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Ficha Técnica

Título: A Desilusão de Deus


Título original: The God Delusion
Tradução: Lígia Rodrigues e Maria João CamiloAyala MoAyala Mo
Revisão: Ayala Monteiro Ayala MonteiroAyala Monteiro
Revisão científica: João Paulo Moreira
Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro, Lda.
ISBN: 9789897416347

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Richard Dawkins

A DESILUSÃO DE DEUS

Tradução
Lígia Rodrigues
Maria João Camilo
IN MEMORIAM
Douglas Adams
(1952-2001)

«Não basta ver que um jardim é belo


sem ter de acreditar que lá ao fundo
também esconde fadas?»
Prefácio

Quando a minha mulher era criança, por tanto detestar a escola que
frequentava queria deixá-la. Mais tarde, já com mais de vinte anos, revelou
aos pais este triste facto, o que deixou a mãe horrorizada: «Mas, minha
querida, porque não nos contaste?» A resposta de Lalla é o meu tema de
hoje: «Mas eu não sabia que podia contar.»
Eu não sabia que podia.
Parece-me – aliás, tenho a certeza – que há por aí muitas pessoas que
foram educadas de acordo com uma determinada religião, que são infelizes
nela, que não acreditam nela ou que se preocupam com os males cometidos
em nome dela; são pessoas que sentem uma vaga ânsia de deixar a religião
dos pais e gostariam de o fazer, mas que pura e simplesmente não
compreendem que isso é uma opção. Se o leitor é uma dessas pessoas, este
livro é-lhe dirigido. Ele tem como objectivo despertar consciências –
despertar consciências para o facto de que ser ateu é uma aspiração que,
além de realista, é corajosa e admirável. É possível ser-se ateu sem deixar
de ser uma pessoa feliz, equilibrada, com sentido moral, e intelectualmente
realizada. Esta é a primeira das mensagens com que pretendo despertar
consciências. Quero também fazê-lo de três outras formas, sobre as quais
me deterei adiante.
Em Janeiro de 2006, apresentei no Channel Four da televisão britânica
um documentário em duas partes intitulado Root of All Evil? («A Raiz de
Todos os Males?»). O título desagradou-me desde logo. A religião não é a
raiz de todos os males, uma vez que não há nada que, por si, seja a raiz de
qualquer todo. Mas deliciou-me o anúncio que o Channel Four divulgou nos
jornais nacionais. Era uma imagem do contorno do topo dos edifícios de
Manhattan, com a legenda «Imagine um mundo sem religião». Qual era a
ligação? Saltava aos olhos a presença das torres gémeas do World Trade
Center.
Imagine-se, com John Lennon, um mundo sem religião. Imagine-se que
não há bombistas suicidas, 11 de Setembro, atentados de Londres, cruzadas,
caça às bruxas, conspiração da pólvora, divisão da Índia, guerras israelo-
palestinianas, massacres de sérvios/croatas/muçulmanos, perseguição de
judeus enquanto «assassinos de Cristo», «problemas» na Irlanda do Norte,
«assassínios por motivos de honra», televangelistas de fato lustroso e cabelo
armado a tosquiar o dinheiro de rebanhos ingénuos («Deus quer que dês até
te doer»). Imagine-se que não há talibãs a fazer explodir estátuas antigas,
decapitações públicas de blasfemos, flagelação de mulheres por exibirem
um centímetro de pele. A propósito, o meu colega Desmond Morris faz-me
saber que nos Estados Unidos a magnífica canção de John Lennon é, por
vezes, entoada com expurgação da frase and no religion too. Há mesmo
uma versão que tem o descaramento de a alterar para and one religion too. 1

Talvez o leitor ache que o agnosticismo é uma posição razoável e que o


ateísmo tem tanto de dogmático como a crença religiosa. Se assim for,
espero que o capítulo segundo o faça mudar de opinião e o convença de que
a Hipótese Deus é uma hipótese científica sobre o universo que deve ser
analisada de forma tão céptica como qualquer outra. Talvez lhe tenham
ensinado que os filósofos e os teólogos apresentaram boas razões para se
acreditar em Deus. Se pensa assim, talvez aprecie o capítulo terceiro,
relativo a «Argumentos a Favor da Existência de Deus» ? – argumentos que
se revelam retumbantemente débeis. Talvez pense que é óbvio que Deus
existe, porque, a ser de outro modo, como teria surgido o mundo? Como
poderia haver vida, em toda a sua abundante diversidade, com cada uma das
espécies a dar todo o aspecto de haver sido objecto de um prévio «desenho»
ou desígnio? Se pensa nestes moldes, espero que fique esclarecido com o
capítulo quarto, intitulado «Por que Razão é quase Certo que Deus não
Existe». Longe de apontar para um criador, a ilusão de um desígnio no
mundo vivente é explicada com muito maior economia e com arrasadora
elegância pela teoria da selecção natural de Darwin. E se é certo que esta
selecção se limita a explicar o mundo vivo, por outro lado ela também
desperta a nossa consciência para a probabilidade da existência de
«guindastes» explicativos que possam contribuir, por comparação, para a
compreensão do próprio cosmos. O poder de guindastes do tipo da selecção
natural é o segundo dos meus quatro despertadores de consciência.
Talvez o leitor considere que tem de haver um deus ou deuses, porque os
antropólogos e historiadores nos dizem que os crentes dominam em todas as
culturas humanas. Se acha isto convincente, queira consultar o capítulo
quinto, sobre «As Raízes da Religião», que explica o motivo pelo qual a
crença é tão ubíqua. Ou pensará talvez que a crença religiosa é necessária
para que tenhamos preceitos morais justificáveis? Precisamos de Deus para
sermos bons? Neste caso remeto-o para os capítulos sexto e sétimo, para ver
por que razão isto não é assim. O leitor ainda sente alguma afeição pela
religião, considerando-a uma coisa boa para o mundo mesmo depois de já
ter, pessoalmente, perdido a fé? O capítulo oitavo convida a reflectir sobre
aspectos em que a religião não é assim uma coisa tão boa para o mundo.
Se se sente presa da religião em que foi educado, vale a pena perguntar-se
como isso aconteceu. A resposta é, normalmente, uma qualquer forma de
doutrinação inculcada durante a infância. Se é uma pessoa religiosa, é
esmagadoramente provável que a sua religião seja a dos seus pais. Se
nasceu no Arcansas e pensa que o Cristianismo é verdadeiro e o Islamismo
falso, sabendo muito bem que pensaria o contrário caso tivesse nascido no
Afeganistão, então é vítima de doutrinação infantil. Mutatis mutandis se
porventura nasceu no Afeganistão.
Toda essa questão da religião e da infância é o tema do capítulo nono,
onde também se inclui o meu terceiro factor despertador de consciências.
Tal como as feministas se encrespam quando ouvem «ele» em vez de «ele
ou ela», ou «homem» em vez de «humano», eu quero que toda a gente se
arrepanhe também perante expressões como «criança católica» ou «criança
muçulmana». Fale-se de «filhos de pais católicos», se se quiser; mas se
ouvirmos alguém dizer «criança católica» vamos interromper essa pessoa e
fazer-lhe educadamente ver que as crianças são demasiado jovens para
terem opinião sobre esses assuntos, tal como o são para exprimirem opinião
sobre a economia ou a política. Precisamente porque o meu objectivo é
despertar as consciências, não me vou desculpar por referi-lo aqui no
Prefácio e também no capítulo nono. Nunca é de mais dizê-lo. Por isso vou
dizê-lo outra vez. Essa criança não é muçulmana, mas filha de pais
muçulmanos. Essa criança é nova de mais para saber se é muçulmana ou
não. Crianças muçulmanas é coisa que não existe. Crianças cristãs é coisa
que não existe.
Os capítulos primeiro e décimo, respectivamente a abrir e a fechar o livro,
explicam, cada um à sua maneira, como um entendimento apropriado da
magnificência do mundo real pode, sem nunca se transformar em religião,
cumprir o papel inspirador que a religião – histórica e indevidamente –
usurpou.
O meu quarto despertador das consciências é o orgulho ateu. Ser ateu não
é nada por que se tenha de pedir desculpas. Pelo contrário, é algo de que se
deve ter orgulho e que nos faz andar de cabeça erguida e olhos postos no
horizonte, porque o ateísmo é, quase sempre, sinal de uma independência de
espírito saudável e, inclusivamente, de uma mente sã. Há muitas pessoas
que sabem, bem lá no fundo, que são ateias, mas que não ousam admiti-lo
perante as famílias, nem mesmo, em alguns casos, perante si próprias. Isto
deve-se, em parte, à circunstância de se ter feito da própria palavra «ateu»
um rótulo terrível e assustador. O capítulo nono refere a história tragicómica
da comediante Julia Sweeney quando os pais descobriram, ao ler um jornal,
que a filha se tinha tornado ateia. Que ela não acreditasse em Deus ainda
aceitavam, mas ser ateia! ATEIA? (A voz da mãe elevou-se num grito.)
Neste ponto, preciso de dizer algo aos leitores norte-americanos em
particular, já que a religiosidade que actualmente se vive nos Estados
Unidos é algo de verdadeiramente notável. A advogada Wendy Kaminer
não exagerou muito quando observou que fazer troça da religião é tão
arriscado como queimar uma bandeira numa sede da American Legion. 2

Hoje em dia, o estatuto dos ateus nos Estados Unidos está ao mesmo nível
do dos homossexuais há 50 anos. Agora, depois do movimento do Orgulho
Gay, é possível, embora ainda não muito fácil, um homossexual ser eleito
para desempenhar cargos públicos. Numa sondagem levada a cabo em 1999
pela Gallup, perguntava-se aos Americanos se votariam numa pessoa bem
habilitada e que fosse mulher (95 por cento de respostas afirmativas),
católica (94 por cento de respostas afirmativas), judia (92 por cento), negra
(92 por cento), mórmon (79 por cento), homossexual (79 por cento), ou
ateia (49 por cento). É óbvio que ainda há um longo caminho a percorrer,
mas os ateus são bastante mais numerosos, sobretudo entre a elite mais
instruída, do que muitos possam pensar. Já era assim no século XIX, o que
permitiu a John Stuart Mill afirmar que «O mundo ficaria espantado se
soubesse quantos dos seus mais brilhantes ornatos, dos que mais se
distinguem em apreço popular pela sua sabedoria e virtude, são
completamente cépticos em matéria de religião.»
Isto deve ser ainda mais certo hoje em dia e, com efeito, apresento provas
disso no capítulo terceiro. A razão pela qual tantas pessoas não se
apercebem dos ateus prende-se com o facto de muitos de nós terem
relutância em «assumir-se». O meu sonho é que este livro possa ajudar as
pessoas a assumirem-se. Exactamente como no caso do movimento gay,
quanto mais pessoas o fizerem, mais fácil será aos outros juntarem-se-lhes.
É possível que seja necessária uma certa massa crítica para iniciar uma
reacção em cadeia.
As sondagens norte-americanas sugerem que o número de ateus e
agnósticos ultrapassa em muito o dos judeus religiosos e é mesmo superior
ao da maioria dos outros grupos religiosos. No entanto, ao contrário dos
judeus, que constituem claramente um dos lóbis políticos mais eficazes dos
Estados Unidos, e ao contrário dos cristãos evangélicos, que detêm um
poder político ainda maior, os ateus e os agnósticos não estão organizados e,
portanto, a influência que exercem é pouco mais do que zero. De facto, a
tarefa de organizar ateus já foi comparada a arrebanhar gatos, porquanto
tendem a pensar de forma independente e a não se submeterem à
autoridade. Mas um bom primeiro passo seria ir acumulando massa crítica
com os que estão dispostos a «assumirem-se», encorajando assim os
restantes a fazer o mesmo. Ainda que não seja possível arrebanhar gatos,
estes quando em número suficiente fazem muito barulho e não há como
ignorá-los.
A palavra «delusão», usada no meu título , incomodou alguns psiquiatras,
3

que, por a consideram um termo técnico, acham que não deve ser usada de
ânimo leve. Três deles escreveram-me a propor um termo técnico específico
para a delusão religiosa: «relusão». Talvez venha a pegar, mas para já fico-
4

me com «delusão» e preciso de justificar o seu uso. O Penguin English


Dictionary define delusão como «uma crença ou impressão falsa».
Surpreendentemente, a citação ilustrativa que o dicionário dá é de Phillip E.
Johnson: «O darwinismo é a história de como a humanidade se libertou da
delusão de que o seu destino é controlado por um poder superior a ela
própria.» Será este o mesmo Phillip E. Johnson que hoje em dia encabeça o
ataque criacionista contra o darwinismo nos Estados Unidos da América?
De facto é ele e a citação está, como podemos adivinhar,
descontextualizada. Espero que do facto de eu o ter aqui afirmado seja
tomada devida nota, uma vez que idêntica cortesia não me foi feita em
numerosas citações das minhas obras, deliberada e enganosamente retiradas
do contexto por parte de autores criacionistas. O que quer que Johnson
queira dizer, a sua frase, tal como está, é uma afirmação que eu com prazer
subscreveria. O dicionário do Microsoft Word define delusão como sendo
«uma falsa crença persistente, mantida apesar da forte evidência em
contrário, sobretudo como sintoma de um distúrbio psiquiátrico.» A
primeira parte capta na perfeição aquilo que é a fé religiosa. Quanto a ser ou
não um sintoma de distúrbio psiquiátrico, inclino-me a seguir Robert M.
Pirsig, autor de Zen and the Art of Motorcycle Maintenance, que escreveu:
«Quando é uma pessoa a sofrer de uma delusão, chama-se-lhe insanidade.
Quando são muitas pessoas a sofrer de uma delusão, chama-se-lhe religião.»
Se este livro tiver o resultado que pretendo, os leitores religiosos que o
abrirem serão ateus na altura em que o pousarem. Que optimismo
presumido! É claro que os crentes empedernidos são imunes aos
argumentos, tal é a resistência acumulada ao longo de anos de doutrinação
durante a infância, com métodos que levaram séculos a amadurecer (seja
por via da evolução ou de desígnio). Entre os dispositivos imunológicos
mais eficazes conta-se o aviso instante no sentido de que se evite abrir um
livro como este, certamente uma obra de Satanás. Mas acredito que há por
aí muitas pessoas de espírito aberto: pessoas para quem a doutrinação na
infância ou não foi demasiado insidiosa, ou por qualquer outra razão «não
pegou», ou cuja inteligência inata é suficientemente forte para a conseguir
ultrapassar. Tais espíritos livres não precisam senão de um pouco de
incentivo para se libertarem completamente do vício da religião. No
mínimo, espero que ninguém que leia este livro possa dizer: «Eu não sabia
que podia.»
*

Agradeço a muitos amigos e colegas a ajuda prestada na preparação deste


livro. É impossível citar todos os nomes, mas neles incluo o meu agente
literário, John Brockman, e os meus editores, Sally Gaminara (da
Transworld) e Eamon Dolan (da Houghton Mifflin). Ambos o leram com
sensibilidade e uma compreensão inteligente, oferecendo-me uma útil
mistura de críticas e conselhos. A sua crença empenhada e entusiástica no
livro foi muito encorajadora. Gillian Somerscales foi uma revisora
exemplar, tão construtiva nas suas sugestões como meticulosa nas
correcções. Outros que contribuíram com críticas em várias fases da escrita,
e a quem estou muito grato, são Jerry Coyne, J. Anderson Thomson, R.
Elisabeth Cornwell, Ursula Goodenough, Latha Menon e sobretudo Karen
Owens, crítica suprema, cuja familiaridade com o cose e descose de cada
versão do livro foi quase tão próxima como a minha própria.
O livro deve algo (e vice-versa) ao já referido documentário em duas
partes Root of All Evil? Agradeço a todos quantos estiveram envolvidos na
produção, incluindo Deborah Kidd, Russell Barnes, Tim Cragg, Adam
Pescod, Alan Clements e Hamish Mykura. Agradeço ao Channel Four e à
IWC Media pela permissão do uso de citações do documentário. Root of All
Evil? atingiu um excelente nível de audiências na Grã-Bretanha, tendo sido
também adquirido pela Australian Broadcasting Corporation. Resta ver se
algum canal de televisão norte-americano vai ousar transmiti-lo.
5

Há já alguns anos que este livro tem vindo a germinar na minha cabeça.
Durante esse tempo, algumas das ideias acabaram inevitavelmente por ser
utilizadas em conferências, como, por exemplo, as Conferências Tanner,
que proferi em Harvard, bem como em artigos de jornais e revistas.
Sobretudo os leitores da minha coluna habitual na Free Inquirer poderão
achar familiares alguns trechos aqui presentes. Agradeço a Tom Flynn,
director dessa excelente revista, pelo seu estímulo quando me contratou
como colunista regular. Após uma paragem temporária durante a finalização
do livro, espero agora retomar a minha coluna e irei sem dúvida usá-la para
enfrentar o rescaldo da publicação.
Por razões diversas, desejo agradecer a Dan Dennett, Marc Hauser,
Michael Stirrat, Sam Harris, Helen Fisher, Margaret Downey, Ibn Warraq,
Hermione Lee, Julia Sweeney, Dan Barker, Josephine Welsh, Ian Baird e
principalmente a George Scales. Hoje em dia um livro como este não está
completo até se tornar o núcleo de um website activo, um fórum de
materiais suplementares, reacções, discussões, perguntas e respostas – e o
mais que o futuro reserve. Espero que www.richarddawkins.net/, a página
da Richard Dawkins Foundation for Reason and Science (Fundação Richard
Dawkins em prol da Razão e da Ciência), venha a cumprir esse papel, e
agradeço imenso a Josh Timonen pela capacidade artística, pelo
profissionalismo e pelo trabalho árduo que lhe tem dedicado.
Agradeço principalmente à minha mulher, Lalla Ward, que me foi
encorajando por entre as minhas hesitações e dúvidas interiores. Devo-lhe
não só o apoio moral e as argutas sugestões de melhoramento, mas também
o ter-me lido em voz alta a totalidade do livro em dois estádios diferentes do
seu desenvolvimento, para que eu pudesse perceber de forma muito directa
como ele poderia soar a outro leitor que não eu. Recomendo a técnica a
outros autores, mas devo avisar de que, para obter melhores resultados, o
leitor tem de ser um actor profissional, de voz e ouvido delicadamente
sintonizados com a música da língua.

1 Respectivamente «e também sem religião» e «e também uma religião». (N. das T.)

2 Wendy Kaminer, «The last taboo: why America needs atheism», New Republic, 14 de Outubro de
1996.

3 The God Delusion. (A Desilusão de Deus, na edição portuguesa). (N. do E.)

4 Dra. Zoë Hawkins, Dra. Beata Adams e Dr. Paul St. John Smith, contacto pessoal.

5 No momento em que o livro em edição de bolso foi para o prelo, a resposta era ainda negativa. No
entanto, encontram-se agora disponíveis DVD, em http://richarddawkins.net/store.
Prefácio à edição de bolso

A edição de capa dura de A Desilusão de Deus foi chamada, um pouco


por toda a parte, a surpreendente campeã de vendas de 2006, sendo recebida
de forma calorosa pela grande maioria das recensões críticas de leitores
enviadas para a Amazon (cerca de 1000, ao tempo da escrita deste prefácio).
No entanto, a aprovação foi menos retumbante nas recensões impressas. Um
cínico poderia atribuir o facto a um acto mecânico dos responsáveis pelas
secções de crítica de livros: Tem «Deus» no título, envie-se a um desses
cromos da religião mais conhecidos. Mas isso seria demasiado cínico.
Várias recensões desfavoráveis começavam com uma expressão que há
muito aprendi a ler como ominosa: «Eu sou ateu, MAS ... » Como disse
Dan Dennett em Breaking the Spell, há um número desconcertantemente
grande de intelectuais que «acreditam na crença», embora eles próprios não
possuam crença religiosa. Estes crentes de segunda linha são, muitas vezes,
mais zelosos do que os crentes a sério, de um zelo insuflado por uma
abertura de espírito hiper-solícita: «Tenho pena de não poder partilhar a sua
fé, mas respeito-a e tem toda a minha compreensão.»
«Sou ateu, MAS ... » O que vem a seguir é quase sempre inútil, niilista ou,
pior ainda, marcado por uma espécie de negatividade rejubilante. Repare-se,
a propósito, na distinção usada noutro género de crítica igualmente comum:
«Eu dantes era ateu, mas...» Esse é um dos mais antigos truques do
catálogo, muito do agrado dos apologistas religiosos, desde C. S. Lewis até
ao presente. Serve para, desde logo, firmar as credenciais na praça, e é
espantosa a frequência com que funciona. Cuidado.
Escrevi para o website RichardDawkins.net um artigo intitulado «Sou
ateu, MAS ... », donde retirei a lista de críticas e outras leituras negativas
que a seguir refiro, suscitadas nas recensões da edição de capa dura. O
mesmo website, gerido pelo inspirado Josh Timonen, atraiu um número
muito grande de colaboradores, que se encarregaram já de desfazer todas
essas críticas, ainda que em tom menos cauteloso e mais frontal do que o
meu ou do que o dos meus colegas académicos A. C. Grayling, Daniel
Dennett, Paul Kurtz e outros, que se pronunciaram em letra de forma.

Não se pode criticar a religião sem uma análise


pormenorizada de obras de teologia eruditas
Surpreendente campeão de vendas? Se, como desejou um crítico com
claras pretensões intelectuais, eu me tivesse deixado embrenhar nas
distinções epistemológicas entre Tomás de Aquino e Duns Escoto; se
tivesse feito justiça às posições de Eriúgena sobre a subjectividade, de
Rahner sobre a graça ou de Moltmann sobre a esperança (como debalde
esse crítico esperou que eu fizesse), o meu livro teria sido mais do que um
surpreendente campeão de vendas: teria sido um milagre. Mas essa não é a
questão. Ao contrário de Stephen Hawking (que deu ouvidos a quem o
avisou que cada fórmula que publicasse reduziria as vendas a metade), eu
teria alegremente abdicado do êxito de vendas se houvesse a mínima
esperança de Duns Escoto lançar luz sobre a minha pergunta crucial,
relativa à existência de Deus. A vasta maioria dos escritos teológicos parte,
simplesmente, do princípio de que ele existe, prosseguindo a partir daí. Para
os meus objectivos, apenas tenho de ter em consideração os teólogos que
levam a sério a possibilidade de Deus não existir para depois argumentarem
pela positiva. Julgo que o capítulo terceiro o consegue fazer, com o que eu
espero ser bom humor e suficiente abrangência.
No que diz respeito a bom humor, não consigo ultrapassar a esplêndida
«Resposta do Cortesão», publicada por P. Z. Myers no seu website
Pharyngula.

Considerei as insolentes acusações do Sr. Dawkins com exasperação,


motivada pela sua falta de investigação séria. Ao que parece, não leu as
minudentes dissertações do conde Rodrigo de Sevilha acerca dos
requintados e exóticos cabedais das botas do imperador, nem teve em
consideração por um momento sequer a obra-prima de Bellini Sobre a
Luminescência do Chapéu Emplumado do Imperador. Há escolas que
se dedicam por inteiro à escrita de tratados eruditos sobre a beleza das
vestes do imperador, e os jornais mais importantes têm, todos eles, uma
secção dedicada à moda imperial... Dawkins ignora com arrogância
todas estas profundas cogitações filosóficas, para acusar grosseiramente
o Imperador de nudez... Até que Dawkins se exercite nas lojas de Paris
e Milão, até que aprenda a diferença entre um debrum franzido e calças
entufadas, o melhor é que façamos todos de conta de que ele nada disse
contra o gosto do imperador. A formação em Biologia pode conferir-lhe
competência para reconhecer pendências genitais quando perante elas,
mas não lhe ensinou a educar a sensibilidade aos Tecidos Imaginários.

Clarificando um pouco melhor, a maior parte de nós nega de bom grado


as fadas, a astrologia e o Monstro do Esparguete Voador sem precisar de
mergulhar em livros de teologia macarrónica ou outros.
A crítica seguinte está relacionada com esta: é a grande ofensiva do
argumento dos «fantoches».

O senhor ataca sempre o que a religião tem de pior, ignorando


o que de melhor ela tem
«O senhor prende-se com demagogos e oportunistas como Ted Haggard,
Jerry Falwell e Pat Robertson, em vez de se debruçar sobre teólogos
sofisticados como Tillich ou Bonhoeffer, que ensinam o tipo de religião em
que eu acredito.»
Se ao menos essa religião subtil e matizada fosse a dominante, o mundo
seria por certo um lugar melhor e eu teria escrito um livro diferente deste. A
triste verdade é que, em termos quantitativos, esse tipo de religião boa e
discreta é insignificante. Para a vasta maioria de crentes em todo o mundo, a
religião é por de mais parecida com o que se ouve da boca de pessoas como
Robertson, Falwell ou Haggard, Osama bin Laden ou o aiatola Khomeini. E
estes não são meros fantoches fáceis de desmascarar. São extremamente
influentes e tornaram-se figuras incontornáveis neste nosso mundo
moderno.

Eu sou ateu, mas desejo distanciar-me da sua linguagem


vociferante, sensacionalista, destemperada e intolerante
Na verdade, se se atentar na linguagem de A Desilusão de Deus, ver-se-á
que ela é muito menos sensacionalista ou destemperada do que aquela que
regularmente aceitamos sem reacção quando usada por comentadores
políticos, por exemplo, ou por críticos de teatro, de arte ou de livros. A
minha linguagem só parece destemperada devido a uma convenção estranha
e quase universalmente aceite (ver a citação de Douglas Adams nas páginas
46-7), que é singular apanágio da fé religiosa. Refiro-me à circunstância de
esta se encontrar a coberto de qualquer crítica.
Em 1915, o deputado britânico Horatio Bottomley recomendou que,
depois da guerra, «se por acaso um dia num restaurante descobrirmos que
estamos a ser servidos por um empregado de mesa alemão, atiremos a sopa
à sua cara abominável; se nos encontrarmos sentados ao lado de um
empregado de escritório alemão, entornemos o tinteiro por cima da sua
cabeça abominável». Ora isto é que é linguagem sensacionalista e
intolerante (além de, quer parecer-me, uma retórica ridícula e ineficaz até
para a época). Veja-se o contraste com a frase de abertura do capítulo
segundo, que é o passo mais vezes citado como exemplo de tom
«sensacionalista» ou «vociferante». Não me cabe a mim dizer se o
consegui, mas a minha intenção foi mais no sentido de comunicar uma
mensagem simultaneamente vigorosa e humorística do que cultivar uma
polémica vociferante. Nas leituras públicas de A Desilusão de Deus este é
um passo que dá sempre garantias de arrancar risadas bem-dispostas e é por
isso que eu e a minha mulher o usamos invariavelmente para quebrar o gelo
perante públicos novos. Se me atrevesse a sugerir por que motivo o humor
aqui funciona, diria que é por causa da incongruência de pegar num tema
que podia ser tratado de forma sensacionalista ou grosseira e expressá-lo, na
prática, através de uma longa lista de palavras de sabor clássico ou pseudo-
eruditas («filicida», «megalomaníaco», «pestilento»). Tomei como modelo
um dos escritores mais engraçados do século XX, e ninguém acusará Evelyn
Waugh de ser vociferante ou sensacionalista (e até abri o jogo ao mencionar
o seu nome no episódio relatado imediatamente a seguir, na página 55).
A crítica literária e a crítica teatral são por vezes tão negativas que
chegam a achincalhar, recebendo deliciados elogios pelo espírito mordaz
das recensões. Mas nas críticas à religião até a clareza deixa de ser virtude e
soa a hostilidade agressiva. Um político pode lançar um ataque cáustico a
um adversário no Parlamento e receber aplausos pela sua pugnacidade. Mas
basta um crítico de religião, usando de ponderação e de lógica, adoptar um
tom que noutros contextos seria considerado apenas directo e frontal, para
logo se dizer que teve uma tirada demagógica. A gente de boas maneiras
franzirá os lábios e abanará a cabeça em gesto de censura. Até a gente
secular de boas maneiras, e muito especialmente aqueles que adoram
anunciar: «Eu sou ateu, MAS ... »

O senhor não está senão a pregar aos convertidos. Qual a


utilidade disso?
O «Canto dos Convertidos», na página RichardDawkins.net, desmente
esta premissa, mas, mesmo que lhe queiramos dar crédito, existem boas
respostas para a pergunta. Uma delas é que as hostes dos não crentes são
muito mais numerosas do que muitas pessoas julgam. Mas estas, na sua
grande maioria – e mais uma vez, especialmente nos Estados Unidos –,
tendem a não se manifestar, necessitando desesperadamente de
encorajamento para se assumirem. A julgar pelos agradecimentos que recebi
em toda a América do Norte durante a digressão de divulgação do livro, o
encorajamento que pessoas como Sam Harris, Dan Dennett, Christopher
Hitchens e eu próprio conseguem proporcionar é extremamente apreciado.
Uma razão mais subtil para pregar aos convertidos é a necessidade de
despertar as consciências. Quando as feministas despertaram as nossas
mentes para o uso sexista dos pronomes, estavam a pregar aos convertidos
no que dizia respeito às questões mais substantivas dos direitos das
mulheres e dos malefícios da discriminação. Mas essas hostes generosas e
progressistas ainda precisavam de que lhes despertassem as consciências
quanto à linguagem quotidiana. Por muito certeiras que fossem as nossas
análises das questões políticas referentes aos direitos e à discriminação,
inconscientemente continuávamos a seguir as convenções linguísticas que
faziam com que metade da raça humana se sentisse excluída.
Existem outras convenções linguísticas que precisam de ter o mesmo
destino dos pronomes sexistas, e as hostes dos ateus não estão isentas deste
esforço. Todos nós necessitamos de ter a consciência desperta. Ateus e
teístas acatam, inconscientemente, a convenção social segundo a qual
devemos ser especialmente educados e respeitosos em relação à fé.
Pessoalmente, nunca me canso de chamar a atenção da sociedade para a
aceitação tácita do modo como rotulamos as crianças de acordo com as
opiniões religiosas dos pais. Os ateus têm de despertar as suas consciências
no que toca a esta anomalia: a opinião religiosa é o único tipo de opinião
parental que – por consentimento quase universal – pode ser afivelado a
crianças que, na verdade, são demasiado jovens para saber qual é,
verdadeiramente, a opinião que têm. Uma criança cristã é coisa que não
existe: existem, sim, crianças nascidas de pais cristãos. Aproveitemos todas
as oportunidades para vincar bem esta ideia.

O senhor é tão fundamentalista como aqueles que critica


Não, por favor, é demasiado fácil confundir paixão – uma paixão que está
sempre disponível para mudar de opinião – com fundamentalismo, que
nunca irá mudar a sua. Os cristãos fundamentalistas opõem-se
apaixonadamente à evolução e eu sou apaixonadamente a favor dela. Paixão
por paixão, estamos empatados. E isso, segundo alguns, significa que somos
igualmente fundamentalistas. Mas, parafraseando um aforismo cuja origem
não consigo determinar, quando dois pontos de vista opostos são expressos
com igual força, a verdade não está, necessariamente, a meio caminho entre
os dois. É possível que um dos lados esteja, simplesmente, errado, o que
justifica a paixão do lado contrário.
Os fundamentalistas sabem aquilo em que acreditam e sabem também que
nada os fará mudar de ideia. A citação de Kurt Wise, na página 341, diz
tudo: «... se todas as provas do universo acabassem por contrariar o
criacionismo, eu seria o primeiro a admiti-lo, mas continuaria a ser
criacionista porque é para aí que a Palavra de Deus parece apontar. Daqui
não saio.» Não é de mais salientar a diferença entre um compromisso tão
apaixonado com os fundamentos bíblicos e o compromisso igualmente
apaixonado que o verdadeiro cientista sente em relação às provas. O
fundamentalista Kurt Wise proclama que nem todas as provas do mundo o
fariam mudar de ideia. Por mais apaixonadamente que possa «acreditar» na
evolução, o verdadeiro cientista sabe exactamente o que seria necessário
para mudar de ideia: provas. Quando perguntaram a J. B. S. Haldane que
provas poderiam contradizer a evolução, este respondeu: «Fósseis de coelho
no Pré-Câmbrico.» Permita-se-me que crie também a minha própria versão
simétrica do manifesto de Kurt Wise: «Se todas as provas do universo se
revelassem a favor do criacionismo, eu seria o primeiro a admiti-lo e
imediatamente mudaria de ideia. Contudo, da maneira como as coisas estão,
toda a evidência disponível (e ela é abundante) dá razão à evolução. É por
este motivo e só por ele que eu defendo a evolução com uma paixão
correspondente à dos que a ela se opõem. A minha paixão baseia-se nas
provas. A deles, ao arrepio de todas as provas, é verdadeiramente
fundamentalista .»

Eu próprio sou ateu, mas a religião veio para ficar. Há que


aceitar o facto
«Quer ver-se livre da religião? Pois muito boa sorte! Acha que consegue
ver-se livre da religião? Em que planeta vive? A religião já faz parte da
mobília. Esqueça!»
Era capaz de suportar estes comentários de desencorajamento se fossem
proferidos num tom que se assemelhasse mais a tristeza ou preocupação.
Mas, muito pelo contrário, o tom de voz é, por vezes, de total júbilo. Não
acho que se trate de masoquismo. Muito provavelmente podemos, também
aqui, atribuí-lo à «crença na crença». Estas pessoas podem não ser
religiosas, mas adoram a ideia de que outras pessoas o sejam. E isto conduz-
me à minha categoria final de detractores.

Eu próprio sou ateu, mas as pessoas precisam de religião


«Vai substituí-la por quê? Como se confortam, depois, os enlutados?
Como satisfazer essa necessidade?»
Que paternalismo! «Você e eu somos, é claro, demasiado inteligentes e
instruídos para precisar da religião. Mas as pessoas comuns, hoi polloi, as
proles orwellianas, os semi-idiotas deltas e ípsilones de Huxley, precisam da
religião.» Lembro-me de uma ocasião em que, participando num congresso
sobre o entendimento público da ciência, me insurgi pontualmente contra as
formas de «divulgação redutora». Na sessão de perguntas e respostas que
houve no final, um membro da assistência levantou-se para referir que os
esforços de divulgação podiam ser necessários «para trazer as minorias e as
mulheres à ciência». Pelo tom de voz era claro que o indivíduo em causa se
tinha na conta de pessoa liberal e progressista. Mal imagino o que as
mulheres e as «minorias» da assistência terão achado da intervenção dele.
Voltando à necessidade de conforto da humanidade, é óbvio que ela é
real, mas não existirá algo infantil na crença de que o universo nos deve
conforto, como se de um direito nosso se tratasse? A observação de Isaac
Asimov acerca do infantilismo da pseudociência também se aplica à
religião: «Inspeccionem-se todos os elementos da pseudociência e
encontrar-se-á um manto protector, um polegar para chuchar, uma saia para
agarrar.» Além disso, é assombroso o número de pessoas incapazes de
compreender que «X é reconfortante» não implica dizer que «X é
verdadeiro».
Um argumento relacionado com este é o que diz respeito à necessidade de
ter um «objectivo» na vida. Para citar um crítico canadiano,

Pode ser que os ateus tenham razão acerca de Deus. Quem sabe? Mas
quer haja Deus quer não, torna-se claro que alguma coisa na alma
humana exige uma crença de que a vida tenha um objectivo que
transcenda o plano material. Seria de pensar que um empirista ultra-
racional como Dawkins estaria em condições de reconhecer este
aspecto inalterável da natureza humana... será que Dawkins pensa
mesmo que este mundo seria um lugar mais humano se, na nossa busca
de verdade e conforto, fôssemos agora todos trocar a Bíblia por A
Desilusão de Deus?

Efectivamente, e já que fala de «humano», penso que sim, que seria, mas
devo repetir uma vez mais que a eventual carga de consolo de uma
determinada crença não faz subir o respectivo valor em termos de verdade.
É claro que não posso negar a necessidade de conforto emocional, tal como
não posso pretender que a visão do mundo adoptada neste livro proporciona
mais do que um conforto moderado às pessoas enlutadas, por exemplo. Mas
se o conforto que a religião parece proporcionar se baseia na premissa
neurologicamente muito pouco plausível de que sobrevivemos à morte dos
nossos cérebros, será que queremos mesmo defendê-la? Seja como for, não
creio ter alguma vez conhecido em funerais quem discordasse da ideia de
que as partes não religiosas da cerimónia (o elogio fúnebre, as peças
musicais ou os poemas favoritos do falecido) são mais comoventes do que
as orações.
Após ter lido A Desilusão de Deus, o Dr. David Ashton, um médico
especialista britânico, escreveu-me acerca da morte inesperada do seu
querido filho de 17 anos, Luke, no dia de Natal de 2006. Pouco antes da
morte de Luke, pai e filho tinham conversado favoravelmente sobre a
fundação de solidariedade social que estou a criar para fomentar as causas
da razão e da ciência. No funeral de Luke, realizado na ilha de Man, o pai
sugeriu às pessoas ali reunidas que, se desejassem dar alguma espécie de
contributo em memória do filho, o deveriam remeter para a minha
fundação, tal como Luke teria desejado. Os 30 cheques recebidos atingiram
um montante superior a 2000 libras, incluindo mais de 600 libras
conseguidas numa colecta realizada no pub da aldeia. Tornou-se claro que
este rapaz era muito amado. Quando li a Ordem de Serviço Religioso para a
cerimónia fúnebre, chorei literalmente, embora nunca tivesse conhecido o
jovem, e pedi permissão para reproduzi-la em RichardDawkins.net. Alguém
tocou, numa gaita-de-foles, o lamento manês «Ellen Vallin». Dois amigos
fizeram os elogios. O próprio Dr. Ashton recitou o belo poema de Dylan
Thomas «Fern Hill» («Era eu jovem e sem cuidados, sob os ramos da
macieira»), tão dolorosamente evocativo da juventude perdida. E de
seguida, digo-o com grande emoção, leu as linhas iniciais do meu livro
Decompondo o Arco-íris, linhas essas que já há muito destinei para leitura
no meu próprio funeral.

Vamos morrer e por isso somos nós os bafejados pela sorte. A maior
parte das pessoas nunca vai morrer, porque nunca vai chegar a nascer.
As pessoas potenciais que poderiam ter estado aqui em meu lugar, mas
que na verdade nunca verão a luz do dia, excedem em número os grãos
de areia do deserto do Sara. Seguramente que nesses fantasmas que não
vão chegar a nascer se incluem poetas maiores do que Keats e maiores
cientistas do que Newton. Sabemos isto porque o conjunto de pessoas
potenciais permitido pelo nosso ADN é esmagadoramente superior ao
conjunto de pessoas com existência efectiva. Não obstante esta ínfima
probabilidade, sou eu, somos nós, que, na nossa vulgaridade, aqui
estamos...

Como podemos nós, os poucos privilegiados que, contra todas as


probabilidades, ganhámos a lotaria do nascimento, atrever-nos a queixar-
nos do nosso inevitável regresso a esse estado anterior do qual a vasta
maioria nunca despertou?
É evidente que existem excepções, mas eu desconfio de que, para muitas
pessoas, a principal razão pela qual se mantêm agarradas à religião não é o
facto de esta dar consolo, mas o de lhes ter faltado o apoio do sistema
educativo e de ensino e de não terem sequer a consciência de que a não-
crença é uma opção. Isto é seguramente verdade para a maior parte das
pessoas que se julgam criacionistas. O que aconteceu, pura e simplesmente,
foi que não lhes ensinaram de maneira adequada a espantosa alternativa
proposta por Darwin. Provavelmente, o mesmo será verdade no que se
refere a esse mito desmerecedor que diz que as pessoas «necessitam» da
religião. Num recente colóquio realizado em 2006, um antropólogo (e
espécime premiado da marca eu-sou-ateu-mas) citou Golda Meir quando
lhe perguntaram se acreditava em Deus: «Acredito no povo judeu, e o povo
judeu acredita em Deus.» O nosso antropólogo ofereceu a sua própria
versão da frase: «Acredito nas pessoas, e as pessoas acreditam em Deus.»
Quanto a mim, prefiro dizer que acredito nas pessoas. E sucede que as
pessoas, quando devidamente incentivadas a pensar, pela sua cabeça, em
toda a informação actualmente disponível, muitas vezes não acreditam em
Deus e levam vidas realizadas, felizes e efectivamente libertas.
1
Um descrente fervoroso
Eu não tento imaginar um Deus pessoal; basta mostrar
reverência pela estrutura do mundo, na medida em que ele
permita aos nossos insuficientes sentidos apreciá-lo.
Albert Einstein

Respeito merecido
O rapaz estava deitado sobre a relva com o queixo apoiado nas mãos. De
repente sentiu-se dominado por uma clara consciência do emaranhado de
caules e raízes, uma floresta em microcosmos, um mundo transfigurado de
formigas e escaravelhos e - embora ele não soubesse os pormenores naquela
altura - até de milhares de milhões de bactérias do solo a escorar, em
silêncio e de forma invisível, a economia do micromundo. De repente a
microfloresta da relva pareceu crescer e unir-se ao universo, com a mente
absorta do rapaz a contemplá-la. Ele interpretou a experiência em termos
religiosos, o que acabou por conduzi-lo ao sacerdócio. Foi ordenado padre
anglicano e tornou-se capelão da minha escola e um professor de quem eu
gostava. Foi graças a sacerdotes justos e liberais como ele que nunca
ninguém pôde afirmar que a religião me foi imposta. 6

Num outro tempo e num outro lugar, aquele rapaz podia ter sido eu sob as
estrelas, deslumbrado com Oríon, Cassiopeia e a Ursa Maior, banhado em
lágrimas com a inapreensível música da Via Láctea, inebriado com o
perfume nocturno de frangipani e jasmim-da-virgínia num jardim africano.
Por que razão a mesma emoção conduziu o sacerdote numa direcção e a
mim noutra, é uma pergunta à qual não é fácil responder. É comum, entre
cientistas e racionalistas, uma resposta quase mística à natureza e ao
universo. Isso não tem qualquer ligação com a crença no sobrenatural. Pelo
menos na sua adolescência, o meu capelão (tal como eu) não estava
provavelmente consciente das linhas finais da Origem das Espécies - o
famoso passo da «margem luxuriante», «com pássaros a cantarem nos
arbustos, com insectos vários volteando no ar e vermes a rastejarem pela
terra húmida». Se ele estivesse consciente disto, ter-se-ia com certeza
identificado com isso e em vez do sacerdócio, podia ter sido levado à
opinião de Darwin segundo a qual tudo foi «gerado por leis que actuam à
nossa volta»:

Por conseguinte, da guerra da natureza, da fome e da morte resulta


directamente a coisa mais excelsa que somos capazes de imaginar, a
saber, a produção dos animais superiores. Há grandeza nesta visão da
vida, com os seus vários poderes a serem-lhe, na origem, insuflados em
formas várias ou numa só; e grandeza ainda no facto de, enquanto este
planeta seguia girando de acordo com a prefixa lei da gravidade, as
mais belas e maravilhosas formas terem evoluído e continuarem
evoluindo sem fim, a partir desse início tão simples.

