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CEDERJ 2016

GEOGRAFIA POLÍTICA

Prof. Ivaldo Lima

Aula 3

A geopolítica clássica e suas hipóteses: H. Mackinder e K. Haushofer

O advento da geopolítica clássica

O contexto desta aula é o entendimento do que foi a geopolítica clássica, desenvolvida no


período histórico compreendido entre o fim do século XIX e a década de 1950. Assim, nosso
objetivo é compreender a contribuição das hipóteses geoestratégicas apresentadas pelo britânico
Halford Mackinder e pelo alemão Karl Haushofer. Contudo, dois esclarecimentos nos parecem
fundamentais quando o tema é a geopolítica clássica. O primeiro deles é sobre os parâmetros
que balizam essa geopolítica voltada à escala planetária, a saber: a) a distribuição de terras e
mares e b) a busca por espaços autárquicos. O segundo deles é sobre a relação entre geografia
política e geopolítica, para retomarmos um tópico que fez parte da nossa Aula 1. Avancemos
sobre esse segundo esclarecimento, analisando o seguinte texto de Pedro Castro (2006):

Geopolítica e Geografia Política

Geopolítica e geografia política são termos que se confundem na linguagem coloquial


devido à diversidade de seus pontos de vista, à lassitude de suas distintas definições, à
variedade de campos que cobrem e ao uso político que, com frequência, se faz deles
(DEAR, 1986; KIRBY, 1986). Desde suas origens como campo da disciplina da
geografia humana, a geografia política se preocupou com as atividades dos Estados-
nação, e, mais especificamente, por suas dimensões espaciais, sua organização e as
relações de poder estabelecidas em seu interior e entre Estados-nação. As definições
tradicionais da geografia política são diversas, mas giram em torno destes temas, e seus
objetos de estudo se referem em geral à Europa e aos Estados Unidos, se bem que, nos
últimos trinta anos, se nota um interesse crescente em direção a outras áreas do mundo.
Foram geógrafos dessas regiões que tiveram como interesse fundamental o estudo de
seu próprio território, com propósitos que serviam, de modo deliberado ou não, a
objetivos de caráter político, de defesa ou de projeção em relação ao exterior. O alemão
Friedrich Ratzel, a um só tempo pai da geografia política e da geopolítica, endereçava a
esse último tema assuntos tais como o crescimento natural dos Estados, seus espaços
ótimos e excludentes e a luta pela supremacia internacional. Assim, desde seus
primeiros tempos, a geopolítica tinha propósitos políticos muito claros, e, ao longo de
seu desenvolvimento, criou certo número de categorias, conceitos e termos, explicitando
a situação de que seu maior propósito era de ordem prática, e não teórica, apesar de suas
aparências contrárias.
A geografia política e a geopolítica transitaram de maneira paralela desde as suas
origens, e por isso compartilham alguns traços semelhantes quanto aos campos do
conhecimento, embora a segunda esteja mais longe que a primeira de constituir um
corpo teórico e conceitual de longo alcance. Portanto, é pertinente afirmar para o caso
da geopolítica o que Paul Claval sustenta para a geografia política, isto é, que carece de
coerência, entendida como a continuidade de sua matéria disciplinar, como a
correspondência entre seu núcleo e os princípios das ciências sociais em geral, e em
especial – agregaríamos – da geografia humana. Essa tese se esclarece pelo fato de que
os problemas políticos foram importantes para os geógrafos entre 1890 e 1945, mas
deixaram de sê-lo quando emergiram interesses novos nos anos que se seguiram, sem
deixar de mencionar que a geografia política resistia em abandonar sua ênfase no Estado
enquanto a geografia humana em seu conjunto considerava cada vez mais fenômenos
regionais e locais (CLAVAL, 1984:8).

Embora a geografia política tenha menor alcance que a geografia social, urbana ou
econômica, recentemente começou abrir-se a temas tais como as relações interestatais,
movimentos sociais, ecologia, violência e guerra, fronteiras, migração e cidadania,
políticas de identidade, organizações internacionais, democracia e justiça ambiental
(LOW, 2003:625). Em termos gerais, essa afirmação é igualmente certa para a chamada
“geopolítica crítica”, um enfoque moderno, mas cuja projeção se vê limitada na
América Latina devido ao peso dos temas elaborados nas escolas de guerra e pelas
contrapropostas críticas de acadêmicos de países como Argentina e Uruguai.
Desafortunadamente para ambas, nesse âmbito, a primazia do Estado continua
sobrecarregando a geografia política e a geopolítica.

