tirar disto, em algumas palavras, é que a observação
etnográfica dos campos de refugiados pode permitir dizer que nesses espaços mundos
sociais constituem-se aos poucos, e que não são a reprodução de mundos anteriores,
étnicos, por exemplo – a etnicização da problemática dos refugiados é uma forma de
culturalismo, como quando se considera, por exemplo, que um Patchun será sempre um
Patchun e que quando ele é um refugiado ele continua sendo o mesmo e nada muda.
Sim, as coisas mudam porque o campo é um espaço em si, que gera a sua própria
dinâmica. Então parece-me que a etnicização da problemática dos refugiados nos
espaços da mobilidade onde eles vivem é algo errado no plano teórico, é uma forma de
“culturalismo”, antes de ser um a priorí político, e que pode desembocar, inclusive, num
a priorí racista sobre os migrantes e os refugiados, como vemos hoje em dia na Europa.
22 De facto, esses espaços formam novos contextos sociais. Dois componentes são
essenciais para entendê-los. Um é a questão da fundação de novos espaços, e remete
para a ideia de “raizamento” (o racinement, segundo Mareei Détienne), não de
enraizamento. Significa que as raízes não vêm do chão, as raízes são produzidas através
17
de rituais de fundação, rituais de inscrição material num certo local. Isso permite
entender que, às vezes, as pessoas podem acabar por gostar do campo de refugiados
onde vivem, como no famoso caso dos Palestinianos, como noutros lugares em África
onde isso acontece, onde há pessoas que já não se querem ir embora dos campos onde
vivem há 5, 10 ou 20 anos. O segundo componente da criação desses novos contextos é o
do começo da política: acções nascem nesses campos de refugiados, com tomadas de
palavra utilizando a retórica humanitária como linguagem política. Então estamos
também face a formas políticas completamente inéditas e diferentes, às quais temos
que dar toda a atenção.
NOTAS
1. Conferência proferida a 18 de Novembro de 2005, na abertura do encontro pluridisciplinar “O
Lugar da Rua”, organizado no ISCTE pelo CIES e CEHCR
AUTOR
MICHEL AGIER
Antropólogo, Centre d’études africaines – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Institut
Recherche pour le Développement.
18
se desenvolve uma cultura específica que faz da cidade ou, mais exactamente, desta
porção de cidade, a sua sede e o seu objecto.
Figura 1 – W. Turner, Boulevard Montmartre en 1838. Reprodução de uma gravura sobre aço
conservada no Musée Carnavalet.
5 É a cultura do boulevard, com a vida dos seus cafés, teatros, bailes e guinguettes, cocottes e
dandies. Mas é também a cultura da juventude romântica, dividida entre utopias sociais
e pragmatismo económico, com os seus ímpetos literários e as suas paixões políticas. E
é a cultura da indústria e da mercadoria, com o nascimento do comércio e do consumo
de massa, da publicidade e da imprensa popular. Em resumo, trata-se de uma nova
modernidade que muitos contemporâneos perceberam e fixaram como tal,
transmitindo-nos um impressionante corpus de textos, imagens, músicas e objectos.
6 Estes aspectos são já bem conhecidos. Integrados por Baudelaire, desde o Segundo
Império, numa estética que faz da cidade, dos seus espaços públicos e das suas
multidões, marca de identidade do novo actor urbano, eles voltam em seguida na
leitura de cada nova geração literária impondo-se como centrais a partir da complexa
leitura operada por Walter Benjamin no seu trabalho sobre as passages parisienses
(Benjamin, 1991; Stierle, 1993; Bowie, 2001).
7 O que é menos conhecido é que a formação das práticas e das imagens da nova
modernidade acompanha a perda de legibilidade da parte mais antiga e popular da
cidade. Se o fim do século XVIII, no seu texto fundador, Sébastien Mercier falava da
cidade como de uma totalidade única e coerente, os numerosos Tableaux de Paris
publicados a partir do Primeiro Império focalizam quase unicamente o espaço e as
figuras sociais dos grandes boulevards e dos novos bairros da cidade (Mercier, 1782;
Etienne, 1813; Pain e Beauregard, 1828; Texier, 1852).
20
Figura 2 – Rue au Lard, 1866. Gravura, Musée Figura 2-Rue au Lard, 1866.
guês quando domina, sozinho, o espaço urbano. Neste caso, ele constitui-se como
desconhecido, o outro, o diferente de si, o índio, nomeadamente...
10 A construção da brilhante modernidade da cidade parece, pois, ir a par com o
nascimento de uma imagem dc alteridade que se instala progressivamente nos
discursos e nas representações da sociedade parisiense. Uma espécie de espinho
encravado na sua carne o que impede a redução das tensões, afastando-as para o seu
interior.
bairros revelam-se como espaços vivos, marcados pela presença de uma população
activa, ligada ao conjunto do tecido económico da cidade.
Quadro 1 – Actividades registadas no anuário do comércio para a Rua Greneta em 1851 (Didot,
1851)9.
29 Dados eloquentes, só por si, que mostram até que ponto o tecido social do centro da
cidade se caracterizava por um entrelaçamento de actividades e de papéis profissionais
ao mesmo tempo complexo e coerente. Em cerca de 200 metros da rua antiga 10, estavam
registados sete albergarias, dez tabletiers 11 e uma dezena de artesãos ourives e
27
31 A imagem foi tirada a partir do Pátio da Trinité, o grande espaço que se abria no meio
da rua e que a punha também em contacto, através de um dédalo de pátios e vias, com
as ruas Saint-Denis e Saint-Martin. Ela permite observar claramente as diferentes
dimensões que se tecem e se sobrepõem no interior destes espaços. Na Rua Greneta, ao
fundo da imagem, dois dos edifícios revelam sinais da sua utilização parcial como lugar
de produção (neste caso, uma fábrica de pérolas e uma outra de botões e molduras). Em
primeiro plano vemos, pelo contrário, um alugador de carroças e também armazéns e
uma tabuleta indicando a actividade de um serralheiro ou de um ferrador. Os prédios,
por seu lado, deixam transparecer claramente os numerosos reordenamentos
suportados pelos edifícios originais ao longo do tempo. À esquerda, pequenos armazéns
e fábricas surgidos depois da Revolução apoiam-se a uma casa com vigas à vista, muito
provavelmente do século XV. Ao fundo, outra casa mostra pelo menos três camadas de
construção diferentes. Tal como nas outras, é possível ver, nesta imagem, vestígios de
28
33 Esta trama muda drasticamente a partir da Revolução quando, com a venda dos bens
eclesiásticos, os campos e os edifícios são, progressivamente, atingidos pela especulação
imobiliária. Assim, na planta de 1808 (B), podemos ver que a cintura de muralhas foi
derrubada, enquanto que os jardins e os diferentes edifícios foram integrados no
edificado laico da cidade. Mas é sobretudo ao longo dos anos seguintes que os vestígios
de antigos espaços verdes desaparecem totalmente e que a rede de construções se
densifica atingindo a complexa geometria observável na planta de 1848 (C).
29
34 É pois no decurso destes anos que se forma o Pátio da Trinité. Espaço caótico aos olhos
dos observadores, mas altamente funcional no interior de uma parte da cidade que
progressivamente se foi dedicando à produção artesanal em larga escala. Com efeito, ao
longo do mesmo período e sob o impacto dos mesmos fenómenos, o conjunto do centro
da cidade densifica-se, as suas construções transformando-se num labirinto de ruas,
ruelas, becos e pátios, dos quais apenas vemos uma pequena parte, mas que
caracterizam, durante várias décadas, a totalidade do espaço compreendido entre a ilha
da Cité e os grands boulevards, o Palais Royal e a Praça da Bastilha.
dos boulevards, houvesse uma outra incapaz de acompanhar esta evolução, retraída
sobre si própria e albergando progressivamente as margens da população parisiense.
Na realidade, uma observação mais fina destes espaços mostra claramente que o centro
se desenvolve de uma forma igualmente vigorosa. Contudo, o seu desenvolvimento
concretiza-se sob formas e em direcções totalmente diferentes, não apenas como novos
bairros burgueses, mas também em bairros operários que surgirão ao longo do Segundo
Império e da Terceira República.
36 Aos olhos de Musset e de outros observadores da época a modernidade apenas se podia
concretizar nos objectos e nas práticas que se impunham através da cultura dos
boulevards. Era-lhes, pois, mais difícil reconhecer, na complexa articulação dos bairros
centrais, as coerências de um espaço que se conseguiu estruturar de uma forma
extremamente funcional em torno da produção de bens, e particularmente de bens de
luxo. Ora, desde que se analisam as actividades existentes em cada rua, apercebemo-nos
que cada uma delas aloja grupos de artesãos extremamente especializados na produção
de uma parte de um trabalho conjunto que se completa com outras partes preparadas
por outros artesãos e operários que habitam vizinhanças próximas.
37 Na figura que se segue, assinalei as profissões declaradas por todos os habitantes da Rua
Greneta ou de uma rua vizinha que assinaram um acto notarial ao longo do ano 1851 13.
Ela constitui, pois, um indicador relativamente fiável das actividades desempenhadas
pelos membros mais activos do bairro.
38 A figura ilustra bem a importância da especialização das actividades desempenhadas
nesta parte restrita do espaço urbano. Como já tínhamos visto para os dados do anuário
do comércio, na Rua Greneta dominam os fabricantes de guarda-chuvas, brinquedos, de
cordas para instrumentos, etc. E em redor deles, nas ruas vizinhas, uma multidão de
estampadores, de costureiras, de quinquilheiros e de cortadores de peles, produzem as
partes dos diferentes trabalhos conjuntos.
39 Sob esta óptica o espaço físico do bairro, com os seus becos, os seus pátios e as suas
tortuosidades labirínticas, surge-nos, sobretudo, como o produto de uma construção
colectiva, não programada, apesar de perfeitamente racional, que soube reconverter e
adaptar, com mil intervenções, antigas construções às exigências específicas de uma
produção de massa de bens de luxo.
40 E, paradoxalmente, grande parte desta produção destinava-se a fornecer as vitrinas e as
montras das lojas que se abrem, cada vez mais numerosas, nos boulevards, na Chaussée
d’Antin ou nas galerias da cidade cintilante do mito parisiense.
31
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
Balzac, Honoré de, 1837, César Birotteau, Paris.
Bayard, Henri, 1842, Mémoire sur la topographie médicale du IV arrondissement de Paris; recherches
historiques et statistiques sur les conditions hygiéniques des quartiers qui composent cet arrondissement,
Paris, la Baillière.
Benjamin, Walter, 1989, Paris capitale du XIXéme siècle. Le livre des passages, Paris, éditions du Cerf.
Benjamin, Walter, 1991, “Paris capitale du XIXéme siècle. Exposé 1939”, in Ecrits français, Paris,
Gallimard.
Bowie, Karen (ed.), 2001, La modernité avant Haussmann-Formes de 1’espace urbain à Paris, 1801-1853,
Paris, Éditions Recherches.
Chabrol-Chaméane, Ernest de, 1840, Mémoire sur le déplacement de la population dans Paris et sur les
moyens d’y remédier, présenté par les trois arrondissements de la rive gauche de la Seine (10°, 11°, 12°) à la
commission établie par le ministère de 1’intérieur, Paris, Bouchard-Huzard.
Clavier, Laurent, 2006, “Quartier et expériences politiques dans les faubourgs du nord-est
parisien en 1848”, Revue d’Histoire du XIX siècle, no 33, p. 2.
Collectif 1829, Mémoire adressé par une réunion des propriétaires, architectes et constructeurs de la ville
de Paris à Messieurs les Membres de la Commission d’enquête, Paris, Renard éditeur.
Klahr, Douglas, 2001, “Le développement des rues parisiennes pendant la monarchie de Juillet”,
in Karen Bowie (ed.), La modernité avant Haussmann – Formes de l’espace urbain à Paris, 1801-1853,
Paris, Editions Recherches.
Pain, Joseph e Beauregard, 1828, Nouveaux Tableaux de Paris, ou les observations sur les moeurs et
usages des Parisiens au commencement du XIXème siècle, Pillet, Paris.
Poëte, Marcel, 1925, Une vie de cité – Paris de sa naissance à nos jours, Paris, Auguste Picard.
Rambuteau, Claude-Philibert Barthelot, comte de, 1907, Mémoires du Comte de Rambuteau, Paris,
Frères Protat.
Ross, Kristin, 1988, The emergence of social space: Rimbaud and the Paris Commune, University of
Minnesota Press, Minneapolis.
Stierle, Karlheinz, 1993, La Capitale des signes. Paris et son discours, Paris, Ed. de la Maison des
Sciences de l’Homme.
NOTAS
1. Tradução do francês de Graça índias Cordeiro.
2. “Deve-se dizer, também, que após a grande tensão do reinado grandioso e absoluto do
imperador, o tipo de desordem anárquica que se seguiu logo à restauração tinha qualquer coisa
de novo que se assemelhava à liberdade (...) sonhava-se com uma espécie de estado político e
moral, até então desconhecido em França, o estado constitucional de que ninguém tinha uma
ideia certa e que nós só conhecíamos por palavras” (Sand, 1856: 454-455).
3. Até 1860, ano da ampliação de Paris e da reestruturação das suas câmaras municipais, o antigo
4.° arrondissement ocupava o espaço compreendido entre as actuais ruas Des Petis-Champs,
Etienne Mareei e Saint-Denis e o rio.
4. É, nomeadamente, o caso dos edifícios construídos na Rua de Rivoli entre o Louvre e a Praça da
Concórdia, durante o Primeiro Império, que durante muito tempo encontraram poucos
compradores.
5. Nomeadamente o tijolo e não a pedra (Collectif, 1829: 4).
6. Ao longo da sua actividade Rambuteau desenvolve, nomeadamente, um plano de alargamento
das ruas que visa evitar grandes alterações nos tecidos dos bairros, tendo cuidado em não tocar
no microsistema de ruelas e passagens internas dos quarteirões. Com medo de acordar a cólera
popular mas também com um cuidado, quase organicista, relativamente à estrutura da cidade. Se
ele provoca também alargamentos das ruas no coração do centro histórico a sua técnica não é a
da picareta haussmaniana mas sim a do alinhamento e do alargamento da rua. É o que ele faz, por
exemplo, na rua que tem o seu nome (Rambuteau, 1907; Klahr, 2001).
7. Num trabalho em curso sobre estes bairros durante a primeira metade século xix, com Jérôme
David, Anne Vitu e Caroline Varlet, estamos a recolher, em diversos arquivos parisienses, uma
35
série de dados exaustivos sobre a história das construções locais, reconstituindo, nomeadamente,
não apenas os planos cadastrais e as imagens iconográficas de cada casa, como também os
diferentes proprietários, construtores e habitantes. A informação recolhida estrutura-se numa
base de dados organizada num Sistema de Informação Geográfica desenvolvida pelo Laboratoire
de Démographie Historique de 1’EHESS.
8. H. de Balzac, César Birotteau, Livraria Editora Guimarães, Lisboa, s. d., tradução do dr. Alberto
Pimentel (Filho). (N. do T.)
9. Os números da segunda coluna correspondem ao número de registos para cada profissão.
10. A extensão da rua duplicará em 1868 pela integração das antigas ruas do Renard Saint-
Sauveur e Beaurepaire.
11. Fabricantes e restauradores de pequenos objectos em material raro. (N. do T.)
12. Fabricantes de objectos em madrepérola. (N. do T.)
13. A profissão declarada por cada pessoa liga-se, por um traço, ao nome da rua habitada e a
espessura do traço é função do número de habitantes que declararam a mesma profissão: é, por
exemplo, o caso da profissão de proprietário e, também, de vendedor de peles para a Rua
Greneta, vendedor de vinho na Rua Aumaire, etc.
AUTOR
MAURIZIO GRIBAUDI
Historiador, Laboratoire de Démographie Historique – École des Hautes Études en Sciences
Sociales.
36
1 Dizer que nas mais diversas culturas as ruas das cidades são os locais de eleição para a
sociabilidade pública e interacção urbana pode parecer uma afirmação demasiado
óbvia2. Contudo, nas suas análises do urbanismo contemporâneo, diferentes tradições
antropológicas nacionais atribuem ao palco da rua e às interacções públicas locais que
nela têm lugar significados conceptuais e importância analítica bastante diversificados.
Na minha condição de antropólogo norte-americano, formado sobretudo nas tradições
americana e britânica da antropologia “anglo-saxónica”, não foi fácil focalizar a
atenção na rua, dado que ao longo da minha aprendizagem sempre me ensinaram a
evitar tal sítio. Apesar dos meus vários anos de pesquisa antropológica urbana em Nova
Iorque e Boston, nos Estados Unidos, só depois de 1995, quando vim pela primeira vez a
Lisboa e aqui iniciei trabalho de campo, me familiarizei com os estudos antropológicos
sobre cidades portuguesas e do Sul da Europa. O olhar sobre a rua e a sociabilidade
pública urbana é bastante diferente na Europa, tanto ao nível da investigação
académica como no âmbito mais vasto da construção intelectual e cultural da cidade.
2 Neste artigo gostaria de partir do tema da rua no seu sentido literal e debruçarme sobre
algumas questões conceptuais, abordando a rua como um lugar dentro da cidade, um
lugar que podemos tomar como uma espécie de diagnóstico sobre aspectos
fundamentais da qualidade da vida urbana e do carácter de uma cidade. Interessa-me,
especialmente, contrastar a perspectiva norte-americana sobre as cidades e os seus
tipos de sociabilidade pública com a perspectiva portuguesa e, de um modo geral, do
Sul da Europa ou do Mediterrâneo. Procuro ainda explicar algumas das dimensões
sociohistóricas da rejeição norte-americana da vida de rua como um tema sério de
investigação – e, em contrapartida, exploro algumas razões que levam a que esse
mesmo tópico seja absolutamente crucial para a compreensão da Europa urbana do Sul.
Como exemplo do poder da rua como uma janela de observação sobre a cultura urbana
dou especial destaque às próprias ruas de Lisboa, em particular àquelas que acabei por
37
12 Tanto as pesquisas empíricas como a teoria apontam, obviamente, para tradições bem
diferentes na Europa do Sul, ou no Mediterrâneo. Não é preciso assumir uma concepção
desacreditada e essencialista da unidade de uma “cultura”, “identidade” ou “carácter”
40
mediterrânicos (ver Herzfeld, 1984 e 1985, sobre discussão das limitações de tal visão),
para reconhecer que os padrões de vida urbana têm sido historicamente diferentes
nesta região e no Norte da Europa e Anglo-América. Em primeiro lugar, todos os
observadores notam que o urbanismo – e a ideia da superioridade do ideal urbano, e da
supremacia cultural das cidades – há milénios que tem sido central para as sociedades
mediterrânicas (e. g., Braudel, 1966 [1949]; Leontidou, 1990; Cowan, 2000; Driessen,
2001; Amelang, 2000).
13 Outras observações, muito difundidas, têm sido feitas sobre uma prática comum de
controlo “popular” das ruas e de outros espaços urbanos (Amelang, 2000: 26-27); uma
vida de rua rica e intensa na qual os participantes investem parte das suas vidas
privadas (Leontidou, 1990: 3); e ainda sobre a grande heterogeneidade das populações
das cidades, também em estatuto social, com uma elite residente que partilha espaços
públicos e ruas com as classes populares (Leantidou, 1990).
