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GEOGRAFIA POLÍTICA
Aula 1
O projeto político da geografia é tão antigo quanto à própria disciplina. Isso não quer dizer que
tenha existido uma geografia política, como um subcampo formal, desde os primórdios da
formação do conhecimento geográfico, mas sim que a natureza política desse conhecimento
sempre esteve presente nos escritos dos geógrafos ao longo de sua longa história. Desse modo,
pode-se afirmar, sem medo de errar, que a geografia é uma das ciências políticas. Contudo,
como verificar essa natureza política da geografia? Através de que métodos e conceitos essa
natureza se explicita? Como se constata uma geografia política aplicada? Quais são os
desdobramentos epistemológicos da geografia política desde seu reconhecimento moderno no
final século XIX? Que ideias originais são encontradas no campo de estudo da geografia
política? Geografia política e geopolítica se inter-relacionam de que modo? São perguntas como
essas que guiarão os estudos programáticos dessa disciplina preparada para estudantes
universitários – futuros geógrafos que estarão aptos a se dedicar à pesquisa e à educação
geográficas.
A geografia está em sua maior parte orientada na direção das necessidades políticas.
É evidente que a geografia está toda ela orientada para as ações próprias do governo.
Geografia política e geopolítica são expressões que poderiam ser tomadas uma pela outra,
diriam alguns geógrafos, embora nem todos concordem com essa afirmativa. É possível,
portanto, distinguir uma da outra? Tentemos esclarecer essa distinção. Como dissemos, a
geografia é acompanhada de um projeto político desde tempos remotos, o que pode gerar
alguma confusão entre os nomes e as coisas. A geografia política e a geopolítica estão
assentadas na relação formada entre espaço e poder, por isso são frequentemente confundidas.
Porém, advogamos a ideia de que a geografia política é uma reflexão científica sobre essa
relação, enquanto a geopolítica é uma prática estratégica guiada por essa relação. Desse modo, a
geografia política seria mais abrangente que a geopolítica uma vez que os geógrafos políticos
fazem da geopolítica um de seus temas mais diletos. Assim, cria-se uma distinção. Tentemos
ilustrar com exemplo prático. Quando, em 1990, Saddam Hussein invadiu o Kwait, com o
propósito de anexá-lo ao Iraque, deflagrou-se a primeira Guerra do Golfo. Essa foi uma prática
estratégica guiada pela relação espaço e poder, visto que, um Estado, o Iraque, tornar-se-ia mais
poderoso com o almejado controle do espaço kwaitiano. Os geógrafos políticos fizeram várias
reflexões científicas sobre essa prática, buscando, inclusive, base teórica e metodológica que a
explicasse bem. Por esse e outros exemplos empíricos, começamos a entender que é possível
distinguir a geografia política da geopolítica. Além do que, bastaria mencionar que muitos – a
maioria – dos geógrafos políticos não são geopolíticos... Então, esses termos podem não ser
sinônimos.
O geógrafo Pedro Castro faz algumas considerações sobre essa (in)distinção. Para ele, a
geopolítica e geografia política são termos que se confundem na linguagem coloquial devido à
diversidade de seus pontos de vista, à lassitude de suas distintas definições, à variedade de
campos que cobrem e ao uso político que, com frequência, se faz deles. Desde suas origens
como campo da disciplina da geografia humana, a geografia política se preocupou com as
atividades dos Estados-nação, e, mais especificamente, por suas dimensões espaciais, sua
organização e as relações de poder estabelecidas em seu interior e entre Estados-nação. As
definições tradicionais da geografia política são diversas, mas giram em torno destes temas, e
seus objetos de estudo se referem em geral à Europa e aos Estados Unidos, se bem que, se nota,
nos últimos trinta anos, um interesse crescente em direção a outras áreas do mundo. Foram
geógrafos dessas regiões que tiveram como interesse fundamental o estudo de seu próprio
território, com propósitos que serviam, de modo deliberado ou não, a objetivos de caráter
político, de defesa ou de projeção em relação ao exterior. Por exemplo, o alemão Friedrich
Ratzel (autor que estudaremos, detalhadamente, em aula vindoura), considerado a um só tempo
pai da geografia política e da geopolítica, endereçava ao tema do Estado assuntos tais como o
crescimento natural dos Estados, seus espaços ótimos e excludentes e a luta pela supremacia
internacional.
