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TEORIAS DAS RELAÇÕES

INTERNACIONAIS
AULA 1

Profª Ludmila Culpi


CONVERSA INICIAL

A proposta da disciplina de Teorias das Relações Internacionais é discutir


de modo completo as teorias das relações internacionais (RI), apresentando
seus pressupostos centrais e principais teóricos.
Nesta aula, você conhecerá os autores mais relevantes do pensamento
realista. Os objetivos específicos desta aula são: i) justificar a importância do
estudo das teorias de relações internacionais; ii) apresentar os antecedentes
teóricos do realismo, de Maquiavel e Hobbes; iii) indicar os pressupostos centrais
do realismo clássico de Carr; iv) elucidar os conceitos principais do autor realista
clássico Morgenthau; e v) assinalar as premissas mais importantes do realismo
dos anos 1960, de Aron.

TEMA 1 – POR QUE ESTUDAR RELAÇÕES INTERNACIONAIS?

Uma questão que você deve ter em mente é: por que é relevante estudar
teorias? Uma das melhores explicações é que elas servem para desvendar a
nossa realidade. No caso das RI, as teorias possuem diferentes definições para
os mesmos fenômenos, pois apresentam pressupostos diferenciados (Sarfati,
2005).
Para melhor compreender a relevância do estudo teórico, é importante
definir alguns conceitos. O primeiro deles é o de ontologia de uma teoria, que é
“a referência concreta de um discurso, ou seja, as coisas que compõem o mundo
real” (Sarfati, 2005, p. 28). No âmbito das relações internacionais, significa o
espectro dado por cada teoria para entender o mundo político, isto é, algumas
teorias visualizam as RI como ontologicamente conflituosas, enquanto outras
verificam as RI como potencialmente cooperativas.
O segundo conceito central é o de epistemologia, que “refere-se a como
o conhecimento é construído, como ele é gerado [...] é extremamente importante,
pois indicará o que o teórico privilegiará como explicação” (Sarfati, 2005, p. 28).
Nas relações internacionais, pode-se adotar a epistemologia positivista, que
defende que existe apenas uma verdade, ou a pós-positivista, que argumenta
pela existência de múltiplas verdades.
Outro conceito importante é o de metodologia, que “corresponde a como
se deve resolver uma questão” (Sarfati, 2005, p. 28), ou seja, por meio de quais
ferramentas de pesquisa os estudiosos investigam as RI. Os métodos

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quantitativos concentram-se sobre observações quantificáveis da realidade,
enquanto os métodos qualitativos adotam variáveis que, em alguns casos, não
podem ser mensuradas numericamente (Cordeiro; Culpi, 2017).
Para nós, estudiosos das Relações Internacionais, é fundamental levar
em conta a concepção de nível de análise. O nível de análise define qual o foco
da investigação, ou seja, para onde o analista deve olhar para explicar a
realidade internacional. São quatro os níveis de análise das RI: o individual, com
ênfase sobre a natureza humana do indivíduo (boa ou má) para analisar os
comportamentos estatais; ii) o societal, que se atém sobre os grupos de interesse
para explicar um acontecimento; iii) o estatal, que se centra no comportamento
do Estado para investigar as RI, ou supraestatal, quando há atores
supranacionais, como a União Europeia; e iv) o da estrutura internacional, com
foco sobre as características do sistema internacional, conflituoso ou pacífico
(Sarfati, 2005).
Portanto, dependendo do nível de análise adotado e da ontologia,
epistemologia e metodologia eleitas, a explicação para o fenômeno internacional
será diferente. Assim, cada teoria de relações internacionais possui suas
próprias ontologias, epistemologias e metodologias, o que auxilia os
pesquisadores em seu trabalho de inferência sobre a realidade internacional.
Importante ressaltar que as teorias servem para fornecer ao analista de Relações
internacionais ferramentas teóricas e metodológicas para explicar os fenômenos
como a guerra, a paz e a cooperação.

