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O estudo das organizações e instituições internacionais implicará reconhecer a presença dos

múltiplos internacionalismos, social e historicamente construídos e situados, que as


informam. Exigirá pensar a articulação das lógicas de cooperação e de competição num
mundo ordenado por regras e normas internacionais, as quais refletem e salvaguardam os
interesses e os valores dos atores internacionais que as sustentam. E incluirá analisar o
dinamismo da evolução das organizações e instituições internacionais, sendo capazes de
responder e de se adaptarem ao contexto internacional. Comente criticamente estas
afirmações, articulando exemplos empíricos que considere pertinentes para ilustrar a sua
resposta. [máx. 2000 palavras]

Tudo no mundo social é sujeito de interpretação, dependente de perspectivas e “pré-


conceitos”. As Relações Internacionais (RI) não escapam ilesas a este facto: não existe uma
verdade, mas sim várias narrativas – e quem controla a narrativa, controla o modo como
influencia o que consideramos como verdade. Por isso, o estudo das organizações e
instituições depende da perspectiva que adoptamos, da nossa ontologia, da nossa visão do
mundo.
A própria conceptualização de internacionalismo envolve um conjunto de visões
antagónicas e/ou complementares do mundo. Consensualmente, traduz-se num processo de
construção de uma comunidade mais abrangente que a nação ou o Estado (Halliday). As
conceptualizações hobbesiana e kantiana, pela sua ligação às principais teorias das RI, são
aquelas que mais atenção costumam merecer. A primeira, centrada na soberania do Estado, e,
sobretudo, na permanente desconfiança derivada do estado de “luta de todos contra todos” no
plano internacional, coaduna-se com a visão realista das RI de luta constante pela
sobrevivência dos Estados, fruto da natureza pessimista do Homem (realismo clássico) ou da
estrutura do sistema anárquico (neorrealismo). A segunda, propõe uma lei cosmopolita moral,
assente no comércio, nas organizações internacionais e livre da guerra, baseada no bem-estar
do indivíduo e na harmonização de interesses.
Ou seja, perante a anarquia do sistema internacional, as teorias das RI têm perspectivas
antagónicas: competição vs. cooperação. Mas o que é verdade, e é ponto assente em todas as
teorias, é que o sistema internacional é pautado pela anarquia e cada qual tem uma visão
sobre esta, principalmente num mundo globalizado. Por exemplo, a cooperação realista é
sempre olhada em termos de “balanced gains”, por receio de que esta interdependência
excessiva ponha em risco a sua independência e/ou segurança, sendo as instituições nada
mais que instrumentos do poder das grandes potências. O caso da NATO (1949), aliando uma
perspectiva realista a uma crítica marxista, funciona como o palco das grandes potências
imperialistas, como organização que reforça o poder americano, surgindo como aliança
militar (defesa num clima de incerteza e competição da Guerra Fria). Numa óptica
construtivista, a concepção de “segurança colectiva” (e até de ameaça/paz) é susceptível de
interpretações, uma vez que a identidade e a intersubjectividade importam. Paralelamente ao
aparecimento da NATO, surge no contexto dialéctico da Guerra Fria o Pacto de Varsóvia
(1955), aliança militar soviética fundada na perspectiva do internacionalismo proletário, isto
é, na visão de cooperação e solidariedade entre todos os trabalhadores, pois não há maior
divisão que a classe, que supera até nações – é a congregação de todos aqueles que viveram
explorados, é o trabalho contra o capital. Contudo, as aspirações de Marx e Engels (esta e
outras) sofreram alguns desvios com a burocratização estalinista e a ideia de socialismo no só
país, com o fim da visão transacional da realidade. Contudo, importa notar que estas duas
organizações foram criadas não apenas com o intuito de protecção e defesa dos Estados, mas
também na proliferação dos seus valores, ideias e influência. Não deixa de ser interessante
aliar estas noções às de comunidade de segurança de Deutsch que, num desafio ao realismo,
admite reductor estudar a estabilidade internacional através das grandes potências, dando
grande importância à interdependência. Estas comunidades de segurança, para além de
grupos de defesa e segurança colectiva, são fóruns de partilha de valores, entendimento sobre
interesses comuns, entre outros, um lugar de integração, na óptica liberal.
Desde o fim da 2ª Guerra Mundial que aumentaram os laços entre nações, bem como os
processos de integração. Uma vez que a realidade internacional é ordenada, a integração não
deve ser estudada como um processo finito, pela constante existência de pressões de
integração e de desintegração. Ora, com o aumento da densidade social, gera-se a integração
sistémica, que implica a compatibilização de subsistemas que fomentam a interdependência
em diversos domínios. Emerge, assim, o processo de diferenciação entre as diferentes