14 Finalmente, uma vez que não se coloca a ideia essencialista de cultura mediterrânica,
daí decorre que a questão sobre se Portugal, logo Lisboa, deva ser definido como total
ou parcialmente mediterrânico também não é relevante. Muitos comentadores desde
longa data têm acentuado que Portugal (e Lisboa como sua principal cidade, onde vive
um quarto dos habitantes do país) combina as influências culturais mediterrânicas e
atlânticas, e que a importância histórica da nação residiu precisamente na sua
localização enquanto cruzamento geopolítico estratégico destas duas regiões (ver
também Sieber, 2004: 52). A definição ecológica de Braudel sobre o Mediterrâneo, que
situa as suas fronteiras a norte na faixa limite do plantio da oliveira, coloca o
rectângulo português, claro, dentro da região, embora não confinando com o Mar
Mediterrâneo (Braudel, 1966 [1949]: 4).
15 Como se manifestam então estas diferentes perspectivas “mediterrânicas” da cidade ao
nível da etnografia? Uma sugestão é-nos dada por Donald S. Pitkin que explica em The
Cultural Meaning ofUrban Space (1993), referindo-se não apenas à Itália como também a
padrões mediterrânicos mais amplos, que encontrou nas cidades uma “intersecção do
espaço público e privado [onde] as pessoas agiam como se as ruas fossem as suas casas”
(Pitkin, 1993: 95), um aspecto que contrasta com o mais característico uso do espaço
individualista e privado sob o protestantismo na Europa do Norte (1993: 99) e como
“essas cidades norte Europeias [evidenciam ausência] de vida nas ruas” (1993: 100).
16 A geógrafa Lila Leontidou sustenta, no seu ensaio do mesmo ano, “Postmodernism and
the City: Mediterranean Versions”, que “As cidades sul-europeias não se encaixam...
nos modelos evolucionários anglo-americanos” (Leontidou 1993: 949). Acentua a
heterogeneidade social no espaço público e nos bairros residenciais, uma certa
informalidade, espontaneidade, sempre acompanhadas da evidente sociabilidade, como
quintessência mediterrânica. Como ela própria refere, “De facto, as populações urbanas
mediterrânicas tendem a frequentar espaços urbanos comuns, tabernas, bares e cafés
com muito mais frequência do que as do norte. Uma apressada fruição dos tempos
livres é bem mais usual nos padrões de vida americanos...” (Leontidou, 1993: 958).
17 Aqui se encontra a minha resposta, e pensei nisso especialmente quando li na rica
etnografia de Graça Cordeiro sobre o Bairro da Bica, em Lisboa, uma descrição sobre a
forma como os seus habitantes esbatiam as divisões entre o espaço público e o espaço
privado nas Escadinhas da Bica. Local onde, no Verão, “a rua é um ponto estratégico de
encontro, observação e conversa”, tantas vezes ligado às tascas, cervejarias, leitarias, e
um “ponto de convívio” que “parece integrar-se no espaço doméstico da casa – ou a
41
casa parece estender-se por sobre a rua” (Cordeiro, 1997: 192). De igual modo, em
Sociedade de Bairro, também António Firmino da Costa (1999) realça muitas situações em
que o bairro oferece inúmeros geradores de interacção.
18 Não evitar a rua, encarando-a antes como foco privilegiado de pesquisa etnográfica,
permite-nos, de facto, reflectir sobre a qualidade e as características da vida quotidiana
na cidade. Este escrutínio será, contudo, cada vez mais difícil de concretizar se
pensarmos que a maioria dos portugueses – e das populações da maior parte das nações
do mundo ocidental – é, efectivamente, constituída por urbanitas.
19 Este retrato ainda muito exploratório sobre as grandes diferenças na forma como as
tradições etnográficas anglo-americanas e sul-europeias abordam as ruas da cidade,
revela-nos o quanto o olhar antropológico, limitado pelas políticas de financiamento à
investigação, e pelos pressupostos culturais mais abrangentes que orientam a definição
dos problemas de pesquisa, ainda assim, exerce a sua influência no rumo seguido pelas
ciências sociais qualitativas em diferentes regiões do mundo. Neste sentido, muito
provavelmente todas as antropologias tenderão a ser “nacionais” ou “regionais”.
20 Não nos surpreende que as ruas de Lisboa ou as ruas do Sul da Europa sejam um foco de
atracção, uma vez que constituem uma vertente fundamental do cenário urbano. Até a
nível linguístico podemos corroborar tal constatação. E um conhecido cliché considerar
que os Inuit do árctico têm muitos nomes para designar a neve, o que demonstra quão
importante é este elemento na sua cultura. Seguramente pode dizer-se o mesmo dos
lisboetas e da sua rica taxinomia das ruas e outras vias públicas – com os seus becos,
calçadas, escadas, escadinhas, travessas, bem como praças, largos e pátios e também,
naturalmente, ruas, avenidas e alamedas – e ainda mais. As ruas são traços muito
importantes, reconhecidos e valorizados da paisagem urbana.
21 Em Lisboa o meu foco de pesquisa desde 1994 não incidiu particularmente nas ruas, mas
nos processos mais vastos de globalização e europeização, na criação de novas
narrativas nacionalistas no programa da Expo’98 e nas políticas de planeamento para
uma Lisboa mais europeia (Sieber, 2001 e 2002). Estudei, evidentemente, vários aspectos
das ruas durante a minha estada, sobretudo informalmente, mas também, por vezes, de
maneira mais formal, e procurarei relatar sucintamente algumas pequenas histórias do
que pude observar. Mas ainda inseguro da minha percepção sobre o sentido local da
vida de rua, decidi procurar nalguns guias turísticos o que diziam sobre as ruas de
Lisboa e a sua óbvia sociabilidade. Consultei sete guias diferentes que tinha em casa 3 –
mas, curiosamente, apenas um deles tinha uma entrada sobre vida de rua, e nenhum
deles aflorava a forma como os habitantes locais usavam a rua, nem sequer se referiam
à sua riqueza ou grande visibilidade na cidade. Do ponto de vista dos guias turísticos, as
ruas e o espaço da rua eram importantes apenas como dado adquirido, primeiro plano
quase invisível apenas atravessado pelo olhar do visitante para se fixar nas fachadas de
monumentos arquitectónicos ou edifícios históricos que os guias sempre enfatizam.
22 Por vezes é referenciado que as ruas são movimentadas e que provavelmente o
visitante se vai cruzar com várias pessoas – como vendedores ambulantes que tentam
vender-lhe flores, ou castanhas, ou guarda-chuvas, e de forma estranha estas
42
generalizações fáceis à sua volta. Elas não só nos dão uma visão microscópica,
particularmente local da sociedade e cultura, como também se constituem como
plataforma para a abordagem de uma grande variedade de aspectos sobre o
desenvolvimento urbano contemporâneo, as tendências nacionalistas, mudança
económica, imperialismo e globalização, passado e presente. Tal como Luís Baptista
explicou, baseado no trabalho de Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot, é possível
“enriquecer a análise científica através da articulação das escalas global e local da
cidade” (Baptista, 2003: 36), um tema recorrente em várias partes deste livro. Focalizar
a rua como objecto de pesquisa não significa ignorar questões teóricas mais
abrangentes, sejam elas contextuais ou críticas.
29 E possível ilustrar este ponto de vista trazendo à discussão a rua de Lisboa que melhor
conheço – uma pequenina rua onde vivi em 1998, a Rua Afonso de Albuquerque. Tem
apenas 75 metros de comprimento e é bastante estreita-em alguns sítios não chega a
passar mais do que um carro-e fica mesmo na zona limítrofe de Alfama, a primeira rua
mesmo atrás do que foi a velha Cerca Moura do séc. IX, a muralha da cidade quando
Lisboa era muçulmana. A rua conduz à Rua dos Bacalhoeiros, da antiga Ribeira Velha,
através de arcos que atravessam a muralha, um de cada lado do final da rua – o Arco das
Portas do Mar, que constituiu a segunda entrada para a Ribeira depois da Reconquista,
aberta através da muralha, e o Arco da Conceição. O nosso prédio tinha janelas que
davam para a porta das traseiras da Casa dos Bicos, cuja entrada original era nesta rua
apesar de actualmente ser considerada como as traseiras do edifício histórico.
30 A Rua Afonso de Albuquerque era sobretudo uma rua popular, de classe operária, com
oito prédios, uma residencial de cinco andares que hospedava sobretudo imigrantes
africanos e migrantes rurais provenientes do Alentejo que ficavam na Casa de Hóspedes
Alentejano, no segundo andar. Deste modo, a rua albergava imigrantes das ex-colónias
em busca de uma vida melhor, bem como migrantes internos. Havia também um
restaurante, um clube aberto até tarde às sextas e sábados, conhecido pela sua música
popular portuguesa ao vivo, e vários pequenos comércios, incluindo uma loja de vinhos,
uma casa de fotocópias, uma padaria, uma sacaria e uma agência de camionagem. De
qualquer forma, tornava-se difícil descrever aqueles que aqui usavam as ruas de forma
homogénea – ainda que a maior parte das pessoas fossem da classe operária ou pobres.
31 No nosso prédio, a Dona Ana5 morava por baixo de nós, no primeiro andar. Era uma
velhinha reformada, de 82 anos, que pagava uma das tais rendas fixas muito baixas, que
haviam sido congeladas há cerca de meio século, mas bastante pobre pois auferia uma
pequena pensão cujo montante era exíguo. No segundo andar vivia um executivo
francês, que estava em comissão de serviço por três anos em Lisboa, proveniente de
uma firma internacional de computadores, sedeada nos Estados Unidos da América. O
Senhor Fernandes geria a loja de vinhos no rés-do-chão, recebia o correio dos hóspedes
do prédio que o carteiro lhe entregava, e distribuía-o pelos inquilinos. Não vivia no
prédio nem na rua, e nem sequer em Lisboa, mas em Loures. Apesar disso, era uma das
poucas pessoas da vizinhança que mais sabia da vida dos vizinhos, pelo menos em
público, uma vez que ficava à porta da sua loja a maior parte do dia, observando tudo o
que se passava na rua.
45
32 Dona Maria, que vivia num prédio de quatro andares ao fundo da rua, vendia legumes
frescos na rua todos os dias. Se por acaso ela estava a descansar quando algum vizinho
precisava de umas cebolas ou tomates para cozinhar o jantar, podia ir ter com ela ao
prédio, onde a porta do apartamento estava sempre aberta – ou poderia simplesmente
chamá-la da rua. A rua tinha também o seu cão, de nome Péri, que a patrulhava como se
fosse propriedade sua, dormindo por vezes no meio dela, e ladrando a todos os cães que
tentassem aproximar-se. O fluxo de tráfego automóvel nesta rua estreita e íngreme era
pequeno, de forma que as crianças podiam brincar à vontade durante a maior parte do
tempo, desde que tivessem cuidado. Não apenas na rua em si, mas ali à volta, a
vizinhança era distinta, com profissionais de pasta bem vestidos, que desciam rua
abaixo vindos das suas casas renovadas de Alfama, em direcção ao metro da Baixa.
Também tinha alguns turistas – sempre de passagem, com ar de quem está perdido mas
satisfeito, de olhos postos para cima e para a frente, à procura de qualquer maravilha.
33 Um dia em que regressei tarde a casa – aí por volta das 4 da manhã – apanhei os
padeiros, os almeidas e os lavadores de rua todos em amena cavaqueira, em frente à
padaria, cada um envergando o respectivo uniforme de trabalho. Tratava-se de um
ajuntamento informal, de conversa espontânea, entre pessoas que nem sequer viviam
na rua, sendo na sua maioria simples transeuntes nocturnos, visitantes de passagem.
Passageiros do escuro que se apoderam momentaneamente da rua, enquanto os
residentes dormem despreocupados, ou até mesmo satisfeitos por estes trabalhadores
aparecerem à noite, sem causar qualquer perturbação às rotinas diárias da vizinhança.
34 Apesar de pequena esta rua era, no entanto, bastante complexa. Nunca era uma
vizinhança fechada, fortificada, nem uma aldeia na cidade, antes espelhava muitas
dimensões da própria e complexa diversidade de Lisboa. Não constituia uma verdadeira
comunidade, mas ainda assim podia ser tomada por um microcosmos onde se
entrecruzavam diferentes esferas sociais e diferentes tipos de pessoas que reparavam
umas nas outras, uma rua com pessoas estranhas que vinham fazer negócios, comer ou
ouvir música, recolher o lixo, ou simplesmente passear. Ali havia todo o tipo de
diálogos entre todo o tipo de pessoas. Algumas delas envolviam famílias que trocavam
palavras da rua para as janelas de suas casas. E sempre havia, também, algumas
janeleiras, debruçadas sobre a ma. Tratava-se de um espaço público que pertencia a
todos e onde havia lugar para uma grande variedade de utilizadores. Uma vez que se
encontravam muitos pequenos mundos na rua que concordavam em conviver, não se
podia considerá-la como uma comunidade que partilhasse qualquer tipo de cultura
comum, nem mútua compreensão. Na verdade, a rua evidenciava uma espécie de
acordo tácito comunitário de forma que qualquer transeunte podia encontrar ali um
lugar, quase como se se estabelecesse uma conexão segura pelo facto de se estar
“sozinho em conjunto”, sem interferir demasiado uns com os outros, tal como Robert
Edgerton descreveu o comportamento público urbano em Alone Together (1979).
35 Como referiu Jane Jacobs há quarenta e cinco anos atrás, não é necessário o
conhecimento total uns dos outros, nem a existência de um propósito comum, para
criar uma comunidade baseada numa familiaridade de rua [sidewalk familiarity] para que
se possa manter a sociabilidade e segurança num grupo de vizinhança urbano (Jacobs,
1961). O antropólogo James Holston explica, na mesma linha, que o espaço público
como o das ruas pode funcionar como uma espécie de “sala de visitas pública”, um
“espaço flexível”, acessível a todas as classes sociais e a uma ampla “variedade de
46
que o habitual – especialmente por aqueles que se sentiam excluídos. Gostos, interesses
e identidades de certas categorias de pessoas – especialmente os trabalhadores, os
velhos, as pessoas do campo e, claro está, os mais pobres – eram sistematicamente
excluídos do programa formal das actividades culturais da Expo’98, e normalmente
essas mesmas pessoas eram também excluídas dos espectáculos, devido ao elevado
preço dos bilhetes. O objectivo da Expo’98 era o de publicitar a modernidade e os
avanços tecnológicos de Portugal e da sua capital, Lisboa (Sieber, 2001 e 2002), e não,
propriamente, o de dar uma visão verdadeiramente representativa da sociedade
portuguesa.
39 A excepção do Dia de Portugal desse ano de 1998, por exemplo, as músicas tradicionais,
tão ao gosto das classes trabalhadoras de Lisboa, não foram incluídas no programa
oficial – especificamente, os ranchos folclóricos e as próprias marchas populares de
Lisboa, para não falar na música pimba. A maior parte dos ranchos à volta de Lisboa,
estão, é claro, sedeados na cidade e encontram-se ligados a diversas casas regionais
localizadas mesmo na Grande Lisboa, e a maior parte dos jovens dançarinos são
alfacinhas de gema, nascidos em Lisboa, ainda que por agora se tenham especializado na
aprendizagem e celebração das tradições rurais dos seus avós. Na Expo’98, claro está,
tanto no Pavilhão de Portugal como no Pavilhão do Território, também não havia
referências a nada que se relacionasse com as culturas rurais tradicionais, uma situação
que, tal como aliás me foi corroborada pelos funcionários da Expo’98, gerou uma
grande contestação por parte do público português.
40 Embora Junho de 1998 já fosse avançado, depois da abertura da Expo’98, os
participantes dos ranchos e os líderes que entrevistei disseram-me que ainda não
tinham qualquer compromisso sólido da parte das entidades oficiais para os incluir no
programa da Expo’98. A mesma situação ocorria com as marchas populares, que foram
silenciadas na Expo’98. Depois de muita pressão da parte dos grupos de marchantes, a
Expo’98 fez a concessão de deixar actuar os vencedores dos três primeiros lugares do
concurso de marchas da noite de Santo António. Esta oferta foi unanimemente recusada
– a menos que todos os grupos pudessem ir actuar à Expo’98. Finalmente, a Expo’98 foi
forçada a autorizar a actuação de todos os grupos de marchantes, para além dos grupos
infantis, tendo também incluído actuações dos ranchos folclóricos.
41 Contudo, dado que os espectáculos musicais já estavam distribuídos e agendados pela
administração da Expo’98, estes grupos populares tiveram que recorrer às ruas da
Expo’98 para fazer as suas performances. Sem nunca terem sido incluídos no programa
formal, eles acabaram por ser espontaneamente autorizados a apropriar-se de espaços
mais públicos, menos regulados, dentro do recinto da Expo’98 – as suas ruas, que eram
artificiais e novas.
42 Tal não constituiu apenas uma vitória para as associações regionais particulares, e para
os bairros históricos, mas também claramente para as classes trabalhadoras,
especialmente as lisboetas.
43 Lutavam pelo direito à utilização do espaço público nesta feira internacional, com o
objectivo de apresentar as suas próprias produções culturais, essenciais para a
afirmação da sua identidade cultural, e mesmo do seu bairrismo no interior de Lisboa,
através da colonização destas ruas artificiais dentro de um parque temático, onde na
realidade ninguém vivia – com alguma genuína espontaneidade não programada, fora
do calendário oficial dos eventos.
48
44 É claro que muitos estudiosos da cidade, como por exemplo Graça Cordeiro, António
Firmino da Costa e Maria de Fátima de Sá, desde há muito documentaram quão
importantes são as ruas de Portugal e do Sul da Europa, como lugares para a
performance de festas populares, procissões religiosas e desfiles no âmbito da vida e
identidade urbanas. Na Expo’98 os grupos de marchantes criaram uma festa local no
seio de uma outra global, ou pelo menos nacional, mais abrangente. Nunca se
preocuparam muito em explicá-la ou interpretá-la para os estranhos, pois a sua festa
não era feita para os turistas, que estavam só de passagem enquanto este drama
lisboeta ia para o ar. Considero que este era um uso muito natural e popular das ruas da
cidade; mas que se revelou inusitado neste contexto, pelo facto da Expo’98 gerir e
planificar de forma tão cautelosa quase todos os outros eventos culturais no local – em
especial os que tinham a ver com música e dança.
45 A ausência de ruas reais na Expo’98 constituía também um problema. As críticas
dirigidas à Expo’98, como projecto de desenvolvimento urbano, por Vítor Matias
Ferreira, Alexandra Castro e outros colegas do Centro de Estudos Territoriais do ISCTE
(ver Ferreira et al., 1999), rotulavam o desenvolvimento residencial da Expo Urbe, a
completar até 2010, como um “ghetto de luxo”, um “condomínio fechado” e uma “ilha
de privilegiados”. Salientaram também que o recinto havia sido bem fortificado,
protegendo-o de qualquer ligação com as áreas desfavorecidas envolventes, como
Moscavide e Prior Velho, através da ausência relativa de uma rede intermédia de ruas.
