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GEOGRAFIA POLÍTICA
Aula 6
Como havíamos sinalizado na Aula 5, muitos ecos do realismo político mercaram a imaginação
geopolítica na segunda metade do século XX. Esta Aula 6 dará continuidade a essa sinalização,
por meio da apresentação crítica das contribuições de renomados autores e suas ideias sobre a
geopolítica mundial. Os cientistas políticos Samuel Huntington, Edward Luttwak e Joseph Nye
Jr. serão os protagonistas de nossa análise, com especial ênfase dada à obra do primeiro. Note-se
que o realismo político continuará sendo a orientação mais ampla da obra desses autores, pois o
Estado permanecerá como a unidade de referência de suas análises, ainda que estas incluam
outras variáveis importantes.
Embora Samuel Huntignton (1927-2008) tenha publicado vários livros e inúmeros artigos,tenha
sido conselheiro de segurança nacional do presidente estadunidense Jimmy Carter em 1977,
talvez tenha razão Louis (2014:125) quando afirma que o autor passará à posteridade como “o
homem de um livro e uma ideia: choque de civilizações”. Em artigo publicado na conceituada
revista Foreign Affairs, em sua edição do verão de 1993, Hungtinton chamou a atenção de
analistas no mundo inteiro, ao apresentar sua tese sobre o choque de civilizações. Em março de
1994, o mesmo artigo é publicado na revista brasileira Política Externa (volume 2, número 4).
Naquele momento, era apenas uma pergunta: choque de civilizações? Logo se transformou
numa afirmação categórica, dando título ao livro homônimo que o autor lançaria três anos
depois. Especialistas entendem que Huntington estava preocupado em contestar a tese de
Francis Fukuyama, lançada em 1992, sobre o fim da história, apresentando uma interpretação
própria sobre a geopolítica mundial vindoura. O autor se expressou da seguinte maneira:
Minha tese é a de que a fonte fundamental de conflito nesse novo mundo não será
essencialmente ideológica ou essencialmente econômica. As grandes divisões na
humanidade e a fonte predominante de conflito serão de ordem cultural. Os
Estados-nação continuarão a ser os agentes mais poderosos nos acontecimentos globais,
mas os principais conflitos ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O
choque de civilizações dominará a política global. As linhas de cisão entre as
civilizações serão as linhas de batalha do futuro (HUNTINGTON, 1994:120).
Para Huntington (1994:121), civilização é “uma entidade cultural. Aldeias regiões, grupos
étnicos, nacionalidades, grupos religiosos, todos têm culturas distintas em diferentes níveis de
heterogeneidade cultural”. O autor distingue algumas civilizações, a saber: ocidental,
confuciana (logo acrescentada do termo budista), japonesa (também nomeada xintoísta),
islâmica (logo renomeada árabe-islâmica), hindu, eslava, ortodoxa, latino-americana e a
africana. Defende a ideia de que elas entrarão em choque apresentando o seguinte argumento:
As civilizações se diferenciam umas das outras por sua história, língua, cultura, tradição
e, sobretudo, religião. Pessoas de civilizações diversas têm concepções diversas das
relações entre Deus e o homem, indivíduo e grupo, cidadão e Estado, pais e filhos,
marido e esposa, e concepções diferentes sobre a importância relativa de direitos e
responsabilidades, liberdade e autoridade, igualdade e hierarquia. Essas diferenças são
produtos de séculos. Não vão desaparecer em pouco tempo (Idem, p. 122).
Observemos o mapa proposto por Huntington ( Mapa 1, redesenhado por Boniface e Vedrine,
em 2009) para ilustrar a distribuição geográfica das civilizações. Notam-se civilizações
ameaçadoras e, consequentemente, outras que são ameaçadas. O choque entre elas adviria das
seculares diferenças apontadas no parágrafo anterior. O que se nota, contudo, é uma cartografia
que divide o mundo entre o bem e o mal, que são noções morais, antes que termos geopolíticos.
Então, a visão geopolítica de Huntington parece se apoiar em categorias morais que definem o
lado do bem e do mal em termos geoestratégicos, além de apresentar, claramente, uma tradição
realista pois admite que os Estados permanecerão como “os agentes mais poderosos nos
acontecimentos globais”. É possível reconhecer, para além dos interesses estadunidenses e
ocidentais, em geral, defendidos pelo autor, que sua tese reveste de certo otimismo, quando se
lê, nas últimas linhas do famigerado artigo que “no futuro não haverá uma civilização universal,
mas um mundo de diferentes civilizações, e cada qual precisará aprender a coexistir com
outras”. Huntington (1994:125-126) também reconhece o valor das escalas geográficas –
tratadas equivocadamente como “níveis” – em sua análise, afirmando que o choque de
civilizações
ocorre em dois níveis. Em nível micro, grupos adjacentes ao longo de linhas de cisão
entre civilizações lutam, muitas vezes com violência, pelo controle do território e de
cada um. Em nível macro, Estados de diferentes civilizações competem por poder
militar e econômico, lutam pelo controle de instituições internacionais e promovem,
competitivamente, seus próprios valores políticos e religiosos.