Carl Sagan escreveu em O Ponto Azul-Claro:

Como é possível que quase nenhuma das grandes religiões tenha olhado
para a ciência e concluído: «Isto é melhor do que pensávamos! O
universo é muito mais vasto, mais misterioso, elegante e magnífico do
que os nossos profetas disseram»? Em vez disso, dizem: «Não, não,
não! O meu deus é um deus pequeno e eu quero que continue assim.»
Uma religião, velha ou nova, que realçasse o esplendor do universo tal
como ele nos é revelado pela ciência moderna, estaria em condições de
mobilizar reservas de reverência e de espanto dificilmente suscitadas
pelos credos convencionais.

Todas as obras de Sagan tocam esse ponto nevrálgico que é o espanto em


face do transcendente, e que a religião monopolizou em séculos passados.
Os meus próprios livros a isso aspiram. Consequentemente, ouço-me muitas
vezes descrito como um fervoroso homem religioso. Uma estudante norte-
americana escreveu-me dizendo que havia perguntado a um professor se ele
tinha alguma opinião sobre mim. «Claro», respondeu ele. «Ele tem a certeza
de que a ciência é incompatível com a religião, mas fica extático perante a
natureza e o universo. Para mim, isso é religião!» Mas será «religião» a
palavra certa? Penso que não. Steven Weinberg, físico (e ateu) galardoado
com o Prémio Nobel, não fica atrás de outros autores quando, em Sonhos de
Uma Teoria Final, explica:

Algumas pessoas têm perspectivas tão vastas e flexíveis acerca de Deus


que se torna inevitável que encontrem Deus onde quer que o procurem.
Ouve-se dizer que «Deus é o máximo» ou «Deus é a nossa natureza
superior» ou «Deus é o universo». Claro que, como a qualquer outra
palavra, à palavra «Deus» pode ser atribuído o sentido que quisermos.
Se quisermos dizer que «Deus é energia», então podemos encontrar
Deus num pedaço de carvão.

Weinberg tem toda a razão ao afirmar que, para a palavra Deus não se
tornar completamente inútil, ela deve ser usada da forma que as pessoas, de
uma maneira geral, a têm interpretado: para se referirem a um criador
sobrenatural que se mostra «adequado à nossa adoração».
É grande e lamentável a confusão causada pela falha na distinção entre
aquilo que pode ser chamado religião einsteiniana e a religião sobrenatural.
Einstein invocou algumas vezes o nome de Deus (e não é o único cientista
ateu a fazê-lo), provocando equívocos da parte de sobrenaturalistas ansiosos
por o treslerem e reclamarem um tão distinto pensador como um dos seus.
O final dramático (ou malicioso?) de Uma Breve História do Tempo, de
Stephen Hawking, «pois nessa altura devíamos conhecer a mente de Deus»,
é claramente mal interpretado. Fez com que as pessoas acreditassem,
erradamente, que Hawking é um homem religioso. A bióloga celular Ursula
Goodenough, em The Sacred Depths of Nature, dá mostras de ser mais
religiosa do que Hawking ou Einstein. Adora igrejas, mesquitas e templos, e
são muitos os passos do seu livro que parecem estar mesmo a pedir que
sejam retirados do contexto e usados como munição para a religião
sobrenatural. A autora chega ao ponto de chamar-se uma «naturalista
religiosa». Contudo, uma leitura atenta do seu livro mostra que é uma ateia
tão convicta como eu.
«Naturalista» é uma palavra ambígua. Para mim, evoca o meu herói de
infância, o doutor Dolittle, de Hugh Lofting (que, a propósito, tinha mais do
que um traço do «naturalista» filósofo a bordo do Beagle). Nos séculos XVIII
e XIX, naturalista significava o que ainda significa hoje para a maioria de
nós: um estudioso do mundo natural. Naturalistas neste sentido, desde
Gilbert White, têm sido, muitas vezes, os sacerdotes. O próprio Darwin
quando jovem estava destinado à Igreja, na esperança de que a vida
desocupada de um vigário de província lhe permitisse dedicar-se à sua
paixão por escaravelhos. Mas os filósofos usam a palavra «naturalista» num
sentido muito diferente, como o oposto de sobrenaturalista. Julian Baggini
explica, em Atheism: A Very Short Introduction, o significado do
compromisso do ateu com o naturalismo: «Aquilo em que a maioria dos
ateus acredita é que, embora haja um único tipo de coisa no universo, e que
seja físico, dessa coisa surgem a mente, a beleza, as emoções, os valores
morais - em suma, toda a série de fenómenos que tornam a vida mais rica.»
As emoções e pensamentos humanos emergem de interligações
extremamente complexas de entidades físicas com o cérebro. Um ateu,
neste sentido de naturalista filosófico, é alguém que acredita que não há
nada para além do mundo físico, natural, que não há uma inteligência
criativa sobrenatural escondida por detrás do universo observável, que não
há uma alma que perdure para além do corpo e que não há milagres -
excepto no sentido de fenómenos naturais que ainda não compreendemos.
Se há algo que pareça estar para além do mundo natural, tal como hoje, de
forma imperfeita, o compreendemos, esperamos um dia compreendê-lo e
torná-lo parte do natural. Tal como sempre que se decompõe um arco-íris,
ele não é menos maravilhoso por isso.
Os grandes cientistas do nosso tempo que parecem religiosos acabam por
demonstrar não o ser quando se examinam as suas crenças em pormenor. É
certamente isto o que acontece no caso de Einstein e Hawking. O actual
astrónomo real e presidente da Royal Society, Martin Rees, disse-me que
vai à igreja como «anglicano descrente... por lealdade para com a tribo».
Não tem crenças teístas, mas partilha do naturalismo poético que o cosmos
provoca nos outros cientistas por mim mencionados. No decorrer de uma
conversa recentemente transmitida pela televisão, desafiei o meu amigo
obstetra Robert Winston, um respeitado sustentáculo dos judeus britânicos,
a admitir que o seu Judaísmo tinha exactamente este carácter e que na
realidade ele não acreditava em nada que fosse sobrenatural. Esteve perto de
o admitir, mas acabou por recuar (para falar com franqueza, era
supostamente ele que me devia entrevistar e não o contrário). Após a minha
7

insistência, disse achar que o Judaísmo proporcionava uma boa disciplina,


que o ajudava a estruturar e a levar uma vida boa. Talvez. Mas tal facto não
tem a mais pequena relação com o verdadeiro valor de qualquer uma das
pretensões sobrenaturais do Judaísmo. Há muitos intelectuais ateus que
orgulhosamente se consideram judeus e que cumprem os rituais judaicos,
talvez por lealdade para com uma tradição antiga ou para com familiares
assassinados, mas também devido à confusa prontidão em rotular como
«religião» a reverência panteísta que muitos de nós partilhamos com o seu
mais distinto expoente, Albert Einstein. Eles podem não acreditar, mas,
citando a expressão do filósofo Dan Dennett, «acreditam na crença». 8

Um dos comentários de Einstein mais avidamente citados é «a ciência


sem a religião é coxa, a religião sem a ciência é cega.» Mas Einstein
também disse:

É claro que o que leram sobre as minhas convicções religiosas é


mentira, mentira essa que é constantemente repetida. Eu não acredito
num Deus pessoal e nunca o neguei, mas exprimi-o com clareza. Se há
algo em mim a que se pode chamar religioso, então esse algo é a
infinita admiração pela estrutura do mundo tanto quanto a nossa ciência
o consegue revelar.

Será que Einstein se contradisse? Será que as suas palavras podem ser
escolhidas para citação de modo a apoiar as duas partes da discussão? Não.
Com «religião» Einstein quis dizer algo completamente diferente daquilo a
que convencionalmente nos referimos. Quando procuro clarificar a
distinção entre, por um lado, religião sobrenatural e, por outro, religião
einsteiniana, tenha-se presente que apenas considero ilusórios os deuses
sobrenaturais.
Aqui estão algumas citações de Einstein para dar a saborear a religião
einsteiniana.

Sou um descrente fervoroso. Trata-se de um tipo de religião um tanto


novo.

Nunca imputei à natureza um propósito ou um objectivo, ou outra coisa


que pudesse ser vista como antropomórfica. O que vejo na natureza é
uma estrutura magnífica que só compreendemos de forma muito
imperfeita e que enche o ser racional com um sentimento de humildade.
É um sentimento genuinamente religioso, que nada tem a ver com
misticismo.

A ideia de um Deus pessoal é, quanto a mim, bastante exótica e chega a


parecer ingénua.

Foram vários os apologistas religiosos que, desde a morte de Einstein,


tentaram compreensivelmente reclamá-lo como um dos seus. Alguns dos
seus contemporâneos religiosos viram-no de modo diferente. Em 1940,
Einstein escreveu um famoso ensaio onde justificava a sua afirmação «eu
não acredito num Deus pessoal.» Esta e outras afirmações semelhantes
provocaram uma tempestade de cartas dos ortodoxos religiosos, muitas
delas aludindo às origens judaicas de Einstein. Os extractos que se seguem
foram retirados do livro de Max Jammer Einstein and Religion (que é
também a minha principal fonte de citações de Einstein quanto a assuntos
religiosos). O bispo católico da cidade do Cansas disse: «É triste ver um
homem que vem da raça do Antigo Testamento e das suas doutrinas negar a
tradição dessa raça.» Outro sacerdote católico interpôs: «Não há nenhum
Deus que não seja um Deus pessoal... Einstein não sabe do que fala. Está
completamente enganado. Alguns homens pensam que, por terem alcançado
um alto grau de formação em determinada área, estão habilitados a exprimir
opiniões sobre tudo.» A ideia de que a religião é uma área propriamente
dita, na qual alguém se pode declarar perito, é uma ideia que não pode
deixar de ser contestada. Provavelmente este sacerdote não se teria
submetido aos conhecimentos de um «fadologista» a propósito da forma e
cor exactas das asas das fadas. Tanto ele como o bispo pensavam que
Einstein, por não ter recebido formação teológica, tinha interpretado mal a
natureza de Deus. Pelo contrário, Einstein compreendia muito bem aquilo
que estava a negar.
Um advogado católico norte-americano, ao serviço de uma coligação
ecuménica, escreveu a Einstein:

Lamentamos profundamente que tenha feito uma afirmação... na qual


ridiculariza a ideia de um Deus pessoal. Nos últimos dez anos nada terá
sido escrito mais capaz de deliberadamente levar as pessoas a pensar
que Hitler teve alguma razão para expulsar os judeus da Alemanha do
que a sua afirmação. Embora reconheça o seu direito à liberdade de
expressão, continuo a dizer que a sua afirmação faz de si um dos
maiores pomos de discórdia nos Estados Unidos.

Um rabino de Nova Iorque disse: «Einstein é sem dúvida um grande


cientista, mas as suas perspectivas religiosas são diametralmente opostas ao
Judaísmo.»
«Mas»? «Mas»? E porque não «e»?
O presidente de uma sociedade de História, em Nova Jérsia, escreveu uma
carta que expõe as fraquezas da mente religiosa de modo tão condenatório
que vale a pena relê-la:

Dr. Einstein, respeitamos a sua formação, mas há uma coisa que parece
não ter aprendido: que Deus é um espírito e não pode ser visto num
telescópio ou num microscópio, tal como a emoção ou o pensamento
humano não podem ser encontrados ao analisar-se o cérebro. Como
toda a gente sabe, a religião tem como base a fé e não o conhecimento.
Cada pessoa racional é, talvez, de vez em quando assaltada pela dúvida
religiosa. A minha própria fé vacilou muitas vezes. Mas nunca falei a
ninguém das minhas aberrações espirituais por dois motivos: (1) temia
que pudesse, por mera sugestão, perturbar e prejudicar a vida e
esperanças de algum semelhante; (2) porque concordo com o escritor
que disse que «há um laivo de maldade em cada pessoa capaz de
destruir a fé do outro»... Dr. Einstein, espero que o tenham citado
incorrectamente e que apesar disso diga algo mais agradável ao vasto
número de norte-americanos que o têm em grande consideração.

Que carta tremendamente reveladora! Cada frase emana cobardia moral e


intelectual.
Menos abjecta mas mais chocante foi a carta do fundador da Associação
do Tabernáculo do Calvário, do Oklahoma:

Professor Einstein, acredito que qualquer cristão nos Estados Unidos da


América lhe responderá: «Não vamos desistir da crença no nosso Deus
e no seu filho Jesus Cristo, mas convidamo-lo, se não acredita no Deus
das pessoas desta nação, a voltar para o lugar donde veio.» Fiz tudo ao
meu alcance para ser uma bênção para Israel e depois o senhor aparece
e, com uma afirmação vinda dessa boca blasfema, faz mais mal à causa
do seu povo do que todos os esforços dos cristãos que amam Israel
fazem para eliminar o anti-semitismo no nosso país. Professor Einstein,
cada cristão nos Estados Unidos dir-lhe-á imediatamente: «Pegue na
sua disparatada e falaciosa teoria da evolução e volte para a Alemanha,
donde veio, ou então pare de tentar derrubar a fé de um povo que o
recebeu quando se viu forçado a fugir da sua terra natal.»

A única coisa em que estas teorias teístas acertaram foi no facto de


Einstein não ser um deles. Foram várias as vezes em que ficou indignado
com a sugestão de que era um teísta. Assim sendo, seria ele um deísta como
Voltaire e Diderot? Ou seria um panteísta como Spinoza, cuja filosofia
admirava: «Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na ordeira harmonia
daquilo que existe, não num Deus que se preocupa com destinos e acções de
seres humanos»?
Vamos recordar a terminologia. Um teísta acredita numa inteligência
sobrenatural que, além de contar como sua obra principal o ter criado o
universo, se encontra por perto para vigiar e influenciar o destino
subsequente da sua criação inicial. Em vários sistemas de crença teísta, a
divindade está intimamente envolvida nos assuntos humanos. Responde a
preces; perdoa ou castiga pelos pecados; intervém no mundo operando
milagres; agita-se tanto com as boas como com as más acções e sabe
quando as praticamos (ou mesmo pensamos em praticá-las). Também um
deísta acredita numa inteligência sobrenatural, mas cuja acção se limitou,
primeiro do que tudo, a estabelecer as leis que governam o universo. Depois
disso não há intervenção do Deus deísta, que por certo também não tem
qualquer interesse específico nos assuntos humanos. Os panteístas não
acreditam num Deus sobrenatural, mas usam a palavra Deus como sinónimo
não sobrenatural de natureza, ou de universo, ou da legitimidade que rege o
seu funcionamento. Os deístas diferem dos teístas pelo facto de o seu Deus
não responder a preces, não estar interessado em pecados ou em confissões,
não ler os nossos pensamentos e não intervir com milagres imprevisíveis.
Os deístas diferem dos panteístas pelo facto de o Deus deísta ser uma
espécie de inteligência cósmica, em vez de sinónimo metafórico ou poético
panteísta das leis do universo. O panteísmo é o ateísmo apimentado. O
deísmo é o teísmo diluído.
Tudo leva a crer que famosos einsteinianismos tais como «Deus é subtil
mas não é malicioso» ou «Deus não joga aos dados» ou «Teve Deus outra
possibilidade que não fosse criar o universo?» são panteístas, não deístas e
muito menos teístas. «Deus não joga aos dados» devia ser traduzido por «o
acaso não está na origem de todas as coisas.» «Teve Deus outra
possibilidade que não fosse criar o universo?» significa «poderia o universo
ter começado de qualquer outra maneira?» Einstein usou a palavra «Deus»
num mero sentido poético e metafórico. O mesmo acontece com Stephen
Hawking e com a maioria desses físicos que de vez em quando descambam
para a linguagem de metáforas religiosas. A obra de Paul Davies The Mind
of God hesita entre o panteísmo einsteiniano e uma forma obscura de
deísmo - e por ela foi o autor galardoado com o Prémio Templeton (uma
choruda quantia atribuída anualmente pela Fundação Templeton,
normalmente a um cientista disposto a dizer algo agradável sobre religião).
Permita-se-me que resuma a religião einsteiniana em mais uma citação do
próprio Einstein: «Sentir que por detrás de qualquer coisa que possa ser
experienciada há algo que a nossa mente não consegue compreender, e cuja
beleza e sublimidade nos atinge apenas indirectamente como um débil
reflexo, isso é religiosidade. Neste sentido sou religioso.» Neste sentido
também eu sou religioso, com a ressalva de que «não consegue
compreender» não tem propriamente de significar «incompreensível para
sempre». Mas prefiro não me considerar religioso, porque tal é enganador.
É destrutivamente enganador, porque, para a larga maioria das pessoas,
«religião» implica «sobrenatural». Carl Sagan exprimiu-o bem: «... se com
“Deus” nos referimos ao conjunto de leis físicas que regem o universo,
então há claramente um Deus. Esse Deus é emocionalmente insatisfatório...
não faz muito sentido rezar à lei da gravidade.»
É engraçado notar que esta última questão levantada por Sagan foi
pressagiada pelo reverendo Dr. Fulton J. Sheen, professor na Universidade
Católica dos Estados Unidos, num feroz ataque à rejeição de um Deus
pessoal formulada por Einstein em 1940. Sheen perguntou sarcasticamente
se alguém se mostrara disposto a arriscar a vida pela Via Láctea. Parecia
estar a apresentar um argumento contra Einstein e não em seu favor, uma
vez que acrescentou: «Só há um defeito na sua religião cósmica: pôs uma
letra a mais na palavra - a letra s.» Não há nada de cómico nas crenças de
Einstein. Apesar disso, gostaria de que os físicos se abstivessem de usar a
palavra Deus quando se lhe referem nessa sua acepção metafórica concreta.
O Deus metafórico ou panteísta dos físicos está a anos-luz do Deus bíblico
interventivo, milagreiro, leitor de pensamentos, punidor de pecados,
atendedor de preces, que é o Deus dos padres, mulás e rabinos, e da
linguagem comum. Confundir deliberadamente os dois é, na minha opinião,
um acto de alta traição intelectual.

Respeito imerecido
O título A Desilusão de Deus não se refere ao Deus de Einstein nem aos
dos outros cientistas iluminados da secção anterior. É por esta razão que
precisava, em primeiro lugar, de arrumar esta questão da religião
einsteiniana, que já deu mostras de ter capacidade para confundir. No que
resta deste livro vou falar apenas de deuses sobrenaturais, dos quais o mais
familiar à maioria dos leitores é Javé, o Deus do Antigo Testamento. Em
breve lá chegaremos. Mas antes de abandonar este capítulo preliminar
preciso de tratar de mais um assunto que, de outra forma, iria baralhar o
livro por completo. Desta vez é uma questão de etiqueta. É possível que os
leitores com sensibilidade religiosa se sintam ofendidos com aquilo que
tenho a dizer e que encontrem nestas páginas respeito insuficiente para com
as suas próprias crenças (se não mesmo para com as crenças que outros
prezam). E porque seria uma pena se tal ofensa os impedisse de continuar a
leitura, quero esclarecê-lo aqui, no início.
Há uma ideia generalizada, que quase todos na nossa sociedade aceitam -
incluindo os não-religiosos -, de que a fé religiosa é particularmente
vulnerável à ofensa e que deve ser protegida por uma invulgarmente grossa
muralha de respeito, respeito esse de uma ordem diferente daquele que
qualquer ser humano deve ter para com o seu semelhante. Douglas Adams,
num discurso improvisado em Cambridge pouco antes da sua morte , 9

exprimiu-o tão bem que nunca me canso de partilhar as suas palavras:

A religião... tem no seu âmago algumas ideias a que chamamos


sagradas ou santas ou seja o que for. O que significa é o seguinte:
«Aqui está uma ideia ou uma noção sobre a qual não nos é permitido
falar mal; pura e simplesmente. Porquê? - porque não.» Se alguém vota
num partido com o qual não concordamos, somos livres de discuti-lo
tanto quanto nos apetecer; todos terão algo a dizer, mas ninguém se
sentirá agastado por isso. Se alguém acha que os impostos devem subir
ou descer, somos livres de ter uma opinião. Mas, por outro lado, se
alguém diz que «não devo rodar sequer o interruptor de uma lâmpada
ao sábado», nós dizemos: «Respeito isso.» Por que razão é
perfeitamente legítimo apoiar o Partido Trabalhista ou o Partido
Conservador, republicanos ou democratas, este ou aquele modelo
económico, Macintosh em vez de Windows - mas ter uma opinião sobre
a origem do universo, sobre quem criou o universo... não, porque é
sagrado?... Estamos habituados a não questionar as ideias religiosas,
mas é muito interessante o alarido causado pelo Richard quando o faz!
Todos perdem a cabeça porque não nos é permitido dizer estas coisas.
Mesmo assim, quando olhamos racionalmente para a questão, não há
razão para que estas ideias não possam ser discutidas como quaisquer
outras, só que de alguma forma concordámos entre nós que o não
devem ser.

Aqui está um exemplo notável do respeito pretensioso da nossa sociedade


pela religião e que realmente interessa. A forma mais simples de conseguir
o estatuto de objector de consciência em tempo de guerra é,
indiscutivelmente, alegar motivos religiosos. Pode ser-se um brilhante
filósofo especialista em moral, com uma tese de doutoramento premiada na
qual se expõem os males da guerra e ainda assim passar um mau bocado
com uma comissão que avalia a pretensão de ser objector de consciência.
No entanto, se se disser que um ou ambos os pais são quacres, passa-se com
a maior das facilidades, quer se seja analfabeto ou incapaz de se exprimir
quanto à teoria do pacifismo ou mesmo quanto ao próprio quacrismo.
No extremo oposto do espectro do pacifismo, temos uma relutância
pusilânime em usar nomes religiosos para facções antagónicas. Na Irlanda
do Norte, para referir católicos e protestantes empregam-se respectivamente
os eufemismos «nacionalistas» e «lealistas». A própria palavra «religiões» é
expurgada e substituída por «comunidades», como na expressão «guerra
inter-comunitária». O Iraque, na sequência da invasão anglo-americana de
2003, degenerou numa guerra civil sectária entre sunitas e xiitas. É
claramente um conflito religioso, embora o Independent do dia 20 de Maio
de 2006 o descrevesse na manchete e no editorial como «limpeza étnica».
«Étnica», neste contexto, é também um eufemismo. Aquilo que observamos
no Iraque é uma limpeza religiosa. O uso original da expressão «limpeza
étnica» na ex-Jugoslávia é provavelmente também um eufemismo para
limpeza religiosa, envolvendo sérvios ortodoxos, croatas católicos e bósnios
muçulmanos . 10

Chamei anteriormente a atenção para o privilégio concedido à religião no


debate público sobre ética nos meios de comunicação social e no Governo . 11

Sempre que se gera polémica sobre moral sexual ou reprodutiva, é garantido


que os líderes religiosos de diferentes doutrinas se farão representar de
forma proeminente em comités influentes ou em debates na rádio ou na
televisão. Não estou a insinuar que devamos fazer tudo e mais alguma coisa
para censurar as opiniões dessas pessoas. Mas por que razão vai a nossa
sociedade bater-lhes à porta, como se tivessem alguma competência
comparável, por exemplo, à de um filósofo moral, de um advogado de
direito da família ou de um médico?
Eis outro exemplo da situação privilegiada da religião. A 26 de Fevereiro
de 2006 o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu que uma Igreja do
Novo México estaria isenta de uma lei a que todas as outras pessoas têm de
obedecer, contra o consumo de drogas alucinogénias. Os fiéis membros do
12

Centro Espírita Beneficente União do Vegetal acreditam que só podem


compreender Deus se beberem chá de hoasca, que contém a droga
alucinogénia ilegal dimetiltriptamina. Repare-se que basta que eles
acreditem que a droga melhora a sua capacidade de compreensão. Não têm
de apresentar provas. Pelo contrário, há muitas provas de que a canábis
diminui as náuseas e o desconforto dos doentes de cancro submetidos a
quimioterapia. Ainda assim, e de novo em conformidade com a
Constituição, o Supremo Tribunal decidiu em 2005 que todos os doentes
que usam canábis com fins terapêuticos são passíveis de instauração de uma
acção judicial em instância federal (mesmo na minoria dos estados em que
essa utilização concreta é legal). Como sempre, o trunfo é a religião.
Imagine-se membros de uma sociedade de apreciadores de arte alegando em
tribunal que «acreditam» que precisam de uma droga alucinogénia para
melhor compreenderem quadros impressionistas ou surrealistas. No entanto,
quando uma Igreja reivindica uma necessidade equivalente é apoiada pela
mais alta instância judicial do país. Tal é o poder da religião enquanto
talismã.
Há 17 anos fui um dos 36 escritores e artistas a quem a revista New
Statesman encomendou que escrevêssemos textos em defesa do famoso
autor Salman Rushdie , na altura condenado à morte por ter escrito um
13

romance. Indignado com a «solidariedade» para com a «injúria» e a


«ofensa» manifestada pelos líderes cristãos e até por alguns formadores de
opinião seculares, fiz a seguinte comparação:

Se os defensores do apartheid tivessem dois dedos de testa, teriam


afirmado - sem mentir, pelo que sei - que permitir a mistura de raças é
contra a sua religião. Uma boa parte da oposição sairia respeitosamente
em bicos de pés. E é escusado dizer que esta comparação é injusta, por
o apartheid não ter qualquer justificação racional. O fundamento da fé
religiosa, a sua força e glória residem no facto de não dependerem de
uma justificação racional. Espera-se dos restantes que defendam os seus
preconceitos. Mas peça-se a uma pessoa religiosa que justifique a sua fé
e logo se está a infringir a «liberdade religiosa».

Mal sabia eu que algo muito semelhante iria acontecer no século XXI. O
Los Angeles Times (10 de Abril de 2006) dava conta de que vários grupos
cristãos em diversos campus universitários dos Estados Unidos estavam a
processar as suas universidades por aplicarem regras antidiscriminação que
incluíam a proibição de assédio e maus tratos de homossexuais. Um
exemplo típico ocorreu em 2004 quando James Nixon, um rapaz de 12 anos
do Ohio, lhe viu concedido em tribunal o direito de usar na escola uma T-
shirt com a inscrição «A homossexualidade é pecado, o Islão uma mentira,
o aborto é assassínio. Algumas questões são a preto e branco.» A escola
14

disse-lhe que não envergasse a T-shirt - e os pais do rapaz processaram-na.


Os pais poderiam ter tido alguma esperança de êxito se se tivessem apoiado
na garantia de liberdade de expressão assegurada pela Primeira Emenda.
Mas não o fizeram: na realidade não podiam, uma vez que se considera que
a liberdade de expressão não deve abranger a «expressão de ódio». Mas ao
ódio basta provar que é de carácter religioso para deixar de ser considerado
ódio. Assim, em vez de liberdade de expressão, os advogados de Nixon
recorreram ao direito constitucional à liberdade de religião. O seu processo
vitorioso foi apoiado pelo Alliance Defense Fund do Arizona, organização
que se dedica a «forçar o combate judicial pela liberdade religiosa».
Expressando o seu apoio a uma vaga de processos semelhantes, movidos
por cristãos que procuravam fazer da religião justificação legal para a
discriminação de homossexuais e outros grupos, o reverendo Rick
Scarborough chamou-lhe a luta pelos direitos civis do século XXI: «Os
cristãos terão de adoptar uma posição quanto ao direito a ser cristão.» Uma
15

vez mais, se estas pessoas adoptassem uma posição quanto ao direito à


liberdade de expressão, aí sim, até se poderia concordar, ainda que com
relutância. Mas não é disso que se trata. O direito a ser cristão, neste caso,
parece querer dizer o mesmo que «o direito a meter o nariz na vida privada
dos outros». O processo a favor da discriminação de homossexuais está a
ser montado como um contraprocesso contra a alegada discriminação
religiosa! E a lei parece respeitar isto. Não nos deixam dizer: «Se tentarem
impedir-me de insultar homossexuais estarão a violar a minha liberdade de
preconceito.» Mas já é possível afirmar que «isso viola a minha liberdade
de religião». Quando pensamos nisso, qual é, afinal, a diferença? Uma vez
mais, a religião a tudo se sobrepõe.
Vou terminar o capítulo com um peculiar estudo de caso que ilustra com
eloquência o respeito exagerado que a sociedade tem pela religião, muito
além do normal respeito devido ao que é humano. O caso rebentou em
Fevereiro de 2006 - um episódio caricato que roçou descontroladamente os
extremos da comédia e da tragédia. Em Setembro de 2005, o jornal
dinamarquês Jyllands-Posten publicou 12 caricaturas representando o
profeta Maomé. Durante os três meses que se seguiram, a indignação foi
sistemática e cuidadosamente alimentada em todo o mundo islâmico por um
pequeno grupo de muçulmanos radicados na Dinamarca, encabeçados por
dois imãs a quem tinha sido concedido asilo. No final de 2005, e levados
16

pela perfídia, estes exilados viajaram da Dinamarca para o Egipto na posse


de um dossiê que foi daí copiado e posto a circular por todo o mundo
islâmico incluindo, sobretudo, a Indonésia. O dossiê continha falsidades
sobre alegados maus tratos a muçulmanos na Dinamarca e a tendenciosa
mentira de que o JyllandsPosten era um jornal dirigido pelo Governo.
Continha também as 12 caricaturas, às quais os imãs acrescentaram três
imagens cruciais cuja origem era um mistério, mas que de certeza não
tinham qualquer ligação com a Dinamarca. Ao contrário das primeiras 12,
os três acrescentos eram verdadeiramente ofensivos - ou sê-lo-iam se, como
os zelosos propagandistas alegaram, representassem Maomé. Uma das três,
especialmente perniciosa, não era de todo uma caricatura, mas sim o faxe da
fotografia de um homem com barba e um focinho de porco postiço, preso à
cara com um elástico. Verificou-se posteriormente que se tratava de uma
fotografia da Associated Press, de um francês que tinha participado num
concurso de imitação de grunhidos de porco, numa feira em França. A 17

fotografia não tinha qualquer tipo de ligação com o profeta Maomé, com o
Islão nem com a Dinamarca. Mas os activistas muçulmanos, lançando a
discórdia na sua marcha até ao Cairo, deixaram no ar estas três
insinuações... com resultados previsíveis.
A «injúria» e «ofensa» assim cuidadosamente alimentadas provocaram
uma crise explosiva cinco meses após a primeira publicação das 12
caricaturas. Manifestantes no Paquistão e na Indonésia queimaram
bandeiras dinamarquesas (onde foi que as arranjaram?) e foram feitas
exigências histéricas para que o Governo dinamarquês apresentasse
desculpas (desculpas de quê? Eles não desenharam as caricaturas nem as
publicaram. Os Dinamarqueses vivem simplesmente num país com
liberdade de imprensa, algo que as pessoas de muitos países islâmicos
podem ter dificuldade em compreender.) Jornais da Noruega, da Alemanha,
da França e até dos Estados Unidos (com a gritante excepção da Grã-
Bretanha) reeditaram as caricaturas num gesto de solidariedade para com o
Jyllands-Posten, o que veio deitar ainda mais achas na fogueira.
Embaixadas e consulados foram vandalizados, os produtos dinamarqueses
boicotados, os cidadãos dinamarqueses, e, de um modo geral, os ocidentais,
fisicamente ameaçados; e igrejas cristãs no Paquistão, mesmo sem
quaisquer ligações com a Dinamarca ou a Europa, incendiadas. Nove
pessoas foram mortas quando desordeiros líbios atacaram e incendiaram o
Consulado italiano em Bengasi. Como Germaine Greer escreveu, aquilo de
que estas pessoas realmente mais gostam e que sabem fazer melhor é gerar
pandemónio. 18

Foi oferecida por um imã paquistanês uma recompensa de um milhão de


dólares pela cabeça do «caricaturista dinamarquês» - o que revela que
parecia desconhecer a existência de 12 caricaturistas dinamarqueses
diferentes, tal como muito provavelmente desconhecia que as três imagens
mais ofensivas não tinham de facto surgido na Dinamarca (e, já agora,
donde viria esse milhão?). Na Nigéria, muçulmanos que protestavam contra
as caricaturas dinamarquesas incendiaram várias igrejas cristãs e usaram
machetes para atacar e matar cristãos (nigerianos negros) nas ruas. Um
cristão foi metido dentro de um pneu, regado com gasolina e queimado
vivo. Foram fotografados manifestantes na Grã-Bretanha transportando
faixas onde se lia «chacinai os que insultam o Islão», «abatei os que troçam
do Islão», «Europa vais pagar: a demolição vem a caminho» e «decapitai os
que dizem que o Islão é uma religião violenta». Felizmente os nossos
líderes políticos estavam atentos para logo nos recordarem que o Islão é
uma religião pacífica e misericordiosa.
Na sequência de tudo isto, o jornalista Andrew Mueller entrevistou o
principal muçulmano «moderado» da Grã-Bretanha, Sir Iqbal Sacranie. 19

Pode até ser moderado, julgando pelos actuais padrões islâmicos, mas de
acordo com o relato de Andrew Mueller, ainda mantém o comentário que
fez aquando da condenação à morte de Salman Rushdie pela escrita de um
romance: «A morte é talvez demasiado boa para ele» - um comentário que o
coloca, enquanto muçulmano mais influente da Grã-Bretanha, em desonroso
contraste com o seu corajoso antecessor, o falecido Dr. Zaki Badawi, que
ofereceu asilo a Salman Rushdie na sua própria casa. Sacranie falou a
Mueller da sua preocupação com as caricaturas dinamarquesas. Também
Mueller estava receoso, mas por outra razão: «Preocupa-me que a reacção
desproporcionada e ridícula a alguns desenhos sem piada divulgados num
jornal escandinavo pouco conhecido venha confirmar que... o Islão e o
Ocidente são radicalmente irreconciliáveis.» Por outro lado, Sacranie
elogiou os jornais britânicos por não terem reeditado as caricaturas, ao que
Mueller respondeu com a mesma suspeita da maior parte dos britânicos, ou
seja, que «a moderação dos jornais do país se deve menos à sensibilidade
para com o descontentamento muçulmano do que ao desejo de não ter as
janelas partidas».
Sacranie explicou que «a pessoa do profeta — a paz esteja com ele — é
venerada, no mundo muçulmano, tão profundamente e com um amor e
afeição tais, que não se podem exprimir por palavras. Vai muito além do
amor pelos nossos pais, entes queridos ou filhos. Faz parte da fé. Há
também um preceito islâmico segundo o qual não se representa o Profeta.»
Isto leva a supor, como Mueller fez notar,
que os valores do Islão se sobrepõem aos de qualquer um de nós - que é
o que pressupõe qualquer seguidor do Islão, tal como outro seguidor de
outra qualquer religião acredita que este é o único caminho, verdade e
luz. Se as pessoas querem amar mais um pregador do século VII do que
as suas próprias famílias é lá com elas, mas mais ninguém é obrigado a
levar isso a sério...

Com a excepção de que, se não os levarmos a sério e não lhes prestarmos


o devido respeito, somos fisicamente ameaçados, e numa escala a que
nenhuma outra religião aspirou desde a Idade Média. Não podemos deixar
de nos interrogar sobre a necessidade de tamanha violência, uma vez que,
como Mueller observou, «se alguma verdade existe nas vossas palhaçadas,
os caricaturistas, de qualquer modo, vão para o Inferno - isso já não vos
chega? Entretanto, se vos quereis enfurecer com as afrontas aos
muçulmanos, lede os relatórios da Amnistia Internacional sobre a Síria e a
Arábia Saudita.»
Foram muitas as pessoas que repararam no contraste entre o «agravo»
histérico professado por muçulmanos e a prontidão com que os meios de
comunicação árabes publicaram as caricaturas de estereótipos antijudaicos.
Numa manifestação no Paquistão contra os caricaturistas dinamarqueses, foi
fotografada uma mulher de burca negra que transportava uma faixa onde se
podia ler «Deus abençoe Hitler».
Em resposta a todo este pandemónio frenético, alguns jornais liberais
decentes lamentaram a violência e fizeram o barulho da praxe sobre a
liberdade de expressão. Mas ao mesmo tempo exprimiram «respeito» e
«solidariedade» pelo profundo «agravo» e «ofensa» a que os muçulmanos
tinham sido «sujeitos». Lembre-se que o «agravo» e o «sofrimento» não
significou que qualquer pessoa suportasse violência ou dor física de
qualquer tipo: tudo não passou de algumas manchas de tinta num jornal, do
qual nunca ninguém fora da Dinamarca teria ouvido falar não fora uma bem
premeditada campanha de incitamento à desordem.
Não sou a favor de que se ofenda ou injurie alguém gratuitamente, mas
nesta nossa sociedade que é, em tudo o mais, secular, deixa-me intrigado e
perplexo o privilegiar desproporcionado da religião. Todos os políticos têm
de se habituar a caricaturas desrespeitosas da sua pessoa, e ninguém
provoca distúrbios em sua defesa. O que tem a religião de tão especial para
lhe concedermos um respeito tão singularmente privilegiado? Tal como H.
L. Mencken disse, «temos de respeitar a religião do nosso semelhante, mas
apenas no mesmo sentido em que respeitamos a sua opinião de que tem uma
mulher bonita e filhos inteligentes.»
É à luz dessa inaudita presunção de respeito pela religião, que anuncio a
minha declinação de responsabilidade pelo presente livro. Não me vou
esforçar por ofender, mas também não vou calçar luvas para ser mais
brando com a religião do que seria com qualquer outra coisa.

6 O nosso passatempo durante as aulas era fazê-lo desviar-se das escrituras para as histórias fantásticas
do Fighter Command and the Few. Ele tinha prestado serviço na Royal Air Force, e foi com
familiaridade e algum do afecto que ainda conservo pela Igreja Anglicana (pelo menos em comparação
com a concorrência) que mais tarde li o poema de John Betjeman:
O nosso capelão é um velho piloto dos céus
Cruelmente lhe cortaram agora as asas,
Mas ainda assim o mastro no jardim da reitoria
Aponta para valores mais altos...

7 O documentário televisivo de que a entrevista faz parte foi complementado com a publicação de um
livro (Winston, 2005).

8 Dennett (2006).

9 O discurso integral está transcrito em Adams (2003) sob o título «Is there an artifical God?»

10 Perica (2002). Ver também http://www.historycooperative.org/journals/ahr/108.5/br_151.html.

11 «Dolly and the cloth heads», em Dawkins (2005).

12 http://scotus.ap.org/scotus/04-1084p.zo.pdf.

13 R. Dawkins, «The irrationality of faith”, New Statesman (Londres), 31 de Março de 1989.

14 Columbus Dispatch, 19 de Agosto de 2005.

15 Los Angeles Times, 10 de Abril de 2006.

16 http://gatewaypundit.blogspot.com/2006/02/islamic-society-of-denmark-usedfake.html.

17 http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/4686536.stm; http://www.neandernews.com/?cat=6.

18 Independent, 5 de Fevereiro de 2006.

19 Andrew Mueller, «An argument with Sir Iqbal”, Independent on Sunday, 2 de Abril de 2006, secção
«Sunday Review”, 12-16.
2
A Hipótese Deus
A religião de uma época é o entretenimento literário da época
seguinte.
Ralph Waldo Emerson

O Deus do Antigo Testamento é possivelmente a personagem mais


desagradável de toda a ficção: ciumento e orgulhoso de o ser; um
mesquinho, injusto e implacável fanático do controlo; responsável vingativo
e sanguinário por actos de limpeza étnica; um tiranete misógino,
homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, pestilento,
megalomaníaco, sadomasoquista e caprichosamente malévolo. Aqueles de
nós a quem desde a infância ensinaram os seus modos de ser e agir poderão
tornar-se insensíveis ao horror que eles encerram. Uma pessoa ingénua,
abençoada com a perspectiva da inocência, terá uma percepção mais clara.
Randolph Churchill, filho de Winston Churchill, conseguiu de alguma
maneira permanecer desconhecedor das Escrituras até que Evelyn Waugh e
um outro camarada de armas, numa vã tentativa de manter o jovem
Churchill entretido quando foram colocados juntos durante a guerra,
apostaram que ele não conseguia ler a Bíblia toda em 15 dias: «Infelizmente
não surtiu o resultado que esperávamos. Ele nunca leu nada da Bíblia, e está
terrivelmente entusiasmado; não pára de ler citações em voz alta – “Aposto
que não sabias que isto vinha na Bíblia...” – ou simplesmente dá uma
palmada na própria perna e ri alto, dizendo: “Meu Deus, que Deus tão
merdoso!”» Thomas Jefferson – bem melhor, como leitura – manifestou
20

opinião semelhante quando disse que o Deus de Moisés é um ser de carácter


terrífico – cruel, vingativo, caprichoso e injusto.»
É injusto atacar um alvo tão fácil. A Hipótese Deus não deve ser avaliada,
nem pela sua faceta concreta mais desagradável, Javé, nem pelo insípido
rosto cristão que é o seu oposto, o «doce Jesus, humilde e suave». (Para
dizer a verdade, esta personagem amaricada deve mais aos seus seguidores
vitorianos do que propriamente a Jesus. Existirá algo que possa ser mais
enjoativamente lamechas do que a expressão da Sra. C. F. Alexander,
segundo a qual «como ele deve ser toda a criança cristã / Obediente, suave e
de mente sã»?) Não estou a atacar as qualidades próprias de Javé, Jesus,
Alá, nem de nenhum outro deus concreto, seja ele Baal, Zeus ou Wotan. Em
vez disso, vou definir a Hipótese Deus de uma forma mais defensiva: existe
uma inteligência sobre-humana e sobrenatural que concebeu e criou de um
modo deliberado o universo e tudo o que nele há, incluindo nós. Este livro
vai defender um ponto de vista alternativo: qualquer inteligência criadora,
dotada de complexidade suficiente para conceber o que quer que seja, só
pode passar a existir enquanto produto final de um longo e gradual
processo de evolução. As inteligências criadoras, tendo evoluído, surgem no
universo forçosamente tarde e, por isso, não podem ser responsáveis pela
sua concepção. Deus, na acepção acima definida, é uma auto-ilusão, ou
delusão; uma delusão perniciosa, como mostrarão os próximos capítulos.
Por se basear em tradições locais de revelação privada e não em provas,
não surpreende que a Hipótese Deus surja em muitas versões. Os
historiadores da religião reconhecem uma progressão que vai desde os
primitivos animismos tribais até aos monoteísmos como o Judaísmo e seus
derivados, o Cristianismo e o Islamismo, passando pelos politeísmos,
nomeadamente os dos Gregos, dos Romanos e dos povos escandinavos.