Assim, desde seus primeiros tempos, a geopolítica tinha propósitos políticos muito
claros, e, ao longo de seu desenvolvimento, criou certo número de categorias, conceitos
e termos, explicitando a situação de que seu maior propósito era de ordem prática, e não
teórica, apesar de suas aparências contrárias. A geografia política e a geopolítica
transitaram de maneira paralela desde as suas origens, e por isso compartilham alguns
traços semelhantes quanto aos campos do conhecimento, embora a segunda esteja mais
longe que a primeira de constituir um corpo teórico e conceitual de longo alcance.
Embora a geografia política tenha menor alcance que a geografia social, urbana ou
econômica, recentemente começou abrir-se a temas tais como as relações interestatais,
movimentos sociais, ecologia, violência e guerra, fronteiras, migração e cidadania,
políticas de identidade, organizações internacionais, democracia e justiça ambiental.
Desafortunadamente para ambas, nesse âmbito, a primazia do Estado continua
sobrecarregando a geografia política e a geopolítica (CASTRO, 2006:188).
A geografia política vem se abrindo a novos temas. Ela tem deixado, por isso, de ser
“política”?
Ainda de acordo com Castro (2006), para certos efeitos, “a geopolítica tem sido tanto a cara
pública da geografia política, quanto sua maior carga histórica”. Isso tem provocado
consequências benéficas e maléficas. As consequências benéficas derivam da difusão da
geografia política e o despertar para o seu maior interesse nos meios acadêmicos – inclusive
extrageográficos –, o que faz com que os estudos político-geográficos alcancem maior
visibilidade e relevância em meio à sociedade. As consequências maléficas derivam da
popularização excessiva de conceitos abordados pela geografia política, o que faz com que se
vulgarizem alguns conteúdos e se banalizem alguns tratamentos, o que se verifica comumente
com relação à ideia de território e de guerra, para citar dois exemplos. De nossa parte,
entendemos que a geografia política e a geopolítica diferenciam-se por seus enfoques teóricos,
métodos e abordagens, mas não pela relação básica que analisam. Ademais, nuca é demais
lembrar que o Estado centralizou durante muito tempo as análises tanto de geógrafos políticos
quanto de geopolíticos, exigindo de umas décadas para cá esforços para que essa camisa de
força fosse abandonada. Como veremos em aula próxima, a geografia política segue com
interesse no Estado e em suas atuações, porém não se restringe apenas ao estudo dessa
instituição.
Para alguns autores, o campo de estudo da geografia política remete-se às relações estabelecidas
entre território e conflito, como se encontra em Castro (2005). Nesse caso, duas observações
preliminares tornam-se imperiosas, para entendermos melhor o campo e o objeto de estudo da
geografia política. A primeira delas diz respeito ao fato de que, mesmo sendo o território um
conceito chave da geografia política, ele deve ser pensado a partir da produção social do espaço
– um processo bem mais amplo que acaba explicando a própria construção dos territórios. Ou
seja, o conceito teórico básico do qual partiremos – para chegarmos àquele de território – é o
espaço geográfico. Em poucas palavras, entendemos que o território deriva do espaço; ele é uma
produção ou construção feita a partir do espaço, como será analisado com mais vagar em aula
vindoura. A segunda observação versa sobre o significado do termo conflito.
Então, fixemos que o conflito é uma noção muito cara à geografia política. Sabemos que muitos
dos conflitos que assistimos – ou deles participamos – decorrem de disputas pelo uso ou
controle do espaço geográfico. Muitos interesses, partindo de diferentes indivíduos, convergem
para a mesma parcela do espaço geográfico, deflagrando a situação conflituosa, na qual o
espaço é a fonte de divergência. Essa situação pode até evoluir para o confronto direto que tem
como desagradável resultado a perda de vidas humanas.
Vejamos, agora, como estamos preparados para ler criticamente sobre conflito, tendo em vista o
Diccionario de geografía política y geopolítica, escrito pelo geógrafo espanhol López Trigal:
Choque aberto ou disputa entre duas forças, devido a diferenças ideológicas ou políticas
e oposição, rivalidade ou enfrentamento entre dois ou mais Estados ou grupos políticos
(nacionalistas, grupos indígenas, minorias étnicas e seitas militantes, movimentos
sociais), que exige a presença de um antagonismo e incompatibilidade das diferentes
partes, uma representatividade imperativa dos interesses que concorrem e um
compromisso que reconheça os mesmos interesses em jogo. Desse modo, o primeiro
tipo de conflito é o que tem origem no conflito territorial a partir de territórios
contestados e zonas de enfrentamento para a demarcação fronteiriça de Estados em
situação de tensão. (LÓPEZ TRIGAL, 2013:70-71).