TEMA 2 – ANTECEDENTES TEÓRICOS DO REALISMO CLÁSSICO: NICOLAU


MAQUIAVEL E THOMAS HOBBES

2.1 Thomas Hobbes

Hobbes é um dos contratualistas clássicos, juntamente com Nicolau


Maquiavel. Hobbes argumentava que o homem é um animal que busca seu
benefício em detrimento dos outros, pois suas intenções são direcionadas para
sua manutenção pessoal, ou seja, ele vive lutando pela sobrevivência. Portanto,
Hobbes assinala que, para que o indivíduo possa conviver em sociedade, é
necessário que ele abra mão de sua liberdade e seu poder ao soberano, isto é,
ao Estado. A partir dessa outorga de liberdade, consolida-se o contrato social,

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no qual o indivíduo se submete a leis criadas e administradas pelo Estado, “O
Leviatã”, assegurando sua sobrevivência.
Para Hobbes, o objetivo das leis é assegurar a paz, estabelecendo
impedimentos aos indivíduos, que não podem viver com liberdade irrestrita,
causando danos uns aos outros. Hobbes investiga as formas como o poder do
soberano se torna legítimo, isto é, aceito pelos súditos. Essa visão concebe que
os Estados, por não serem controlados por uma entidade superior no sistema
internacional, isto é, por conviverem em um ambiente anárquico, são levados a
atingir seus interesses nacionais utilizando, em muitos casos, a força. Isso
contribui para o aumento das hostilidades entre os Estados e a expansão dos
gastos em defesa (Herb, 2013).
Hobbes defende que, para assegurar que os indivíduos respeitarão as
regras, o Estado deve ser estabelecido na forma de um regime absolutista, que
utiliza da violência caso os indivíduos não cumpram as leis (Herb, 2013).

2.2 Nicolau Maquiavel

Maquiavel, assim como Hobbes, tem uma visão cética da natureza


humana, acreditando que o indivíduo é egoísta e se preocupa apenas com seus
interesses próprios. Maquiavel apresenta os atributos necessários para o
governante (príncipe) se manter no poder. Para tanto, o soberano deveria adotar
estratégias militares, sem contemplar a ideia de que o governante deveria ser
eleito por Deus. O melhor governante seria aquele capaz de manter o seu poder
e o respeito e temor de seus súditos.
Em sua obra mais consagrada, O príncipe, o autor esboça as
características de Lourenço de Médici, que foi estadista da cidade-Estado
italiana de Florença. A finalidade da obra é formular uma espécie de manual
prático para os governantes tendo por objetivo ajudar o estadista a assegurar o
poder e garantir a estabilidade de seu governo (Maquiavel, 2007).
Duas são as características principais que um soberano deve ter para se
preservar no poder, as quais estão dissociadas da ideia de moral e ética: a
virtude e a fortuna. A virtude seria a capacidade de controlar as situações que o
estadista enfrenta e vencer os obstáculos que apresentam. A fortuna associa-se
à ideia de sorte ou oportunidade. O bom estadista deve unir os dois conceitos e
aplicá-los, sendo centralizador e tirano, se necessário. O mais importante para
Maquiavel é a habilidade de realizar o cálculo do poder e agir para atingir seus
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objetivos, independentemente das ferramentas. A frase mais reconhecida do
pensador provém dessa visão: “os fins justificam os meios”. Essa visão foi
importante para dar as bases ao realismo das RI, pois apresenta a ideia de que
o Estado busca incessantemente pelo poder, sem se preocupar com os meios a
serem utilizados para atingi-lo (Maquiavel, 2007).

TEMA 3 – O REALISMO CLÁSSICO DE EDWARD CARR

Edward Hallett Carr contribuiu para a construção teórica do realismo a


partir da elaboração de seu livro Vinte anos de crise: 1919-1939. Carr (2001)
apresenta uma crítica profunda ao pensamento teórico anterior, o liberal,
desenvolvendo, juntamente com Morgenthau, uma nova forma de compreender
a política internacional.
Os autores realistas surgem baseados em seu posicionamento científico
com o objetivo de mostrar a política internacional como ela realmente é, e não
como deveria ser, como faz a teoria liberal. Para Carr (2001), nenhuma utopia
política alcançará êxito desde que seja resultado da realidade política.
Carr (2001) indica os erros da visão baseada na universalidade dos
valores, em uma lei moral natural e na criação de uma autoridade superior aos
Estados para administrar as RI (Carr, 2001, p. 33). Segundo o autor, a Liga das
Nações representou os equívocos do pensamento liberal, pois foi a primeira
tentativa de padronizar os problemas internacionais pelo prisma da racionalidade
e falhou nessa tarefa (Carr, 2001, p. 40). O mecanismo de segurança coletiva,
no qual se sustentava a organização, fracassou, o que foi comprovado pelo
número crescente de acordos bilaterais. Portanto, Carr constata que o
desenrolar dos fatos demonstrou o fim da Liga como instrumento de
estabilização e ordem política (Carr, 2001, p. 44).
Carr (2001) finaliza sua obra assinalando que se deve rejeitar a visão de
embasar a moral internacional em uma harmonia de interesses que é irreal. A
adoção desse paradigma só foi possível no século XIX pela prosperidade
econômica. Porém, constatava-se apenas uma harmonia de interesses entre os
Estados aptos.

