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Retomando os Caminhos da Liberdade1

 Sérgio Paulo Muniz Costa

Liberdade, palavra inebriante que esconde o segredo da felicidade humana, é


do que trata o austríaco Friedrich August von Hayek em seu livro O Caminho da
Servidão, escrito em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial.
Do ponto de vista histó rico, a obra multidisciplinar de Hayek é uma
importante contribuiçã o para a compreensã o de um dos aspectos menos
discutidos e conhecidos do desenvolvimento do conflito – a elaboraçã o da nova
ordem mundial ainda em plena guerra.
O livro é, também, um esforço notá vel de convencimento, inicialmente
dirigido à opiniã o pú blica inglesa e, em seguida, estendido à ocidental. A
perspectiva da vitó ria aliada e a percepçã o da tragédia que se abatera sobre a
humanidade mobilizaram as lideranças ocidentais no sentido de acordarem as
linhas mestras de uma nova forma de convívio entre as naçõ es na era que se
seguiria.
A partir de 1943, ocorreram conferências nos Estados Unidos, com a
participaçã o de delegaçõ es de diversas naçõ es, inclusive do Brasil, com destaque
em algumas delas, nas quais foram tratados os temas da reconstruçã o dos países
diretamente atingidos pela destruiçã o da guerra e da construçã o de instituiçõ es
que regulassem as relaçõ es políticas e econô micas em bases mais razoá veis e
seguras do que as vigentes nas décadas anteriores, o ambiente no qual germinou,
conjunturalmente, a Segunda Guerra Mundial.
Embora Hayek afirme que, nos anos da Segunda Guerra, a maioria dos seus
colegas economistas ingleses se encontravam preocupados demais com a
gerência da economia de guerra, as elites inglesas e norte-americanas já
visualizavam à quela altura o pó s-guerra e pode-se perceber no livro que o
pró prio autor está motivado pelo ideal reformista nascido com o alvorecer da
vitó ria.
1
Monografia vencedora do concurso patrocinado pela Biblioteca do Exército sobre a obra de
Friedrich A. Hayek, O Caminho da Servidão. Publicada em A Defesa Nacional (ISSN 0011-7641),
ano LXXXII, n. 774, 4o Trim. 1996, p. 107-122, e selecionada pelo Programa de Diplomados da
Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (PADECEME).
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O autor, baseado em seu testemunho pessoal dos acontecimentos no período


entre-guerras e equipado com uma formaçã o humanística invejá vel, desenvolve
sua argumentaçã o num estilo peculiar, alternando informaçõ es, apelos e
ponderaçõ es baseadas nas diferentes disciplinas do seu domínio, sem deixar,
eventualmente, de polemizar com elegâ ncia e cortesia.
Embora o coroamento de sua obra seja uma posposta econô mica globalizante,
o objetivo colimado pelo autor nã o foi exclusivamente a política econô mica
internacional. Boa parte de sua consistente e alentada argumentaçã o está
dirigida ao pú blico inglês. Demonstrando perplexidade e inconformismo ante a
generalizaçã o entre os ingleses do mesmo tipo de pensamento que levou os
alemã es ao totalitarismo nazista, Hayek fez um contundente alerta à sociedade
berço do liberalismo.
Essa crítica do passado recente, elaborada num momento de busca de novos
caminhos pela humanidade, entã o assolada por uma de suas maiores tragédias,
faz de O Caminho da Servidão uma obra definitivamente atual, na condiçã o de
libelo contra os totalitarismos de toda natureza que rondam a moderna
sociedade.
A opçã o metodoló gica do presente estudo foi tomada tendo em vista realçar o
cará ter multidisciplinar da obra, que confirma a abrangência e a complexidade
da questã o da liberdade. Nada mais enganoso do que encarar a obra de Hayek
como um livro de economia escrito por um economista, uma vez que o mesmo
contém preciosas liçõ es de Filosofia, Direito e Política que legitimam o estímulo
econô mico como mola de uma sociedade mais justa.
A estrutura do livro esconde, na elegâ ncia e fluidez da sua argumentaçã o, o
cará ter multidisciplinar da obra. Para bem identificar as principais liçõ es de
Hayek e comprovar a amplitude e profundidade da questã o da liberdade, o corpo
do presente estudo foi organizado em cinco títulos que abordam á reas capitais
do conhecimento humano fundamentais para a vida em sociedade – a Filosofia, o
Direito, a Política, a Economia e a Histó ria.
Mas é importante assinalar que a permanência da obra de Hayek na cultura
ocidental também é devida à honestidade, à compreensã o, à capacidade, e ao
desassombro de um homem que mobilizou todo o seu gênio para alertar seus
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semelhantes sobre o erro que a maioria deles estava em vias de cometer,


escolhendo, inconscientemente, o caminho da servidã o.
Encontramos aí a marca distintiva dos legítimos apó stolos da liberdade, a
crença de que os adversá rios, a princípio, estã o cometendo um erro intelectual
que pode ser corrigido por uma argumentaçã o lú cida e transparente. O apelo
sincero à sensatez e à coerência é o apelo espiritual mais precioso manifestado
nas linhas desse magnífico atestado de fé na vocaçã o do homem ser livre.

UMA BASE FILOSÓFICA

Diversidade e pluralidade de objetivos individuais


A admissã o de que cada ser humano é ú nico, no somató rio de atributos
afetivos, cognitivos e psicomotores, é amplamente reconhecida pela sociedade.
No entanto, essa originalidade é sistematicamente violada pelos apelos ou
imposiçõ es da sociedade de massa, típica resultante da industrializaçã o do
século XX.
O desencanto das massas apó s a Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, o
seu desespero na década de 30 foram grandes fermentadores do fenô meno
totalitá rio neste século. Sob o domínio do totalitarismo, as massas foram
instrumento e veículo da mais sistemá tica destruiçã o da individualidade já
verificada na Histó ria da Humanidade.
É desse fenô meno – a destruiçã o da individualidade na sociedade totalitá ria –
que Hayek extrai diversas conclusõ es significativas para a preservaçã o da
liberdade. Uma das mais importantes é a relativa à singularidade e à diversidade
dos objetivos de cada ser humano2. Embora seja consensual a pluralidade e a
multiplicidade de interesses humanos, nã o raro olvidamos essa evidência
socioló gica cavalgando a quimera da felicidade para todos planejada por poucos.
A importância da preservação da esfera individual do livre arbítrio