Pois bem, vamos retornar àquela primeira observação sobre o conceito de espaço e a noção de
produção do espaço, para aprofundarmos melhor essa ideia. Sabemos que os geógrafos se
encantaram com a expressão produção do espaço depois que o filósofo social francês Henri
Lefebvre a empregou para dar título a seu livro homônimo, em 1974. Assim, quando Lefebvre
publica o livro A produção do espaço, ele abre um caminho bastante fértil para os geógrafos
refletirem sobre o conceito chave de sua disciplina. De início, prestemos atenção à passagem de
Martínez Lorea sobre o que disse Lefebvre nesse livro.
Segundo o próprio Lefebvre, “o espaço (social) não é uma coisa dentre as coisas, um produto
qualquer dentre os produtos; ele engloba as coisas produzidas, ele compreende suas relações na
sua coexistência e simultaneidade (...). Ele resulta de um conjunto de operações e não pode ser
reduzido a um simples objeto”. Pois é exatamente nesta direção de pensamento que o geógrafo
Milton Santos nos apresentará uma definição de espaço. Para Santos (1996:51), “o espaço é
formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de
objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a
história se dá”. Então, a partir dessas colaborações teóricas de Henri Lefebvre e Milton Santos,
podemos avançar na ideia de produção do espaço, para entendermos, afinal, como se dá a
relação entre a política e o espaço. Para tanto, a sistematização realizada pela geógrafa
venezuelana Sonia Barrios nos parece bem didática.
Para Sonia Barrios, o valor, o poder e o significado constituem, respectivamente, os produtos
específicos das práticas sociais econômicas, políticas e culturais. Esses produtos específicos ou
(particulares) criam inter-relações entre si gerando produtos globais. Assim, o espaço
geográfico seria um produto global porque resultaria da inter-relação dos resultados específicos
das práticas econômicas, políticas e culturais. A esse conjunto de inter-relações entre produtos
corresponderia a produção do espaço. A produção do espaço é um processo global bastante
complexo porque as práticas sociais econômicas, políticas e culturais são, de fato, o que
poderíamos chamar de usos sociais. Assim, teríamos: a) o uso econômico do espaço, atribuindo
valor ao espaço, ao ponto deste poder ser vendido e comprado em parcelas; b) o uso político do
espaço, inserindo no espaço as relações de poder, ao ponto de serem provocadas disputas pelo
controle deste ou daquela parcela do espaço; e, por fim, c) o uso cultural-ideológico do espaço,
conferindo significados a distintos aspectos, pontos ou parcelas do espaço, ao ponto de alguns
desses pontos ou parcelas serem considerados sagrados, míticos, artísticos etc. O que sabemos é
que o espaço dificilmente apresentará apenas uma dessas dimensões (econômica, política ou
cultural), mas, ao contrário, a tendência da produção do espaço é inter-relacionar essas três
dimensões das práticas sociais ou, como dissemos, esses três tipos de uso social.
Esclarecidos esses apontamentos sobre o campo da geografia política, a saber: o uso político do
espaço, resta-nos deixar bem claro que a relação básica dos estudos de geografia política e da
própria geopolítica é aquela formada entre espaço e poder. Uma vez que já abordamos a
produção – social – do espaço e a natureza – social – do espaço , avancemos alguns comentários
sobre a geografia política e a geopolítica para, em seguida, tratarmos do conceito de poder.
Entendemos que o objeto de reflexão da geografia política é a relação formada entre espaço e
poder. Portanto, o ponto de partida do raciocínio político-geográfico reside no entendimento
claro dos conceitos teóricos de espaço e de poder. Tratar apenas do espaço, em todos os seus
desdobramentos teóricos e empíricos, ou tratar apenas do poder, em toda a sua potencialidade
teórica e prática, consiste em algo extremamente rico, mas não garante que uma abordagem
político-geográfica seja empreendida, pois se a relação entre os dois termos não for tecida,
esclarecida e analisada ainda não se terá adentrado no campo da geografia política. Como já
foram apresentados fundamentos sobre o conceito de espaço geográfico, é chegada a vez de
falarmos sobre o conceito de poder.
No livro clássico Poder e sociedade, escrito em 1950 por A. Kaplan e H. Lasswell, encontram-
se as seguintes definições:
O poder é um valor de deferência que interessa particularmente à ciência política; ele pode
ser descrito em termos de seu domínio, alcance, peso e coercitividade.