Para certos efeitos, a geopolítica tem sido tanto a cara pública da geografia política,
quanto sua maior carga histórica. O uso diverso de seus conceitos conferiu ao termo um
caráter polissêmico e até certo ponto arbitrário, até se tornar moeda corrente da
linguagem de tomada de decisões, das relações internacionais e do jornalismo. Mais
ainda, embora o geopolítico implique uma miríade de fenômenos diferentes em cada
contexto e escassamente relacionados com alguma tradição intelectual reconhecível, e
apesar de suas contradições e ambiguidades, ele não parece preocupar nem aos políticos
nem aos “intelectuais da segurança” (ATCKINSON, 2001:426).

Pois bem, esse texto do geógrafo Pedro Castro nos incita a pensar a relação estreita entre a
geografia política e a geopolítica em seu período clássico. Desse texto, extraímos, logo de saída,
a informação básica sobre a primazia da figura do Estado, ou seja, sobre a primazia dos estudos
sobre as suas atividades, suas dimensões espaciais e a organização das relações de poder tanto
em seu interior quanto entre Estados. Esses estudos constituíam o tema central das análises
apresentadas pelos autores clássicos. Desse modo, parece-nos bem justificado o rótulo de
‘estadocêntrica” atribuído por Claude Raffestin a essa geografia política (e, por extensão, à
geopolítica) clássica, sem concessões à dúvida. Igualmente, extraímos a informação de que, nas
suas origens, tanto a geografia política quanto a geopolítica foram elaboradas em torno dos
interesses dos Estados que, à época, disputavam a hegemonia mundial. Daí a coerência da lista
de nomes europeus e norte-americanos que apresentamos e analisaremos. O texto de Pedro
Castro aponta também para um movimento de renovação dessa geopolítica que, afinal, não
ficou estagnada nos balizamentos clássicos. Por isso o autor se refere a uma geopolítica crítica,
como um enfoque moderno desse ramo do conhecimento. Esse enfoque será estudado por nós,
em aulas oportunas.

Uma ideia para a nossa reflexão:

Então, é possível afirmar que a geopolítica tem sido a cara pública da geografia política?

A hipótese geoestratégica de Halford Mackinder

Na geopolítica clássica, nomes como os de Halford Mackinder, Karl Haushofer, Alfred Mahan,
Nicholas Spykman foram cruciais devido às hipóteses geoestratégicas sobre o poder mundial
por eles apresentadas. Como veremos, essas hipóteses geoestratégicas tiveram desdobramentos
históricos notórios, além de influenciar autores importantes como Zbigniew Brzezinski, por
exemplo. Então, entender a geopolítica clássica implica examinar a contribuição desses autores
e suas ideias. Nesta aula, estudaremos especificamente as contribuições de Mackinder e
Haushofer.

Um dos nomes mais célebres da geopolítica de todos os tempos é o do geógrafo britânico


Halford John Mackinder (1861-1947) que detinha, também, o título de Sir da coroa do Reino
Unido. Sua hipótese geoestratégica sobre o poder mundial provocou inúmeras decorrências,
tanto de ordem pragmática, ou seja, vinculadas a eventos históricos, quanto de ordem
intelectual, por meio de noções estratégicas que se inspiraram nas ideias contidas em tais
hipóteses.

Disponível em: http://www.bulentsener.com/FileUpload/op399503/File/halford_mackinder.jpg. Acesso em: 10 mar. 2016.