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TEMA 4 – O REALISMO CLÁSSICO: HANS MORGENTHAU

Hans Morgenthau, embasado na crítica ao liberalismo desenvolvida por


Carr, elaborou uma alternativa teórica para os estudos das RI, o realismo.
Morgenthau (2003) tinha como propósito construir uma teoria para a política
internacional que pudesse explicar de fato a realidade. O autor parte de uma
premissa de descrença nos princípios morais, defendendo um sistema de
balanceamento de poder que evitaria a guerra constante entre os Estados. Para
Morgenthau, o indivíduo possui uma natureza egoísta, baseando-se nos
argumentos de Hobbes e Maquiavel.
Morgenthau (2003, p. 6) apresenta seis princípios do pensamento realista.
O primeiro é de que a investigação da ação internacional do Estado deve basear-
se na análise dos atos políticos e os impactos deste em um sistema anárquico.
O segundo princípio é a ideia de que o interesse deve ser compreendido
em termos de poder. Portanto, a política deve estar separada das demais
esferas, como a economia, porque o objetivo maior dos Estados é alcançar o
poder. Esse pressuposto do interesse definido em termos de poder incorpora
uma ordem racional na política, que não leva em conta as boas intenções de
políticos ou as qualidades morais dos atores (Morgenthau, 2003, p. 7-11).
O terceiro princípio relaciona-se à concepção de que o interesse definido
em termos de poder representa uma categoria objetiva que é universalmente
válida, porém, isso não assegura a esse conceito um significado permanente.
Assim, o conteúdo e o modo como o poder é utilizado são definidos pelo
ambiente político e cultural. O poder incorpora todas as relações que objetivem
o controle do poder, podendo ser o uso da violência ou os vínculos psicológicos.
(Morgenthau, 2003, p. 14).
O quarto princípio estabelece que existe uma significação moral da ação
política, mas que há uma tensão permanente entre os valores morais e a
necessidade de uma ação política de sucesso. Dessa forma, o autor defende
que os princípios morais universais não podem ser aplicados a todas as ações
dos Estados, mas que devem ser selecionados pelas circunstâncias de tempo e
lugar. Essa premissa considera que a prudência, ou seja, a análise das
consequências da atitude, é a maior virtude da política. No entanto, a ética julga
a ação com base em um mandamento moral, o que é equivocado (Morgenthau,
2003, p. 18).

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O quinto princípio determina que a as aspirações morais particulares de
uma nação não são as normas morais que comandam as relações entre todos
os Estados. Portanto, os valores morais de um Estado não devem ser definidos
como padrões morais universais. É o conceito de interesse em termos de poder
que impede que as nações imponham suas leis morais aos demais Estados.
O sexto princípio defende que existe uma diferença considerável entre o
realismo político e as demais escolas do pensamento nas Relações
Internacionais. A principal distinção é em relação à autonomia e primazia da
política, com intuito de comprovar que uma política pode modificar o poder de
uma nação. Contudo, isso não significa que o realista político não considera a
importância de padrões de pensamento determinados por outras além da
política, somente que essas outras esferas estão subordinadas à política.
(Morgenthau, 2003, p. 23).