O poder é a participação no processo decisório: G tem poder sobre H, com relação aos
valores K, se G participa da tomada de decisões que afetam as políticas de H em relação a
K.
Tawney afirma que “o poder pode ser definido como a capacidade de um indivíduo, ou
grupo de indivíduos, modificar a conduta de outros indivíduos ou grupos da forma que
quiser”.
Para refletirmos...
O poder é conceito escorregadio. Para o geógrafo francês Claude Raffestin (1993:51), “se há
uma palavra rebelde a qualquer definição, essa palavra é poder”. Segundo este autor, o termo
poder também carrega uma ambiguidade, se for escrito com letra maiúscula ou minúscula. O
Poder com letra maiúscula postula a soberania do Estado, ou seja, evoca o poder oficial,
instituído, exercido pelo Estado, na forma da lei. Já “o poder, com minúscula, nome comum, se
esconde atrás do Poder, nome próprio”. Seria oportuno que o poder fosse entendido como um
fenômeo social inerente, portanto, às relações sociais, em vez de ser restrito, como um
monopólio, à esfera do Estado. É disso que trataremos: o poder como um fenômeno social
difuso, manifestado por ocasião de uma relação social. Assim, poder ser o poder estatal como
poderá ser o poder dos movimentos sociais e até mesmo de um só indivíduo em relação a outro.
Segundo Raffestin (1993:52), “presente em cada relação, na curva de cada ação: insidioso, ele
[o poder] se aproveita de todas as fissuras sociais para infiltrar-se até o coração do homem”. O
que se pretende com esses apontamentos é ampliar a noção de poder para além do poder
oficializado na figura do Estado. O poder é, numa perspectiva ampliada muito mais do que a
ação do Estado, é algo consubstancial às relações sociais, ou seja, é parte intrínseca das relações
sociais. Assim, já partimos de um ponto de vista: o poder tem uma natureza relacional, pois é
intrínseco às relações sociais. Na prática, isso quer dizer que algumas relações sociais se
transformam em relações de poder. Quando e por que isso ocorre? É simples, quando numa
dada relação social um manda e outro obedece, isto é, quando existe uma assimetria que faz
com que um indivíduo ou grupo se comporte do modo que o outro indivíduo ou grupo assim
deseja. Logo, conclui-se, parcialmente, que o poder é um tipo de relação social e assimétrica.
Por isso, o filósofo francês Michel Foucault (1999:89-91) fez uma série de proposições sobre o
poder. Vejamo-las:
1. O poder não é algo que se adquire, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou se
deixa escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações
desiguais e móveis;
2. As relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com respeito a
outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimentos, relações
sexuais), mas lhes são imanentes;
3. O poder vem d baixo; isto é, não há no princípio das relações de poder, e como matriz
geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados;
4. As relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas. Não há poder
que se exerça sem uma série de miras e objetivos;
5. Lá onde há poder há resistência e, no entanto, ou melhor, por isso mesmo, esta nunca se
encontra em posição de exterioridade em relação ao poder.
Essas proposições são bastante oportunas para se pensar o poder, sobretudo porque reforçam a
ideia de que o poder é exercido e tem uma natureza relacional, que essa relação é assimétrica e
que a resistência é inerente à relação de poder. Este último ponto nos interessa muito, pois a
noção de resistência é cada vez mais valorizada na geografia política contemporânea, como
veremos na aula sobre as geopolíticas críticas. A 5ª proposição nos permite considerar que a
resistência, forte ou débil, faz parte da relação de poder porque é preciso algum grau de
consentimento para que a relação de poder ocorra. Vejamos um exemplo clássico: a opção
trágica. Numa relação de poder violenta em que o violentador aponta uma arma para a vítima a
fim de força-la a manter relações sexuais com ele, pode-se supor que a vítima se mate com uma
faca antes de o ato sexual se iniciar. A opção pela morte é designada, neste caso, opção trágica.
O fim do “outro” acaba com a possibilidade da relação e, sem relação, não há exercício do
poder. Isso nos informa, pelo menos, duas coisas: a) o poder tem limite e esse limite é dado pela
natureza da relação que ocasiona o poder; e b) a resistência é um comportamento que calibra a
relação de poder, ou seja, que dá a medida de seu alcance.