A proposta de Huntington provocou reações diversas. Alguns autores, como Rodrigues (1994)
utilizaram o exemplo de Salman Rushdie e o descontentamento que a sua publicação sobre o
Corão provocou para ilustrar a tese do choque de civilizações. Em seu livro, Gilberto Rodrigues
(1994:90), menciona:
Mas no que tange comunidade geográfica, talvez a crítica mais severa tenha partido de Claude
Raffestin. Em seu livro Géopolitique et histoire (Geopolítica e história), o autor francês avalia
que a proposta de Huntington reabilita o método de Haushofer e que o debate promovido por
Huntington evidencia a pertinência de um discurso geopolítico nacionalista tendendo ao
supranacionalismo. Haveria um traço de uma metodologia nazista na proposta de Huntington?
Compare a compartimentação do mundo proposta por Haushofer com aquela proposta por
Huntington e avalie a crítica de Raffestin a respeito da metodologia que ambas empregam.
Haushofer e as pan-regiões
Huntington e as civilizações
A produção de Samuel Huntington não começou nem terminou com o seu livro Choque de
civilizações, mas, como alertamos no início, seu nome ficou definitivamente atrelado a essa
ideia-força pela qual ele procurou interpretar a ordem geopolítica do final do século XX. Os
ataques de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas em Nova York tornaram-se um fato que
incendiou ainda mais os debates propostos por Huntington. Resta-nos a tarefa de acompanhar a
contemporaneidade, seus novos fatos, processos e tendências para avaliarmos a pertinência ou
não da tese do choque de civilizações. Em 2002, Huntington organizou um livro com Peter
Berger com o intuito de analisar a diversidade cultural no mundo globalizado, mas, o mais
relevante é que ele nos deixou uma visão estratégica segunda a qual a conexão China / Ocidente
/ Islã representaria o eixo do jogo geopolítico do século XXI. Será?
Disponível em:
http://4.bp.blogspot.com/-XztEcHVa1Co/TblgdGoc8zI/AAAAAAAAAJg/eRZ2vKg0yyY/s1600/clash_of_civilizatio
ns-755716.gif. Acesso em: 10 maio 2016.
Elisabeth Hellenbroich
Nos dias que se seguiram aos atentados em Nova York e Washington, importantes lideranças
políticas e analistas europeus se apressaram em advertir contra o risco de que a reação
estadunidense aos acontecimentos pudesse conduzir a uma espiral de violência e a uma escalada
que provocasse uma "guerra de culturas" global. Entre estas lideranças, destacaram-se o
ministro das Relações Exteriores francês Hubert Vedrine, seu colega alemão H.J. Fischer, os
ex-primeiros ministros da Alemanha e da Itália, Helmut Schmidt e Giulio Andreotti, e
importantes políticos britânicos. Entre estes, destacou-se o trabalhista Tony Benn, que alertou
para o "perigo de mergulharmos numa Terceira Guerra Mundial", se se perpetrasse uma cruzada
contra o Islã.
O título do livro não reflete algum tipo de pesquisa acadêmica, mas, em verdade, um projeto
geopolítico proveniente dos think-tanks de uma facção "imperial" anglo-americana, que reúne,
entre outros: Zbigniew Brzezinski, o homem que planejou a operação "Afghansi" na Guerra do
Afeganistão; o ex-secretário de Estado Henry Kissinger, notório por sua oposição às políticas
anticolonialistas do presidente estadunidense Franklin Roosevelt; e Bernard Lewis, um dos
atuais "gurus" da geopolítica britânica e o principal especialista em islamismo da Universidade
de Oxford. Alinhados com o pensamento do geopolitico britânico Halford Mackinder, de que
quem controlar o heartland eurasiático controlará o mundo, estes seus seguidores modernos
defendem a grotesca visão de que, após a Guerra Fria, a maior ameaça aos EUA, a única
superpotência remanescente, virá cada vez mais do desenvolvimento de uma "aliança
econômica eurasiática", entre a China, Índia, Rússia e Estados islâmicos como o Irã.