Politeísmo
Não é clara a razão pela qual a passagem do politeísmo para o
monoteísmo deve ser vista como um progresso óbvio no sentido do
aperfeiçoamento. Mas o certo é que é essa a visão que impera – um
pressuposto que levou Ibn Warraq, autor de Why I Am Not a Muslim) a
conjecturar com graça que o monoteísmo está por sua vez condenado a
subtrair mais um deus e a tornar-se ateísmo. Com ligeireza, a Enciclopédia
Católica rejeita simultaneamente, de uma só penada, o politeísmo e o
ateísmo: KO ateísmo dogmático formal é auto-refutável, não tendo nunca
obtido de facto a concordância ponderada de um número considerável de
homens. Tampouco pode o politeísmo, por muito fácil que lhe seja cativar a
imaginação popular, satisfazer a mente do filósofo .»
21

Até há bem pouco tempo, o chauvinismo monoteísta estava inscrito nas


leis de beneficência tanto da Inglaterra como da Escócia, discriminando as
religiões politeístas quanto à concessão de isenção de impostos ao mesmo
tempo que concedia largas benesses às organizações de beneficência
apostadas em promover a religião monoteísta, ou seja, poupando-as ao
rigoroso crivo justamente aplicado às organizações de índole secular.
Acalentei a ambição de convencer um membro da respeitada comunidade
hindu da Grã-Bretanha a avançar com a instauração de uma acção cível de
modo a pôr à prova esta snobe discriminação contra o politeísmo.
Muito melhor seria, na verdade, pôr completamente de lado a promoção
da religião enquanto fundamento para o estatuto de beneficência. As
vantagens que tal traria à sociedade seriam elevadas, especialmente nos
Estados Unidos, onde as quantias isentas de impostos sugadas pelas igrejas
e pelas abonações conferidas a televangelistas já muito bem abonados
atinge níveis que poderiam ser com propriedade descritos como obscenos.
Oral Roberts, que de resto faz jus ao seu nome, disse certa vez aos seus
espectadores que Deus o mataria se estes não lhe dessem oito milhões de
dólares. Por mais inacreditável que pareça, foi bem-sucedido. Livres de
impostos! O próprio Roberts vai de vento em popa, tal como a Oral Roberts
University de Tulsa, no Oklahoma. Os seus edifícios, avaliados em 250
milhões de dólares, foram encomendados directamente por Deus, que usou
as seguintes palavras: «Educai os vossos estudantes para que ouçam a
Minha voz, para que vão aonde a Minha luz é débil, a Minha voz mal se
ouve, o Meu poder de curar é desconhecido, até aos confins da Terra. A
obra deles há-de ultrapassar a vossa, e há nisso para Mim grande
satisfação.»
Pensando bem, o meu litigante hindu imaginário teria provavelmente
puxado da carta «se não consegues vencê-los, junta-te a eles». O seu
politeísmo não é verdadeiramente um politeísmo, mas antes um
monoteísmo disfarçado. Só existe um Deus – e Brahma, o deus criador,
Vixnu, o conservador, Xiva, o destruidor, as deusas Sarasvati, Laxmi e
Parvati (esposas de Brahma, Vixnu e Xiva), Ganesha, o deus-elefante, bem
como centenas de outros deuses, não são mais do que diferentes
manifestações ou encarnações desse Deus único.
Os cristãos deviam começar a interessar-se por essa sofística. Na Idade
Média esbajaram-se rios de tinta – já para não dizer de sangue – com o
«mistério» da Santíssima Trindade e com a supressão de desvios como a
heresia ariana. No século IV d. C., Ário de Alexandria negou que Jesus fosse
consubstancial com Deus (isto é, da mesma substância ou essência).
Perguntar-me-ão por certo: que diabo quererá isso dizer? Substância? Que
«substância»? Que se pretende dizer, exactamente, com «essência»? «Muito
pouco» parece ser a única resposta razoável. No entanto, a controvérsia
dividiu o Cristianismo ao meio durante um século e o imperador
Constantino ordenou que todos os exemplares do livro de Ário fossem
queimados. Dividir o Cristianismo dividindo-se a propósito de ninharias –
foi sempre esse o método da teologia.
Temos, então, um Deus em três partes, ou três em um? A Enciclopédia
Católica esclarece-nos a questão, naquilo que constitui uma autêntica obra-
prima de raciocínio teológico apurado:

Na unidade do Divino existem três Pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito


Santo, sendo todas verdadeiramente distintas umas das outras. Assim
sendo, e nas palavras do credo atanasiano: «O Pai é Deus, o Filho é
Deus, o Espírito Santo é Deus, e no entanto não existem três Deuses,
mas sim um Deus.»

E se isso não fosse suficientemente claro, a mesma enciclopédia cita São


Gregório, o Taumaturgo, teólogo do século III:

Nada existe, portanto, na Trindade que seja criado, nada que seja sujeito
a outrem: nem existe nada que tenha sido acrescentado como se não
tivesse existido anteriormente, mas antes houvesse sido introduzido
mais tarde: por isso, o Pai nunca foi sem o Filho, nem o Filho sem o
Espírito Santo: e esta mesma Santíssima Trindade é imutável e para
sempre inalterável.

Sejam quais forem os milagres que valeram o cognome a São Gregório,


não foram com certeza milagres de pura lucidez. As suas palavras carregam
aquele travo caracteristicamente obscurantista da teologia, que – ao
contrário da ciência ou da maioria dos restantes ramos do conhecimento
humano – nada avançou ao longo destes 18 séculos. Como de tantas outras
vezes, Thomas Jefferson estava certo quando afirmou que «o ridículo é a
única arma que pode ser utilizada contra proposições ininteligíveis. As
ideias devem ser nítidas antes de a razão poder agir com base nelas, e
nenhum homem alguma vez teve uma ideia nítida acerca do que seja a
trindade. Não passa do abracadabra dos saltimbancos que a si próprios se
intitulam sacerdotes de Jesus».
A outra coisa que eu não consigo deixar de comentar é a confiança
sobranceira com que as pessoas religiosas afirmam ínfimos pormenores
acerca dos quais não têm nem poderiam ter a mínima prova. Talvez seja
precisamente o facto de não existir prova que corrobore ou negue as
opiniões teológicas o que instiga a típica hostilidade draconiana
relativamente aos que têm uma opinião ligeiramente diferente,
principalmente no caso específico do trinitarismo.
Na sua crítica ao calvinismo, Jefferson ridicularizou a doutrina de que,
nas suas próprias palavras, «existem três Deuses». Mas é sobretudo o ramo
católico romano do Cristianismo que leva ao extremo o seu recorrente
namoro com o politeísmo. À Santíssima Trindade junta-se Maria, «Rainha
dos Céus», deusa em tudo menos no nome, e seguramente logo atrás do
próprio Deus enquanto destinatário de orações. O panteão é ainda
engordado por um exército de santos cujo poder intercessor os torna, se não
semideuses, pelo menos dignos de serem abordados dentro da área de
especialização de cada um. O Fórum da Comunidade Católica oferece
solicitamente uma lista de 5120 santos mais as respectivas áreas de
22

competência, que incluem dores de barriga, vítimas de maus tratos,


anorexia, traficantes de armas, ferreiros, ossos partidos, técnicos de bombas
e desarranjos intestinais, e isto para nos ficarmos só pela letra B. Além
disso, não nos podemos esquecer dos quatro coros das hostes de anjos,
distribuídos por nove ordens: serafins, querubins, tronos, dominações,
virtudes, potestades, principados, arcanjos (comandantes de todas as
hostes), e os nossos já velhos conhecidos anjos, incluindo esses nossos
amigos mais chegados, os sempre vigilantes anjos-da-guarda. O que me
impressiona na mitologia católica é, em parte, o seu kitsch, mas sobretudo a
ligeireza inconsequente com que estas pessoas vão congeminando
pormenores. Tudo fruto da mais descarada invenção.
O Papa João Paulo II criou mais santos do que os seus antecessores todos
juntos no decorrer dos últimos séculos, tendo uma afinidade especial com a
Virgem Maria. Os seus devaneios politeístas ficaram vincadamente patentes
em 1981, quando, vítima de uma tentativa de assassínio em Roma, atribuiu
à intervenção de Nossa Senhora de Fátima a circunstância de ter
sobrevivido: «Uma mão materna guiou a bala.» Não podemos deixar de
sentir curiosidade em saber porque não terá ela guiado a bala de forma a
nem sequer o atingir. Outros poderão pensar que a equipa de cirurgiões que
o operou durante seis horas merecia pelo menos uma parte dos louros, mas
talvez as suas mãos também tenham sido maternalmente guiadas. O ponto
relevante é que não foi só Nossa Senhora que, na opinião do Papa, guiou a
bala, mas concretamente Nossa Senhora de Fátima. Talvez na altura a
Nossa Senhora de Lurdes, a Nossa Senhora de Guadalupe, a Nossa Senhora
de Medjugorje, a Nossa Senhora de Akita, a Nossa Senhora de Zeitun, a
Nossa Senhora de Garabandal e a Nossa Senhora de Knock estivessem
ocupadas com outras incumbências.
Como é que Gregos, Romanos e Viquingues lidavam com estes enigmas
politeológicos? Seria Vénus apenas mais um nome para Afrodite, ou seriam
elas duas deusas do amor distintas? Seriam Thor e o seu martelo uma
manifestação de Wotan, ou um deus distinto? O que importa isso? A vida é
demasiado curta para nos importarmos com distinções entre diferentes
ficções da nossa imaginação. Uma vez abordado o politeísmo, que
mencionei para me precaver de eventuais acusações de omissão, não vou
falar mais do assunto. Para ser mais breve, referir-me-ei a todas as
divindades, sejam elas politeístas ou monoteístas, simplesmente como
«Deus». Tenho também a consciência de que o Deus abraâmico é (no
mínimo) agressivamente masculino, o que aceitarei também como
convenção no uso que faço dos pronomes. Certos teólogos mais sofisticados
proclamam a assexualidade de Deus, enquanto alguns teólogos e teólogas
feministas procuram emendar as injustiças históricas referindo-se a Deus
como figura feminina. Mas, no fim de contas, qual é a diferença entre uma
mulher inexistente e um homem inexistente? Quer parecer-me que, na
intersecção estonteantemente irreal da teologia com o feminismo, a
existência poderá na verdade ser um atributo com menor evidência do que o
sexo.
Estou ciente de que é possível atacar os críticos da religião por serem
incapazes de reconhecer mérito à fecunda diversidade de tradições e de
pontos de vista ditos religiosos. Obras de cariz antropológico, desde The
Golden Bough, de Sir James Frazer, até In Gods We Trust, de Scott Atran,
passando por Religion Explained, de Pascal Boyer, documentam de forma
fascinante a bizarra fenomenologia da superstição e do ritual. Leiam-se
esses livros e pasme-se com a dimensão da credulidade humana.
Mas não é essa a intenção do presente livro. Eu censuro o
sobrenaturalismo em todas as suas formas, e o modo mais eficaz de
prosseguir será concentrando-me na forma que muito provavelmente é a
mais familiar para o meu leitor – aquela que invade ameaçadoramente todas
as nossas sociedades. A maioria dos meus leitores terá sido educada numa
das três «grandes» religiões monoteístas dos nossos dias (quatro, se
contarmos com o Mormonismo), todas elas com origem no mitológico
patriarca Abraão, pelo que será conveniente ter em mente esta afinidade de
tradições até ao final do livro.
Esta é uma altura tão apropriada como qualquer outra para esvaziar desde
logo uma crítica inevitável ao livro, crítica essa que de outro modo – tão
certo como a noite suceder ao dia – haveria de aparecer numa qualquer
recensão: KO Deus em que Dawkins não acredita é um Deus em que eu
também não acredito. Não acredito num velho de longas barbas brancas que
está no céu.» Esse velho é um factor de diversão, e as barbas que ostenta
são tão irrelevantes quanto compridas. Na verdade, a potencial manobra de
diversão é pior do que a irrelevância. A sua intrínseca idiotice visa desviar a
atenção do facto de que aquilo em que o orador realmente acredita não é
muito menos idiota. Sei que o leitor não acredita num velho barbudo
sentado numa nuvem, por isso não percamos mais tempo com isso. Não vou
atacar nenhuma versão concreta de Deus ou deuses. Vou atacar Deus, todos
os deuses, tudo o que seja sobrenatural, onde e sempre que tenha sido ou
venha a ser inventado.

Monoteísmo
O grande mal indizível no centro da nossa cultura é o monoteísmo. A
partir de um texto bárbaro da Idade do Bronze conhecido como Antigo
Testamento, evoluíram três religiões anti-humanas –— o Judaísmo, o
Cristianismo e o Islamismo. Trata-se de religiões de um deus do céu.
São literalmente patriarcais – Deus é o Pai Todo-Poderoso –, daí o
desprezo pelas mulheres desde há 2000 anos nos países atormentados
por esse deus do céu e pelos seus representantes masculinos na terra.
Gore Vidal

A mais velha das três religiões abraâmicas, e nítido antepassado das


outras duas, é o Judaísmo: originariamente era o culto tribal de um único
Deus ferozmente antipático, doentiamente obcecado por restrições sexuais,
pelo cheiro de carne queimada, pela sua própria superioridade em relação
aos deuses rivais e pela exclusividade da tribo do deserto que elegeu como
sua. Durante a ocupação romana da Palestina, o Cristianismo foi fundado
por Paulo de Tarso enquanto facção do Judaísmo, uma facção menos
implacavelmente monoteísta e também menos fechada que, levantando os
olhos do meio dos Judeus, os erguia para o resto do mundo. Vários séculos
mais tarde, Maomé e os seus seguidores regressaram ao monoteísmo
intransigente da versão original judaica, embora sem a sua vertente
exclusivista. Fundaram, assim, o Islamismo com base num novo livro
sagrado, o Corão ou Quran, ao qual acrescentaram uma poderosa ideologia
de conquista militar para a propagação da fé. Também o Cristianismo se
propagou por meio da espada, brandida primeiro pelas mãos dos Romanos –
depois de o imperador Constantino o ter promovido de culto excêntrico a
religião oficial –, posteriormente pelos cruzados e, mais tarde, pelos
conquistadores espanhóis e outros invasores e colonos europeus, com o
respectivo acompanhamento missionário. Para os meus objectivos
presentes, as três religiões abraâmicas podem ser, de um modo geral,
tratadas como indistintas. Salvo menção em contrário, terei sobretudo em
mente o Cristianismo, mas apenas porque se trata da versão que me é mais
familiar. Para os referidos objectivos, as diferenças têm menos importância
do que as semelhanças. E não visarei minimamente outras religiões, como o
Budismo e o Confucianismo. Na verdade, há razões para afirmar que não se
trata de religiões, mas sim sistemas éticos ou filosofias de vida.
A simples definição da Hipótese Deus com que comecei este capítulo tem
de ser substancialmente descarnada se a quisermos aplicar ao Deus
abraâmico. Ele não só criou o universo, como é também um Deus pessoal
que habita dentro desse universo, ou talvez fora dele (o que quer que isso
signifique), possuindo as qualidades desagradavelmente humanas às quais
já aludi.
Qualidades pessoais, quer sejam simpáticas ou antipáticas, não fazem
parte do deus deísta de Voltaire e de Thomas Paine. Comparado com o
delinquente psicótico do Antigo Testamento, o Deus deísta do iluminismo
do século XVIII é um ser de muito maior grandeza: digno da sua criação
cósmica, altivamente desinteressado dos assuntos humanos, sublimemente
desprendido dos pensamentos e aspirações pessoais de cada um de nós, não
querendo saber das trapalhadas dos nossos pecados nem das nossas
tartamudeadas contrições. O Deus deísta é um físico que veio para acabar
com a Física, é o alfa e o ómega dos matemáticos, a apoteose dos designers;
é um superengenheiro que estabeleceu as leis e as constantes do universo,
que as afinou com refinada precisão e presciência, que fez detonar aquilo a
que hoje daríamos o nome de big bang, e que então se aposentou para dele
não mais se ouvir falar.
Em alturas de fé mais intensa, os deístas padeceram o insulto de não se
distinguirem dos ateus. Em Freelancer: A History of American Secularism,
Susan Jacoby faz uma selecção cuidadosamente dos epítetos lançados sobre
o pobre Thomas Paine: «Judas, réptil, porco, cão raivoso, bêbado, parasita,
arquibesta, bruto, mentiroso e, claro, infiel.» Paine morreu abandonado
(com a honrosa excepção de Jefferson) pelos antigos amigos das lides
políticas, envergonhados das suas opiniões anticristãs. Hoje em dia, a
situação alterou-se de tal modo que o mais provável é os deístas serem
vistos em oposição aos ateus e postos no mesmo saco dos teístas. Afinal,
acreditam numa inteligência suprema que terá criado o universo.

Secularismo, os Pais Fundadores e a religião da


América
É convencional supor que os Pais Fundadores da república norte-
americana eram deístas. Não há dúvida de que muitos deles o eram, embora
já tenha sido afirmado que os mais notáveis de entre eles poderão ter sido
ateus. É certo que aquilo que escreveram sobre religião no seu tempo não
me deixa dúvidas de que, na sua maior parte, eles teriam sido ateus nos
tempos de hoje. Mas quaisquer que fossem as suas opiniões pessoais
relativas à religião naquela época, secularistas é a única coisa que eles
foram colectivamente. É sobre esse tópico que me vou debruçar nesta
secção, começando com uma – talvez surpreendente – citação do senador
Barry Goldwater, uma frase proferida em 1981 e que mostra de forma clara
o denodo com que aquele candidato presidencial e herói do
conservadorismo americano apoiava a tradição secular da fundação da
república:

Não existe posição em que as pessoas sejam tão inamovíveis como no


que toca às suas crenças religiosas. Não há nenhum aliado mais
poderoso a que se possa apelar numa discussão do que Jesus Cristo, ou
Deus, ou Alá, ou o que se queira chamar a esse ser supremo. Mas como
acontece com qualquer arma poderosa, a utilização do nome de Deus
em nome próprio deveria ser feita com moderação. As facções
religiosas em crescimento por todo o país não estão a usar a sua
influência religiosa com sabedoria, antes estão a tentar forçar os
governantes a apoiarem as suas posições a 100 por cento. Se
discordamos destes grupos religiosos em alguma questão moral
concreta, eles queixam-se, fazendo ameaças de perda de dinheiro, de
votos, ou de ambos. Estou sinceramente farto dos pregadores políticos
que, de todos os lados me dizem que se eu, enquanto cidadão, pretender
ser uma pessoa moral, então devo acreditar em A, B, C e D. Mas quem
pensam eles que são? E donde presumem que falam, quando
reivindicam o direito de me ditarem as suas crenças morais? E mais
furioso fico enquanto legislador que tem de suportar as ameaças de
todos os grupos religiosos que julgam que Deus lhes concedeu poder
para controlarem o meu voto sempre que fazem a chamada no Senado.
Hoje dirijo-lhes este aviso: vou enfrentá-los em toda a linha se, em
nome do conservadorismo, tentarem ditar as suas convicções morais a
todos os Americanos.23

As opiniões religiosas dos Pais Fundadores revestem-se, hoje em dia, de


um grande interesse para os propagandistas da direita americana, ansiosos
por nos impingirem a sua versão da História. Contrariamente à sua opinião,
o facto de os Estados Unidos não terem sido fundados como nação cristã foi
desde cedo tornado claro nos termos de um tratado com Tripoli, redigido,
em 1796, durante a presidência de George Washington e assinado por John
Adams, em 1797:
Considerando que o Governo dos Estados Unidos da América não é, em
nenhum sentido, fundado na religião cristã; considerando que não o
move qualquer inimizade contra as leis, religião ou tranquilidade dos
muçulmanos, e considerando que os referidos Estados nunca moveram
qualquer guerra ou acto de hostilidade contra qualquer nação
maometana, é declarado pelas partes que nenhum pretexto resultante de
opiniões religiosas deverá alguma vez ser razão para uma interrupção
da harmonia existente entre os dois países.

As palavras iniciais desta citação causariam alvoroço no seio do poder


actualmente sediado em Washington. Contudo, Ed Buckner demonstrou de
forma convincente que, à época , tais palavras não geraram qualquer tipo
24

de dissenção entre os políticos nem entre o público em geral.


É frequente apontar-se o paradoxo existente na circunstância de os
Estados Unidos, fundados sobre uma base de secularismo, serem hoje o
mais beato dos países da cristandade, enquanto a Inglaterra, com uma Igreja
oficial chefiada pelo monarca constitucional, está entre os países com
menor grau de religiosidade. Estão constantemente a perguntar-me por que
razão isto acontece, mas eu não sei. É possível que a Inglaterra se tenha
fartado de religião após uma aterradora história de violência entre crenças,
com protestantes e católicos a substituírem-se alternadamente na mó de
cima e cada um dos grupos a matar sistematicamente o outro. Outra
hipótese reside no facto de a América ser uma nação de imigrantes. Um
colega chamou-me a atenção para o facto de estes, desenraizados da
estabilidade e do conforto dos parentes que tinham na Europa, poderem
muito bem ter abraçado uma Igreja como uma espécie de substituto da
família em solo estrangeiro. É uma ideia interessante que vale a pena
investigar com maior profundidade. Não há dúvida de que muitos norte-
americanos vêem a sua igreja local como uma importante unidade
identitária, efectivamente dotada de alguns dos atributos do agregado
familiar.
Outra hipótese é que o fanatismo religioso dos Estados Unidos da
América provenha, paradoxalmente, do secularismo da sua Constituição.
Precisamente porque os Estados Unidos da América são, juridicamente, um
país secular, a religião ter-se-á tornado um negócio. Rivalizando entre si, as
Igrejas rivais competem para conseguir fiéis – e não menos pelo gordo
dízimo que estes trazem consigo –, mantendo a rivalidade através de todas
as agressivas técnicas de venda conhecidas do mercado. O que funciona
para os detergentes também funciona para Deus, e o resultado é uma
espécie de mania da religião por parte das classes menos instruídas do
presente. Por oposição, em Inglaterra a religião tornou-se, sob a égide da
Igreja oficial, pouco mais do que um agradável passatempo social,
dificilmente reconhecível como religioso. A tradição inglesa é bem expressa
por Giles Fraser, vigário anglicano e também tutor de Filosofia na
Universidade de Oxford, que escreveu a este propósito no jornal Guardian.
O artigo de Fraser tem por subtítulo «A criação da Igreja Anglicana retirou
Deus da religião, mas existem riscos numa abordagem mais enérgica da fé»:

Houve tempos em que o vigário de aldeia era figura obrigatória das


dramatis personae inglesas. Este afável excêntrico que bebia chá, tinha
os sapatos engraxados e boas maneiras, representava um tipo de religião
que não fazia as pessoas que não eram religiosas sentirem-se
constrangidas. Não perdia as existenciais estribeiras nem encostava
ninguém à parede para lhe perguntar se estava salvo, e muito menos era
capaz de iniciar cruzadas a partir do púlpito ou de colocar bombas à
beira da estrada em nome de um qualquer poder superior. 25

(Notem-se os ecos de «O Nosso Capelão», de Betjeman, que citei no


início do primeiro capítulo.) Fraser prossegue dizendo que «na verdade, o
simpático vigário de aldeia inoculou grandes parcelas de ingleses contra o
Cristianismo». O artigo termina com o autor a lamentar uma tendência mais
recente da Igreja Anglicana no sentido de voltar a levar a religião a sério,
sendo a última frase um aviso: «O que é preocupante é que podemos vir a
libertar o génio do fanatismo religioso inglês da caixinha oficial em que
permaneceu adormecido durante séculos.»
O génio do fanatismo religioso campeia na América actual, de uma forma
que deixaria horrorizados os Pais Fundadores. Quer seja correcto ou não
assumir o paradoxo e culpar a Constituição secular por eles concebida, o
certo é que os Fundadores eram secularistas que acreditavam em manter a
religião afastada da política, o que é suficiente para os colocar
decididamente do lado daqueles que, por exemplo, se opõem à exibição
ostensiva dos Dez Mandamentos em locais públicos propriedade do Estado.
Mas é tentador especular sobre se pelo menos alguns dos Fundadores não
terão ido além do deísmo. Terão eles sido agnósticos, ou mesmo rematados
ateus? A afirmação que se segue, proferida por Jefferson, é indistinguível
daquilo a que, hoje em dia, chamaríamos agnosticismo:

Falar de existências imateriais é o mesmo que falar de nadas. Dizer que


a alma humana, os anjos e deus são imateriais é o mesmo que dizer que
eles são nadas, ou então que não existe deus, nem anjos, nem alma. Não
consigo pensar de outra maneira... sem mergulhar no imenso abismo
dos sonhos e espectros. Bastam-me, e já me ocupam o suficiente, as
coisas que são, para me atormentar ou preocupar com as que podem de
facto ser, mas das quais não tenho provas.

Na biografia Thomas Jefferson: Author of America, Christopher Hitchens


considera provável que Jefferson fosse ateu já no seu tempo, um tempo em
que tal era muito mais difícil:

Quanto a ele ser ou não ateu, devemos guardar alguma reserva nos
nossos juízos, quanto mais não seja por causa da prudência que ele se
viu obrigado a manter ao longo da sua vida política. Mas tal como, já
em 1787, ele próprio escrevera ao sobrinho, Peter Carr, não devemos
sentir medo de perguntar, devido a qualquer tipo de receio das suas
consequências. «Se se concluir que Deus não existe, encontrarás
incentivos à virtude no consolo e no gosto que irás sentir neste mesmo
exercício, bem como no amor que assim suscitarás nos outros.»

Ainda na carta de Jefferson para Peter Carr, considero tocante o seguinte


conselho:

Repele todos os receios de preconceitos servis, sob os quais as mentes


fracas servilmente se agacham. Amarra firme a razão ao seu assento e
submete ao seu tribunal cada facto, cada opinião. Com arrojo, questiona
até a existência de um Deus; porque se existir, ele há-de mais depressa
aprovar a homenagem da razão do que a do medo vendado.
Alguns comentários de Jefferson, como quando observa que «o
Cristianismo é o sistema mais perverso que alguma vez iluminou o ser
humano», são compatíveis com o deísmo, mas também com o ateísmo. O
mesmo acontece com o forte anticlericalismo de James Madison: «Durante
quase 15 séculos, a autoridade oficial do Cristianismo foi posta à prova.
Quais foram os resultados? Por toda a parte, e em maior ou menor grau,
orgulho e indolência no clero, ignorância e servilismo nos leigos; e nuns e
noutros, superstição, preconceito e perseguição.» O mesmo se poderia dizer
de Benjamin Franklin, segundo o qual «os faróis são mais úteis do que as
igrejas». John Adams parece ter sido um deísta fortemente anticlerical (as
medonhas máquinas dos concílios eclesiásticos), tendo proferido algumas
invectivas esplêndidas, especialmente contra o Cristianismo: «Segundo eu
percebo a religião cristã, ela foi e é uma revelação. Mas como foi que
milhões de fábulas, contos e lendas se misturaram com as revelações de
origem judaica e cristã, tornando-a a mais sangrenta religião que alguma
vez existiu?» Ainda noutra carta, desta vez para Jefferson, Adams escreveu:
«Quase estremeço quando penso em aludir ao mais fatal exemplo de causas
de padecimento que a história da humanidade preservou – a Cruz. Veja-se
as calamidades que essa máquina de padecimento causou!»
Quer Jefferson e os seus companheiros fossem teístas, deístas, agnósticos
ou ateus, eram também fervorosos secularistas que acreditavam que as
opiniões religiosas de um presidente, ou a ausência delas, eram
exclusivamente da sua conta. Quaisquer que fossem as suas crenças
religiosas pessoais, todos os Fundadores teriam ficado horrorizados caso
lessem o relato que o jornalista Robert Sherman fez da resposta que George
Bush-pai deu quando lhe perguntou se reconhecia como iguais o patriotismo
e a cidadania dos americanos ateus: «Não, não acho que os ateus devam ser
considerados cidadãos, nem que devam ser considerados patriotas. Esta é
uma só nação, sob a protecção de Deus.» Partindo do princípio de que o
26

relato de Sherman é factual (infelizmente o jornalista não utilizou gravador


e na altura mais nenhum jornal publicou a história), experimente-se
substituir a palavra «ateus» por «judeus», «muçulmanos» ou «negros». Ter-
se-á então a medida do preconceito e da discriminação que os ateus norte-
americanos têm de suportar hoje em dia. «Confissões de uma ateia
solitária», texto de Natalie Angier publicado no jornal New York Times, é
uma triste e comovente descrição dos sentimentos de isolamento de um ateu
na América de hoje . Mas o isolamento dos ateus norte-americanos é uma
27

ilusão, amiúde cultivada pelo preconceito. Nos Estados Unidos da América,


os ateus são em maior número do que a maioria das pessoas faz ideia. Tal
como referi no Prefácio, os ateus americanos são de longe mais numerosos
do que os judeus religiosos, no entanto é notório que o lóbi judaico é um
dos mais tremendamente influentes em Washington. O que poderiam os
ateus norte-americanos alcançar se estivessem devidamente organizados? 28

No seu admirável livro Atheist Universe, David Mills conta uma história
que, caso se tratasse de ficção, por certo consideraríamos uma caricatura
irrealista da intolerância policial. Um desses curandeiros que dizem curar
pela fé, um cristão que dirigia uma «cruzada milagreira», ia à cidade natal
de Mills uma vez por ano. Entre outras coisas, instigava os diabéticos a
deitarem fora a insulina e as pessoas que sofriam de cancro a desistirem da
quimioterapia, incentivando-as, em vez disso, a rezar por um milagre. Num
gesto sensato, Mills decidiu organizar uma manifestação pacífica para
avisar as pessoas. Contudo, cometeu o erro de ir à polícia informar os
agentes da sua intenção e pedir protecção policial para o caso de possíveis
ataques por parte dos apoiantes do curandeiro. O primeiro agente com quem
falou perguntou: «É pá se manifestar a favor ó contra?» (querendo dizer a
favor do curandeiro ou contra ele). Quando Mills respondeu «contra», o
agente disse que ele próprio estava a pensar ir à concentração e que fazia
tenções de cuspir na cara de Mills quando este passasse à sua frente.
Mills decidiu tentar a sua sorte com um segundo agente. Este disse que, se
algum dos apoiantes do curandeiro confrontasse Mills com violência,
prenderia Mills por «tentar interferir na obra de Deus». Mills foi para casa e
tentou telefonar para a esquadra esperando encontrar mais compreensão da
parte de algum agente de patente superior. Finalmente conseguiu ligação
com um sargento, que lhe disse: «Vá prò inferno, amigo. Não espere que a
gente aqui na polícia façamos protecção a um maldito de um ateu. Espero é
que alguém dê cabo de si.» Pelos vistos a gramática – tal como a bondade
humana e o sentido do dever – não era o forte naquela esquadra. Mills
refere que nesse dia falou com sete ou oito agentes da polícia. Nenhum
deles foi prestável e a maioria ameaçou-o de imediato com violência.
Abundam os episódios de idêntico preconceito contra os ateus, mas
Margaret Downey, fundadora da Rede de Apoio Anti-discriminação, guarda
registos sistemáticos destes casos através da Sociedade do Livre
Pensamento da Grande Filadélfia . A sua base de dados de incidentes,
29

arquivados pelas categorias comunidade, escolas, local de trabalho, meios


de comunicação social, família e organismos estatais, inclui exemplos de
intimidação, de perda de emprego, de afastamento por parte da família e até
casos de homicídio . Estas provas documentadas de ódio e incompreensão
30

em relação aos ateus faz com que se torne mais fácil acreditar que de facto é
praticamente impossível um ateu sincero ganhar eleições nos Estados
Unidos da América. Existem 435 membros da Câmara dos Representantes e
100 membros do Senado. Supondo que a maioria destas 535 pessoas
constituem uma amostra reveladora do conjunto da população, é
absolutamente inevitável, do ponto de vista estatístico, que um número
considerável seja ateu. Devem ter mentido ou ocultado os seus verdadeiros
sentimentos, para poderem ser eleitos. Dado o eleitorado que tinham de
convencer, quem pode culpá-los? É universalmente reconhecido que uma
admissão de ateísmo seria um suicídio político imediato para qualquer
candidato presidencial.
Estes factos respeitantes ao actual ambiente político vivido nos Estados
Unidos e aquilo que eles implicam teriam horrorizado Jefferson,
Washington, Madison, Adams e todos os seus amigos. Quer fossem ateus,
agnósticos, deístas ou cristãos, ter-se-iam encolhido de pavor perante os
teocratas da cidade de Washington deste início do século XXI. Pelo
contrário, ter-se-iam sentido próximos dos fundadores secularistas da Índia
pós-colonial, especialmente do religioso Gandhi («sou hindu, sou
muçulmano, sou judeu, sou cristão, sou budista!») e do ateu Nehru:

O espectáculo que é aquilo a que se chama religião, ou pelo menos


religião organizada, na Índia e em qualquer outra parte, encheu-me de
horror e foram frequentes as vezes em que a condenei e desejei varrê-la
por completo. Quase sempre me pareceu simbolizar fé e um
reaccionarismo cegos, dogma e intolerância, superstição, exploração e a
manutenção de interesses instalados.

Por trás da definição que Nehru dá da Índia secular, o sonho de Gandhi


(assim tivesse ele sido realizado, em vez da divisão do país no meio de um
banho de sangue entre diferentes crenças), quase se pode entrever a
presença fantasmática do próprio Jefferson:
Fala-se de uma Índia secular... Pessoas há que julgam que isso é o
antónimo da religião. É evidente que tal não está correcto. O que
significa é que se trata de um Estado que honra todas as crenças por
igual, dando-lhes iguais oportunidades; a Índia possui uma longa
história de tolerância religiosa... Num país como este, com muitas
crenças e religiões, não é possível edificar um nacionalismo verdadeiro
a não ser com base na secularidade .31

O Deus deísta, frequentemente associado aos Pais Fundadores, é sem


dúvida uma melhoria em relação ao monstro da Bíblia. Infelizmente, é
pouco maior a probabilidade de que ele exista ou alguma vez tenha existido.
A Hipótese Deus é desnecessária em qualquer das suas formas e está 32

também muito perto de ser posta de parte pela lei da probabilidade. Voltarei
a esta questão no capítulo quarto, depois de, no capítulo terceiro, tratar as
alegadas provas da existência de Deus. Entretanto deter-me-ei sobre o
agnosticismo e a noção errónea de que a existência ou não existência de
Deus é uma questão intocável, para sempre fora do alcance da ciência.

A pobreza do agnosticismo
O robusto cristão musculado que arengava do púlpito da capela da minha
velha escola permitia-se uma certa consideração furtiva pelos ateus. Pelo
menos, tinham a coragem de assumir as suas transviadas convicções. O que
este pregador não era capaz de suportar eram os agnósticos: uns papa-
açordas tem-te-não-caias, lamechas, moles e enfezados. Em parte até tinha
razão, mas por um motivo totalmente diverso. Dentro da mesma linha, e
segundo Quentin de la Bédoyère, o historiador católico Hugh Ross
Williamson «respeitava tanto o crente religioso empenhado quanto o ateu
empenhado. O seu desprezo estava reservado às mediocridades insípidas e
invertebradas que pelo meio adejavam». 33

Não há nada de mal em ser-se agnóstico nos casos em que faltam provas
de um ou de outro lado. É a posição sensata. Carl Sagan manifestou orgulho
em ser agnóstico quando lhe perguntaram se existia vida em qualquer outra
parte do universo. Como se recusasse a dar uma resposta vinculativa, o seu
interlocutor insistiu em que revelasse o seu «sentir visceral», ao que Sagan
respondeu de forma lapidar: «Mas eu tento não pensar com as vísceras. A
sério, não faz mal conter os nossos juízos até haver provas .» A questão da
34

vida extraterrestre está em aberto. É possível construir bons argumentos em


ambos os sentidos, e faltam-nos provas para ir além de fazer pender um
pouco as probabilidades mais para este ou para aquele lado. Um certo tipo
de agnosticismo constitui uma postura apropriada em muitas questões
científicas, como, por exemplo, o que terá causado a extinção do Pérmico,
período em que ocorreu a maior extinção em massa da história dos fósseis.
Pode ter sido o choque de um meteorito como aquele que – com maior
probabilidade, tendo em conta as provas hoje disponíveis –, causaria a
extinção dos dinossauros. Mas também pode ter sido qualquer uma de
outras causas possíveis, ou então uma combinação de várias. O
agnosticismo relativamente às causas destas duas extinções em massa é
razoável. E então quanto à questão de Deus? Também devemos ser
agnósticos em relação a ele? São muitos aqueles que decididamente
disseram que sim, muitas vezes com aquele excesso de protestos que parece
trair a falta de convicção. Será que estão certos?
Vou começar por fazer a distinção entre dois tipos de agnosticismo. O
ATP, ou agnosticismo temporário na prática, consiste na verdadeira
indecisão, numa situação em que existe realmente uma resposta definitiva,
seja num ou noutro sentido, mas até ao momento faltam provas para
conseguir alcançá-la (ou não entendemos as provas, ou não temos tempo
para as interpretar, etc.). O ATP seria uma posição razoável quanto à
extinção do Pérmico. Existe uma verdade algures e esperamos vir um dia a
conhecê-la, embora de momento tal não aconteça.
Mas existe também um tipo incontornável de indecisão, a que chamarei
APP (agnosticismo permanente por princípio). O facto de a sigla formar, em
inglês, uma palavra utilizada pelo já referido pregador da minha velha
escola é (quase) acidental . O estilo de agnosticismo APP é adequado para
35

questões que nunca poderão obter resposta, independentemente da


quantidade de provas acumuladas, porque a própria ideia de prova não é, aí,
aplicável. A questão coloca-se a um nível diferente, ou numa diferente
dimensão, para além das zonas até onde as provas conseguem alcançar. Um
exemplo pode ser aquele velho problema filosófico que questiona se alguém
vê o mesmo vermelho que eu. Talvez o vermelho que esse alguém vê seja o
meu verde, ou algo completamente diferente de qualquer cor que eu possa
imaginar. Os filósofos referem esta questão como sendo uma daquelas que
nunca poderão obter resposta, independentemente das novas provas que
possam, algum dia, estar disponíveis. E alguns cientistas, bem como outros
intelectuais, estão convencidos – precipitadamente, quanto a mim – que a
questão da existência de Deus pertence à para sempre inacessível categoria
APP. Partindo daqui, como veremos, deduzem frequentemente, embora sem
qualquer lógica, que a hipótese da existência de Deus, bem como a hipótese
da sua não existência, têm precisamente a mesma probabilidade de estar
correctas. O ponto de vista que eu defenderei é muito diferente: o
agnosticismo relativo à existência de Deus pertence sem dúvida à categoria
temporária, que designei por ATP. Ou existe, ou não existe. Trata-se de uma
questão científica; talvez possamos um dia conhecer a resposta e, entretanto,
podemos pronunciar-nos com alguma solidez acerca do grau de
probabilidade.
Existem na história das ideias exemplos de respostas a questões
anteriormente consideradas para sempre fora do alcance da ciência. Em
1835, o célebre filósofo francês Auguste Comte escreveu o seguinte acerca
das estrelas: «Nunca seremos capazes de lhes estudar a composição
química, nem a estrutura mineralógica, seja por que método for.» Contudo,
mesmo antes de Comte ter escrito estas palavras, já Fraunhofer começara a
usar o seu espectroscópio para analisar a composição química do Sol. Hoje
em dia os espectrocopistas baralham diariamente o agnosticismo de Comte
com as suas análises da exacta composição química de estrelas situadas a
enormes distâncias . Qualquer que seja o exacto estatuto do agnosticismo
36

astronómico de Comte, esta história exemplar sugere, pelo menos, que


devemos pensar duas vezes antes de proclamar com excessiva estridência a
verdade eterna do agnosticismo. Todavia, quando se trata de Deus, muitos
filósofos e cientistas comprazem-se a fazê-lo, começando pelo próprio
inventor da palavra, T. H. Huxley.37

Respondendo a um ataque pessoal suscitado pela palavra, Huxley


explicou como a tinha cunhado. O director do King’s College de Londres, o
reverendo Wace, havia manifestado desprezo pelo «agnosticismo cobarde»
de Huxley:

Ele pode preferir chamar-se agnóstico, mas o seu verdadeiro nome é


mais antigo – ele é um infiel, isto é, um descrente. Talvez a palavra
infiel tenha um significado desagradável. E é talvez justo que assim
seja. É, e deverá ser, coisa bem desagradável um homem ter de dizer
com clareza que não acredita em Jesus Cristo.

Huxley não era homem para deixar este género de provocação passar-lhe
ao lado, e a resposta que deu, em 1889, foi tão violentamente mordaz como
seria de esperar (ainda que sempre pautada por uma escrupulosa polidez: tal
como o buldogue de Darwin, os seus dentes eram aguçados pela ironia da
urbanidade vitoriana). Por fim, tendo dado ao reverendo Wace o devido
troco e depois de lhe fazer o enterro, Huxley voltou à palavra «agnóstico»
para explicar como chegou a ela. Outros, observa o autor,

estavam absolutamente seguros de ter alcançado uma certa «gnose» –


tinham, de forma mais ou menos bem- sucedida, resolvido o problema
da existência; enquanto eu estava absolutamente seguro de não o ter
feito, tendo a firme convicção de que o problema não tinha resolução. E
com Hume e Kant do meu lado, não podia considerar-me presumido
por me ater a tal opinião... Então reflecti e inventei o que julguei ser a
designação adequada, «agnóstico».

Mais à frente no seu discurso, Huxley passa a explicar que os agnósticos


não têm um credo, nem sequer pela negativa.

De facto, o agnosticismo não é um credo, mas sim um método cuja


essência reside na rigorosa aplicação de um único princípio... Esse
princípio pode ser expresso de forma positiva: em questões de intelecto,
segue a tua razão tão longe quanto ela te levar, sem atender a
considerações de qualquer outra ordem. E de forma negativa: em
questões de intelecto, não pretendas tomar por certas as conclusões que
não estão demonstradas ou não sejam demonstráveis. É isso que eu
entendo ser a fé agnóstica, e se um homem a mantiver íntegra e
inviolada não sentirá vergonha de olhar o universo de frente, seja o que
for que o futuro lhe reserve.