Então, podemos voltar à reflexão: o poder se define apenas como uma capacidade? A resposta
só pode ser negativa. O poder é uma capacidade, mas vai além dela. No dicionário da língua
portuguesa, de Antenor Nascentes, encontra-se a seguinte definição para a palavra poder:
“capacidade de agir, de fazer uma coisa, de produzir um efeito”. Isso, evidentemente, está
correto, mas exige complemento. Na geografia política, uma definição mais adequada nos
informa que poder é a capacidade e o consentimento de tomar decisões e de mantê-las na área
de interesse de outrem. Trata-se de uma definição clara e operacional. Clara porque a
capacidade deve vir sempre acompanhada do direito ou do consentimento para que uma relação
se concretize (como visto no exemplo da opção trágica) e operacional porque pode ser aplicada
facilmente à geografia política uma vez que a área de interesse pode ser uma parcela do espaço
geográfico. Mas devemos avançar nessa reflexão.
O poder, muitas vezes é confundido com a figura do Estado e suas ações, como já alertado, mas
também é confundido com a política. Assim, o jurista italiano Norberto Bobbio (1987:77) nos
faz um alerta: “se a teoria do Estado pode ser considerada como uma parte da teoria política, a
teoria política pode ser considerada como uma parte da teoria do poder”. Desta formulação,
deduzimos rapidamente que o termo Estado é menos abrangente, em seu significado, do que o
termo política, que por sua vez, é menos abrangente do que o termo poder. Talvez, esteja aí a
provocação de Claude Raffestin, ao intitular o seu famoso livro Por uma geografia do poder,
em vez de empregar a expressão geografia política...
Para o cientista I. Molina (2007), o poder é um conceito que expressa a energia capaz de fazer
com que a conduta dos demais se adapte à própria vontade. É uma influência sobre outros
sujeitos ou grupos que obedecem por haverem sido manipulados ou atemorizados com uma
ameaça de emprego da força. Embora às vezes não seja necessário exercer o poder, pois quem o
detém consegue seus fins apelando à sua autoridade ou à capacidade de persuasão, outras vezes,
é necessário recorrer à violência para consumar a imposição. Nesse caso está claro que a relação
de poder recorre com frequência ao uso da força, da coerção para lograr os resultados desejados.
Também está claro que a persuasão é conduta oposta à coerção, pois se vincula mais à
influência do que ao poder. Parece necessário, também, que, do mesmo modo que esclarecemos
as abrangências dos termos Estado, política e poder, agora, acrescentaremos a noção de
influência como aquela mais abrangente que as três mencionadas. C. Raffestin (1993:54),
citando H. Lasswell, dá a entender que “é a ameaça das sanções o que diferencia o poder da
influência em geral. A influência recoore mais à persuasão e o poder recorre à coerção”.
1. O sistema das diferenciações que permite agir sobre a ação dos outros, e que é, ao
mesmo tempo, a condição de emergência e efeito de relações de poder (diferença jurídica de
estatuto e de privilégios, diferença econômica na apropriação da riqueza, diferença de lugar
no processo produtivo, diferença linguística ou cultural, diferença de saber-fazer ou
competência...); logo, a diferenciação pode criar e até mesmo justificar a assimetria na
relação de poder.
2. O objetivo dessa ação sobre a ação dos outros (manutenção de privilégios, acumulação
de proveitos, exercício de uma função...); logo, toda relação de poder é guiada por uma
intencionalidade.
Para finalizarmos essas considerações sobre o poder como relação, analisemos esse trecho
extraído de VERCAUTEREN, D.; CRABBÉ, O.; MÜLLER (2010: 147-149):
O PODER COMO...
Consideremos o poder como um conjunto de relações o qual implica que seja exercido sobre
qualquer coisa ou qualquer pessoa. Ao mesmo tempo, nem “um” ator nem o “outro” da relação
que se constrói tem uma posição fixa dentro de um papel: por turnos ou simultaneamente, cada
um dos polos da relação atua, se move, faz evoluir a relação, o jogo de poderes, quer dizer de
influências, tanto sobre a situação mesma como sobre a relação que se está tecendo.
Ampliemos esta primeira definição em torno ao que Michel Foucault chama de física (ou
microfísica) do poder: toda força, no momento em que se vê afetada por outra força, gera uma
resistência que, se não for detida, contrarresta a ação da primeira. As forças entram
necessariamente em uma relação, mas não de oposição ou de contradição, mas de contrariedade
dissimétrica.
