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ISSN 1980-5772

eISSN 2177-4307
ACTA Geográfica, Boa Vista, v.13, n.33, set./dez. de 2019. Pp. 135-156

DEBATES E ABORDAGENS SOBRE A CONSTRUÇÃO EPISTEMOLÓGICA DA


GEOGRAFIA: DESDOBRAMENTOS CONTEMPORÂNEOS E PERSPECTIVAS

Debates and approaches on the epistemological construction of geography: contemporary


developments and perspectives
Debates y enfoques sobre la construcción epistemológica de geografía: desarrollos
contemporáneos y perspectivas

Airton Sieben
Universidade Federal do Tocantins
asieben@uft.edu.br

Resumo
Este artigo trata de abordagem da epistemologia, retomando as origens da Geografia,
perpassando pelas escolas geográficas até chegar ao momento presente. O momento atual
requer os desafios de uma Geografia revigorada em seus métodos, conceitos e categorias.
Estes são mais que necessários para explicar a complexidade da produção do espaço
geográfico da atualidade e compreender ações futuras.
Palavras chaves: Geografia, sociedade-natureza, espaço, dilemas, propostas.

Abstract
This article deals with the approach of geographic epistemology, returning to the origins
of Geography, passing through geographic schools until arriving at the present moment.
The present moment requires the challenges of a reinvigorated Geography in its methods,
concepts and categories. These are more than necessary to explain the complexity of
today's geographic space production and much more.
Keywords: Geography, society-nature, space, dilemmas, proposals

Resumen
Este artículo trata de abordaje de la epistemología geográfica, retomando los orígenes de
la Geografía, pasando por las escuelas geográficas hasta llegar al momento presente. El
momento actual requiere los desafíos de una Geografía revigorizada en sus métodos,
conceptos y categorías. Estos son más que necesarios para explicar la complejidad de la
producción del espacio geográfico de la actualidad y mucho más.
Palabras claves: Geografía, sociedad-naturaleza, espacio, dilemas, propuestas.

Introdução
Este texto consiste na reflexão geral acerca do conhecimento sobre os postulados,
métodos, paradigmas, na trajetória evolutiva, prática da relação entre sociedade e natureza
da Geografia. O trabalho pauta-se no estudo reflexivo, crítico dos princípios, hipóteses e
resultados com finalidade de determinar os fundamentos lógicos, valor e importância da
Geografia, enquanto ciência.
A pesquisa se desdobra no sentido de apresentar a teoria do conhecimento,
estudando a origem, estrutura, métodos e validade do pensamento geográfico,
relacionando-se com a metafísica, lógica e filosofia da ciência. Nesta pesquisa há a
tentativa de provocar o sentido de razão, empiria, instrumento ou método utilizados pela
Geografia. Empiria e posição racional, experiência e não experiência são abordagens
conflitantes que fazem parte da constituição do pensamento epistemológico do
conhecimento geográfico.
O tema em questão sugere três momentos que além de instigantes são ao mesmo
tempo provocadores. Este tema instigou e proporcionou releitura de obras que tratam da
epistemologia e da historiografia geográfica. Ao mesmo tempo novas dúvidas e incertezas
foram delineadas no processo. Ao final, uma observação de que se aprofundou um pouco
mais sobre a Geografia e seus dilemas passados, atuais e futuros.
O objetivo da pesquisa consiste em compreender a epistemologia da Geografia
humana, a situação contemporânea e perspectiva futuras. Para tanto, foi necessário realizar
levantamento bibliográfico de autores e obras que trabalham as questões da historiografia
da Geografia, da epistemologia, dos dilemas, das teorias, das análises, dos conceitos, das
categorias, dos métodos, das técnicas e dos instrumentos que acompanham a Geografia na
sua trajetória evolutiva, na sua sistematização e pós-organização, enquanto ciência.

A Geografia do passado pautada no positivismo e no empirismo


A geografia tem uma base de formação sólida bastante antiga e pode se dizer que
a sua origem vem ou acompanha desde o aparecimento do homem na Terra, sem
desconsiderar a história geológica, vista numa perspectiva física. Os dados, as

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informações, os artefatos e os instrumentos da Geografia são antigos, tão antigos quanto a
história da humanidade no planeta. Por exemplo, têm se registros de mapas que feitos a
milhares de anos representam as observações do ambiente, do espaço e de como os
homens primitivos lidavam, utilizavam e compreendiam a natureza (ANDRADE, 2008).
Lacoste (2008) também apresenta a importância dos mapas em seus trabalhos,
mas para este autor a Geografia perdura, sobretudo pelos contornos políticos e militares
desde Heródoto, na Grécia, no ano de 446 antes de Cristo. “A geografia existe desde que
existem os aparelhos de Estado, [...] em função das finalidades do ‘imperialismo’
ateniense” (LACOSTE, 2008, p. 25).
Ao longo da história da humanidade vários itens foram adicionados ao saber
geográfico, por inúmeros povos e civilizações. Com o passar do tempo foi evoluindo e
com isso as informações e dados geográficos foram sendo multiplicados, complexificados
e consolidados. Deve se ao filósofo Kant no século XVIII a fundação da Geografia
Moderna. Nos séculos XXIII e XIX o legado de informações começou a tomar corpo,
sistematizado e organizado por pesquisadores como Humboldt e Ritter na Alemanha.
Estes são reconhecidos na tradição e sistematização como pais desta ciência, portanto, o
legado de suas contribuições principiou o surgimento da ciência conhecida como
Geografia (ANDRADE, 2008).
“Essa evolução de concepções de ontologias que vai de Kant a Marx coincide
justamente com o período de formação da geografia moderna, determinando a forma e o
conteúdo da geografia dos fundadores. E dando-lhe o seu caráter holista” (MOREIRA,
2009, p. 158). A Geografia, bem como outras ciências surgiu num momento de
efervescência intelectual, mudanças sociais, econômicas, politicas, culturais, ambientais,
artes, religiosa e filosofia da Europa dos séculos XVIII e XIX.
Segundo Moraes (1991), na institucionalização da ciência geográfica é possível
identificar seis afirmações quanto ao objeto desta ciência: 1 - a de estudo da superfície da
Terra, numa proposição exageradamente genérica; 2 - a de ciência que cuidaria da
paisagem, o que reduziria de certa forma enorme sua abordagem; 3 - a de ciência da
produção dos lugares, no viés dos estudos regionais; 4 – a de estudo da diferenciação das
áreas, com uma perspectiva mais generalizadora e explicativa; 5 - a de ciência do estudo
do espaço, o que sugere uma vaguidade de seu campo de estudo, pela própria noção do
termo espaço; e finalmente, 6 - a ciência que cuidaria das relações homem x meio,
elencando suas várias subdivisões em relação a este agente no curso de suas influências