2
“O bem-estar de um povo, assim como a felicidade de um homem, dependem de inú meras coisas
que lhe podem ser proporcionadas numa infinita variedade de combinaçõ es” (p. 75 –
Planificação e Democracia).
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Outra liçã o preciosa tirada da obra de Hayek é um prosseguimento necessá rio


do preceito anterior. Para que haja moral é fundamental que exista liberdade 3,
particularmente de agir conforme os pró prios objetivos.
Consequentemente, a moral é, ao contrá rio do que muitas pessoas nã o
adeptas do totalitarismo pensam, um fenô meno interno ao indivíduo e nã o
imposto a ele pela sociedade. Para aqueles que se surpreendem com esta
observaçã o4, basta lembrar que a evoluçã o da humanidade se fez justamente pela
progressiva reduçã o do campo regulató rio “moral” sobre o indivíduo.
Mas, entre a moral e a liberdade se estabelece uma dependência em duplo
sentido pois, contrariamente ao anteriormente afirmado, pode-se dizer que a
moral fundamenta a liberdade. Só uma conduta pessoal pautada por objetivos
pró prios intangíveis pode inspirar o afastamento de qualquer forma de opressã o,
o entendimento preciso de liberdade.
Essa liçã o aprofunda significativamente as raízes de uma sociedade livre,
levando à compreensã o da complexidade de sua criaçã o e evoluçã o, mas também
da sua capacidade de resistência aos seus poderosos inimigos.
A limitação do poder
Sucede-se na irresistível argumentaçã o de Hayek outro alerta contra a
pretensã o de poucos fazerem a felicidade de muitos. Por mais bem intencionada,
culta e determinada que venha a ser uma pessoa 5 que aspire promover a
felicidade humana, sua vivência limitada restringirá irremediavelmente a quase
nada sua capacidade de perceber os objetivos e as necessidades de todos os
homens.

3
“Nossa geraçã o corre o perigo de esquecer, nã o só que a moral é um fenô meno da conduta
pessoal, mas também que ela só pode existir na esfera em que o indivíduo tem liberdade de
decisã o e é solicitado a sacrificar voluntariamente as vantagens pessoais à observâ ncia de uma
regra moral” (p. 191 – Condições Materiais e Objetivos Ideais).

4
A moral vem apresentando uma tendência a tornar-se cada vez mais uma simples linha
divisó ria a circunscrever a esfera em que o indivíduo pode agir livremente” (p.75 – Planificação e
Estado de Direito).

5
O fundamental é que cada pessoa só pode se ocupar de um campo limitado, só se dá conta da
premência de um nú mero limitado de necessidades. Quer os seus interesses girem apenas em
termos das pró prias necessidades físicas, quer se preocupe com o bem-estar de cada ser humano
que conhece, os objetivos que lhe podem dizer respeito corresponderã o sempre a uma parte
infinitesimal das necessidades de todos os homens (p.76 – Planificação e Democracia).
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Ao empregarmos a palavra poder, devemos ter em vista o seu significado


social. Toda pessoa que pretenda prover as necessidades de outras pessoas
inevitavelmente deverá traduzir os objetivos daquelas pessoas. Nã o se deve
incluir nesse rol aquelas pessoas dedicadas à filantropia ou à caridade, pois seu
desígnio é muito mais limitado, mas nem por isso irrelevante – a garantia do
atendimento de necessidades físicas bá sicas a algumas pessoas em condiçõ es
especiais.
O apelo dessa liçã o extraída do elaborado discurso de Hayek é de que os seres
humanos tenham humildade de reconhecer que nã o podem pretender
interpretar os desejos de todos os seus semelhantes. Insere-se, nessa altura da
argumentaçã o, uma proposta de prá tica existencial que dá uma outra dimensã o à
obra de Hayek que já foge ao escopo deste estudo.
A soberania do sistema de objetivos do indivíduo
A diversidade e a pluralidade de objetivos, bem como a esfera de livre arbítrio
do indivíduo, só poderã o existir na medida em que for reconhecida a soberania
de objetivos individuais6.
A impressã o inicial de que o pleito de uma soberania de objetivos individuais
se confunde com a existência desses objetivos pode ser desfeita se nos
recordarmos da origem política do termo soberania na Revoluçã o Francesa. O
abismo existente entre a personificaçã o da vontade da naçã o na figura do rei e o
reconhecimento de que ela poderia expressar soberanamente essa vontade
através de instituiçõ es foi superado por um enorme passo da humanidade, à
custa de enormes sacrifícios.
É preciso mais do que o reconhecimento da pluralidade e da diversidade. É
necessá rio que sejam garantidas as suas condiçõ es de constituiçã o e
sobrevivência. Essa liçã o pode nos leva a reflexõ es importantes no campo
educacional, além de inevitá veis desdobramentos jurídicos, socioló gicos,
políticos e econô micos.
O dinheiro como instrumento de liberdade

6
“... se deve permitir ao indivíduo, dentro de certos limites , seguir seus pró prios valores e
preferências em vez dos de outrem; e que, nesse contexto, o sistema de objetivos do indivíduo
deve ser soberano, nã o estando sujeitos aos ditames alheios ” (p.76 – Planificação e Democracia).
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Resgatar a reputaçã o do vil metal tã o atacado pelos idealistas de todas as eras,


geografias e leituras nã o foi certamente a intençã o do economista Hayek ao
definir o dinheiro como instrumento de liberdade7.
O mais sensato é reconhecer que o autor de O Caminho da Servidão recolocou
o dinheiro, do ponto de vista social, na sua exata condiçã o de meio que serve ao
fim. Ao nos abstrairmos das finalidades econô micas da instituiçã o da moeda
como meio de circulaçã o de riqueza e nos atermos à questã o da liberdade
humana, podemos reconhecer o valor do dinheiro como instrumento de
afirmaçã o da soberania individual, enriquecendo espiritualmente todo ser
humano que, independentemente de suas posses, o utiliza como instrumento
para a realizaçã o de seus talentos, predileçõ es e aptidõ es.
Nossa condição de consumidores e produtores
“Prossumidor” foi a palavra cunhada por Alvin Toffler para simbolizar a fusã o
cada vez mais explícita e generalizada na sociedade global dessa condiçã o
intrínseca a todo cidadã o de uma sociedade livre, apontada por Hayek cinquenta
anos atrá s.8
Como nossa condiçã o de produtores se dá essencialmente pelo trabalho, e
este, nas sociedades industriais e pó s-industriais, se organiza em profissõ es,
Hayek faz um contraponto à questã o da realizaçã o individual através da nossa
condiçã o de consumidores no lazer, realçando a importâ ncia da liberdade ao
desempenharmos nosso papel de produtores no trabalho, a começar pela
liberdade da escolha da profissã o.
O prossumidor é, portanto, a materializaçã o econô mica do homem livre que
realiza produzindo e consumindo conforme suas escolhas, aptidõ es e
possibilidades.
O homem como fim e não como meio