Esses autores mantêm, intencionalmente, um pesado silêncio sobre a verdadeira razão da sua
obsessão geopolítica: a crise financeira global e as consequências do colapso sistêmico do
"Ocidente", aí incluída a posição hegemônica dos EUA. Huntington e Brzezinski representam a
posição do setor da elite oligárquica anglo-americana que se aterra a qualquer custo às
premissas do falido império financeiro, e prefere correr o risco de deflagrar uma cruzada contra
o resto do mundo e, assim, a uma terceira guerra mundial, a abrir mão da sua obsessão
geopolítica.
Essa tese é cruamente exposta no livro de Brzezinski intitulado The Only World Power -
America's Strategy for Dominance (A única potência mundial - a estratégia dos EUA para a
dominação), publicado em 1997. Nele, Brzezinski fala do "tabuleiro de xadrez eurasiático", o
campo de jogo que abriga 60% dos recursos energéticos do mundo e no qual os EUA terão que
travar futuramente essa "batalha para a dominação". Para assegurar isto, diz Brzezinski, os EUA
devem seguir o modelo do Império Romano pagão, utilizando os seguintes meios geopolíticos:
evitar disputas entre vassalos e assegurar a dependência destes em questões de segurança;
manter submissos e proteger os Estados tributários; e assegurar que "os povos bárbaros não
unam forças".
As teses de Huntington
1. No mundo pós-Guerra Fria, o "conflito de superpotências" foi suplantado pelo "conflito entre
culturas". Segundo Huntington, isto significa que, crescentemente, a Humanidade se dividirá ao
longo de "linhas de batalha culturais" e conflitos entre "grupos culturais", como conflitos entre
diferentes civilizações, que se tornarão o fator central na política global. De acordo com esse
argumento, os Estados não definem os seus interesses políticos segundo categorias de
"cooperacão econômica", mas por noções culturais, e o conflito intercultural em torno de ideias
políticas vindas do Ocidente será substituído por um "conflito intercivilizacional em torno de
cultura e religião".
2. O equilíbrio de poder entre círculos culturais mudará e o Ocidente (pelo que Huntington
considera a América do Norte e a Europa) perderá influência relativa nas próximas décadas.
Para apoiar este argumento, Huntington apresenta uma série de estatísticas segundo as quais,
nas próximas três décadas, o Ocidente perderá influência, não apenas demo graficamente, mas
também no tocante ao controle sobre o território mundial, a produção industrial e participação
no Produto Interno Bruto (PIB) mundial.
3. Huntington faz uma distinção entre conflitos no nível "micro" (dentro de áreas locais), nos
quais existam "guerras de linhas de fratura" entre muçulmanos e não-muçulmanos, ou, como na
guerra na antiga Iugoslávia, muçulmanos contra ortodoxos, e "macroconflitos" entre grupos e
Estados de culturas diferentes.
4. Huntington considera o crescimento demográfico como o fator mais perigoso por trás da
"ressurgência islâmica": "O crescimento da população islâmica é, assim, um importante fator
contribuinte para os conflitos ao longo das fronteiras do mundo islâmico, entre os muçulmanos
e outros povos."
A falsidade das premissas de Huntington sobre a guerra entre culturas demonstra que ele vê a
busca por uma identidade cultural e a "revitalização das religiões" (cristianismo, confucianismo,
islamismo e hinduísmo), tudo agrupado, como um motivo para os presentes conflitos ao redor
do globo, os quais substituíram os conflitos ideológicos da Guerra Fria. As grandes potências
mencionadas por ele são seis: EUA, Europa, Rússia, China, índia, Japão e o mundo islâmico.
Em outro trecho, afirma: "Nos anos vindouros, as populações muçulmanas serão populações
desproporcional mente jovens, com um notável bolsão demográfico de adolescentes e
indivíduos na casa dos 20 anos. Além disto, os indivíduos nesta faixa de idade serão
majoritariamente urbanos e terão pelo menos uma educação secundária... Jovens são os
protagonistas de protestos, instabilidade, reformas e revolução."
O que Huntington não menciona, evidentemente, é o fato de que o sistema financeiro do mundo
globalizado está atualmente condenando essas nações populosas à pobreza, à pilhagem dos seus
recursos naturais e, portanto, contribuindo para a sua instabilidade social.
Mas voltemos a ele: "De qualquer modo, nas próximas décadas, o crescimento econômico
asiático terá efeitos profundamente desestabilizadores sobre a ordem internacional dominada
pelo Ocidente, com o desenvolvimento da China, caso continue, produzindo uma drástica
mudança de poder entre civilizações."
Como se vê, Huntington também considera o crescimento econômico como uma "ameaça". A
única conclusão real que se pode tirar disto é que a suposta ameaça é o desafio à presente
dominação anglo-americana do sistema financeiro mundial, e não o resultado "natural" de
aspirações econômicas ou políticas.