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quanto aos impactos na interação com o ambiente. Tais definições estão, sobretudo
vinculadas às duas principais escolas geográficas: a alemã e a francesa.
Na história geográfica, enquanto ciência inclui-se as contribuições da escola
alemã e de Ratzel com estudos voltados pela unificação do Estado pelas preocupações
com o território, a paisagem, o povo e entre outros conceitos que se tornariam as
categorias de análise geográfica. Assim, sua proposta que foi baseada no tripé: povo,
território e Estado, responde até o momento pelo revigoramento da questão do território
como tema estimulante da própria perspectiva de renovação da Geografia.
De longe entrar na discussão dualística entre escola alemã de Ratzel e Francesa
de La Blache, até mesmo porque se entende que se encontrem paralelas, concordantes e
complementam-se, em questões imprescindíveis à Geografia por várias medidas. Ao
contrário de serem conflitantes como divulgam ou divulgaram muitos seguidores e
defensores do dualismo determinismo contra possibilismo. O primeiro ponto em comum é
sua matriz positivista e os interesses de Ratzel e La Blache em atender e fortificar seus
respectivos, Estado e cultura na Alemanha e na França, ou seja, numa perspectiva
europeia.
Ratzel, na Alemanha, preocupou-se com o espaço vital na perspectiva do solo e
formação de um Estado forte, a fim de unificar uma Alemanha fragmentada. Na França,
destaca-se La Blache e sua Geografia regional. Os seguidores de La Blache, sobretudo
Febvre criaram ou incentivaram uma rivalidade entre Ratzel e La Blache e entre
determinismo e possibilismo, respectivamente.
Moreira (2010a) caracterizou como confusão de conceitos o que ocorreu com o
possibilismo e o determinismo, que na verdade eram possibilidade e determinidade,
respectivamente. Febvre estaria influenciado pelo ideologismo diante da derrota da França
com a Alemanha no ano de 1870 pela disputa dos territórios de Lorena e Alsácia, ricas
áreas em carvão e importante fonte energética no século XIX, necessária para as indústrias
da época.

Nem Vidal de La Blache é possibilista e nem Ratzel é


determinista, e tanto em um quanto em outro a história aparece
como possibilidade (não como possibilismo), em ambos a
possibilidade histórica aparece no âmbito das relações com o meio,
mas não para se expressar em um como isto e em outro como
aquilo. (MOREIRA, 2010, p. 42).

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Corroborando com Moreira (2010a) se apresenta a versão de Vesentini (2008),
apresentando a querela entre determinismo e possibilismo como controversa, de maior
divulgação, prevalecendo a versão de um dos lados, sendo as grandes questões
epistemológicas e políticas na Geografia. Para Vesentini (2008), o sociólogo Durkheim, o
historiador-geógrafo La Blache e, sobretudo o historiador Febre geraram um falso debate,
uma pseudo versão sobre o determinismo, prevalecendo a versão francesa da discussão, o
possibilismo.
Apesar de aparentemente rivais, ambas as escolas francesa e alemã foram criadas
numa perspectiva positivista na escola da Geografia Clássica, onde o empirismo, a
descrição da paisagem, os estudos idiográficos, nomotéticos, monográficos, dedutivos e
indutivos foram utilizados como métodos e técnicas. A Geografia Clássica teve como
principais pensadores Humboldt, Ritter, Ratzel, La Blache, Reclus, Brunhes, Sorre,
George, Tricart e Hartshorne. Estes pensadores compõem o momento inicial de formação
do pensamento da recém Geografia sistematizada pelos dois primeiros.
Nesta escola as categorias geográficas mais importantes foram o espaço, a região,
o território e a paisagem, surgindo as primeiras desavenças daquilo que posteriormente
seriam os estudos da Geografia física e humana. Este foi um divisor que pode servir no
sentido explicativo em apresentar as dificuldades da Geografia em estabelecer o seu objeto
de estudo, enfrentado dilemas nos seus métodos, conceitos, técnicas, instrumentos e
categorias.
Após a primeira fase da Geografia, conhecida como escola Clássica, surgiu a
Geografia da escola Teórica, Quantitativa, Pragmática e aplicada. Os expoentes desta
escola foram os Estados Unidos e a Inglaterra se destacando com Garrison, Bunge,
Harvey, Chorley e Hagget. Nesta escola os modelos matemáticos e estatísticos foram
utilizados como métodos e procedimentos nos estudos dos padrões espaciais e as hipóteses
eram lançadas, sendo que estas precisavam ser aceitas ou refutadas pelos modelos
matemáticos.
Com as mudanças ocorridas no mundo após a Segunda Grande Guerra Mundial
(S.G.G.M.) a sociedade se dinamizou, complexificou e em certos locais do mundo, a
exemplo da Europa ela precisou ser reconstruída. Passou-se por um breve momento da
escola Quantitativa e tecnicista, necessária para fornecer respostas ao momento de
reconstrução e novas tecnologias que atingiram várias locais do planeta, mas ainda num
cenário positivista, neo-positivista.

