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“A mais importante dentre todas as instituições afetadas por esse intelectualismo míope da política
internacional foi a Liga das Nações, que foi uma tentativa de aplicar os princípios do liberalismo para a
construção de uma estrutura institucional para a ordem internacional. Entretanto, esse transplante da
racionalidade democrática da esfera nacional para a internacional estava cheio de dificuldades imprevistas. A
Liga das Nações, sendo a primeira tentativa em larga escala de padronizar os problemas políticos
internacionais sobre uma base racional, foi particularmente sujeita a esses embaraços” (CARR, 2001, Cap. III,
p. 40).
“Autores britânicos e americanos continuaram a presumir que a inutilidade da guerra havia sido
irrefutavelmente demonstrada pela experiência de 1914-18, e que a captação intelectual deste fato
representava tudo o que era necessário para induzir as nações a manterem a paz no futuro. A confusão piorou
devido à presteza de outros países em imitarem o mundo anglo-saxão, repetindo seus slogans. Nos quinze
anos após a Primeira Guerra Mundial, todas as grandes potências (exceto, talvez, a Itália) repetidamente
bajularam a doutrina, ao declararem a paz como um dos objetivos principais de suas políticas” (CARR, 2001,
cap. V, p. 71).
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O colapso da década de trinta foi contundente demais para ser explicado meramente em termos de ações ou
omissões individuais. Sua ruína envolveu a falência dos postulados em que estava baseada. Os fundamentos
das crenças do século 19 estão, eles próprios, sob suspeição. Pode bem ser verdade, não que homens
tolamente ou mesquinhamente deixaram de aplicar os princípios corretos, mas que os próprios princípios
fossem falsos ou inaplicáveis. Pode bem não ser verdade que, se os homens raciocinarem corretamente
sobre política internacional, também agirão corretamente; ou que o raciocínio correto sobre interesses
próprios, ou de uma nação, seja o caminho para um paraíso internacional. Se os postulados do liberalismo
do século 19 são de fato insustentáveis, não deve causar-nos surpresa o fato de que a utopia dos teóricos
internacionais causasse tão pouco efeito sobre a realidade. Entretanto, se eles são insustentáveis hoje em
dia, também temos de explicar porque encontraram aceitação tão ampla, e inspiraram conquistas tão
esplêndidas, no século 19” (CARR, 2001, Cap. IV, p. 55).
“O realismo entra em cena muito após a utopia, e como forma de reação contra ela. Maquiavel foi o primeiro
importante realista político. O ponto de partida de Maquiavel é uma revolta contra a utopia do pensamento
político da época: "Sendo minha intenção a de escrever algo que seja útil a quem o ler, parece-me mais
apropriado procurar a verdade real do que a imaginação; pois muitos descreveram repúblicas e principados
que, de fato, jamais foram vistos ou conhecidos, porque como se vive está tão distante de como se deveria
viver, que aquele que renega o que foi feito, pelo que deveria ter sido feito, cedo defronta sua ruína, em lugar
de sua preservação.
Os três princípios essenciais, implícitos na doutrina de Maquiavel, são as pedras fundamentais da filosofia
realista. Em primeiro lugar, a história é uma sequência de causa e efeito, cujo curso se pode analisar e entender
através do esforço intelectual, porém não (como os utópicos acreditam) dirigida pela "imaginação". Em
segundo lugar, a teoria não cria (como presumem os utópicos) a prática, mas sim a prática é quem cria a teoria.
Nas palavras de Maquiavel, "bons conselhos, venham de onde vierem, nascem da sabedoria do príncipe, e
não a sabedoria do príncipe dos bons conselhos". Em terceiro lugar, a política não é (como pretendem os
utópicos) uma função da ética, mas sim a ética o é da política. Os homens "mantém-se honestos pela coação".
Maquiavel reconheceu a importância da moral, mas pensava que não poderia existir nenhuma moral efetiva
onde não houvesse uma autoridade efetiva. A moral é produto do poder'” (CARR, 2001, Cap. V, pp. 85-86).
