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“Clientes” é a forma de denominar aqueles que procuram pais e mães de santo para atendimentos e
consultas. Apesar do termo, nem sempre a relação com um cliente implica em qualquer forma de pagamento
financeiro. Durante o texto, opto por utilizar alguns termos entre aspas, evidenciando seu caráter êmico.
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As tendas de Codó se denominam, na maior parte dos casos, como ‘tenda espírita de umbanda’ embora não
sejam casas de umbanda stricto sensu. Há combinações entre denominações (como terecô, tambor de mina,
umbanda e candomblé) e também composições entre seres que indicam para uma multiplicidade de
experiências. Para saber mais, ver Ahlert, 2021.
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Neste artigo retomarei algumas considerações sobre diferentes momentos de
convivência com os terecozeiros, com o intuito de discorrer sobre os impactos do
capitalismo na vida ordinária de mulheres e homens que, junto com seus encantados,
passaram por inúmeras transformações nos últimos anos. Como a palavra capitalismo não
é usual no meu campo de pesquisa, eu sugiro aqui um exercício analítico de relacioná-la à
solidão, um termo presente na etnografia e que remete, segundo uma das minhas amigas,
à “pior coisa que pode acontecer a alguém”. Pretendo, portanto, aproximar a solidão do
capitalismo, na medida em que ela fala do desamparo, da impossibilidade ou da diminuição
das relações, dos processos de desvinculação – elementos destacados como característicos
desse sistema no momento atual (VIEIRA e VILLELA, 2020).
A solidão me permite conectar as preocupações anunciadas pelos meus amigos e
interlocutores sobre o “esvaziamento da vida”, com efeitos do capitalismo presentes nas
expropriações de terra, na ausência de trabalho digno, na fome e na intolerância religiosa.
Esses efeitos falam da extensão dos impactos do sistema em cenários onde imagens
paradigmáticas ligadas às classes trabalhadoras assalariadas urbanas (e suas derrogatórias
fábricas, salários, operários) assim como o próprio tempo marcado por horas ou jornadas
(RUI, et al¸ 2021, p. 36) se apresentam de maneira muito particular ou mesmo não se
apresentam.
A partir do campo em Codó, demonstro que existem formas de evitar a solidão (e
quiçá respirar diante do capitalismo) que envolvem companhia e cuidado, extensão de
laços de parentesco, relações entre pessoas, encantados e mortos. Destaco que, mesmo
diante da “precisão” que marca a vida no capitalismo, se constitui uma ética do cuidado e
uma política da atenção que são elementos centrais para a vida fazer sentido. Considerando
a etnografia não apenas como um exercício de deslocamento, mas uma disposição à
coexistência (CAÑEDO RODRIGUEZ, 2013), minha intenção é compreender como as
pessoas que lidam com a solidão e seus efeitos devastadores podem indicar caminhos
ordinários e cotidianos (DAS, 2015) – e quiçá mais amplos, mais conectivos - para
construir sentido às urgências3 que nos interpelam no capitalismo.
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Para pensar a ideia de urgência de uma forma menos linear, tomo a liberdade de relacionar arbitrariamente
eventos que aconteceram em anos distintos na medida em que aos nos falarem sobre a morte – um dos temas
mais presentes nas nossas vidas nesses últimos meses – eles indicam elementos sobre a solidão e as formas
de enfrentá-la.
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O artigo está dividido em três partes. A primeira discorre sobre os sentidos dados à
solidão pelos meus interlocutores, a partir da forma como percebem pessoas e situações
que a materializam. Nessa etapa do texto, trago elementos de anos distintos da pesquisa,
finalizando com a narrativa de um caso de morte que aconteceu recentemente, no contexto
da pandemia de Covid-19, pois ele, do meu ponto de vista, conjuga à solidão ao
capitalismo. A segunda parte do artigo é uma descrição de dois outros episódios
relacionados à morte, vividos em momentos distintos e que aqui servem a um propósito
diferente do anterior, uma vez que expressam como a morte pode ser uma ocasião para a
expansão das relações sociais e o enfrentamento à solidão. Enfatizo práticas como os
velórios e as visitas aos mortos que servem para criar e ativar relações sociais, pois estão
baseadas no cuidado, na atenção e na companhia. Por fim, busco demonstrar como as
pessoas garantem certos preceitos fundamentais à vida, como a autonomia e certa
concepção de liberdade, presentes, inclusive, na morte.