7
“Seria muito mais certo dizer que o dinheiro é um dos maiores instrumentos de liberdade já
inventados pelo homem. É o dinheiro que, na sociedade atual, oferece ao homem pobre uma
gama de escolhas extraordinariamente vasta, bem maior do que aquela que há poucas geraçõ es
se oferecia aos ricos” (p. 99 – Controle Econômico e Totalitarismo).

8
“Esses dois aspectos da existência nã o podem ser separados um do outro; e como quase todos
passamos grande parte da vida no trabalho, e é ele que costuma determinar também o lugar em
que moramos e as pessoas com quem convivemos, certa liberdade de escolha da profissã o talvez
tenha mais importâ ncia para a nossa felicidade do que gastar os pró prios rendimentos durante as
horas de lazer”(p. 102 – Controle Econômico e Totalitarismo).
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Para demonstrar como a razã o descobre os imperativos categó ricos, Kant


formulou, na sua Crítica da Razão Prática, a lei composta da razã o, com três
partes, a segunda das quais, resumida, assevera que nã o devemos tratar o nosso
semelhante como meio.
O imperativo categó rico é a pedra angular da moral e do valor individual na
sociedade livre, e foi uma das mais importantes contribuiçõ es filosó ficas
prestadas por Imanuel Kant à organizaçã o política e social do Ocidente.
Nesse ponto, Hayek aponta para o risco de, ao pretendermos planejar a
felicidade humana – na impossibilidade de definirmos o conjunto dos desejos
humanos – acabarmos transformando seres humanos em simples meio para a
felicidade de outros. 9

UM RESPALDO JURÍDICO

A lei e a concorrência
A concorrência nã o será isenta de fiscalizaçã o e controle. 10 As suas principais
resultantes, o estímulo à produçã o, à criatividade e à racionalizaçã o dos insumos
produtivos podem dar uma tal vantagem a determinado grupo que mate a
concorrência, ocasionando reflexos negativos em toda sociedade e tornando-a
mais frá gil ante os competidores estrangeiros.
As leis antitruste sã o o aspecto mais visível desse sistema de fiscalizaçã o e
controle, embora nã o se limite a tanto. O que é primordial no funcionamento
desse sistema é a visã o estratégica que deve orientar sua permanente atuaçã o.
A necessidade de uma estrutura legal
Nada mais falso do que a suposiçã o de ser a Lei dispensá vel em uma sociedade
livre. Retomada com mais vigor em outra abordagem, a afirmaçã o de Hayek,
segundo a qual a lei bem elaborada é aquela que desconhece os resultados
9
“Embora o objetivo declarado da planificaçã o seja o de dar condiçõ es ao homem para que deixe
de ser um simples meio, na realidade – uma vez que que seria impossível levar em conta as
preferencias e aversõ es pessoais – o indivíduo se tornaria mais do que nunca um simples meio
usado pela autoridade a serviço de abstraçõ es como ‘o bem estar-social’. (p. 104 – Controle
Econô mico e Totalitarismo).

10
“Essa doutrina nã o nega, mas até enfatiza que, para a economia funcionar de forma benéfica,
será necessá ria a criaçã o a criaçã o de uma estrutura legal cuidadosamente elaborada e que nem
as normas legais existentes, nem as do passado, estã o isentas de graves falhas.” (p. 58 –
Individualismo e Coletivismo).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 8

particulares de sua aplicaçã o, bem caracteriza a imprescindibilidade da estrutura


legal para a liberdade, na melhor tradiçã o de Locke.11
Mais uma vez, somos remetidos ao tema da liberdade como fim. A
concorrência é um meio do exercício da liberdade do consumidor e a livre
inciativa da liberdade do produtor. Sã o meios e nã o fins em si pró prias. Daí haver
condicionantes ao seu funcionamento, a começar pela sua eficiência e eficá cia.
Consequentemente, deve haver uma estrutura legal que afira essas
condicionantes.
Essa estrutura legal será necessariamente complexa e dinâ mica, na medida
em que a sociedade de prossumidores também o é. Além disso, sendo
institucional, por atender à demanda bá sica social da resoluçã o de conflitos, essa
estrutura legal deverá ser também externa ao ambiente no qual se desenvolve a
competiçã o.
A concepçã o de um conjunto de legisladores e princípios que regulam uma
atividade lhes sendo externos torna muito mais importante a imparcialidade
desse sistema legal e reforça o aspecto da imprevisibilidade de suas sentenças,
que Hayek demonstra ser tã o relevante.
Campos da atuação direta da autoridade
Caracteristicamente, Hayek, ao descrever as condiçõ es fundamentais do
funcionamento da livre iniciativa12, delimita o campo de atuaçã o da mesma,
atribuindo, a partir desse limite, a iniciativa à s autoridades.
A sutileza e abrangência dessa delimitaçã o nã o recomendam exemplos, mas
preferencialmente sua compreensã o, na medida em que exemplos se tornam
obsoletos pela tecnologia, pela acumulaçã o e democratizaçã o do capital e pelas
crescentes demandas ecoló gicas.

11
O funcionamento da concorrência nã o apenas requer a organizaçã o de certas instituiçõ es como
a moeda, os mercados e os canais de informaçã o - algumas das quais nunca poderã o ser
convenientemente geridas pela iniciativa privada – mas depende sobretudo da existência de um
sistema legal apropriado, estruturado de modo a manter a concorrência e a permitir que ela
produza os efeitos mais benéficos possíveis” (p. 59 – Individualismo e Coletivismo).