Mackinder estava preocupado com as mudanças políticas vislumbradas naquela virada do


século XIX. Uma dessas preocupações visava à manutenção do poder desfrutado pelo império
britânico até então. Especificamente, a Inglaterra era considerada a “rainha dos mares”, pois
detinha de modo articulado o poder marítimo – controle de áreas e pontos estratégicos nos
mares e oceanos – e o poder naval – uma frota incomparável de guerra. À época, manter esse
carro-chefe do império britânico parecia ser a principal preocupação – mas não a única... – no
Reino Unido, isto é, manter firme o poder marítimo do Estado. É nesse momento que
Mackinder anuncia uma hipótese que, sem negar a importância do poder marítimo, apontava
para a importância ainda maior do poder terrestre. Nesse ponto, o geógrafo foi magistral, ao
indicar outra direção geoestratégica garantidora do exercício da supremacia mundial. Assim,
Mackinder esboçou as linhas mestras de uma teoria sobre o poder terrestre. Esse esboço foi
apresentado em 25 de janeiro de 1904, na Real Sociedade Geográfica de Londres, onde
Mackinder proferiu sua célebre conferência intitulada “O pivô geográfico da história”.

Iniciemos por esclarecer o que era o pivô geográfico. Essa expressão foi empregada por
Mackinder para se referir a imensas extensões continentais existentes no território da Rússia
czarista, correspondentes, grosso modo, às terras siberianas. Em outras palavras, tratava-se uma
área geográfica localizada na Rússia. Posteriormente, Mackinder revê sua teorização e renomeia
esta área pivô com o termo heartland (que os franceses traduzem como coração mundial, e
outros a ele se referem como região pivô, região eixo, terra central ou coração continental).
Esse heartland é definido a partir dos parâmetros que mencionamos: a) a configuração de terras
e mares, constituindo uma área estratégica dentro da massa continental da Eurásia; e b) a
consecução de um espaço autárquico, isto é, dotado de recursos que o torna autossuficiente.
Acrescente-se que, sobretudo, o heartland é visto por Mackinder, como uma fortaleza natural,
inexpugnável, atravessada por cursos hídricos vitais (como o rios Ob, Ienissei, Lena, Volga,
Amudária e Sidária), pois sua posição geográfica lhe permite desfrutar dessa condição, já que,
ao norte, o acesso é dificultado pelo rigor do clima que, inclusive, congela os mares; a leste, o
acesso é dificultado pelas imensas distâncias preenchidas pela maior floresta do mundo, a taiga
siberiana; a oeste, o acesso é dificultado pela barreira orográfica interposta pela presença dos
Montes Urais; e, ao sul, o acesso é dificultado pelo horizonte amplo constituído pelas estepes
que ainda oferecem condições favoráveis de mobilidade para os povos nômades e pastoris da
Ásia Central. Por isso, a referência à imagem de uma fortaleza natural, obviamente,
considerando-se os limites tecnológicos do poder aéreo daquele início de século XX.

Nessa teorização, Mackinder chama a atenção de estudiosos e de estadistas para dois aspectos
teórico-metodológicos fundamentais. O primeiro é a visão que ele tinha sobre o poder terrestre,
reconhecendo a sua relevância e identificando geograficamente o seu núcleo estratégico no
heartland. Estavam em jogo duas visões estratégicas sobre o exercício do poder ao nível
mundial, de fato, duas cosmovisões sobre esse exercício: o continentalismo (apoiado no poder
terrestre) e o oceanismo (apoiado no poder marítimo). Mackinder admitia a importância da
relação entre ambos, tendo enfatizado, inicialmente, o continentalismo. O segundo aspecto diz
respeito à subversão que Mackinder provoca na percepção da posição geográfica da Europa.
Acostumados há mais de quatrocentos anos com a projeção cartográfica do geógrafo flamengo
Gerardus Mercator (1512-1594) cujo mapa-múndi exagera as dimensões das terras setentrionais,
além de situar a Europa em posição privilegiada, os europeus foram surpreendidos com a
apresentação das ideias de Mackinder, expostas numa projeção polar azimutal. Nessa projeção,
a Europa é configurada como uma pequena porção de terras integrante da Eurásia (termo
descritivo que aglutina as terras da Europa e da Ásia num único bloco geográfico).
Efetivamente, segundo Mello (1999:13):

A proposta original de Mackinder relativizou a centralidade histórico-geográfica europeia,


submetendo-a a uma drástica revisão em três aspectos cruciais:
a) A Europa foi deslocada do centro para o oeste
do planisfério;
b) tornou-se parte integrante de um sistema
político fechado de âmbito mundial;
c) sua história foi subordinada à dinâmica da
história asiática.