Luiza costumava me dizer que a solidão era a coisa que mais temia, era o que de
pior que poderia acontecer a alguém durante sua vida. Em sua concepção, a solidão se
evidenciava na ausência de relações sociais e ela costumava exemplificar com sua própria
trajetória: acontecia quando algumas pessoas que ela tinha ajudado em anos anteriores,
com suas qualidades de curadora e mãe de santo, passavam em frente à sua casa e não a
cumprimentavam. Solidão indicava, para ela, uma desvinculação, mas também um
esquecimento do passado - no caso, um apagamento de sua presença como uma
participante na vida dos outros.
Havia pessoas no mundo que se encontravam, em determinados momentos, em
situações de desvinculação, pois “andavam sós”. Um caso corriqueiramente mencionado
no meu campo era o dos trabalhadores do roçado da juquira – homens empregados em
fazendas para limpar os terrenos que seriam então ocupados pelas atividades pecuárias que
têm dominado parte expressiva das terras da zona rural. Na atividade do roçado da juquira,
há alguns anos, foi encontrado trabalho escravo em Codó, não apenas de pessoas de outras
cidades, mas também de moradores do próprio município que, deixados a quilômetros de
distância nas roças e vigiados constantemente pelos funcionários dos fazendeiros, não
conseguiam meios para retornar às suas casas.
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Seu João Tavares, um pai de santo que conheci, me contou sobre outra situação
onde a solidão se colocava. Ainda vivo, em 2011, ele me disse que sua avó foi uma
terecozeira conhecida pelas previsões que fazia em relação ao futuro (AHLERT, 2013,
2021). Foi ela quem “cuidou” (ou “segurou”) seus encantados enquanto ele ainda não
aceitava se tornar pai de santo. Em certa ocasião, quando falava sobre seu futuro, ela teria
dito a ele que tivesse muito cuidado, pois previa a possibilidade de que ele fosse morrer
sozinho, sem família e sem amigos. A previsão, me contou, era assustadora e não havia
nada que ele temesse mais em sua vida do que morrer longe dos seus.
A companhia no momento da morte surgia na fala de muitos dos meus amigos e
interlocutores como algo fundamental e, se não fosse possível morrer em casa, se deveria
ao menos empregar todos os esforços para trazer os corpos dos parentes e vizinhos para
serem enterrados na cidade, dividindo sepulturas com a família. A partir de então, nem
mesmo os mortos deveriam ser deixados sozinhos e o cultivo de sua lembrança passava a
ser tarefa daqueles que com ele (ou ela) conviveram. Seu Louro, um amigo que fiz e que
tocava na banda municipal, em uma ocasião na qual nos encontramos em 2011, me disse
que eu deveria ter filhos, pois do contrário, ninguém lembraria de mim caso eu falecesse.
A ideia de que os mortos precisam ser lembrados pelos parentes me parece explicar
os pequenos álbuns de fotografia de enterros, onde é comum encontrar imagens tiradas ao
lado do caixão para guardar a recordação do rosto da pessoa falecida, ou ainda, as
lembranças de velórios que são fotos de quem morreu, sobre as quais se grava as datas de
nascimento e falecimento, uma frase preferida ou versículo bíblico. Não raro, esses álbuns
eram mostrados para quem visitava as casas, talvez como uma forma de se lembrar ou
ainda de evidenciar que as pessoas não eram apenas aquelas que estavam ali, antes, eram
continuadas em naquelas que já se despediram, mas que de diversas formas, continuavam
presentes.