12
“Há , por fim, certos campos nos quais, sem dú vida, nenhuma disposiçã o legal poderá criar a
condiçã o primeira da qual depende a eficá cia do sistema de concorrência e de propriedade
privada, ou seja, que o proprietá rio se beneficie de todos os serviços ú teis prestados pela sua
propriedade e sofra as consequ6encias dos danos causados pelo seu uso” (p. 60 – Individualismo
e Coletivismo).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 9

Se um proprietá rio nã o pode explorar livremente um determinado bem de


produçã o, ou o mau uso desse bem nã o traz prejuízo exclusivamente a esse
mesmo proprietá rio, estamos diante de uma á rea de atuaçã o das autoridades.
Essa atuaçã o direta pode se fazer através da legislaçã o regulató ria ou da
gerência daquele bem de produçã o. Na atual conjuntura podemos exemplificar
com a legislaçã o ambiental e com os setores de alta tecnologia aplicá vel à s armas
de destruiçã o massiva.
É digno de nota que, durante algum tempo, tenha sido defendida a atuaçã o do
Estado em determinadas á reas da economia por elas serem consideradas
estratégicas. Um setor da economia pode ser estratégico sem estar sob o controle
do Estado. Em contrapartida, podemos assistir o Estado atuar em á reas
econô micas que nã o sã o estratégicas. A distinçã o apontada por Hayek é um meio
seguro e razoá vel de evitarmos classificaçõ es automá ticas equivocadas.
A liberdade e o Estado de Direito
A noçã o de Estado de Direito foi amplamente discutida por Hans Kelsen, o
famoso teó rico austríaco, que considerava o Estado como uma ordem jurídica de
onde emanava a legitimidade de todas as suas açõ es. Kelsen, retomando a
tradiçã o kantiana de distinçã o entre autonomia e heteronomia, também
associou o grau de participaçã o do destinatá rio das normas legais ao nível da
democracia, considerada uma forma de autogoverno.
Hayek certamente se inspirou em Kelsen – considerado o maior jurista da
época por ocasiã o do lançamento de sua principal obra, em 1934, Teoria Pura do
Direito - para indicar a distinçã o elementar entre o país livre e aquele submetido
a um governo arbitrá rio13, sem dú vida, uma importante contribuiçã o germâ nica à
causa da liberdade na continuidade da melhor tradiçã o kantiana.
A lei como instrumento do povo e não para controle do povo

13
“A característica que mais distingue um país livre de um país submetido a um governo
arbitrá rio é a observâ ncia, no primeiro, dos grandes princípios conhecidos como o Estado de
Direito” (p. 86 – A Planificação e o Estado de Direito).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 10

Nesse ponto, Hayek aprofunda a sua argumentaçã o em prol da


imprevisibilidade dos efeitos da Lei14 considerada um conjunto de normas gerais
anteriores à sua aplicaçã o.
É bastante elucidativo esse ponto da argumentaçã o hayekiana sobre o largo
alcance intervencionista de um sistema jurídico que preveja todos os
desdobramentos da sua atuaçã o. Cria-se um poderoso instrumento de controle
do indivíduo e de concessã o de privilégios incompatível com o Estado de Direito,
fundamentado na legitimidade e no autogoverno. Inverte-se, por conseguinte, a
destinaçã o da lei, que deixa de ser um instrumento do povo para ser um meio de
controle do povo.
Hayek volta e essa questã o em diferentes pontos do livro, sempre insistindo
na conveniência de o sistema jurídico tomar a forma de um corpo geral de
preceitos cuja antecipaçã o da aplicaçã o seja impossível.
A salvaguarda da igualdade perante a lei
Esse ponto está intimamente ligado ao anterior e à questã o do Estado de
Direito. Se uma lei pode ser injusta ou arbitrá ria, até mesmo emanada de um
sistema totalitá rio, o que pode garantir a igualdade de todos os cidadã os? Só o
Estado de Direito15, legitimado por uma ordem jurídica inspirada numa
nomogênese autô noma, poderá salvaguardar a igualdade dos cidadã os perante a
Lei.
A possibilidade de a Lei servir ao arbítrio é, inicialmente, chocante, porém a
superficial lembrança dos tribunais de exceçã o estabelecidos nas mais cruéis
ditaduras afasta qualquer constrangimento.
Hayek, demonstrando compreender a complexa questã o da liberdade nas
modernas sociedades, ao cruzar diferentes reflexõ es sobre igualdade,
discriminaçõ es e privilégios, consegue impressionar vivamente o leitor,
alertando-o para essa abstraçã o da qual depende a nossa existência como
homens livres – o Estado de Direito.

14
“Quando os resultados particulares sã o previstos na ocasiã o em que se faz uma lei, esta perde o
cará ter de simples instrumento a ser empregado pelo povo e converte-se num instrumento usado
pelo legislador para controlar o povo” (p.89 – A Planificação e o Estado de Direito).

15
“O Estado de Direito salvaguarda a igualdade perante a Lei, que é a antítese do governo
arbitrá rio” (p. 91 – A Planificação e o Estado de Direito).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 11

UMA AÇÃO POLÍTICA

A utilidade da política
Em toda sociedade existem açõ es pú blicas, cujos níveis de abrangência e
forma de conduçã o contribuem significativamente para a felicidade e a liberdade
dos indivíduos. Como Bernard Crick escreveu, a política sã o as açõ es pú blicas dos
homens livres. As propostas extremas de completa supressã o da política e de
total politizaçã o da sociedade serviram aos desígnios de regimes totalitá rios e
arbitrá rios, cujas derrotas se devera justamente à sua incapacidade inata de
desenvolver a açã o política.
Hayek, prosseguindo na sua advertência contra a intolerâ ncia, mergulha no
campo político, ao abordar a inconveniência da tomada de decisõ es sobre as
questõ es pú blicas, normalmente abrangentes, por especialistas16. O mérito dessa
colaboraçã o do autor está no alerta sobre a utilidade da política governar na
diversidade, o desdobramento político natural da proposta filosó fica e jurídica de
Hayek.
O Campo de Ação da Política
Esse é um dos mais fascinantes aspectos do discurso político de Hayek. Até
onde vai a açã o política numa sociedade livre? A sua proposta é simples e
coerente: “... até onde as pessoas concordam acerca de objetivos comuns 17”,
caracterizando o aspecto contratual do Estado.
Definir o campo de açã o da política implica verificar quanto ela pode fazer ou
deixar de fazer parte de nossas vidas. A liçã o aqui extraída do discurso de Hayek
devolve o equilíbrio à vida política da sociedade. Verifica-se claramente como a
política pode ser instrumento de liberdade ou de opressã o, de realizaçã o ou de
frustraçã o dos cidadã os, bem como de sucesso ou de fracasso de uma naçã o.
Dessa leitura podemos extrair advertências e um conselho. Estenda a açã o
política a todas as atividades humanas e tenha a açã o reguladora do Estado
16
“Entre o idealista dedicado e o faná tico, muitas vezes, há apenas um passo. Embora o
ressentimento do especialista frustrado constitua o mais poderoso estímulo à reinvindicaçã o de
planejamento central, é difícil imaginar um mundo mais intolerá vel – e também mais irracional –
do que aquele em que se permitisse aos eminentes especialistas de cada campo proceder sem
entraves à realizaçã o de seus ideais” (p.73 – A Inevitabilidade da Planificação).