TEMA 5 – O REALISMO DOS ANOS 1960: A CONTRIBUIÇÃO DE RAYMOND


ARON

Para Aron, que tem uma visão neutra sobre a natureza humana, o poder
é apenas um meio para que seja possível a imposição de ideias de uns sobre as
de outros. Conforme o autor, o poder não é um conceito absoluto, mas uma
relação entre os homens (Aron, 2002). Segundo o pensador, a paz seria
simplesmente um momento de suspensão de ciclos de conflito e violência, ou
seja, o não conflito. Assim, a paz legítima baseada na cooperação não existe
para o autor. Portanto, a paz assume um conceito de não existência do conflito
armado, mas de potência, isto é, de capacidade de geração de conflito. Para
Aron, a paz do terror (paz da impotência) é a que reina entre as unidades que
tem a capacidade de desferir golpes mortais umas contra as outras (Sarfati,
2005).
A sua obra mais famosa, Paz e guerra entre as nações, foi publicada em
1962, e analisa o contexto de corrida armamentista e disputa ideológica entre as
duas grandes potências do período, EUA e URSS. De acordo com Aron (2002),
a existência de armas nucleares mudou substancialmente o jogo de poder na
política internacional porque a impossibilidade moral e física de utilizá-las
tornava o cálculo de força mais complexo.
Segundo Aron, o poder doméstico não é o mesmo na esfera internacional.
A essência da anarquia internacional é a concepção de ausência do monopólio
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legítimo do uso da força no cenário internacional, o qual o Estado possui dentro
de suas fronteiras. Desse modo, existe uma descontinuidade entre o sistema
político doméstico e o internacional, sendo que, neste último, existe alternância
entre guerra e paz. Diferentemente de Morgenthau (2003), Aron argumenta que
não pode existir uma única definição do interesse nacional em uma sociedade
plural e complexa e que a racionalidade e das escolhas dos Estados na política
externa não está garantida (Gaspar, 2013).
De acordo com Aron (2002), a ambição da teoria das relações
internacionais deve ser restringida, pois nunca será comparável ao da teoria
econômica. Para ele, a teoria das relações internacionais deveria ser uma teoria
da prática e uma teoria da ação.
Em 1983, Aron apresentou um debate sobre a organização das RI com
base na economia, argumentando que as disputas comerciais são entendidas a
partir de problemas estratégicos. Para o autor, existe uma predominância da
política sobre a economia no cenário internacional, pois a hostilidade entre
blocos rivais sobrepõe-se às rivalidades econômicas.

NA PRÁTICA

A Guerra Fria é explicada pelos realistas como uma disputa entre duas
potências que, baseadas em interesses egoístas, buscavam a eliminação do
inimigo. O interesse dos EUA e da URSS eram definidos em termos de poder.
Nesse contexto, a moral internacional não permitiu a harmonia de interesses,
mas o conflito, que se encerrou com a vitória dos EUA, é que impôs o regime
estadunidense (capitalista) ao resto do mundo.

Vídeo
Assista ao documentário “Sob a névoa da guerra”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=dSxx1V3ue_c&t=42s>.
O documentário apresenta as 11 lições da vida de Robert Macnamara,
que foi Secretário de Defesa dos EUA durante a Guerra do Vietnã. Identifique os
elementos realistas presentes nas lições apresentadas pelo documentário.

FINALIZANDO

Nesta aula, foi possível investigar o pensamento realista, desde seus


embasamentos iniciais até o desenvolvimento concreto da teoria. Existem
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diferenças entre os autores da escola, porém, o realismo clássico apresenta
algumas concepções gerais, como a ideia de o Estado definir seus interesses
em termos de poder, de o Estado como ator único das Relações Internacionais
e da inexistência de preceitos morais nas relações entre Estados.
Os autores clássicos, como Hobbes e Maquiavel, forneceram elementos
teóricos importantes para se pensar a ideia de luta pelo poder. Ambos acreditam
que a natureza humana é egoísta e, por isso, os Estados agem baseados em
cálculos de custo-benefício. Carr apresentou uma importante crítica ao
pensamento liberal, o qual considera ingênuo e distante da realidade, pois na
política internacional reina a anarquia e o conflito, sendo a cooperação
autointeressada e não baseada na racionalidade ou nos valores morais dos
Estados. Morgenthau concebeu os seis princípios que embasaram o
pensamento realista, enquanto Aron entendeu que o conflito que é uma
constante nas RI, devido à anarquia.

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REFERÊNCIAS

ARON, R. Paz e guerra entre as nações. São Paulo: Funag, 2002.

CARR, E. Vinte anos de crise (1919-1939). São Paulo: Funag, 2001.

CORDEIRO, C. C. V.; CULPI, L. A. Teoria de relações internacionais: origens


e desenvolvimento. Curitiba: InterSaberes, 2017.

GASPAR, C. Waltz, Morgenthau e Aron. Relações internacionais, Lisboa, n.


39, p. 5-13, 2013. Disponível em:
<http://www.scielo.mec.pt/pdf/ri/n39/n39a01.pdf>. Acesso em: 23 abr. 2018.

HERB, K. Além do bem e do mal: o poder em Maquiavel, Hobbes, Arendt e


Foucault. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 10, v. 1, 2013.

MAQUIAVEL, N. O príncipe. Comentários de Napoleão Bonaparte e Rainha


Cristina da Suécia. São Paulo: Jardim dos Livros, 2007.

MORGENTHAU, Hans. A política entre as nações. São Paulo: Funag, 2003.

SARFATI, G. Teorias de relações internacionais. São Paulo: Saraiva, 2005.

NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das relações internacionais: correntes


e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

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