Para um cientista estas são palavras nobres e não é com leviandade que se
critica T. H. Huxley. Mas Huxley, de tão concentrado na impossibilidade
absoluta de provar ou refutar Deus, parece ter descurado a nuance da
probabilidade. O facto de não podermos provar ou refutar a existência de
determinada coisa não coloca a existência e a não existência em pé de
igualdade. Acho que Huxley não discordaria e desconfio de que, apesar de
transmitir a impressão contrária, o que ele faz é uma espécie de
contorcionismo de raciocínio, de maneira a fazer uma cedência num ponto
para, de seguida, poder provar outro. Todos nós já fizemos isso, numa altura
ou noutra.
Ao contrário de Huxley, proponho que a existência de Deus é uma
hipótese científica como outra qualquer. Mesmo sendo difícil testá-la na
prática, cabe naquele agnosticismo temporário, ou ATP, juntamente com as
polémicas acerca da extinção do Pérmico e do Cretáceo. A existência ou
não existência de Deus é um facto científico respeitante ao universo, que
pode ser descoberto em teoria, se não na prática. Se existisse e resolvesse
revelá-lo, o próprio Deus podia pôr fim à discussão de forma ruidosa e
inequívoca, a seu favor. E mesmo que a existência ou a não existência de
Deus nunca venham a ser provadas ou refutadas com firme certeza, as
provas e a argumentação disponíveis podem produzir um cálculo de
probabilidade muito além dos 50 por cento.
Vamos então levar a sério a ideia de um amplo espectro de probabilidades
e dispor ao longo deste, entre dois extremos opostos de certeza, os juízos
acerca da existência de Deus. O espectro é contínuo, mas pode ser
representado pelos seguintes sete marcos.

1. Teísta convicto, 100 por cento de probabilidade da existência de


Deus. Nas palavras de C. G. Jung, «eu não acredito, eu sei».

2. Grande probabilidade, mas aquém dos 100 por cento. Teísta de


facto. «Não posso ter a certeza, mas acredito firmemente em Deus
e vivo a minha vida no pressuposto de que ele existe.»

3. Acima dos 50 por cento, mas não muito elevada. Tecnicamente


agnóstico, mas a tender para o teísmo. «Estou muito indeciso, mas
inclinado a acreditar em Deus.»

4. Exactamente 50 por cento. Agnóstico completamente imparcial.


«A existência e a não existência de Deus são exactamente
equiprováveis.»

5. Abaixo dos 50 por cento, mas não muito. Tecnicamente


agnóstico, mas a tender para o ateísmo. «Não sei se Deus existe,
mas inclino-me para o cepticismo.»

6. Probabilidade muito baixa, mas acima de zero. Ateu de facto.


«Não tenho a certeza, mas acho muito improvável Deus existir e
vivo a minha vida no pressuposto de que não existe.»

7. Ateu convicto. «Sei que Deus não existe, com a mesma convicção
com que Jung “sabe” que existe.»

Ficaria surpreendido se se me deparassem pessoas da categoria sete, mas


incluo-a para haver simetria com a categoria um, que abrange muita gente.
É da natureza da fé que uma pessoa seja capaz de, tal como Jung, abraçar
uma crença sem ter uma razão adequada para o fazer (Jung também
acreditava que certos livros específicos explodiam espontaneamente nas
suas prateleiras com um ruído sonoro). O ateu não tem fé; e a razão, por si
só, não poderá impeli-lo à convicção, total e terminante, de que algo não
existe. Daí que a categoria sete seja, na prática, mais vazia do que a do seu
contraponto, a categoria um, que conta com muitos e devotos partidários.
Eu próprio incluo-me na categoria seis, mas a tender para a sete – ou seja,
apenas sou agnóstico na medida em que sou agnóstico quanto a haver fadas
ao fundo do jardim.
O espectro de probabilidades funciona bem para a categoria ATP (o
agnosticismo temporário na prática). À primeira vista parecerá tentador
colocar a categoria APP (agnosticismo permanente por princípio) a meio do
espectro, conferindo à existência de Deus uma probabilidade de 50 por
cento, mas tal não é correcto. Os agnósticos APP asseveram que é
impossível pronunciarmo-nos por qualquer dos lados quanto à questão da
existência ou não existência de Deus. Para eles a questão, em princípio, não
tem resposta, pelo que deverão recusar-se terminantemente a situar-se seja
em que ponto for do espectro de probabilidades. O facto de eu não poder
saber se o vermelho de outrem é o meu verde não significa que a
probabilidade seja de 50 por cento. A proposição posta em cima da mesa é
demasiado desprovida de sentido para que nos dignemos atribuir-lhe um
grau de probabilidade. Contudo, é um erro comum, e que voltaremos a
encontrar adiante, passar da premissa de que a questão da existência de
Deus não tem, em princípio, resposta para a conclusão de que a sua
existência e não existência são equiprováveis.
Outra maneira de expressar esse erro é em termos do ónus da prova, e é
sob essa forma que ele é saborosamente demonstrado pela parábola do bule
celeste, de Bertand Russell.
38

Muita gente ortodoxa fala como se coubesse aos cépticos refutar os


dogmas recebidos, e não aos dogmáticos prová-los. É claro que isto é
um erro. Se eu propusesse que entre a Terra e Marte existe um bule de
porcelana que gira à volta do Sol descrevendo uma órbita elíptica,
ninguém poderia refutar a minha asserção, desde que eu tivesse o
cuidado de acrescentar que o bule é demasiado pequeno para se poder
avistar mesmo com os nossos telescópios mais poderosos. Mas se eu
acrescentasse que, uma vez que a minha asserção não pode ser refutada,
é intolerável presunção da parte da razão humana duvidar dela, logo se
diria que era disparate o que eu propunha. Se, no entanto, a existência
desse bule fosse afirmada em livros antigos, ensinada todos os
domingos como se se tratasse da santa verdade e inculcada nas mentes
das crianças desde os bancos da escola, a hesitação em acreditar na sua
existência tornar-se-ia um sinal de excentricidade e granjearia ao
céptico direito às atenções do psiquiatra numa época esclarecida, ou às
do inquisidor numa época mais recuada.

Não perderemos tempo a dizer tal, porque tanto quanto sei, ninguém
adora bules; mas, se fôssemos instados a pronunciar-nos, não hesitaríamos
39

em declarar a nossa forte crença de que não existe, decididamente, nenhum


bule em órbita. Ainda assim, em rigor deveríamos ser todos agnósticos do
bule: não podemos provar com certeza que não existe nenhum bule
celestial. Na prática, afastamo-nos do agnosticismo do bule, em direcção a
um a-bulismo.
Um amigo meu, que foi educado como judeu e ainda guarda o sabat e
outros costumes judaicos por lealdade à tradição, descreve-se como um
«agnóstico da fada dos dentes». Não considera Deus nem mais nem menos
provável do que a fada dos dentes. Não se pode refutar nenhuma das
hipóteses, e ambas são igualmente improváveis. Ele é um a-teísta
exactamente na mesma vasta medida em que é a-fadaísta. E agnóstico em
relação a ambos, na mesma escassa medida.
É evidente que o bule de Russell simboliza um número infinito de coisas
cuja existência, sendo concebível, não pode ser refutada. O grande
advogado americano Clarence Darrow afirmou: «Não acredito em Deus
como não acredito nas historinhas da Mãe Ganso.» O jornalista Andrew
Mueller é da opinião de que vincularmo-nos a uma religião concreta «não é
mais nem menos estranho do que optar por acreditar que o mundo tem a
forma de um losango e que é transportado através do cosmos nas tenazes de
duas enormes lagostas verdes chamadas Esmerelda e Keith». Figura dilecta
40

da filosofia é o invisível, intangível e inaudível unicórnio, cuja refutação é


tentada anualmente pelas crianças no Camp Quest. Actualmente, uma
41

divindade popular na Internet – e tão impossível de refutar como Javé ou


outra qualquer – é o Monstro do Esparguete Voador , por cujos 42

macarrónicos apêndices muitos afiançam ter sido tocados . Apraz-me ver


43

que o Evangelho do Monstro do Esparguete Voador foi agora publicado em


livro, entre grandes aplausos. Não o li, mas quem precisa de ler um
44

evangelho quando se sabe que é verdade? A propósito, tinha de acontecer –


já se deu um Grande Cisma, de que resultou a Igreja Reformada do Monstro
do Esparguete Voador. 45

A minha intenção ao aduzir todos estes exemplos algo excêntricos está


em que eles são insusceptíveis de refutação e, no entanto, ninguém
considera que a hipótese da sua existência esteja em pé de igualdade com a
da não existência. O ponto fundamental, para Russell, é que o ónus da prova
pertence aos crentes, não aos descrentes. O ponto a que eu quero chegar está
relacionado com este e traduz-se em dizer que as probabilidades a favor do
bule (monstro do esparguete / Esmerelda e Keith / unicórnio, etc.) não são
iguais às probabilidades em contrário.
Não há nenhuma pessoa sensata que considere que a circunstância de os
bules em órbita e de as fadas dos dentes serem insusceptíveis de refutação é
o tipo de facto capaz de pôr ponto final a uma discussão interessante.
Nenhum de nós se sente obrigado a refutar os milhões de coisas que uma
imaginação fértil ou brincalhona possa inventar. Quando me perguntam se
sou ateu, descobri que uma estratégia divertida é fazer notar ao
entrevistador que ele também é ateu no que concerne a Zeus, Apolo, Ámon,
Rá, Mitra, Baal, Thor, Wotan, o Bezerro de Ouro e o Monstro do
Esparguete Voador. Eu limito-me a acrescentar um deus.
Todos nós nos sentimos no direito de exprimir um cepticismo que pode ir
até ao extremo da total descrença – menos no caso dos unicórnios, das fadas
dos dentes e dos deuses da Grécia, Roma, Egipto e dos Viquingues, visto
que aí não precisamos (actualmente) de nos preocupar. Contudo, no caso do
Deus abraâmico já precisamos de nos preocupar, porque uma percentagem
considerável das pessoas com quem partilhamos o planeta acredita
ardentemente na sua existência. O bule de Russell demonstra que a
ubiquidade da crença em Deus, comparada com a crença em bules celestes,
não transfere o ónus da prova no plano da lógica, se bem que pareça fazê-lo
no plano do pragmatismo político. Que não se pode provar a não existência
de Deus é algo que é aceite e banal, quanto mais não seja no sentido em que
não podemos nunca provar, de forma absoluta, a não existência seja do que
for. O que importa não é se Deus pode ser refutado (não pode), mas se a sua
existência é provável. Essa é outra questão. Certas coisas insusceptíveis de
refutação são consideradas, e muito sensatamente, bastante menos prováveis
do que outras. Não há nenhuma razão para considerar que Deus deve ser
poupado a uma ponderação no espectro das probabilidades. E é claro que
não há razão para supor que, só porque Deus não pode ser provado nem
refutado, a sua probabilidade de existir é de 50 por cento. Muito pelo
contrário, como teremos oportunidade de ver.

NOMA
Tal como Huxley faz acrobacias com a lógica para simular que acata o
agnosticismo completamente imparcial, no exacto centro do meu espectro
de sete fases, os teístas, vindos da direcção oposta, fazem o mesmo, e por
uma razão equivalente. O teólogo Alister McGrath faz disso o ponto central
do livro Dawkins’ God: Genes, Memes and the Origin of Life. Na verdade,
após passar em revista, de forma admiravelmente equilibrada, as minhas
obras científicas, parece ser esse o único ponto que se lhe oferece rebater: a
ideia inegável, mas ignominiosamente débil, da impossibilidade de refutar a
existência de Deus. Página após página, à medida que ia lendo McGrath dei
comigo a rabiscar a palavra «bule» nas margens do livro. Invocando de
novo T. H. Huxley, McGrath escreve: «Farto dos teístas e dos ateus que
proferem afirmações irremediavelmente dogmáticas com base na
inadequação da evidência empírica, Huxley declarou que a questão de Deus
não podia ser resolvida com base no método científico.»
McGrath prossegue com uma citação de Stephen Jay Gould que vai num
sentido semelhante: «Dizendo-o em nome de todos os meus colegas e pela
enésima milionésima vez (desde tertúlias estudantis a dissertações eruditas):
a ciência não pode, pura e simplesmente (usando os seus métodos legítimos)
ajuizar da questão da possível superintendência da natureza por parte de
Deus. Nós não a afirmamos nem negamos, simplesmente não podemos,
enquanto cientistas, tecer sobre ela qualquer comentário.» Apesar do tom
confiante e quase fanfarrão da asserção de Gould, qual é efectivamente a
justificação para ela? Porque não devemos, enquanto cientistas, tecer
comentários sobre Deus? E por que razão é que o bule de Russell ou o
Monstro do Esparguete Voador não são igualmente imunes ao cepticismo
científico? Como argumentarei de seguida, um universo com um
superintendente criativo seria um tipo de universo muito diferente de um
outro sem esse mesmo superintendente. Porque não é isso uma questão
científica?
Num dos seus livros menos admirados, Rocks of Ages, Gould levou a
extremos inauditos essa arte do raciocínio acrobático. Foi nesta obra que ele
inventou o acrónimo NOMA para a expressão «magistérios não
sobrepostos»:46

A rede ou magistério da ciência abrange o domínio empírico: de que é


feito o universo (facto) e porque funciona desta maneira (teoria). O
magistério da religião estende-se a questões que têm a ver com o
sentido último e o valor moral supremo. Estes dois magistérios não se
sobrepõem nem abarcam a totalidade do esforço de perquisição (veja-
se, por exemplo, o magistério da arte e do sentido da beleza). Para
referir um velho cliché, a ciência fica com o tempo das pedras, a
religião com a pedra dos tempos; a ciência estuda como vão os céus,
como se vai para o céu é o que estuda a religião.

Tudo isto soa muitíssimo bem – até ao momento em que se pára para
pensar. Quais são essas questões últimas na presença das quais a religião é
uma ilustre convidada e a ciência deve retirar-se discretamente?
Martin Rees, notável astrónomo de Cambridge que já mencionei, inicia o
livro O Nosso Habitat Cósmico colocando duas perguntas candidatas a
questões últimas e facultando uma resposta à medida do NOMA. «O
mistério maior de todos é por que razão existe algo. O que confere o sopro
da vida às equações e as actualizou num cosmos real? Contudo, tais
questões vão para lá da ciência: são a área dos filósofos e teólogos.» Eu
diria antes que, se de facto essas questões estão para lá da ciência, então
quase de certeza que também estão para lá da área dos teólogos (duvido de
que os filósofos agradeçam a Martin Rees tê-los posto no mesmo saco dos
teólogos). Sinto-me tentado a ir mais além e a perguntar em que sentido se
poderá dizer que estes têm, efectivamente, uma área. Ainda me divirto ao
recordar certo comentário de um antigo director do meu colégio, em
Oxford, suscitado pela candidatura de um jovem teólogo a uma bolsa de
investigação para efeito de uma tese de doutoramento em teologia cristã:
«Tenho sérias dúvidas quanto a isso ser sequer um tema.»
Que conhecimentos especializados podem os teólogos trazer às profundas
questões cosmológicas que não possam ser trazidas pelos cientistas? Noutro
livro, contei o que disse um astrónomo de Oxford quando lhe coloquei uma
dessas questões profundas: «Ah, isso leva-nos para além do domínio da
ciência. É aqui que tenho de passar o testemunho ao nosso bom amigo
capelão.» Na altura, não tive a presença de espírito suficiente para dar a
resposta que mais tarde registei: «Mas porquê o capelão? Porque não o
jardineiro ou o cozinheiro?» Por que motivo se acanham tão
respeitosamente os cientistas perante as ambições dos teólogos, em questões
às quais estes não estão seguramente mais aptos a responder do que os
próprios cientistas?
É um cliché gasto (e, ao contrário de muitos clichés, nem sequer
verdadeiro) dizer-se que a ciência se preocupa com o como, mas a teologia
está equipada para responder aos porquês. O que diabo é perguntar o
porquê? Nem todas as frases em que entra a interrogativa «porquê»
constituem perguntas legítimas. Porque são ocos os unicórnios? Certas
perguntas simplesmente não merecem resposta. De que cor é a abstracção?
A que cheira a esperança? O facto de uma pergunta poder ser exprimida
numa frase gramaticalmente correcta não lhe confere significado nem o
direito a uma atenção séria da nossa parte. E mesmo que a pergunta seja
real, o facto de a ciência não lhe poder responder não implica que a religião
possa.
Talvez existam algumas perguntas genuinamente profundas e
significativas que permanecerão para sempre fora do alcance da ciência.
Talvez a teoria quântica esteja já no limiar do insondável. Mas se a ciência
não consegue responder a uma dessas questões últimas, o que faz alguém
pensar que a religião o consegue? Desconfio de que nem o astrónomo de
Cambridge nem o de Oxford acreditassem verdadeiramente que os teólogos
possuem um qualquer tipo de conhecimento especializado que os habilita a
responder a perguntas demasiado profundas para a ciência. Desconfio até de
que ambos estavam a fazer o tal esforço acrobático com as palavras, para
serem educados: os teólogos não dizem nada que preste acerca de mais
coisa alguma. Atiremos-lhes uma migalha e deixemo-los preocupar-se com
algumas questões às quais ninguém consegue – e talvez jamais conseguirá –
responder. Ao contrário dos meus amigos astrónomos, acho que nem uma
migalha lhes devemos atirar. Ainda estou para ver uma boa razão para
sequer se considerar a teologia (contrariamente à história bíblica, à
literatura, etc.) um tema.
Da mesma forma, podemos todos concordar que o direito da ciência a
aconselhar-nos em questões de valores morais é, no mínimo, problemático.
Mas será que Gould quer mesmo ceder à religião o direito de nos dizer o
que é bom e o que é mau? O facto de não ter mais nada com que contribuir
para a sabedoria humana não é razão para conferir à religião carta branca
para que nos diga o que fazer. Afinal de contas, qual religião? Aquela em
que, por acaso, fomos educados? Nesse caso, para que capítulo de que livro
da Bíblia nos devemos voltar – visto que estão longe de ser unânimes, e
alguns deles são execrandos sejam quais forem os padrões de razoabilidade
por que os apreciemos. Quantos literalistas terão lido o suficiente da Bíblia
para saberem que a pena de morte é aí prescrita para casos de adultério, por
se apanhar lenha durante o sabat e por refilar com os pais? Se rejeitarmos o
Deuteronómio e o Levítico (como fazem todos os leitores modernos
esclarecidos), por que critérios decidimos então quais dos valores morais da
religião devemos aceitar? Ou será que temos de procurar por todo o mundo,
à cata de uma religião cujos ensinamentos morais nos convenham? Se assim
é, devemos perguntar de novo: com que critério devemos escolher? E se
possuímos critérios independentes para escolher entre as várias moralidades
religiosas, porque não excluir o intermediário e irmos direitos à escolha
moral sem a religião? Voltarei a estas questões no capítulo sétimo.
Simplesmente não acredito que Gould pudesse ter querido dizer muito
daquilo que escreveu em Rocks of Ages. Todos nós já nos prestámos a um
certo contorcionismo lógico para sermos amáveis com um adversário
imerecedor mas poderoso, e só posso pensar que foi isso o que Gould ali
fez. É concebível que ele realmente quisesse afirmar, como incisiva e
equivocamente o fez, que a ciência não tem absolutamente nada a dizer
acerca da questão da existência de Deus: «Nós não a afirmamos nem
negamos, simplesmente não podemos, enquanto cientistas, tecer sobre ela
qualquer comentário.» Isto soa a agnosticismo permanente e irrevogável, ou
seja, a APP declarado, e acarreta como consequência que a ciência nem
sequer pode fazer os seus juízos de probabilidades acerca da questão. Esta
falácia espantosamente difundida – muitos repetem-na como se fosse uma
mantra, mas desconfio de que poucos terão reflectido a sério sobre ela –
encarna aquilo a que chamo «a pobreza do agnosticismo». A propósito,
Gould não era um agnóstico imparcial, mas uma pessoa com uma forte
inclinação para o ateísmo de facto. Com que base terá ele feito esse juízo, se
nada há a dizer sobre se Deus existe ou não?
A Hipótese Deus sugere que a realidade por nós habitada também contém
um agente sobrenatural que concebeu o universo e o preserva – pelo menos
em muitas versões da hipótese –, e que até intervém nele por meio de
milagres, essas violações temporárias das leis grandiosas e imutáveis que,
tirando tais excepções, ele próprio criou. No livro Será que Deus existe?,
Richard Swinburne, um dos mais importantes teólogos britânicos, é
surpreendentemente claro quanto a esta questão:

O que o deísta reivindica acerca de Deus é que ele tem de facto um


poder que lhe permite criar, conservar ou aniquilar qualquer coisa, seja
ela grande ou pequena. E também consegue fazer com que os objectos
se movam ou o que quer que seja... Consegue fazer os planetas
moverem-se da maneira que Kepler descobriu que eles se movem, ou
fazer explodir a pólvora quando lhe chegamos um fósforo aceso;
consegue ainda fazer os planetas moverem-se de maneiras muito
diferentes, e fazer as substâncias químicas explodirem ou não de acordo
com condições muito diferentes das que ora governam o seu
comportamento. Deus não é limitado pelas leis da natureza; é ele que as
faz, podendo mudá-las ou suspendê-las se tal lhe aprouver.

É demasiado fácil, não é? Seja lá isto o que for, está muito longe do
MNS. E digam eles o que disserem, esses cientistas que perfilham a escola
de pensamento dos «magistérios independentes» deviam admitir que um
universo com um criador sobrenaturalmente inteligente será um tipo de
universo muito diferente de outro sem esse criador. A diferença entre dois
universos hipotéticos dificilmente podia ser mais fundamental em princípio,
mesmo que não seja fácil de testar na prática. Além disso, fragiliza a
máxima complacentemente sedutora segundo a qual a ciência deve manter
um silêncio absoluto quanto às pretensões sobre a existência, tão centrais
para a religião. A presença ou a ausência de uma superinteligência criadora
é, inequivocamente, uma questão científica, mesmo que na prática ela não
esteja – ou não esteja ainda – decidida. O mesmo acontece com a verdade
ou a falsidade de todas as histórias de milagres de que as igrejas se servem
para impressionar as suas multidões de fiéis.
Jesus tinha um pai humano, ou a mãe era virgem no momento do parto?
Quer tenham ou não restado provas em número suficiente para resolver a
questão, continua a tratar-se de uma questão estritamente científica e com
uma resposta em princípio definitiva: sim ou não. Jesus fez ressuscitar
Lázaro? Será que ele próprio voltou à vida três dias após ter sido
crucificado? Há uma resposta para cada uma destas perguntas, quer
possamos descobri-la na prática quer não, resposta essa que é, estritamente,
científica. Os métodos a usar para dilucidar a questão, na improvável
eventualidade de alguma vez poderem ser aduzidas provas relevantes, serão
pura e exclusivamente métodos científicos. Para conferir uma maior nitidez
à questão, imagine-se que, em resultado de um conjunto extraordinário de
circunstâncias, arqueólogos forenses descobriam provas de ADN que
vinham mostrar que de facto Jesus não teve um pai biológico. Consegue-se
imaginar os apologistas religiosos a encolherem os ombros e a dizerem
qualquer coisa como isto: KO que importa isso? A prova científica é
completamente irrelevante no caso das questões teológicas. Magistério
errado! A nós só nos interessam as questões últimas e os valores morais.
Nem o ADN, nem quaisquer outras provas científicas poderão alguma vez
ser chamadas para o assunto, em abono seja de que lado for.»
A própria ideia é ridícula. Pode apostar-se o que se quiser que, se alguma
vez surgissem as provas científicas, seriam agarradas com unhas e dentes e
anunciadas aos quatro ventos. O NOMA só é popular porque não existem
provas a favor da Hipótese Deus. A partir do momento em que houvesse a
mais pequena sugestão de qualquer prova a favor da crença religiosa, os
seus apologistas não perderiam tempo a atirar o NOMA para o lixo. Tirando
os teólogos mais sofisticados (e mesmo esses não se ensaiam nada em
contar histórias de milagres aos menos sofisticados de modo a engrossarem
as respectivas confrarias), desconfio de que é aos alegados milagres que
muitos crentes vão buscar a razão mais forte para a sua fé; e os milagres,
por definição, violam os princípios da ciência.
A Igreja Católica parece, por um lado, aspirar por vezes ao NOMA, mas,
por outro, estipula que a realização de milagres é requisito essencial para a
elevação à santidade. O falecido rei dos Belgas é candidato à santidade
devido à sua posição quanto ao aborto. Estão a decorrer investigações sérias
para descobrir se algumas curas milagrosas poderão ser atribuídas às
orações que lhe foram oferecidas desde a sua morte. Não estou a brincar.
Trata-se de um facto concreto, típico, de resto, das histórias de santos.
Calculo que tudo isto cause algum embaraço a certos círculos mais
sofisticados no seio da Igreja. O porquê de alguns círculos dignos de serem
chamados sofisticados permanecerem no seio da Igreja é um mistério pelo
menos tão profundo quanto aqueles que os teólogos tanto apreciam.
Se confrontado com histórias de milagres, Gould retrucaria
provavelmente nos seguintes moldes. A ideia subjacente ao MNS é que,
além de ser um bom negócio, ele funciona nos dois sentidos. A partir do
momento em que a religião pisa o território da ciência e começa a interferir
no mundo real através de milagres, deixa de ser religião no sentido
defendido por Gould, e a sua amicabilis concordia quebra-se. Note-se, no
entanto, que a religião sem milagres defendida por Gould não seria
reconhecida pela maioria dos teístas frequentadores dos bancos da igreja e
do tapete de orações. Na verdade seria para eles uma grande desilusão.
Adaptando o comentário de Alice acerca do livro da irmã antes de cair no
País das Maravilhas, de que serve um Deus que não faz milagres e não
atende às orações? Lembremo-nos da espirituosa definição do verbo «rezar»
dada por Ambrose Bierce: «Pedir que as leis do universo sejam anuladas em
nome de um único e confessadamente indigno requerente.» Há atletas que
acreditam que Deus os ajuda a ganhar – contra adversários que, a julgar
pelas aparências, não pareceriam menos dignos do seu favoritismo. Há
automobilistas que acreditam que Deus lhes guarda um lugar de
estacionamento – negando-o desse modo, presumivelmente, a outras
pessoas. É constrangedor verificar como este estilo de teísmo se encontra
disseminado, sendo pouco provável que se deixe impressionar por qualquer
coisa tão (superficialmente) razoável como o NOMA.
Não obstante, sigamos Gould e reduzamos a nossa religião a uma espécie
de mínimo não-interventivo: sem milagres, sem comunicação pessoal entre
Deus e nós em qualquer das direcções, sem atropelos às leis da Física, sem
invadir os terrenos da ciência. Quando muito, um pequeno input deísta nas
condições iniciais do universo, de modo a que, na plenitude do tempo, as
estrelas, os elementos, a química e os planetas se desenvolvam e a vida
evolua. Não será isto uma divisão adequada? Não poderá o NOMA
sobreviver a esta religião mais modesta e despretensiosa?
Bem, poderá pensar-se que sim, mas proponho que mesmo um Deus não-
interventivo, um Deus NOMA, apesar de menos violento e desajeitado do
que um Deus abraâmico, não deixa de ser, bem vistas as coisas, uma
hipótese científica. Volto ao ponto fundamental: um universo no qual
estamos sozinhos à excepção de outras inteligências em lenta evolução, é
um universo muito diferente de outro que tem na origem um agente
orientador cujo desígnio inteligente é responsável pela sua própria
existência. Aceito que, na prática, possa não ser fácil distinguir entre os dois
tipos de universo. Ainda assim, há algo de absolutamente especial na
hipótese do grande desígnio, e algo de igualmente especial na única
alternativa conhecida, a evolução gradual em sentido lato. Elas estão perto
de ser irreconciliavelmente diferentes. Ao contrário de tudo o resto, a
perspectiva da evolução proporciona efectivamente uma explicação para a
existência de entidades cuja improbabilidade as tornaria, de outro modo,
inviáveis. E tal como mostrarei no capítulo quarto, a conclusão do
raciocínio será pouco menos do que fatal para a Hipótese Deus.

A grande experiência da oração


Um engraçado, se bem que algo patético, estudo de caso sobre milagres é
a grande experiência da oração: será que rezar pelos pacientes ajuda à cura?
Normalmente rezam-se orações por intenção de doentes, tanto em privado
como em locais de culto formais. Francis Galton, primo de Darwin, foi o
primeiro a analisar cientificamente se as orações pelas pessoas são eficazes.
Galton observou que todos os domingos, em igrejas por toda a Grã-
Bretanha, congregações inteiras rezavam em público pela saúde da família
real. Não deveriam os membros desta ser, portanto, invulgarmente
saudáveis em relação a nós, que apenas somos alvo de orações por parte
daqueles que nos são mais próximos e queridos? Galton investigou o
47

assunto e não encontrou qualquer diferença estatística. Em todo o caso a sua


intenção pode ter sido satírica, como quando rezou sobre parcelas de terreno
escolhidas ao acaso para ver se as plantas cresciam mais depressa (o que
não se verificou).
Mais recentemente, o físico Russell Stannard (um dos três famosos
cientistas religiosos da Grã-Bretanha, como veremos adiante) juntou o peso
da sua influência a uma iniciativa financiada – é claro – pela Fundação
Templeton, destinada a testar experimentalmente a proposição segundo a
qual rezar pelos pacientes lhes melhora a saúde.48

Tais experiências, se conduzidas correctamente, devem ser de dupla


ocultação, requisito que foi estritamente observado. Os pacientes foram
colocados, de um modo estritamente aleatório, ou num grupo experimental
(alvo de orações) ou num grupo de controlo (sem orações). Nem os
pacientes, nem os médicos ou os prestadores de cuidados de saúde, nem a
própria equipa encarregada da experiência tinham permissão para saber
quais os pacientes alvo de orações e quais os que pertenciam ao grupo de
controlo. As pessoas que rezavam as orações tinham de saber os nomes dos
indivíduos pelos quais rezavam – de outro modo, em que sentido estariam a
rezar por eles e não por outrem? No entanto, houve o cuidado de apenas
lhes dar o primeiro nome e a primeira letra do apelido. Pelos vistos, isso
seria suficiente para que Deus identificasse a cama de hospital correcta.
A própria ideia de realizar tais experiências presta-se a uma generosa dose
de ridículo, e o projecto sofreu-a em justa medida. Tanto quanto sei, o
comediante Bob Newhart não fez nenhum sketch sobre o tema, mas parece
que lhe estou a ouvir a voz:

O que estais a dizer, Senhor? Não podeis curar-me porque pertenço ao


grupo de controlo? ... Ah, estou a ver, as orações da minha tia não são
suficientes. Mas, Senhor, aqui o senhor Evans, da cama ao lado... O
quê, Senhor?... O senhor Evans recebeu mil orações por dia? Mas,
Senhor, o senhor Evans não conhece mil pessoas... Ah, referiram-se a
ele só como John E. Mas, Senhor, como sabeis que não se estavam a
referir a John Ellsworthy?... Ah, está bem, usaste a tua omnisciência
para descobrir qual John E. tinham em mente. Mas, Senhor...

Arrostando galhardamente com a troça, a equipa de investigadores


continuou o seu trabalho, gastando 2,4 milhões de dólares da Fundação
Templeton sob a chefia do Dr. Herbert Benson, um cardiologista do
Mind/Body Medical Institute, perto de Boston. O Dr. Benson havia já sido
citado num comunicado de imprensa da Fundação Templeton que referia
que o investigador «acreditava que as provas da eficácia da oração
intercessória em contexto médico estão a aumentar». Podíamos então estar
tranquilos, porque a investigação estava em boas mãos e era improvável que
fosse estragada por vibrações cépticas. O Dr. Benson e a sua equipa
acompanharam 1802 pacientes em seis hospitais, todos eles submetidos a
uma cirurgia de bypass coronário. Os pacientes foram divididos em três
grupos. O grupo um foi objecto de orações sem o saber. O grupo dois
(grupo de controlo) não foi objecto de orações, igualmente sem ter disso
conhecimento. O grupo três foi objecto de orações e sabia-o. A comparação
entre os grupos um e dois testa a eficácia da oração intercessória. O grupo
três testa os possíveis efeitos psicossomáticos de alguém saber que estão a
rezar por si.
As orações foram proferidas pelos fiéis de três igrejas: uma no Minnesota,
outra no Massachusetts e outra no Missuri, todas elas distantes dos três
hospitais. Foi explicado às pessoas que rezavam que só saberiam o nome
próprio e a inicial do apelido de cada paciente por quem iam rezar. Constitui
boa prática experimental uniformizar os procedimentos tanto quanto
possível, pelo que a todos foi dito que incluíssem nas suas orações a
expressão «por uma operação bem-sucedida, com uma recuperação rápida,
saudável e sem complicações».
Os resultados, apresentados na edição de Abril de 2006 do American
Heart Journal, foram inequívocos. Não houve diferença entre os pacientes
alvo de orações e os restantes. Que surpresa! Houve diferença entre os
pacientes que sabiam que tinham sido objecto de orações e os que
ignoravam, mas foi ao contrário. Os primeiros sofreram um número mais
significativo de complicações do que os segundos. Estaria Deus a aplicar
um castigozito para mostrar a sua desaprovação em relação a todo aquele
disparate? Parece mais provável que os pacientes que sabiam que estavam a
rezar por eles sentissem, por isso, um acréscimo de stresse: «ansiedade do
desempenho», como disseram os autores da experiência. Um dos
investigadores, o Dr. Charles Bethea, afirmou: «Talvez se tenham sentido
inseguros, a pensar será que estou tão doente que tiveram de mandar chamar
a brigada das orações?» Nesta nossa sociedade litigante de hoje, será
demasiado esperar que os pacientes com complicações cardíacas na
sequência de saberem que estavam a ser objecto de orações experimentais
venham a instaurar colectivamente uma acção nos tribunais contra a
Fundação Templeton?
Não constituirá surpresa saber que este estudo teve a oposição dos
teólogos, porventura demasiado ansiosos quanto à capacidade do estudo
para atrair o ridículo sobre a religião. Num texto escrito após o fracasso do
estudo, o teólogo de Oxford Richard Swinburne manifestou as suas
objecções com base no facto de Deus apenas responder a orações se estas
tiverem por detrás de si boas razões. Rezar por este e não por aquele, só
49

porque assim ditaram as sortes na preparação de uma experiência de dupla


ocultação, não constitui uma boa razão. Deus não se deixaria enganar. De
facto, esse era o ponto essencial da minha sátira sobre Bob Newhart, e
Swinburne tem toda a razão ao fazer o mesmo. Contudo, noutras partes do
artigo o próprio Swinburne deixa-nos a pensar que já nem a sátira basta.
Não é a primeira vez que ele procura justificar o sofrimento num mundo
governado por Deus:

O meu sofrimento proporciona-me a oportunidade de mostrar coragem


e paciência. Proporciona-vos a oportunidade de mostrarem
compreensão e de ajudarem a mitigar o meu sofrimento. E também
proporciona à sociedade a oportunidade de decidir se deve ou não
investir muito dinheiro na tentativa de encontrar uma cura para este ou
aquele tipo de sofrimento... Embora um Deus bom lamente o nosso
sofrimento, a sua maior preocupação é sem dúvida que cada um de nós
dê mostras de paciência, compreensão e generosidade, formando assim
uma personalidade santa. Algumas pessoas necessitam fortemente de
estar doentes para seu próprio bem, outras necessitam fortemente de
estar doentes para proporcionar aos outros escolhas importantes. Só
assim é que algumas pessoas se poderão sentir incentivadas a fazer
escolhas sérias quanto ao tipo de pessoa que hão-de ser. Para outros, a
doença não é tão valiosa.

Este raciocínio grotesco, tão acusadoramente típico da mente teológica,


faz-me lembrar uma ocasião em que participei numa mesa-redonda de um
programa de televisão com Swinburne e com o professor Peter Atkins,
nosso colega em Oxford. A certa altura, Swinburne tentou justificar o
Holocausto dizendo que este deu aos Judeus uma oportunidade maravilhosa
de se mostrarem nobres e corajosos. Foi esplêndido o comentário rosnado
por Peter Atkins: «Vá apodrecer no inferno.» 50

Outro típico raciocínio teológico ocorre mais à frente no referido artigo de


Swinburne. Aí o autor sugere justamente que, se Deus quisesse manifestar a
sua existência, encontraria maneiras melhores de o fazer que não através do
ligeiro enviesamento das estatísticas de recuperação dos grupos
experimental e de controlo de doentes cardíacos. Se Deus existisse e disso
nos quisesse convencer, podia «encher o mundo com supermilagres». É
então que Swinburne nos presenteia com esta pérola: «De qualquer maneira,
há muitas provas da existência de Deus, e provas em demasia pode não ser
bom para nós.» Em demasia pode não ser bom para nós! Leia-se outra vez.
Provas em demasia pode não ser bom para nós. Membro da British
Academy, Richard Swinburne foi também, até à sua recente aposentação,
detentor de uma das mais prestigiadas cátedras de Teologia da Grã-
Bretanha. Se é um teólogo que queremos, não os há muito mais notáveis. E
daí, talvez não queiramos um teólogo.
Swinburne não foi o único a rejeitar o estudo após o seu fracasso. O
reverendo Raymond J. Lawrence desfrutou de um generoso naco do espaço
reservado à opinião no jornal New York Times, para explicar por que motivo
os líderes religiosos responsáveis «vão respirar de alívio» por não terem
sido encontradas provas do efeito da oração intercessória . Mudaria ele de
51

cantiga se o estudo de Benson tivesse obtido êxito em demonstrar o poder


da oração? Talvez não, mas pode ter-se a certeza de que muitos outros
pastores e teólogos o fariam. O artigo do reverendo Lawrence fica
especialmente memorável pela seguinte revelação: «Recentemente, um
colega contou-me a história de uma mulher devota e com estudos, que
acusou um médico de negligência no tratamento do marido. Durante os
últimos dias deste, acusou ela, o médico não tinha rezado por ele.»
Outros teólogos vieram juntar-se a cépticos adeptos do MNS,
argumentando que estudar a oração desta forma é desperdiçar dinheiro, uma
vez que as influências sobrenaturais estão, por definição, fora do alcance da
ciência. Mas, tal como a Fundação Templeton correctamente reconheceu
quando financiou o estudo, o alegado poder da oração intercessória está
dentro do âmbito da ciência, pelo menos em princípio. É possível fazer uma
experiência de dupla ocultação, como efectivamente se fez. Ela podia ter
produzido um resultado positivo. E, se isso tivesse acontecido, consegue-se
imaginar que um único apologista religioso tivesse desdenhado da
experiência, alegando que a investigação científica não se aplica às questões
religiosas? Claro que não.
Escusado será dizer que os resultados negativos da experiência não vão
abalar os crentes. Bob Barth, director espiritual do grupo de oração do
Missuri, que contribuiu com algumas das orações para a experiência,
afirmou: «Uma pessoa de fé diria que este estudo é interessante, mas nós já
temos vindo a rezar há muito tempo e vimos a oração funcionar, sabemos
que funciona, e a investigação sobre a oração e a espiritualidade está apenas
no começo.» Pois, pois: sabemos, pela nossa fé, que a oração funciona,
portanto se as provas não conseguem mostrá-lo, vamos prosseguir com a
nossa militância até conseguirmos finalmente o resultado que pretendemos.

A escola evolucionista de Neville Chamberlain


Uma razão secreta pela qual alguns cientistas insistem no MNS – a
invulnerabilidade da Hipótese Deus em relação à ciência – será talvez uma
certa agenda política peculiarmente norte– -americana, provocada pela
ameaça do criacionismo populista. Em certos locais dos Estados Unidos, a
ciência está sob o ataque de uma oposição bem organizada, politicamente
bem relacionada e sobretudo bem financiada, estando o ensino da evolução
nas trincheiras da linha da frente. Poderá perdoar-se aos cientistas por se
sentirem ameaçados, já que a maior parte do dinheiro para a investigação
que levam a cabo provém, fundamentalmente, do Estado, e os
representantes eleitos tanto têm de responder perante os seus eleitores
ignorantes e preconceituosos, como perante os mais bem informados.
Como resposta a essas ameaças surgiu um lóbi de defesa da evolução,
cuja face mais visível é o NCSE (National Center for Science Education ).
52

À frente do centro encontra-se Eugenie Scott, incansável activista em prol


da ciência e autora do recente livro Evolution vs. Creationism. Um dos
principais objectivos políticos do NCSE é atrair e mobilizar a opinião
religiosa «sensata», quer dizer, a grande maioria dos homens e mulheres
frequentadores de igreja que não têm problemas relativamente à evolução e
eventualmente a vêem como irrelevante (ou até, estranhamente, como uma
confirmação) para a sua fé. É este grande grupo mainstream formado por
membros do clero, por teólogos e por crentes não-fundamentalistas, algo
constrangidos pelo criacionismo e pela má reputação assim causada à
religião, que o lóbi defensor da evolução procura atrair. E uma forma de o
conseguir é fazendo um esforço acrobático de aproximação às posições
destes, abraçando o NOMA – ou seja, concordando que a ciência não é de
todo ameaçadora porque não partilha as mesmas pretensões da religião.
Outra ilustre luminária daquilo a que poderíamos chamar escola
evolucionista de Neville Chamberlain é o filósofo Michael Ruse. Este
filósofo tem-se mostrado um eficaz lutador contra o criacionismo, tanto na
53

escrita como nos tribunais. Ruse professa ser ateu, mas no artigo que
publicou na revista Playboy sustenta que

nós, os que amamos a ciência, devemos perceber que o inimigo dos


nossos inimigos nosso amigo é. É muito frequente os evolucionistas
perderem tempo a insultar os seus supostos aliados. Isto é
especialmente verdade no que se refere aos evolucionistas seculares. Os
ateus passam mais tempo a dizer mal dos cristãos com quem têm
afinidades do que propriamente a atacar os criacionistas. Quando João
Paulo II escreveu uma carta a apoiar o darwinismo, Richard Dawkins
respondeu simplesmente que o Papa era um hipócrita, que não era
capaz de ser inteiramente genuíno quanto à ciência e que, por ele,
Dawkins, preferia um fundamentalista sincero.