Observam mesmo que ao longo dos 5 quilómetros do perímetro da Expo‘98, existiam
apenas 9 passagens sobre a barreira da linha-férrea (constituindo menos de duas
passagens por quilómetro), entre a Expo’98 e os bairros adjacentes, que permitiam o
acesso dos carros e dos peões ao que viria a ser chamado Parque das Nações. Assim, às
outras barreiras financeiras interpostas aos residentes locais em relação à fruição das
actividades de lazer do recinto, havia ainda a sobrepor as barreiras espaciais evidentes
que reforçavam a sua exclusão.
zona formalmente planificada (Scott, 1999: 129)! Quando as ruas são vedadas às pessoas,
elas acabam por criá-las.
49 Uma vez que os etnógrafos urbanos apreciam tanto o poder das bases, das iniciativas
populares para a apropriação e animação das ruas da cidade, podemos então ser aliados
deste impulso natural para a expressão humana e contribuir para a valorização e defesa
do direito das pessoas a viver em pleno no seu próprio espaço público. Talvez
precisemos, até, de reconhecer a nossa própria necessidade das ruas e, também, do
espaço público. Ao defender os direitos dos cidadãos das cidades em qualquer parte do
mundo, estaremos afinal a defender-nos a nós próprios, e não apenas os urbanitas que
alguns de nós são. Na luta contra a actual privatização do domínio público em geral,
temos também muitas das nossas próprias ruas a defender, e só algumas delas se situam
na rua.
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NOTAS
1. Tradução do inglês de Ana Isabel Afonso.
2. Os meus agradecimentos à Comissão Cultural Luso-Americana e à Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, então JNICT (Programa Praxis XXI), bem como à Universidade Aberta, pelo apoio
concedido às investigações aqui referidas que decorreram em Lisboa. Agradeço igualmente ao
ISCTE, incluindo as suas unidades de investigação CEAS, CET, CIES e CEHCP, à Universidade de
Massachussetts, em Boston, e ao CITIDEP-Portugal, pelo apoio suplementar concedido. Um
agradecimento especial a Graça índias Cordeiro, Luís Baptista, António Firmino da Costa,
Darlinda Moreira e Angela Cacciarru pela sua ajuda e incentivo no prosseguimento do meu
trabalho.
3. Onde se incluem: Lisbon, an Unforgettable City. Badajoz: Limite Visual Guidebooks, 1997; Susie
Boulton, American Express Guide to Lisbon. London: Dorley Kindersley, Ltd., 1998; Associação dos
Arquitectos Portugueses, Guia de Arquitectura Lisboa 94. Lisboa: Sociedade Lisboa 94, 1994; Ian
Robertson, Blue Guide: Portugal. London: A & C Black, 1995; Baedeker’s Lisbon. New York: Prentice
Hall, 1996; John Fisher Ellingham, Graham Kenyon and Alice Martin, Portugal, the Rough Guide.
London: Penguin/the Rough Guides, 1995; e Marion Kaplan, Insight Pocket Guide: Lisbon. Boston:
Houghton Mifflin Company, 1994.
4. Uma análise antropológica fascinante e muito aprofundada sobre a visão que Norberto de
Araújo tem da cidade, como sendo simultaneamente realista e imaginária, é apresentada no
artigo de Graça índias Cordeiro, “A propósito das Peregrinações em Lisboa: relatos de uma cidade,
passo a passo” (2006).
5. Dona Ana, tal como outros nomes pessoais usados ao longo do texto, é um pseudónimo.
52
AUTOR
TIM SIEBER
Antropólogo, University of Massachusetts, Boston.
53
2 Assim sendo, a questão da identificação dos domicílios colocou-se de uma maneira mais
aguda na medida em que os actores da vida urbana se iam diversificando. Visitantes,
novos residentes, turistas, comerciantes estrangeiros... a cidade moderna aparece como
um meio aberto que tem de ser sempre acessível para todos os utentes. A minimização
do tempo de aprendizagem assegura a “produtividade” e uma boa funcionalidade do
espaço urbano (Gourdon, 2005: 24)4. No prólogo do Itinerário Lisbonense de 1804 – um dos
primeiros roteiros sistematizados das mas de Lisboa – é assim apontada a necessidade
de reconhecer e identificar as ruas, becos, calçadas, praças e os lugares mais conhecidos
para “utilidade, uso e comodidade dos estrangeiros e nacionais” 5. Já temos aqui indícios
da relação existente entre identificação dos domicílios e evolução geral das sociedades
urbanas.
3 Na realidade, a procura de uma uniformização dos modos de identificação nem sempre
se traduziu na elaboração de sistemas estáveis que tivessem imposto regras douradoras.
Até mesmo a toponímia fica dependente de usos incertos. Em Lisboa a permanência do
topónimo Rossio para designar a praça oficialmente nomeada, desde 1836, Praça de
Dom Pedro IV, pode ser entendida como indício de conflitos entre diferentes
representações e práticas da centralidade urbana (Castilho, 1937 [1889]). A toponímia é
uma peça central do léxico urbano que resulta das evoluções complexas e descontínuas
dos usos, das funções e das sensibilidades (Huetz de Lemps, 1998). Um mesmo espaço
pode ser identificado com diferentes designações, as quais reencaminham para
referências sociais, culturais ou temporais específicas. Por isso a análise da toponímia
permite também assinalar usos sociais do espaço urbano.
4 A primeira questão que gostaria de colocar aqui é em que medida os endereços
individuais ou os modos de declaração das moradas podem ser considerados como
objecto de estudo histórico. O silêncio dos historiadores sobre esta questão poderia ser
um sinal de alerta. Existe sempre o risco de se ter apenas encontrado um assunto
demasiado restrito, afinal sem grande interesse e que teria tudo do mauvais sujet
(Saunier, 1996). A resposta à mera questão “onde mora” implica situar-se pessoalmente
no espaço físico da cidade, ou seja, escolher referências toponímicas (um nome de rua
ou de sítio, oficial ou de uso corrente), categorias espaciais que podem ou não
corresponder a categorias administrativas (o concelho, a paróquia, a freguesia ou, pelo
contrário, uma rua, um largo, um pátio). Implica também situar-se num lugar, isto é,
num espaço social e afectivamente investido (Lousada, 2005). Parece óbvio que não
existe uma resposta única a esta questão. A variabilidade das respostas abre novas
perspectivas para este estudo, estabelecendo uma ligação estreita entre o modo de
declarar ou identificar um domicílio e o meio social envolvente.
5 A morada dos indivíduos pode ser vista como um sinal de identificação socialmente
construído. E o ponto de encontro entre modelos normativos estandardizados (um
nome de rua, um número de porta ou de andar) e lógicas de tipo comunitário pelas
quais a identificação do domicílio revela, em certa medida, modos de viver ou habitar a
cidade. De uma maneira geral, é necessário compreender como se conjugam lógicas
normativas que se vão reforçando ao longo do século XIX e lógicas relacionais que
permanecem. Cruzando estas diferentes perspectivas e olhares sobre a cidade, cheguei
à conclusão de que não houve um processo contínuo e regulado que teria conduzido a
uma normalização cada vez mais acentuada das referências espaciais em Lisboa. Várias
lógicas ou sistemas de identificação coexistem ao longo do século. A recepção dos
quadros normativos ou regulamentares foi irregular, incompleta e diferenciada em
55
função dos espaços, dos meios e das situações. A rua impõe-se como um sistema onde
interagem diferentes componentes das sociedades urbanas. A variação dos modos de
identificação dos domicílios em Lisboa no século XIX pode dar conta dos pontos de
equilíbrio provisórios deste sistema. Testemunha ainda a diversidade e a evolução dos
modos de habitar a rua, isto é, de investir ou de praticar um lugar (Stock, 2004). E aqui
que se situa o meu objecto de estudo.
6 Limitando o meu estudo à Lisboa do século XIX corro o risco de ter de sobreinterpretar
informações frágeis ou parcelares. Este tipo de investigação, que toca na análise de
elementos de identificação individual, é geralmente concebido numa longa duração.
Beatrice Fraenkel estudou, por exemplo, como a assinatura, entre os séculos VI e XVI, foi
a pouco e pouco sendo reconhecida como sinal de identidade (Fraenkel, 1992). Este
longo processo testemunha a variação em função das épocas, dos lugares e das culturas,
de noções tão problemáticas como a identidade, o indivíduo, os sinais ou as
características de identificação. Uma outra abordagem possível seria a perspectiva
comparada. Seria, por exemplo, possível comparar os modos de identificação dos
domicílios em diferentes cidades, em contexto sociais ou culturais bastante
diferenciados. No Japão, por causa de uma unificação relativamente tardia das grandes
áreas urbanas, foi elaborado um sistema complexo de sinalização onde as vias públicas
e as casas privadas disputam o papel de principal referência de identificação. Os nomes
de casas acabam por ter uma função quase tão importante como os nomes de rua
(Takeshi, 2005). O ritmo do crescimento urbano, a adaptação da rede de vias públicas às
novas funções e às novas actividades, a evolução do modo de ocupação do território
urbano, as formas de propriedade ou, numa palavra só, a história de cada cidade ou de
cada agregado urbano, reflectem-se na lógica adoptada para a identificação dos
domicílios.
7 Deixando de lado a longa duração e a perspectiva comparada, proponho seguir uma
metodologia um pouco diferente que repousa na confrontação entre várias escalas de
análise. O enunciado da morada de um indivíduo, ao contrário do que ocorre com a
assinatura, não tem de ser necessariamente invariável e, em grande medida, não resulta
de uma escolha pessoal. As zonas de negociação entre factores individuais – a relação
pessoal com o espaço de residência ou com o meio social de vida – e factores colectivos
– a organização do espaço urbano, os regulamentos municipais – constituem o meu
principal ponto de observação. Diferentes olhares sobre a cidade têm de ser
confrontados. Mas onde buscar esses olhares? Tais processos deixaram de facto poucos
vestígios nos arquivos. Duas actividades administrativas tiveram, no entanto, um papel
importante na difusão de práticas homogéneas neste domínio. A organização da posta
diária em Lisboa e a redacção dos registos paroquiais na ocasião de um nascimento
aparecem como dois momentos onde se colocou claramente a questão da identificação
dos domicílios pessoais. Estas duas actividades são, segundo modalidades bastante
diferentes, peças do processo de construção de um Estado liberal moderno que procura
intervir em todo o território através de práticas uniformizadas. Todavia, o modo de
recepção e de aplicação de tais medidas está também dependente das características
dos meios sociais locais6.
8 Coloco em evidência relações entre processos conexos que actuam em contextos e
escalas diferentes. Posso assim cruzar fontes, escalas de análise, situações ou posições
sociais: as declarações registadas nos registos paroquiais mas também os debates no
seio da administração portuguesa; as práticas administrativas nacionais ou locais e os
56
9 Nas primeiras décadas do século XIX houve várias tentativas de organização da posta
domiciliária – ou posta diária – em Lisboa. Um primeiro regulamento é publicado em
18017. Instaura-se um serviço reservado aos assinantes. A organização da posta
domiciliária é um projecto ambicioso que pressupõe resolver, pelo menos, dois tipos de
dificuldade. A primeira refere-se ao encaminhamento do correio, de uma maneira
rápida e segura, através de uma organização administrativa integrada. A segunda, na
outra ponta da cadeia, prende-se com a identificação e a localização dos destinatários
das cartas. Interessa-me aqui apenas o problema da identificação dos domicílios das
pessoas a quem era dirigida uma correspondência. Não se trata de um problema
marginal. Obviamente, até aos anos 1830, um grande conjunto de questões é debatido: o
circuito seguido pela correspondência, o sigilo da correspondência, a remuneração dos
carteiros, a frequência da distribuição, etc. Todavia, a questão da identificação dos
domicílios e, mais especificamente, do reconhecimento do espaço urbano aparece como
essencial. Ocupa um lugar importante, tanto nos regulamentos sucessivos – em
1801,1821 e, também, um projecto de regulamento redigido em 1817 – como nas
correspondências administrativas conservadas no Arquivo da Fundação Portuguesa das
Comunicações e que dizem respeito ao período de 1817 até 1836.
10 A principal inovação da administração dos Correios é a divisão da cidade em distritos –
17 distritos em 1801, 18 em 1821 – que se impõem como os quadros territoriais de
referência para a organização do serviço. Como era fácil de prever, a noção de
“morada” não beneficia de uma definição clara nestes textos sucessivos. Na realidade,
nunca foi expressamente encarada a ideia de transformar a “morada” ou o “endereço”
numa verdadeira categoria administrativa que tivesse servido, entre outros, para a
identificação dos habitantes da cidade8. Em 1801 a pessoa que quiser “as suas cartas em
casa” mandará “declarar o seu nome, rua e distrito em que reside” (artigo 5.°). O
projecto de regulamento de 1817, que nunca chegou a ser aplicado, produz uma
definição mais completa: as cartas têm de estabelecer no subscrito “nome da rua,
travessa ou beco, número da porta, e o nome do bairro ou sítio em que se achar a rua,
não sendo a rua das mais principais e conhecidas, na falta do nome do bairro ou sítio
tentará declarar o nome da praça, igreja, ou rua, mais conhecidas que lhe fica na
vizinhança” (artigo 9.°). O regulamento de 1821 usa pela primeira vez a palavra
“morada” [“todas as cartas que trouxerem no sobrescrito a morada das pessoas a quem
vierem dirigidas serão (...) immediata e pontualmente entregues nas mesmas
moradas...” (artigo 2.°)] sem especificar os diferentes elementos que nela devem
figurar.
11 Se a rua – e as suas derivações (o beco, a travessa...) – aparece naturalmente ao lado do
nome do destinatário, como o elemento central que constitui a morada, a
administração dos correios tenta também tirar partido das outras unidades territoriais
já preexistentes e mais ou menos interiorizadas nas representações tradicionais da
cidade (os bairros, os sítios) ou, pelo contrário, criadas para o efeito numa perspectiva
claramente funcional (os distritos postais). À partida, o papel hegemónico da rua não é
assim tão óbvio. É pelo menos discutido. Nos diferentes documentos elaborados entre o
57
fim do século XVIII e o início da década de 1830 encontram-se indícios de uma hesitação
entre vários modos e escalas de apreensão do espaço urbano. Diferentes níveis de
territorialização da cidade estão presentes nos textos regulamentares e cada um deles
corresponde a sistemas específicos de reconhecimento e de orientação espacial. No
entanto, a “rua” acaba geralmente por ser eleita como o espaço de referência. Nas
formulações das moradas é o único elemento de identificação que designa
propriamente um espaço da cidade. Os números dos distritos não são referidos e o
bairro de residência raramente consta nestas formulações9.
12 Para estabelecer regras gerais que permitam um bom funcionamento do serviço em
todo o território da cidade, a administração dos correios adopta dois tipos de estratégia.
A primeira está explícita e claramente exposta nos regulamentos ou nos diferentes
textos produzidos pela administração dos correios. Prende-se com o reconhecimento
do espaço da cidade: isto é, com a transformação das formas urbanas em sítios
identificáveis à distância, sem recorrer às informações que circulam entre vizinhos ou
habitantes de um mesmo bairro ou de uma mesma zona da cidade.
13 Como já referi, a regulação para o estabelecimento da pequena posta de 1801 estabelece
o princípio da divisão da cidade de Lisboa em distritos. O primeiro efeito destes cortes
espaciais é o de constituir uma hierarquização entre os espaços urbanos, favorecendo
os bairros centrais no acesso à distribuição domiciliária. No projecto de regulamento de
1817 o serviço abrange também parte do subúrbio da capital mas com algumas
restrições: apenas nos sítios que “se acham numerados” e que ficam ao sul de uma linha
que passa por Beato, Arroios, Sete Rios, a tapada de Alcântara e o convento de Belém
(artigo 10.°). O regulamento de 1821 cria de facto uma desigualdade de tratamento
entre os 9 distritos “do interno” e os 9 “da extrema”. Esta desigualdade justificada pelas
características demográficas dos espaços em questão – os distritos periféricos são
geralmente menos povoados – é reafirmada a cada etapa da organização da posta
diária. Nos distritos da periferia são inferiores os números de caixas ou depósitos
previstos para receber as cartas e os números de “correios volantes” em serviço. A
diferença de trato fica também simbolicamente registada nos códigos associados a cada
distrito. Os distritos “internos” são identificados pelas nove primeiras letras do alfabeto
e os da “extrema” com a letra repetida do distrito interior a que correspondem (AA; BB;
CC; DD...) (artigo 8.°). Estes códigos eram utilizados para marcar os sacos, chaves e todos
os instrumentos de trabalho pertencentes a cada um dos distritos.
14 A história urbana raramente se interessou pelas lógicas sociais e políticas subjacentes
às operações de divisão administrativa da cidade (Silveira, 1997) 10. No caso das
administrações dos correios, a introdução de distritos tem sobretudo por objectivo
assegurar um melhor serviço. É difícil falar aqui de controlo social ou de vontade de
fiscalização do território (Loschak, 1978). Os distritos postais são instrumentos
funcionais que racionalizam a relação com o espaço sem excluir, dentro de perímetro
de intervenção, nenhuma zona da cidade. Todavia, as operações de divisão
administrativa não são necessariamente mecânicas. Os distritos postais pensados no
início do século XIX adoptam e fortalecem representações específicas da centralidade
urbana. Como a maior parte das unidades administrativas, referem-se também a
configurações sociais e espaciais já existentes (Saunier, 1996). Por fim, ampliando um
pouco o objecto de estudo, podemos sugerir que uma unidade administrativa altamente
especializada, tal como o distrito postal, pode também, na longa duração, fornecer
58
interpretação dos “correios volantes” que entregam as cartas segundo “a ordem que
mais convém ao seu distrito e que só eles bem conhecem”14. As lógicas relacionais
intervêm também a outro nível. Caixas para a recolha das cartas são colocadas em
lugares estratégicos da cidade. Estas caixas ficam sob responsabilidade das lojas que
“gozam de mais crédito”, com preferência para a mercearia do bairro. A intervenção
dos habitantes de cada distrito postal é, portanto, solicitada.
22 Os modos de identificação dos domicílios vão variando porque são também variáveis os
modos de pensar e de representar a cidade. As disposições regulamentares e a
organização quotidiana da posta domiciliária implicam ajustamentos na percepção e no
uso do espaço urbano. Lisboa desdobra-se entre a cidade dos distritos e a cidade dos
giros. A primeira reduz-se integralmente a um número limitado de unidades espaciais.
A segunda organiza-se no quotidiano, em função das situações e dos encontros. A
cidade das ruas – aquela do roteiro de 1817 – é então um compromisso entre o espaço
gerido e o espaço vivido. Desta análise das práticas elaboradas através da organização
da posta domiciliaria, sobressai a ideia de que a velha oposição entre a rua como
elemento físico de constituição da cidade ou como facto social – de um lado a via
pública e os prédios e do outro os habitantes e os transeuntes – nem sempre parece
pertinente. A rua aparece aqui, antes do mais, como um lugar de negociação entre
vários interesses e hábitos.