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A escola Teorética, Quantitativa, Pragmática e aplicada compreende o período
entre os anos de 1950/60/70. Contudo os modelos matemáticos logo se tornaram
insipientes e não respondiam aos agravamentos das diferenças sociais e econômicos
percebidos pelos geógrafos da Geografia Ativa, influenciados pelo marxismo, a exemplo
de George. Num segundo momentos do século XX ficou evidente a discrepância social e
dos problemas econômicos.
Em meados dos anos de 1960/70 a influência positivista nas ciências e na
Geografia perde valor ou importância e há necessidade de nova corrente filosófica capaz
de explicar e atender os novos problemas. Spósito (2004) expõem que a região, presente
em inúmeros trabalhos de Geografia regional perde importância com a influência
marxista. O marxismo e seus seguidores dão respostas a muitos dilemas enfrentados pelas
mudanças sociais e econômicas. Ocorreu uma ruptura radical com o positivismo, a
abordagem marxista e dialética ganhou vigor nas ciências humanas e dentre estas a,
Geografia.
Pensadores como Harvey, Smith, Quaini, Tricart, Santos, Tuan, e Lacoste
utilizaram a abordagem ou foram influenciados pelo marxismo ou pela dialética. O espaço
como categoria se destacou, pois é nele que se manifestaram as mudanças ou a produção
do espaço geográfico.

Uma diferença basicamente distingue os clássicos dos novos: a


categoria do enfoque. Os clássicos referenciam a paisagem; os
novos referenciam o espaço. E sem o perceberem, essa diferença
de enfoque orienta seus olhares para dois distintos referentes: a
coesão das relações por trás da relação da paisagem e a reprodução
das relações por trás da relação espaço. (MOREIRA, 2009, p. 125)

Santos (2008a) observa que o objeto de uma ciência é o primeiro problema a ser
definido. Desta forma, pode se pensar que a diferenciação entre as ciências não se dá pelo
método e sim pelo seu objeto de estudo. A Geografia, segundo Santos (2008a) elencou o
espaço como categoria principal. A análise espacial foi foco de pesquisa para outros
intelectuais como Harvey (influenciados neste segundo momento pelo marxismo) e Smith.

Todo problema da Geografia, sua dificuldade de conseguir ver-se


no sistema das ciências, de lidar com as interações e relações de
fronteira, de visualizar o fenômeno sob uma forma própria, e,
então de dizer o que é, vem da indefinição presente do seu objeto,

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isto é, o conteúdo do real com que vai se ocupar. (MOREIRA,
2009, p. 81).

“Negar, mas validando o que é válido e reformulando o que deixou de ser”


(MOREIRA, 2009, p. 128). A afirmação de Moreira (2009) faz crítica a Geografia
Clássica, mas sem demolir, mantendo a essência da identidade, teorizando o que ficou
inacabado. Contudo, se observou que muitos geógrafos de influência marxista, na sua
maioria, fizeram mudança extremada, diminuindo a contribuição clássica da Geografia.
Até hoje, há resquícios de estudiosos na geografia que se mantêm fixos na
ortodoxia, dificultando a análise, a discussão, a teorização e até o revigoramento na
compreensão e abordagem dos problemas que se manifestam no espaço. No entanto, os
estudos devem ser considerados pela importância de explicar o contexto social,
econômico, político e fundamental para compreender as discrepâncias econômicas, sociais
e culturais, inclusive no momento atual.

A Geografia ou as geografias brasileiras


A Geografia brasileira tem sua história anterior a vinda dos franceses, ou a pré-
história, considerada anteriormente à institucionalização no Brasil, sobretudo se considerar
os povos indígenas que já existiam no país e algumas contribuições dos portugueses,
Delgado de Carvalho, escritores e outros brasileiros da época. Contudo é com os mestres
europeus que ocorreu a coleta de dados e informações sob diversos temas no Brasil,
sobretudo na Geografia humana, sistematizando e organizando esta ciência no Brasil. Este
contato, embora tivesse diminuído ao longo do tempo continua forte, com inúmeros
brasileiros que foram e ainda vão completar seus estudos na França em nível de doutorado
e pós-doutorado como destaca Silva (2012).
A Geografia brasileira apresenta duas épocas diferentes: a informal e a formal. A
época informal do período do “descobrimento” até os anos de 1930/40 com o pensamento
voltado para a descrição da paisagem e populações humanas pelos viajantes, cronistas e
naturalistas que percorriam o Brasil. A época formal, a partir dos anos de 30/40 do século
passado se presencia os geógrafos europeus, sobretudo franceses para criar a Geografia
universitária (São Paulo e Rio de Janeiro) e institutos de pesquisa. Destacam-se
Deffontaines, Mombeig, Waibel, e Rueffan que sistematizaram e organizaram a Geografia

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brasileira com seus estudos voltados para a Geografia física e humana, possuindo visão
integrada, mesmo com origens matriciais diferentes (MOREIRA, 2010b).
“Mas pode-se dizer que, expressões de uma Geografia a esta altura mundial,
seguem em seus passos teóricos e metodológicos um formato-padrão que tem no centro a
manipulação das relações de um conjunto de categorias espaciais com o propósito da
explicação da paisagem” (MOREIRA, 2010b, p. 46). O Brasil foi e é um laboratório
aberto nos estudos geográficos, mesmo com intensos trabalhos realizados na época
informal e ao longo da formal, ainda há muitos estudos para compreender a rica,
diversificada e complexa Geografia no e do Brasil.
O pensamento geográfico brasileiro é dominado por três perspectivas: a francesa
de La Blache, a franco-germânica de Brunhes e a germânica de Hettner. Pode-se ainda
destacar a estadunidense de Sauer e Hartshorne. Ratzel e La Blache apareceram
constantemente no estudo geográfico brasileiro no final do século XIX e início do XX. O
início da fase acadêmica e a sistematização da Geografia brasileira foi influenciada pelos
professores e pesquisadores franceses.
Esta fase de influência estrangeira foi positiva, mas carregou os problemas de
dilema da Geografia destas escolas. Um dos problemas e que persiste até hoje é a
Geografia fragmentadas em setores (MOREIRA, 2010b). As escolas alemã e francesa
influenciaram a escola ou geografia brasileira, sobretudo a última, onde vários
pesquisadores franceses fizeram inúmeras pesquisas no território brasileiro, nos meado do
século XX.
A primeira geração de geógrafos brasileiros conseguiu fazer estudos de Geografia
integrada a partir de um ponto setorial específico. Manuel Correia de Andrade, Lysia
Maria Cavalcante Bernardes, Aroldo de Azevedo, Pedro Pinchas Geiger, Aziz Ab’Saber,
Ary França e outros foram os primeiros geógrafos brasileiros a trabalhar o espaço
brasileiro pelo viés da paisagem (MOREIRA, 2010b).
Desde os anos de 1940 abriu-se um ciclo fragmentário no mundo, que
possibilitou uma perspectiva de renovação no mundo, abrindo espaço para uma teoria
geográfica geral. Josué de Castro, Aziz Ab’Saber, Carlos Augusto Monteiro, Berta
Becker, Milton Santos, Horieste Gomes, Armando Correa da Silva e o conjunto de suas
obras atravessaram a integração do pensamento geográfico brasileiro (MOREIRA, 2010b).
A Geografia brasileira ganha contornos próprios com a criação do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Associação dos Geógrafos Brasileiros