De uma perspectiva puramente táctica, consigo perceber o apelo


superficial da comparação que Ruse faz com a luta contra Hitler: KWinston
Churchill e Franklin Roosevelt não gostavam de Estaline nem do
comunismo. Mas ao lutar contra Hitler aperceberam-se de que tinham de
colaborar com a União Soviética. Do mesmo modo deverão os
evolucionistas de todas as estirpes trabalhar em conjunto para lutar contra o
criacionismo.» Contudo, acabo por alinhar com o meu colega Jerry Coyne,
um geneticista de Chicago, que escreveu que Ruse

não consegue compreender a verdadeira natureza do conflito. Não se


trata apenas de evolução versus criacionismo. Para cientistas como
Dawkins e Wilson [E. O. Wilson, o célebre biólogo de Harvard], a
guerra verdadeira é entre o racionalismo e a superstição. A ciência é
apenas uma forma de racionalismo, enquanto a religião é a forma mais
comum de superstição. O criacionismo é apenas um sintoma daquilo
que eles consideram ser o maior inimigo: a religião. Enquanto a religião
pode existir sem o criacionismo, já o criacionismo não pode existir sem
a religião .
54

Há uma coisa que tenho em comum com os criacionistas. Tal como eu,
mas ao contrário da escola de Chamberlain, os criacionistas não querem
nada com o NOMA e os seus magistérios próprios. Longe de respeitar a
autonomia do domínio da ciência, não há nada de que os criacionistas
gostem mais do que pisá-la com as suas sujas botas cardadas. E suja é
também a forma como se batem. Nos tribunais da América mais profunda,
os advogados dos criacionistas perseguem evolucionistas que sejam ateus
declarados. Eu sei – para minha mágoa – que o meu nome foi usado desta
forma. Trata-se de uma táctica eficaz, porque existe a probabilidade de os
júris, seleccionados ao acaso, incluírem pessoas educadas na crença de que
os ateus são demónios feitos gente, ao nível dos pedófilos ou dos
«terroristas» (o actual equivalente das bruxas de Salem e dos comunas do
senador McCarthy). Qualquer advogado criacionista que me chamasse à
barra das testemunhas poderia conquistar imediatamente as simpatias do
júri perguntando-me: «O seu conhecimento da evolução influenciou-o no
sentido de se tornar ateu?» Eu teria de responder afirmativamente e, de um
só golpe, teria perdido por completo o júri. Pelo contrário, a resposta
judiciosamente correcta do lado secularista deveria ser: «As minhas crenças
religiosas, ou a falta delas, são um assunto privado que não são da conta
deste tribunal nem têm nada a ver com a ciência que faço.» Ora eu não
poderia, honestamente, dizer isto, por razões que explicarei no capítulo
quarto.
Madeleine Bunting, jornalista do Guardian, escreveu um artigo intitulado
«Porque é que o lóbi do desígnio inteligente dá graças a Deus por haver um
Richard Dawkins». Não existe indicação de que ela tenha consultado mais
55

ninguém além de Michael Ruse e o artigo podia muito bem ter sido escrito
por ele, embora tenha sido ela a assiná-lo. Citando com apropósito a
56

personagem Uncle Remus, Dan Dennett deu a seguinte resposta:

Acho engraçado que dois britânicos – Madeleine Bunting e Michael


Ruse – se tenham deixado levar por uma versão de um dos mais
famosos esquemas da cultura americana de raiz folclórica («Porque é
que o lóbi do desígnio inteligente dá graças a Deus por haver um
Richard Dawkins», 27 de Março). Quando o Irmão Coelho é apanhado
pelo raposão, roga-lhe: «Oh, por favor, por favor, Irmão Raposão, faz
comigo o que quiseres, menos atirar-me para aquele canteiro com
espinhos!» – que é onde aterra são e salvo, depois de o raposão ter feito
precisamente isso. Quando o propagandista norte-americano William
Dembski escreve provocatoriamente a Richard Dawkins dizendo-lhe
que continue a prestar um bom serviço ao desígnio inteligente, Bunting
e Ruse caem no logro! «Com a breca, Irmão Raposão, essa tua asserção
frontal – de que a Biologia evolutiva refuta a ideia de um Deus criador
– põe em perigo o ensino da Biologia nas aulas de ciências, já que
ensinar tal coisa violaria a separação entre a Igreja e o Estado!» Pois
sim. E vocês também deviam ter mais cautela com a Fisiologia, que diz
que o parto virginal é impossível...
57

Toda esta questão, incluindo uma invocação independente do Irmão


Coelho no canteiro dos espinhos, é objecto de uma bela reflexão do biólogo
P. Z. Myers no seu blogue «Pharyngula», cuja consulta se recomenda a
quem aprecie bom senso e perspicácia. 58

Não quero com isto dizer que os meus colegas do lóbi do apaziguamento
sejam, necessariamente, desonestos. É possível que realmente acreditem no
MNS, embora eu não consiga deixar de me perguntar se lhe terão
ponderado bem as implicações e como é que, nas suas cabeças, se
conciliarão os conflitos internos. Para já, não há necessidade de aprofundar
a questão. Mas quem quiser procurar compreender as declarações dos
cientistas publicadas a propósito de questões religiosas, bem faria em ter em
mente o respectivo contexto político e, concretamente, as surreais guerras
culturais que hoje em dia dilaceram os Estados Unidos. O apaziguamento
do tipo MNS voltará a ocupar-nos num capítulo posterior. Por agora,
regresso ao agnosticismo e à possibilidade de desbastar um pouco a nossa
ignorância e reduzir sensivelmente a nossa incerteza quanto à existência, ou
não existência, de Deus.

Homenzinhos verdes
Suponha-se que a parábola de Bertand Russell dizia respeito, não a um
bule no espaço, mas sim à vida no espaço – o motivo da memorável recusa
de Sagan em pensar com as vísceras. Uma vez mais, não podemos refutar
tal ideia, e a única posição estritamente racional é o agnosticismo. Mas a
hipótese já não é frívola. Não pressentimos de imediato uma extrema
improbabilidade. Podemos travar um debate interessante baseado em provas
inconcludentes e anotar o tipo de provas passíveis de diminuir a nossa
incerteza. Sentir-nos-íamos indignados se o nosso Governo investisse em
telescópios caros com o único objectivo de procurar bules em órbita. Mas
podemos mostrar apreço pelo gasto de dinheiro com o projecto SETI
(Search for Extraterrestrial Intelligence ), que recorre a radiotelescópios
59

para explorar os céus na esperança de captar sinais emitidos por alienígenas


inteligentes.
Eu elogiei Carl Sagan por rejeitar intuições viscerais acerca da vida
extraterrestre. Mas podemos fazer (tal como Sagan) uma avaliação
ponderada daquilo que precisaríamos de saber para calcular a probabilidade.
Esta tarefa poderia começar por uma simples lista dos aspectos ignorados,
como na famosa equação de Drake, a qual, nas palavras de Paul Davies,
agrega probabilidades. A equação afirma que para calcular o número de
civilizações que terão evoluído independentemente no universo é preciso
multiplicar sete termos uns pelos outros. Entre estes inclui-se o número de
estrelas, o número de planetas semelhantes à Terra existentes por cada
estrela e mais a probabilidade disto e daquilo e de mais umas tantas coisas
que não necessito de colocar na lista porque o ponto a que quero chegar é
que todas elas são desconhecidas ou calculadas com enormes margens de
erro. Quando se multiplica tantos termos completamente ou quase
completamente desconhecidos, o produto – o número estimado de
civilizações extraterrestres – tem margens de erro de tal maneira colossais
que o agnosticismo se afigura uma posição muito sensata, se não mesmo a
única credível.
Alguns dos termos da equação de Drake são hoje já menos desconhecidos
do que quando ele a escreveu, em 1961. Naquela altura, o nosso sistema
solar com os seus planetas a girarem em torno de uma estrela central era o
único conhecido, juntamente com as analogias locais fornecidas pelos
sistemas de satélites de Júpiter e Saturno. A nossa estimativa mais
aproximada do número de sistemas orbitais existentes no universo assentava
em modelos teóricos, em combinação com esse princípio mais informal
chamado «princípio da mediocridade», ou seja, o sentimento (resultante de
incómodas lições de História aprendidas com Copérnico, Hubble e outros)
de que não deverá haver nada de particularmente extraordinário acerca do
sítio em que, por acaso, vivemos. Infelizmente, o princípio da mediocridade
é, por sua vez, fragilizado pelo princípio «antrópico» (veja-se o capítulo
quarto): se o nosso sistema solar fosse efectivamente o único no universo,
era precisamente aqui que nós, enquanto seres que pensam estas questões,
teríamos de viver. O próprio facto da nossa existência poderia,
retrospectivamente, determinar que vivemos num sítio que de medíocre
nada tem.
Mas os cálculos actuais da ubiquidade dos sistemas solares já não
assentam no princípio da mediocridade, pois são hoje informados por
provas directas. O espectroscópio, némesis do positivismo de Comte, ataca
de novo. Os nossos telescópios mal dão para observar directamente os
planetas em volta de outras estrelas. Mas a posição de uma estrela é
perturbada pela força de atracção gravitacional dos planetas à medida que
vão descrevendo as suas órbitas em torno dela, e os espectroscópios
conseguem captar desvios de Doppler no espectro da estrela, pelo menos
nos casos em que o planeta causador da perturbação é de grandes
dimensões. Utilizando sobretudo este método, sabe-se, no momento em que
escrevo, que existem 170 planetas extra-solares girando na órbita de 147
estrelas, mas tal número terá por certo aumentado quando este livro estiver
60

a ser lido. Até agora, trata-se de volumosos «jupiteres», porque só os


jupiteres são suficientemente grandes para conseguir desviar as respectivas
estrelas até à zona de detecção dos espectroscópios actuais.
Pelo menos melhorámos quantitativamente o nosso cálculo de um termo
da equação de Drake que antes permanecia oculto. Isto permite um
significativo, ainda que moderado, aligeiramento do nosso agnosticismo
quanto ao valor final produzido pela equação. Devemos continuar a ser
agnósticos em relação à vida noutros mundos – mas um pouco menos
agnósticos, visto que somos agora, e em igual proporção, um pouco menos
ignorantes. A ciência pode desbastar o agnosticismo de uma forma que
Huxley esforçadamente procurou negar no caso específico de Deus. O que
defendo é que, apesar da diplomática abstinência de Huxley, Gould e
muitos outros, a questão de Deus não está, em princípio e para sempre, fora
do âmbito da ciência. Tal como – ao contrário do que pretende Comte –
sucede com a natureza das estrelas, e tal como acontece com a
probabilidade de vida em órbita em torno destas, a ciência pode, pelo
menos, fazer incursões probabilísticas no território do agnosticismo.
A minha definição da Hipótese Deus incluía as palavras «sobre-humano»
e «sobrenatural». Para que se torne clara a diferença, imagine-se que um
radiotelescópio do projecto SETI captava efectivamente um sinal do espaço
exterior, que mostrasse de forma inequívoca que não estamos sozinhos.
Diga-se de passagem que não é uma questão trivial saber que tipo de sinal
nos poderia convencer da sua origem inteligente. Uma boa abordagem será
inverter a questão. Que acção inteligente deveríamos nós empreender para
dar a conhecer a nossa presença a ouvintes extraterrestres? Vibrações
rítmicas não surtiriam efeito. Jocelyn Bell Burnell, a radioastrónoma que,
em 1967, descobriu o pulsar, comoveu-se com a precisão de 1,33 segundos
da sua periodicidade, a ponto de o apelidar, com humor, sinal LGM (little
green men, ou homenzinhos verdes). Posteriormente descobriu, noutro
ponto dos céus, um segundo pulsar com uma periodicidade diferente, o que
praticamente veio pôr de parte a hipótese LGM. Os ritmos metronómicos
podem ser produzidos por muitos fenómenos não-inteligentes, desde o
balancear de ramos de árvore a corpos celestes a girarem sobre si ou a
descreverem órbitas, passando por água a pingar ou por intervalos de tempo
em circuitos de realimentação auto-regulados. Até hoje foram encontrados
mais de 1000 pulsares na nossa galáxia e é, em geral, aceite que cada um
deles é uma estrela de neutrões que gira emitindo radioenergia, lançada em
redor como o feixe luminoso de um farol. É espantoso pensar numa estrela
que gira a uma escala de meros segundos (imagine-se se um dia dos nossos
durasse 1,33 segundos em vez de 24 horas), mas quase tudo o que sabemos
acerca das estrelas de neutrões é espantoso. Aonde quero chegar é que o
fenómeno do pulsar é agora entendido como um mero produto da Física,
não da inteligência.
Como se vê, nada que seja simplesmente rítmico poderá, por si, anunciar
a nossa presença inteligente a um universo expectante. Os números primos
são frequentemente apontados como receita preferencial, uma vez que é
difícil pensar num processo puramente físico capaz de os produzir. Seja
através da detecção de números primos, seja por quaisquer outros meios,
imagine-se que o SETI consegue provas inequívocas de inteligência
extraterrestre, eventualmente seguidas de uma transmissão maciça de
conhecimentos e sabedoria, como mais ou menos é timbre da ficção
científica propalada por obras como Ameaça de Andrómeda, de Fred Hoyle,
ou Contacto, de Carl Sagan. Que resposta deveremos dar? Uma reacção
desculpável seria algo semelhante à adoração, pois é provável que qualquer
civilização capaz de emitir um sinal a uma distância tão vasta seja muito
superior à nossa. Mesmo que essa civilização não seja mais avançada do
que a nossa no momento da transmissão, a enorme distância a separar-nos
permite-nos calcular que estejam com milénios de avanço quando a
mensagem cá chegar (a não ser que tenham sido vítimas de auto-extinção, o
que não é improvável).
Quer alguma vez cheguemos a ter conhecimento delas, quer não, existem
muito provavelmente civilizações extraterrestres que são sobre-humanas a
ponto de se assemelharem a deuses em aspectos que ultrapassam tudo
quanto um teólogo possa imaginar. As suas conquistas tecnológicas parecer-
nos-iam tão sobrenaturais quanto as nossas o pareceriam a um camponês da
Idade Média transportado até ao século XXI. Imagine-se a sua reacção a um
computador portátil, a um telemóvel, à bomba de hidrogénio ou a um avião
a jacto. Tal como disse Arthur C. Clarke na sua Terceira Lei, «qualquer
tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia». Os
milagres operados pela nossa tecnologia não se teriam afigurado menos
notáveis aos antigos do que a história de Moisés a separar as águas ou a de
Jesus a caminhar sobre elas. Os extraterrestres do nosso sinal SETI seriam
como deuses para nós, tal como os missionários foram tratados como deuses
(e exploraram ao máximo essa imerecida honra) quando apareceram em
plenas culturas da Idade da Pedra levando consigo armas, telescópios,
fósforos e almanaques que previam os eclipses ao segundo.
Em que sentido, então, não haviam de ser deuses os extraterrestres SETI
mais avançados? Em que sentido seriam eles sobre-humanos, mas não
sobrenaturais? Num sentido muito importante e que vai directo ao âmago
deste livro. A diferença crucial entre deuses e extraterrestres semelhantes a
deuses não está nas suas características, mas sim na sua proveniência. As
entidades suficientemente complexas para serem inteligentes são produtos
de um processo evolutivo. Independentemente de quão semelhantes a Deus
elas possam parecer quando as encontrarmos, não foi assim o seu início.
Certos autores de ficção científica, como Daniel F. Galouye no livro
Counterfeit World, chegaram mesmo a sugerir (e eu não encontro maneira
de o refutar) que vivemos numa simulação de computador, gerada por uma
civilização muitíssimo superior à nossa. Mas os próprios simuladores teriam
de vir de algum sítio. As leis da probabilidade proíbem qualquer noção de
que possam ter surgido espontaneamente, sem antecedentes mais simples.
Provavelmente deverão a sua existência a uma (talvez desconhecida) versão
da evolução darwiniana: para usar a terminologia de Daniel Dennett, uma
qualquer espécie de «guindaste» de elevação cumulativa, por oposição a um
«gancho no céu». Ganchos do céu – incluindo todos os deuses – são
61

feitiços. Não servem para dar explicações fiáveis, antes exigem mais
explicações do que aquelas que dão. Guindastes são dispositivos
explicativos que efectivamente explicam. A selecção natural é o guindaste
mais imbatível de todos os tempos. Foi elevando a vida desde a sua
simplicidade primitiva até às alturas vertiginosas de complexidade, beleza e
aparente desígnio que hoje nos deslumbram. Este vai ser um tema
dominante do capítulo quarto: «Por que motivo é quase certo que Deus não
existe.» Mas primeiro, antes de continuar com a minha principal razão para
descrer activamente da existência de Deus, tenho a responsabilidade de
afastar os argumentos positivos para a crença propostos ao longo da
História.

20 Mitford e Waugh (2001). Politeísmo

21 http://www.newadvent.org/cathen/06608.htm.
22 http://www.catholic-forum.com/saints/indexsnt.htm?NF=1.

23 Congressional Record, 16 de Setembro de 1981.

24 http://www.stephenjaygould.org/ctrl/buckner_tripoli.html.

25 Giles Fraser, «Resurgent religion has done away with the country vicar”, Guardian, 13 de Abril de
2006.

26 Robert I. Sherman, em Free Inquiry 8, 4, Outono de 1988, 16.

27 N. Angier, «Confessions of a lonely atheist”, New York Times Magazine, 14 de Janeiro de 2001:
http://www.geocities.com/mindstuff/Angier.html.

28 Tom Flynn, director do jornal Free Inquiry, é convincente ao afirmar: «Se os ateus se sentem sós e
oprimidos, só temos de nos culpar a nós próprios. Numericamente somos fortes. Vamos começar a
fazer valer o nosso peso.» («O momento decisivo do secularismo», Free Inquiry, 26, 3, 2006, 16-17).

29 http://www.fsgp.org/adsn.html.

30 Na newsletter da Freethought Society of Greater Philadelphia de Março/Abril de 2006 é relatado o


caso especialmente bizarro de um homem assassinado só porque era ateu. Ir a
http://www.fsgp.org/newsletters/newsletter_2006_0304.pdf e procurar «The murder of Larry Hooper”.

31 http://www.hinduonnet.com/thehindu/mag/2001/11/18/stories/2001111800070400.htm.

32 «Dessa hipótese, meu Senhor, não tive eu precisão», disse Laplace quando Napoleão perguntou ao
célebre matemático como conseguira escrever o seu livro sem fazer qualquer menção a Deus.

33 Quentin de la Bédoyère, Catholic Herald, 3 de Fevereiro de 2006.

34 Carl Sagan, «The burden if skepticism”, Skeptical Inquirer 12, Outono de 1987.

35 O autor refere-se à sigla APP – PAP, em inglês – e à palavra pap, usada no início da presente secção
(v. «lamechas, etc.»). (N. das T.)

36 Debrucei-me sobre este caso em Dawkins (1998).

37 T. H. Huxley, «Agnosticism” (1889), reeditado em Huxley (1931). O texto completo de


«Agnosticism” também está disponível em:
http://www.infidels.org/library/historical/thomas_huxley/huxley_wace/part_02.html.

38 Russell, «Is there a God?» (1952), reeditado em Russell (1997).

39 Talvez tenha falado cedo de mais. A edição do jornal Independent on Sunday do dia 5 de Junho de
2005 trazia a seguinte notícia: «As autoridades malaias dizem que uma seita religiosa que construiu um
bule sagrado do tamanho de uma casa violou as normas de planeamento.» Consultar também o
endereço electrónico da BBC News, em http://news.bbc.co.uk/2/hi/asia-pacific/4692039.stm.
40 Andrew Mueller, «An argument with Sir Iqbal», Independent on Sunday, 2 de Abril de 2006, secção
«Sunday Review», 12-16.

41 O Camp Quest leva a instituição americana da colónia de férias numa direcção absolutamente
admirável. Ao contrário de outras colónias, que seguem o ethos da religião e do escutismo, este tipo de
acampamento, fundado no Kentucky por Edwin e Helen Hagin, é dirigido por humanistas seculares,
sendo aí as crianças encorajadas a pensarem cepticamente por si próprias enquanto se divertem com
todas as habituais actividades ao ar livre (www.camp-quest.org). Outros Camp Quests com um ethos
semelhante surgiram no Tennessee, Minnesota, Michigan, Ohio e Canadá.

42 A «igreja» do Flying Spaghetti Monster é uma sátira caricatural da religião, criada, em 2005, por um
estudante da Oregon State University. (N. das T.)

43 New York Times, 29 de Agosto de 2005. Ver também Henderson (2006).

44 Henderson (2006).

45 http://www.lulu.com/content/267888.

46 Em inglês, non-overlapping magisteria. (N. das T.)

47 Quando o meu colégio, em Oxford, elegeu o director que atrás citei, aconteceu que os restantes
membros da direcção beberam publicamente à sua saúde durante três noites consecutivas. No decorrer
do terceiro jantar, durante o discurso, ele observou com graça: «Já estou a sentir-me melhor.»

48 H. Benson et alii, «Study of the therateupic effects of intercessory prayer (STEP) in cardiac bypass
patients», American Heart Journal 151, 4, 2006, 934-42.

49 Richard Swinburne, em Science and Theology News, 7 de Abril de 2006,


http://www.stnews.org/Commentary-2772.htm.

50 Esta troca de palavras foi cortada da versão final emitida. Que aquela observação de Swinburne é
típica da sua teologia, indica-o um comentário bastante semelhante por ele feito a propósito de
Hiroxima, no livro The Existence of God (2004), página 264: «Suponha-se que menos uma pessoa tinha
sido consumida pelo fogo devido à bomba atómica de Hiroxima. Aí teria sido menor a oportunidade de
mostrar coragem e compreensão...»

51 New York Times, 11 de Abril de 2006.

52 Centro Nacional para o Ensino da Ciência. (N. das T.)

53 Em casos de tribunal e em livros como Ruse (1982). O seu artigo da Playboy foi publicado no
número de Abril de 2006.

54 A resposta de Jerry Coyne a Ruse foi publicada no número de Agosto de 2006 da Playboy.

55 Madeleine Bunting, Guardian, 27 de Março de 2006.


56 O mesmo se poderá dizer de um artigo da respeitada (e normalmente muito mais bem informada)
jornalista Judith Shulevitz, publicado na edição de 22 de Janeiro do New York Times com o título
«Quando as cosmologias colidem». A regra de guerra número um do general Montgomery era «não
marchar sobre Moscovo.» Talvez devesse haver uma regra número um do jornalismo científico, que
seria: «Entrevistar pelos menos uma pessoa que não Michael Ruse.»

57 A resposta de Dan Dennett foi publicada no Guardian de 4 de Abril de 2006.

58 http://scienceblogs.com/pharyngula/2006/03/the_dawkinsdennett_boogeyman.php
http://scienceblogs.com/pharyngula/2006/02/our_double_standard.php;
http://scienceblogs.com/pharyngula/2006/02/the_rusedennett_feud.php.

59 Busca de Inteligência Extraterrestre. (N. das T.)

60 http://vo.obspm.fr/exoplanetes/encyclo/encycl.html.

61 Dennett (2001).
3
Argumentos a favor da existência de
Deus
Na nossa instituição não devia haver lugar para uma cátedra
de Teologia.
Thomas Jefferson

Os argumentos para a existência de Deus têm sido objecto, ao longo dos


séculos, de codificações por parte dos teólogos e de contributos de muito
mais gente, incluindo os provedores de um certo e mal avisado «senso
comum».

As «provas» de Tomás de Aquino


As cinco «provas» formuladas por Tomás de Aquino no século XIII nada
provam, sendo fácil - embora hesite dizê-lo, dada a eminência do autor -
mostrar como são ocas. As primeiras três são formas diferentes de dizer o
mesmo, podendo ser avaliadas em conjunto. Todas elas implicam uma
regressão infindável - a resposta a uma pergunta gera outra pergunta e assim
sucessivamente, ad infinitum.

1. O motor imóvel. Nada se move sem um movimento prévio. Isto


conduz-nos a uma regressão da qual a única fuga é Deus. Algo
teve de provocar o primeiro movimento, e a esse algo chamamos
Deus.

2. A causa sem causa. Nada se causa a si mesmo. Todo o efeito tem


uma causa prévia, e uma vez mais somos forçados a retroceder -
um recuo que tem de parar recorrendo a uma causa primeira, a
que chamamos Deus.
3. O argumento cosmológico. Houve com certeza uma época em que
não existiam coisas físicas. Mas, uma vez que hoje em dia elas
existem, houve certamente algo não-físico que lhes deu existência,
e a esse algo chamamos Deus.

Estes três argumentos baseiam-se na ideia de uma regressão e


invocam Deus para lhe pôr termo. Todos eles partem do princípio, em
si mesmo não comprovado, de que o próprio Deus é imune à regressão.
Ainda que nos permitamos a dúbia extravagância de evocar
arbitrariamente um ser para que venha acabar com uma regressão
infinita e de lhe dar um nome só porque precisamos de um, não há
absolutamente razão alguma para dotar esse ser terminante de qualquer
uma das propriedades normalmente atribuídas a Deus: omnipotência,
omnisciência, bondade, criatividade de concepção , para não falar de
62

atributos humanos como ouvir preces, perdoar pecados e ler os mais


íntimos pensamentos. Diga-se, a propósito, que não escapou à atenção
dos lógicos a circunstância de a omnisciência e a omnipotência serem
mutuamente incompatíveis. Se Deus é omnisciente, já deve saber como
vai intervir para mudar o rumo da História usando a sua omnipotência.
Mas isso significa que não pode mudar de ideias quanto à intervenção,
o que quer dizer que não é omnipotente. Karen Owens conseguiu
traduzir este pequeno e engenhoso paradoxo em versos não menos
curiosos:

Pode Deus omnisciente, que


O futuro bem conhece, ser
A ponto omnipotente, de
Mudar o Seu futuro querer?

Voltando à regressão infinita e à futilidade que é invocar Deus para


lhe pôr termo, é mais económico invocar, por exemplo, uma
«singularidade à big bang» ou um qualquer outro conceito físico até
agora desconhecido. Chamar-lhe Deus é, na melhor das hipóteses,
inútil, e na pior, perniciosamente enganador. A «Receita anedótica de
costeletas migalhóficas», de Edward Lear, convida-nos a «pegar em
algumas tiras de carne de vaca e cortá-las em pedaços o mais pequenos
possível, e depois a cortá-los umas oito ou nove vezes, em pedacinhos
cada vez mais pequenos». Algumas regressões acabam por ir ter, de
facto, a um ser terminante natural. Dantes os cientistas perguntavam-se
o que aconteceria se fosse possível dissecar, por exemplo, ouro em
pedaços o mais pequenos possível. Por que razão não haveríamos de
cortar um desses pedaços a meio e criar uma pepita ainda mais pequena
de ouro? Neste caso, a regressão encontra um termo definitivo, que é o
átomo. O pedaço de ouro mais pequeno possível é um núcleo que
consiste em exactamente 79 protões e um número ligeiramente maior
de neutrões, envoltos num enxame de 79 electrões. Se continuarmos a
«cortar» ouro para além do nível do átomo, então, qualquer que seja o
resultado, não é ouro. O exemplo do átomo ilustra um ser terminante
natural do tipo de regressão das «costeletas migalhóficas». Não é de
modo algum claro que Deus seja um ser terminante natural das
regressões de Tomás de Aquino. E isto é para falar com suavidade,
como veremos adiante. Mas retomemos a lista do teólogo.

4. O argumento da gradação. Apercebemo-nos de que as coisas, no


mundo, diferem entre si. Há graus de bondade, digamos, ou de
perfeição. Mas só avaliamos esses graus comparando-os com um
máximo. Os humanos podem ser bons e maus, o que quer dizer
que a bondade máxima não pode estar em nós. Assim sendo, tem
de haver um outro máximo que estabeleça o padrão da perfeição,
e a esse máximo chamamos Deus.

Isto é um argumento? Também podemos dizer que as pessoas variam


em mau cheiro, mas só podemos fazer a comparação tendo como
referência um máximo perfeito de mau cheiro imaginável. Por
conseguinte, é forçoso que haja alguém notória e incomparavelmente
fedorento, e a esse alguém chamamos Deus. Agora substitua-se
qualquer um dos termos acima por uma dimensão comparativa à
escolha, e veja-se como se obtém uma conclusão igualmente tola.

5. O argumento teleológico, ou argumento do desígnio. As coisas do


mundo, sobretudo as coisas vivas, têm o aspecto de obedecer a
uma concepção, um desígno/desenho. Nada do que conhecemos
tem aspecto de ter sido concebido a menos que o tenha sido.
Assim sendo, teve de haver um criador, ao qual chamamos Deus. 63

O próprio Tomás de Aquino usou a analogia de uma seta


dirigindo-se para um alvo, mas um moderno míssil antiaéreo com
sensor térmico serviria melhor o seu objectivo.

O argumento do desígnio é o único ainda utilizado, sendo também ainda,


para muitos, o argumento infalível para arrumar com a questão. O jovem
Darwin deixou-se impressionar por ele quando, ainda estudante
universitário, o leu na Natural Theology, de William Paley. Infelizmente
para Paley, o Darwin da maturidade varreu por completo a sua teoria.
Provavelmente nunca se assistiu a uma debandada tão avassaladora de uma
crença popular em consequência de uma argumentação sagaz, como a
destruição do argumento do desígnio por Charles Darwin. Foi algo
completamente inesperado. Graças a Darwin, deixou de ser verdade dizer
que nada do que conhecemos tem aspecto de ter sido concebido a menos
que o tenha sido. A evolução através da selecção natural produz um
excelente simulacro de criação, elevando-se a prodigiosos primores de
complexidade e elegância. E entre estes píncaros de pseudocriação
encontram-se os sistemas nervosos, os quais - entre os seus mais modestos
feitos - manifestam um comportamento de busca de objectivos que, mesmo
no caso de um insecto minúsculo, se assemelha mais ao míssil de sensor
térmico do que a uma simples seta apontada ao alvo. Voltarei ao argumento
do desígnio no capítulo quarto.

O argumento ontológico
e outros argumentos a priori
Os argumentos para a existência de Deus dividem-se em duas grandes
categorias: a categoria a priori e a categoria a posteriori. Os cinco
argumentos de Tomás de Aquino são a posteriori, estando dependentes do
cotejo com o mundo. O argumento a priori mais famoso, aquele que tem
por base o puro raciocínio de poltrona, é o argumento ontológico proposto
por Santo Anselmo de Cantuária, em 1078, e desde então reafirmado de
diferentes formas por diversos filósofos. Um estranho aspecto do argumento
de Santo Anselmo é o facto de ter sido originariamente dirigido não aos
humanos, mas sim ao próprio Deus, sob a forma de prece (seria de pensar
que uma entidade capaz de ouvir uma prece não precisaria de ser
convencida da sua própria existência).
Nas palavras de Anselmo, é possível conceber um ser maior do que o qual
nada se pode pensar. Até um ateu consegue conceber um tal ser superlativo,
embora negue a sua existência no mundo real. Mas, segundo o argumento,
um ser que não existe no mundo real é, por isso mesmo, menos do que
perfeito. Assim, temos uma contradição - et voilà, Deus existe!
Permitam-me que traduza este infantil argumento para linguagem
adequada, isto é, a linguagem do recinto de recreio:

– Aposto contigo que consigo provar que Deus existe.


– Aposto que não consegues.
– Está bem, imagina a coisa mais perfeita perfeita perfeita possível.
– Sim, e agora?
– Agora, essa coisa perfeita perfeita perfeita é real? Existe?
– Não, é só na minha imaginação.
– Mas se fosse real era ainda mais perfeita, porque uma coisa mesmo
mesmo perfeita tinha de ser melhor do que uma palermice de uma coisa
imaginária. Portanto, provei que Deus existe. Nha nha nha nha nhaaa
nha! Todos os ateus são tolos.

Foi de propósito que pus o meu infantil sabichão a usar a palavra «tolos».
O próprio Santo Anselmo cita o primeiro versículo do salmo 14 - «O tolo
diz em seu coração: “Não há Deus!”» -, e tem o descaramento de usar o
termo «insensato» (insipiens, em latim) para o seu hipotético ateu:

Daí que até o tolo esteja convencido de que existe, no entendimento


pelo menos, algo maior do que o qual nada se pode pensar. Porque
quando ouve isto, ele entende-o. E seja o que for que é entendido, existe
no entendimento. E seguramente que aquele maior do que o qual nada
se pode pensar não pode existir só no entendimento. Porque,
suponhamos que existe só no entendimento: então pode conceber-se
que existe na realidade; que é maior.
Sinto-me esteticamente ofendido só com a ideia de que se possam retirar
grandes conclusões destes truques logomáquicos e, como tal, tenho de me
abster de esgrimir palavras como «tolo». Bertrand Russell (nada tolo) disse
uma coisa interessante: «É mais fácil sentirmo-nos convencidos de que [o
argumento ontológico] é falacioso do que descobrir onde está, exactamente,
a falácia.» O próprio Russell, quando jovem, deixou-se durante algum
tempo convencer por ela:

Lembro-me do preciso momento, num dia, em 1894, ao caminhar pela


Trinity Lane, em que vi num lampejo (ou pensei ter visto) que o
argumento ontológico é válido. Tinha saído para comprar uma lata de
tabaco; no regresso, atirei-a de repente ao ar e exclamei ao apanhá-la:
«Diacho! O argumento ontológico está correcto.»

Por que razão, pergunto-me eu, não disse Russell algo como: «Diacho! O
argumento ontológico parece plausível. Mas não será bom de mais para ser
verdade que um mero jogo de palavras dê lugar a uma grande verdade
acerca do cosmos? É melhor pôr mãos à obra, a ver se soluciono o que
provavelmente não é mais do que um paradoxo como os de Zenão.» A
«prova» de Zenão, de que Aquiles nunca iria apanhar a tartaruga, deixava os
Gregos confusos. Mas tiveram o bom senso de não concluir que, por esse
64

motivo, Aquiles não iria, de facto, conseguir apanhar a tartaruga. Em vez


disso, chamaram-lhe paradoxo e deixaram que as posteriores gerações de
matemáticos o explicassem. O próprio Russell estava, é claro, igualmente
habilitado a perceber porque não se atiram latas de tabaco ao ar para
comemorar o facto de Aquiles não conseguir apanhar a tartaruga. Por que
razão não teve ele o mesmo cuidado relativamente a Santo Anselmo?
Parece-me que foi um ateu exageradamente justo, demasiado ansioso por se
deixar desiludir, se a lógica assim o exigisse. Ou talvez a resposta esteja
65

num texto que o próprio Russell escreveu em 1946, muito depois de ter
desmontado o argumento ontológico:

A verdadeira questão é: haverá alguma coisa em que pensemos, que,


pelo simples facto de a podermos pensar, se demonstre existir fora do
nosso pensamento? Todos os filósofos gostariam de dizer que sim,
porque a função do filósofo é descobrir coisas do mundo mais através
do pensamento do que da observação. Se a resposta certa é sim, há uma
ponte que liga o puro pensamento às coisas. Se for não, então não.

Pelo contrário, a minha reacção teria sido automaticamente uma suspeita


profunda em relação a qualquer linha de raciocínio que chegasse a uma
conclusão tão importante sem ir buscar quaisquer dados ao mundo real.
Talvez isto não faça mais do que mostrar que sou um cientista e não um
filósofo. É verdade que, ao longo dos séculos, os filósofos têm levado a
sério o argumento ontológico, pronunciando-se tanto a favor dele como
contra. O filósofo ateu J. L. Mackie oferece uma reflexão particularmente
clara em The Miracle of Theism. É um elogio quando digo que quase se
pode definir um filósofo como alguém que não aceita o senso comum como
resposta.
As refutações mais decisivas do argumento ontológico são normalmente
imputadas aos filósofos David Hume (1711-76) e Immanuel Kant (1724-
1804). Para Kant, o truque na manga de Anselmo é o capcioso pressuposto
de que a «existência» é mais «perfeita» do que a não-existência. O filósofo
norte-americano Norman Malcolm disse-o desta forma: «A doutrina
segundo a qual a existência é perfeição é extraordinariamente bizarra. Faz
sentido, e é verdade, dizer-se que a minha futura casa será melhor se tiver
isolamento do que se não o tiver; mas o que significará dizer que é uma casa
melhor se existir do que se não existir?» Outro filósofo, o australiano
66

Douglas Gasking, defendeu a mesma ideia com a sua «prova» irónica


segundo a qual Deus não existe (e já Gaunilo, contemporâneo de Santo
Anselmo, tinha sugerido uma reductio semelhante).

1. A criação do mundo é o mais maravilhoso feito que se pode


imaginar.

2. O mérito de um feito é o produto a) da sua qualidade intrínseca e,


b), da capacidade do seu criador.

3. Quanto maior a incapacidade (ou as limitações) do criador, mais


impressionante é o feito.

4. A limitação mais colossal, para um criador, seria a não-existência.


5. Assim, se supusermos que o universo é produto de um criador
existente, podemos conceber um ser maior - nomeadamente um
ser que tudo criou, ainda que não exista.

6. Portanto, um Deus existente não seria um ser maior do que o qual


não é possível conceber algo de maior, porque um criador ainda
mais colossal e incrível seria um Deus que não existiria.

Ergo:

7. Deus não existe.

Escusado será dizer que Gasking, na realidade, não provou que Deus não
existe. Pela mesma razão, Anselmo não provou que ele existe. A única
diferença reside no facto de o humor de Gasking ser propositado. Na sua
perspectiva, a existência ou não-existência de Deus é uma questão
demasiado vasta para ser decidida através de «prestidigitação dialéctica». E
não penso que a utilização capciosa da existência como indicador da
perfeição seja o pior problema do argumento em causa. Esqueci-me dos
pormenores, mas uma vez espicacei uma assembleia de teólogos e filósofos
ao adaptar o argumento ontológico para provar que os porcos conseguem
voar. Aí sentiram-se na necessidade de recorrer à lógica modal para provar
que eu estava errado.
O argumento ontológico, como todos os argumentos a priori a favor da
existência de Deus, lembra-me a personagem do velho do romance de
Aldous Huxley Contraponto, que descobre uma prova matemática da
existência de Deus:

Conhece a fórmula m sobre zero igual a infinito, sendo m um número


positivo qualquer? Bem, porque não reduzir a equação a uma forma
mais simples, multiplicando ambos os membros por zero? E nesse caso
temos que m igual a infinito vezes zero. Isto é o mesmo que dizer que
um número positivo é o produto de zero e infinito. Isto não demonstra a
criação do universo por um poder infinito vindo do nada? Não
demonstra?
Infelizmente não há como confirmar o famoso episódio que põe frente a
frente Diderot, o enciclopedista do iluminismo, e o matemático suíço Euler.
Segundo a lenda, Catarina da Rússia terá encenado um debate entre ambos,
tendo o devoto Euler lançado ao ateu Diderot o seguinte desafio: «Monsieur
(a + bn)/n = x, logo Deus existe. Responda!»
O importante, segundo este mito, é que Diderot não era matemático, e daí
ter ficado perplexo e sem resposta. Mas como B. H. Brown escreveu no
American Mathematical Monthly, em 1942, Diderot era efectivamente
muito bom como matemático, pelo que dificilmente se deixaria levar por
aquilo a que podemos chamar o argumento de ofuscar com ciência (neste
caso, Matemática). Em Atheist Universe, David Mills transcreve uma
entrevista radiofónica por si concedida a um porta-voz religioso, que, numa
tentativa estranhamente ineficaz de o ofuscar com ciência, invocou a lei da
conservação da massa-energia: «Uma vez que somos todos compostos de
matéria e energia, esse princípio científico não dá credibilidade à crença na
vida eterna?» Mills foi mais paciente e educado na resposta do que eu teria
sido, uma vez que, traduzido para linguagem que se entenda, o que o
entrevistador estava a dizer nada era mais do que isto: «Quando morremos,
nenhum dos átomos do nosso corpo (e nenhuma da energia) se perde. Assim
sendo, somos imortais.»
Nem a mim, com toda a minha experiência, se me deparou alguma vez
um caso tão idiota de se tomar os desejos por realidade. Encontrei, no
entanto, muitas das magníficas «provas» reunidas no endereço
http://www.godlessgeeks.com/LINKS/GodProof.htm, uma cómica lista
numerada das «mais de 300 provas da existência de Deus». Eis uma
hilariante meia dúzia, começando com a prova número 36.

36. Argumento da devastação incompleta: Um avião caiu, do que


resultou a morte de 143 passageiros e da tripulação. Mas uma criança
sobreviveu só com queimaduras de terceiro grau. Logo, Deus existe.

37. Argumento dos mundos possíveis: Se tudo se tivesse passado de


modo diferente, tudo seria diferente. Isso seria mau. Logo, Deus existe.

38. Argumento da pura vontade: Eu acredito mesmo em Deus! Eu


acredito mesmo em Deus! Acredito mesmo mesmo mesmo. Eu acredito
mesmo em Deus! Logo, Deus existe.

39. Argumento da não-crença: A maioria da população mundial não


acredita no Cristianismo. Era isto que Satanás queria. Logo, Deus
existe.

40. Argumento da experiência pós-morte: A pessoa X morreu ateia.


Agora sabe que estava errada. Logo, Deus existe.

41. Argumento da chantagem emocional: Deus ama-te. Como podes ser


tão cruel ao ponto de não acreditares nele? Logo, Deus existe.