M. Foucault diz que “o poder é o nome que damos a uma situação estratégica complexa dentro
de uma sociedade dada”. Ou melhor, com a ajuda de Gilles Deleuze: “O poder é uma relação de
forças ou, mais provavelmente, toda relação de forças é uma relação de poder. Entendamos em
primeiro lugar que o poder não é uma forma, por exemplo, a forma ‘Estado’ [...] Em segundo
lugar, a força não se encontra nunca no singular, é parte de uma essência estar em relação com
outras forças, se bem que toda força já é uma relação, quer dizer, poder [...]. A força não tem
outro objeto nem outro sujeito que outras forças em si, não tem outro ser que não seja a própria
relação: é uma ação sobre outras ações, sobre ações possíveis, sobre ações futuras ou presentes.
[A partir deste axioma, podemos] conceber uma lista de variáveis abertas, que expressam a
relação de força ou de poder que constitui ações: incitar, induzir, desviar, facilitar ou dificultar,
ampliar ou limitar, tornar menos ou mais provável...Estas são as categorias do poder”.
...RELAÇÃO
Esta ótica diferente sobre o que designa a palavra poder faz com que aflore imediatamente o
fato de que, no modo de ver as práticas coletivas, com frequência tendemos a substituir “a
relação” (o poder como relação entre pessoas, quer dizer, entre duas forças) pela “identidade” (o
poder como atributo encarnado, como se ele constituísse de fato uma pessoa). Diremos que tal
pessoa tem o poder e, segundo a relação que tenhamos com ela, o julgaremos de maneira
positiva (“por sorte esta pessoa está entre nós”) ou negativa (“é um canalha, um déspota, um
manipulador”) e a pessoa que se encontra no ponto de mira replicará, situando-se no mesmo
plano de linguagem e de análise: “Esta pessoa que está me atacando está tomando isso como
uma questão pessoal, se trata de um caso claro de paranoia e de conflito interindividual, uma
história de ciúmes ou de frustração...”.
Esta maneira de proceder tem a magia de inverter a ordem das coisas: nos leva a nos centrarmos
nas consequências de uma situação, a conhecer os atributos e as posições que têm uns e outros e
a ignorar as causas, os mecanismos e os diferentes fatores, principalmente históricos, que
produzem em um momento dado as atuais relações de poder em vigor. Desta maneira,
ocultamos uma questão importante: como se criam e se produzem as relações de poder e como
se distribuem os atributos que derivam delas, que contribuem para fazê-las evoluir ou fixá-las?
Em outras palavras, como funcionam?
Posto que, se seguirmos Michel Foucault, o poder se exerce (relação) mais que se possui
(atributo) e passa pelos dominados menos que pelos dominantes. Essas duas teses deveriam
orientar nossa reflexão e nos conduzir a esta primeira questão: Como chegaram ali? E, na
sequência, em que medida a situação que vivem e os aspectos nos quais se fixam são o resultado
de uma produção coletiva, na qual todos os atores intervieram em maior ou menos grau? Em
que aspectos esta relação tem pinta de ser um problema de grupo?
Com frequência, nos momentos de tensão, de conflito, quando nos colocamos esta questão, nos
encontramos no desenlace (sempre provisório, sempre móvel) de um sistema de relações que
funciona há vários anos. Um sistema e uma dinâmica que, com o tempo, viram como uma ou
mais forças impuseram ritmos ou lógicas às demais forças presentes “conduzindo condutas”,
“dispondo das probabilidades”. Estas outras forças não permaneceram puramente passivas, ou
bem aceitaram, fomentaram ou tiraram proveito, ou bem resistiram, golpearam ou fugiram das
modalidades de relação de poder que, pouco a pouco, foram se instalando.
A partir da leitura atenta do texto acima, seguem nossas sugestões para uma reflexão crítica:
1. RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. Especialmente o
capítulo III “O Poder”.
2. SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. Especialmente o
capítulo 2 “Espaço: sistemas de objetos, sistemas de ação”.
Referências bibliográficas
BARRIOS, S. A produção do espaço. In: Souza, M.; Santos, M. (Org.). A construção do espaço.
São Paulo: Nobel, 1986
BOBBIO, N. Estado Governo Sociedade. Por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987
FOUCAULT, M. História da sexualidade. (I) A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999
MARTÍNEZ LOREA, I. Prólogo: Henri Lefebvre y los espacios de lo posible. In: Lefebvre, H.
La producción del espacio. Madri: Capitán Swing, 2013
VERCAUTEREN, D.; CRABBÉ, O.; MÜLLER, T. Micropolíticas de los grupos. Para una
ecología de las prácticas colectivas. Madri: Traficantes de Sueños, 2010