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(AGB) nos anos 30 do século passado. A Geografia brasileira teve influência da Geografia
clássica positivista. Para Silva (2012) a contribuição da escola francesa na formação
epistemológica e historiografia brasileira foi enorme. Embora outras escolas como a
alemã, a americana, a inglesa e a russa pudessem ter contribuído, sobretudo no sentido da
Geografia brasileira poder ter a oportunidade de ser mais diversificada em conceitos,
temas, métodos, técnicas e instrumentos.
Nos meados do século passado, com a Geografia em destaque e importância no
Brasil, pode-se destacar Lacoste (2008) que atribui o poder da Geografia dos estados-
maiores no sentido de conhecer o território nacional e prepará-lo para o grande aparelho
capitalista. Sobretudo, este momento culmina com o período ditatorial no país, onde as
grandes firmas e bancos entram na cena geopolítica e geoeconômica do país. “Mas essa
geografia dos estados-maiores é quase completamente ignorada por todos aqueles que não
a executam, pois suas informações permanecem confidenciais ou secretas” (LACOSTE,
2008, p. 26).
No IBGE, dos anos de 1950, os geógrafos foram destaque nos seus quadros
profissionais. Lamentável que hoje o quadro de profissionais no IBGE seja reduzido,
talvez pela própria inabilidade do geógrafo em determinar e conhecer as teorias, os
métodos, as técnicas e os instrumentos necessários para entender a complexidade do
espaço geográfico e propor soluções, diante dos problemas postos.
Longe de se fazer apologia à Geografia aplicada, mas a visão ampla do geógrafo
poderia contribuir de forma eficiente no planejamento estatal brasileiro, se porventura não
houvesse a influência da Geografia setorizada e o geógrafo tivesse a capacidade de
observar o objeto de estudo por uma visão holística ou totalizante, da forma como faziam
Humboldt e Ritter.
Deve-se considerar que a Geografia brasileira foi influenciada pela escola
Quantitativa, Teorética, Pragmática e aplicada dos anos 50/60 do século passado. Apesar
de muitas críticas esta escola deixou marcas de sua influência na regionalização do espaço
brasileiro, criação de boletins, escolas, revistas e institutos que existem até hoje no país. A
dificuldade de lidar com números, estatísticas e tecnologias é perceptível na formação de
novos geógrafos, pois se desconsiderou e não ocorreu o aproveitamento dos ensinamentos
e metodologias que caracterizaram esta escola.
A Geografia brasileira passou pela escola quantitativa e foi substituída pela escola
Crítica nos anos 1960/1970. Por certo período, até os anos de 1990 foi possível explicar o

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contexto social e político pelo marxismo, mesmo com a Geografia apresentando conflitos
com seus métodos, conceitos, teorias e categorias.
No Brasil e no mundo, o marxismo e seus postulados indicavam que poderia
responder os conflitos sociais, políticos, econômicos e a necessidade de parcela
significativa da sociedade se libertar das amarras de um poder econômico e opressor,
baseado na disputa bipolar entre Estados Unidos (EUA) e ex-União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS).
Santos (2008) e outros intelectuais discutiram as transformações impostas pela
globalização e sua tentativa de homogeneizar os espaços econômicos mundiais. Contudo,
nos espaços, nos lugares há rugosidades e estas precisam ser delineadas ou extirpadas. O
espaço apareceu ou aparece como categoria chave embora se discuta o protagonismo
deste.
O Brasil enfrentou mudanças nas décadas de 1970/80, onde a economia se
dinamizou, lembrando que resultou numa grande e profunda desigualdade social, cujos
reflexos são sentidos até hoje. Foi o momento de integrar o território (OLIVEIRA, 1988).
Os grandes projetos políticos e econômicos sob o regime ditatorial mudaram espaços até
então desconhecidos pela maioria dos brasileiros e ampliaram a discrepância dos
problemas sociais, econômicos, políticos e regionais.
A região ganhou destaque como categoria de análise com a subdivisão do Brasil,
bem como espaços mundializados e regionalizados. O IBGE utilizou desta categoria para
explicar e organizar o espaço brasileiro. Quanto a esta categoria, região, importante para
La Blache e outros geógrafos brasileiros, em período anterior perdeu destaque, mas não
valor, comparecendo nos nomes de disciplinas nos cursos de Geografia pelo país.
Nos anos de 1980/90, a globalização econômica parecia não ter fim, e onde houve
resistência, ocorreram as guerras, a fim de atender as necessidades econômicas
preponderantes, sobretudo pelo viés da energia com base no petróleo. No início do novo
milênio se observou que a globalização tinha seus dilemas, conflitos e que o poder não era
somente econômico. A geografia percebeu que havia mudanças, diferentes abordagens e
novas questões a serem respondidas.
A Geografia contemporânea, desde os anos 1990 tentou avançar nos seus
métodos de abordagens, teorias e categorias. O espaço, categoria central, sobretudo na
concepção de Santos (2008b) foi importante para explicar a globalização. Haesbaert
(2007) foi influenciado pelas concepções espaciais de Santos, mas desenvolveu muitos

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trabalhos, elencando a categoria território, ainda nos anos de 1990 e início do novo
milênio. Haesbaert foi entender o território e suas variantes desterritorialização e
reterritorialização em Deleuze e Guatarri (1992).