O argumento da beleza
Uma outra personagem do livro de Aldous Huxley há pouco referido
prova a existência de Deus pondo a tocar, num gramofone, o Quarteto de
Cordas n.º 15, em lá menor, de Beethoven (Heiliger Dankgesang). Por
pouco convincente que pareça, trata-se, na realidade, de uma corrente
argumentativa muito popular. Desisti de contar as vezes em que, com mais
ou menos truculência, me atiram com o desafio: «Como justifica
Shakespeare, então?» (Substitua-se Shakespeare a gosto - por Schubert,
Miguel Ângelo, etc.) O argumento soa de tal modo familiar que nem será
preciso documentá-lo aqui. Mas a lógica por detrás dele nunca é explicitada,
e quanto mais se pensa na questão, mais oca ela nos parece. É claro que os
quartetos da última fase de Beethoven são sublimes, tal como os sonetos de
Shakespeare. São sublimes se houver Deus e são-no se não houver. Não
provam a existência de Deus, provam a existência de Beethoven e de
Shakespeare. Consta que um grande maestro terá dito: «Se temos Mozart
para ouvir, para que precisamos de Deus?»
Fui uma vez o convidado da semana num programa de rádio britânico
chamado Desert Island Discs. Temos de escolher oito discos que
levaríamos connosco se fôssemos parar a uma ilha deserta. Entre as minhas
escolhas contava-se Mache dich mein Herze rein, da Paixão segundo São
Mateus, de Bach. O entrevistador disse não compreender como era possível
eu escolher música religiosa não sendo religioso. É o mesmo que perguntar
como se pode gostar do Monte dos Vendavais quando se sabe perfeitamente
que Cathy e Heathcliff nunca existiram de facto.
Mas há mais um aspecto que eu poderia ter acrescentado e que deve ser
referido sempre que, por exemplo, se atribui à religião a Capela Sistina ou a
Anunciação, de Rafael. Até os grandes artistas têm de ganhar a vida,
aceitando encomendas onde as houver. Não tenho razões para duvidar de
que Rafael e Miguel Ângelo eram cristãos - era quase a única opção, na
época -, mas tal facto é pouco mais do que acessório. A imensa riqueza
acumulada pela Igreja fazia dela o principal patrono das artes. Se a História
tivesse tido uma marcha diferente e a Miguel Ângelo tivesse sido pedido
que pintasse o tecto de um gigantesco Museu de Ciência, será que não tinha
criado algo no mínimo tão inspirador como a Capela Sistina? Que pena
nunca chegarmos a poder ouvir a Sinfonia Mesozóica, de Beethoven, ou a
ópera O Universo em Expansão, de Mozart. E que pena termos ficado
privados da Oratória da Evolução?, de Haydn - mas isso não nos impede de
apreciar a sua Criação. Para abordar o argumento do ângulo oposto: e se,
como arrepiantemente me sugere a minha mulher, Shakespeare se tivesse
visto obrigado a trabalhar para a Igreja? De certeza que teríamos perdido
Hamlet, o Rei Lear e Macbeth. E que teríamos ganho em troca? Aquilo de
que se fazem os sonhos? Pois sim! Sonhar é bom.
Se há um argumento lógico que ligue a existência da arte elevada e a
existência de Deus, ele não é explicitado pelos respectivos proponentes.
Parte-se simplesmente do princípio de que se está perante uma auto-
evidência, o que seguramente não é o caso. Talvez haja que encará-lo como
mais uma versão do argumento do desígnio: o cérebro musical de Schubert
é uma maravilha da improbabilidade, mais ainda do que o olho dos
vertebrados. Ou, dizendo de modo mais corriqueiro, talvez seja uma espécie
de inveja relativamente aos génios. Como ousa um outro ser humano fazer
tão bela música/poesia/arte, quando eu não sou capaz? Deve ter sido Deus o
autor.

O argumento da «experiência» pessoal


Um dos meus antigos colegas da universidade mais dotados e maduros,
que era muito religioso, foi acampar nas ilhas escocesas. A meio da noite,
dormia com a namorada sob a tenda quando foram acordados pela voz do
Diabo - do próprio Satanás; não havia margem para dúvidas: a voz era em
tudo diabólica. O meu amigo nunca viria a esquecer essa terrível
experiência, que de resto foi um dos factores que mais tarde o levaram a ser
ordenado sacerdote. O meu jovem ego ficou impressionado com esta
história, que relatei perante um grupo de zoólogos, num momento de
descontracção no Rose and Crown Inn, em Oxford. Por acaso dois deles
eram ornitólogos experientes e riram às gargalhadas. «Pardela da ilha de
Man!», gritaram em alegre coro. Um deles acrescentou que os cacarejos e
guinchos diabólicos desta espécie lhe valeram, em várias partes do mundo e
em diversas línguas, a alcunha local de «Pássaro do Diabo».
Muitas pessoas acreditam em Deus porque pensam ter tido, com os
próprios olhos, uma visão dele - ou de um anjo, ou de uma Nossa Senhora
vestida de azul. Ou então porque, dentro das suas cabeças, Deus fala com
elas. Este argumento da experiência pessoal é o mais convincente para os
que afirmam ter tido tal experiência, mas é o menos convincente para o
resto das pessoas e para quem quer que esteja bem informado sobre
psicologia.
Há quem diga que teve uma experiência directa de Deus? Bem, há quem
diga que teve uma experiência com um elefante cor-de-rosa, mas isso
provavelmente já não deixa ninguém impressionado. Peter Sutcliffe, o
estripador do Yorkshire, ouvia distintamente a voz de Jesus a dizer-lhe que
matasse mulheres e foi parar à prisão para o resto da vida. George W. Bush
afirma que Deus lhe disse para invadir o Iraque (que pena Deus não se ter
dignado fazer-lhe a revelação de que não existiam armas de destruição
maciça). Há indivíduos em hospícios que pensam que são Napoleão ou
Charlie Chaplin, ou que todo o mundo conspira contra eles, ou que
conseguem transmitir os seus pensamentos para a cabeça de outras pessoas.
Somos condescendentes com esses, mas não levamos a sério as crenças que
no íntimo se lhes revelam, sobretudo porque não há muita gente que partilhe
dessas revelações. As experiências religiosas são diferentes destas apenas
no facto de as pessoas que as reivindicam serem em grande número. Sam
Harris não estava a ser cínico em demasia quando, em The End of Faith,
escreveu:

Temos nomes para chamar às pessoas que têm muitas crenças para as
quais não existe justificação racional. Quando as suas crenças são
extremamente comuns, chamamos-lhes «religiosas»; caso contrário, o
mais provável é chamarmos-lhes «loucas», «psicóticas», ou «vítimas de
delusão»... É óbvio que a sanidade depende dos números. E, no entanto,
é por mero acidente da História que se considera normal na nossa
sociedade acreditar que o Criador do universo consegue ouvir os nossos
pensamentos, ao passo que é sinal de doença mental acreditar que ele
comunica connosco fazendo a chuva tamborilar em código Morse
contra a janela do nosso quarto. E assim, embora de um modo geral as
pessoas religiosas não sejam loucas, as suas crenças mais profundas
são-no.

Voltarei ao tema das alucinações no capítulo décimo.


O cérebro humano utiliza software de simulação de primeira água. Os
nossos olhos não transmitem ao cérebro uma fotografia precisa daquilo que
nos rodeia, nem um filme exacto do que se vai passando ao longo do tempo.
O nosso cérebro constrói um modelo permanentemente actualizado:
actualizado através de impulsos codificados que vibram ao longo do nervo
óptico, mas em todo o caso construído. As ilusões de óptica recordam-no-lo
com toda a nitidez. Um dos principais tipos de ilusão, de que o cubo de
67

Necker é exemplo, ocorre porque os dados sensoriais que o cérebro recebe


são compatíveis com dois modelos alternativos de realidade. O cérebro, não
tendo base para escolher entre um ou outro, vai alternando, o que leva a que
experienciemos uma série de saltos de um modelo interno para outro. A
imagem para a qual estamos a olhar parece, quase literalmente, virar-se para
passar a ser outra coisa.
O software de simulação do cérebro é perito na construção de caras e
vozes. Tenho no peitoril da minha janela uma máscara de plástico de
Einstein. Quando vista de frente parece uma cara maciça, o que não
surpreende. O que já espanta é que, quando a vemos de trás, pelo lado oco,
também parece maciça e a percepção que temos é, de facto, muito estranha.
Conforme o observador se movimenta, ela parece segui-lo - não da forma
ténue e pouco convincente que se diz que os olhos da Mona Lisa nos
seguem. A máscara oca parece realmente mover-se. Quem observa a ilusão
pela primeira vez fica atónito. Mais estranho ainda, quando a máscara está
montada sobre uma plataforma giratória, ela parece rodar na direcção certa
quando olhamos para o lado maciço, mas na direcção oposta quando o lado
oco aparece. O resultado é que, quando observamos a transição de um dos
lados para o outro, aquele que está no momento a aparecer parece «comer»
o lado que vai desaparecendo. É uma ilusão espantosa e que vale a pena
darmo-nos ao trabalho de ver. Por vezes, podemos chegar
surpreendentemente perto da cara oca e ainda assim não ver que é
«realmente» oca. Quando nos conseguimos aperceber, ela sofre uma vez
mais um súbito revirar, que pode voltar a inverter-se.
Por que razão é que isto acontece? A construção da máscara não tem
truque nenhum. Qualquer máscara oca serve. O truque está todo no cérebro
de quem observa. O simulador de software interno recebe dados que
indicam a presença de uma cara, talvez não mais do que uns olhos, um nariz
e uma boca mais ou menos nos sítios certos. Após ter recebido estas vagas
pistas, o cérebro faz o resto. O software de simulação facial põe-se em
acção e constrói um modelo de cara inteiramente maciço, ainda que aquilo
que a realidade apresenta aos olhos seja uma máscara oca. A ilusão de
rotação na direcção errada acontece porque (é difícil, mas analisando o
fenómeno com cuidado é possível confirmá-lo) a rotação inversa é a única
forma de conferir sentido aos dados ópticos quando uma máscara oca vai
rodando ao mesmo tempo que é percepcionada como sendo uma máscara
maciça . É como a ilusão de estarmos perante um prato de radar rotativo,
68

dada pelos radares que às vezes vemos nos aeroportos. Até o cérebro dar a
volta para o modelo correcto de radar, o que vemos é um modelo incorrecto
a rodar na direcção errada, mas de uma forma estranhamente torta.
Refiro tudo isto para demonstrar o tremendo poder do software de
simulação do cérebro. Ele é bem capaz de construir «visões» e «aparições»
extremamente verosímeis. Simular um fantasma, um anjo ou uma Virgem
Maria seria uma brincadeira de crianças para software com esta
sofisticação. E o mesmo se pode dizer da audição. Quando ouvimos um
som, ele não é fielmente transportado pelo nervo auditivo e transmitido ao
cérebro como se de um sistema de alta-fidelidade Bang & Olufsen se
tratasse. Tal como acontece com a visão, o cérebro constrói um modelo
sonoro baseado em dados auditivos continuamente actualizados. É por isso
que ouvimos a rajada de um trompete como uma nota só e não como uma
mistura de harmónicos puros que lhe confere o aspecto de um rosnar de
metais. Um clarinete a tocar a mesma nota tem um timbre de madeira e um
oboé tem um som «de metal» por causa da desigual distribuição de
harmónicos. Se manipularmos cuidadosamente um sintetizador de som de
maneira a puxarmos, um de cada vez, os diferentes harmónicos, o cérebro
ouve-os durante algum tempo como uma combinação de sons puros até que
o seu software de simulação «topa» o que se está a passar e, a partir desse
momento ouvimos uma única nota de puro trompete, oboé ou seja o que for.
As vogais e consoantes da fala são construídas no cérebro da mesma
maneira, bem como, a um nível mais elevado, os fonemas e as palavras.
Um dia, quando era criança, ouvi um fantasma: uma voz masculina que
murmurava, como se estivesse a recitar ou a rezar. Quase conseguia
distinguir as palavras, que pareciam ter um timbre sério, solene. Tinham-me
contado histórias de esconderijos em casas antigas e estava um bocado
assustado. Mas levantei-me da cama e, de mansinho, fui-me aproximando
da origem do som. À medida que me aproximava, ele aumentava e de
repente «deu a volta» dentro da minha cabeça. Estava agora suficientemente
perto para discernir do que realmente se tratava. O vento, irrompendo pelo
buraco da fechadura, produzia sons que o software de simulação no meu
cérebro tinha usado para construir um modelo de fala masculina em toada
solene. Tivesse eu sido uma criança mais impressionável e é possível que
tivesse «ouvido» não só um discurso ininteligível, mas também palavras
exactas e até mesmo frases. E tivesse eu sido impressionável e educado
religiosamente, imagine-se que palavras o vento não teria proferido.
Numa outra ocasião, quando tinha aproximadamente a mesma idade, vi
uma gigantesca cara redonda a olhar fixamente, com indescritível maldade,
pela janela de uma casa em tudo o resto normal, numa aldeia costeira.
Aproximei-me a tremer até chegar suficientemente perto para ver do que
realmente se tratava: apenas uma vaga forma semelhante a uma cara, criada
ao acaso pelo cair do cortinado. A cara, tal como o seu aspecto maldoso,
haviam sido construídos no meu medroso cérebro de criança. No dia 11 de
Setembro de 2001, pessoas devotas julgaram ver a cara de Satanás no fumo
que se erguia das Torres Gémeas: uma superstição apoiada numa fotografia
publicada na Internet e amplamente divulgada.
A construção de modelos é algo em que o cérebro humano é muito bom.
Quando estamos a dormir, chama-se a isso sonhar; quando estamos
acordados, chama-se imaginação ou, se é excepcionalmente vívido,
alucinação. Como poderemos ver no capítulo décimo, as crianças que têm
«amigos imaginários» vêem-nos por vezes de forma distinta, tal qual como
se fossem reais. Se somos ingénuos, não reconhecemos a alucinação ou o
sonho lúcido por aquilo que são e afirmamos ter visto ou ouvido um
fantasma; ou um anjo; ou Deus; ou - sobretudo se formos jovens, do sexo
feminino e católicas - a Virgem Maria. Tais visões e manifestações não
constituem, por certo, fundamento aceitável para se acreditar na efectiva
presença de fantasmas ou anjos, deuses ou nossas senhoras.
À primeira vista, as visões experienciadas por grandes massas, como o
relato de que 70 000 peregrinos em Fátima viram o Sol «rasgar os céus e
abater-se sobre a multidão», em1917, são mais difíceis de descartar. Não é
69

fácil explicar como 70 000 pessoas podem partilhar a mesma alucinação.


Mas é ainda mais difícil aceitar que tenha mesmo acontecido sem que o
resto do mundo, para além de Fátima, tivesse visto também - e não apenas
visto, mas sentido, em simultâneo com uma destruição catastrófica do
sistema solar que deveria ter desencadeado forças de aceleração suficientes
para arremessar toda a gente em direcção ao espaço. É impossível não nos
lembrarmos do arguto teste a milagres proposto por David Hume: «Nenhum
testemunho basta para provar um milagre, a menos que esse testemunho
seja de tal ordem que a sua falsidade seja mais miraculosa do que o facto
que procura provar.»
Pode parecer improvável que 70 000 pessoas possam ser iludidas ao
mesmo tempo, ou que possam em simultâneo estar em conluio numa
mentira em massa. Ou que a História se tenha equivocado ao registar que 70
000 pessoas afirmaram ter visto o Sol dançar. Ou que todos em simultâneo
tenham tido uma miragem (note-se que as pessoas haviam sido persuadidas
a olhar fixamente para o Sol, o que não lhes terá feito muito bem à vista).
Mas qualquer uma destas aparentes improbabilidades é de longe mais
provável do que a alternativa, ou seja, que a Terra foi de súbito arrancada
lateralmente da sua órbita e o sistema solar foi destruído, sem que ninguém
fora de Fátima disso se tenha apercebido. Vamos lá a ver, Portugal não é
assim tão isolado quanto isso. 70

E nada mais há a dizer sobre as «experiências» pessoais com deuses ou


outros fenómenos religiosos. Quem teve uma experiência do género pode
muito bem acreditar piamente que foi real. Mas não espere que o resto das
pessoas acreditem na sua palavra, sobretudo se tiverem a mínima
familiaridade com o cérebro e os seus poderosos mecanismos.
O argumento das Escrituras
Há ainda algumas pessoas que são persuadidas a acreditar em Deus pelas
provas bíblicas. Um argumento comum, imputado, entre outros, a C. S.
Lewis (e logo quem!), refere que, uma vez que Jesus afirmava ser o Filho de
Deus, ou teria razão ou então era louco ou mentiroso: «Louco, mau ou
Deus». Ou, para usar uma aliteração tosca, «insano, falso ou Senhor». A
prova histórica de que Jesus teria um estatuto divino é mínima. Mas ainda
que as provas fossem fortes, o trilema apresentado seria absurdamente
inadequado. Uma quarta possibilidade, tão óbvia que quase não merece ser
mencionada, é Jesus ter cometido um erro involuntário. Muita gente incorre
no mesmo. De qualquer modo, e como afirmei, não existem provas
históricas fortes que atestem que Jesus alguma vez tenha pensado ser
divino.
O facto de haver algo escrito é convincente para aqueles que não estão
habituados a fazer perguntas como: «Quem o escreveu, e quando?» «Como
sabiam o que escrever?» «Será que, naquele tempo, queriam realmente dizer
aquilo que nós, agora, entendemos?» «Eram observadores imparciais, ou
tinham uma agenda pessoal que imprimia um certo viés àquilo que
escreviam?» Desde o século XIX que estudiosos de Teologia vêm
demonstrando de forma esmagadora que os Evangelhos não são relatos fiéis
do que aconteceu na história do mundo real. Todos eles foram escritos
muito depois da morte de Jesus e também depois das epístolas de Paulo, que
quase não mencionam os pretensos factos da vida de Jesus. Foram todos
copiados e recopiados ao longo de muitas «gerações de murmúrios
chineses» diferentes (ver o capítulo quinto) por copistas falíveis, que, de
qualquer modo, tinham também as suas próprias agendas religiosas.
Um bom exemplo do enviesamento por causa de agendas religiosas é a
reconfortante lenda do nascimento de Jesus em Belém, seguida do massacre
dos inocentes por Herodes. Quando os Evangelhos foram escritos, muitos
anos após a morte de Jesus, ninguém sabia onde ele tinha nascido. Mas uma
profecia do Antigo Testamento (Miqueias 5: 2) levara os Judeus a pensarem
que o tão esperado Messias nasceria em Belém. À luz desta profecia, o
Evangelho de São João faz concretamente notar que os seus seguidores
ficaram surpreendidos por ele não ter nascido em Belém: «Outros
afirmavam: “É o Messias!” Outros, porém, diziam: “O Cristo virá da
Galileia? Não diz a Escritura que é da descendência de David e da povoação
de Belém, donde era David, que vem o Messias?”»
Mateus e Lucas lidam com o problema de outra forma, decidindo que,
ainda assim, Jesus só poderá ter nascido em Belém. Mas colocam-no lá
através de rotas diferentes. Segundo Mateus, Maria e José estão em Belém
durante todo o tempo e só vão para Nazaré muito depois do nascimento de
Jesus, no regresso do Egipto, para onde tinham fugido do rei Herodes e do
massacre dos inocentes. Lucas, pelo contrário, admite que Maria e José
viviam em Nazaré antes de Jesus nascer. Então, como pô-los em Belém no
momento crucial, de modo a que a profecia fosse cumprida? Lucas diz que,
no tempo em que Cirénio (Quirino) era governador da Síria, César Augusto
decretou um censo para efeitos de impostos, pelo que todos tiveram de
regressar à sua «cidade de origem». José era da casa e linhagem de David e,
portanto, teve de ir para a «cidade de David, que se chama Belém». Esta
deve ter parecido uma boa solução. O problema é que historicamente se
trata de um perfeito disparate, tal como foi salientado por (entre outros) A.
N. Wilson, em Jesus, e Robin Lane Fox, em The Unauthorized Version.
David, a ter existido, viveu cerca de 1000 anos antes de Maria e José. Por
que carga de água iriam os Romanos ordenar a José que voltasse à cidade
onde um antepassado longínquo tinha vivido um milénio antes? É como se
me mandassem indicar, por exemplo, Ashby-de-la-Zouch como minha
cidade natal num impresso de recenseamento, caso conseguisse reconstituir
a minha ascendência até ao Seigneur de Dakeyne, que atravessou o canal
com Guilherme, o Conquistador, e lá se fixou.
Além disso, Lucas estraga toda a datação quando faz descuidadas
referências a acontecimentos que os historiadores podem verificar por vias
alternativas. Houve de facto um recenseamento sob a autoridade do
governador Quirino - um recenseamento local, e não decretado por César
Augusto para todo o império -, mas mais tarde: no ano 6 d. C., ou seja,
muito depois da morte de Herodes. Lane Fox conclui que «o relato de Lucas
é historicamente impossível e falho de coerência interna», mas mostra
compreensão relativamente ao esforço do evangelista e ao seu desejo de dar
cumprimento à profecia de Miqueias.
Na edição de Dezembro de 2004 da Free Inquiry, Tom Flynn, director
dessa excelente revista, reuniu um conjunto de artigos que documentam
contradições e lacunas clamorosas na bem-amada história do Natal. O
próprio Flynn faz uma lista das muitas contradições entre Mateus e Lucas,
os únicos evangelistas que abordam o nascimento de Jesus . Robert 71

Gillooly mostra como todas as componentes essenciais à lenda de Jesus, que


incluem a estrela no Oriente, o parto virginal, a adoração por reis, os
milagres, a execução, a ressurreição e a ascensão, são todas retiradas de
outras religiões já existentes na região do Mediterrâneo e do Próximo
Oriente. Flynn sugere que o desejo de Mateus de fazer cumprir as profecias
messiânicas (a descendência de David, o nascimento em Belém) para ir ao
encontro dos leitores judeus acabou por colidir frontalmente com o desejo
de Lucas de adaptar o Cristianismo aos gentios pela via do afloramento dos
consabidos pontos sensíveis das religiões helenísticas pagãs (o parto
virginal, a adoração por reis, etc.). As contradições que daí advêm são
gritantes, mas os fiéis sempre tenderam a fazer-lhes vista grossa.
Os cristãos com maior sofisticação cultural não precisam de que Ira
Gershwin os convença de que «aquilo que uma criatura/Lê na sagrada
escritura/Não é necessariamente assim». Mas há muitos cristãos menos
sofisticados que pensam que é necessariamente assim, isto é, que levam a
Bíblia muito a sério, como sendo um registo literal e rigoroso da História e,
portanto, como prova das suas crenças religiosas. Será que estas pessoas
nunca abrem o livro que julgam conter a verdade literal? Por que razão não
reparam nestas contradições gritantes? Um literalista não se devia preocupar
com o facto de Mateus fazer remontar a ascendência de José até ao rei
David ao longo de 28 gerações, ao passo que Lucas o faz em 41 gerações?
Mais grave ainda, quase não há coincidências de nomes nas duas listas! Seja
como for, se Jesus realmente nasceu de uma virgem, a ascendência de José
é irrelevante e não pode ser usada para que, em nome de Jesus, se cumpra a
profecia do Antigo Testamento segundo a qual o Messias deveria ser
descendente de David.
Num livro cujo subtítulo é The Story Behind Who Changed the New
Testament and Why, o norte-americano Bart Ehrman, estudioso da Bíblia,
revela a enorme incerteza que recobre os textos do Novo Testamento. Na 72

introdução do livro, o professor Ehrman traça, de modo comovente, a sua


jornada de aprendizagem pessoal desde os seus tempos de fundamentalista
crente na Bíblia até se tornar céptico consciente, uma jornada desencadeada
pela reveladora descoberta da imensa falibilidade das Escrituras. Não deixa
de ser significativo que, à medida que ia subindo na hierarquia das
universidades americanas - desde os seus começos pela base, no Moody
Bible Institute, passando pelo Wheaton College (um pouco acima na escala,
mas ainda assim a alma mater de Billy Graham), ao Seminário Teológico
de Princeton -, Ehrman foi sendo sempre avisado de que teria problemas se,
em face da ameaça do progressismo, continuasse a insistir no seu
Cristianismo fundamentalista. E assim foi; e nós, os seus leitores, é que
beneficiamos com isso. Outras obras refrescantemente iconoclastas de
crítica bíblica são o já mencionado The Unauthorized Version, de Robin
Lane Fox, e The Secular Bible: Why Nonbelievers Must Take Religion
Seriously (KA Bíblia Secular: por que Razão os não-Crentes Devem Levar
a Sério a Religião»), de Jacques Berlinerblau.
Os quatro Evangelhos que chegaram ao cânone oficial foram escolhidos,
mais ou menos de forma arbitrária, a partir de um conjunto mais vasto de
pelo menos uma dúzia, incluindo os Evangelhos de Tomé, Pedro,
Nicodemos, Filipe, Bartolomeu e Maria Madalena . Era a estes outros
73

Evangelhos que Thomas Jefferson se referia na carta ao sobrinho:

Esqueci-me de observar, ao falar do Novo Testamento, que deves ler


todas as histórias de Cristo, tanto as daqueles que um conselho de
eclesiásticos por nós decidiu que eram pseudo-evangelistas, como as
daqueles a que chamaram evangelistas. Isto porque esses pseudo-
evangelistas se reclamavam de uma inspiração idêntica à dos outros, e
deves ser tu a julgar das suas pretensões segundo o teu próprio pensar e
não segundo o desses eclesiásticos.

Os Evangelhos que não chegaram ao cânone foram omitidos por esses


eclesiásticos talvez por incluírem histórias que, pela sua implausibilidade,
causavam um embaraço ainda maior do que as que constam dos quatro
livros canónicos. O Evangelho de Tomé sobre a infância de Cristo, por
exemplo, contém inúmeros episódios anedóticos sobre Jesus enquanto
criança a abusar dos seus poderes mágicos. Aí o vemos, qual fada traquinas,
a transformar em bodes os seus companheiros de brincadeira, a transmutar
lama em pardais, ou a dar uma ajuda ao pai alongando miraculosamente
uma tábua na oficina de carpintaria. Dir-se-á que afinal ninguém acredita
74

em histórias de milagres tão simplórias como as do Evangelho de Tomé.


Mas não há nem mais nem menos motivos para se acreditar nos quatro
Evangelhos canónicos. Todos têm o estatuto de lendas, de uma factualidade
tão dúbia quanto as histórias do rei Artur e dos seus Cavaleiros da Távola
Redonda.
A maior parte daquilo que os quatro Evangelhos têm em comum provém
de uma fonte comum, seja ela o Evangelho de São Marcos ou um texto
perdido do qual Marcos será o mais antigo descendente. Ninguém sabe
quem foram os quatro evangelistas, mas é quase seguro que nunca
conheceram Jesus pessoalmente. Muito do que escreveram não foi, de modo
algum, uma tentativa séria de fazer história, antes se limitaram a reelaborar
e adaptar do Antigo Testamento, uma vez que estavam piamente convictos
de que a vida de Jesus teria de cumprir as profecias do Antigo Testamento.
É mesmo possível sustentar, com base histórica sólida - ainda que a tese
tenha um eco restrito -, que Jesus nunca chegou a existir. Já vários autores o
fizeram, entre os quais o professor G. A. Wells, da Universidade de
Londres, em obras como Did Jesus Exist?
Embora Jesus tenha provavelmente existido, na sua generalidade os
estudiosos da Bíblia mais conceituados não vêem o Novo Testamento (nem
o Antigo Testamento, obviamente) como um registo fiável do que na
realidade aconteceu na História, e irei dispensar-me de continuar a referir-
me à Bíblia como prova de qualquer tipo de divindade. Nas premonitórias
palavras de Thomas Jefferson dirigidas a John Adams, seu antecessor: «Vai
chegar o dia em que a geração mística de Jesus pelo Ser Supremo seu pai no
ventre de uma virgem será classificada ao lado da fábula da geração de
Minerva na cabeça de Júpiter.»
O romance O Código Da Vinci, de Dan Brown, e o filme nele baseado
despertaram grande controvérsia nos círculos da Igreja. Incentiva-se os
Cristãos a boicotarem o filme e a organizarem piquetes nos cinemas em que
é exibido. Trata-se, de facto, de uma obra fabricada do princípio ao fim:
uma invenção, uma ficção. Nesse aspecto é exactamente como os
Evangelhos, com a única diferença de que os Evangelhos são uma ficção
antiga, enquanto O Código Da Vinci é uma ficção moderna.

O argumento dos cientistas religiosos conceituados


A imensa maioria dos homens intelectualmente eminentes
descrê da religião cristã, mas escondem o facto em público
por receio de perderem os proventos.
Bertrand Russel

«Newton era religioso. Quem és tu para te achares superior a Newton,


Galileu, Kepler, etc., etc., etc.? Se Deus era suficientemente bom para
homens destes, quem pensas tu que és?» Ainda que não acrescente muito a
um argumento já de si tão esfarrapado, alguns apologistas chegam a
acrescentar à lista o nome de Darwin, sobre quem rumores persistentes, mas
claramente falsos, de uma conversão no leito de morte vão e vêm
continuamente como um mau cheiro que custa a passar. A história foi
75

posta a circular por uma tal «Lady Hope», que fez um comovente relato de
Darwin reclinado sobre almofadas à luz do fim do dia, folheando o Novo
Testamento e confessando que a teoria da evolução estava toda errada.
Nesta secção vou centrar-me sobretudo em cientistas porque - por razões
que talvez não sejam difíceis de imaginar - quem desfia os nomes de
pessoas respeitadas como modelos religiosos escolhe, geralmente,
cientistas.
Com efeito, Newton dizia-se religioso. Tal como quase toda a gente -
significativamente, penso eu - até ao século XIX, altura em que havia menos
pressões sociais e jurídicas do que em séculos anteriores para professar uma
religião e mais suporte científico para a abandonar. Houve excepções, claro,
e em ambas as direcções. Mesmo antes de Darwin nem todos eram crentes,
como James Haught mostra no seu 2000 Years of Disbelief: Famous People
with the Courage to Doubt. E após Darwin, alguns cientistas distintos
continuaram a acreditar. Não temos motivo para duvidar da sinceridade de
Michael Faraday enquanto cristão, mesmo depois de ter, muito
provavelmente, tomado conhecimento da obra de Darwin. Era membro dos
sandemanianos, seita que acreditava (no pretérito, visto que hoje se encontra
praticamente extinta) numa interpretação literal da Bíblia, seguia o ritual de
lavar os pés dos membros recentemente iniciados e deitava sortes para
determinar a vontade de Deus. Faraday passou a ancião em 1860, portanto
um ano depois da publicação de A Origem das Espécies, e como
sandemaniano morreu em 1867. O homólogo teórico do experimentalista
Faraday, James Clerk Maxwell, foi também um cristão devoto. Também o
foi esse outro grande pilar da Física britânica do século XIX, William
Thomson, Lord Kelvin, que tentou demonstrar que a evolução era uma
hipótese a pôr de parte devido à escassez do tempo. As datações erradas
desse grande especialista em termodinâmica partiam do pressuposto de que
o Sol era uma espécie de fogo, que queimava combustível que se iria
esgotar em dezenas de milhões de anos, em vez de milhares de milhões. É
claro que não se pode esperar que Kelvin possuísse quaisquer
conhecimentos de energia nuclear. E foi agradável ver como, no encontro
de 1903 da British Association, coube a Sir George Darwin, segundo filho
de Charles Darwin (este, sem título de sir), defender o pai invocando a
descoberta do rádio pelos Curie e contrariando, assim, os anteriores cálculos
do ainda vivo Lord Kelvin.
No século XX torna-se mais difícil encontrar grandes cientistas que
professem a religião, mas estes não são, propriamente, raros. Desconfio de
que a maioria dos mais recentes são religiosos apenas no sentido
einsteiniano, o qual, como referi no capítulo primeiro, corresponde a um uso
incorrecto da palavra. Contudo, há alguns espécimes genuínos de bons
cientistas que são realmente religiosos no sentido pleno e tradicional da
palavra. Entre os cientistas britânicos contemporâneos surgem
invariavelmente os mesmos três nomes, agrupados com a afável
familiaridade dos sócios mais antigos de uma firma de advogados de
Dickens: Peacocke, Stannard e Polkinghorne. Todos eles ganharam o
Prémio da Fundação Templeton ou pertencem ao seu conselho de
administradores. Após discussões amigáveis com todos eles, tanto em
público como em privado, a sua crença continua a fazer-me confusão. Não
tanto por acreditarem numa certa espécie de legislador cósmico, mas mais
por acreditarem nos pormenores da religião cristã: a ressurreição, o perdão
dos pecados e tudo o resto.
Há alguns exemplos também nos Estados Unidos, como seja Francis
Collins, director administrativo do ramo norte-americano do Projecto
Genoma Humano oficial. Mas, tal como na Grã-Bretanha, destacam-se
76

pela raridade e são motivo de perplexidade para os seus pares entre a


comunidade académica. Em 1996, entrevistei o meu amigo Jim Watson,
génio fundador do referido projecto, nos jardins do seu antigo Clare
College, em Cambridge, para um documentário da BBC que estava a
realizar sobre Gregor Mendel, o génio fundador da própria genética. Mendel
era, evidentemente, um homem religioso, um monge agostinho; mas isso foi
no século XIX, quando tornar-se monge era a forma mais fácil de o jovem
Mendel se poder dedicar à sua ciência. Para ele era o equivalente a uma
bolsa de investigação. Perguntei a Watson se conhecia, na actualidade,
muitos cientistas religiosos. Watson respondeu: «Quase nenhum. De vez em
quando conheço um ou outro e sinto sempre algum embaraço [risadas]
porque, sabes, não consigo acreditar que alguém aceite a verdade por
revelação.»
Francis Crick, pioneiro, juntamente com Watson, de toda a revolução da
genética molecular, renunciou ao lugar que detinha no Churchill College,
em Cambridge, devido à decisão da escola de construir uma capela (por
ordem de um benfeitor). Na minha entrevista com Watson, em Clare,
confrontei-o com o facto de, ao contrário do que sucede com ele e com
Crick, algumas pessoas não verem qualquer conflito entre ciência e religião,
porque afirmam que a ciência pergunta como as coisas funcionam enquanto
a religião pergunta para que servem. Ao que Watson retorquiu: «Bem, eu
não acho que sirvamos para o que quer que seja. Somos apenas produtos da
evolução. Pode dizer-se: “Caramba, a tua vida deve ser muito soturna se
achas que não há um propósito.” Mas eu estou a contar ir almoçar bem.» E
almoçámos, de facto, bem os dois.
Soam a desesperados os esforços dos apologistas no sentido de encontrar
cientistas modernos genuinamente notáveis que sejam religiosos,
produzindo o som inconfundivelmente cavo de quem raspa o fundo do
barril. A única página da Internet que consegui encontrar que dizia ter uma
lista dos «cristãos cientistas vencedores do Prémio Nobel» menciona seis de
entre um total de várias centenas de prémios Nobel da Ciência. Destes seis,
quatro nem sequer tinham ganho o prémio; e pelo menos um, de que tenha
conhecimento, é um não crente que vai à igreja por motivos meramente
sociais. Um estudo mais metódico conduzido por Benjamin Beit-Hallahmi
«apurou que entre os galardoados com o Prémio Nobel na área das ciências,
bem como na da literatura, se regista um assinalável grau de irreligiosidade
comparativamente com as populações donde são, respectivamente,
provenientes» .77

Um estudo da autoria de Larson e Witham saído na conceituada revista


Nature, em 1998, mostrava que, de entre os cientistas americanos
considerados pelos seus pares suficientemente eminentes para serem eleitos
para a National Academy of Sciences (o equivalente a ser membro da Royal
Society na Grã-Bretanha), apenas sete por cento acreditava num Deus
pessoal. Este predomínio esmagador de ateus é quase o oposto do perfil da
78

população norte-americana em geral, da qual mais de 90 por cento acredita


num ser sobrenatural. O número relativo a cientistas de menor projecção,
não eleitos para a National Academy, fica-se num patamar intermédio. Tal
como com a amostra do grupo mais distinto, os crentes religiosos estão em
minoria, mas uma minoria menos flagrante - cerca de 40 por cento.
Exactamente como eu esperava, os cientistas americanos mostram ser
menos religiosos do que o público americano em geral, e os cientistas mais
destacados são os menos religiosos de todos. O que é extraordinário é o
contraste polar entre a religiosidade do público americano na sua
generalidade e o ateísmo da elite intelectual.
79

Não deixa de ser curioso que a mais destacada página criacionista na


Internet, «Answers in Genesis» («Respostas do Génesis»), cite o estudo de
Larson e Witham, não como prova de que pode haver algo errado com a
religião, mas sim como arma na sua batalha intestina contra os apologistas
religiosos rivais, que defendem que a evolução é compatível com a religião.
Sob o título «A Academia Nacional da Ciência é ímpia até ao tutano», a 80

«Answers in Genesis» tem o prazer de citar o parágrafo final da carta


enviada por Larson e Witham ao director da revista Nature:

Quando compilávamos os nossos resultados, a NAS [National


Academy of Sciences] publicou um folheto incentivando o ensino da
evolução nas escolas públicas, o que nos Estados Unidos tem
constituído uma fonte contínua de atrito entre a comunidade científica e
alguns cristãos conservadores. O folheto assegura aos leitores que «o
facto de Deus existir ou não é uma questão sobre a qual a ciência é
neutra.» Bruce Alberts, presidente da Academia, afirmou: «Há muitos
membros proeminentes desta academia que são pessoas muito
religiosas, pessoas que acreditam na evolução, muitos deles biólogos.»
O nosso inquérito aponta noutro sentido.

Parece que Alberts terá adoptado o NOMA pelas razões que aduzi em «A
escola evolucionista de Neville Chamberlain» (ver capítulo segundo). A
página «Answers in Genesis» tem uma agenda muito diferente.
O equivalente à National Academy of Sciences dos Estados Unidos na
Grã-Bretanha (e na Commonwealth, incluindo o Canadá, a Austrália, a
Nova Zelândia, a Índia, o Paquistão, a África anglófona, etc.) é a Royal
Society. No momento em que este livro vai para a tipografia, os meus
colegas R. Elisabeth Cornwell e Michael Stirrat estão a reduzir a escrito a
sua investigação paralela, mas mais aprofundada, sobre as opiniões
religiosas dos membros da Royal Society. As conclusões serão publicadas
mais tarde na sua totalidade, mas os autores permitiram-me gentilmente que
citasse aqui resultados preliminares. Usaram uma técnica-padrão para a
gradação de opiniões, a escala Likert de sete pontos. Todos os 1074
membros da Royal Society que têm endereço electrónico (a larga maioria)
foram inquiridos, tendo respondido cerca de 23 por cento (um bom número
para este tipo de estudo). Foram-lhes apresentadas várias proposições,
como, por exemplo: «Acredito num Deus pessoal, isto é, um Deus que se
interessa pelas pessoas, que ouve e atende preces, que se preocupa com o
pecado e as ofensas, e que profere juízos.» Para cada uma destas
proposições, pedia-se que escolhessem um número de um (discordância
total) a sete (concordância total). É um pouco difícil comparar os resultados
directamente com o estudo de Larson e Witham, uma vez que estes só
confrontavam os membros da academia com uma escala de três pontos e
não de sete, porém a tendência geral é a mesma. A esmagadora maioria dos
membros da Royal Society, tal como a esmagadora maioria dos académicos
dos Estados Unidos, são ateus. Apenas 3,3 por cento dos fellows britânicos
concordaram totalmente com a afirmação de que existe um deus pessoal
(isto é, escolheram o sete na escala), ao passo que 78,8 por cento
discordaram totalmente (ou seja, escolheram o um na escala). Se definirmos
como «crentes» os que escolheram seis ou sete e como «não crentes» os que
escolheram um ou dois, obtemos uns retumbantes 213 descrentes e uns
meros 12 crentes. A exemplo do que acontecia em Larson e Witham e em
Beit-Hallahmi e Argyle, também Cornwell e Stirrat identificaram uma
pequena mas significativa tendência entre os biólogos para serem ainda
mais ateus do que os físicos. Para mais pormenores e o resto das suas
interessantes conclusões, consulte-se este trabalho quando estiver
publicado.81

Deixando agora a elite de cientistas da National Academy e da Royal


Society, será que existe alguma prova de que, na população em geral, é
maior a probabilidade de os ateus provirem de entre os membros mais
instruídos e mais inteligentes da sociedade? Foram publicados diversos
trabalhos de pesquisa sobre a relação estatística entre a religiosidade e o
grau de instrução, ou a religiosidade e o QI. Michael Shermer, em How we
Believe: The Search for God in an Age of Science, descreve uma grande
sondagem que levou a cabo com o seu colega Frank Sulloway, tendo por
alvo norte-americanos escolhidos aleatoriamente. Dos seus muitos e
interessantes resultados consta a descoberta de que a religiosidade tem, na
verdade, uma correlação negativa com o nível de instrução (as pessoas com
formação superior são menos susceptíveis de ser religiosas). A religiosidade
tem igualmente uma correlação negativa com o interesse pela ciência e (de
maneira muito forte) com inclinações políticas de tipo mais progressista.
Nada disto surpreende, tal como não espanta o facto de haver uma
correlação positiva entre a religiosidade de um indivíduo e a dos pais. Os
sociólogos que estudam as crianças britânicas apuraram que apenas uma em
cada 12 crianças se afasta das crenças religiosas dos pais.
Tal como seria de esperar, investigadores diferentes avaliam as coisas de
maneira diversa, pelo que se torna difícil comparar estudos diferentes. A
metanálise é a técnica de acordo com a qual um investigador observa todos
os trabalhos de investigação publicados sobre determinado assunto e conta o
número dos que chegaram a uma determinada conclusão, por oposição ao
número daqueles que chegaram a conclusões diversas. Quanto ao tópico
religião e QI, a única metanálise de que tenho conhecimento foi publicada
por Paul Bell na Mensa Magazine, em 2002. (Mensa é a sociedade de
pessoas com um QI elevado, e não espanta que a sua revista inclua artigos
sobre a única coisa que os une). Eis a conclusão retirada por Bell: «De um
82

total de 43 estudos realizados desde 1927 sobre a relação entre a crença


religiosa e o grau de inteligência e/ou de instrução, apenas quatro
encontraram uma conexão inversa. Isto é, quanto maior o grau de
inteligência ou de instrução de um indivíduo, menor a probabilidade de esse
indivíduo ser religioso ou de ter “crenças” seja de que tipo for.»
Uma metanálise está, à partida, quase condenada a ser menos concreta do
que qualquer um dos estudos em que se baseia. Seria bom termos mais
estudos nestes moldes e também sobre os membros de outras elites - por
exemplo, outras academias nacionais e outros galardoados com medalhas e
prémios importantes, como o Nobel, o Crafoord, o Fields, o Quioto, o
Cosmos, etc. Espero que das futuras edições deste livro possam constar tais
dados. Uma conclusão sensata dos estudos existentes é que bem fariam os
apologistas religiosos se estivessem mais calados do que é seu costume
quanto ao tema da emulação de personalidades-modelo, pelo menos no que
diz respeito a cientistas.