A pandemia de Covid-19 tem sido um período em que se redimensiona a ideia de
solidão e especialmente a forma como ela se relaciona com a morte. Assim como as roças
destinadas à pecuária, que valorizaram as terras monetariamente e transformaram
pequenos produtores rurais em moradores da cidade – e, posteriormente - em “escravos da
precisão” nos roçados (MOURA, 2009) – alguns efeitos da pandemia de Covid-19
evidenciaram e espalharam o capitalismo. Para esclarecer meu argumento, vou escrever
sobre um falecimento que, infelizmente, aconteceu na família de alguns amigos neste ano,
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2021. Ele fala a solidão e sobre os limites da ação das pessoas diante de agentes do Estado
que representam os cuidados com a proliferação do vírus.
Eu não estava em Codó quando Fátima4 me enviou um áudio de WhatsApp com
uma frase só, me contando que Seu Tião tinha falecido. Eu demorei a entender a
mensagem, mesmo que no contexto da pandemia de Covid-19 as notícias de morte tenham
se tornado mais comuns nas nossas plataformas e redes digitais. Tião foi uma pessoa com
quem convivi durante a pesquisa de campo, ele era primo, vizinho e padrinho de uma das
tendas de terecô que acompanhei nos últimos dez anos.
Tião plantava “linhas de roça” no interior, em terras que pertencem a outras pessoas
(quando se pagava o uso com parte da produção) ou em terras sem proprietários
conhecidos. Muitas famílias da cidade tinham prática semelhante, especialmente depois
que foram expulsas ou mobilizadas a sair do campo em função de não possuírem
documentos das terras onde historicamente plantavam. Para continuar com seu trabalho,
ele então se deslocava entre a casa no perímetro urbano e a roça, utilizando uma
motocicleta como forma de transporte. Com ele, sobre a moto, não raro trazia a produção,
como os sacos de arroz que depois espalhava no asfalto da rua para secar com o sol quente.
Desta última vez, entretanto, no retorno da roça para casa, ele teve um acidente, ou
como dizem, uma queda de moto. Decidiu não ir ao hospital, pois entendeu que as dores
passariam sozinhas com o tempo. As mulheres do seu entorno – Fátima, sua mãe e as tias
– disseram que não era normal ficar com “uma banda do corpo roxa” e insistiram que
procurasse ajuda. Ele, entretanto, permaneceu dias em casa, fazendo suas atividades
rotineiras, até o momento em que a dor se tornou insuportável. Os médicos descobriram
que uma costela quebrada havia perfurado o pulmão e a lesão tinha causado danos severos
ao seu corpo.
Do hospital, Tião nunca retornou. Segundo boletim médico, ele contraiu Covid-19
no local e não resistiu. Faleceu em um fim de tarde, sozinho e – como tantas outras pessoas
durante a pandemia – longe de sua família. Segundo destacado por minha amiga, ele
permaneceu no local desta forma durante toda a noite. Na manhã seguinte, a funerária o
colocou no carro, passou por sua casa para que as pessoas vissem o caixão e seguiu ao
cemitério, onde ele foi enterrado.
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Como a situação é recente e não desejo expor meus amigos, alterei os nomes utilizados nessa e em outras
passagens presentes no texto.
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Dois elementos sobre essa trágica história foram enfatizados pelas minhas amigas,
as que entraram em contato para me avisar da notícia. Primeiro, havia uma desconfiança
sobre a Covid-19 e parecia que ninguém acreditava realmente que essa fora a causa da
morte. Silva (2021) percebeu uma atitude semelhante entre pessoas de comunidades
tradicionais em outra região do Maranhão, quando notou uma resistência generalizada com
a definição médica da morte pelo coronavírus. No meu caso, não se tratava de uma
acusação de erro médico, mas da perspectiva de que não havia fatos sobre os quais alicerçar
tal certeza, uma vez que Tião estava sozinho no hospital quando tudo aconteceu.
O que as minhas amigas ressaltavam ainda com maior tristeza, era o fato de que
Tião, ainda que morto, tinha “passado a noite sozinho” no hospital municipal. Essa solidão
parecia a parte mais dolorida dos lamentos da morte que acompanhei pela plataforma
digital de troca de mensagens e foi repetida por algumas pessoas, diversas vezes. Ficava
evidente na nossa conversa que os mortos não são seres totalmente distintos de quem eram
poucos minutos antes quando ainda vivos. Eles precisam de companhia até o momento de
serem enterrados, quando passam a ser lembrados nas conversas e por intermédio de
objetos – como as fotos que mencionei anteriormente.