APONTAMENTOS FINAIS
o espaço urbano através de listas de ruas, becos, travessas, avenidas, etc., são operações
complexas que revelam uma certa concepção da vida urbana. Nem sempre
corresponderam às práticas e aos usos. De uma maneira geral, estas operações estão
associadas a uma fase particular da evolução das sociedades urbanas. As designações
podem ser discutidas, focando os factores socioeconómicos (a industrialização) ou
sociopolíticos (o liberalismo), mas parece óbvio que tal estudo tem de ser encarado
numa perspectiva bastante alargada de uma história social do espaço urbano como
categoria de percepção e de classificação (Saunier, 1996). Assim sendo, apesar do seu
carácter peculiar, o estudo dos modos de identificação dos domicílios permite
reencontrar as grandes linhas de força da história urbana.
32 No caso de Lisboa, o fim do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX aparecem
como um momento-chave em que são elaborados instrumentos – tais como os roteiros
– que traduzem novos olhares sobre a cidade e uma evolução nas vivências e nos
hábitos. Como interpretar o sentido desta evolução? O que significa a escolha da “rua”
como principal elemento de identificação dos domicílios? Através do estudo da
organização da posta domiciliária vimos que esta escolha pode corresponder a um
compromisso, à procura de um equilíbrio entre diferentes níveis de apreensão e de
leitura do espaço urbano. De um ponto de vista funcional, trata-se também de um
compromisso entre hábitos e interesses dos forasteiros e dos habitantes, entre factores
endógenos e exógenos. O movimento geral de normalização da identificação do
território urbano não teve por consequência o total afastamento dos outros modos,
nomeadamente das lógicas sustentadas pela história de cada espaço, pelas memórias
colectivas e pelas redes de relações. Na realidade, a normalização permitiu sobretudo
diminuir os tempos de aprendizagem, segundo a ideia de que a cidade já não pode ser
apenas a cidade dos seus habitantes.
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65
NOTAS
1. Todas as obras que tratam da evolução dos espaços urbanos acabam por dar conta deste
processo. A história da Europa urbana, publicada em 2003, sobre a direcção de Jean-Luc Pinol,
contém numerosas referências às formas de aplicação das leis e regulamentos em vários
contextos urbanos (Pinol, 2003). Mas são ainda escassos os textos que abordam directamente esta
questão. A rua raramente foi considerada como objecto histórico, ao mesmo nível que o bairro,
por exemplo. Nos últimos anos o tema surgiu, no entanto, com alguma consistência. Várias
publicações apresentam linhas programáticas ou esboços de estudos particularmente aliciantes.
O tema das sociabilidades e dos usos do espaço público são os mais presentes, mas a rua é também
considerada como sistema urbano que tem a sua própria coerência (Landau, 1992; Garden, 2006;
Doumerc, 2005; Larsen & Petersen, 1997; Joyce, 2003).
2. Diário do Governo, n.o 4, 4 de Janeiro de 1856.
3. Diário do Governo, n.o 228, 28 de Setembro de 1843.
4. Esta aprendizagem não se limita ao reconhecimento do espaço (Roncayolo, 2003: 62).
5. Itinerário Lisbonense, 1804, Lisboa, Impressão Régia.
6. E de destacar aqui a importância particular do Registo Civil no conjunto dos debates políticos
em Portugal durante a Monarquia constitucional.
7. Este estudo baseia-se essencialmente na documentação do Arquivo da Fundação Portuguesa
das Comunicações [AFPC1 e, nomeadamente, nas informações contidas no dossiê: “Documentos
relativos ao estabelecimento da posta diária, distribuição domiciliaria e apartados (1817-1836)”.
8. A questão da transformação da noção de residência em categoria administrativa aparece
também ao longo da segunda metade do século XIX quando foram elaborados diferentes
instrumentos de contagem ou de identificação da população, tais como os censos e os registos
paroquiais. E a distinção entre “população de facto” e “população de residência habitual”
presente nos censos do fim do século. Esta mesma distinção aparece em algumas formulações dos
registos paroquiais e, depois de 1911, civis (Vidal, 2006: 159-162).
9. Sobre este ponto as fontes não são completamente esclarecedoras (Morato, 1995).
10. Em contexto urbano as contribuições mais aprofundadas limitam-se a cartografar as
evoluções das unidades espaciais (Alves, 2004).
11. Um fenómeno observável por exemplo na cultura hip-hop, hoje em dia (Rérat, 2006). Nos
países ocidentais é apenas na segunda metade do século XX, e em Portugal no fim dos anos 1970,
que o código postal é formalmente instituído, paralelamente à mecanização da triagem do
correio (Scheele, 1970).
12. “Carta”, 26-10-1833, em “Documentos relativos ao estabelecimento...”, op. cit., AFPC.
13. Esta disposição não figura nos regulamentos posteriores. Ver por exemplo: Reforma Postal.
Decreto de 27 de Outubro de 1852 e Regulamento para a sua execução, Lisboa, Imprensa Nacional, 1853.
14. “Relatório do Subinspector-Geral dos Correios”, 6-11-1833, “Documentos relativos ao
estabelecimento...”, op. cit., AFPC.
15. Ver, por exemplo, na mesma época, os romances de Armando Ferreira. E para o fim do século
XIX, os de Gervásio Lobato.
16. O Regulamento do Registo Paroquial de 1859 obriga à apresentação de documentos
“irrecusáveis” apenas no caso de “procuração” e nomeadamente para o casamento de menores,
na ausência de “superior legítimo” (artigos 12.°el4.°).
66
AUTOR
FRÉDÉRIC VIDAL
Historiador, Centro em Rede de Investigação em Antropólogia (CRIA / ISCTE-IUL), professor da
Universidade Autónoma de Lisboa.
67
AGENTES APEADOS
7 No turno das 13 às 19 horas, num dia de Primavera, dois agentes, em patrulha dobrada,
saem da esquadra em direcção ao giro 10 (fig. 2), na parte de baixo da área. A dupla é
composta por um agente com um ano de esquadra, considerado ainda um maçarico algo
inexperiente, e um outro com cinco, considerado um agente rodado. Geralmente a
patrulha limita-se a um conjunto de ruas próximas onde os agentes circulam, fazendo
render o tempo do turno que antecipam sem grandes incidentes. Depois de entrar ao
serviço, os agentes fazem uma primeira paragem num bar conhecido, próximo da
esquadra3. Passado mais de uma hora chegam à rua mais policiada do giro, onde se
considera estar o coração do tráfico da área, o bairro da droga. Até lá os agentes andam
num ritmo vagaroso, diz-se que pisam paralelo. Têm disponibilidade e tempo para
sociabilizar entre si, para conversar, para falar dos seus problemas e da difícil gestão
entre a profissão e a vida familiar, das tensões com superiores ou, simplesmente... olhar
em frente, para o movimento. Por isso os agentes preferem patrulhar em duplas. O
efeito que provocam nas ruas onde se conhecem pontos do mercado de droga é
geralmente simples: fazem mover os traficantes e os compradores de uma parte da rua
para outra onde não se encontra, nesse momento, presença policial. Desta forma, há um
certo pudor, uma certa regulamentação e disputa pelos territórios entre agentes,
residentes e pequenos traficantes. Quando surge a informação, pelo rádio portátil (que
os liga a uma central policial), que um toxicodependente se precipitou dum penhasco, a
dupla decide descer à clareira para observar o acidente. Uma ambulância do INEM
chegou antes ao local e irá transportar o sujeito para o hospital, ainda vivo. Os agentes
aproveitam para regular o trânsito. Finda a operação, sobem novamente por um
descampado. O agente mais rodado pára um toxicodependente sem-abrigo conhecido
na área e espanta um outro. Obriga-o a tirar todos os seus pertences da mochila e
esmaga-lhe as lamelas dos comprimidos com o pé. O encontro é marcado pela
hostilidade. O polícia contém-se, mas verbaliza o anseio de dar uma bastonada naquele
que há anos se recusa colaborar com os polícias, negando informações sobre “o que não
vêem”4. Na situação, o agente mais jovem diz-se “uma pessoa pacífica” e rejeita o
convite do colega no sentido de ser ele a dar a bastonada, como uma espécie de
iniciação no uso da força5. Findo o encontro, os agentes dirigem-se à praça principal do
bairro da droga, aí permanecendo algum tempo a observar os transeuntes. O mais rodado
interpela um suspeito e pede informações sobre o tráfico de droga, mas os contactos
são reduzidos. Durante quase uma hora, parados, vêem-se também passar vários carros
policiais da unidade das brigadas à civil da divisão e adivinha-se a presença de agentes
da Polícia Judiciária. No momento em que os agentes de uma carrinha da secção do
piquete da divisão (unidade mais reactiva) chega ao local, contribuindo para a imensa
presença de policiamento, os apeados concordam que a sua visibilidade deixou de ser
necessária no local. Antes de regressar à esquadra para a rendição do turno seguinte, a
dupla volta às ruas da parte de cima, pára num bar e, por fim, regressa à esquadra “sem
novidade”, sem ocorrências a registar.
71
Carro-patrulha
8 Os agentes do carro-patrulha dão entrada no turno das 13 às 19 horas num dia de
semana de Junho (fig. 3). Neste caso, o condutor e o arvorado trabalham juntos, no
mesmo serviço, há pelo menos um ano6.O primeiro tem oito anos de experiência na
esquadra, quase todos passados a conduzir a principal viatura policial, e o segundo
quase seis anos de patrulha, vários como arvorado. A dupla aguarda a chegada dos
agentes do carro-patrulha que irão render. Foram informados de que os mesmos estão
envolvidos numa ocorrência complicada na área da esquadra vizinha. Num prédio
devoluto foram encontradas urnas que parecem conter carcaças de animais. A
ocorrência ficará conhecida como o “caso das urnas”7. A rendição é efectuada na
esquadra, mas a nova dupla tem de voltar ao local. No prédio, sobem ao último andar e
todos são convidados a observar as urnas e o sórdido ambiente. Um dos arvorados tira
impressões para escrever. Os agentes contactam o Instituto de Medicina Legal e a
Polícia Judicária, para poderem voltar ao giro (aqui significando o movimento e não a
unidade territorial). O agente responsável pelo caso é reconduzido à esquadra, onde fica
a elaborar o processo. A dupla de agentes segue na viatura e pára num bar da área para
a primeira pausa do turno. Nessa altura, recebem uma chamada da esquadra. E preciso
conduzir um colega doente à paragem do autocarro8. O carro regressa à esquadra e
conduz o agente ao local. Daqui em diante, o circuito far-se-à pelas ruas dos bairros da
parte de baixo da área. É nestas que o carro-patrulha prefere girar, entre as chamadas
que o podem levar a qualquer ponto da área. Encostam o carro na rua mais conhecida
do tráfico e saem quando avistam dois transeuntes de raça negra, como dizem, que
consideram suspeitos, talvez novos traficantes. Os traficantes locais já estão todos
72
APOIO AO IDOSO
superiores. Segundo, são controlados pelo próprio público, na medida em que deles se
exigem determinados comportamentos de simpatia e conhecimento da cidade. De
acordo com os agentes experientes dos carrospatrulha, os apeados são ironicamente
designados como guias turísticos e, num sentido mais crítico, como os cabides da
organização.
13 Por isso os apeados defendem que o serviço pode ser física e psicologicamente
desgastante. A pressão interna dos superiores para que estes agentes produzam
indicadores criminais colide com a pressão externa quando os polícias são mais
interventivos nas ordens sociais locais. Muitos agentes preferem defender a sua própria
imagem, pessoal, poupando-se a intervir em situações irregulares. Pressentem que as
mesmas lhes trarão dissabores junto de residentes dos bairros que revêem diariamente,
sobretudo nos bairros da parte de cima.
14 Quando a actividade se reduz à simples produção de visibilidade as pausas podem ser
verdadeiras ocorrências e quebrar rotinas, onde os turnos são longos e o tempo custa a
passar. A intensa sociabilidade entre colegas e a escuta de comunicações (pelo rádio)
lembram, a todo o momento, que o trabalho considerado profissional (ou operacional)
está a ser desempenhado por colegas automobilizados. Se é verdade que as interacções
com citadinos se dão em situações relativamente pouco problemáticas, à excepção dos
problemas de estacionamento, que podem atingir grande animosidade, a actividade,
por ser pouco exigente em termos profissionais, é encarada como monótona. A norma é
findar o turno à hora certa, chegar junto à banca e declarar: “Serviço sem novidade”
(frase que entretanto é usada pelos agentes do carro-patrulha para ridicularizar o
serviço apeado). Para a maiora dos agentes, passar pela patrulha apeada é uma fase
obrigatória da vida profissional, sendo que é para os carros que a maioria dirige as suas
apetências. Chegamos assim à situação paradoxal do serviço: se na organização o
estatuto do apeamento é quase nulo, frequentemente desconsiderado e muitas vezes
indesejado, na comunidade ele continua a ser requerido e a tradição do “polícia em
cada esquina” uma exigência social recorrentemente reclamada.
15 Pode dizer-se que a patrulha automóvel surgiu, em parte, para desterritorializar a
actividade, cada vez mais assente na resposta a ocorrências e num comando à distância
(via rádio). A circulação gerada pelo carro-patrulha, o rodar ou o girar, como lhe
chamam, é um intervalo contínuo entre as chamadas a ocorrências, que desencadeiam
a acção (fig. 3). Ao contrário dos apeados, aqui o que define os circuitos não é um
conjunto de ruas para onde os agentes se devem dirigir. Esta viatura está na base de
uma perspectiva de polícia como serviço de emergência. O serviço define-se pelas
exigências da cidade, dos habitantes que usam a polícia sobretudo para restabelecer
ordens locais e intervir em conflitos que eles mesmos são incapazes de resolver. O
objectivo dos agentes é chegar aos locais e resolver os problemas que encontram, quer
logo situacionalmente e num plano de mediação directa, quer num plano legal e já
envolvendo processos escritos, remetendo para uma mediação indirecta. Este serviço
trabalha para os resultados da esquadra, pois, em grande medida, é ele que evidencia e
dá visibilidade ao trabalho da unidade no contexto da organização. Durante o turno são
os agentes do carro que produzem indicadores policiais e criminais, diz-se que
“trabalham para a estatística”12.
16 E perceptível no mapa que o raio de acção do carro-patrulha na área é extenso e em
alguns casos pode mesmo extravasar os limites administrativos de supervisão para cada
esquadra. Os agentes das viaturas trabalham em rede, entre eles, criando uma outra
76
25 Não por acaso, a proximidade surgiu como uma das formas para a organização
conservar as mulheres agentes nas esquadras sem ameaçar o status quo masculino
tradicional (Durão e Leandro, 2003). Quase todos os programas têm geralmente um
elemento feminino. Na verdade, não é fácil para os comandantes seleccionar agentes
masculinos para os programas. Primeiro, porque estes tendem a ser vistos como
“serviços sociais” e por isso rejeitados pela maioria, argumentando que não
desenvolvem “verdadeiro trabalho policial”. Segundo, o colectivo das esquadras de
Lisboa é geralmente muito juvenil e a maioria dos agentes está numa situação de
passagem (num movimento acelerado de mobilidades entre outros serviços, esquadras,
comandos do país, etc.), o que reduz o tempo e a “tradição” necessários para
implementar relações locais sustentadas pelas afectividades do interconhecimento. O
saber territorial dos agentes da proximidade e a sua actividade baseia-se numa rede de
relações interpessoais que vai crescendo com o tempo de permanência na esquadra,
com o “tempo dos afectos” e com discussões intermináveis com os seus colegas para os
convencer da intencionalidade e utilidade da sua acção. A partida dos “militantes da
proximidade”, como lhes chama Katane (2002: 73), para serviços mais prestigiados ou
para outras cidades leva a colocar em causa todas as redes estabelecidas e por vezes
conduz ao questionamento dos próprios serviços “que apenas se mantêm por decreto
oficial”, como me referiu um comandante.
26 Neste serviço, mais do que em qualquer um dos outros, a actividade tende a coincidir
com o polícia executante. Em quatro anos de permanência na esquadra – que coincidiu
com o tempo de implementação do programa desde 2000 – a agente elaborou uma lista
de 100 casos de idosos que procura de alguma forma apoiar. No dia em que for
transferida para o Porto, seguindo o seu marido, também ele agente 13, todos sabem, na
esquadra e nas várias instituições locais, que os idosos irão chorá-la. E que, neste caso, o
serviço é a agente. Do prisma dos citadinos os serviços da proximidade têm rostos, não
apenas fardas.
27 A cidade é em grande medida a relação pessoal que estabelecemos com ela, a cidade
relacional, da rua, dos percursos, da paisagem, da deambulação e da conversação. A
cidade deve ser aprendida. “Le trajet dans 1’espace urbain est à la foi enseignement et
découverte” (Roncayolo, 2003: 62). Os agentes, na sua socialização profissional das ruas,
estabelecem diferentes roteiros do policiamento e desenvolvem diferentes saberes
contextualizados que, com base no que foi dito, merecem agora ser sintetizados. Os
agentes apeados apoiam-se sobretudo num saber “toponímico” e observacional, num
saber pedestre. Nas suas itinerâncias vão olhando as placas com os nomes das ruas em
cada esquina e com a persistência dos dias acabam por fixá-los e por organizar
cognitivamente uma visão de conjunto. A imagem mental da área produz-se pela
experiência. A percepção do meio envolvente é um itinerário contínuo de movimento,
um “path of observation” (Gibson, 1979; cit. in Ingold, 2004: 331), estando a percepção e
a cognição dependentes do modo como se anda, da locomoção. “Walking is itself a form
of circumambulatory knowing” (Ingold, 2004: 331). Há uma inteligência do andar. Os
agentes interpelam alguns citadinos, mas podem passar-se muitos turnos em que não
iniciam contactos interpessoais e não são solicitados senão para informações
geográficas localizadas. Toda uma socialização profissional é feita através do
79
movimento pedestre, nas “enunciações pedonais” (De Certeau, 2000 [1990]: 109). Nas
primeiras vezes que pisam as ruas os agentes aprendem a não se perder no território e
a fazer-se socorrer pelo rádio que os liga à organização. Durante o período da
reciclagem, um mês em que geralmente são acompanhados por agentes mais velhos em
patrulhas a pé, é suposto que os agentes percam o “medo da rua” e que se reconheçam
como agentes da autoridade. Muitos polícias, quando começam a patrulhar a sós, apenas
vários meses depois, e à medida que se familiarizam com o território, se reconhecem na
função e na farda que vestem: “E viver com a pressão da farda e de na rua ser sempre
um alvo”, como referiu um agente.