organizações internacionais, no qual o contributo de diferentes teorias é muito importante.
Em 1951, é criada a CECA, inspirada no funcionalismo, isto é, numa resposta teórica à
obsolescência dos Estados (Miltrany), onde algumas das funções do Estado são preenchidas
por certos organismos – passagem da responsabilidade do tratamento e comércio do carvão e
aço para fora da esfera dos Estados, numa óptica de supranacionalismo (“Alta Autoridade”).
É interessante observar a evolução CECA-CEE-UE, de uma organização (menos)
supranacional para uma com pretensões federalistas. Numa óptica construtivista, a UE é
talvez um dos maiores projectos de construção de uma identidade colectiva, partilha de
interesses, valores e normas. As instituições são vistas como estruturas relativamente estáveis
de identidades e interesses (Wendt), que moldam os agentes e são influenciadas por estes – e
a UE funciona como uma grande agência de sociabilização. Ademais, é um fórum de
intersubjectividade, isto é, de significados partilhados. Tudo isto ajuda na construção e
fortalecimento de uma identidade europeia e de um sentimento de pertença que pode ajudar a
levar a níveis mais profundos de integração.
Com o fim da Guerra Fria, dá-se uma mudança inexpectável de transição de poder, pelo
que as antigas organizações internacionais têm de se adaptar ao novo contexto internacional.
A ideia de que a democracia e o liberalismo não têm rivais, sendo este um período de fim da
história (ideia de Fukuyama), levam os EUA a expandirem estes ideais a todo o custo – é a
época do neoliberalismo, i.e., a exportação de normas, valores, etc., pelas organizações, que
se estende aos próprios Estado. Contudo, o problema desta cooperação parece insuperável,
pois parece haver uma constante desconsideração das variáveis em jogo: as instituições não
podem funcionar como garante de direitos e pilares da paz e solidariedade se tal implica a
imposição pela força destes ideais (crítica do imperialismo liberal de Lenine e da ingerência
de Michael Doyle). Aliás, na própria óptica realista tal nunca poderá acontecer, pois as
organizações são fóruns de espelhamento do poder do mais forte (Mearsheimmer), bem como
de perpetuação das desigualdades e conflitos (como nos dizem as Teorias Críticas). É o caso
do sistema Bretton Woods, nomeadamente, do FMI – o sistema de quotas pouco democrático
(grupo de países restrito com mais de metade da capacidade de votos e o facto de só os EUA
possuírem sozinhos cerca de 17% destas) e a questão da fórmula neoliberal, isto é, a
aplicação cega e universal da mesma solução neoliberal para todos os países,
independentemente das suas condições materiais, são prova da prevalência de uma narrativa
nas RI, a liberal.
Deste modo, neste período parece haver a institucionalização de uma ordem: a ordem
liberal. As organizações que funcionaram como mecanismos de coordenação, criadores de
regras e normas ascenderam ao nível de instituição, isto é, os valores outrora propagados
pelas organizações liberais, EUA e parceiros, parecem ter-se intrincado e formado uma
ordem dominante internacional. Tal é exactamente patente através daqueles que são os
membros pertencentes à maioria das organizações da instituição capitalista neoliberal e da
observação daqueles que ficam de fora desta e das suas interacções, pois são países que não
alinham e não se coadunam com esta visão do mundo (caso de Cuba). Por isso creio que,
desde 1945, foi estabelecida uma ordem, que creio ser uma mistura entre coerciva (imposta
“pelos poderosos”) e consensual (convergência de valores), dado que este processo não é
linear.
Mas estará em crise? Ora, em 2004, a rejeição holandesa e francesa faz cair por terra a
proposta para uma Constituição Europeia, afastando uma integração mais profunda. Em
2005, a Guerra do Iraque põe a nu o expansionismo liberal (imperialismo liberal como a
última fase do capitalismo). E desde 2006 o número de democracias liberais tinha começado
a diminuir. A meu ver, em primeira instância, parece estar a haver um abrandamento da
tendência neoliberal. Contudo, aquilo que temos (e teremos) são consecutivas respostas de
reformas à ordem internacional liberal, como é exemplo a social-democracia. Mas um
sistema que parece obsoleto, cheio de injustiças sociais e desigualdades, marcado pela
exploração e contradição das suas premissas, eventualmente entrará em colapso. A ordem
liberal não olha a nada senão à permanência da sua hegemonia no plano internacional e na
expansão das suas bases: a democracia e a economia liberais – e fá-lo através das suas
organizações e instituições. O modelo está em crise há já algum tempo e talvez uma reforma
não chegue para uma alteração tão profunda e estrutural de todo um modo de vida. A questão
é: para onde iremos agora? Não sei, mas o internacionalismo, a cooperação e a solidariedade
manter-se-ão, mas desta vez inequivocamente por algo que nos une, por fim.

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