Sobre esse episódio, eu ainda soube que, a despeito do pedido da família que
gostaria de fazer uma despedida no ambiente da casa, o serviço de saúde e a funerária
seguiram os protocolos indicados pelos organismos internacionais e pelos agentes do
Estado em relação à impossibilidade de fazer os rituais de velório e enterro. Havia certa
tristeza em perceber que não havia agência ou argumento que pudesse ser utilizado para
garantir os ritos nesse cenário. Dessa forma, as pessoas me contaram que “o carro [da
funerária] não ficou nem dez minutos na frente da casa para a família ver o caixão” e
seguiu, em direção ao cemitério.
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Os vírus, dependendo da forma como percebidos, dos valores e dos interesses em
jogo, podem ser inspiradores e nos ajudar na solução de alguns dos nossos problemas. Eles
são seres não humanos com os quais podemos construir relações e podem participar de
composições perigosas, mas também potentes (VIEIRA e VILLELA, 2020)5. A questão é
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Nas palavras dos autores “Tivéssemos prestado mais atenção aos vírus no lugar de os desqualificar, quem
sabe poderíamos ter sido expostos a um modo de existência inspirador, no lugar de associá-lo
obrigatoriamente à morte” (VIEIRA e VILLELA, 2020, p. 12). Para eles, o capitalismo é que fornece ao
contágio a sua face mortífera.
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que no cenário do capitalismo atual, caracterizado pela proliferação descontrolada da
plantation, pela propagação de espécies isoladas sem suas companheiras, pela
transformação do mundo em ativos, eles se tornam ameaçadores (TSING, 2019). Se
pensarmos o capitalismo como alienação, no sentido dado por Anna Tsing, como um
desembaraçar de laços no mundo, podemos sugerir que a contextos como o do meu
trabalho de campo, a pandemia carrega a solidão e espalha o capitalismo.
Eu penso que aqui nós chegamos em um ponto importante do argumento deste
artigo: a solidão é a ausência de relações de diversas naturezas. É assim que ela, por
contraposição, nos motiva a falar da relação entre pessoas vivas, mas também entre elas,
os mortos, os encantados, os santos. É o conjunto desses seres que está implicado nas
formas de evitar a solidão (AHLERT, 2021) e é a todos eles que devemos estar atentos ou
nos responsabilizar por.
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Sempre me pareceu muito interessante o processo de ter uma morte acompanhada de perto pelas pessoas.
Everton Luiz Pereira (comunicação oral) encontrou situações muito semelhantes em seu campo, quando
pessoas “desenganadas” por médicos ou mesmo compreendidas pelos familiares como próximas à morte
eram acompanhadas durante os últimos dias de vida, em suas casas, por parentes e vizinhos.
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sepultura, no cemitério, ou à sua casa. Há a visita de sete e de quinze dias de falecimento,
a visita de mês, de seis meses e de ano (realizada de ano em ano, pois as pessoas recordam-
se da data de morte de muita gente).
Naquele primeiro de setembro (de 2011), nos reunimos na tenda de Zé Preto e, já
com o sol baixando, caminhamos alguns minutos na direção do cemitério. O pai de santo
foi ficando para trás, pois parava para cumprimentar pessoas e convidá-las à visita em
homenagem ao amigo. No cemitério, outro pai de santo da cidade – e também rezador local
– conduziu uma ladainha, com terço, benditos, salve rainhas e orações aos anjos da guarda.
Todas as rezas foram (em todas as visitas onde estive) dirigidas à pessoa falecida, de
maneira que palavras de suas fórmulas eram alteradas e não raro, o nome do morto incluso
entre elas. Velas brancas foram colocadas em toda a lateral da sepultura, ancoradas na terra
de areia pelo qual era formada. Iniciamos a visita em cerca de vinte pessoas, no final, esse
número havia dobrado.