17
“A açã o comum limita-se, assim, aos campos em que as pessoas concordam acerca dos
objetivos comuns” (p.77 – Planificação e Democracia).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 12

interferindo em todos os aspectos interferindo em todos os aspectos da


existência humana. Suprima toda a açã o política na sociedade e abra mã o da
participaçã o no encaminhamento e decisã o das graves questõ es ligadas à
existência de todos nó s. Desenvolva a açã o política como uma participaçã o
espontâ nea de diferentes indivíduos distintamente motivados a cada momento
decisó rio comum à sociedade e obtenha a má xima sinergia da naçã o para a
implementaçã o de cada decisã o tomada.
A política como meio de prover a felicidade dos indivíduos
Encarado o homem como fim, é natural que todas as açõ es pú blicas girem em
torno de seu bem estar. Em sentido oposto, é de se esperar que, na busca de seu
bem-estar, o homem livre desenvolva açõ es pú blicas naquela esfera de atuaçã o
consentida por todos.
Admitida a pluralidade e diversidade de objetivos individuais, verifica-se que
os objetivos comuns perseguidos pelos indivíduos servem a interesses pró prios 18
ligados ao seu bem estar.
Certamente, alguns dos maiores enganos cometidos pela humanidade nã o
teriam ocorrido se os políticos responsá veis pelas decisõ es nos momentos
difíceis da Histó ria nã o tivessem esquecido a finalidade ú ltima da política.
A política como uma concessão dos indivíduos ao Estado
Convencionou-se dizer que o Estado é a sociedade politicamente organizada.
No entanto, Hayek, doutor em Direito e em Ciências Políticas, foi além dessa
simples definiçã o ao falar sobre a orientaçã o19 da açã o do Estado por um acordo
voluntá rio, sempre fiel à sua crença na natureza contratualista do mesmo.
Se o Estado deve ter sua açã o, que é a política, orientada por um acordo,
depreende-se que sua razã o de existir também é oriunda dos signatá rios daquele
acordo. Esse entendimento é relativamente recente, em particular sua aceitaçã o
no meio de alguns círculos intelectuais, ainda que seja o corolá rio natural da
evoluçã o política da humanidade.

18
“ Com muita frequência, tais objetivos comuns nã o constituirã o os objetivos supremos dos
indivíduos, mas apenas meios que diferentes pessoas podem utilizar para alcançar diferentes
propó sitos pró prios” (p.77 – Planificação e Democracia).

19
“Só podemos contar com um acordo voluntá rio para orientar a açã o do Estado na medida em
que este se limite à s esferas onde tal acordo existe” (p. 77 – Planificação e Democracia).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 13

Verifica-se nesse aspecto da obra de Hayek uma á rea de convergência com os


neocontratualistas do pó s-guerra, particularmente Nozick e Bobbio.
O descrédito da política
Esse fenô meno observado em vá rios países do mundo tem provocado
esporá dicas especulaçõ es em torno de suas razõ es sem que normalmente se
avente sua verdadeira origem – a extrapolaçã o dos limites de atuaçã o da
politica20.
A discussã o crítica encetada por Hayek a respeito de governo abrange a
questã o da representatividade, de delegaçã o de poderes e do papel do
parlamento. A sua crítica é centrada na ideia da limitaçã o a açã o política à esfera
do consenso. Se a política é a açã o pú blica dos homens livres, que se colocam de
acordo sobre objetivos comuns para atingirem propó sitos distintos, é possível
compreender a ideia de limitaçã o da açã o política.
A açã o política só é exequível onde seja possível estabelecer e perseguir
objetivos comuns. Nã o há política sem objetivos comuns, uma vez que só através
dela eles podem ser atingidos. Objetivos atingidos que nã o através da política e
que foram estabelecidos por pessoas com os mesmos propó sitos individuais
caracterizam uma comunhã o extremamente restritiva e suspeita aos desígnios
de uma sociedade livre.
O descrédito da política advém da pretensã o de se atribuir a ela o papel
regulador dos propó sitos individuais. Insistir em atribuir aos parlamentos a
missã o de discutir e resolver assuntos circunscritos à esfera do livre arbítrio
individual que nã o estejam catalisados em objetivos comuns é erodir o prestígio,
a credibilidade e a legitimidade dos mesmos.
Liberdade e democracia
Causa constrangimento a determinados espíritos admitir que a democracia
nã o significa exatamente liberdade. O desconforto com a argumentaçã o de que
algumas sociedades foram livres antes de ser democrá ticas e que a liberdade nã o
existe em muitas democracias.

20
“Nã o é difícil perceber o que acontece quando a democracia dá início a uma linha de
planejamento cuja execuçã o exige um consenso muito maior do que na realidade existe. Os
parlamentos serã o considerados locais de debates inú teis, incapazes ou incompetentes para
realizar as tarefes a eles atribuídas” (p.78 – Planificação e Democracia).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 14

Hayek coloca a liberdade como valor supremo e fim de toda açã o política.
Tendo feito esta escolha, o autor submete a democracia à causa da liberdade,
transformando-a num meio de conduçã o da açã o política destinada a assegurar
que todos os homens sejam livres.
Ao afirmar que é a limitaçã o do poder que impede que ela seja arbitrá rio21,
contesta a suposiçã o comumente aceita do fim da ditadura e opressã o através da
entronizaçã o do poder emanado do povo. Toda sua argumentaçã o filosó fica e
jurídica respalda esse corolá rio de sua proposta política – limitaçã o do poder dos
seres humanos sobre outros seres humanos como forma de se preservar a
liberdade.
Fica nítido na proposta de Hayek o seu entendimento de liberdade como fim e
da democracia como o melhor meio até agora conhecido pelo homem para
preservá -la, o que coloca novas dificuldades à aceitabilidade da abstraçã o do fim
da Histó ria atingido através da adoçã o de um sistema de governo.