Insiste Huntington: "Enquanto isso, o crescimento da população muçulmana será uma força
desestabilizadora, tanto para as sociedades muçulmanas como para seus vizinhos. O grande
número de jovens com educação secundária continuará a reforçar a ressurgência islâmica e
promover a militância, o militarismo e a emigração entre os muçulmanos. Como resultado, os
anos iniciais do século 21, provavelmente, presenciarão uma ressurgência já em marcha do
poder e das culturas não-ocidentais e o choque dos povos de civilizações não-ocidentais com o
Ocidente e entre si."
Um fator adicional de ameaça para o Ocidente, de acordo com Huntington, se dará na área da
proliferação de armas de destruição em massa: "Na área da proliferação de armas, as relações
islâmico-confucianas estão firmemente estabelecidas." Com isto, ele quer dizer que a China é a
principal fonte de armas para países como o Irá e o Paquistão.
Diante do fato de que a guerra entre culturas poderá ser uma fonte de conflitos de destruição em
massa, Huntington recomenda ao Ocidente uma política de "apartheid tecnológico", de
"cenoura e chicote", especialmente para as nações islâmicas e asiáticas.
Huntington não oculta o fato de que, para assegurar essa hegemonia, as guerras do futuro serão
guerras de população e recursos. Ele faz a seguinte consideração referente à Guerra do Golfo:
"A Guerra do Golfo foi a primeira guerra de recursos entre civilizações do período pós-Guerra
Fria. O que estava em jogo era determinar se o grosso das maiores reservas mundiais de
petróleo seriam controladas pelos sauditas e governos de emirados dependentes do poderio
militar ocidental para a sua segurança ou por regimes antiocidentais independentes, que seriam
capazes e poderiam estar dispostos a usar a arma do petróleo contra o Ocidente... Antes da
guerra, o rã, o Iraque e o Conselho de Cooperação do Golfo, de um lado, e os EUA do outro, se
acotovelavam pela influência no Golfo. Depois da guerra, o Golfo Pérsico era um lago
estadunidense."
Em face do fato de que as relações entre os EUA, de um lado, e a China, Japão e outras nações
asiáticas, do outro, serão prenhes de conflitos, na avaliação de Huntington, "poderá ocorrer uma
guerra importante se os EUA desafiarem a ascensão da China como a potência hegemônica na
Ásia. Se ela vir como uma grande guerra, então, os laços confucinano-islâmicos se reforçariam
ainda mais, como mostra o exemplo do eixo Teerã-lslamabad-Pequim".
Huntington desenvolve o cenário para uma guerra futura como numa novela de ficção científica,
uma guerra de culturas em que a China, o Japão e o mundo islâmico lutariam contra o resto do
mundo. A Índia declara guerra ao Paquistão, a Rússia e a índia lutam contra a China, mísseis
nucleares são disparados contra a Bósnia, Argélia e Marselha, e assim por diante.
Ao final, depois de expor em detalhes como guerras futuras eclodirão, inevitavelmente, em tais
circunstâncias, Huntington explica - para proteger-se de potenciais críticos - que o Ocidente, em
vez de tirar vantagem da sua superioridade universalmente majoritária, deveria preocupar-se em
"entender" as outras culturas.
O fato de que ele não está, realmente, falando seriamente, pode ser visto em sua recente
entrevista ao semanário alemão Die Zeit, em 17 de setembro de 2001. Perguntado sobre se os
ataques nos EUA poderiam levar a uma "guerra cultural num plano global", ele respondeu:
"Precisamos de uma coalizão, que também inclua Estados islâmicos... Se estes Estados
mostrarem solidariedade com os criminosos, crescerá o perigo de que ocorra, na verdade, um
'choque de civilizações', e não meramente uma luta das sociedades civilizadas contra as
potências do mal."
Em 25 de maio de 2003, numa entrevista ao diário italiano II Sole 24 Ore, Huntington afirmou
que a China e os Estados islâmicos representavam a principal ameaça aos EUA. O principal
problema dos Estados islâmicos, disse ele, é o crescimento demográfico: A crescente taxa de
nascimentos provocou a elevação da percentagem de jovens como fração da população total. Os
jovens recorrem à militância extrema e escolhem posições radicais."
Disponível em:
http://www.portugues.larouchepub.com/outrosartigos/2003/SHumtingtonChoqueCiv.html.
Acesso em: 10 maio. 2016. Adaptado.
Acerca do texto:
BERGER, P.; HUNTINGTON, S. (Org.). Muitas globalizações. Rio de Janeiro: Record, 2004
HUNTINGTON, S. Choque de civilizações? Rio de Janeiro: Paz e Terra, Política Externa, vol.
2, n.4, 1994
_____________ O choque de civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997