O heartland fazia parte de uma estrutura geoestratégica definida por Mackinder, do seguinte
modo. As terras que circundavam esse heartland denominam-se crescente marginal ou interno e
comporiam com o heartland um bloco denominado ilha-mundo que abrangeria um enorme
conjunto supracontinental constituído pela Europa, Ásia e África. Para além dessa ilha-mundo,
por sua vez, amplas faixas de terras comporiam o denominado crescente insular ou externo.
Note-se que essas faixas denominadas crescentes constituem, de fato, anéis terrestres mais ou
menos distantes em relação ao heartland, como se pode confrontar no Mapa 1.

Mapa 1. A região pivô eurasiana, em 1904

Disponível em: http://www.sott.net/image/s8/178491/full/Mackinder_20Map_20of_20Pivot_2.jpg. . Acesso em: 10 mar. 2016.

Essa estrutura geoestratégica criada por Mackinder permitiu-lhe que enunciasse a mais
conhecida formulação de hipótese sobre o poder mundial:

Quem domina a Europa Oriental controla o heartland;

Quem domina o heartland controla a ilha mundo;

Quem domina a ilha mundo controla o mundo.

Revendo sua teorização, Mackinder reelaborou sua hipótese, expandindo-a, em 1919, quando
propõe o termo heartland como substituto de área pivô (lembrando que, posteriormente, o
próprio termo heartland será trocado por lenaland), e em 1943, no auge da Segunda Guerra,
quando reduz a extensão espacial do heartland e apresenta o conceito estratégico de midland
ocean ou oceano central. Entendido como a contraface marítima do heartland, esse novo
conceito se refere, descritivamente, à bacia do Atlântico norte, com seus mares subsidiários
(Caribe, Báltico e Mediterrâneo), suas áreas insulares de porte (Inglaterra, Islândia e
Groenlândia) e suas regiões marginais (Europa Ocidental e leste da América do Norte).
Mackinder apresentou os três elementos do midland ocean: a) uma cabeça-de-ponte, na França;
b) um aeródromo, na Inglaterra; c) uma reserva de forças, de recursos agrícolas e industriais, no
leste dos Estados Unidos e Canadá. O midland ocean é, assim, constituído por seus mares
dependentes e as bacias de seus rios, como se confronta no Mapa 2.

Mapa 2. O oceano central, sua bacia e rede drenagem, em 1943

Disponível em: http://www.revistamilitar.pt/recursos/imagens/imgs2014/RM2547-295.jpg. Acesso em: 10 mar. 2016.

Embora, na década de 1960, o notável filósofo político francês Raymond Aron (1905-1983)
tenha criticado duramente a proposta de Mackinder afirmando que o geógrafo parecia “ter tido a
pior das sortes possíveis para um conselheiro do Príncipe: foi ouvido pelos estadistas, mas
ignorado pelos acontecimentos”, é possível contra-argumentar, reconhecendo a validade das
ideias mackinderianas em alguns desdobramentos históricos. Chamamos a atenção para dois
desses eventos. Um deles foi a operação do desembarque anglo-americano na Normandia, em
1944, a denominada Operação Overlood reproduziu o esquema de Mackinder ao arregimentar
recursos materiais e humanos nos Estados Unidos e no Canadá, concentrá-los na Inglaterra e
desembarcá-los na França. Outro desdobramento histórico foi a criação da Organização do
Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1947, que se aproxima claramente com o midland
ocean mackinderiano. O cientista político Leonel Mello (1999: 213-216), em seu livro Quem
tem medo da geopolítica? nos brinda com uma síntese muito refinada dos aspectos que
permitiriam afirmar a atualidade de Mackinder. Vejamo-la.

A atualidade de Halford Mackinder


Após o cinquentenário da morte de Mackinder, é possível afirmar que seu pensamento
geopolítico e estratégico continua vivo e apresenta relevantes contribuições teóricas
para a análise das relações internacionais e da política de poder no mundo pós-Guerra
Fria. (...)