Os dilemas e dificuldades da Geografia: crise?


No virada do século XXI e atual conjuntura, percebe-se que a falta de reflexão no
contexto geral da população aumentou, onde os meios de comunicação rápida apresentam
a manchete mas não se lê e reflete sobre os temas, gerando e facilitando a propagação de
ideologias e falsas notícias.
Heidegger (2008) abordou a crise das ciências de forma geral e afirmou que o
problema está na popularização das ciências, no sentido de não conhecerem suas
essências. A pessoas se esquivam da crise interna da ciência e assim ela não é atingida,
sendo generalizada. “Em primeiro lugar, precisamos aprender a compreender o que
significam os fundamentos de uma ciência e em que medida a crise dos fundamentos
revela justamente os limites da ciência com tal” (HEIDEGGER, 2008, p. 41).

Todo mundo acredita que a geografia não passa de uma disciplina


escolar e universitária, cuja função seria a de fornecer elementos
de uma descrição do mundo, numa certa concepção
‘desinteressada’ da cultura dita geral... Pois, qual pode ser de fato a
utilidade dessas sobras heteróclitas das lições que foi necessário
aprender no colégio? (LACOSTE, 2008. p. 21).

Em Lacoste (2008) relembra-se da caracterização dos terrenos e nomes de lugares


que a Geografia escolar obrigou os alunos a memorizarem nos ensinos primários e
secundários. Este modelo tornou a Geografia cansativa e enfadonha e que a colocou em
lugar menos importante dentro do contexto das discussões sociais e humanas. Esta
situação disfarçou ou encobriu de véus o verdadeiro potencial que esta ciência realmente
tinha e continua mantendo.
A Geografia ainda não debateu sobre o seu problema e isto requer uma discussão
epistemológica e metodológica que a grande maioria dos geógrafos se nega a fazer. Para
muitos geógrafos a Geografia ainda é considerada de ciência de síntese, algo equivocado.
Ao saber um pouco de outras disciplinas ou áreas de conhecimento a Geografia faz um
estudo a jusante daquilo que deveria ser sua preocupação fundamental. Assim, a Geografia
se apresenta despreocupada ou relapsa de aspectos fundamentais quanto às teorias

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metodologias e epistemologia, faltando uma discussão mais coesa sobre os problemas na
produção do espaço.
Cabe aos próprios profissionais da Geografia renovar a teoria e a metodologia, a
fim de compreender a produção do espaço e uma vez que trabalham a relação da sociedade
com a natureza (SILVA, 2012). “Mergulhada nessa reviravolta que agita e transforma o
mundo, a geografia, essa velha senhora respeitável, centenária, nossa velha conhecida, do
alto de sua sabedoria se rejuvenesce e embrenha-se na procura da compreensão da
realidade desse tempo de mudanças rápidas, bruscas” (SILVA, 2012, p. 218).
Em Heidegger (2008) pode-se entender que a filosofia é fundamental para
qualquer ciência. A Geografia, neste contexto necessita visitar, ir e buscar na filosofia para
entender seus fundamentos, pressupostos, teorias, pois é dela que derivam as ideias
sistematizadas de forma geral, a essência ou os fundamentos das ciências. “[...] ciência é
conhecimento metódico, sistemático, exato e universalmente válido” (HEIDEGGER,
2008, p. 45).
Para Spósito (2004, p. 121), “[...] vivemos, no século XX, muito mais uma
preocupação com o fazer, com o alcançar resultados práticos, do que com o refletir.” A
partir do novo milênio os desafios mundiais se complexificaram e foram observados por
novos olhares e perspectiva. No contexto atual, os grandes problemas da humanidade, a
saber: alimentação, energia, clima, economia e política necessitam ser analisados por
novas abordagens. “[...] que a ciência, atualmente, assume um caráter prático que
transcende a reflexão epistemológica do conhecimento” (SPOSITO, 2004, p. 122).
Para Moreira (2010b) a Geografia mundial se formata em três perfis: em
camadas, em setores e sem rosto. A geografia em camadas está mais próxima da
integração num estilo holista, tendo como base a interação homem-natureza, por
sobreposição em camadas e nexo de integralidade. A Geografia em setores teve os recortes
temáticos individualizados e percebendo que falta uma totalidade em cada uma, buscadas
nas ciências vizinhas. A geografia sem rosto é marcada pela ausência da visão integrada e
sem personalidade própria.
Ao que indica a Geografia sem rosto demonstra a falta de identidade e ausência
do domínio do conhecimento geográfico quanto aos seus conceitos, categorias, métodos e
técnicas pelos pesquisadores e acadêmicos de Geografia. Isto resultou na perda de
prestígio da Geografia, enquanto ciência útil para o Estado e a sociedade, bem como o