“O moderno realismo difere, contudo, num importante aspecto, daquele dos séculos dezesseis e dezessete
(...) A importante contribuição do realismo moderno, entretanto, foi a de revelar, não apenas os aspectos
determinísticos do processo histórico, mas o caráter relativo e pragmático do próprio pensamento. Nos
últimos cinquenta anos, graças principalmente, mas não exclusivamente, à influência de Marx, os princípios
da escola histórica têm sido aplicados à análise do pensamento. O realista pôde, então, demonstrar que as
teorias intelectuais e os padrões éticos dos utópicos, longe de serem a expressão de princípios absolutos e
apriorísticos, são historicamente condicionados, sendo tanto frutos dos interesses e circunstâncias, como
armas forjadas para a defesa de interesses. Este é, de longe, o mais formidável ataque que a utopia precisa
enfrentar; pois aqui as próprias bases de sua crença são solapadas pela crítica realista” (CARR, 2001, Cap. V,
pp. 85, 90-91).
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inimigo, ou inimigo em potencial, são uma das formas mais comuns de pensamento intencional. Retratar
inimigos, ou possíveis vítimas, como seres inferiores perante Deus tem sido uma técnica familiar, de toda
forma, desde os dias do Velho Testamento. As teorias raciais, antigas e modernas, pertencem a esta categoria
pois o domínio de um povo, ou classe, sobre outro é sempre justificado pela crença na inferioridade mental e
moral do dominado” (CARR, 2001, Cap. V, pp. 94-95).
“Sua tarefa [do realista] é derrubar toda a estrutura de papelão do pensamento utópico, expondo toda a
fragilidade do material de que é feito. Deve-se usar a arma da relatividade do pensamento para demolir o
conceito utópico de um padrão fixo e absoluto, pelo qual as políticas e ações podem ser julgadas. Se as teorias
forem reveladas como reflexos da prática, e os princípios como reflexos das necessidades políticas, em
consequência, esta descoberta aplicar-se-á às teorias e princípios fundamentais do credo utópico, assim como
à doutrina da harmonia de interesses, que é seu postulado essencial” (CARR, 2001, Cap. V, p. 99).
“Não será difícil demonstrar que o utópico, quando prega a doutrina da harmonia de interesses, inocente e
inconscientemente estará vestindo seu próprio interesse com o manto do interesse universal, a fim de impô-
lo ao resto do mundo. "Os homens facilmente creem que situações agradáveis a si próprios são benéficas aos
outros", como Dicey observara, e as teorias do bem público que, à luz da análise, provam ser um disfarce
elegante para algum interesse particular, são tão comuns nas questões nacionais quanto nas internacionais.
O utópico, por mais ávido que esteja de estabelecer um padrão absoluto, não defende que seja dever de seu
país, em conformidade com este padrão, colocar o interesse do mundo como um todo antes dos seus próprios.
Isto seria contrário à sua teoria de que o interesse do todo coincide com o interesse de cada parte. Ele
argumenta que o que é melhor para o mundo é melhor para seu país e, então, inverte o argumento para ler
que o que é melhor para seu país é melhor para o mundo, as duas proposições sendo, do ponto de vista
utópico, idênticas. Esse cinismo inconsciente do utópico contemporâneo provou ser uma arma diplomática
muito mais eficaz do que o cinismo deliberado e consciente de um Walewski ou de um Bismarck” (CARR, 2001,
Cap. V, p. 100).
“Woodrow Wilson era menos ingenuamente egoísta, porém mais profundamente confiante na identidade da
política americana com a justiça universal. Pouco tempo antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, num
discurso ao Senado sobre os propósitos da guerra, estabeleceu essa identificação de forma ainda mais
categórica: "Estes são princípios americanos, políticas americanas... São os princípios da humanidade, e devem
prevalecer” (CARR, 2001, Cap. V, pp. 103-104).