Embora o clima fosse carregado de emoção, a situação não deixava de comportar
brincadeiras, jocosidade e mesmo interessantes situações como a da senhora que nos
acompanhou e já no final do período que permanecemos no cemitério, perguntou-me se
rezávamos para um homem ou para uma mulher. Achei a pergunta curiosa porque ela
falava, sobretudo, da importância das visitas como um espaço de fortalecimento das
relações não apenas com o morto, mas com os vivos. É, nesse sentido, me parece, que elas
sempre têm como elemento a comensalidade e, naquele dia, não foi diferente, pois, nos
esperava, na cozinha entre a tenda e a casa de Seu Zé Preto, um verdadeiro banquete.
Se as visitas promovem relações entre as pessoas e lembranças em relação aos
mortos, naquele dia ainda estávamos diante de uma das maneias de articulação com os
encantados, uma vez que, depois do descanso do jantar, houve um toque de terecô no salão.
Em outros momentos do campo, quando, por exemplo, fui ao enterro de um padrinho de
uma tenda ou ainda de algum filho de santo, percebi que as entidades, no âmbito do terecô
e da umbanda, participavam dos rituais de morte. Tanto os encantados que eram recebidos
pela pessoa que faleceu quanto aqueles que a conheciam da convivência na tenda eram
incorporados para prantear a despedida (tanto nos salões, quanto nos cemitérios). Em letras
de “pontos cantados” nos rituais – chamados ainda de “doutrinas” -, encantados e santos
eram mencionados como responsáveis por acompanhar o morto em sua passagem.
Parece-me possível dizer, portanto, que encantados e humanos compartilham
lógicas de cuidado e companhia nos momentos de morte. Entre as pessoas, se espera uma
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atenção cuidadosa dos parentes. Em sua acepção mais evidente, um parente é alguém com
quem se compartilha laços de sangue e descendência. Como em outras regiões do Brasil,
“o sangue puxa” também nesse contexto e pode-se reconhecer um parente mesmo sem vê-
lo por anos. Mas o sangue, sozinho, mobiliza apenas parte daquilo que é vivido como
parentesco. Existem, nesse sentido, outras substâncias e práticas que produzem e
mobilizam parentes (CARSTEN, 2014). A comensalidade, a ajuda mútua, a criação e a
consideração (PINA-CABRAL e SILVA, 2013), a oferta de uma rede dentro de casa, falam
do compartilhamento de práticas de cuidado e de companhia que constituem o parentesco.
Foi nesse sentido que Mariana, mesmo cuidado de seu esposo doente, recebeu um irmão
em sua casa por cerca de um mês para realizar uma cirurgia médica e recuperar-se dela na
cidade. Também nesse âmbito, a família de Isabel suplicou que sua neta voltasse a morar
em casa quando soube da violência doméstica que sofria em Goiás, para onde havia se
mudado.
É nesse sentido que, mesmo sabendo de todas as dificuldades no atendimento à
saúde no município, seja considerado melhor estar entre os seus do que distante de casa
quando doente. Pedindo a um filho que voltasse para casa, uma das minhas interlocutoras
me explicou que, a despeito dos problemas da cidade, “aqui tem quem lute por ele” – ou
seja, tem alguém que se responsabilize por sua situação. A mesma frase eu ouvi sobre o
início da “mediunidade” de alguns pais de santo antigos, que quando apresentaram aflições
e doenças depois lidas como “problema com encantado” tiveram ao seu lado parentes que
com eles “lutaram” para descobrir a origem do que sentiam e viviam. Familiares e parentes
são aqueles que observam práticas de companhia, cuidado e lembrança (em relação aos
vivos e aos mortos).
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Enquanto ausência do reconhecimento da participação de uns na vida dos outros e
a impossibilidade de fazer companhia ou cultivar a lembrança, a solidão pode incidir sobre
a vida de qualquer pessoa. Não há garantias ou ações que possam dirimi-la ou afastá-la
completamente do horizonte. Há, entretanto, formas de ou investimentos para tentar evitá-
la. Um dos elementos que me parece central nessa tarefa é o contínuo investimento em
redes de relação produzidas seja pelo parentesco e vizinhança, seja pela religião (dois
elementos que, em alguma medida, se cruzam de formas inusitadas (AHLERT e LIMA,
2019)).