Primeiramente, uma formulação mackinderiana da maior atualidade é sua concepção do


mundo como sistema fechado, no qual eventos que no passado eram considerados
distantes, isolados e periféricos, tornar-se-iam doravante passíveis de provocar
repercussões e desdobramentos políticos, econômicos, diplomáticos e militares em
todos os quadrantes do planeta. (...) Numa era de mundialização e globalização das
relações interestatais e transnacionais, falar da existência de um sistema compacto de
extensão planetária tornou-se evidente e nem precisa ser demonstrado. (...)

Em segundo lugar, outra formulação mackinderiana da maior relevância é sua visão


histórico-geográfica da luta permanente entre dois grandes poderes antagônicos – as
potências oceânicas e as potências continentais. (...) A secular oposição entre o poder
marítimo e o poder terrestre encontra-se na origem das rivalidades anglo-francesa,
anglo-russa e anglo-germânica, assim como na confrontação americano-soviética. A
questão do conflito latente entre o oceanismo e o continentalismo manifesta-se também
na mudança dos interesses americanos no mundo pós-Guerra Fria.(...)

Em terceiro lugar, deve ser destacada a relevância de uma série de conceitos


mackinderianos – tais como os de região-pivô (heartland), crescente marginal (inner
crescent) e crescente insular (outer crescent) – que influenciaram a formulação da
política de contenção e o estabelecimento de alianças militares dos Estados Unidos com
os países periféricos da Eurásia (OTAN, CENTO, OTASE), durante a Guerra Fria. A
clareza desses conceitos permite uma nova abordagem das guerras da Coreia e do
Vietnã, como conflitos resultantes da dialética de expansão-contenção implícitas na
oposição heartland-rimland.(...)

Finalmente, é preciso ressaltar ainda a relevância do conceito estratégico de oceano


central (midland ocean) – com sua retaguarda na costa leste da América do Norte, seu
aeródromo na Inglaterra e sua cabeça-de-ponte na França - , que esteve na origem da
liga marítima formada pela Aliança Atlântica (OTAN), em 1947. (...) Caso o eixo
econômico venha a se deslocar do Atlântico para o Pacífico [no século XXI], o conceito
de midland ocean poderá conservar sua atualidade, se for pensado como uma retaguarda
na costa oeste norte-americana, de um aeródromo japonês e de uma cabeça-de-ponte
sul-coreana. Se o conceito mackinderiano for realmente aplicável à geopolítica do
Pacífico, a talassocracia americana provavelmente estará em condições de manter sua
hegemonia marítima no “novo oceano central” do século XXI.

Além desses apontamentos sobre a atualidade das ideias de Mackinder, lembramos que a
geógrafa Bertha Becker empregou a expressão “heartland ecológico” para se referir à
Amazônia. Nesse caso, estaríamos diante de um resgate do conceito estratégico de Mackinder,
desta feita, aplicado em outro contexto geo-histórico. Que razões teria Bertha Becker para
justificar esse resgate? Rastrear uma resposta adequada parece bastante estimulante. Sugerimos
a leitura do livro da autora intitulado “Um futuro para a Amazônia” (e/ou da resenha escrita por
Gloria Maria Vargas, do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília, disponível
em: http://periodicos.unb.br/index.php/sust/article/viewFile/7188/5657).

Uma ideia para a nossa reflexão, a partir do esquema a seguir:

Disponível em: http://www.revistamilitar.pt/recursos/imagens/imgs2014/RM2547-292.jpg. Acesso em: 10 mar. 2016.

Estaria a hipótese geoestratégica de H. Mackinder submetida à questão nacional britânica?