28 Os agentes no carro-patrulha conquistam um saber “topográfico”, operacional, de
tendência mais actuante e legal. Por percorrerem a área em toda a sua extensão e
responderem a ocorrências em muitos lugares, estes agentes controlam um saber
intersticial dos contextos ímpar na organização. Tal saber leva-os mesmo a desafiar a
ordem hierárquica e a reafirmar as ruas como o “seu território”. Por exemplo, quando o
oficial de dia14 procura localizar um carro-patrulha nas longas madrugadas, os agentes
podem iludi-lo, estacionando em ermos e ladeiras da área que na hierarquia policial só
eles conhecem e “dominam”. Com os anos, e com a conquista da possibilidade de fazer
trabalho mais operacional, nas viaturas policiais, os agentes recentram a sua atenção
nos casos, situações, ocorrências, nos mitras. Há como que uma reaprendizagem de
funções que deixa de estar assente na relação directa com o território, mas antes o usa
para os seus fins. Sobretudo em turnos mais movimentados, as ruas são percorridas
para chegar a ocorrências. Estas são o intervalo de tempo-espaço entre o seu centro de
interesse: os distúrbios, as desordens, os eventos policiais. Ambos os serviços, patrulha
apeada e auto, são marcados por uma certa distância face aos citadinos, mantendo os
contactos e interacções sociais reduzidos ao mínimo. Por isso estes polícias dizem
trabalhar para o público. O lema que defendem é: “Não nos podemos envolver muito. Só
temos que resolver os problemas e seguir em frente, voltar ao giro...”. Com a
experiência são os saberes legais, convocados pelas ocorrências, que começam a tomar
lugar e a desenvolver-se.
29 Na proximidade os agentes implementam um “saber relacional e em rede”, um saber
que acaba por ser tão ou mais importante do que o dos colegas patrulheiros para a
manutenção de ordens socioespaciais locais, nesse equilíbrio entre ordens sociais e
morais alimentado pelas práticas microscópicas dos polícias, mas evocando agora
diferentes formas de autoridade (Goldstein, 1977). Por isso os agentes nos vários
programas defendem trabalhar com comunidades (de idosos, escolar, comercial) e
pessoas (velhinhos, alunos, funcionários, professores, lojistas). Neste serviço, a iniciativa
de contacto com pessoas para o estabelecimento de uma rede local de relações é o eixo
que orienta a actividade e leva a uma maior selecção das ruas e lugares a calcorrear. Na
experiência social local, os citadinos sabem distinguir um agente da proximidade de um
patrulheiro. Não que existam distinções materiais visíveis nas fardas. O
interconhecimento e a força da palavra informal – as narrativas e os rumores da cidade
(Roncayolo, 2003: 62) – criam esse saber partilhado.
30 Assim, se os agentes no carro-patrulha precisam de disponibilidade e dedicação, a
patrulha apeada e, sobretudo, a proximidade precisam da durabilidade do tempo para
se implementarem. O tempo histórico da proximidade é curto e, por isso, os seus
serviços ainda estão em larga medida por fixar, em particular numa escala mais ampla
80
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NOTAS
1. Este artigo apresenta alguns resultados da tese de doutoramento em Antropologia, financiada
pela FCT: “Patrulha e Proximidade. Uma Etnografia da Polícia em Lisboa”, ISCTE, 2006.
2. Os itálicos indicam designações oficiais e também as que decorrem da gíria profissional usada
entre polícias.
3. São cerca de uma dezena os bares, tascas, snacks e restaurantes sistematicamente frequentados
pelos polícias da área, quase todos situados nas ruas da parte de cima. Nesses estabelecimentos
negoceiam com os comerciantes algumas condições favoráveis a um consumo permanente,
persistente, mantido por todos os agentes desde que dão os primeiros passos na patrulha. Tão
importante como estar operacional é ir conjugando as rotinas com as pausas...
4. Devo recordar que os agentes mais experientes de uma esquadra têm por vezes autonomia
para fazer pequenos serviços à civil (algo excepcionais e que não constam no plano oficial de
trabalho), o que os leva a criar uma rede de relações intersticiais com informadores traficantes
ou ex-traficantes. Estes dizem que os informadores que vão conquistando, nas suas pequenas
investigações de rua, são “os seus únicos olhos”.
83
5. Lembre-se que o monopólio do uso da força tem sido identificado como a característica nuclear
do mandato policial (Bittner, 1980; Hunt, 1985).
6. O arvorado é quem se encarrega de intervir e de registar ocorrências no carro-patrulha. Esta é
a função mais valorizada na esquadra. O polícia tende a ser considerado um líder entre os agentes
do seu grupo de trabalho. Este é escolhido pelo subchefe directo dentre os mais experientes, o
que implica ter desembaraço nas situações e manejar algum saber legal. Assim, pode fixar-se
durante anos na mesma função. O condutor também tende a ser um dos serviços menos rotativos.
A organização beneficia de um agente que conheça as viaturas e que cuide de as manter, uma vez
que são bens raros numa organização que reclama a falta de meios materiais.
7. A nomeação das ocorrências e investigações é uma actividade da Polícia Judiciária que
começou a ficar conhecida nos media e que muitas vezes revela a tradução das operações policiais
para o exterior. Os polícias da ordem, PSP e GNR, que viram crescer nos últimos anos as
competências criminais – com a Lei, de organização da investigação criminal, n. o 21/2000 de 10 de
Agosto – tendem a fazer o mesmo em algumas situações mais enigmáticas ou de grande impacto
mediático.
8. Há uma norma moral entre agentes inultrapassável; nunca se recusa um pedido de ajuda ou
reforço, numa acção policial ou a um colega, numa rede de solidariedades própria da partilha de
uma mesma “condição policial” (Monjardet, 1996). Neste caso, o jovem de 23 anos, há um ano na
patrulha, ainda não conseguiu criar hábitos de alimentação e de sono que lhe permitam suportar
uma vida de turnos. Esta é a razão que os colegas atribuem ao mal-estar que se instalou nele há
várias semanas.
9. Os agentes apreciam geralmente a deferência nos encontros (Piliavin e Briar, 1964; Sykes e
Clark, 1975; Duneier e Molotch, 1999). Nos bairros da droga exigem-na. Jovens com uma atitude
desafiante, com estilos de vida considerados suspeitos ou ilícitos, em particular se identificados
como pertencendo a comunidades étnicas de não-nacionais, tendem a cair no centro das atenções
dos polícias. São os “citadinos-alvo” para os quais os variados léxicos policiais são criados.
10. A rua destes agentes é pontuada por emoções altas, que convocam a operacionalidade e o
despertar dos sentidos que os agentes resumem numa expressão: a “caça ao mitra”. As
ocorrências que envolvem perseguições são muito valorizadas e reforçam o sentido de trabalho
em rede. Quando um sujeito lhes escapa, os polícias usam o adágio: “Há mais marés do que
marinheiros”; crendo que no futuro próximo os delinquentes serão apanhados nas malhas
policiais.
11. Estas interacções entre agentes do carro-patrulha e citadinos são reduzidas e geralmente
circunscritas ao tempo-espaço da ocorrência. Tirando as situações em que são chamados a
resolver, ou em situação de pausa, os agentes conservam-se a maior parte do tempo no interior
das viaturas, em circulação, e limitam-se à interpelação de jovens considerados suspeitos.
12. Nesta esquadra a maior percentagem de registos é realizada pelos serviços da patrulha, 70%
do total. Destes, cerca de 60% correpondem ao trabalho do carro-patrulha.
13. Tal como a maioria das mulheres agentes, esta casou com um polícia que conheceu ainda no
curso de polícia, em regime de internato. Ficaram ambos na mesma esquadra. Sendo originários
de regiões próximas, do Norte do país, aí conservam os laços familiares e aí esperam regressar ao
fim de alguns anos, desde o início do percurso profissional. A organização ofereceu a
oportunidade ao marido ao fim de cinco anos de polícia. Ela aguarda em Lisboa, com o filho, a sua
vez, a sua transferência numa espera que pode prolongar-se em meses ou anos.
14. Este é um oficial dado à divisão, encarregue de surpervionar superiormente a actividade dos
agentes em cada turno nas várias esquadras da mesma. Todos os comandantes entram numa
escala de trabalho extraordinário, assegurando a supervisão formal em permanência, sobretudo
nos turnos da noite, quando os comandantes de esquadra e de divisão estão retirados.
84
AUTOR
SUSANA DURÃO
Antropóloga, Centro de Estudos de Antropologia Social, bolseira de pósdoutoramento da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
85
Introdução
1 Nos últimos duzentos anos a História das Cidades dá a conhecer diferentes regimes de
administração e de controlo dos traçados e das vivências urbanas nos espaços
colectivos (Hall, 1996). Com a emergência do Urbanismo enquanto disciplina, a rua e
outras formas urbanas construídas adquiriram o estatuto de objectos urbanísticos e de
figuras de planeamento e suscitaram controlos, adesões, rejeições e recriações eruditas
e populares. Progressivamente, as administrações ensaiaram diversas tentativas de
regulação dos tráfegos de natureza diversa que entravam, saíam e atravessavam as
cidades: dos veículos e dos animais às pessoas, passando pelos diferentes suportes de
transmissão de informação – correspondência, telégrafo, telefone, por exemplo – e
pelas redes de abastecimento de água, gás e electricidade.
2 Neste texto pretende-se explorar a ideia de rua enquanto lugar físico construído. Para
tal, tomar-se-á uma linha evolutiva da análise do fenómeno urbano que nos leva da
cidade industrial à metrópole contemporânea. Em ambos os contextos o foco será orientado
quer para os meios e condições de deslocação dos urbanitas, quer para a diferenciação
social e territorial do espaço urbano. A cada um destes tempos da cidade corresponderá
a apresentação de um caso que ilustra a dinâmica de uma época e de um modo de
construir na Lisboa do século XX. O primeiro caso, o do Bairro do Rego, é expressivo da
expansão da urbanização da cidade de Lisboa para Norte, nas primeiras décadas do
século XX, protagonizada por um elevado número de construtores e loteadores ao longo
de cerca de trinta anos1. O segundo caso, o do grande conjunto residencial de Olivais
Sul, constituído sobretudo por habitações de renda económica resultantes de iniciativa
pública durante o Estado Novo, traduz um esforço de planificação público levado a cabo
numa época em que Lisboa e os seus concelhos limítrofes começavam ser apreendidos
como uma região2. Daqui resultarão elementos de reflexão acerca dos modos de
86
12 Em Os transportes públicos de Lisboa entre 1830 e 1910, António Lopes Vieira refere que em
1909 “de um total de 1.995 terminologias topográficas em Lisboa (ruas avenidas,
travessas, becos, etc.) as avenidas e as praças entram apenas por 2 por cento, as ruas e
travessas por 42 por cento e as vilas, casais, escadinhas, becos, páteos, quintas,
boqueirões, caminhos, azinhagas, sítios, por 56 por cento” (Vieira, 1982: 51, nota 57). Na
Lisboa do começo do século XX, a designação rua encontrava-se em posição de destaque
face às raríssimas avenidas e praças e às ainda maioritárias designações associadas ao
universo rural e à cidade préindustrial.
13 Ora, é justamente neste contexto que surgem as Avenidas Novas, designação ainda hoje
em uso, resultantes da exploração da orientação para Norte do crescimento da cidade e
que formam um dos eixos principais de expansão do construído urbano do início do
século XX. Já planeadas no final do século XIX, estas ruas e avenidas ordenarão o
crescimento urbano num território que em finais de Oitocentos apresentava as
características de um “arrabalde rural” – na expressão de Mumford (1964 [1961]: 617) –
nem cidade, nem campo. Com efeito, o território adjacente à linha de cintura
apresentava, sob um fundo de quintas, equipamentos cuja localização era classicamente
periférica: o Hospital do Rego, instalado num antigo convento e destinado ao
tratamento da tuberculose, um Matadouro, uma pista de corridas equestres e algumas
fábricas.
14 Nos seus momentos de ocupação pioneira, as Avenidas Novas constituíram um bairro de
luxo e foram tidas como os novos Boulevards da capital. Nos lotes resultantes do
cruzamento das principais artérias, moradias projectadas por arquitectos e ricos
prédios de rendimento vincavam o seu carácter burguês. As suas avenidas foram
rasgadas por mão de planeador. Afiguravam-se mais largas, longas e funcionalmente
estruturadas. Integrando o ensanche de Lisboa, estas avenidas contribuíram
decisivamente para cunhar a forma do crescimento da cidade e para modelar o ritmo da
sua ocupação: por um lado, através da construção de prédios de rendimento, por outro,
abrindo caminho para a penetração para norte da rede de eléctricos e, mais tarde, de
autocarros e do metropolitano.
89
15 A margem das Avenidas, mas na sua dependência directa, a urbanização da zona aquém
e a\ém-linha de cintura desenvolve-se de modo diferente. Esse território, organizado por
antigos caminhos de saída da cidade – em direcção às zonas da Palma e, mais distantes,
da Luz – e pela linha de caminho-de-ferro de cintura, constituía ainda área de domínio
rural do limiar da cidade, ocupada por edificado improvisado, instalado em quintas e
fornecendo alojamento a uma população sobretudo operária. A relativa proximidade ao
apeadeiro do Rego e às linhas de eléctrico conferiam a este território a possibilidade de
ocupação residencial no contexto de crescimento da Lisboa de inícios de Novecentos.
16 E aí que num lapso de cerca de trinta anos é edificada uma série de bairros, contíguos às
Avenidas, que no seu conjunto dará forma a um recorte físico que ainda permanece no
essencial. Os seus nomes perderam-se nas sucessivas reclassificações urbanas
entretanto ocorridas – Bairro Bélgica, Bairro Santos, por exemplo – tendendo com o
tempo para uma designação unitária, em uso nos dias de hoje: o Bairro do Rego.
17 Os principais actores que dimensionaram o edificado deste bairro com a construção dos
seus bairros particulares foram construtores que transformaram terrenos seus, ou por si
adquiridos, em zonas de intensa edificação residencial. Esta maneira de construir
estava generalizada na cidade dos anos 20 e 30, e mesmo na cidade posterior, e é
reveladora do desordenamento urbano apontado por José-Augusto França (1997 [1980]:
84) que nos indica a esse propósito os exemplos do Bairro Brás Simões e do Bairro
Andrade.
18 O Bairro do Rego é construído na sua grande parte entre os primórdios dos anos 10 e o
final dos anos 30. Implanta-se então numa área dependente de um espaço central – as
Avenidas Novas, que são planeadas pelas autoridades municipais – distinto das
implantações vizinhas não planeadas. Mas esta diferenciação ao nível do espaço físico –
planeado vs. não planeado – sobrepõe-se a uma diferenciação socioresidencial.
19 Resultante de investimento privado realizado com base em planos particulares de
arruamentos e edifícios, o Bairro do Rego exemplifica um modo de fazer cidade: baseado
em investimentos fundiários de reduzida escala, na edificação de modestos prédios de
rendimento e na orientação para o alojamento das classes populares. A rua, para estes
protagonistas, surge neste contexto como suporte de investimento ao oferecer uma via
para o loteamento e uma sequência para a regulação da intensidade do investimento
construtivo. Papel fundamental parece ter sido desempenhado pelos poderes públicos,
autorizando os pedidos de abertura de ruas e participando na implantação das redes
básicas que, seguindo os traçados projectados das ruas, reforçaram as possibilidades de
ocupação duradoura daquele recém-edificado território urbano4
20 Mas os principais protagonistas foram sobretudo os construtores – quer os construtores
de bairros, quer os construtores de edifícios. Se a acção dos primeiros se baseava numa
organização em rede que tornava possível investimentos de maior escala, a acção dos
segundos era sobretudo marcada pela reduzida escala de edificação, na qual se
associava a construção do prédio à residência, à abertura de um negócio a ser instalado
na loja e ao arrendamento dos andares superiores. Deste ponto de vista, a rua é o lugar
estratégico para o investimento económico dos grupos sociais que participam na
edificação da cidade nova.
21 A partir da segunda metade do século XX muito do edificado das Avenidas Novas será
renovado e uma forte ocupação terciária aí terá lugar. Mas também a zona envolvente
ao Bairro do Rego se foi progressivamente alterando com a instalação de serviços
90
27 No final dos anos cinquenta do século XX, após a edificação do Bairro de Alvalade, o
crescimento de Lisboa havia já ultrapassado a antiga linha férrea de cintura e começava a
atingir locais outrora tidos como periféricos. O entendimento governamental
relativamente ao crescimento da cidade era fundado numa escala regional (Baptista,
1999) e numa organização da cidade em malhas resultantes da abertura e do
cruzamento de grandes vias de circulação projectadas e em construção. É para esta
malha urbana em devir que o governo orienta então a edificação de Habitações de Renda
Económica, regulando a sua construção a partir do decreto-lei n. o 42 454, de 18 de Agosto
de 1959.
28 Nesse texto legislativo, os espaços intersticiais às vias de circulação eram tidos como
particularmente adequados à construção de “unidades urbanas” e à regulação do
crescimento demográfico da capital e dos seus concelhos vizinhos. O decreto-lei
fundador, e a regulamentação subsequente produzida pelo Ministério das Corporações
e Previdência Social não só definia as regras de agenciamento dos capitais originários
das instituições públicas convocadas à participação no programa habitacional, como
estabelecia as proporções de cada uma das diferentes categorias de habitações a serem
construídas em cada agrupamento e os montantes máximos e mínimos de renda a
cobrar5
29 Estas habitações viriam a ser distribuídas por “categorias populacionais construídas
administrativamente” (Baptista, 1999), a partir da elaboração de critérios de selecção.
Os critérios mais influentes na “construção social das populações” (Chamboredon, 2001
[1985]) eram: a pertença de pelo menos um dos membros do agregado doméstico ao
regime de quotizações para uma Caixa de Previdência; o rendimento familiar; o (maior)
número de filhos; a (maior) idade dos candidatos; a presença de ascendentes a cargo do
agregado; a inexistência de registo de doenças infecto-contagiosas; e um critério de boa
conduta cívica ou moral. A Câmara Municipal de Lisboa era reservada uma
percentagem de 30% do total a construir a cada ano destinada a realojar populações
residentes em bairros de lata ou em regime de parte de casa.
30 Contudo, o decreto-lei n.° 42 454/59 era omisso relativamente à forma desejada de
cidade ou a critérios específicos de planeamento – à excepção de um principio de não
segregação das categorias habitacionais e da presença da tríade “mercado, igreja e
escola”, prevista para cada unidade. Assim, a Câmara Municipal de Lisboa e, mais tarde,
o Gabinete Técnico de Habitação, organismo criado na dependência da presidência do
município para dirigir a programação e o planeamento da edificação, dispuseram de
uma considerável margem de manobra. Uma vez definidas, por parte da CML, as malhas
para edificação das habitações de renda económica – Olivais Norte, Olivais Sul e Cheias –,
os trabalhos de preparação do plano de Olivais Sul iniciaram-se logo em 1960. A malha
de Olivais Sul era formada por um trapézio com cerca de 186 hectares, delimitado por
três grandes vias de circulação automóvel: a Segunda Circular, a oeste; a Avenida de
92
Discussão e conclusão
43 Na recensão a The death and life ofgreat amerícan cities, Herbert Gans (1972 [1962])
reconhece perspicácia à forma como Jane Jacobs apreende a vida das ruas, mas sublinha
que a sua crítica ao urbanismo incorre em dois equívocos. Primeiro, no que Gans
designa como a “falácia física”, o pressuposto de que o desenho das formas construídas
determina condutas urbanas e sociais:
“Mrs Jacobs (...) demands that middle-class people adopt working-class styles of
family life, child-rearing, and sociability. The truth is that the new forms of
residential building – in suburb as well as city – are not products of orthodox
planning theory, but expressions of the middle-class culture which guides the
housing market (...). But middle-class people, especially those raising children, do
not want working-class-or even Bohemian – neighbourhoods. Not all their social
life involves neighbours, and their friends may be scattered all over the
metropolitan area, as are the commercial and recreational facilities which they
95
frequent. For this, they want a car, express ways, and all the freedom of movement
that expressways create when properly planned.” (Gans, 1972 [1962]: 35-6)
44 Segundo, no que Gans considera ser o limite da análise aos padrões ecológicos urbanos –
no sentido de concentração de populações e instituições. Reconhecendo as
transformações ocorridas no povoamento, nas actividades e na procura social – ou no
abandono – da residência nos bairros históricos, onde as populações residentes e
visitantes – em especial de turistas – recriam nas suas actividades diárias novos padrões
de vida na rua, Gans defende que o foco da interrogação sociológica deveria incidir na
constituição e expansão do mercado de compra de casa própria, na concentração de
oferta de trabalho e de serviços nos subúrbios e na importância que o uso do automóvel
exerce na organização do estilo de vida. Processos que indiciam a emergência da forma
espacial metropolitana.