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Como indiquei anteriormente quando descrevi as visitas e os enterros, as relações
sociais envolvem os mortos, que não devem ser deixados sozinhos e não devem ser
esquecidos. É no escopo dessa conexão entre eles e os vivos que podemos compreender os
diversos cuidados que tem a ver com as visitas e os velórios: o convite aos rezadores, a
oferta de bebida e comida aos presentes, a compra de velas para a sepultura, as horas e
mesmo dias de espera pela chegada das pessoas distantes, as lembranças e as fotografias.
São esses movimentos que a solidão (e a pandemia) impossibilita e que são desvinculações
produzidas e reforçadas no âmbito do capitalismo.
Considerações finais
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A forma de encarar a pandemia, diz Thomas Cortado, tem menos a ver com como se percebe a morte, mas
como se concebe a vida: há uma diferença entre “quem considera a vida um direito absoluto do indivíduo”
ou “para quem enxerga na vida uma “andança sofrida”” (CORTADO, 2020, p.04).
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responsabilidade, do lutar por alguém – e noções de dignidade e autonomia que esclarecem
escolhas e perspectivas.
Não me parece totalmente impreciso dizer, para esta análise, que a solidão pode ser
mais temida do que a morte. Não que as pessoas estejam acostumadas à morte ou que não
sintam falta de quem parte. Não se trata disso, mas do fato de que mais do que a morte em
si (algo previsto, algo em alguma medida esperado) são as condições nas quais se vive a
morte que merecem uma atenção cuidadosa. Seu Sebastião, um pai de santo que conheci,
(hoje já falecido) me disse que sentia muito a ausência da esposa que havia morrido
recentemente [2011], mas, se sentia feliz, pois “ela teve um bom enterro e uma boa visita”.
Era importante viver, mas também morrer acompanhado8.
Referências
AHLERT, Martina. Encantoria: uma etnografia sobre pessoas e encantados. Curitiba, São
Luís: Kotter e EDUFMA, 2021.
AHLERT, Martina. LIMA, Conceição de Maria. “A família de Légua está toda na eira”.
Tramas entre pessoas e encantados. Revista Etnográfica, vol. 23 (2), p. 447-467, 2019.
CORTADO, Thomas Jacques. ‘Tem de enfrentar a chuva’: Casa, vida e mobilidade entre
camadas populares brasileiras. In: Dilemas - Revista de Estudos de Conflito e Controle
Social – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia, p. 1-5, 2020.
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[Comentário final] Enquanto a vida das pessoas se desenha como um ciclo, os encantados são ancestrais e
contemporâneos ao mesmo tempo. Compreende-se que eles foram pessoas que desapareceram sem viver a
experiência da morte. Eles a suplantaram e surgiram com outro estatuto, atravessaram e atravessam lógicas
lineares de tempo, conectando vivos e mortos, familiares e desconhecidos. Com os rituais nas tendas
suspensos por certo período durante a pandemia de Covid-19, eles se aliaram à tecnologia e participaram de
lives na internet, lembrando que as brincadeiras seguem sendo feitas e que novas conexões continuam
possíveis.
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DAS, Veena. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press,
2015.
MELLO, Cecília Campello do Amaral. Quatro ecologias afroindígenas. In: R@U, 9 (2),
jul./dez. 2017: 29-41.
PINA-CABRAL, João de. SILVA, Vanda Aparecida da. Gente Livre: Consideração e
Pessoa no Baixo Sul da Bahia. São Paulo: Terceiro Nome, 2013.
Revista Época. Política com Terecô. 196ª ed. 18 de fev. 2002. Disponível em:
http://epoca.globo.com/edic/20020218/especial1d.htm. Acesso em: 24/03/2013.
Revista National Geographic. Codó, esquina do além. 124ª ed., jul. 2010.
SILVA, Maristhela Rodrigues da. Morrer nas morrarias: autonomia, dignidade e formas
de solidariedade nas situações de morte no Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses.
Tese (doutorado). Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal
do Maranhão. São Luís, 2021.
TSING, Anna. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno. Editora IEB,
2019.
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