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Resumo
O presente artigo busca analisar, a partir da obra Vinte Anos de Crise de E.H. Carr, de
que forma os discursos idealista/utópico e realista se apresentam como arcabouços
explicativos do cenário internacional hodierno. A proposta do trabalho é verificar a
atualidade da abordagem pioneira de Carr, discutindo a base positivista comum às duas
correntes e seus limites na análise das relações internacionais contemporâneas.
Palavras-Chave
Edward Carr, Idealismo, Realismo, Relações Internacionais.
1
Trabalho publicado no livro Relações Internacionais: olhares cruzados. Editora FUNAG, 2013.
2
Professor do Núcleo de Relações Internacionais da Universidade Federal de Sergipe. Trabalho
apresentado no II Seminário Internacional de Pesquisa e Extensão em Relações Internacionais, em abril
de 2013.
3
Dentre seus trabalhos destacam-se: The New Society (1951), German-Soviet Relations Between the Two
World Wars 1919 1939 (1952), What is History? (1986), 1917 Before and After (1969), The Russian
Revolution: From Lenin to Stalin 1917-1929 (1979), From Napoleon to Stalin and Other Essays (1980) e
The Twilight of the Comintern 1930-1935 (1982).
Britannica no século XIX e que vigorava, de maneira geral, até o início do XX. Boa
parte dos acadêmicos e políticos pecebiam a Primeira Guerra Mundial como um
momento passageiro, uma crise momentânea do sistema internacional que, uma vez
superada, causaria o reestabelecimento da antiga ordem. Tal postura demonstra uma fé
cega no mercado liberal/no funcionamento da mão invísível e na democracia –
pressupostos basilares para a construção da paz perpétua.
Como mostra Carr, esta percepção equivocada cobria de névoa a realidade e
dificultava uma abordagem objetiva, restrita às possibilidades concretas apresentadas
pelo cenário naquele momento de transição para uma nova ordem mundial. Ao apegar-
se à esperança de retorno ao passado, não era possível entender a gravidade do
momento e as mudanças profundas que se anunciavam. É importante lembrar que Carr
fez parte da delegação inglesa nas discussões sobre o Tratado de Versalhes e se opôs às
sanções impostas à Alemanha – mostrando sua descrença com relação às propostas de
W. Wilson e seus famosos 14 pontos.
De modo geral, quando das apresentações das principais correntes teóricas das
relações internacionais, Carr é colocado entre os autores Realistas, ao lado de Hans
Morgenthau, Robert Gilpin, Henry Kissinger, dentre outros.4. Isso se deve, em grande
medida, pelas duras críticas que o autor faz ao idealismo. Por outro lado, como veremos
no tópico seguinte, Carr também aponta para os limites do pensamento realista – o que
leva alguns estudiosos a buscarem, atravez deste autor, um „caminho do meio‟ para a
disciplina de relações internacionais, um sincronismo teórico entre as duas abordagens,
aparando o excesso de cada uma delas e mantendo suas contribuições especificas.
Carr afirmava que o relacionamento entre realismo e utopismo
era dinâmico e dialético. Embora tecesse críticas severas ao
pensamento utópico nas décadas de 1930 e 1940, também reconhecia
que realismo sem utopismo cairia numa real-politik cínica (...). [De
acordo com Carr] (...) o realismo e o utopismo são doutrinas frágeis,
mas podem perfeitamente atuar como uma espécie de “corretivo”
mútuo. (...) Parece que tudo que se pode fazer é compará-las, usando
aas forças de uma para atacar a outra, e vice-versa, sempre que uma
delas ascender sobre a oponente.(Griffiths, 2004, p. 20 e 21).
4
O livro de Martin Griffiths, 50 Grandes Estrategistas das Relações Internacionais, é um exemplo desta
classificação e enquadramento de Carr na escola realista.
improvável e sua busca uma tarefa estéril. De fato, o relativismo que por vezes é visível
em sua obra gerou uma série de críticas, e sua abordagem sobre utopia e realismo não
convenceu a totalidade dos estudiosos da área.
Entretanto, é importante destacar que Edward Carr foi um dos pioneiros na
elaboração da teoria em relações internacionais, visto que não havia, no período
entreguerras, nenhum estudo organizado das questões internacionais. Como mostramos
em outro trabalho,
É interessante notar que os acontecimentos do século XX
(guerras, avanços científico-tecnológicos, disputas ideológicas, etc.)
modificaram sobremaneira os contextos nacional e internacional (...).
As relações internacionais, por sua vez, começavam a organizar suas
teorias, delimitar as correntes de pensamento e seus respectivos
conjuntos conceituais, justamente em meio ao turbilhão de
transformações que ocorriam. Isto certamente coloca-se ainda hoje
como um desafio para a consolidação teórica da área, tendo em vista a
dificuldade de construiu teorias em um mundo sob constantes e
profundas transformações. (Barnabé, 2010, p. 4 e 5)
2 - Vinte Anos de Crise: utopia e realismo nas análises das relações internacionais
O pensamento imaturo é predominantemente utópico e busca um
objetivo. O pensamento que rejeita o objetivo como um todo é o
pensamento da velhice. O pensamento maduro combina objetivo com
observação e análise. Utopia e realidade são, portanto, as duas faces
da ciência política. (Carr, 2001, p. 14 e 15)
Nota-se que, embora tenha sido muito criticada, principalmente por não
conseguir explicar as relações de poder e conflito entre os Estados, a utopia se mantém
como corrente explicativa e ressurge na atualidade, conforme veremos adiante, vestida
com os pressupostos neoliberais.