45 Ora, este plano de transformação da escala e de alteração de modos de vida, a que alude
Gans, vimo-lo analisado nas formas distintas como os traçados realizam funções de
coordenação da forma urbana e metropolitana. Intimamente relacionados com a
circulação e com a diferenciação social do território, as vias e os meios de deslocação
configuram acessos e influem no modo como a extensão das urbes produz e reproduz
desigualdades sociais. Intimamente relacionados com a edificação, os traçados
constituem também um elemento central nos processos económicos e urbanísticos de
expansão dos territórios urbanizados e nas condições de instalação e convivência das
populações. Esta conclusão é convergente com a análise de Mimi Sheller e John Urry
(2000). Os autores salientam que se as consequências da urbanização conduzem à
intensificação dos habitats humanos e à concentração dos lugares no espaço, já os
processos de automobilização acarretam a extensão e a dispersão de habitats e lugares e a
possibilidade de constituição de sociabilidades extralocais. Os dois processos, de
urbanização e automobilização, “são em conjunto característicos da modernidade e da
cultura das cidades” (2000: 742).
46 Finalmente, as duas operações concretas de materialização do edificado urbano
convocadas para análise evidenciam as sucessivas moldagens que os traçados e os
espaços urbanos das novas zonas urbanizadas vão sofrendo. Quem promove e edifica? A
quem se destina o habitat edificado? – são questões pertinentes para compreender como o
efeito rua funciona num contexto social específico: seja a rua residencial, de comércio,
de lazer ou de trabalho. A resposta a estas questões contribui para interpretar a cidade
nas suas múltiplas dinâmicas: (1) dá a conhecer as teias de relações e de interesses nas
quais os agentes implicados no fazer da cidade se posicionam e actuam; (2) restitui os
significados que esses mesmos agentes atribuem à rua, evidenciando o sentido
conferido às suas próprias práticas de apropriação da cidade.
96
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NOTAS
1. O caso baseia-se em investigação original (Baptista, 1987 e 1994) sobre o crescimento urbano e
a coexistência socioresidencial, realizada na 2.a metade da década de 1980.
2. O caso baseia-se em investigação original (Nunes, 2000, 2001, 2003 e 2007) sobre a
programação, o planeamento e a arquitectura de Olivais Sul, realizada no final da década de 1990.
3. Um importante segmento de análise, que não cabe no presente texto, levaria em linha de conta
casos em que as mudanças no edificado, no povoamento e no valor social e urbano dos territórios
se fundassem em processos de gentrification ou na mudança radical de usos e actividades,
98
AUTORES
JOÃO PEDRO SILVA NUNES
Sociólogo, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE, bolseiro de pós-
doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
O PROJECTO DA MATRIZ H
(fotografia da autora).
galerias e pontes, que dariam origem a uma variedade de ligações a diferentes níveis
entre edifícios e, por conseguinte, a todo o tipo de possibilidades de circulação e de
encontro entre os habitantes deste conjunto.
13 O espaço da rua central, destinada à circulação pedonal, não é estranho a esta filosofia.
Além de dar continuidade às “faixas centrais de vida urbana intensa”, preconizadas
pelo Plano de Urbanização de Cheias, seria, nas intenções do projectista, um espaço
destinado às relações sociais ligadas tradicionalmente à rua, como acontece nos bairros
históricos da cidade. A referência às vilas e pátios da cidade de Lisboa, cujas soluções
arquitectónicas, pela forma de associação dos fogos, expressam bem o espírito de
espaços comunitários, aparece claramente na organização dos acessos às habitações.
Havia uma forte intencionalidade em propor, numa linguagem arquitectónica moderna,
todos aqueles valores de vida ainda identificáveis nos bairros populares da cidade, de
dar suporte material àqueles contextos, nos quais ocorre a referida densificação de
laços sociais e formas simbólicas, envolvendo especificidades culturais que, de algum
modo, resumem os conteúdos da imagem mais habitual e mais divulgada de bairro
popular (Cordeiro e Costa, 1999: 59-79).
Os habitantes
14 As populações realojadas na Matriz H podem, de facto, ser enquadradas nas camadas
populares. Ilustram os processos demográficos que estiveram na base do crescimento
populacional da zona oriental da cidade, no início do século XX. Nascidos
maioritariamente no Concelho de Lisboa e, também, oriundos dos PALOP, os habitantes
da Matriz H pertencem às categorias de “assalariados menos providos de recursos
económicos, qualificacionais e organizacionais” (Costa, 1999: 226). O grau de
escolaridade médio é a antiga 4,a classe 8. Os rendimentos médios dos agregados
denunciam um quadro de relativa pobreza, cujas razões se encontram representadas no
tecido socioprofissional, formado sobretudo por serventes, operários da indústria, ou
de oficina, que trabalham nas imediações da área de Cheias, por trabalhadores ligados à
construção civil e alguns vendedores ambulantes (que continuam as suas actividades
ligados à feira dominical do “Relógio”), num regime de trabalho precário, informal e
marginal. Aparecem empregados e empregadas de estabelecimentos comerciais e de
serviços de limpeza com a sede de trabalho no centro da cidade, com a qual existe esta
relação económica de dependência, pois o Bairro da Flamenga não oferece, por
enquanto, oportunidades de emprego como estava previsto no Plano de Urbanização de
Cheias. Do conjunto das profissões da população da Matriz compreende-se que o
universo das camadas populares é amplo, variado e heterogéneo com uma grande
segmentação profissional entre os homens em contraste com a situação bastante
homogénea das mulheres.
15 O tipo de família predominante é o agregado familiar simples, formado pelo casal dos
pais, prevalentemente jovens, ou mães solteiras, ou divorciadas, e pelos filhos solteiros
(de 1 a 9). Em alguns casos os filhos, que constituem um novo núcleo familiar, ficam a
residir na mesma casa dos pais, pelo que o número de famílias alargadas é bastante
significativo, com a presença de outro parente ou de afilhados e netos. Deste retrato
esquemático resulta uma imagem em parte ligada ainda aos problemas sociais que
caracterizam as classes populares nas suas estratégias de integração nos sistemas
organizacionais e de valores impostos pelas culturas hegemónicas da sociedade
103
17 Delimitada pelas fachadas interiores dos edifícios, a rua central da Matriz H apresenta-
se como uma rampa comprida e larga, inclinada no sentido descendente em direcção à
Rotunda da Bela Vista (Figura 2). A partir da rua central tem-se acesso ao “coração” da
Matriz H. Entra-se num ambiente doméstico, familiar e aparentemente sereno: vêem-se
crianças a jogar em grupo, a andar de skate ou de bicicleta, aproveitando o desnível
acentuado e as características favoráveis do piso, sem obstáculos pelo meio; ouvem-se
as vozes das suas brincadeiras; vêem-se mulheres, solitárias, debruçadas às janelas ou,
formando pequenos grupos, apoiadas nas guardas dos patamares das escadas, abertos
para a rua, como se fossem varandas, a falarem entre elas, enquanto controlam
discretamente a “entrada” de algum estranho na Matriz.
104
(fotografia da autora).
habitantes ou, de outra forma, dos significados que os habitantes atribuem a este
espaço, mas sim do grupo que a concebeu.
23 Este espaço, aparentemente público, aberto para o exterior, idealizado para realizar
uma comunicação constante e intensa com outras áreas do bairro e zonas mais
longínquas do território de Cheias, é um espaço fechado sobre si próprio, no qual as
redes de vizinhança actuarn como meio de controlo e protecção em relação ao exterior.
(fotografia da autora).
27 Aparentemente, esta pequena “praça” é a que mais claramente se poderia definir como
o espaço público deste conjunto habitacional, no sentido de um lugar de sociabilidade
que pode eventualmente sair do âmbito das relações de vizinhança mais estritas e das
redes de controlo das interacções indesejadas que actuam, internamente, quer sobre os
residentes, quer sobre os estranhos. O facto de se tratar de um cruzamento importante,
entre a Av. Dr. Arlindo Vicente, uma das ruas principais da circular que rodeia o bairro,
106
(fotografia da autora).
32 Pode-se assim distinguir um espaço masculino, mais ligado ao exterior, nos passeios
exteriores junto à via pública ou na galeria onde se encontram os cafés e o pequeno
comércio da Matriz e um espaço feminino, mais ligado à soleira da casa, aos espaços que
fazem a mediação entre o domínio doméstico e o domínio das relações de vizinhança 12.
(fotografia da autora).
41 Outros sinais ou marcas de uma apropriação do espaço com leituras contraditórias são
as grades, cortinas, marquises e, mais vulgarmente, as persianas sempre fechadas, que
enfeitam as janelas da Matriz H, que podem ser interpretadas como fruto de uma
tendência à ostentação, a qual tem um significado social, testemunho de um tipo novo
de relação com a habitação (Figura 6).
(fotografia da autora).
Conclusões
45 A observação continuada das práticas decorrentes nos espaços públicos da Matriz H
permite concluir que a riqueza e a variedade das relações sociais estão definitivamente
ligadas ao sistema articulado e complexo de diferentes modalidades de circulação e
acessibilidade que o projecto de arquitectura tinha idealizado. A satisfação das
necessidades acontece no quadro da experiência relacional e não apenas funcional, de
onde resulta que os espaços vividos assumem uma enorme variedade de soluções
possíveis e se tornam suporte material de práticas sociais e representações simbólicas
de uma cultura urbana local.
46 Considera-se que o principal contributo desta abordagem interdisciplinar a um objecto
arquitectónico, ícone das modernas sociedades complexa, e aos seus habitantes consiste
em dar alguma visibilidade a uma realidade muitas vezes ignorada ou simplesmente
desqualificada como culturalmente subalterna.
47 A abordagem antropológica teve como consequência uma constante problematização
dos factos observados. Ao tomar conta das variáveis de perturbação da ordem
preconcebida e institucionalizada, para dar voz a uma realidade sensorial, subjectiva,
relacional e polissémica, concentrou-se a atenção sobre um fragmento, sobre um
pequeno núcleo significativo pela sua singularidade, irredutível a categorias definitivas,
para deste modo estudar a arquitectura à escala do indivíduo.
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NOTAS
1. A investigação foi realizada no âmbito do curso de mestrado em Desenho Urbano 1997/98 do
ISCTE, sob a orientação da Professora Doutora Graça índias Cordeiro, tendo sido a base de
discussão para a dissertação final apresentada em 2002 (Farina, 2001).
2. O “lugar”, no sentido especificado por Norberg-Schulz, é a manifestação concreta do habitar do
homem, cuja identidade depende da pertença aos lugares. O lugar é parte integrante da
existência, é feito de um conjunto de elementos totalmente qualitativos, ligados à experiência
subjectiva (Norberg-Schulz, 1979: 6).
3. Em relação a este tema ver o texto de Lamas (1988: 352, 355). A exaltação social da
Arquitectura, na década de 20, foi de tal ordem que a casa para o povo passou a ser o maior
monumento do século XX (Vilanova Artigas, 1989: 13).
4. O Bairro da Flamenga corresponde à Zona Nl do Plano de Urbanização de Cheias, da autoria dos
arquitectos José Rafael Botelho, Silva Dias e Reis Machado, em 1965.
5. O projecto de arquitectura da Matriz H, datado entre 1978 e 1982, é da responsabilidade do arq.
Raul Cerejeiro, arquitecto do extinto Gabinete Técnico de Habitação (GTH) da Câmara Municipal
de Lisboa. “Após de 25 de Abril de 1974, foram alterados, não só o conceito de habitação social,
como o modo de conseguir os respectivos projectos. Assim, foram abandonadas as quatro
categorias previstas no D-L n.° 42 454, instituindo-se a categoria única, cujas características
corresponderiam a um misto de anteriores categorias II e III; quanto aos projectos, deixou de ser
113
13. Através do Gabinete de Bairro, a população solicitou ao arquitecto Raul Cerejeiro a alteração
do sistema de acesso às habitações, criando a porta de entrada a cada lote e fechando os vãos de
escadas respectivos.
14. As fronteiras são selectivamente permeáveis: algumas pessoas são admitidas ou excluídas,
assim como vários domínios e estruturas podem penetrar profundamente e outras muito
superficialmente. O conceito de fronteira remete para o conceito de espaço de mediação, porque
é nesta categoria de espaço que se estabelece o grau de intimidade na interacção face-a-face, e
que se define um código de comportamento aceite por todos (Rapoport, 1994: 482).
15. Esta questão introduz o problema da definição da categoria sociológica de “estranho”, para a
qual George Simmel (1908) fez uma distinção significativa entre “culturalmente estranho”, ou
seja, alguém que ocupa um mundo simbólico diferente do nosso, e o “estranho biográfico”, ou
seja, aquele que nunca encontrámos antes. Ambas as categorias são importantes na definição das
práticas de interacção no espaço público (Lofland, 1998: 7).
16. Poderiam ser incluídos naqueles tipos de espaços que Kevin Lynch define como sendo
categorias de interesse directo para o design, pois descrevem qualidades de que um desenhador se
pode servir como é o caso do alcance visual, “qualidades que aumentam e organizam uma
possibilidade de visão, quer real quer simbólica”. Estas qualidades incluem as transparências,
realizáveis através do uso de paredes de vidros ou de edifícios assentes em pilares (Lynch, 1960:
118-119).
17. “Sociedade de bairro como as que se encontram em Alfama ou na Bica surgem pois, como
casos de um tipo especial de configurações sociais, caracterizáveis pela redundância estruturante
de um conjunto de dimensões interligadas: não só espaços residenciais mas também formas
urbanas particulares, quadros sociais densos e multifacetados, sedes privilegiadas de
sociabilidades, cenários de produção cultural própria e referentes de representações identitárias
destacadas” (Cordeiro e Costa, 1999: 73).
18. A inspiração estética subjacente às paisagens urbanas modernas, originada pela criação de um
estilo apropriado à produção industrial em massa, exclui quaisquer pormenores feitos à mão e
qualquer sinal de trabalho especializado que chame a atenção (Relph, 1987: 216-219).
AUTOR
MONICA FARINA
Arquitecta.
115
Introdução
1 Nos catálogos bibliográficos de estudos urbanos podemos encontrar o título A Street
through time, uma obra ilustrada (Millard et al., 2000) que procura mostrar as alterações
na arquitectura e nas práticas culturais de uma mesma rua, página após página.
Ilustrador e autor científico fazem o percurso histórico de uma rua ao longo de 12 mil
anos. É um livro didáctico, em que as palavras são substituídas pelas imagens,
imaginadas de acordo com conhecimentos adquiridos. Para quem tivesse dúvidas,
mostra como uma rua é dinâmica. Nele, o que mais salta à vista é a transformação dos
edifícios e dos espaços em seu redor ao longo dos tempos. Mais de perto, encontramos
diferentes modos de vestir, de cultivar a terra, de cozinhar, mas as casas e outros
edifícios são o que melhor manifesta a dinâmica da rua em causa. Este preâmbulo ao
artigo serve como uma espécie de modelo de estudo sobre a rua. Infelizmente não
podemos passar 12 mil anos a fazer trabalho de campo, mas podemos, à escala dos
estudos urbanos, contextualizar um espaço dinâmico como o é uma rua. Contextualizar
histórica e geograficamente, perceber os contornos sociais, entre outras pequenas e
grandes escalas de observação.
2 O contexto local que será explicitado neste artigo é também um espaço muito curioso
onde podemos observar como se vai transformando uma rua. Um bairro de habitação
precária1 e suas transformações serve de pano de fundo às dinâmicas por que
atravessam as pessoas que lá vivem. Localizado na ponta nordeste de Lisboa, a norte do
Parque Expo, o Bairro da Quinta da Vitória faz parte da Freguesia da Portela, Concelho
de Loures. Apesar de multiétnico, o enfoque da investigação é feito sobre a população
hindu local que é maioritária no bairro (47%). A investigação da qual exponho aqui
alguns resultados2 tem privilegiado a análise situacional, de acordo com Agier (1999)
116
bem como as propostas holísticas de Leeds (1994 [1968]). De facto, a escolha de um local
onde a maior parte da observação é realizada requer – em Antropologia Urbana ou não
– preocupações de enquadramento por parte dos investigadores. Além disso, ao
escolher a rua como unidade de observação e tendo em conta um trabalho de
aproximação ao terreno já enraizado, a análise situacional sobressai naturalmente
como forma de abordagem teórico-metodológica.
Contextualizando o bairro
3 O bairro em causa é um bairro com muitas transformações recentes. Até há poucos anos
era um bairro de habitações degradadas, com populações de várias origens étnicas, que
foram dando vida ao bairro desde o final dos anos 1960 até à actualidade. O bairro foi
alvo de um recenseamento em 1993, no âmbito do Programa Especial de Realojamento
(PER)3, que resultou em 2002, em termos objectivos e até à actualidade, no realojamento
de uma terça parte da população inscrita no PER. Esse realojamento foi feito num
quarteirão de prédios contíguo ao bairro de barracas, e é esta a transformação daquele
espaço que serve de ponto de partida para a investigação em curso, uma vez que a
proximidade dos dois bairros (de habitação precária e de realojamento) é muito
acentuada e reflecte uma situação rara4. À semelhança de outros bairros abrangidos
pelo PER no Concelho de Loures, a Quinta da Vitória é um bairro com populações
sobretudo oriundas dos países africanos ex-colonizados por Portugal, e com uma
população de origem portuguesa (sobretudo do Norte do País), mas com a
particularidade de ser mais diversificado etnicamente do que os outros bairros. A
população com quem trabalho directamente é de origem indiana, tendo imigrado
sobretudo de Moçambique, no princípio dos anos 805. A situação histórica pós-colonial é
aqui incontornável, sobretudo como utensílio de contextualização. As actuais relações
entre populações imigrantes com uma história de colonização recente e populações de
acolhimento do outro lado da relação, isto é, como ex-colonizadores, têm reflexos do
passado que não devem ser perdidos de vista.