MOTIVAÇÃO E RESULTANTE ECONÔMICAS


Controle da concorrência e o planejamento governamental
A perspectiva de Hayek nos mostra a concorrência econô mica garantida por
uma estrutura legal, praticada por indivíduos com diferentes propó sitos e
situada fora do campo de açã o da política. Adentrando na á rea econô mica, ele
aborda a questã o da motivaçã o para a produçã o, alertando para a
impossibilidade de convivência entre a concorrência e o planejamento
governamental em um sistema que almeje produtividade22.
A questã o da motivaçã o para a atividade econô mica, como nos é apresentada
por Hayek, está fundamentada no embasamento filosó fico da sua obra e se
projeta sobre a nossa condiçã o de prossumidores. Nã o podemos que esperar que
cidadã os, cuja felicidade depende de uma miríade de combinaçõ es
absolutamente individuais de bens, há bitos e atividades, ainda que supostamente
nivelados em termos de capacidades, tenham o desempenho ó timo em suas

21
“... nã o é a fonte do poder, mas a limitaçã o do poder que impede que este seja arbitrá rio”(p.84 –
Planificação e Democracia).

22
“Embora a concorrência consiga suportar certo grau de controle governamental, ela nã o pode
ser harmonizada em qualquer escala com o planejamento central sem que deixe de operar como
guia de eficaz de produçã o”(p. 62 – Individualismo e Coletivismo).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 15

respectivas profissõ es ou ocupaçõ es. O que podemos esperar, com alguma


razoabilidade, sã o diferentes graus de dedicaçã o, estreitamente dependentes dos
objetivos, aptidõ es e predileçõ es dos indivíduos.
A resultante da concorrência também se manifesta no prossumidor, por açã o
e reaçã o. Como produtores, diferenciados por suas metas, aptidõ es e inclinaçõ es
individuais soberanamente exteriorizadas nas pró prias escolhas, ou como
consumidores, interessados em dispender tempo, proventos e energia conforme
seu pró prio arbítrio, sendo absolutamente impossível padroniza-los, daí a
incongruência entre concorrência e planificaçã o.
É sempre bom relembrar que Hayek defendeu a existência de uma estrutura
legal que garanta o funcionamento da concorrência, a principal característica de
uma sociedade livre.
A livre iniciativa, a concorrência e a divisão do trabalho
Esses aspectos econô micos também se inter-relacionam desde as
condicionantes filosó ficas, jurídicas e políticas da sociedade livre visualizada por
Friedrich Hayek. O autor, na abordagem econô mica de sua obra, conclui que seria
impossível atingir o nível de diferenciaçã o, complexidade e flexibilidade dos
sistema industrial do Ocidente através do planejamento central23.
Estendidas a todos os indivíduos as prerrogativas a escolha de profissã o,
consumo e lazer, teremos pessoas produtoras se especializando em tarefas
conforme suas aptidõ es e em atendimento à s demandas de pessoas
consumidoras. Esse é o fundamento da moderna divisã o do trabalho, nã o
imposta por carteis ou por uma burocracia, mas sim decorrente das necessidades
dos indivíduos.
A divisã o do trabalho num sistema econô mico em que nã o houver livre
iniciativa e concorrência, além de depender inevitavelmente do planejamento
central para evoluir, será bastante dificultada pela questã o da remuneraçã o, que
inadequadamente resolvida acabará emperrando toda produçã o.
É importante lembrarmos as qualidades apontadas por Hayek como
desejá veis ou inerentes a um sistema industrial moderno – diferenciaçã o,

23
“Nã o é exagero dizer que, se tivéssemos precisado depender de planejamento central
consciente para o desenvolvimento de nosso sistema industrial, este nunca teria alcançado o grau
de diferenciaçã o, complexidade e flexibilidade a que chegou (p.69 – A Inevitabilidade da
Planificação).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 16

complexidade e flexibilidade. A divisã o do trabalho em tal sistema deverá ser


obrigatoriamente dinâ mica, adaptando-se a novas demandas internas e externas
de mercado, conforme as possibilidades da mã o de obra existente.
A necessidade de uma divisã o do trabalho em um sistema econô mico
diferenciado, complexo e flexível - como deve ser o de uma naçã o decidida a
participar da acirrada competiçã o internacional – induz à adoçã o de um sistema
educacional adequado. A migraçã o da mã o de obra, em todos os níveis, é um
novo desafio social a ser enfrentado pelas democracias industriais. Ao
reconhecermos que a capacidade de uma sociedade retreinar e realocar recursos
humanos é decisiva para sua prosperidade, nã o podemos esquecer que essa
necessidade deve ser atendida de maneira coerente com o elenco das liberdades
individuais. A fú ria planejadora dos grandes totalitarismos, passados ou
recentes, ao pretender redirecionar as atividades e os locais de trabalho de
milhõ es de seres humanos, além de causar mortandades e sofrimentos
inominá veis, falhou miseravelmente, tentando impor metas e métodos a
indivíduos ignorados nas suas aspiraçõ es, predileçõ es e aptidõ es.
A liberdade e a evolução tecnológica
Um desdobramento relevante da questã o da liberdade na esfera econô mica é
proposto por Hayek em sua recomendaçã o no sentido de se evitar as reservas de
mercado e as padronizaçõ es de produçã o e consumo24.
Mesmo reconhecendo que produtos padronizados para toda a sociedade
demandam menos recursos para produzi-los do que diferentes tipos de produtos
para atender a uma mesma finalidade, Hayek, fiel à sua crença na liberdade,
optou coerentemente pela livre produçã o.
Antecipando a crítica histó rica da visualizaçã o de Hayek, é notá vel verificar
como os fatos nos cinquenta anos subsequentes deram razã o à opçã o pela
liberdade de produçã o, nã o muito claras numa época em que as economias
estavam voltadas para a guerra, o padrã o de vida das pessoas era bem mais
modesto do que o dos anos setenta ou oitenta e nã o havia escassez de fontes de
energia.