Registrada a importância de W. Wilson para as primeiras discussões teóricas nas
relações internacionais, se oberva que, de fato, foi apenas a partir da crítica realista que
as teorias começaram a tomar corpo. Não por acaso, o trabalho de Carr, Morgenthau,
Aron e Kissinger (dentre outros), representou não somente uma reação ao idealismo
romântico do período entre guerras, mas consolidou o realismo como o paradigma
clássico das relações internacionais.
Como demonstra a crítica de Carr,
Não será difícil demonstrar que o utópico, quando prega a doutrina de
harmonia de interesses, inocente e inconscientemente estará adotando
a máxima de Walewski, e vestindo seu próprio interesse com o manto
do interesse universal, a fim de impô-lo ao resto do mundo. (...) e as
teorias do bem público que, à luz da análise, provam ser um disfarce
elegante para algum interesse particular, são tão comuns nas questões
nacionais quanto nas internacionais. (2001, p. 100)
O que podemos perceber é que, como na época em que Carr analisa as visões
sobre o cenário externo, marcados pela dicotomia entre utópicos saudosos da ordem
liberal do século XIX e realistas fixados no conflito, na guerra; hoje também podemos
observar que as relações internacionais têm sido analisadas sob esses prismas teóricos,
sem os necessários questionamentos.
Claramente, idealismo e utopia são posicionamentos teóricos antagônicos.
Entretanto, possuem a mesma essência em suas formulações – o Positivismo. Esta
essência faz com que as análises se apresentem com certa superficialidade, conservando
e mantendo o status quo internacional. A base positivista é explicitada nas duas
abordagens: i) do lado idealista, o apego a um modelo ideal perfeito e o consequente
distanciamento das condições reais, dos conflitos próprios da existência humana, ii) do
ponto de vista realista, a separação metodológica sujeito investigador/objeto investigado
– ambas análises buscando apresentar a universalidade dogmática (na paz perpétua
liberal-democrata ou no conflito perene da humanidade) e a neutralidade científica.
Neste sentido, a crítica ao positivismo – que entendemos necessária ao estudo
das relações internacionais – atinge as duas visões. Dentre as principais críticas,
podemos destacar: i) a impossibilidade da neutralidade científica visto que esta, na
verdade, acaba por corroborar a ordem existente e, assim, atender aos interesses dos
grupos que defendem sua manutenção; ii) a necessidade de incluir nos debates alguns
elementos centrais para o entendimento do complexo cenário que se desenha na
atualidade (dentre eles a questão econômica-social), iii) a importância em se considerar
o movimento e a mutabilidade da história, descartando abordagens de um „dever ser‟
que não possui nenhum lastro com a realidade e outras que, a partir de uma análise
vinculada à „natureza das coisas‟ fixam presente e futuro em lógicas que jamais
poderiam ser alteradas.
Os limites apresentados pelas análises idealista e realista abrem espaço para o
desenvolvimento da Teoria Crítica, fundamentalmente embasada nas ideias marxianas.
Conforme afirmam Vigevani (et al), ao discutirem a postura positivista das escolas
realista e liberal nas abordagens das relações internacionais contemporâneas,
O resultado da crítica e consequente negação desta postura positivista
leva a uma interpretação mais refinada do sistema internacional, de
suas crises e contribui para a explicação da emergência e decadência
das hegemonias. (...) Na perspectiva aberta pelas grandes questões do
século XXI, em marxismo renovado, afastado de suas versões
vulgares, que busca analisar criativamente os novos problemas
colocados pelas relações internacionais, contribui para debates que
cobrem um amplo espectro de temas. (2011, p. 130, 122, 123)
Considerações Finais
Não há consenso em torno da figura de Edward Carr no meio acadêmico. Por
alguns é considerado um realista conservador tendo em vista as duras críticas que faz à
visão utópica que, segundo ele, reinava no período entreguerras e que foi responsável,
de certa meneira, pela constituição da idealista Liga das Nações. Por outros, Carr é visto
como um esquerdista, um simpatizante da então União Soviética. Dentre os marxistas, o
autor é poupado de críticas, principalmente por sua preocupação em lastrear suas
análises na História.
O presente artigo buscou, dentro de seus limites, destacar a importância da obra
Vinte Anos de Crise nas análises das relações internacionais, tendo em vista que as
abordagens utópica e realista se mantêm como explicadoras da contemporeidade
internacional e, de maneira especial, salientar os limites destas leituras, da
superficialidade de suas análises em um mundo que se demonstra cada vez mais tenso e
contraditório. De modo apenas provocativo, alertamos para a necessidade de uma
postura crítica com relação ao estudo das relações internacionais e apontamos para as
„brechas‟ que precisam ser preenchidas por estudos de base marxiana, da teoria crítica.
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