4 A primeira fase do realojamento, referida anterior mente, provocou a demolição das
casas de um dos lados de uma rua do bairro e foram as pessoas que residiam nessas
casas que foram realojadas. Dos prédios onde as famílias foram realojadas pode ver-se o
que restou do bairro e, principalmente, o espaço que sobrou na sequência das
demolições. Convém explicitar que o bairro social, além da população que veio do
bairro de barracas em frente, tem uma população, muito maior, que veio de vários
bairros degradados de Lisboa, de origem cigana6. A rua destituída de edifícios de um dos
lados, mais o espaço que sobrou das casas demolidas, corresponde geograficamente à
fronteira entre o Concelho de Loures e o Concelho de Lisboa; por isso, o bairro de
habitação precária está em Loures e o bairro social está em Lisboa, configurando uma
situação de fronteira que não pode ser negligenciada. Uma fronteira administrativa
entre os dois concelhos, com implicações directas no quotidiano das pessoas mas
invisíveis a olho nu, tal como o acentuar da burocratização no acesso aos serviços de
saúde, justiça, segurança social, emprego. Há ainda uma fronteira identitária
relativamente a quem mora nas barracas e quem mora no bairro social, ou seja, quem
obteve o realojamento mais cedo do que outros que continuam à espera.
117
Figura 1 – Vista parcial do Bairro Quinta da Vitória, a partir dos prédios de realojamento do Bairro
Alfredo Bensaúde, Agosto de 2003
(fotografia da autora).
5 Voltando à obra referida no início deste artigo, é um livro que hesitamos entre vê-lo de
trás para a frente ou do princípio para o fim. E isto é um pouco como escolher a via de
análise de um objecto de estudo urbano: devemos fazer a história do bairro seguindo a
documentação existente e depois analisar os percursos de vida, ou devemos partir das
inquietações dos moradores no presente, abrindo os círculos que contextualizam esse
mesmo presente no tempo e no espaço? À partida esta imagem dos círculos é mais
atraente como forma narrativa, com uma lógica mais eficaz. Mas os percursos e a linha
dinâmica passado-presente acompanham as transformações do bairro e dão significado
– ao bairro e à pesquisa em si. A escolha faz-se com o desenrolar da investigação, mas
percebe-se que olhar para a rua, pensar a rua e passar por ela (e não só pelas casas e
pelos locais de encontro em geral) ajuda – pelo menos no caso da Portela – a manter os
pés académicos na terra e a pôr questões que estão, necessariamente, mais próximas
das pessoas: é que são elas que habitam as ruas.
6 Relativamente aos habitantes do bairro: quem são e o que representam? Os moradores
da Quinta da Vitória são vistos, por um lado, como o bode expiatório dos males sociais,
efeito de um estigma sobre as populações dos bairros de habitação precária e, por
outro, como matéria prima para os discursos multiculturalistas. É, sem dúvida, uma
população multiétnica. Mas o universo de pessoas com quem trabalho é a
“comunidade” hindu7 local e alguns trabalhadores sociais. Os hindus da Quinta da
Vitória são a população que me parece concentrar mais factores interessantes para
observar e analisar naquele bairro. E é aqui que entra a rua. Segundo Missaoui, é a
observação da rua e o que ela nos mostra que nos permite compreender e analisar as
constantes batalhas da identidade e da alteridade (Missaoui, 2005: 212). Ou seja, é na
rua que melhor podemos observar os fenómenos de diferenciação cultural como aquele
que descreverei em seguida.
118
Implicações do realojamento
7 Neste bairro em concreto há um jogo de relações interétnicas que não é muito comum,
nem nos bairros de barracas nem nos bairros de habitação social. Como é do domínio
geral, em muito casos o PER reproduziu a segregação social das minorias étnicas
aumentando as tensões sociais nas zonas segregadas, potenciando o risco de
acontecimentos semelhantes aos de final de 2005, nos subúrbios das grandes cidades
francesas8. Em diversos bairros sociais da Área Metropolitana de Lisboa a constatação
da omnipresença de um ambiente de conflito e da existência de uma imagem negativa
sobre os próprios bairros (Pinto et al., 2000:107) é uma constante e não é novidade para
as ciências sociais. No contexto da Quinta da Vitória há os novos vizinhos que vieram de
vários bairros degradados de Lisboa. As relações que se desenvolvem entre hindus e
ciganos, por exemplo, são relações cautelosas. As pessoas sabem que têm modos
diferentes de estar, mas não querem provocar conflitos uns com os outros. Às vezes
quase que desistem; outras vezes inventam novas formas de estar, através de zonas de
evitamento, de cruzamento, de convívio. Mais uma vez, isto não é específico do caso da
Portela. As estratégias de evitamento constituem em tema recorrente na literatura
antropológica, desde as monografias clássicas aos estudos de caso contemporâneos.
8 A rua de maior actividade na Quinta da Vitória – o bairro de habitação precária – era a
chamada Rua A, de terra batida. Com a demolição das casas num dos lados dessa rua e
com o realojamento parcial no vizinho bairro social da Avenida Alfredo Bensaúde, o
espaço onde estavam as casas é reinventado, apesar de ter sido delimitado com uma
rede. As pessoas abrem brechas na rede, fazem hortas, casotas para cães, espaços de
churrasco e capoeiras. No espaço da antiga rua fazem-se pequenos campos de futebol,
joga-se críquete e malha. Actualmente, a rua mais evidente, isto é, o espaço de
circulação aparentemente mais vivido, tendo em conta a população em estudo, é a rua
que está mais próxima dos dois bairros em simultâneo, uma rua construída em alcatrão
que delimita o bairro social. Em certa medida, a concentração da circulação nesse
espaço dá-se por ser uma zona de fronteira entre os dois bairros. Contudo, a observação
das interacções de bairro faz sobressair determinadas zonas do bairro que não
correspondem necessariamente a ruas. No caso em concreto, há uma zona do bairro
que faz a ligação entre o bairro de barracas e o do realojamento, no final da rua atrás
referida, que é também a zona de acesso a uma das escolas. É aí que se situa o novo
templo dos hindus. Conhecendo a comunidade hindu e o seu calendário preenchido,
não é difícil perceber o rodopio à volta do novo espaço de culto 9. Mas há mais coisas a
acontecer no bairro, além da ocorrência das cerimónias hindus no interior do templo.
Por um lado, a população cigana do bairro social, enquanto não tem um espaço legal
para o culto, ocupou uma parte da zona das garagens10, em baixo do templo hindu, para
as suas actividades religiosas. Por outro lado, é por aquela zona do bairro que param
quase todas as crianças e respectivos encarregados de educação, a caminho da escola e/
ou dos tempos livres. Além disso, mais do que a rua que separa os dois bairros, esta
zona tornou-se no percurso pedonal preferencial entre bairro de habitação precária e
bairro social. Final mente, um dos principais acessos por automóvel passa por ali.
119
caso, o controlo do espaço-rua é mais uma projecção da restante população do que uma
ambição própria. Por exemplo, a população hindu do bairro reitera medos antigos, que
remontam à guerra civil em Moçambique, motivo principal de migração para Lisboa.
12 O segundo tipo de controlo do espaço-rua pode ser identificado através da população
cigana, que habita grande parte do bairro social e que, enquanto comunidade, é muito
mais recente do que a restante população daquela zona. A semelhança do que se passa
noutras zonas da cidade e do país, é uma população fortemente estigmatizada e são
vistos, em primeiro lugar, como pessoas de difícil relacionamento (Duarte et al., 2005).
Os ciganos do bairro social dominam o espaço, e essa dominação é particularmente
patente na ocupação das lojas dos prédios desabitadas para efeitos de habitação dos
núcleos familiares que não tiveram direito a uma casa naquele bairro social e ainda
pelas carrinhas de transporte de mercadoria, em constante movimento nas ruas do
bairro social. Raramente vão ao Bairro Quinta da Vitória. Para o observador ocasional, o
domínio do espaço pelos ciganos é muito significativo e parece haver uma divisão
cultural total entre o bairro social e o bairro de barracas.
13 Quem quebra essa linha invisível entre os dois bairros? Quem passa a fronteira sem
hesitar? Até há pouco tempo, grande parte do trabalho de terreno desenvolvido na
Quinta da Vitória evidenciava que o regime de evitamentos passava sobretudo pelo não
atravessamento da fronteira entre o bairro social e o bairro de habitação precária. A
não transposição de um bairro para o outro revelava-se uma situação estranha; mas,
prestando mais atenção, estas fronteiras são de facto passadas; quem o faz sem hesitar é
a população hindu, que nos fornece um terceiro tipo de controlo do espaço ou, pelo
menos, uma forma diferente de chamar a atenção sobre si. O que distingue e torna a
população hindu do bairro mais visível não é a especificidade religiosa em si mas sim o
facto de habitarem tanto na Quinta da Vitória como no bairro social, terem lojas nos
dois lados do bairro e um templo no limite do bairro social que fica mais perto das
barracas. As suas práticas religiosas de rua, que serão explicitadas infra, são mais visíveis
porque acontecem dos dois lados do bairro, ao contrário das práticas culturais das
outras populações em causa. Podemos mesmo falar numa espécie de poder simbólico
dos hindus no bairro, no sentido de Bourdieu11 (1994], O capital cultural dos hindus
permitelhes serem reconhecidos pelos demais através, precisamente, da visibilidade
que têm. O poder simbólico desta comunidade não pode, contudo, ser entendido à la
lettre, uma vez que as categorias de percepção desse poder não são as mesmas entre as
diferentes etnias em presença. O que é certo, por ora, é a estranheza e o interesse
suscitado nos outros pelas práticas culturais hindus, sobretudo no que diz respeito às
práticas realizadas na rua. Não obstante, há factores que podem pôr em dúvida o capital
simbólico dos hindus sobre as outras populações. A ameaça de violência – latente e,
sobretudo, baseada em estigmas – dos ciganos e dos africanos que ah vivem é o factor
que mais contribui para hesitar em dizer que os hindus detêm um maior capital
simbólico no bairro.
121
Figura 3 – Templo Jai Ambe, Bairro Alfredo Bensaúde, janmastami, Agosto, 2005
(fotografia da autora).
14 Se há dúvidas sobre quem domina as mas, essas dúvidas são de alguma forma dissipadas
através dos rituais hindus que passam pelas ruas dos bairros. As frequentes actividades
religiosas dos hindus, antes do mais, ajudam a atenuar o efeito de fechamento em casa
que é característico dos realojamentos em bairros sociais. Durante a fase inicial da
realização do PER em vários concelhos da Área Metropolitana de Lisboa houve uma
produção singular de artigos sobre habitação social em Portugal e um investimento do
Estado e dos municípios no debate sobre as questões ligadas à habitação. Ao longo dos
anos 90 produziu-se uma série de seminários e conferências subordinados ao tema,
participados e assistidos não só pelos especialistas como pelos técnicos que então
punham em prática o PER. Parece haver concordância quanto ao facto de, nos primeiros
tempos nas novas habitações, haver uma tendência para a individualização e
privatização dos modos de vida, que se manifesta no isolamento das famílias e
fechamento dentro dos espaços domésticos, enfraquecendo as relações de vizinhança.
Freitas alerta para esta situação sublinhando a ideia de que os ganhos de privacidade
produzidos pelo realojamento são pagos com custos de maior isolamento social. A
autora fala mesmo em efeito de concha – “duplo fechamento espacial e societal num
espaço vital com fronteiras bem definidas e bem mais restrito” (Freitas, 1994: 30). Ora, o
intenso calendário hindu e respectivas cerimónias religiosas produzem uma vantagem
social para a população hindu da Quinta da Vitória relativamente a outras populações
locais, uma vez que os rituais domésticos obrigam a uma ocupação quotidiana das
famílias e os rituais colectivos dentro e fora do templo são recorrentes ao longo do ano.
A rua ritualizada
15 O sentido do espaço-rua do bairro é sublinhado nos dias das cerimónias hindus. Há uma
actividade constante por parte da população hindu levando ofertas ao templo e
122
(fotografia da autora).
123
Figura 5 – Percurso entre o Bairro Alfredo Bensaúde e o Bairro Quinta da Vitória, janmastami,
Agosto de 2005
(fotografia da autora).
Considerações finais
19 Embora a produção teórica sobre as ruas tenha sido uma constante na Escola de
Chicago, porque surgia como uma evidência nos bairros e populações estudados, a rua
enquanto objecto de análise per se, subordinada aos estudos urbanos e tendencialmente
transdisciplinar, é recente. Em 1968 Petonnet publicava uma obra que viria a abrir o
vasto programa de estudos sobre habitação degradada e mais tarde sobre habitação
social em França. Apesar de não ser o objecto central de análise do seu estudo, a autora
imergiu nas ruas dum bidonville, fazendo uma descrição do bairro, quase em forma de
reportagem jornalística, onde denunciava as condições de vida dos seus habitantes e
dava relevo às vivências de bairro, constituindo um marco na sociologia urbana. Quase
40 anos depois, a mesma autora é convidada para fazer a síntese de uma antologia
dedicada ao estudo das ruas (Brody, 2005). Petonnet motiva os investigadores dizendo
que a rua é um espaço muito democrático. Nela, não é o dever que prevalece, mas o
direito, partilhado, de ali passar a toda a hora (Petonnet, 2005: 299). Também a rua de
um bairro como a Quinta da Vitória é atravessada a toda a hora por quem precisa de lá
passar.
20 Há dez anos Agier comentava que “tributários de um a priori ecológico, os estudos
urbanos opuseram simultaneamente a rua à casa” (1996: 55). No caso dos bairros sociais
em Portugal os estudos sobre a rua que contrariam uma visão negativa dos fenómenos
urbanos são muito escassos – com excepções como o estudo de Monica Farina (2001)
sobre um dos bairros de Cheias. Em geral, a casa de habitação social é focada sobretudo
como local de fechamento social por excelência, por oposição à edílica rua do bairro de
habitação precária. O interesse analítico dos rituais escolhidos, mais do que a sua
125
descrição em si, está na importância que esses rituais representam para a população
que os preconiza e para a população que os observa. E isto faz pensar que, cem anos
depois de A metrópole e a vida do espírito” (1997(1903]), há algo em Simmel que parece
continuar a fazer sentido. Dizia ele que, “para muitas pessoas, a estratégia de captação
da atenção de outrém continua a ser a única forma de preservar alguma auto-estima e
de salvaguardar o seu sentido de lugar”. É algures no meio destas ideias – e observando
os rituais – que se percebe o poder simbólico captado pelos hindus no bairro. A
principal forma de diferenciação em relação às outras populações é feita através de
elementos culturais fortes, imprescindíveis para a continuidade da comunidade hindu
local. Sublinhando a ideia anterior, são os rituais-performance de rua que dão
consistência à diferenciação cultural local e, em última análise, ao capital simbólico dos
hindus.
21 A observação de um espaço como o Bairro Quinta da Vitória e o vizinho bairro social
obriga a olhar para a rua e para as casas. Segundo Monica Farina, referida
anteriormente relativamente ao seu estudo realizado num dos bairros sociais de Cheias,
os lugares no bairro podem ser familiares, afectivos, de identificação e de interdição
(2001: 34-5). Na Quinta da Vitória, tendo em conta que as casas (tanto as barracas como
os novos alojamentos em habitação social) são visitadas quase exclusivamente por
membros das mesmas comunidades étnicas, é nas ruas que mais se vêem as pessoas
cruzar-se e fazer dos vários espaços do bairro precisamente espaços familiares,
afectivos, de identificação e de interdição. A convivência entre as diversas comunidades
vai sendo negociada com o passar do tempo e é potenciada com as transformações
físicas do bairro. Experimentar olhar para as formas de viver as ruas é, por fim,
experimentar uma forma de estar mais próxima das pessoas com quem estudamos e de
evitar que a análise doutros aspectos do bairro seja feita de forma distanciada, de cima
dos prédios.
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NOTAS
1. O termo mais referido para substituir o desusado bairro de lata é aqui utilizado sem
compromissos teóricos; serve apenas para enquadrar o tipo de espaço, em termos gerais. Convém
especificar que esta forma nem sempre serve a clarificação do contexto, uma vez que nem todas
as casas destes bairros são habitações precárias. Do mesmo modo, a habitação social como
oposição a habitação precária configura uma situação que pode ser falaciosa, pois a habitação
social pode ser precária.
2. Inserida no projecto de doutoramento intitulado: A conjuntura de um bairro em vias de
realojamento: Dinâmicas associadas à comunidade hindu da Quinta da Vitória (FCT/ISCTE 2004-2008).
3. D-L n.o 163/93, de 7 de Maio. Apesar de alterado em alguns decretos posteriores, o D-L manteve
o seu propósito geral de erradicar as barracas em Portugal. Previsto inicialmente para ser
executado em 10 anos, alguns municípios com maior número de núcleos (bairros) inscritos, como
é o caso de Loures, prolongaram a sua execução.
4. A título de exemplo, no caso da Quinta do Mocho, também no concelho de Loures, o
realojamento foi feito na proximidade do antigo bairro, mas com uma décalage temporal entre as
demolições e o realojamento total muito menor. Na Quinta da Vitória, apenas 4 anos depois do
primeiro realojamento PER é que as autoridades, Câmara Municipal e proprietário, estão mais
empenhadas na demolição das barracas. A falta de alternativas para os agregados inscritos ou não
no PER deu azo a novas dinâmicas no bairro, que estão no momento a ser alvo de pesquisa na
minha investigação.
5. Sobre os percursos migratórios da população hindu residente em Portugal, consultar Bastos e
Bastos (2001), Lourenço (2003) e Cachado (2003).
6. O realojamento de uma parte da população PER da Quinta da Vitória no bairro social contíguo,
já no Concelho de Lisboa, resultou de um protocolo especial em Novembro de 2001 entre as duas
edilidades, Lisboa e Loures.
7. A palavra comunidade é aqui usada no sentido de Cohen 1985, em que uma comunidade não
possui necessariamente fronteiras estáveis e em que a percepção da pertença identitária a uma
comunidade pode ser maior ou menor, ou seja, permitindo desta forma uma utilização mais
abrangente do conceito. A escolha da comunidade hindu como universo populacional de estudo
decorre de uma relação de confiança desenvolvida e mantida em trabalho de terreno desde 2000,
no âmbito de um estágio profissional (Cachado, 2000).
8. A morte acidental de dois jovens na sequência de perseguição policial num subúrbio de Pãris
despoletou uma onda de violência urbana que potenciou, por sua vez, um debate social único
sobre os bairros sociais franceses e retomou a crítica sobre as implicações actuais do colonialismo
francês, debates esses que foram fortemente documentados nos media franceses.
9. Até Julho de 2004 os hindus do bairro faziam os seus rituais no templo situado numa barraca da
Quinta da Vitória que, por sua vez, concentrou as funções religiosas para a grande maioria da
população hindu da Área Metropolitana de Lisboa, até 1998, quando foi inaugurado o templo
Radha-Krsna, no Lumiar.
10. De notar que as garagens do bairro social nunca chegaram a ser utilizadas para
parqueamento, desde 2002 até à actualidade (finais de 2006).
11. Conferir, por exemplo, em Razões práticas. Sobre a teoria da acção, onde Bourdieu fala da
identidade étnica como uma das dimensões do capital simbólico (1994:131).
12. Krsna é o termo devanagari para designar a divindade hindu Krishna que corresponde ao
oitavo avatar (encarnação) de Vishnu.