24
“Mas a posiçã o em favor da liberdade é justamente a de que devemos reservar espaço para os
programas espontâ neos e imprevisíveis” (p.70 – A Inevitabilidade da Planificação).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 17

A padronizaçã o dos produtos, além de ter inibido a competiçã o que levou


inevitavelmente ao aperfeiçoamento tecnoló gico - que alguns podem até
considerar superficial – dificultou a racionalizaçã o e modernizaçã o dos métodos
de produçã o, levando a uma resultante fatal para um sistema industrial da antiga
URSS – o desperdício de energia.
Novamente se manifestam, em simples produto industrial, as duas faces de
atuaçã o na sociedade do prossumidor, eficiência e eficá cia, qualidades
indispensá veis a qualquer sistema produtivo competitivo.
Vale a pena observar que as reservas de mercado - padronizaçõ es temporá rias
indiretas - também produzem um efeito enganador que se revela mais adiante
em meio a profundas lamentaçõ es sobre o tempo e recursos perdidos na
enganosa sensaçã o de autarquia.
Os planos do indivíduo e o planejamento estatal
Quando Hayek cunhou sua famosa frase a respeito do efeito do planejamento
estatal sobre os planos do indivíduo25, as populaçõ es das democracias ocidentais
ainda estavam traumatizadas com as lembranças da Grande Depressã o e
descrentes na respectivas capacidades individuais e institucionais de fazer seus
pró prios planos. A plena confirmaçã o da assertiva de Hayek teria que esperar
que a recuperaçã o econô mica devolvesse ao cidadã o ocidental a capacidade de
investir.
Hoje, um aspecto vital da estabilidade econô mica de qualquer naçã o é o
investimento. Estimulá -lo, interna ou externamente, se tornou uma grande
preocupaçã o dos responsá veis pela política econô mica de diversos países.
Hoje em dia, em termos econô micos, fazer planos de vida significa investir.
Poucas vezes nos damos conta do quã o importante é o investimento para a nossa
realizaçã o individual. Mas investir significa esperar confiando e a questã o toma
uma nova dimensã o – a social. É da confiança generalizada no depó sito das
esperanças materializadas monetariamente que nascem os recursos que
permitirã o a construçã o dos nossos sonhos.
Nas épocas em que, numa determinada sociedade, a capacidade de investir do
indivíduo é comprometida e a confiança nas instituiçõ es de investimento é

25
“Quanto mais o Estado planeja, mais difícil se torna para o indivíduo traçar seus pró prios
planos” (p.88 – A Inevitabilidade da Planificação).
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 18

quebrada, assistimos à degeneraçã o das contas pú blicas. As mudanças e as


improvisaçõ es que se introduzem entã o na vida econô mica do país, via de regra
pouco transparentes ao pú blico, só agravam a situaçã o, afastando mais ainda o
investimento, interno e externo. O planejamento, ainda que nã o tenha sido
responsá vel pela “quebra” geradora da crise, ungido pela fé no paternalismo
estatal, comete prodígios legislató rios, enquanto o cidadã o comum,
imaginativamente, cria as mais inusitadas formas de salvar seu dinheiro e seus
sonhos.

JULGAMENTO DA HISTÓRIA
A História
Hayek desenvolveu durante a juventude grande capacidade de polemizar,
graças à sua decidida resistência aos dogmas dos dois grandes ídolos da
intelectualidade nos anos vinte trinta – Marx e Freud. A amplitude de sua
formaçã o intelectual o salvou da estreiteza sectá ria e inspirou um atitude serena
de independência que o distinguiu na condiçã o de solitá rio remador que chegou
ao porto certo por nã o ter se deixado levar pela corrente.
A Histó ria foi, sem dú vida, um dos fundamentos espirituais da independência
de Hayek. Primeiramente, ele identificou, com acerto, o curso irresistível da
evoluçã o política ocidental da direçã o da liberdade individual, desde a vitó ria
ateniense na planície de Maratona até as Revoluçõ es Inglesa, Americana e
Francesa derrubarem os ú ltimos bastiõ es do privilégio e da desigualdade.
Em seguida Hayek percebeu a excepcionalidade da atmosfera totalitá ria no
período apó s a Primeira Guerra Mundial, enxergando suas raízes muito
pró ximas, no século XIX, portanto sem consistência para se contrapor à toda
tradiçã o intelectual do Ocidente.
Finalmente, ele demonstrou compreender que as condiçõ es políticas,
econô micas e sociais de uma década de frustraçã o, seguida de anos de guerra
total, nã o era um ambiente adequado a justificar quaisquer formas de
organizaçã o político-social incongruentes com a evoluçã o da humanidade.
Esse entendimento da excepcionalidade daquelas décadas deve,
provavelmente, ter inspirado Hayek a escrever O Caminho da Servidão, num
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 19

esforço evolucionista e reformador no momento em que o mundo começava a


sair do pesadelo totalitá rio e da guerra.
A polêmica
Hayek levantou questionamentos relevantes à interpretaçã o dos fatos nos
anos 30 e 40 que foram posteriormente comprovados pelo curso da Histó ria e
pelos estudos de diferentes especialistas.
Ele foi um dos primeiros a sustentar que o comunismo e a nazismo eram as
duas faces da mesma moeda totalitá ria, atraindo a fú ria de inú meros
admiradores do ainda nã o desmascarado paraíso estalinista.
Mostrou que certos meios poderiam servir a diferentes fins, colocando por
terra o vulgar aforismo de que os fins justificam os meios. Com uma ló gica
irretorquível, Hayek lembrou que os mesmos métodos da justiça distributiva
poderiam servir aos carreamento de riquezas em benefício de uma raça superior.
Destruiu o mito da inevitabilidade da planificaçã o – estatal ou dos monopó lios
– devida à s necessidades tecnoló gicas, destacando que os esforços para controle
de um monopó lio ou de uma economia eram tã o intensos e direcionados que
caracterizaram na verdade uma luta pelo poder e nã o uma necessidade social.
Demonstrou que o declínio do Estado de Direito (Rechstaat) em benefício do
Estado Justo (Gerechte Staat), na onda do movimento Freirechtsschule, era um
instrumento político nazista que redundava na supressã o de todas as liberdades
individuais.
Relembrou, de maneira bastante desconfortá vel para os socialistas alemã es,
que eles praticaram os mesmos métodos de enquadramento dos trabalhadores –
como os clubes de lazer organizados pelo partido – que os nazistas puseram em
prá tica posteriormente para atomizar a sociedade alemã .
Mas o principal argumento histó rico de Hayek para demonstrar que
socialismo abre o caminho para o totalitarismo foi a Alemanha de Weimar.
Quando Hitler subiu ao poder em 1933, por via constitucional, nã o havia mais
democracia na Alemanha. A crença, a prá tica e a doutrina democrá tica haviam
sido quase que totalmente apagadas da sociedade alemã , como mostram
inú meras pesquisas sobre o período. O que os nazistas fizeram foi dominar a
sociedade por métodos que os socialistas repugnavam.
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 20