A hipótese geoestratégica de Karl Haushofer

Karl Ernest Haushofer (1869-1946), geógrafo e general alemão de família aristocrata


conservadora da região da Bavária, teve grande importância para a geopolítica clássica, tanto de
um ponto de vista teórico-metodológico quanto pragmático. Isso porque, Haushofer buscou
aprimorar aplicar alguns conceitos e aprimorar outros, sofisticar uma cartografia condizente
com os propósitos daquela geopolítica, bem como se articulou, direta ou indiretamente, com as
forças políticas do III Reich, ou seja, com o projeto nazista. A contribuição de seus estudos à
geopolítica é inegável, no mínimo, pela hipótese geoestratégica sobre o poder mundial por ele
elaborada. Como tantos outros alemães seus contemporâneos, Haushofer considerava as
condições do Tratado de Versailles (1919) injustas e humilhantes, pois, por esse documento
diplomático, a Alemanha perdia parte de seu território. Isso talvez tenha lhe instigado a pensar a
uma afirmação mais adequada de seu país no sistema internacional de Estados, ou seja, talvez
lhe tenha imbuído da questão nacional.
Disponível em: http://static.newworldencyclopedia.org/thumb/f/f4/Karl_Haushofer.jpg/180px-Karl_Haushofer.jpg. Acesso em: 10
mar. 2016.

Francamente influenciado pela obra de F. Ratzel, Haushofer adotou o termo geopolítica do


jurista sueco Rudolf Kjellén (1864-1922) que, igualmente influenciado pela obra ratzeliana, é o
criador desse neologismo, inventado em 1899 (além de outros termos correlatos, do mesmo
autor, tais como: sociopolítica, como o estudo da sociedade; demopolítica, como o estudo da
população; ecopolítica, como o estudo da economia; cratopolítica, como o estudo das estruturas
de poder). Como vimos, essa geopolítica está estreitamente vinculada ao Estado, uma das
ciências do Estado, como afirmou Kjellén, tendo sido mesmo definida como a consciência
geográfica do Estado. Haushofer liderou o mais influente grupo de estudiosos de geopolítica de
seu tempo, como Otto Maull, O. Jessen e Albrecht Haushofer – um de seus dois filhos –, em
Munique, constituindo, simultaneamente à criação da primeira revista dedicada ao tema, a mais
famosa e controversa escola de geopolítica do século XX.

Do mesmo modo que H. Mackinder, Haushofer estava preocupado com as mudanças que o
mundo experimentava na virada do século XIX. No caso da Alemanha, diferentemente de
Ratzel que viveu o período da unificação alemã e o expansionismo bismarkiano, Haushofer
vivenciou as duas guerras mundiais e a política expansionista de A. Hitler. Também por
influência das ideias de H. Mackinder, Haushofer seguia o raciocínio de que as potências
deveriam ter, no espaço mundial, sua esfera própria de influência que seria a solução para o
problema incontornável da competição pelo poder global.

O geógrafo e general Haushofer havia sido enviado em missão diplomática ao Japão, em 1908.
Dessa experiência emanou a percepção de Haushofer sobre a situação geográfica privilegiada do
Japão correlacionada a seu potencial para dominar os países próximos. A ideia de que uma
potência deveria dispor de uma área de influência, tal qual o Japão conduziu Haushofer à
elaboração de um esquema que representaria uma ordem mundial ideal, na qual cada uma das
quatro potências identificadas deteriam uma vasta área sob seu controle, no sentido dos
meridianos, a saber: Estados Unidos, Alemanha, Rússia e Japão. Cada uma dessas zonas de
influência seria denominada de pan-região. Tratava-se de uma configuração verticalizada, pela
qual diversas faixas latitudinais estariam sob o controle da mesma potência, permitindo a
obtenção de produtos complementares. Vê-se, nesse esquema, a aplicação dos parâmetros da
geopolítica clássica: configuração de terras e mares e busca por espaços autárquicos, como se
confronta no Mapa 3.

Mapa 3. As pan-regiões

Disponível em: https://www.google.com.br/search?hl=pt-


BR&site=imghp&tbm=isch&source=hp&biw=1348&bih=604&q=mapa+hausahofer&oq=mapa+hausahofer&gs_l=img.3...1285.39
30.0.4522.15.10.0.5.0.0.269.1433.0j3j4.7.0....0...1ac.1.64.img..3.6.1164.0QexUhoabzA#imgrc=n-uDxOkyvHVIaM%3A. Acesso
em: 10 mar. 2016.

A hipótese geostratégica de Haushofer emerge em um contexto turbulento do entre-guerras.