128
AUTOR
RITA D’ÁVILA CACHADO
Antropóloga, Programa Internacional de Doutoramento em Antropologia Urbana do ISCTE,
bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
129
1 Este texto tem como primeiro antecedente uma palestra apresentada juntamente com o
prof. Luís Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, em um Congresso Internacional de
Arquitetura realizado em 2000. Trabalhámos de maneira comparativa as cidades de
Lisboa e de Barcelona, a propósito das grandes transformações que vêm ocorrendo
nessas duas urbes localizadas nas extremidades da Península Ibérica. Duas cidades que
se olham constantemente e que vêm tecendo uma grande cumplicidade. Duas cidades
que têm sido modeladas pelas autoridades através de políticas públicas que visam
alcançar uma meta talvez utópica: a cidade cosmopolita, acolhedora e hospitaleira. Há
nas administrações locais de ambas as cidades um mesmo modelo abstrato de cidade
ideal, aberta, com vocação para uma presença significativa e real no mundo
transnacionalizado, caracterizado pelos fluxos de pessoas e de capitais, por estilos de
vida contrastantes e por interações globais. Duas cidades que aspiram ocupar um
espaço central na era da pós-industrialização.
2 O foco de interesse daquele trabalho era a identificação dos sujeitos sociais que estavam
na mira dos planejadores urbanos como os principais destinatários das transformações
urbanísticas em Lisboa e em Barcelona, trazidas com as grandes obras públicas
impulsionadas pela “Expo” de Lisboa, em 1998, e pelas Olimpíadas de Barcelona, em
1992. Seguindo a hipótese de Hannerz sobre a cidade mundial, e a de Martinotti sobre as
fases do processo de metropolização, caracterizámos esses sujeitos transnacionais como os
“novos cidadãos” da cidade acolhedora. Ao mesmo tempo, olhando por debaixo do tapete,
comprovámos a maneira como amplos setores da sociedade urbana eram preteridos: os
residentes da velha cidade industrial, os trabalhadores, funcionários e empregados que
moram em ambas as cidades e para quem a vida na cidade se torna cada vez mais
desagradável, desconfortável e pouco acolhedora (Pujadas e Baptista, 2000 e 2001).
Esboçámos naquele trabalho tão somente alguns dos fenômenos e processos de
expulsão, segregação e marginalização dos velhos atores sociais urbanos na nova cidade
130
o carro em uma de suas ruas, de modo que em poucos minutos todas as pessoas que
conhecíamos já sabiam da nossa presença. Não podíamos fugir dos mecanismos de
controle social existentes entre a população residente. As pessoas sabiam de nós, já nos
tinham etiquetado. A rua era, para nós, um espaço natural de interação, como para os
próprios residentes. As relações sociais na Madragoa eram descritíveis como uma
sociabilidade de becos e cantinhos. A apropriação das ruas por parte de seus vizinhos
transformava o espaço público em um espaço semiprivado. Os passos de um estranho
no cruzamento das ruas podiam interromper as conversas dos interlocutores, que
prestavam atenção no estranho até que ele desaparecesse.
9 No Raval dos anos 1990 e inícios da década atual ainda se encontravam residualmente,
nas zonas menos afetadas pelas renovações urbanísticas e pelos fluxos de população
nova, espaços circunscritos onde se detectava um tipo similar de apropriação da rua
como espaço semiprivado. No entanto predominavam relações sociais anónimas, por
parte de uma vizinhança sumamente diversa, onde não era fácil diferenciar os
moradores residentes, os usuários cotidianos (estudantes universitários, trabalhadores
de empresas, proprietários e empregados de comércio) e os transeuntes casuais
(turistas ou moradores de outras zonas de Barcelona). Diversidade e anonimato estes
que estão carregados de diversidade étnica e cultural já que, atualmente, 47% da
população do Raval é estrangeira.
10 Acabo de assinalar que o anonimato (esse grande conceito que sempre esteve associado
à cidade) estava se apropriando definitivamente das ruas do Raval, mas esta é uma
afirmação que requer uma reformulação significativa. O fluir da rua e a aproximação
superficial do etnógrafo dão a impressão de que são anónimas relações marcadas por
uma série de características que tentarei desvelar:
1. Como bairro de serviços, o Raval está quase sempre cheio de transeuntes e de
visitantes: museus, galerias de arte, instituições universitárias, centros de pesquisa. Ali
têm sua sede instituições culturais e científicas, como o Institut d'Estudis Catalans e a
Biblioteca da Catalunha, assim como inúmeros teatros;
2. Há outros pólos de atração para um tipo de transeunte mais assíduo ao bairro:
restaurantes étnicos e um comércio específico destinado a comunidades de
estrangeiros, como paquistaneses, latino-americanos e marroquinos, que acodem aos
ditos centros vindos do bairro e de fora dele, com assiduidade;
3. Há no bairro diferentes centros regionais, como o Centro Riojano, Murciano e
Aragonês, com restaurantes abertos a pessoas dessa procedência, mas onde também
almoçam empregados, funcionários e outros que trabalham no bairro;
4. O bairro é sede de um número importante de organizações civis de ajuda à
marginalidade, ao desenvolvimento e à resolução de conflitos. Associações de e para os
imigrantes estrangeiros. Existem mais de 50 associações, entre ONGs e outras entidades;
5. No Raval funciona um número importante de locutórios (centros de cabines
telefónicas), onde se reúnem grupos organizados por nacionalidades e por afinidade ou
proximidade geográfica, membros de todas as comunidades de estrangeiros. Não
somente falam com suas famílias e acessam a Internet, como também praticam relações
de sociabilidade e procuram contatos que possam ser úteis em termos de trabalho e de
residência;
6. O bairro possui um sem-número de espaços públicos – analisaremos posteriormente –
que atraem públicos estáveis e facilmente identificáveis em dias e horas determinados:
crianças e jovens em horário extra-escolar, mães com bebés que saem para tomar sol e
132
16 As ruas Cadena e San Jerónimo eram duas vias estreitas (de 4m de largura), que se
dispunham perpendicularmente às ruas San Pablo e Hospital, duas artérias que
atravessam o bairro desde as Ramblas de Barcelona até o Paseo de San Antonio. O
comprimento de ambas as ruas era de pouco mais de 300m, contendo três quarteirões
de casas. Desde o ano 2000, quando foi inaugurada, a Rambla do Raval é um imenso
espaço vazio de 58m de largura por 317m de comprimento e 18 362m de área, que
aparece depois da demolição dos 62 edifícios e 789 moradias circundadas pelas
mencionadas ruas Cadena e San Jerónimo. No total, mais de 1800 moradores ficaram
sem lar: uns poucos foram realojados em outros edifícios do bairro, mas a maioria foi
134
21 A história do bairro não é somente (nem substancialmente) uma história marcada pela
marginalidade social, pela degradação urbanística, pelas atividades ilegais ou pela
segregação socioespacial. A estigmatização do bairro é essencialmente simbólica, já que
ele se torna o saco de pancadas ou a contra-imagem que os barceloneses fazem de sua
cidade como um lugar de ordem, convivência e equilíbrio. O “Chino” é, por definição, e
à margem de qualquer evidência empírica, um lugar perigoso, a selva urbana a que se
referia Fernandes (2003). A criação e a difusão desse discurso contribuem de maneira
efetiva para os trabalhos dos higienistas, assim como para as políticas municipais
ilustradas e transformadoras do urbanismo da Barcelona do século XIX. Cerdà cristaliza
esses discursos e esses desejos racionalizadores em seu projeto de reforma de
Barcelona. É justamente o contraste entre a velha e a nova Barcelona que constrói e
fundamenta o mito estigmatizador do Raval. No entanto a existência de instituições
como o Liceo (que data de 1833) é uma prova de que, antes da chegada da reforma, o
Raval era o coração de Barcelona.
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NOTAS
1. Tradução de Marisol Goia do castelhano para português do Brasil.
2. Trata-se, sem dúvida, de um conceito paradoxal se nos situamos na lógica da cidade industrial.
Como assinala Salvador Rueda (2003): “As diversas funções da cidade (universidade, habitação,
indústria, comércio, etc.) se separam fisicamente, dando lugar a amplos espaços cidadãos com
funções urbanas limitadas, em muitas ocasiões, monofuncionais. Nesses lugares, a vida da cidade
se empobrece porque os operários se relacionam unicamente com os operários nos polígonos
industriais, os estudantes com seus homólogos nos campus universitários, os funcionários com
funcionários nos polígonos de escritórios da nova periferia. Seria possível fazer extensiva a
homogeneização e a funcionalidade que reduz todos os lugares da cidade, sejam zonas
residenciais ou de tempo livre, zonas comerciais ou culturais. O espaço se especializa, e o contato,
139
AUTOR
JOAN J. PUJADAS
Antropólogo, Universitat Rovira i Virgili, Tarragona.
140
da reunião das antigas cortes que o tinham proclamado legítimo herdeiro do trono e,
naturalmente, o dia da sua aclamação.
27 A dimensão religiosa impregnava profundamente estas festividades, não apenas sob as
formas rituais tradicionais da missa de acção de graças e do Te Deum, mas também
através das novas práticas que tinham emergido com a ascensão do miguelismo e
tinham acompanhado o seu desenvolvimento, como os sermões que exaltavam D.
Miguel como herói da luta contra os ímpios ou como Anjo protector de Portugal, as
orações onde o seu nome era invocado, a exposição de retratos seus no interior dos
templos e as procissões onde era transportada a sua efígie 2.
28 Se nas primeiras manifestações públicas de celebração contra-revolucionária,
associadas à Vilafrancada e ligadas às funções de D. Miguel como comandante-chefe do
exército, o processo de mitificação e glorificação do infante aparece muito claramente
ligado às suas novas funções militares, manifestando-se na presença do exército no
espaço público, com o afastamento de D. Miguel do país, em 1824, após o fracasso da
Abrilada, a celebração e a festa contra-revolucionárias assumirão novos contornos.
29 De facto, será a partir de então que se irão manifestar, de forma mais original, as
modalidades que o miguelismo usou para trazer a política para a rua e, através da festa,
promover a mobilização das camadas populares no espaço público, procedimento que o
liberalismo, quer na sua versão mais radical de 1820-23, quer na sua mais moderada
versão cartista, tinha quase sempre procurado evitar.
30 O ritual mais emblemático da mobilização popular pelo miguelismo é o dos “enterros da
Constituição”, referenciado desde os anos de 1823-24 mas particularmente praticado a
partir de 1826, data da morte de D. João VI e da outorga da Carta Constitucional por D.
Pedro.
31 Neste tipo de prática pública e festiva encenava-se parodicamente o enterro do novo
código liberal, às vezes apelidado de “a menina”. De um “enterro” ocorrido em Viana,
no Minho, em 1828, chegaram-nos os seguintes versos:
A menina já morreu,
Foi-se enterrar à maré.
Disseram os peixes todos:
– “Isto que diabo é?” (Caldas, 1990 [1903])
32 Às vezes a designação preferida não era a de “enterro” mas a de "queima”, porque o
folguedo terminava com a queima de um boneco de palha personificando a Constituição
ou a Carta.
33 Do ponto de vista morfológico os enterros aproximavam-se de vários tipos de rituais
carnavalescos e de irrisão presentes no espaço ibérico, em particular dos que se
encenavam a meio da Quaresma em Portugal, como a “serração da velha” ou o “enterro
da sardinha” em Espanha. A partir dos exemplos que conhecemos é possível também
estabelecer um paralelo com o “charivari”, ou seja, com as “assuadas” de que eram
vítimas os casamentos tidos localmente por transgressores, como os dos viúvos. A
comparação é particularmente pertinente quando os “enterros” eram acompanhados
da leitura de um testamento.
34 Temos exemplos de enterros burlescos em vários pontos do país, principalmente no
Norte rural, mas encontramo-los também em meios urbanos como Viana, no Minho,
Faro, no Algarve, e mesmo em Lisboa.
145
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NOTAS
1. Sobre o conjunto destas temáticas ver Ridolfi (2004 e 2006) e Catroga (2005 e 2006).
2. Sobre alguns dos rituais do miguelismo aqui evocados ver Silva (1993) e Ferreira (2004).
3. Agradeço esta referência a António Monteiro Cardoso.
149
4. Memórias sobre a aclamação do infante D. Miguel em Faro. O diário de Lázaro Doglioni (Estudo
introdutório de José Carlos Vilhena Mesquita), Vila Real de Santo António, 1991, pp. 123-125.
AUTOR
FÁTIMA SÁ E MELO FERREIRA
Historiadora, Departamento de História e Centro de Estudos de História Contemporânea
Portuguesa do ISCTE.
150
Comentários finais1
Yves Lequin
1 Como concluir três dias de comunicações e debates que nos levaram de África à França,
passando, como não poderia deixar de ser, por Portugal e por Lisboa? Aliás, será
realmente necessário concluir, e correr o risco de ser redundante, quando já o fizeram
com talento uns e outros, com palavras suscitadas pelas investigações vivas que são as
suas neste momento? E que, como investigadores competentes que são, não se limitam
a apresentar conclusões mas abrem novas pistas de investigação. No final deste
colóquio, quem poderá afirmar o contrário?
2 Ao historiador que sou, sempre foi familiar a abordagem antropológica. Esta foi aliás
utilizada, e com sucesso, para as cidades do Antigo Regime por investigadores como
Arlette Farge, Daniel Roche e tantos outros. E eis aqui hoje, ainda desconhecidos, pois
apenas iniciam as suas carreiras, Alexandre Nugues-Bourchat e Roland Bizien com
trabalhos sobre as cidades de Lyon e Brest do século XIX respectivamente.
3 A composição do público deste colóquio que agora termina não deixa de demonstrar
que o encontro entre as duas disciplinas está mais desenvolvido em Portugal do que em
França, onde permanecemos enleados em oposições, onde é raro que os etnólogos
convidem os historiadores a participar nos seus trabalhos e vice-versa. Aqui estão
reunidos há três dias para o melhor, porque de onde quer que venham é o mesmo
objecto que os ocupa, seguindo as pisadas da Escola de Chicago, que se aplicou, desde as
suas origens, a esclarecer “o caos das cidades vivas”, retomando ao historiador-
sociólogo norte-americano Charles Tilly uma fórmula de Bertold Brecht. No decorrer
dos debates eu próprio me senti dividido entre as duas abordagens, perante o mundo
complexo da cidade vista da rua, que se encontra em incessante mutação quando se
esperava enfim apreendê-la e compreendê-la. A realidade, se é que esta palavra faz
sentido, escapa-se no preciso momento em que temos a impressão de nos apoderar
dela. E é sem dúvida necessário reflectir sobre a relação entre as duas disciplinas e o
decurso do tempo. Mas por ora a minha ambição é mais modesta, fica entre a referência
às comunicações e alguns comentários de historiador insatisfeito.
4 Por um lado, encontram-se aqui investigadores que decidiram servir-se da rua para pôr
um pouco de ordem onde esta não existe. Já não se fala do bairro, que foi durante muito
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tempo o espaço privilegiado das análises urbanas. Talvez por este ter demonstrado, no
final, os limites de um espaço escolhido, justamente devido ao seu carácter
invertebrado, estendendo-se para lá das fronteiras administrativas até ao nível das
vivências dos seus habitantes. Todos os estudos de bairro, e são inúmeros de ambos os
lados do Atlântico pois a cada instante se inicia um novo, acabaram por demonstrar a
esterilidade dessas abordagens. “Abandonemos o bairro sem dó nem piedade” 2, pois há
muito que estes estudos tendem a encerrar-se numa tautologia que confunde hipóteses
de trabalho e conclusões. Quantos estudos partem laboriosamente à procura do bairro,
para finalmente, após terem mobilizado investigadores de todos os quadrantes, desde
historiadores a geógrafos, a sociólogos, etc., concluírem que este não existe? O que não
impede que, no decorrer do processo, se tenha constituído uma grelha de
conhecimento das populações urbanas perfeitamente frutífera. Então, esquecese o
bairro? E “viva a rua”?
5 Não seria a rua, noutro contexto histórico, um desses “não-lugares” de que fala o
etnólogo Marc Augé, sem função específica, onde não se vive, e que não tem verdadeira
identidade? De facto, a rua, tal como a conhecemos e a vivemos hoje, é o resultado de
uma longa história, específica do mundo ocidental e caracterizada por símbolos e
sistemas de organização próprios e por uma toponímia complexa. E sabemos até que
ponto o ocidental se vê desorientado quando não os encontra nas cidades japonesas ou
chinesas, onde obedecem a princípios diferentes, nas cidades do mundo árabo-
muçulmano onde as casas não são viradas para a rua, que assim deixa de ter existência
real, pois é para o espaço privado que se converge e é nele que se vive. E como fazer
numa cidade onde as ruas não têm nomes e as casas não têm números?
6 Tanto assim é que toda a história das cidades ocidentais se encontra marcada pelo
esforço incessante de reforçar o edificado pela armadura hierarquizada das ruas. No
início, e durante muito tempo, predominou o cruzamento do “cardo” e do “decumanus”
sobre o qual se alinhavam as vias secundárias. É da leitura desse plano primitivo que
nasce o plano “alexandrino” que, apesar de nem sempre ser respeitado, não deixa de
ser adoptado, quer se trate de uma nova cidade ou de uma simples reordenação. A
partir do “campo”, cujo modelo não é apenas africano mas sim uma forma espontânea
de reagrupamento dos neo-citadinos. Contra a desordem, a organização viária de
vocação universal de tipo alexandrino, ilustrada pelo Marquês de Pombal na
reconstrução do centro de Lisboa quando este foi destruído pelo terramoto. Mais
comummente, os arquitectos e os urbanistas europeus exportam o modelo, que se torna
universal, e se dissemina pela América do Sul, posteriormente pela América do Norte e
pelas ndias inglesas, até hoje, e para o pior. Vejam a Bucareste de Ceausescu e a futura
Pequim dos Jogos Olímpicos.
7 A rua é assim, bem antes dos ordenamentos sofisticados da modernidade, uma
ferramenta do poder tanto mais fácil de exercer quanto os seus instrumentos são
simples: é mais fácil impor a ordem em ruas que se cruzam em ângulos rectos do que no
emaranhado de ruas característico das cidades medievais. Num primeiro momento,
tratou-se simplesmente de acomodar populações recém-chegadas que se amontoavam
umas a seguir às outras. Vimos a importância dos “campos” africanos, mas eis que
surge o vilarejo do Far West, popularizado por toda uma tradição cinematográfica. Sem
ruas mas com trilhos poeirentos vindos de nenhures e que se dirigem tão só para o
deserto, ou seja, para o vazio; mas onde as casas e os hangares acabam por se alinhar,
esboçando o que serão no futuro as ruas. Será possível encontrar melhor concretização
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NOTAS
1. Tradução do francês de Patrícia Pereira.
2. O autor faz aqui um jogo de palavras com a expressão “Pas de quartier!”, remetendo para o
abandono do bairro como unidade de análise. Mas a expressão pode igualmente significar “Sem
quartel!” ou “Sem dó nem piedade!”. (N. da T.)
AUTOR
YVES LEQUIN
Historiador, Université Lumière Lyon 2.