“A solução é simples. As teorias da moral social são sempre produto de um grupo dominante, que se
identifica com a comunidade como um todo, e que possui facilidades, negadas aos grupos ou indivíduos
subordinados, para impor sua visão da vida na comunidade. As teorias da moral internacional são, pela
mesma razão e em virtude do mesmo processo, o produto das nações ou grupos de nações dominantes. Nos
últimos cem anos, e mais particularmente desde 1918, os povos de língua inglesa formaram o grupo
dominante no mundo e as atuais teorias da moral internacional foram projetadas para perpetuar sua
supremacia, e se expressaram no idioma peculiar a eles. A Alemanha, jamais uma potência dominante, e
reduzida à impotência após 1918, permaneceu, por essas razões, fora do círculo mágico dos formadores da
moral internacional. Tanto a visão de que os povos de língua inglesa são os monopolistas da moral
internacional, quanto a visão de que eles são hipócritas internacionais consumados, podem ser reduzidas ao
simples fato de que os atuais cânones da virtude internacional foram, por um processo natural e inevitável,
criados principalmente por eles” (CARR, 2001, Cap. V, p. 105).
“A doutrina da harmonia de interesses sucumbe sem dificuldade à análise nos termos [do realismo]. Ela é o
pressuposto natural de uma classe próspera e privilegiada, cujos membros têm voz dominante na
comunidade e são, portanto, propensos a identificar os interesses dela com os seus próprios. Em virtude
dessa identificação, qualquer um que ataque os interesses do grupo dominante incorrerá na repulsa por
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atacar o alegado interesse comum de toda a comunidade e lhe será dito que, ao fazer esse ataque, estará
atacando seus próprios interesses mais elevados. A doutrina da harmonia de interesses serve, então, como
um artificio moral engenhoso invocado, com perfeita sinceridade, por grupos privilegiados, para justificar e
manter sua posição dominante” (CARR, 2001, Cap. V, pp. 105-106).
“O interesse comum na paz mascara o fato de que algumas nações desejam manter o status quo sem terem
de lutar por ele, e outras, mudar o status quo sem precisarem lutar para isso. A declaração de que é do
interesse do mundo, como um todo, que o status quo deva ser mantido, ou que deva ser mudado, seria
contrária aos fatos. A declaração de que é do interesse do mundo, como um todo, que a conclusão seja
finalmente alcançada, de manutenção ou mudança, deva ser alcançada por meios pacíficos, mereceria
aprovação geral, mas parece um lugar-comum sem nenhum sentido. O pressuposto utópico de que existe um
mundo interessado na paz, que é identificável ao interesse individual de cada nação, ajudou os políticos e
escritores políticos de toda parte a fugirem do fato intragável da existência de divergências fundamentais de
interesses entre as nações desejosas de manterem o status quo, e as nações desejosas de mudá-lo. Uma
peculiar combinação de lugar-comum e falsidade tornou-se, então, endêmica nos pronunciamentos de
estadistas acerca de problemas internacionais. O fato da existência de interesses divergentes foi disfarçado e
falsificado pelo lugar-comum de um desejo geral de evitar o conflito (CARR, 2001, Cap. IV, pp. 71-72).
“Politicamente, a alegada comunhão de interesses na manutenção da paz, cujo caráter ambíguo já foi
discutido, é capitalizada da mesma forma por uma nação ou grupo de nações dominantes. Da mesma forma
que a classe governante, numa comunidade, reza pela paz interna, que garante sua segurança e seu
predomínio, e denuncia a luta de classes, que pode ameaçá-la, a paz internacional torna-se objeto de especial
interesse das potências dominantes. No passado, os imperialismos romano e britânico eram exibidos para o
mundo sob o disfarce de pax Romana e pax Britannica. Hoje em dia, quando nenhuma potência é
suficientemente forte para dominar o mundo e um grupo de nações se reveste da supremacia, slogans como
"segurança coletiva" e "resistência à agressão" servem ao mesmo propósito de proclamar a identidade de
interesses entre o grupo dominante e o mundo como um todo na manutenção da paz” (CARR, 2001, Cap. V,
pp. 108-109).
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“Os países que lutam para forçar seu caminho para o grupo dominante naturalmente tendem a invocar o
nacionalismo, contra o internacionalismo das potências hegemônicas. No século passado, a Alemanha opôs
seu nacionalismo nascente ao internacionalismo, primeiro da França, depois da Grã-Bretanha. Sua hostilidade
ao internacionalismo foi posteriormente agravada após 1919, quando Grã-Bretanha e França empenharam-
se em criar urna nova "ordem internacional", como sustentáculo de seu próprio predomínio” (CARR, 2001,
Cap. V, pp. 112-114).