A aposta de Pascal
De acordo com o grande matemático francês Blaise Pascal, por maiores
que sejam as probabilidades contra a existência de Deus, há uma assimetria
ainda maior no castigo por escolher a opção errada. O melhor é acreditar em
Deus, porque, se estivermos certos, habilitamo-nos a ganhar a felicidade
eterna e, se estivermos errados, não vai fazer diferença nenhuma. Por outro
lado, se não acreditarmos Nele e estivermos errados somos condenados à
maldição eterna, ao passo que se estivermos certos não faz qualquer
diferença. Perante isto, a decisão é facílima. Acreditar em Deus.
No entanto, há algo claramente estranho no argumento. O acreditar não é
algo que esteja sujeito a decisão, um rumo por que se opta. Pelo menos não
é algo que eu possa decidir empreender como um acto de vontade. Posso
decidir ir à igreja, posso decidir recitar o Credo de Niceia e posso decidir
jurar sobre uma pilha de bíblias que acredito em cada palavra lá escrita. Mas
nada disto me fará acreditar, se eu não acreditar de facto. A aposta de Pascal
só poderia ser, quando muito, um argumento para se fingir a crença em
Deus. E era bom que o Deus em que afirmamos acreditar não fosse do tipo
omnisciente, caso contrário dar-se-ia conta da fraude. A ideia absurda de
que acreditar é algo que pode ser objecto de decisão é deliciosamente
ridicularizada por Douglas Adams em Agência de Detectives Holística,
onde nos é dado a conhecer o robô Monge Eléctrico, um dispositivo para
poupar trabalho que se compra «para acreditar por nós». O modelo de luxe é
publicitado como sendo «capaz de acreditar em coisas em que nem em Salt
Lake City se acredita».
Seja como for, porque será que aceitamos tão prontamente a ideia de que
a coisa mais importante que há a fazer para agradar a Deus é acreditar nele?
Que é que o acreditar tem de tão especial? Não será igualmente provável
que Deus recompense a bondade, ou a generosidade, ou a humildade? Ou a
sinceridade? E se Deus for um cientista que considera que a virtude
suprema está na busca honesta da verdade? Na realidade, o criador do
universo não teria forçosamente de ser um cientista? Perguntaram a
Bertrand Russell o que diria se morresse e se Deus o confrontasse
perguntando-lhe por que razão Russell não tinha acreditado nele. «Provas
insuficientes, Deus, provas insuficientes» foi a (eu ia dizer imortal) resposta
de Russell. Não teria Deus respeitado mais Russell pelo seu corajoso
cepticismo (para não falar do corajoso pacifismo que lhe valeu a prisão na I
Guerra Mundial), do que Pascal pela cobardia de apostar pelo seguro? E se,
por um lado, não há maneira de sabermos para qual dos lados se inclinaria
Deus, o certo é que também não precisamos de o saber para refutarmos a
aposta de Pascal. Repare-se que é de uma aposta que se trata, e Pascal não
quis dizer senão que eram escassas as suas probabilidades. O leitor apostava
em que Deus daria mais valor à crença fingida por desonestidade (ou
mesmo à crença sincera) do que ao cepticismo sincero?
Uma vez mais, imagine-se que quem se nos depara quando morrermos é o
deus Baal e imagine-se que Baal é tão cioso quanto se dizia ser o seu velho
rival Javé. Não teria sido melhor se Pascal não tivesse apostado em nenhum
deus em vez de apostar no deus errado? Pensando melhor, não será que o
simples número de deuses e deusas potenciais em que se pode apostar vicia
toda a lógica de Pascal? Provavelmente ele estava a brincar quando fez a
sua aposta, tal como eu estou a brincar ao rejeitá-la desta maneira. Mas já
me defrontei com pessoas, por exemplo, nas sessões de perguntas após as
palestras, que apresentaram seriamente a aposta de Pascal como um
argumento a favor da crença em Deus, pelo que achei apropriado conferir-
lhe, aqui, algum espaço.
Por fim, será possível defender uma espécie de aposta anti Pascal?
Suponha-se que admitimos que há uma pequena hipótese de que Deus
exista. Mesmo assim, poderia dizer-se que teríamos uma vida melhor e mais
plena se apostássemos na não-existência em vez de apostar na existência, já
que neste caso iríamos desperdiçar o nosso precioso tempo a adorá-lo, a
sacrificarmo-nos por ele, a lutar e a morrer por ele, etc. Não vou aprofundar
a questão neste momento, mas será bom que o leitor a tenha presente
quando, em capítulos subsequentes, abordarmos as consequências perversas
que podem advir da crença e da prática religiosas.
Argumentos bayesianos
Penso que a tentativa mais bizarra de provar a existência de Deus que
conheci até hoje foi o argumento bayesiano recentemente avançado por
Stephen Unwin em The Probability of God. Hesitei antes de incluir este
argumento, que não só é mais fraco como nem sequer tem o aspecto vetusto
dos outros. No entanto, o livro de Unwin recebeu uma atenção considerável
da parte dos jornais quando foi publicado, em 2003, além de que dá de facto
oportunidade de atar aqui alguns fios da minha explicação. Identifico-me
um pouco com os seus objectivos, porque, como se verificou no capítulo
segundo, acredito que a existência de Deus enquanto hipótese científica é,
pelo menos teoricamente, investigável. Acresce que o esforço quixotesco de
Unwin para quantificar a probabilidade é gostosamente divertido.
O subtítulo da obra, «Um Cálculo Simples que Prova a Verdade
Derradeira», tem todo o aspecto de ser um acrescento posterior por parte do
editor, já que tal sobranceria está ausente do texto de Unwin. Há que ler o
livro como um desses manuais do género «como fazer», uma espécie de
teorema de Bayes para totós que usa a existência de Deus como um estudo
de caso meio jocoso. Unwin podia ter usado igualmente um assassínio
hipotético para demonstrar o teorema de Bayes. O detective reúne as
provas. As impressões digitais no revólver apontam para a Sra. Peacock.
Quantifique-se essa suspeita atirando-se-lhe com uma probabilidade
numérica. No entanto, o professor Plum tinha um motivo para a tramar.
Reduz-se num valor numérico correspondente a suspeita relativa à Sra.
Peacock. Os dados forenses sugerem uma probabilidade de 70 por cento de
o revólver ter sido disparado de modo preciso a uma longa distância, o que
aponta para um culpado com treino militar. Quantifiquem-se as nossa
suspeitas acrescidas quanto ao coronel Mustard. O reverendo Green tem o
motivo mais plausível para ter cometido o crime. Subimos a nossa
83

avaliação numérica desta probabilidade, mas o longo cabelo loiro no casaco


da vítima só pode pertencer à menina Scarlet... e por aí adiante. Uma
mistura de probabilidades ajuizadas de forma mais ou menos subjectiva
agitam-se na mente do detective, puxando-o em diferentes direcções. É de
esperar que o teorema de Bayes o ajude a chegar a uma conclusão. Trata-se
de um mecanismo matemático destinado a combinar muitas probabilidades
calculadas e produzir um veredicto final, que por sua vez incorpora uma
estimativa do seu próprio grau de probabilidade. Mas é claro que essa
estimativa final só pode ser tão boa quanto os números com que se
alimentou o cálculo desde o início. Estes são, por norma, ajuizados de
forma subjectiva, com todas as dúvidas inevitavelmente daí decorrentes. O
princípio GIGO (garbage in, garbage out) é aqui aplicável - e, no caso do
exemplo de Deus proposto por Unwin, aplicável é palavra demasiado
branda.
Unwin é um consultor de gestão de riscos apostado numa cruzada em prol
da inferência bayesiana e contra os métodos estatísticos rivais. Para ilustrar
o teorema de Bayes não foi buscar um assassínio, mas sim o maior de todos
os casos de teste: a existência de Deus. O plano que leva a cabo consiste em
começar com a incerteza total, que opta por quantificar atribuindo à
existência e à não-existência de Deus uma probabilidade inicial de 50 por
cento para cada. De seguida, faz uma lista de seis factos que poderão ter
algum peso, atribui uma ponderação numérica a cada um deles, introduz os
seis números no mecanismo do teorema de Bayes e vê que número dali sai.
O problema é que (para repetir o que já disse) os seis valores não
correspondem a quantidades efectivamente medidas, antes são simples
juízos pessoais de Stephen Unwin transformados em números para efeito do
presente exercício. Os seis factos são:

1. Temos uma noção do que é o bem.

2. As pessoas fazem coisas más (Hitler, Estaline, Saddam Hussein).

3. A natureza faz coisas más (terramotos, tsunamis, furacões).

4. É possível que haja pequenos milagres (perdi as minhas chaves e


voltei a encontrá-las).

5. É possível que haja grandes milagres (Jesus pode ter ressuscitado


dos mortos).

6. As pessoas têm experiências religiosas.

O estudo vale o que vale (pouquíssimo, na minha opinião). Seja como for,
no final de uma corrida bayesiana bastante renhida em que começa por se
destacar logo nas apostas, depois fica para trás, depois recupera a custo até à
marca dos 50 por cento com que principiara, Deus, segundo os cálculos de
Unwin, acaba por desfrutar de uns 67 por cento de probabilidades de existir.
Unwin decide então que o seu veredicto bayesiano de 67 por cento não é
suficientemente alto, pelo que dá o passo bizarro de o fazer disparar até aos
95 por cento através de uma injecção de «fé». Parece anedota, mas o
procedimento é realmente esse. Gostaria de poder dizer como ele o justifica,
mas de facto não há nada a dizer. Defrontei-me com este tipo de disparate
noutras ocasiões, em que desafiei cientistas religiosos, mas nem por isso
menos inteligentes, a justificar a sua crença quando eles próprios
reconheciam a inexistência de provas: «Admito que não há provas. Por
alguma razão se lhe chama fé» (e proferiam esta última frase com uma
convicção quase truculenta e sem qualquer laivo apologético ou defensivo).
Surpreendentemente, da lista das seis cláusulas de Unwin não consta o
argumento do desígnio, nem nenhuma das cinco «provas» de Tomás de
Aquino, nem nenhum dos vários argumentos ontológicos. Unwin nada quer
com eles: não contribuem nem com uma pitada para a sua estimativa
numérica da probabilidade de Deus. Ele discute-os e, como bom estatista,
põe-nos de lado por serem vazios de sentido. Penso que isso abona a seu
favor, embora a razão que dá para afastar o argumento do desígnio seja
diferente da minha. Mas os argumentos que autoriza a passar pelo seu crivo
bayesiano são, quanto a mim, igualmente frágeis. Isto equivale a dizer que
as ponderações de probabilidade subjectivas que eu lhes daria são diferentes
das dele, mas de resto quero lá eu saber de juízos subjectivos! Unwin pensa
que o facto de possuirmos a noção do certo e do errado conta fortemente a
favor de Deus, ao passo que eu não vejo como isso poderia fazer com que
este pendesse para um lado ou para o outro relativamente à sua expectativa
inicial. Os capítulos sexto e sétimo irão demonstrar que não há como provar
que a circunstância de possuirmos uma noção do certo e do errado tem
alguma ligação evidente com a existência de uma divindade sobrenatural.
Tal como no caso da nossa capacidade de apreciar um quarteto de
Beethoven, a nossa noção do bem (embora não necessariamente o nosso
impulso para a seguir) será sempre aquilo que é, com Deus ou sem Deus.
Por outro lado, Unwin acha que a existência do mal, sobretudo de
catástrofes naturais tais como terramotos e tsunamis, conta fortemente
contra a probabilidade da existência de Deus. Neste ponto, o juízo de
Unwin é contrário ao meu, mas está de acordo com muitos teólogos para
quem esta questão é incómoda. A «teodiceia» (a justificação da providência
divina perante a existência do mal) tira o sono aos teólogos. O abalizado
Oxford Companion to Philosophy define o problema do mal como «a mais
poderosa objecção ao teísmo tradicional». Mas trata-se de um argumento
apenas contra a existência de um Deus bom. A bondade não faz parte da
definição da Hipótese Deus, é simplesmente um acrescento desejável.
É certo que as pessoas com pendor teológico são, muitas vezes,
cronicamente incapazes de distinguir a verdade daquilo que gostariam que
fosse verdade. Mas para alguém mais sofisticado que acredite numa forma
de inteligência sobrenatural, ultrapassar o problema do mal reveste-se de
uma facilidade infantil. Basta postular um deus ruim, como o que espreita
em cada página do Antigo Testamento. Ou, se não se gostar deste, invente-
se um deus mau diferente, chame-se-lhe Satanás e ponham-se as culpas de
todo o mal no mundo para cima da batalha cósmica que trava contra o deus
bom. Ou então - uma solução mais sofisticada - postule-se um deus com
coisas mais importantes para fazer do que ralar-se com as desgraças
humanas. Ou um deus que não seja indiferente ao sofrimento, mas que o
veja como o preço a pagar pelo livre arbítrio num cosmos regido pela ordem
e pela lei. Não faltam teólogos a embarcar em cada uma destas construções.
Por estes motivos, se pudesse refazer o exercício bayesiano de Unwin,
nem o problema do mal nem as considerações morais de um modo geral me
fariam afastar muito, fosse para um lado ou para o outro, da hipótese nula
(os 50 por cento de Unwin). Mas não quero deter-me nesta questão, porque,
seja como for, não posso inquietar-me com opiniões pessoais, sejam elas de
Unwin ou minhas.
Há um argumento muito mais poderoso e que não depende de juízos
subjectivos. É o argumento da improbabilidade. De facto este argumento
afasta-nos bastante dos 50 por cento de agnosticismo, inclinando-se
acentuadamente na direcção do teísmo extremo na perspectiva de muitos
teístas, e na direcção do ateísmo extremo segundo o meu ponto de vista. Já
aludi a ele por diversas vezes. O argumento gira, todo ele, em torno da
conhecida pergunta «Quem fez Deus?», cuja resposta a maioria das pessoas
capazes de pensar descobre por si. Um Deus capaz de desígnio, ou de
conceber, não pode ser usado para explicar a complexidade organizada,
porque qualquer Deus capaz de conceber o que quer que fosse teria de ser
suficientemente complexo para obrigar a que o mesmo tipo de explicação
fosse aplicado a si próprio. Deus apresenta uma regressão infinita da qual
não nos pode ajudar a escapar. Este argumento, como irei mostrar no
próximo capítulo, demonstra que Deus, embora não tecnicamente refutável,
é, na realidade, muitíssimo improvável.

62 A palavra design, amplamente utilizada no texto inglês, evoca uma constelação de significações –
«concepção», «desígnio», «desenho»... Consoante o contexto, a tradução alterna entre estes e outros
termos, procurando assim manter presente a riqueza plurívoca do original. (N. das T.)

63 Não posso deixar de lembrar aqui o imortal silogismo levado à socapa para um teste de geometria
euclidiana por um colega nos tempos da escola: «O triângulo ABC parece isósceles. Logo...»

64 O paradoxo de Zenão é demasiado conhecido para que se lhe dedique mais do que uma nota de
rodapé. Aquiles consegue correr dez vezes mais depressa que a tartaruga e por isso dá ao animal um
avanço de, digamos, 100 metros. Aquiles corre 100 metros e a tartaruga está agora 10 metros à frente.
Aquiles corre os 10 metros e a tartaruga está agora um metro à frente. Aquiles corre esse metro e a
tartaruga está-lhe ainda um décimo de metro à frente... e assim por diante ad infinitum, de modo que
Aquiles nunca apanha a tartaruga.

65 É possível que estejamos a assistir hoje a algo semelhante na muito publicitada tergiversação do
filósofo Antony Flew, que na sua velhice anunciou ter-se convertido à crença numa qualquer divindade
(desencadeando um frenesim entusiasticamente repetido na Internet). Por outro lado, Russell era um
grande filósofo. Russell ganhou o Prémio Nobel. Talvez a alegada conversão de Flew lhe venha a valer
o Prémio Templeton. Um primeiro passo nesse sentido foi a sua ignominiosa decisão, em 2006, de
aceitar o Prémio Phillip E. Johnson para a Liberdade e a Verdade. O primeiro detentor deste prémio foi
Phillip E. Johnson, advogado a quem se atribui a criação da «estratégia da cunha» por parte do
Desígnio Inteligente. Flew é o segundo detentor. A universidade que entrega os prémios é o Bible
Institute de Los Angeles. É impossível não pensar se Flew se dará conta de que está a ser usado. Ver
Victor Stengler, «Flew’s flawed science», Free Inquiry 25, 2, 2005, 17-18;
www.secularhumanism.org/index.php?section=library&page=stenger_25_2.

66 http://www.iep.utm.edu/o/ont-arg.htm. A «prova» de Gasking encontra-se em


http://www.uq.edu.au/~pdwgrey/pubs/gasking.html.

67 Toda esta questão das ilusões é discutida por Richard Gregory numa série de livros, incluindo
Gregory (2007).

68 A minha própria tentativa de formular a explicação encontra-se em Dawkins (2000).

69 http://sofc.org/Spirituality/s-of-fatima.htm.

70 Embora seja certo, por outro lado, que os pais da minha mulher ficaram uma vez num hotel em Paris
chamado Hôtel de l’Univers et du Portugal.
71 Tom Flynn, «Matthews vs. Luke», Free Inquiry 25,1, 2004, 34-45; Robert Gillooly, «Shedding light
on the light of the world», Free Inquiry 25,1, 2004, 27-30.

72 Refiro o subtítulo porque é a única coisa de que tenho a certeza. O título do meu exemplar do livro,
publicado pela Continuum de Londres, é Whose Word is it? (KPalavra de quem?»). Nada nesta edição
me indica se este é o mesmo livro publicado em edição americana pela Harper San Francisco, que eu
não vi, e cujo título é Misquoting Jesus (KJesus Mal Citado»). Suponho que se trata do mesmo livro,
mas por que razão fazem os editores estas coisas?

73 Erhman (2006). Ver também Ehrman (2003).

74 Na sua biografia de Jesus, A. N. Wilson lança dúvidas quanto ao facto de José ter sido carpinteiro. A
palavra grega tekton significa, efectivamente, carpinteiro, mas foi traduzida da palavra aramaica
naggar, que pode significar artesão ou homem erudito. Esta é apenas uma de várias traduções erróneas
de que a Bíblia enferma, sendo a mais famosa a tradução de almah, termo hebraico usado por Isaías
para dizer jovem mulher, pelo grego parthenos (virgem). Um lapso compreensível do tradutor, que
viria a ser copiosamente inflacionado até dar origem à absurda lenda da virgindade da mãe de Jesus!
Além deste, o único concorrente com hipóteses de chegar ao título de campeão das traduções erróneas
de todos os tempos diz também respeito a virgens. Ibn Warraq sustenta com grande humor que, na
famosa promessa de 72 virgens para cada mártir muçulmano, «virgens» é uma tradução errada de «uvas
brancas e cristalinas». Ora, se esta informação tivesse sido mais divulgada, quantas vítimas inocentes
de missões suicidas não teriam sido salvas? (Ibn Warraq, «Virgins? What virgins?», Free Inquiry 26, 1,
2006, 45-6.)

75 Até a mim já me honraram com profecias de conversão no leito de morte. A verdade é que estas vão
recorrendo com uma regularidade monótona (ver, por exemplo, Steer, 2003), com cada nova repetição
envolta em frescas nuvens carregadas da ilusão de ser espirituosa e a primeira. O melhor será talvez
precaver-me, instalando um gravador a fim de proteger a minha reputação póstuma. Lalla Wards
acrescenta: «Para quê apoquentares-te com leitos de morte? Se é para te venderes, fá-lo a tempo de
poderes ganhar o Prémio Templeton e diz que foi da senilidade.»

76 Não confundir com o projecto genoma humano não oficial, dirigido por esse brilhante (e não
religioso) «corsário» da ciência chamado Craig Venter.

77 Beit-Hallahmi e Argyle (1997).

78 E. J. Larson e L. Witham, «Leading scientists still reject God», Nature 394, 1998, 313.

79 http://www.leaderu.com/ftissues/ft9610/reeves.html oferece uma análise especialmente interessante


das tendências históricas do pensamento religioso nos Estados Unidos por Thomas C. Reeves,
professor de História na Universidade do Wisconsin, baseada em Reeves (1996).

80 http://www.answersingenesis.org/docs/3506.asp.

81 R. Elisabeth Cornwell e Michael Stirrat, manuscrito em preparação, 2006.

82 P. Bell, «Would you believe it?», Mensa Magazine, Fevereiro de 2002, 12-13.
83 Reverendo Green é o nome da personagem nas versões do Cluedo vendidas na Grã-Bretanha (donde
é originário o jogo), na Austrália, na Nova Zelândia, na Índia e em todas as áreas de língua inglesa
excepto na América do Norte, onde de repente se torna no Sr. Green. Mas qual é a ideia afinal?
4
Por que razão é quase certo que Deus
não existe
Os sacerdotes das diferentes seitas religiosas... temem o
avanço da ciência como as bruxas temem a aurora e franzem
o sobrolho ao fatal arauto da subdivisão dos logros em que
vivem.
Thomas Jefferson

O fantástico Boeing 747


O argumento da improbabilidade é o que maior importância tem.
Revestindo-se, tradicionalmente, com as roupagens do argumento do
desígnio, é hoje, sem margem para dúvida, o argumento mais popular
apresentado a favor da existência de Deus, sendo considerado completa e
absolutamente convincente por um enorme número de teístas. É de facto um
argumento bastante forte e, quer parecer-me, irrespondível – mas
precisamente na direcção oposta àquilo que é a intenção dos teístas. O
argumento da improbabilidade, se correctamente expendido, por pouco
chega a provar que Deus não existe. O nome que dou à demonstração
estatística de que Deus quase de certeza não existe é a jogada do fantástico
Boeing 747.
O nome deve-se a Fred Hoyle e à sua divertida imagem do Boeing 747 e
do ferro-velho. Não tenho a certeza se Hoyle alguma vez chegou, ele
próprio, a passá-la a escrito, mas foi-lhe atribuída por um colega próximo,
Chandra Wickramasinghe, e presumivelmente é autêntica. Hoyle afirmou
84

que a probabilidade de a vida ter tido origem na Terra não é maior do que a
possibilidade de um furacão que varresse um parque de ferro-velho ter a
sorte de montar um Boeing 747. Outros têm utilizado a metáfora para se
referirem às fases mais adiantadas da evolução de organismos vivos
complexos, caso em que a sua plausibilidade é espúria. As probabilidades
contra a ideia de conseguir montar um escaravelho, uma avestruz ou um
cavalo totalmente funcionais baralhando-lhes ao acaso as partes
constitutivas ascendem a valores que se cifram na casa dos do Boeing 747.
É este, numa palavra, o argumento favorito do criacionista. Mas é um
argumento que só cabe na cabeça de quem não faz a mínima ideia do que
seja a selecção natural: alguém que julga que a selecção natural é uma teoria
do acaso, quando ela é – no sentido relevante da palavra acaso – o oposto.
A apropriação errónea do argumento da improbabilidade por parte do
criacionismo assume sempre a mesma forma genérica, em nada se alterando
quando o criacionista o aperalta sob as vestes politicamente oportunistas do
«desígnio inteligente» (DI). Enaltece-se – com toda a justeza, de resto –
85

como sendo estatisticamente improvável um dado fenómeno observado:


frequentemente um ser vivo ou um dos seus órgãos mais complexos, mas
poderá ser qualquer coisa, desde uma molécula até ao próprio universo. Por
vezes utiliza-se a linguagem da teoria da informação: o darwiniano é
desafiado a explicar qual a fonte de toda a informação existente na matéria
viva, no sentido técnico de conteúdo informativo enquanto medida de
improbabilidade ou de «valor surpresa». Ou então o argumento pode
invocar o já gasto lema do economista – não existem almoços grátis – para
acusar o darwinismo de tentar obter algo a troco de nada. Na verdade, e
como mostrarei neste capítulo, a selecção natural darwiniana é a única
solução conhecida para aquilo que, de outro modo, seria outro enigma
irrespondível: donde provém a informação. Afinal é a Hipótese Deus que
tenta obter algo a troco de nada. Deus tenta não só comer o seu almoço
grátis, como também sê-lo. Por mais improvável que estatisticamente seja a
entidade que se procura explicar ao invocar um criador, este tem de ser pelo
menos igualmente improvável. Deus é o fantástico Boeing 747.
O argumento da improbabilidade afirma que as coisas complexas não
podem ter surgido por acaso. Contudo, muitas pessoas definem «surgir por
acaso» como sinónimo de «surgir na ausência de um desígnio intencional».
Não surpreende, por isso, que esses julguem que a improbabilidade é prova
de ter havido uma concepção, um desígnio criador. A selecção natural
darwiniana mostra quanto isso é errado no que diz respeito à
improbabilidade biológica. E embora o darwinismo possa não ser
directamente relevante para o mundo inanimado – para a cosmologia, por
exemplo –, ele desperta as nossas consciências em áreas que vão fora do
terreno original da Biologia.
Uma compreensão profunda do darwinismo ensinar-nos-á a ser cautelosos
em relação ao fácil pressuposto de que o desígnio é a única alternativa ao
acaso, ao mesmo tempo que nos ensinará a procurar curvas gradativas de
complexidade paulatinamente incremental. Antes de Darwin, filósofos
como Hume perceberam que a improbabilidade da vida não significava que
esta tinha sido previamente «desenhada», só que não conseguiam imaginar
uma alternativa. Depois de Darwin, todos nós devíamos intimamente
desconfiar da própria ideia de desígnio. A ilusão do desígnio é uma
armadilha de que já estivemos cativos, e Darwin devia ter-nos imunizado
quando despertou a nossa consciência. Assim tivesse ele conseguido
despertá-las em todos nós.

A selecção natural e o despertar das consciências


Numa nave espacial de ficção científica, os astronautas estavam com
saudades de casa: «E pensar que é Primavera na Terra!» Pode não se ver
imediatamente o que há de errado nisto, tal é a profundidade a que está
entranhado o chauvinismo inconsciente do hemisfério norte naqueles que aí
vivem e até mesmo em alguns que não vivem. «Inconsciente» está
correctíssimo. É aí que entra o despertar das consciências. É por um motivo
mais forte do que a mera diversão gratuita que na Austrália e na Nova
Zelândia se podem comprar mapas do mundo com o Pólo Sul na parte
superior. Que esplêndidos despertadores da consciência seriam esses mapas
afixados nas nossas salas de aula do hemisfério norte. Dia após dia se faria
recordar às crianças que o «norte» é uma polaridade arbitrária que não
possui o monopólio do «lado de cima». O mapa intrigá-las-ia ao mesmo
tempo que lhes despertaria as consciências. Iriam para casa contar aos pais
– e por falar nisso, dar às crianças algo com que surpreendam os pais é um
dos maiores presentes que um professor pode oferecer.
Foram as feministas que despertaram a minha consciência para o poder do
despertar da consciência. Herstory é, obviamente, uma ideia ridícula,
quanto mais não seja porque o «his» de history não tem ligação etimológica
com o pronome masculino inglês. Isto é etimologicamente tão disparatado
como o despedimento, em 1999, de um funcionário público de Washington
cujo uso da palavra niggardly (que pode significar avarento ou preto) foi
considerado um insulto racial. Mas até exemplos estultos como niggardly
ou herstory servem para despertar as consciências. Depois de serenada a
excitação filológica e de pararmos de rir, vemos como a palavra herstory
nos mostra a História de uma perspectiva diferente. Os pronomes
indicativos do género gramatical estão na bem visível linha da frente desse
despertar das consciências. Ele/Ela tem de perguntar a si próprio/a se o/a
satisfaz o estilo de escrita a que está habituado/a. Mas se conseguirmos dar
o devido desconto a estes infelizes percalços da linguagem, ela despertará as
nossas consciências para as sensibilidades de metade da raça humana. O
homem, os homens, os direitos do homem, todos os homens são criados de
forma igual, um homem, um voto – também o inglês parece, muitas vezes,
excluir as mulheres. Quando era novo, nunca me ocorreu que as mulheres
86

se pudessem sentir diminuídas por uma expressão como «o futuro do


homem». Desde então para cá, deu-se o despertar das consciências de todos
nós. Mesmo as pessoas que usam «homem» em vez de «humano» fazem-no
em tom de desculpa constrangida – ou então de truculência, para marcarem
posição a favor da tradição linguística, ou mesmo para irritarem
deliberadamente as feministas. Quem viveu o Zeitgeist viu a sua
consciência despertada, mesmo aqueles que preferem reagir negativamente
cerrando os punhos e redobrando a ofensa.
O feminismo mostra-nos o poder do despertar das consciências, e eu
quero tomar a técnica de empréstimo para a aplicar à selecção natural. A
selecção natural não só explica a totalidade da vida, como também desperta
as nossas consciências para o poder que a ciência tem de explicar como a
complexidade organizada pode surgir a partir de um começo muito simples
e sem estar sujeita a uma orientação deliberada. Plenamente entendida, a
selecção natural incentiva-nos a que ousemos passar para outras áreas. Ela
suscita em nós, relativamente a essas outras áreas, a suspeita quanto aos
tipos de falsas alternativas que outrora, nos tempos pré-darwinianos,
confundiam a Biologia. Antes de Darwin, quem adivinhava que algo na
aparência tão intencionalmente desenhado como é a asa de uma libélula ou
o olho de uma águia era, na verdade, o produto final de uma longa
sequência de causas não aleatórias mas sim puramente naturais?
O comovente e divertido relato que Douglas Adams faz da sua própria
conversão ao ateísmo radical – ele insistia no «radical», para o caso de
alguém o confundir com um agnóstico – é uma prova do poder do
darwinismo enquanto despertador das consciências. Espero ser perdoado
por me permitir alongar-me tanto na citação que se segue. A minha
desculpa é que a conversão de Douglas pelas minhas obras anteriores – que
não pretendiam converter ninguém – me inspirou a dedicar à sua memória
este livro – que até tem essa pretensão! Numa entrevista reeditada
postumamente em The Salmon of Doubt, um jornalista perguntou-lhe como
se havia tornado ateu. Douglas iniciou a resposta explicando como se fizera
agnóstico, logo acrescentando:

E eu pensei, pensei, pensei. Mas não tinha muito por onde avançar, por
isso não cheguei a nenhuma decisão. Tinha imensas dúvidas em relação
à ideia de deus, mas não sabia o suficiente sobre o que quer que fosse
para o substituir por um bom modelo de uma eventual explicação para,
sei lá, a vida, o universo e tudo o que há. Mas eu insisti, e continuei a
ler e continuei a pensar. A certa altura, estava eu a entrar na casa dos 30
quando tive um encontro com a Biologia evolutiva, particularmente sob
a forma dos livros de Richard Dawkins O Gene Egoísta e, a seguir, O
Relojoeiro Cego. De repente (creio que ao ler O Gene Egoísta pela
segunda vez) todas as peças se encaixaram. Era um conceito de uma
simplicidade assombrosa, mas que deu origem, naturalmente, a toda a
infinita e desconcertante complexidade que a vida contém. O espanto
que inspirou em mim fazia parecer com que o espanto de que as pessoas
falam relativamente à experiência religiosa me parecesse francamente
pateta quando postos ambos lado a lado. Eu colocaria o espanto da
compreensão acima do espanto da ignorância, não tenho dúvidas sobre
isso .
87

É evidente que conceito de simplicidade assombrosa de que Adams aqui


falava nada tinha a ver comigo. Ele falava era de Darwin e da sua teoria da
evolução por selecção natural – o grande despertador de consciências
científico. Douglas, tenho saudades tuas. És o meu convertido mais
inteligente, mais divertido, de espírito mais aberto, o mais espirituoso, o
mais alto e, possivelmente, também o único. Espero que este livro te
consiga fazer rir – embora não tanto como tu a mim.
Daniel Dennett, filósofo dado à ciência, fez notar que a evolução vai
contra uma das ideias mais antigas que temos: KA ideia de que é preciso
uma coisa grande, vistosa e esperta para criar uma coisa menor. A isso
chamo eu teoria da repartição dos restos adaptada à criação. Nunca se há-de
ver uma espada fazer um espadeiro. Nunca se há-de ver uma ferradura fazer
um ferreiro. Nunca se há-de ver um pote fazer um oleiro.» O facto de
88

Darwin ter descoberto um processo viável que leva a cabo exactamente essa
coisa contra-intuitiva é o que torna o seu contributo para o pensamento
humano tão revolucionário e tão capaz de despertar consciências.
É surpreendente como esse despertar de consciências é necessário,
mesmo para as mentes de grandes cientistas em áreas que não a Biologia.
Fred Hoyle foi um físico e um cosmólogo brilhante, mas a incompreensão
patenteada pelo seu exemplo do Boeing 747 e outros erros no campo da
Biologia, como a sua rejeição do fóssil Archaeopteryx com o argumento de
que era um embuste, são de molde a sugerir que precisava que lhe
despertassem a consciência através de uma ampla exposição ao mundo da
selecção natural. Suponho que, no plano intelectual, ele compreendeu a
selecção natural, mas talvez seja necessário estar-se imbuído dela,
mergulhado nela, para se poder apreciar verdadeiramente o seu poder.
Outras ciências há que despertam as nossas consciências de formas
diferentes. A ciência da Astronomia, de Fred Hoyle, põe-nos no nosso
lugar, tanto metafórica como literalmente, reduzindo a nossa vaidade até
caber no minúsculo palco em que representamos as nossas vidas – a nossa
partícula dos detritos resultantes da explosão cósmica. A Geologia lembra-
nos a nossa breve existência não só como indivíduos, mas também como
espécie. Foi ela que despertou a consciência de John Ruskin, arrancando-lhe
esse memorável grito de 1851: «Se ao menos os geólogos me deixassem em
paz, eu ficaria bem, mas aqueles terríveis martelos! Ouço-lhes o tinir por
sobre a cadência dos versículos da Bíblia.» A evolução faz a mesma coisa
pelo nosso sentido de tempo – o que não surpreende, visto que à escala do
tempo geológico. Mas a evolução darwiniana, e concretamente a selecção
natural, faz algo mais do que isso. Ela estilhaça a ilusão do desígnio criador
no domínio da Biologia, do mesmo passo que nos ensina a desconfiar de
todo o tipo de hipótese desígnio criador também na Física e na Cosmologia.
Julgo que o físico Leonard Susskind tinha isso em mente quando escreveu:
«Não sou historiador, mas vou arriscar uma opinião: a Cosmologia moderna
teve de facto início com Darwin e Wallace. Ao contrário de qualquer pessoa
antes deles, facultaram explicações para a nossa existência que rejeitavam
por inteiro os agentes sobrenaturais... Darwin e Wallace estabeleceram um
padrão não só para as ciências da vida, mas também para a Cosmologia.» 89

Outros físicos que estão muito longe de precisar que lhes despertem a
consciência são, por exemplo, Victor Stenger, cujo livro Has Science Found
God? (a resposta é não) recomendo vivamente , e Peter Atkins, autor de
90

Creation Revisited, a minha favorita de entre as obras científicas escritas em


prosa poética.
Não cessam de me espantar aqueles teístas que, longe de despertarem da
maneira que proponho, parecem rejubilar com a ideia da selecção natural
como «a forma que Deus tem de realizar a sua criação». Para estes, a
evolução pela via da selecção natural seria uma maneira bastante fácil e
escorreita de obter um mundo pleno de vida. Deus não precisaria de fazer
nada! No livro que acabo de referir, Peter Atkins leva esta linha de
pensamento a uma conclusão sensatamente ímpia quando postula um Deus
hipoteticamente preguiçoso que tenta dar-se ao mínimo trabalho possível
para criar um universo que contenha vida. O Deus preguiçoso de Atkins é
ainda mais preguiçoso do que o Deus deísta do iluminismo do século XVIII:
deus otiosus – o que à letra significa Deus ocioso, desocupado, inactivo,
supérfluo, inútil. Passo a passo, Atkins consegue ir reduzindo a quantidade
de trabalho que o Deus preguiçoso tem de executar até finalmente não fazer
nada: já agora, até escusava dar-se ao trabalho de existir. Parece que estou a
ouvir a perspicaz lamúria de Woody Allen: «Se se descobrir que afinal Deus
existe, não acho que ele seja mau. Mas o pior que dele se pode dizer é que
no fundo é um tipo que deixa muito a desejar.»