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campo do geógrafo estar sendo ocupado por profissionais de outras áreas, inclusive com
forte perigo na educação, diante das políticas educacionais que se avizinham.
Da mesma forma os trabalhos geográficos no Brasil são pontuais e muitas vezes
não comportam os olhares em escala global, holística, total e há o empecilho de converter
o estudo de temas setorizados em estudos mais amplos, originando os bloqueios e
dificultando o avanço da Geografia enquanto ciência.
Cabe perguntar, como a Geografia se adequará ou discutirá os novos desafios? Os
métodos históricos da Geografia serão suficientes na nova conjuntura que se avizinha.
Porventura, Feyrabend (2007) tenha razão e os objetos de estudo mereçam a contemplação
e análise por mais de um método. O rigor do método elimina a criatividade na pesquisa e,
assim apenas se reproduz, seguindo-se leis e modelos
No momento atual, a Geografia encontra-se em conflito, necessitando repensar
seus métodos, técnicas instrumentos, conceitos e categorias. Repensar significa
acompanhar as mudanças que se avizinham. Repensar significa estudar, analisar e explicar
os grandes problemas da humanidade e seus efeitos no local. Repensar, significa voltar ao
passado, a fim de contemplar velhos problemas, pesquisadores para embasar as discussões
de novos e velhos problemas sob novas roupagens. Repensar pode representar o sentido de
revigorar.
Talvez, a própria Geografia tenha a resposta para seus dilemas e dualidades física
e humana. Em termos de proposta de pesquisa, o rico e amplo espaço de estudo da
Geografia encontrará respostas na interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, no diálogo
entre as categorias e na sua própria interface. O lugar, a paisagem e o território conseguem
dialogar, para explicar os fenômenos espaciais e estudos já são feitos nesta abordagem.
Há vertentes dentro da Geografia que fazem as categorias dialogarem. Vários
trabalhos trazem a discussão, contemplando o território, o lugar e a paisagem. Isto não
quer demonstrar que há uma banalização conceitual, mas um enfrentamento diante dos
novos desafios lançados para a ciência geográfica.
O território enquanto categoria de análise ganhou relevância ou toma seu antigo
posto. Pode-se dizer que o território sob nova abordagem, a política de Raffestin (1993)
embasado na concepção de poder de Foucault (2015), além de Saquet (2007) e Haesbaert,
(2007). A economia sente necessidade do poder do Estado. O Estado pelas
fundamentações do território se protagoniza, a fim de organizar o espaço para o grande
capital, infelizmente.

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O território se tornou uma categoria chave nos estudos geográficos bem como de
outras ciências. O Estado passou a incorporar o planejamento territorial na dinamização de
seus espaços. O cenário atual contempla para o protagonismo do território com conceito
chave, da mesma forma como ocorreu com a paisagem, a região e o espaço, sem
desmerecer a escala, e o lugar. Para Spósito (2004, p. 119), “O território, ausente das
preocupações geográficas até recentemente, retorna com insistência na última década do
século XX como elemento que condiciona as relações de produção.”
A dicotomia entre Geografia física e Geografia humana pode ser trabalhada pela
interface, a fim de explicar as influências físicas sobre a economia, cultura e questões
sociais sem entrar num determinismo aparentemente ratzeliano. As diferenças estão em
evidência, particularidades e minorias sociais ganham destaque em uma abordagem
fenomenológica. O lugar na percepção de Tuan (1983) se aproxima da fenomenologia de
Husserl (2008) e está fornecendo pistas dos próximos caminhos da Geografia.
É certo que questões, envolvendo migrações, conflitos, instalação de grande
capital, logística, presentes como objetos e sujeitos de estudo como é abordado em Silva e
Galeno (2004). Neste sentido um método complexo possa servir de proposta de pesquisa
futura. A perspectiva interdisciplinar está em destaque para estudar os problemas
migratórios dentro e fora do Brasil. As questões ambientais estão em foco, enfrentando
velhas e novas dificuldades. A geopolítica está mais presente nos temas e assuntos
internacionais.
No campo político, o momento é de extremismos e intolerâncias e se apresenta
com um cenário de mudanças, talvez não contemplando, como muitos imaginam, de forma
inconsciente, desavisada, manipulada, ingênua, descompromissada e até mesmo
irresponsável, riscos para a democracia.
Lacoste (2008) comenta o potencial da Geografia que é restrito a um pequeno
grupo de representantes dos Estados maiores e do capitalismo que utilizam em proveito
próprio as informações geográficas para se perpetuarem no poder e obter vantagens das
informações confidenciais que a Geografia proporciona.

As perspectivas e propostas
Definida a categoria, o desenvolvimento da pesquisa segue um caminho e
dificilmente percorre rumo indefinido, não ficando à deriva cujo horizonte é analisar e
explicar os efeitos dos fenômenos no espaço, podendo ser o espaço uma categoria de

148
análise como pode ser o lugar, a paisagem, o território, a escala ou a região. O método
pode residir em elencar a categoria, podendo ser caminho para a ciência geográfica,
possibilitando observar os efeitos dos fenômenos no espaço. Isto sem esquecer a essência
da ciência.

A originalidade da geografia reside no fato de tratar


simultaneamente a natureza e a sociedade, o que deve garantir sua
unidade e não dividi-la. Assim sendo, a geografia, diante de um
mundo integrado, conectado, de final de milênio, que por sua vez
apresenta suas contradições, deve investir o que puder para dar
continuidade ao seu projeto científico que é o de explicar a
sociedade a partir do espaço geográfico, produto das relações
estabelecidas pela sociedade. (SILVA, 2012, p. 220).

O mundo não é dual; determinismo, versus possibilismo, bibolar, Geografia física


contra geografia Humana, direita ultra conservadora contra esquerda radical. Se fosse
assim, seria relativamente fácil explicar os problemas no espaço, elencando o território, a
paisagem, a escala, a região ou o lugar. O mundo, as pessoas e os fenômenos sempre
foram complexos e tornaram-se mais intricados com os novos descobrimentos,
tecnologias, comunicações e possiblidade de busca pelo poder. A Geografia terá avanços
significativos para explicar o espaço, seu objeto de estudo, sem desmerecer as demais
categorias, quando se der conta desta complexidade.
Para Lacoste (2008) a Geografia, não serve somente para fazer a guerra, ela tem
um fundo ideológico que pode ser utilizado pelos estados maiores nas suas relações de
poder com a sociedade a fim de destruir ou modificar uma região ou até incitar um
genocídio. A Geografia tem um desafio de resolver, analisar, lançar olhares e abordagens
para os problemas e situações que se avizinham.
A interdisciplinaridade, a fenomenologia, a relação entre as categorias podem ser
propostas nas pesquisas de Geografia. Novos e velhos problemas abordados sob diferentes
olhares e abordagens, num mundo cujos fenômenos complexificam cada vez mais a
atuação humana no espaço.
Santos (2008b) trabalhou com a noção de causa e efeito a fim de observar o
invisível por detrás da aparência e do fenômeno. O autor trabalha neste contexto para
distinguir a ideologia que o sistema utiliza para sobreviver numa tentativa de separar o
joio do trigo. Santos (2008b) aborda ainda que, Geografia.