“Devemos, portanto, rejeitar como inadequada e errônea a tentativa de basear a moral internacional numa
pretensa harmonia de interesses, que identifica o interesse da totalidade da comunidade das nações, com o
interesse de cada membro individual dela (CARR, 2001, Cap. IV, p. 80).
“(...) na medida em que se tenta aplicar esses princípios pretensamente abstratos a uma situação política
concreta, eles se revelam como disfarces que deixam transparecer interesses egoístas. A falência da visão
utópica reside não em seu fracasso em viver segundo seus princípios, mas no desmascaramento de sua
inabilidade em criar qualquer padrão absoluto e desinteressado para a condução dos problemas
internacionais. O utópico, em face do colapso dos padrões cujo caráter interesseiro ele não compreendeu, se
refugia na condenação de uma realidade que se recusa a adaptar-se àqueles padrões” (CARR, 2001, Cap. V,
pp. 114-115).
“O que se nos defronta na política internacional de hoje é, portanto, nada menos do que a completa falência
da concepção de moral que dominou o pensamento político e econômico durante um século e meio.
Internacionalmente, não é mais possível deduzir a virtude através do raciocínio correto, porque não se pode
mais seriamente crer que todo estado, ao buscar o maior bem para o mundo inteiro, esteja visando ao maior
bem para seus próprios cidadãos, e vice-versa. A síntese da moral e da razão, pelo menos sob a forma crua
do liberalismo do século dezenove, é insustentável. O real significado da atual crise internacional é o colapso
de toda a estrutura utópica, baseada no conceito da harmonia de interesses. A geração atual terá de
reconstruir a partir das bases. Antes que se possa fazer isto, antes que possamos determinar o que pode ser
salvo das ruínas, devemos examinar as falhas na estrutura que a levaram ao colapso e faremos isto de forma
melhor analisando a crítica realista aos pressupostos da corrente utópica” (CARR, 2001, Cap. IV, pp. 82-83).
“A mesma análise pode ser aplicada às relações internacionais. Os estadistas britânicos do século dezenove,
tendo descoberto que o comércio livre promovia a prosperidade britânica, convenceram-se sinceramente de
que, ao fazerem isto, promoviam também a prosperidade do mundo como um todo. O predomínio britânico
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no comércio mundial era, nesta época, tão esmagador que havia uma certa harmonia inegável entre os
interesses britânicos e os interesses do mundo. A prosperidade britânica fluía para outros países, e um colapso
econômico da Grã Bretanha teria significado a ruína em escala mundial. Os defensores britânicos do livre
comércio poderiam argumentar, e de fato o fizeram, que os países protecionistas estavam não somente
prejudicando a prosperidade do mundo como um todo, mas prejudicando estupidamente a sua própria
prosperidade, de modo que seu comportamento era tão imoral quanto estúpido. Aos olhos britânicos, estava
irrefutavelmente provado que o comércio internacional era um todo único, e florescia ou declinava junto.
Contudo, esta alegada harmonia internacional de interesses parecia uma brincadeira para as nações pobres
cujo status inferior e insignificante parcela que lhes cabia no comércio internacional eram consagrados por
ela. A revolta contra isso destruiu aquela ampla supremacia britânica que dera uma base aceitável para a
teoria. Economicamente, a Grã-Bretanha no século dezenove era suficientemente dominante para fazer o
lance audacioso de impor sua própria concepção de moral econômica internacional” (CARR, 2001, Cap. V, pp.
107-108).
“O laissez faire, tanto nas relações comerciais internacionais, quanto nas entre capital e trabalho, é o paraíso
do economicamente forte. O controle estatal, seja sob a forma de legislação protetora, ou de tarifas
protecionistas, é a arma de legítima defesa invocada pelo economicamente fraco. O choque de interesses é
real e inevitável e a natureza do problema é totalmente distorcida por uma tentativa de esconder isto”
(CARR, 2001, Cap. IV, p. 80).