Amigo de Rudolf Hess, que mais tarde seria seu aluno e seu canal de contato com Hitler,
Haushofer produziu uma geopolítica muito atrelada a esse contexto do nazismo, portanto, com a
afirmação da Alemanha no tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial. Em outras palavras,
Haushofer estava preocupado com o futuro de seu país. Assim, percebe-se claramente que a
hipótese haushoferiana, com suas quatro pan-regiões, excluía a Inglaterra como potência
controladora de territórios que não fossem o seu próprio. Isso significa dizer que a proposta de
Haushofer neutralizaria o Império Britânico (Mapa 4) que, como sabemos, era um complexo
colonial disperso mundo afora, controlando, sobretudo, pontos estratégicos nos mares e
oceanos. Pela hipótese de Haushofer, se a Inglaterra postulasse manter o controle de seu
império, teria de enfrentar as quatro potências, ou seja, afrontar os controladores das quatro pan-
regiões.

Aproximando-se o final da Segunda Guerra com seus resultados desvantajosos para a Alemanha
nazista, Karl Haushofer, que já havia perdido o filho Albrecht, morto pelo regime nazista, acaba
por cometer suicídio, junto com sua mulher. À parte de sua contribuição para a promoção da
geopolítica, sobrepairam as conjecturas acerca da participação ativa de Haushofer no projeto
nazista de Hitler. Sobre esse tópico, A. Dorpallen (apud Costa, 1990:123) afirma ser duvidoso
que Haushofer tenha sido um ardente nazista, mas não hesita em declarar:

No curso dessa visita [de Haushofer], Hitler foi iniciado nos mistérios da Geopolitik.
Ali Haushofer pontificou sobre a necessidade do ‘espaço vital’ e deu a Hitler um de
seus mais efetivos argumentos para suas subsequentes loucuras.
Mapa 4. Império Britânico

Disponível em: http://elordenmundial.com/wp-content/uploads/2014/03/britanico.jpg. Acesso em: 10 mar. 2016.

Uma ideia para a nossa reflexão, a partir da observação do cartograma de Haushofer abaixo:

Disponível em: https://www.google.com.br/search?hl=pt-


BR&site=imghp&tbm=isch&source=hp&biw=1348&bih=604&q=mapa+hausahofer&oq=mapa+hausahofer&gs_l=img.3...1285.39
30.0.4522.15.10.0.5.0.0.269.1433.0j3j4.7.0....0...1ac.1.64.img..3.6.1164.0QexUhoabzA#imgrc=RswykMEIWevtvM%3A. Acesso
em: 10 mar. 2016.

A potencial ameaça dos países vizinhos à Alemanha teria inclinado Haushofer à geopolítica?
Sugestões de leitura

BECKER, B. A geopolítica na virada do milênio. In: Castro, I, et al. (Org.). Geografia:


conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995

COSTA, W. Geografia política e geopolítica. São Paulo: EDUSP, 1990

LOUIS, F. Les grands théoriciens de la géopolitique. Paris: PUF, 2014

MELLO, L. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: Hucitec, 1999

O’LOUGHLIN, J. (Ed.) Dictionary of geopolitics. Londres: Greenwood, 1994

Referências bibliográficas

ATKINSON, D. Commentaries on Heppler’s “The revival of geopolitics”. Progress in Human


Geography, vol.25, n. 3, p. 426-427, 2001.

CASTRO, P. Geografía e geopolítica In: Hiernaux, D. e Lindón, A. (Dir.). Tratado de


Geografía Humana. Barcelona: Anthropos, 2006.

CLAVAL, P. The coherence of political geography: perspectives on its past evolution and its
future relevance. In: Taylor, P. e House, J. (Orgs.). Political geography: recent advances and
future directions. Totowa, N. J.: Croom Helm, 1984.

DEAR, M. Editorial comment, “Theory and object in political geography”. Political Geography
Quarterly, n. 5, p 295-297, 1986.

KIRBY, A. Where’s the theory? Political Geography Quarterly, n. 5, p. 187-192, 1986.

LOW, M. Political geography in question Political Geography, n. 22, p. 625-631, 2003.

MELLO, L. Quem tem medo da geopolítica? São Paulo: EDUSP/HUCITEC, 1999.

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