149
Uma ciência digna desse nome deve preocupar-se com o futuro.
Uma ciência do homem deve cuidar do futuro não como um mero
exercício acadêmico, mas para dominá-lo. Ela deve tentar dominar
o futuro para o homem, isto é, para todos os homens e não só para
um pequeno número deles. Se o homem não for, também, um
projeto, retorna ao homem animal que ele era quando, para
assegurar a reprodução de sua própria existência, não comandava
as forças naturais. (SANTOS, 2008b, p. 261, grifos do autor).

A Geografia está longe de seu fim como afirmou O’Brien (1990) abordado por
Sanguin (2014). Pelo contrário os estudos, os problemas locais, regionais, nacionais e
mundiais necessitam uma atuação geográfica maior. Sanguin (2014) aborda O’Brien
(1990) e para este último o fim da Geografia está focado nos efeitos da terceira
mundialização encampada pela cibernética. Contudo Sanguin (2014) destacou a vingança
da Geografia, relembrando as diferenças existentes nos contextos locais, regionais e
nacionais. “O planeta Terra é, sobretudo, o objeto de uma cartografia econômica feita de
pontas e de cavidades. Em resumo, os mais altos cumes continuam a subir enquanto os
vales permanecem estagnados” (SANGUIN, 2014, p. 13).

Em nossos dias, a abundância de discursos que se referem ao


‘aménagement’ do território em termos de harmonia, de melhores
equilíbrios a serem encontrados, serve sobretudo para mascarar as
medidas que permitem às empresas capitalistas, sobretudo às mais
poderosas, aumentar seus benefícios. É preciso perceber que o
‘aménagement’ do território não tem com único objetivo o de
maximizar o lucro, mas também o de organizar estrategicamente o
espaço econômico, social e político, de tal forma que o aparelho de
Estado possa estar em condições de abafar os movimento
populares. (LACOSTE, 2008, p. 30).

As observações de Lacoste (2008) são bem atuais e servem de análise para


observar, analisar e interpretar a real situação do mundo, da América Latina e em especial
o Brasil. Isto é pouco aparente nos países de economia rica e desenvolvida, mas nos países
pobres, emergentes e de industrialização tardia trata-se de um fato marcante, embora os
discursos mascarem esta realidade. Há muito tempo os países pobres são impactados pelo
capital nacional/internacional por meio de ações aparentemente neutras do Estado sobre o
território.

150
O que se avizinha é uma atuação que perdeu o medo da aparência e
despreocupado com o mascaramento de suas ações sobre o planejamento do território com
o único objetivo de aumentar a riqueza e a concentração do grande capital, onde deve se
considerar os efeitos das ações territoriais executadas pelo Estado sobre a natureza e as
populações locais.
Para Sanguin (2014) o mundo é todo pontiagudo. Não existindo o plano ou liso.
A distribuição populacional, a energia, as atividades e o crescimento econômico são
diferenciados, bem como a inovação em marcas e patentes que ficam concentradas em
poucos locais de área desenvolvidas e onde a pesquisa tem o apoio de Estados e de
empresas, destacando-se neste cenário Estados Unidos, Japão e Alemanha. Estas
discrepâncias mostram a vingança da Geografia e não seu fim, para poder explicar o
cenário de desigualdades em todos os segmentos.

A geografia e o lugar exercem um formidável poder sobre a


enorme maioria da população mundial. Sua mobilidade está sujeita
a restrições, sua bagagem cultural é inadaptável, seus recursos são
limitados, sua saúde é muitas vezes comprometida, suas
esperanças são fracas e vagas. É preciso destacar que mais de um
bilhão de pessoas são os mais pobres entre os mais pobres, os mais
doentes entre os mais doentes. Um outro bilhão de seres humanos
vive no limite da penúria. (SANGUIN, 2014, p. 22).

As diferenças só foram acentuadas nos últimos anos. Apesar de perceber os


possíveis contrastes em diversos segmentos e setores, deve se compreender o processo que
conduziu as estas discrepâncias. Cabe a Geografia analisar, observar, interpretar sobre as
relações na produção do espaço e como ele se apresenta nas condições atuais de presença
de fenômenos e análises.

No que diz respeito ao século XXI, a perspectiva geográfica é


aquela de um sistema fechado, de um mundo já dividido onde nós
observamos uma violência na repartição de terras e de mercados.
Cada choque, cada desastre é indiretamente sentido em pólos
opostos e pode voltar como um bumerangue desde os pólos
opostos. A gramática da geografia está enraizada na realidade.
(SANGUIN, 2014, p. 26).

A Geografia necessita da proximidade da História. Da mesma forma que a


Geografia deve trabalhar com outras ciências, as demais ciências como sociologia,

151
política, antropologia e outras áreas sentem necessidade do conhecimento geográfico.No
momento atual onde o mundo está repleto de ideologias que mascaram a realidade e onde
o discernimento é subjugado, há a necessidade de se tomar uma postura, ação ou reflexão
do pensamento crítico. É necessário ser radical, no sentido de ir na raiz da problema,
conforme Marx (2010).