É dessa perspectiva histó rica que Hayek desenvolve uma de suas principais
linhas de argumentaçã o – o socialismo abre caminho para o totalitarismo – tese
muito bem fundamentada na experiência alemã dos anos 30 e aparentemente
refutá vel a nível global nos anos 90.
O curso da História
Terminada a guerra, o ideal de um mundo melhor fez frutificar a organizaçã o
de algumas instituiçõ es que, no dizer de Hayek, levaram as naçõ es a nã o dizer à s
outras o que fazer, mas a deixarem de prejudicar umas à s outras.
Os Estados Unidos emergiram da conflagraçã o como a naçã o mais rica e
poderosa do planeta, seguidos por uma superpotência militar – a URSS –,
enquanto as antigas potências ocidentais, a Franca e a Inglaterra, mergulharam
no nacionalismo nostá lgico e no assistencialismo. Em poucos menos de vinte
anos, as potências derrotadas – Japã o e Alemanha – ultrapassaram seus
vencedores ingleses e franceses.
A grande conflagraçã o mundial, mal percebida no seu verdadeiro significado,
continuou na Guerra Fria. A versã o sobrevivente do totalitarismo que ainda
inebriava milhõ es de pessoas foi perdendo o seu fascínio, à medida que se
sucediam as revelaçõ es que faziam lembrar o outro Leviatã destruído. Derrotada
economicamente nos anos 80, depois de exaurida por um blefe militar de
quarenta anos, a URSS se desmantelou, desacreditando o comunismo – a ú ltima
versã o em vigor da planificaçã o central.
Alguns podem dizer que os prognó sticos de Hayek se mostraram exagerados,
pois o assistencialismo europeu nã o trouxe o comunismo. A democracia nã o foi
suprimida. A justiça social criou paraísos terrestres, na Suécia, por exemplo,
menos controvertidos do que a policialesca cortina de ferro. Por outro lado, a
“fá brica de modas intelectuais parisiense”, no dizer de Paul Jonhson, continuava
a alimentar, no ambiente da Guerra Fria, toda sorte de explicaçõ es para a
miséria, a injustiça e a desigualdade, mobilizando milhõ es de jovens em todo
mundo para a aventura da contracultura, da contestaçã o e da luta armada.
Faltam, no entanto, alguns componentes a essas críticas. As ideias de Hayek,
juntamente com as de outros liberais, como Raymond Aron, foram decisivas para
a manutençã o do ideal de liberdade individual em um ambiente europeu
impregnado de nostalgia, assistencialismo e radicalismo intelectual. Onde e
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 21

quando o fascínio pelo Estado previdenciá rio se alastrou, nã o houve expressivo


crescimento econô mico e expansã o da oferta de empregos. O desejo de liberdade
na Europa Ocidental, por vezes claudicante ante a mistificaçã o da intelligentsia,
foi mantido vivo pela tradiçã o liberal retomada e arejada por pensadores como
Hayek, pela pujança econô mica da locomotiva norte-americana e pela vontade
política de criar e empregar, se necessá rio, o instrumento militar da OTAN.

CONCLUSÃO
A obra literá ria de Friedrich August von Hayek nã o se limitou a O Caminho da
Servidão, que foi, no entanto, sua produçã o mais polêmica, porquanto a mais
corajosa no conteú do e no momento.
O maior mérito de O Caminho da Servidão foi demonstrar que nã o existe
liberdade política sem liberdade econô mica, cinquenta anos antes de o coro dos
arrependidos da Histó ria derramar suas lá grimas nos escombros do Muro de
Berlim. O notá vel entrelaçamento filosó fico, jurídico, político e econô mico da
argumentaçã o de Hayek demonstrou a abrangência da liberdade,
costumeiramente sujeita a sutis tentativas de compartimentaçã o e manipulaçã o.
O discurso de Hayek é infenso ao ró tulo de conservador. Sua argumentaçã o
pode incomodar a socialistas e capitalistas, da mesma forma que aos partidá rios
da direita e esquerda. A leitura e reflexã o dessa obra, decisiva para o moderno
pensamento ocidental, denuncia os grandes inimigos da liberdade – o privilégio e
o arbítrio.
O privilégio é injusto, ilegal, desestabilizador e economicamente
contraproducente, gerando miséria, insegurança, revolta e atraso. Já o arbítrio,
talvez mais nefasto, pode de ser justificado por uma moral, respaldado por uma
lei, explicado por uma necessidade política e defendido por um sucesso
econô mico.
Essa combinaçã o formidá vel de inimigos, cujos imprecisos contornos
escaparam mesmo a alguns espíritos lú cidos e bem intencionados, só pode ser
vencida pela implementaçã o da política da liberdade proposta por Hayek.
Ainda que a primeira palavra usada neste trabalho tenha sido combinada a
outros termos, a grande liçã o apreendida dos notá veis ensinamentos do
brilhante professor de Economia e de Ciências Sociais e Morais, Friedrich August
Retomando os Caminhos da Liberdade – página 22

von Hayek, Prêmio Nobel de Economia em 1974, é da impossibilidade de nó s a


adjetivarmos, fracionarmos ou condicionarmos, obrigando-nos a empregá -la
sempre na singularidade de sua majestosa grandeza – liberdade.

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