Exercer o pensamento crítico é ir além do senso comum, é buscar


informações, comparar dados, contextualizar idéias, colocando
tudo o que se apresenta para se estabelecer critérios para análise,
em uma situação de tensão interna ou de crise. A tensão entre os
componentes poderá ajudar no discernimento a partir de uma
atitude crítica, porque vai além do senso comum; e é isso que
diferencia aquele que reflete, que estuda, do cidadão que não se
preocupa em exercer a epistemologia de um conhecimento
científico ou filosófico. (SPÓSITO, 2004, p. 66).

Spósito (2004) observa que o pesquisador Robinson Crusoé não pode e nem
consegue de forma isolada e no seu gabinete explicar o ser humano, por causa da
complexidade das relações sociais. O mundo atual e futuro exige e exigirá, a contemplação
das ideias, fatos, discussões e contradições por diferentes olhares. Esta tarefa não pode e
consegue ser única, para não se perder a noção de totalidade.

Considerações finais
Os dados, as informações, os artefatos e os instrumentos da Geografia são
antigos, tão antigos quanto a história da humanidade na face da Terra, sem excluir a
história de formação geológica e destacado pela Geografia física. Ao longo da história da
humanidade vários itens foram adicionados ao saber geográfico, por inúmeros povos e
civilizações. Nos séculos XVIII e XIX, com Humboldt, Ritter e Ratzel, o legado de
conhecimentos foi organizado e sistematizado, bem como o surgimento de outras ciências
nasceu, a Geografia.
Ratzel, na Alemanha, preocupou-se com o espaço vital na perspectiva do solo, na
paisagem e do território para a formação de um estado forte, a fim de unificar uma
Alemanha fragmentada. Na França, destaca-se La Blache e sua Geografia Regional. Os
seguidores de La Blache, sobretudo Febvre criaram ou incentivaram uma rivalidade entre
Ratzel e La Blache e entre determinismo e possibilismo, respectivamente.

152
Apesar de aparentemente rivais, ambas, determinismo e possibilismo foram
criadas numa perspectiva positivista. Após o término da S.G.G.M. surgiu uma Geografia
pragmática, quantitativa e teorética, com o uso da matemática, estatística, tecnologia como
sensoriamento remoto e de gabinete. Esta Geografia tornou-se menos descritiva e
empírica, e continuou a utilizar a abordagem positivista.
Em meados dos anos de 1960/70, muitos geógrafos e outras áreas do
conhecimento obervaram o aumento das discrepâncias sociais e econômicas, sobretudo
nos países de modos de produção capitalista, liderados pelos Estados Unidos e localizados
em áreas subdesenvolvidas. Vários pesquisadores influenciados pela abordagem marxista
necessitaram explicar as divisões sociais e foram influenciados por uma aparente, mais
justa e igualitária distribuição de renda dos países sob influência do modo de produção
socialista, liderados pela ex-URSS. Era o mundo bipolar dividido entre a ideologia política
econômica capitalista dos EUA e ex-URSS. Isto persistiu entre o período compreendido
após a S.G.G.M. e o ano de 1989, onde o socialismo da ex-URSS perdeu vigor.
A Geografia brasileira passou pela escola quantitativa e foi “substituída” pela
escola Crítica nos anos 1960/1970. Por certo período, até os anos de 1990 foi possível
explicar o contexto social e político pelo marxismo, mesmo com a Geografia apresentando
conflitos com seus métodos, conceitos, teorias e categorias.
O momento atual exige um revigoramento e novos olhares por parte dos
geógrafos e da Geografia. É necessário explicar as mudanças que se avizinham e
compreender a produção do espaço. A Geografia, porventura precise voltar ao passado,
retornando à sua essência, entendendo-se como uma área de conhecimento em torno da
Geografia Ativa ou aplicada e que sabe revigorada, na forma de se tornar aplicativa.
A Geografia sempre foi influenciada por outras áreas do conhecimento, a fim de
explicar os seu objeto de estudo, o espaço. Contudo, nos últimos anos, sobretudo a partir
do novo milênio, outras categorias geográficas ganharam valor e revigoradas. Além de
categorias, autores da Geografia e outras áreas subsidiaram as discussões teóricas dos
trabalhos e teses nesta ciência.
Ratzel e o território, La Blache e a região, Santos e o espaço, Tuan e o Lugar,
Lacoste e a escala e no meio destas, a paisagem, sobretudo dos geógrafos físicos, a
exemplo de Ab’ Saber foram e são categorias de análise geográfica.

153
O território embasou muitos trabalhos de pesquisadores que trabalharam com esta
categoria sob roupagem cultural, econômica, política, social e natural. O lugar na
perspectiva de estudos pela percepção ganhou destaque nos últimos anos.
A Geografia deve conhecer o passado, perceber presente e fazer análise futura,
não numa perspectiva de Nostradamus ou usando uma bola de cristal, mas sim pela
dialética dos fatos passados e presentes é possível fazer análise, avançando no tempo de
forma racional e ao mesmo tempo intuitiva.
Por certo, a Geografia não chegou ao fim, os problemas a e os fenômenos sobre o
espaço aumentam e complexificam. Todavia, a Geografia sente-se ou deveria se sentir a
vontade pra discutir novos e velhos problemas, ampliando conceitos, utilizando outras
técnicas e métodos e trabalhar novas perspectivas sem esquecer da essência.
As migrações, a geopolítica, os extremismos, o risco da democracia, os conflitos,
a cultura, as diferenças sociais, a energia, a alimentação o clima, a economia, a política, as
inovações tecnológicas, o ciberespaço, o espaço sideral e outros temas são atuais e que,
por certo, acompanharão as discussões futuras.
Para finalizar, por utilizar a empiria, a Geografia, é por vezes considerada menor
entre as outras ciências humanas. Contudo a experiência e não experiência da Geografia
exigem um desdobramento enorme dos pesquisadores, a fim de explicar as manifestações
ou fenômenos espaciais. A Geografia consegue com certa liberdade se desvencilhar das
amaras e engessamento impostos pelo método, por isto, talvez, a riqueza em trabalhar de
forma holista e ao mesmo tempo densa sobre os temas, objetos e sujeitos que se propõe a
investigar.

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