Complexidade irredutível
Não é de mais sublinhar a magnitude do problema que Darwin e Wallace
resolveram. Poderia dar como exemplo a Anatomia, a estrutura celular, a
Bioquímica e o comportamento de literalmente todos os organismos vivos.
Mas os feitos mais impressionantes da aparência de desígnio são os que –
por razões óbvias – os autores criacionistas vão buscar, e é com ironia
moderada que retiro as minhas de um livro criacionista. Life –- How Did It
Get Here?, obra de um autor não identificado que, no entanto, foi publicada
pela Watchtower Bible e pela Tract Society em 16 línguas e 11 milhões de
exemplares, é manifestamente um forte favorito porque nada menos de seis
desses 11 milhões de exemplares me foram enviados de presente de todo o
mundo por gente preocupada comigo.
Escolhendo uma página ao acaso desta obra anónima e profusamente
distribuída, encontramos nada menos do que a esponja conhecida por cesta-
de-flores-de-vénus (Euplectella), acompanhada de uma citação de Sir David
Attenborough: «Quando olhamos para o complexo esqueleto de uma
esponja como esta, feita de espículos de sílica e conhecida como cesta-de-
flores-de-vénus, a imaginação fica atónita. Como foi possível células
microscópicas quase independentes entre si colaborarem de maneira a
segregar um milhão de fragmentos vítreos e construir uma rede tão
intrincada e bela? Não sabemos.» Os autores da Watchtower não perdem
tempo para acrescentar a sua própria conclusão: «Mas uma coisa sabemos:
o criador provável não foi o acaso.» Não, de facto o acaso não foi o criador
provável. Isso é algo com que todos podemos concordar. A improbabilidade
estatística de fenómenos como o esqueleto da Euplectella é o problema
central que qualquer teoria da vida tem de resolver. Quanto maior a
improbabilidade estatística, menos plausível é que a solução esteja no
acaso: é isso que significa a palavra improvável. Mas, ao contrário do que
falsamente é insinuado, as soluções candidatas ao enigma da
improbabilidade não são o desígnio de um criador e o acaso. São sim o
desígnio e a selecção natural. O acaso não é solução, dados os elevados
níveis de improbabilidade que vemos nos organismos vivos, e nenhum
biólogo no seu juízo perfeito alguma vez sugeriu que fosse. Um criador e o
seu desígnio também não são uma solução real, como teremos a
oportunidade de ver mais adiante, mas por agora quero continuar a
demonstrar o problema que toda a teoria da vida terá de resolver: a forma de
como escapar ao acaso.
Ao folhear o livro da Watchtower encontramos a maravilhosa planta
conhecida como jarrinha (Aristolochia trilobata), cujas partes parecem
elegantemente desenhadas para apanhar insectos, cobri-los com pólen e
enviá-los para outra jarrinha. A elegância intrincada da flor leva a
Watchtower a perguntar: «Tudo isto aconteceu por acaso? Ou aconteceu
devido ao desígnio inteligente? Uma vez mais, não, é claro que não
aconteceu por acaso. Uma vez mais, o desígnio inteligente não é a
alternativa adequada para o acaso. A selecção natural não é apenas uma
solução parcimoniosa, plausível e elegante, é a única alternativa viável para
o acaso alguma vez proposta. O desígnio inteligente é merecedor
precisamente da mesma objecção que o acaso. Pura e simplesmente, não é
uma solução plausível para o enigma da improbabilidade estatística. E
quanto mais elevada a improbabilidade, menos plausível se torna o desígnio
inteligente. Bem visto, este redunda numa duplicação do problema. Uma
vez mais, isto acontece porque a ideia de um criador (ou criadora) levanta
desde logo o problema maior que é o da sua própria origem. Qualquer
entidade capaz de conceber inteligentemente algo tão improvável como uma
jarrinha (ou um universo) teria de ser ainda mais improvável do que uma
jarrinha. Longe de pôr termo a esta regressão, Deus agrava-a ainda mais.
Virando mais uma página do livro da Watchtower, encontra-se uma
eloquente descrição do pau-brasil (Sequoiadendron giganteum), uma árvore
gigantesca pela qual tenho um afecto especial porque possuo uma no jardim
– um mero bebé com pouco mais de um século, mas que ainda assim é a
árvore mais alta da vizinhança. «Um homem ínfimo, de pé junto à base de
uma sequóia, nada mais pode fazer do que olhar para cima e mirar-lhe, em
silêncio e espanto, a corpulenta grandiosidade. Fará sentido acreditar que no
moldar deste majestoso gigante e da minúscula semente que o envolve não
houvesse um desígnio?» Uma vez mais, se se pensar que a única alternativa
ao desígnio é o acaso, então não, não fará sentido. Mas os autores omitem
de novo qualquer referência à verdadeira alternativa, a selecção natural, seja
porque não a compreendem genuinamente, seja porque não querem.
O processo pelo qual as plantas, quer sejam minúsculos morriões, quer
sejam corpulentas sequóias, adquirem a energia para se edificar é a
fotossíntese. Demos, de novo, a palavra à Watchtower: «“A fotossíntese
implica cerca de 70 reacções químicas diferentes”, disse um biólogo,
acrescentando: “É um acontecimento verdadeiramente milagroso.” Já
alguém chamou às plantas verdes as “fábricas” da natureza – fábricas belas,
silenciosas, não-poluentes e produtoras de oxigénio, que reciclam a água e
alimentam o mundo. Será que aconteceram por acaso? Será isso crível?»
Não, não é crível, mas a repetição de um exemplo após outro não nos leva a
lado algum. A «lógica» criacionista é sempre a mesma. Um certo fenómeno
natural é estatisticamente demasiado improvável, demasiado complexo,
demasiado belo, demasiado assombroso para ter surgido por acaso. Ter sido
concebido, ter sido «desenhado», é a única alternativa para o acaso que os
autores conseguem imaginar. Assim sendo, algum criador deve tê-lo feito. E
a resposta da ciência para esta lógica defeituosa também é sempre a mesma.
O desígnio não é a única alternativa para o acaso. A selecção natural é uma
alternativa melhor. Na verdade, o desígnio não é de todo uma alternativa
real porque levanta um problema ainda maior do que aquele que resolve:
quem concebeu aquele que concebe? Tanto o acaso como o desígnio falham
enquanto soluções para o problema da improbabilidade estatística, porque o
primeiro é o próprio problema, e o segundo regride até ele. A selecção
natural é uma solução real. E não é apenas a única solução que funciona,
como é também uma solução de uma elegância e um poder assombrosos.
O que faz a selecção natural ser bem-sucedida como solução para o
problema da improbabilidade, enquanto o acaso e o desígnio falham,
ambos, logo à partida? A resposta é que a selecção natural é um processo
cumulativo que decompõe o problema da improbabilidade em pequenos
bocados. Cada um desses pequenos bocados é ligeira, mas não
proibitivamente, improvável. Quando grandes quantidades destes
acontecimentos ligeiramente improváveis se empilham em séries, o produto
final de tal acumulação é, na verdade, muito, muito improvável,
suficientemente improvável para se situar muito além do âmbito do acaso.
São estes produtos finais que formam os tópicos do argumento
enfadonhamente reciclado do criacionista. O criacionista (ou a criacionista,
porque, de uma vez por todas, não gostaria que as mulheres se sentissem
excluídas pelo meu uso do masculino) não consegue, de todo, compreender
o essencial, e daí insistir em tratar a génese da improbabilidade estatística
como um acontecimento único e irrepetível. Ele não compreende o poder da
acumulação.
Em A Escalada do Monte Improvável, expressei este ponto através de
uma parábola. Um dos lados da montanha é um penhasco alcantilado,
impossível de escalar, mas do outro lado há uma encosta suave até ao cume.
Aí encontra-se um dispositivo complexo, como, por exemplo, um olho ou
um motor flagelar bacteriano. A noção absurda de que tal complexidade
poderia espontaneamente montar-se a si própria é simbolizada pela
passagem, num só salto, do sopé do penhasco até ao cume. Pelo contrário, a
evolução vai dando a volta à montanha, subindo a suave encosta até ao
cume: fácil! O princípio de escalar a encosta suave em vez de pular até ao
cimo do penhasco é tão simples que sentimos algum pasmo por ter
decorrido tanto tempo até surgir em cena um Darwin que o descobrisse.
Quando isso aconteceu, já tinham decorrido quase dois séculos desde o
annus mirabilis de Newton, embora à primeira vista o seu feito pareça mais
difícil do que o de Darwin.
Outra metáfora favorita para referir a improbabilidade extrema é a da
fechadura de combinação do cofre-forte de um banco. Teoricamente, um
assaltante de bancos poderá ter sorte e descobrir por acaso a combinação
certa dos números. Na prática, a fechadura de combinação é concebida com
um grau de improbabilidade suficiente para que a tarefa seja sinónimo de
impossível – quase tão improvável como o Boeing 747 de Fred Hoyle. Mas
imagine-se uma fechadura de combinação deficientemente concebida, que
fosse gradualmente divulgando pequenas pistas – o equivalente às pistas
indicativas («está quente, está frio») dos jogos de esconder a que brincamos
em criança. Imagine-se que, de cada vez que um dos botões se aproxima da
posição correcta, a porta do cofre-forte se abre mais um pouquinho mais e
uma pequena quantidade de dinheiro vai escorrendo para fora. Num
instante, o ladrão acertaria no jackpot.
Os criacionistas que tentam utilizar o argumento da improbabilidade a seu
favor presumem sempre que a adaptação biológica é uma questão de
jackpot ou nada. Outro nome para a falácia do «jackpot ou nada» é
«complexidade irredutível» (CI). O olho ou vê, ou não vê. A asa ou voa, ou
não voa. Parte-se do princípio de que não existem intermediações úteis, mas
isto é, simplesmente, errado. Na prática essas transições existem em
abundância – e é precisamente isso que devíamos esperar também na teoria.
A fechadura de combinação da vida é um dispositivo do género «quente,
frio, quente» do jogo infantil. A vida real procura as encostas suaves na
parte detrás do monte improvável, ao passo que os criacionistas estão cegos
para tudo menos para o intimidante penhasco na parte da frente.
Darwin dedicou um capítulo inteiro do livro A Origem das Espécies às
«dificuldades quanto à teoria da descendência com modificações», e é justo
dizer que este breve capítulo previu e esvaziou, à partida, todas as alegadas
dificuldades apontadas desde então até aos nossos dias. As dificuldades de
maior vulto são aquilo a que Darwin chama «os órgãos de grau de perfeição
e complicação extremo», por vezes erroneamente descritos como
«irredutivelmente complexos». Darwin destacou o olho por levantar um
problema particularmente interpelador: «Admito desde logo que me parece
sumamente absurdo supor que o olho, com todos os seus dispositivos
inimitáveis para ajustar a focagem a diferentes distâncias, para permitir a
entrada de diferentes quantidades de luz e para a correcção da aberração
esférica e cromática, se possa ter formado por selecção natural.» Os
criacionistas comprazem-se a citar esta frase vezes sem conta. Não será
preciso dizer que nunca citam o que vem a seguir. Acontece que a
concessão desmedida oferecida por Darwin não passa de um recurso
retórico. O que ele faz é apenas atrair os seus opositores de modo a que o
golpe, quando desferido, os atinja com a força toda. É evidente que o golpe
mais não é do que a explicação singela de como o olho foi evoluindo,
precisamente, ao longo de etapas graduais. Darwin pode não ter usado a
expressão «complexidade irredutível» ou «a suave rampa até ao topo do
monte improvável», mas entendeu claramente o princípio de ambas.
«Para que serve meio olho?» e «para que serve meia asa?» são exemplos
do argumento da «complexidade irredutível». Diz-se de uma determinada
unidade funcional que é irredutivelmente complexa se a remoção de uma
das suas partes fizer com que o todo deixe de funcionar. Tem-se
considerado este facto uma auto-evidência tanto no que se refere aos olhos
como no que respeita a asas. Mas, se pensarmos duas vezes sobre estas
pressuposições, imediatamente nos apercebemos da falácia. Uma pessoa
que sofra de cataratas e a quem tenham removido cirurgicamente o
cristalino não consegue ver imagens nítidas sem óculos, mas consegue ver o
suficiente para não chocar contra uma árvore ou para não cair de um
penhasco. Meia asa não é, de facto, tão bom como uma asa inteira, mas é
seguramente melhor do que nada. Meia asa poderá salvar-nos a vida ao
aliviar-nos a queda de uma árvore de uma certa altura. E 51 por cento de
uma asa poderá salvar-nos se cairmos de uma árvore ligeiramente mais alta.
Qualquer que seja a fracção de asa que possuirmos, haverá um ponto a
partir do qual ela nos vai salvar da queda, o que não aconteceria caso fosse
mais pequena. Este exercício intelectual com árvores de alturas diferentes
das quais se pode cair não é senão uma forma de ver, em teoria, que deve
haver um gradiente ligeiro de vantagens, desde um por cento de uma asa até
100 por cento. As florestas estão repletas de animais que se atiram planando
ou como que esbracejando para amortecer a queda, ilustrando com isso, na
prática, cada um dos passos da ascensão da tal encosta do monte
improvável.
Por analogia com as árvores de alturas diferentes, torna-se fácil imaginar
situações nas quais metade da vista salvaria a vida de um animal, ao passo
que 49 por cento da mesma não o faria. Obtêm-se gradientes em função das
variações das condições de iluminação, das variações da distância a partir
da qual se avista a presa – ou os predadores. E tal como acontece com as
asas e as superfícies de voo, os exemplares de transição plausíveis não só
são fáceis de imaginar como abundam em todo o reino animal. Será
razoável afirmar que o olho de um platelminta é menor do que metade de
um olho humano. O náutilo (e talvez as suas já extintas primas amonites,
que dominaram os mares do Paleozóico e do Mesozóico) tem um olho de
qualidade intermédia situado entre o platelminta e o ser humano. Ao
contrário do olho do platelminta, que consegue detectar luz e sombra mas
não é capaz de ver imagens, o olho do náutilo, um buraco de agulha ao
género de uma câmara pinhole, consegue obter uma imagem real, mas essa
imagem, comparada com a nossa, é esbatida e desfocada. Seria espúrio
precisar em números o grau de melhoria, mas ninguém poderá sensatamente
negar que os olhos destes invertebrados, bem como os de muitos outros,
são, todos eles, melhores do que não os possuir, e todos se situam ao longo
de uma linha contínua de encosta pelo monte improvável acima, com os
nossos olhos perto de um cume – não o mais alto, mas um cume elevado.
Em A Escalada do Monte Improvável, dediquei um capítulo inteiro ao olho
e outro à asa, demonstrando quão fácil foi para eles ir evoluindo por meio
de etapas lentas (ou talvez não tão lentas) e graduais, mas agora fico-me por
aqui.
Já vimos, portanto, que seguramente os olhos e as asas não são
irredutivelmente complexos, mas mais interessante do que estes exemplos
específicos é a lição geral que daqui se deve retirar. O facto de tanta gente
se ter enganado completamente acerca destes casos óbvios deveria alertar-
nos relativamente a outros exemplos menos óbvios, como sejam os
argumentos que na área da célula e da Bioquímica são hoje em dia
propalados pelos criacionistas acobertados sob o eufemismo politicamente
oportunista de «teóricos do desígnio inteligente».
Há que retirar daqui um aviso, que nos diz o seguinte: não basta afirmar
que as coisas são irredutivelmente complexas, pois o mais provável é não se
ter prestado suficiente atenção aos pormenores ou sobre eles não se ter
reflectido o suficiente. Por outro lado, nós, os que estamos do lado da
ciência, não podemos deixar-nos levar dogmaticamente pelo excesso de
confiança. Talvez haja algo na natureza que, pela sua complexidade
genuinamente irredutível, realmente impeça o gradiente suave do monte
improvável. Os criacionistas têm razão quando afirmam que, se a
complexidade genuinamente irredutível pudesse ser devidamente
demonstrada, arruinaria a teoria de Darwin. O próprio Darwin disse isso
mesmo: «Se se pudesse demonstrar que existia um organismo complexo que
não podia ter sido formado por uma numerosa sucessão de modificações
ligeiras, a teoria que defendo cairia completamente por terra. Contudo, não
consigo achar um caso assim.» Darwin não logrou encontrar nenhum caso
destes, nem ninguém o fez desde o seu tempo, apesar dos esforços
persistentes e até mesmo desesperados realizados nesse sentido. Já foram
propostos muitos candidatos a este santo graal do criacionismo. Nenhum
deles resistiu à análise.
De qualquer modo, mesmo que a complexidade genuinamente irredutível
deitasse por terra a teoria de Darwin, quem poderá dizer que não derrubaria
igualmente a teoria do desígnio inteligente? Na verdade, já a deitou por
terra, uma vez que, como digo sempre e volto agora a dizer, por muito
pouco que conheçamos Deus, aquilo de que podemos estar certos é de que
ele teria de ser muitíssimo complexo e, provavelmente, irredutivelmente
complexo!

A adoração das lacunas


Procurar exemplos concretos da complexidade irredutível constitui um
procedimento profundamente acientífico: uma forma específica de
argumentação com base na ignorância presente. É um método que apela à
mesma lógica imperfeita que se encontra na estratégia do «Deus tapa-
buracos», condenada pelo teólogo Dietrich Bonhoeffer. Os criacionistas
procuram avidamente uma lacuna no conhecimento ou na compreensão da
actualidade. Uma vez encontrado aquilo que parece uma lacuna, presume-se
que, por defeito, deve ser Deus a preenchê-la. O que preocupa os teólogos
ponderados como Bonhoeffer é que as lacunas vão diminuindo à medida
que a ciência avança, arriscando-se assim Deus a acabar por não ter mais
nada para fazer nem nenhum sítio onde se esconder. O que preocupa os
cientistas é outra coisa. É parte essencial da actividade científica admitir a
ignorância, e até mesmo exultar com ela, por constituir um desafio para
futuras conquistas. Tal como escreveu o meu amigo Matt Ridley: «A
maioria dos cientistas sente-se entediada com aquilo que já descobriu. É a
ignorância que os move.» Os místicos exultam com o mistério e querem que
ele permaneça misterioso. Os cientistas exultam com o mistério por uma
razão diferente: ele dá-lhes algo para fazer. De um modo mais geral, e tal
como repetirei no capítulo oitavo, um dos efeitos verdadeiramente maus da
religião é que ela nos ensina que é virtude darmo-nos por satisfeitos quando
não compreendemos.
As admissões de ignorância e de confusão temporária são vitais para a
boa ciência. É por isso lamentável, para não dizer pior, que a principal
abordagem dos propagandistas da criação seja a estratégia negativa que
consiste em procurar lacunas no conhecimento científico e pretender
preenchê-las por defeito recorrendo ao desígnio inteligente. O que se segue
é hipotético, mas absolutamente típico. Dêmos a palavra a um criacionista:
«A articulação do cotovelo de uma rã-fuinha-pintalgada é irredutivelmente
complexa. Nenhuma das partes serviria para o que quer que fosse até o todo
estar montado. Aposto que não conseguem pensar numa maneira através da
qual o cotovelo da rã-fuinha-pintalgada pudesse ter evoluído por etapas
lentas e graduais.» Se o cientista não consegue dar logo uma resposta
completa e abrangente, o criacionista retira uma conclusão por defeito:
«Então pronto, a teoria alternativa, do “desígnio inteligente”, ganha por
defeito.» Repare-se na lógica tendenciosa: se a teoria A falha em algum
pormenor, a teoria B deve estar correcta. Escusado será dizer que, na
inversa, o argumento já não é aplicado. Somos incentivados a saltar para a
teoria por defeito sem sequer procurar ver se ela falha no mesmo pormenor
da teoria que alegadamente deve substituir. O desígnio inteligente – DI –
recebe um cartão que diz «você está livre da prisão», como no jogo do
monopólio. Enfim, uma preciosa imunidade, comparada com as rigorosas
exigências impostas à evolução.
Mas o meu ponto, aqui, é que o estratagema do criacionista mina o júbilo
natural – e efectivamente necessário – sentido pelo cientista em face da
incerteza (temporária). Por razões puramente políticas, o cientista de hoje
poderá talvez só hesitar ligeiramente antes de dizer: «Hmm, mas que
questão interessante. Como será mesmo que evoluiu a articulação do
cotovelo dos antepassados da rã-fuinha? Não sou especialista em rãs-
fuinhas, tenho de ir ver à biblioteca da universidade. Isto podia ser um
projecto interessante para um estudante de pós-graduação». No momento
em que o cientista dissesse tal coisa – e muito antes de o estudante iniciar o
projecto – a conclusão por defeito tornar-se-ia manchete de um panfleto
criacionista: «A rã-fuinha só pode ter sido concebida por Deus.»
Existe, portanto, um nexo lamentável entre, por um lado, a necessidade
metodológica que o cientista tem de identificar zonas de ignorância para
onde apontar a investigação e, por outro, a necessidade que o DI tem de
procurar zonas de ignorância de modo a reivindicar a vitória por defeito.
Justamente o facto de o DI não possuir provas próprias, mas medrar como
erva daninha nas lacunas deixadas pelo conhecimento científico, convive
mal com a necessidade que a ciência tem de identificar e anunciar essas
mesmas lacunas como condição para as investigar. Neste respeito, a ciência
encontra-se aliada a sofisticados teólogos como Bonhoeffer, unidos contra
os inimigos comuns que são a teologia naïve e populista e a teologia das
lacunas proposta pelo desígnio inteligente.
O romance dos criacionistas com as «lacunas» dos registos fósseis acaba
por simbolizar toda a sua teologia lacunar. Certa vez iniciei um capítulo
acerca da chamada explosão câmbrica com a frase: «É como se os fósseis
tivessem sido lá postos sem qualquer história evolutiva.» Uma vez mais,
tratava-se de uma introdução retórica, destinada a aguçar o apetite do leitor
pela explicação completa que se seguia. Olhando para trás, compreendo
agora, com alguma tristeza, como era previsível que a minha paciente
explicação fosse extirpada e a minha introdução alegremente citada fora do
contexto. Os criacionistas adoram «lacunas» nos registos fósseis, assim
como de resto adoram as lacunas em geral.
Muitas transições evolutivas são elegantemente documentadas por séries
mais ou menos contínuas de fósseis de transição que apresentam alterações
graduais. Algumas não o são, e são essas as famosas «lacunas». Michael
Shermer assinalou com espírito que, se a descoberta de um novo fóssil vem
bissectar uma «lacuna», o criacionista irá clamar que agora existe o dobro
das lacunas! Mas seja como for, repare-se, uma vez mais, no uso infundado
da ocorrência do defeito. Se não existem fósseis para documentar a proposta
de uma determinada transição evolutiva, o pressuposto por defeito diz que
não houve transição evolutiva, logo deve ter havido intervenção de Deus.
É completamente ilógico exigir-se uma documentação completa de cada
passo de uma narrativa, seja na evolução, seja noutra ciência qualquer. Seria
o mesmo que exigir, antes de se condenar alguém por homicídio, um registo
fílmico integral de todos os passos do assassino até ao momento do crime,
sem omissão de nenhuma imagem. Apenas uma minúscula fracção de
cadáveres fossilizam, e temos sorte por possuirmos tantos fósseis de
transição. Bem podíamos nem sequer ter fósseis, pois ainda assim as provas
da evolução provenientes de outras fontes, como a genética molecular e a
distribuição geográfica, seriam esmagadoramente fortes. Por outro lado, a
evolução faz a firme previsão de que, se um único fóssil aparecesse no
estrato geológico errado, a teoria esboroar-se-ia por completo. Quando
desafiado por um fervoroso seguidor de Popper a dizer de que modo se
poderia falsificar a evolução, J. B. S. Haldane rosnou uma réplica que ficou
famosa: «Fósseis de coelho no Pré-Câmbrico. Nunca foram autenticamente
encontrados fósseis anacrónicos deste tipo, apesar das desacreditadas lendas
criacionistas de crânios humanos nas formações carboníferas e de pegadas
humanas misturadas com pegadas dos dinossauros.»
As lacunas por defeito, na mente do criacionista, preenche-as Deus. O
mesmo se aplica a tudo o que se assemelhe a precipício no maciço do monte
improvável, onde a encosta gradativa não é, de imediato, óbvia ou passa
completamente despercebida. Parte-se do princípio de que as áreas em
relação às quais há falta de dados, ou uma insuficiente compreensão,
pertencem, por defeito, a Deus. O recurso apressado a uma dramática
proclamação de «complexidade irredutível» trai uma certa falha de
imaginação. Decreta-se, sem acrescentar nenhum argumento para tal, que
um qualquer órgão biológico, se não um olho então um motor flagelar
bacteriano ou um percurso bioquímico, é irredutivelmente complexo. Não é
feita qualquer tentativa de demonstrar a complexidade irredutível. Apesar
de as histórias de olhos, asas e muitas outras coisas nos haverem ensinado a
ser cautelosos, parte-se do princípio de que cada novo candidato a esse
dúbio preito é óbvia, cristalina e irredutivelmente complexo, com o seu
estatuto declarado por decreto. Mas pense-se na questão. Uma vez que a
complexidade irredutível é apresentada como argumento a favor do
desígnio, não tem mais direito a ser declarada por decreto do que o próprio
desígnio. Já agora, mais vale declarar apenas, sem recorrer a nenhum
argumento ou justificação adicionais, que a rã-fuinha (o besouro-
bombardeiro, etc.) é a demonstração do desígnio. Isso não é maneira de se
fazer ciência.
A lógica acaba por não ser mais convincente do que isto: «Pessoalmente,
eu [inserir o nome] não sou capaz de pensar em nenhum modo pelo qual
[inserir o fenómeno biológico] possa ter vindo a construir-se passo a passo.
Portanto, ele é irredutivelmente complexo. E isso significa que foi
concebido.» Postas assim as coisas, de imediato se vê que isto se presta a
que apareça um cientista que encontre uma transição, ou pelo menos que
imagine uma transição plausível. E mesmo que não surja nenhum cientista
com uma explicação, não é boa lógica presumir à partida que o «desígnio»
se há-de sair melhor. O tipo de raciocínio que está por detrás da teoria do
desígnio inteligente é preguiçoso e derrotista – o clássico raciocínio do
«Deus tapa-buracos». Já o apelidei de argumento da incredulidade pessoal.
Imagine-se que se está a assistir a um grande truque de magia. O célebre
duo de ilusionistas, Penn e Teller, tem um truque no qual ambos parecem
simultaneamente disparar um contra o outro com pistolas, e cada um deles
parece apanhar a bala com os dentes. São tomadas precauções
complicadíssimas para fazer marcas identificadoras nas balas antes de
serem inseridas nas armas, e todo o processo é testemunhado de perto por
voluntários do público com experiência em armas de fogo, eliminando-se
assim, ao que parece, todas as possibilidades de embuste. A bala marcada
de Teller acaba na boca de Penn e a bala marcada de Penn acaba na de
Teller. Eu [Richard Dawkins] sou absolutamente incapaz de pensar numa
forma qualquer de se tratar de um truque. O argumento da incredulidade
pessoal grita das profundezas dos meus pré-científicos centros cerebrais,
quase me obrigando a dizer: «Tem de ser milagre. Não existe qualquer
explicação científica. Tem de ser sobrenatural.» Mas, ainda que débil, a voz
da formação científica exprime uma mensagem diferente. Penn e Teller são
ilusionistas de nível mundial. Há uma justificação perfeitamente lógica.
Acontece que sou demasiado ingénuo, ou demasiado desatento, ou
demasiado desprovido de imaginação para que ela me ocorra. É essa a
reacção adequada a um truque de ilusionismo. É também a reacção
adequada a um fenómeno biológico que pareça irredutivelmente complexo.
As pessoas que passam de forma directa de um sentimento de confusão
pessoal perante um fenómeno natural para uma invocação precipitada do
sobrenatural não são melhores do que os tolos que, vendo um ilusionista a
dobrar uma colher, se precipitam a concluir que estão perante algo
«paranormal».
No livro Sete Pistas para a Origem da Vida, o químico escocês A. G.
Cairns-Smith serve-se da analogia do arco para acrescentar um ponto mais a
esta ideia. Um arco isolado, feito de pedras apenas desbastadas e sem
argamassa, pode ser uma estrutura estável, mas é irredutivelmente
complexo: desmorona-se caso alguma pedra seja removida. Então como foi
edificado? Uma maneira será empilhar um monte de pedras compacto e
depois remover com cuidado algumas delas, uma a uma. De um modo mais
geral, existem muitas estruturas que são irredutíveis no sentido em que não
podem sobreviver à subtracção de nenhuma das partes, mas que foram
construídas com a ajuda de andaimes posteriormente subtraídos e, por isso,
já não visíveis. Uma vez completa a estrutura, os andaimes podem ser
removidos em segurança e a estrutura permanece de pé. Também na
evolução, o órgão ou a estrutura para onde se está a olhar pode no passado
ter tido andaimes entretanto removidos.
A «complexidade irredutível» não é uma ideia nova, mas a expressão em
si só foi inventada em 1996, pelo criacionista Michael Behe . Foi dele o
91

mérito (se é que de mérito se pode falar) de levar o criacionismo a uma


nova área da Biologia: a Bioquímica e a Biologia celular, que Behe terá
talvez considerado uma zona de caça mais propícia a lacunas do que os
olhos ou as asas. A sua melhor abordagem a um exemplo (ainda assim mau)
foi o motor flagelar bacteriano.
O motor flagelar das bactérias é um prodígio da natureza. Ele faz mover o
único exemplo conhecido, exceptuando as tecnologias humanas, de eixo de
rotação livre. Suspeito de que a eventual existência de rodas em animais de
grande porte seria um exemplo genuíno de complexidade irredutível, e é
provavelmente por isso que não as há. Como conseguiriam os nervos e os
vasos sanguíneos atravessar os rolamentos? O flagelo é uma hélice
92

propulsora formada por um simples filamento, com o qual a bactéria escava


a água para abrir caminho. Eu digo «escava» em vez de «nada» porque, na
escala bacteriana da existência, um líquido como a água não terá a mesma
sensação que tem para nós. Deve dar mais a sensação de melaço ou de
gelatina, ou até de areia, dando a sensação de a bactéria estar, não tanto a
nadar, mas sim a escavar ou a brocar um trilho para poder romper através da
água. Ao contrário do chamado flagelo de organismos maiores, como sejam
os protozoários, o flagelo bacteriano não se limita a ondular como um
chicote ou a remar como um remo. Ele possui um verdadeiro eixo de
rotação livre que gira sem parar dentro de um rolamento, movido por um
notável motorzinho que, ao nível molecular, usa essencialmente o mesmo
princípio do que a energia muscular, embora em rotação livre e não através
de contracções intermitentes. Numa descrição feliz, foi comparado a um
93

minúsculo motor fora de borda (muito embora, pelos padrões da engenharia


– e o que é pouco usual para um mecanismo biológico –, seja
espectacularmente ineficiente como tal).
Sem uma palavra sequer de justificação, explicação ou clarificação, Behe
limita-se a proclamar que o motor flagelar bacteriano é irredutivelmente
complexo. Uma vez que não apresenta qualquer argumento a favor da sua
asserção, podemos começar por desconfiar de que sofre de falha de
imaginação. Além disso, Behe alega que a bibliografia especializada da área
da Biologia sempre omitiu o problema. A falsidade desta alegação ficou
maciça e (para Behe) embaraçosamente documentada, em 2005, no tribunal
do juiz John E. Jones, na Pensilvânia, onde Behe depunha enquanto perito
chamado a testemunhar em nome de um grupo de criacionistas que tinham
tentado impor o criacionismo do desígnio inteligente no programa da
disciplina de Ciências de uma escola pública local – um acto de uma
«inanidade pasmosa», no dizer do juiz Jones (expressão e homem
certamente destinados a uma fama duradoura). Como veremos, este não foi
o único embaraço que Behe sofreu no decurso das sessões.
A chave para se provar a complexidade irredutível é mostrar que
nenhuma das partes podia ter sido útil por si só. Todas elas tinham de estar
já montadas no seu devido lugar antes que cada uma delas pudesse ter
servido para o que quer que fosse (a analogia preferida de Behe é a de uma
ratoeira). Na verdade, os biólogos moleculares não têm dificuldade em
encontrar partes a funcionar de forma independente do todo, tanto no caso
do motor flagelar como nos outros alegados exemplos de complexidade
irredutível aduzidos por Behe. A questão é bem colocada por Kenneth
Miller, da Brown University, um autor que na minha opinião – para a qual
não conta pouco a circunstância de se tratar de um cristão devoto –, é a mais
persuasiva némesis do desígnio inteligente. Recomendo com frequência o
livro de Miller, Finding Darwin’s God, a pessoas religiosas que me
escrevem após terem sido ludibriadas por Behe.
No caso do motor bacteriano rotativo, Miller chama a nossa atenção para
um mecanismo chamado sistema secretor de tipo três, ou SSTT. O SSTT
94

não é utilizado para o movimento rotatório. É um dos vários sistemas


usados por bactérias parasitas para bombear substâncias tóxicas através das
paredes das células de maneira a envenenar o organismo hospedeiro. À
nossa escala humana, poderemos pensar em verter ou injectar um líquido
através de um buraco; porém, e mais uma vez, à escala bacteriana as coisas
afiguram-se diferentes. Cada molécula de substância segregada é uma
grande proteína com uma estrutura definida e tridimensional, a uma escala
idêntica à do SSTT: mais parecida com uma escultura sólida do que com
um líquido. Cada molécula é individualmente propulsionada através de um
mecanismo minuciosamente moldado, a fazer lembrar mais uma slot
machine automática donde saiam, digamos, brinquedos ou garrafas, do que
um simples buraco através do qual possa «fluir» uma substância. O próprio
distribuidor automático é, em si, constituído por um número bastante
pequeno de moléculas de proteínas, sendo cada uma delas comparável, em
dimensão e complexidade, com as moléculas que distribui. É interessante
notar que estas slot machines bacterianas são, muitas vezes, semelhantes
entre bactérias sem grande relação entre si. É provável que os genes que
lhes estão na origem foram «copiados e colados» a partir de outras
bactérias: algo em que as bactérias são extraordinariamente competentes,
sendo este um assunto fascinante em si mesmo, mas há que passar adiante.
As moléculas de proteínas que formam a estrutura SSTT são muito
semelhantes aos componentes do motor flagelar. Para o evolucionista torna-
se claro que, quando o motor em causa estava a evoluir, componentes do
SSTT foram chamados a executar uma função nova, se bem que não
totalmente desconexa da anterior. Atendendo a que o SSTT puxa moléculas
através de si próprio, não surpreende que utilize uma versão rudimentar do
princípio usado pelo motor flagelar, que puxa pelas moléculas do eixo
fazendo-as andar às voltas. É evidente que certos componentes cruciais do
motor flagelar já se encontravam montados e a funcionar antes de este se ter
desenvolvido. Mobilizar mecanismos existentes é uma óbvia maneira
possível de um dispositivo à primeira vista irredutivelmente complexo
escalar o monte improvável.
É claro que há muito mais trabalho para fazer, e tenho a certeza de que
será feito. Esse trabalho nunca seria realizado se os cientistas se dessem por
satisfeitos com a preguiçosa solução por defeito promovida pela «teoria do
desígnio inteligente». Eis o tipo de mensagem que um imaginário «teórico
do desígnio inteligente» poderia transmitir aos cientistas: «Se não
compreendeis como uma coisa funciona, não faz mal: desisti e dizei que é
obra de Deus. Não sabeis como funciona o impulso nervoso? Muito bem!
Não compreendeis como as memórias são depositadas no cérebro?
Excelente! A fotossíntese é um processo desconcertantemente complexo?
Óptimo! Por favor, não vos esforceis a trabalhar no problema, desisti e
apelai para Deus. Caro cientista, não trabalhes a desvendar os teus
mistérios. Traz-nos os teus mistérios, pois nós podemos aproveitá-los. Não
esbanjes em investigação essa tua preciosa ignorância. Precisamos dessas
gloriosas lacunas, que são o último reduto de Deus.» Santo Agostinho disse-
o com muita franqueza: «Existe outra forma de tentação, ainda mais prenhe
de perigos. É a doença da curiosidade. É ela que nos leva a tentar descobrir
os segredos da natureza, aqueles que estão para além do nosso
entendimento, que de nada nos podem valer e que o homem não deveria
desejar conhecer» (citado em Freeman 2002).
Outro dos alegados exemplos favoritos de «complexidade irredutível» de
Behe é o sistema imunitário. Deixemos que seja o próprio juiz Jones a
retomar a história:

Com efeito, durante a audição contraditória o professor Behe foi


questionado relativamente à sua declaração de 1996, segundo a qual a
ciência nunca encontraria uma explicação evolutiva para o sistema
imunitário. Foi confrontado com 58 publicações com arbitragem
científica, nove livros e vários capítulos de manuais de imunologia
acerca da evolução do sistema imunitário, mas mesmo assim limitou-se
a insistir que tal não era prova suficiente da evolução e que «não
chegava».

Durante o interrogatório realizado por Eric Rothschild, advogado


principal da parte queixosa, Behe foi forçado a admitir que não tinha lido a
maior parte daqueles 58 artigos, sujeitos a arbitragem científica pelos seus
próprios pares. Não admira, pois a imunologia dá muito trabalho. Menos
perdoável é Behe ter minimizado com displicência toda essa investigação,
considerando-a «infrutífera». Será com certeza infrutífera se o objectivo for
fazer propaganda entre políticos e leigos crédulos, em vez de procurar
descobrir verdades importantes acerca do mundo real. Depois de ouvir
Behe, Rothschild resumiu deste modo eloquente o que qualquer pessoa séria
dentro daquela sala de audiências deve ter sentido:

Ainda bem que existem cientistas que procuram respostas para a


questão da origem do sistema imunitário... Ele é a nossa defesa contra
doenças debilitantes e fatais. Os cientistas que escreveram aqueles
livros e artigos trabalham arduamente na obscuridade, sem os royallies
dos livros nem sessões de divulgação. Os seus esforços ajudam a
combater e curar doenças graves. Pelo contrário, o professor Behe e
todo o movimento do desígnio inteligente não só nada fazem para
desenvolver o conhecimento científico ou médico, como estão a dizer
com isto às futuras gerações de cientistas, não se incomodem. 95

Tal como escreveu o geneticista americano Jerry Coyne, na recensão


crítica ao livro de Behe, «se a História da ciência nos mostra alguma coisa,
é que não vamos chegar a lado algum pondo o rótulo “Deus” à nossa
ignorância». Ou, segundo as palavras de um eloquente bloguista num
comentário a um artigo acerca do desígnio inteligente que publiquei com
Coyne no jornal Guardian,

Por que motivo se considera Deus uma explicação para tudo? Não o é –
é uma incapacidade de explicar, um encolher de ombros, um «sei lá»
com vestes de espiritualidade e ritual. Quando se atribui mérito a Deus
por alguma coisa, o que isso geralmente significa é que essas pessoas
não fazem a mínima ideia, por isso atribuem-no a uma inalcançável e
incognoscível fada celeste. Peça-se uma explicação indagando donde
veio o tipo, e é provável que se receba uma resposta vaga e
pseudofilosófica sobre ele sempre ter existido ou ser exterior à natureza.
O que, como é óbvio, nada explica. 96

O darwininsmo desperta as nossas consciências de outras formas. A


ocorrência de órgãos evoluídos, por mais elegantes e eficientes que estes se
afigurem, não deixa de pôr a nu defeitos reveladores – precisamente como
seria de esperar, se é verdade que tais órgãos têm uma história evolutiva, e
precisamente como não seria de esperar, caso se verificasse que foram
concebidos em função de um desígnio. Já me debrucei sobre diversos
exemplos noutros livros: o nervo laríngeo recorrente, por exemplo, que, a
caminho do seu destino, deixa entrever a sua história evolutiva ao descrever
um enorme e ruinoso desvio. Muitas das nossas maleitas humanas, desde
dores de costas a hérnias, passando por prolapsos uterinos e pela nossa
susceptibilidade à sinusite, resultam directamente do facto de caminharmos
hoje na vertical com um corpo que, durante centenas de milhões de anos, se
foi formando para andar a quatro. As nossas consciências também são
despertadas pela crueldade e desperdício da selecção natural. Os predadores
parecem esplendidamente concebidos, ou «desenhados», para capturar as
presas, enquanto estas parecem também esplendidamente «desenhadas»
para lhes escapar. De qual dos lados está Deus?97

O princípio antrópico: versão planetária


Os teólogos das lacunas que eventualmente hajam desistido dos olhos, das
asas, dos motores flagelares e dos sistemas imunitários acabam muitas
vezes por depositar as suas derradeiras esperanças na origem da vida. De
algum modo, a ideia de fazer radicar toda a evolução na Química não-
biológica parece apresentar uma lacuna maior do que qualquer das
transições específicas verificadas ao longo da evolução subsequente. E num
certo aspecto é uma lacuna maior. Esse aspecto é bastante concreto e não
traz qualquer consolo ao apologista religioso. A origem da vida apenas teve
de acontecer uma vez. Assim, podemos admitir ter-se tratado de um
acontecimento extremamente improvável, de uma improbabilidade muitas
ordens de grandeza acima do que a maioria das pessoas faz ideia, como irei
mostrar. Os passos evolutivos subsequentes são duplicados, de modo mais
ou menos semelhante e de uma forma independente, através de milhões e
milhões de espécies e de uma maneira continuada e repetida ao longo do
tempo geológico. Assim, para explicar a evolução da vida complexa não
podemos recorrer ao mesmo tipo de raciocínio estatístico que aplicamos à
origem da vida. Os acontecimentos que constituem a rotina da evolução, por
contraste com a sua origem singular (e eventualmente com um ou outro
caso particular), não poderão ter sido muito improváveis.
A distinção pode parecer complicada e é forçoso que a explique melhor,
servindo-me do chamado princípio antrópico. A designação princípio
antrópico foi dada pelo matemático Brandon Carter, em 1974, e difundida
pelos físicos John Barrow e Frank Tipler no livro que escreveram sobre o
assunto . O argumento antrópico é normalmente aplicado ao cosmo,
98

questão à qual voltarei. Mas vou introduzir a ideia a uma escala mais
pequena, a escala planetária. Nós existimos aqui na Terra. Por conseguinte,
a Terra deve ser o género de planeta capaz de nos gerar e sustentar, por mais
invulgar e até mesmo único que esse planeta possa ser. A nossa forma de
vida, por exemplo, não é capaz de sobreviver sem água líquida. Na verdade,
os exobiólogos que procuram provas de vida extraterrestre andam, na
prática, a sondar os céus em busca de vestígios de água. Em torno de uma
estrela típica como é o Sol, existe a chamada zona Goldilocks – nem muito
99

quente, nem muito fria, mas à temperatura certa – para planetas com água
líquida. Existe uma fina faixa de órbitas entre os planetas que se encontram
demasiado distantes da estrela, onde a água congela, e os que se encontram
demasiado próximos, onde a água entra em ebulição.
Também é presumível que uma órbita propícia à vida seja quase circular.
Uma órbita acentuadamente elíptica, como a do recém-descoberto décimo
planeta, informalmente chamado Xena, permitiria, quando muito, que o
planeta atravessasse por um breve período a zona Goldilocks apenas uma
vez em várias décadas ou séculos (de tempo terrestre). O próprio Xena não
chega a entrar na zona Goldilocks, mesmo no ponto de maior aproximação
ao Sol, que ocorre uma vez em cada 560 anos terrestres. A temperatura do
cometa Halley varia entre aproximadamente os 47 graus no periélio e os
-270 graus no afélio. Tecnicamente, a órbita da Terra, como as de todos os
planetas, é uma elipse (está mais próxima do Sol em Janeiro e mais afastada
em Julho ), mas o círculo constitui um caso especial de elipse, e a órbita da
100

Terra está tão perto de ser circular que nunca chega a sair da zona
Goldilocks. A posição da Terra no sistema solar é propícia sob outros
aspectos, e foram esses aspectos que a tornaram única para que vida ali
pudesse evoluir. Esse enorme aspirador gravitacional que é Júpiter está bem
posicionado para interceptar asteróides que de outro modo poderiam
ameaçar-nos com uma colisão letal. A única lua relativamente grande que a
Terra tem serve para estabilizar o nosso eixo de rotação , além de que ajuda
101

a fomentar a vida de várias outras maneiras. O nosso Sol é invulgar na


medida em que não é uma estrela binária, presa com o seu duplo numa
órbita comum. É possível as estrelas binárias terem planetas, mas as
respectivas órbitas tendem a sofrer variações demasiado caóticas para
possibilitar que a vida aí se desenvolva.
Foram avançadas duas grandes explicações para a peculiar vocação do
nosso planeta para a vida. Segundo a teoria do desígnio, Deus fez o mundo,
colocou-o na zona Goldilocks e criou intencionalmente todos os
pormenores em nosso proveito. A abordagem antrópica é muito diversa e
tem um toque ligeiramente darwiniano. A grande maioria dos planetas
existentes no universo não se situa nas zonas Goldilocks das respectivas
estrelas, logo não são apropriados para conter vida, e nenhum planeta dessa
maioria a contém. Por mais pequena que seja a minoria de planetas com
condições adequadas para conter vida, temos forçosamente de estar num
dos planetas dessa minoria, pois aqui estamos nós a reflectir sobre nisso.
Já agora, é estranho ver como os apologistas religiosos adoram o
princípio antrópico. Por alguma razão que não faz o mínimo sentido, julgam
que ele dá força ao seu argumento, quando precisamente o oposto é que é
verdade. Tal como a selecção natural, o princípio antrópico é uma
alternativa à hipótese do desígnio criador. Ele proporciona uma explicação
racional – e que nada tem a ver com o desígnio – para o facto de nos
encontrarmos numa situação propícia à nossa existência. Julgo que a
confusão surge na mente religiosa porque o princípio antrópico apenas é
mencionado no contexto do problema que resolve, nomeadamente o facto
de vivermos num local «amigável», isto é, propício à vida. O que a mente
religiosa não consegue compreender é que há duas soluções a candidatarem-
se à resolução do problema. Deus é uma delas. A outra é o princípio
antrópico. Trata-se de alternativas.
A água líquida é uma condição necessária à vida tal como a conhecemos,
mas está longe de ser suficiente. Ainda é preciso que na água se origine
vida, e a ocorrência desta poderá ter sido altamente improvável. A partir do
momento em que a vida surge, a evolução darwiniana prossegue
alegremente. Mas como a vida tem início? A origem da vida foi o
acontecimento – ou a série de acontecimentos – de natureza química por
meio dos quais se deram as condições vitais à selecção natural. O principal
ingrediente terá sido a hereditariedade, ou o ADN, ou (mais provavelmente)
algo que se replica à maneira do ADN, mas de forma menos fiel. Talvez a
molécula de ARN, que com ele está relacionada. Assim que o ingrediente
vital – uma espécie de molécula genética – está pronta, pode dar lugar à
verdadeira selecção natural darwiniana, com o eventual surgimento, em
consequência disso, da vida complexa. Mas para muitas pessoas o
surgimento espontâneo e casual da primeira molécula hereditária afigura-se
improvável. Talvez o seja – muitíssimo improvável, e eu vou deter-me um
pouco neste tema, pois ele é fulcral para esta secção do livro.
A origem da vida é um tema de investigação florescente, ainda que sujeito
a especulação. A especialidade exigida é a Química, área que não é a minha.
Fico de fora a observar, com uma curiosidade empenhada, e não ficarei
surpreendido se dentro dos próximos anos os químicos disserem que
conseguiram ajudar a dar à luz uma nova origem da vida, em laboratório.
Contudo, isso ainda não aconteceu, e ainda é possível defender que a
probabilidade de tal acontecer é e sempre foi extremamente baixa – embora
já tenha acontecido uma vez!
Tal como fizemos no caso das órbitas Goldilocks, podemos afirmar que,
por mais improvável que a origem da vida seja, sabemos que ela aconteceu
na Terra porque estamos aqui. E como no caso da temperatura, existem
também aqui duas hipóteses para explicar o que aconteceu – a hipótese do
desígnio e a hipótese científica ou Kantrópica». A abordagem do desígnio
postula um Deus que operou um milagre deliberado, acendendo o caldo pré-
biótico com o fogo divino e lançando o ADN, ou algo equivalente, na sua
momentosa carreira.
Uma vez mais, como no caso das Goldilocks, a alternativa antrópica à
hipótese do desígnio é estatística. Os cientistas invocam a magia decorrente
das grandes quantidades. Calculou-se que existem entre 1000 milhões e 30
000 milhões de planetas na nossa galáxia, e cerca de 100 000 milhões de
galáxias no universo. Tirando alguns zeros por razões de comum prudência,
dois triliões será uma estimativa conservadora do número de planetas
existentes no universo. Suponha-se agora que a origem da vida, o
surgimento espontâneo de algo equivalente ao ADN, foi de facto um
acontecimento assombrosamente improvável. Suponha-se que foi tão
improvável que apenas aconteceu num planeta em cada 1000 milhões. Um
júri que tivesse de decidir sobre a atribuição de bolsas rir-se-ia na cara de
qualquer químico que admitisse que a possibilidade de êxito do seu projecto
de investigação era de apenas uma em 100. E estamos nós para aqui a falar
de probabilidades na ordem de um em 1000 milhões. E contudo... mesmo
com probabilidades tão absurdamente escassas, a vida terá surgido em 1000
milhões de planetas – dos quais a Terra, evidentemente, é um.
102

Esta conclusão é tão surpreendente que a vou repetir. Ainda que as


probabilidades de a vida nascer de forma espontânea num planeta fossem de
uma em cada 1000 milhões, mesmo assim esse acontecimento
avassaladoramente improvável ocorreria em 1000 milhões de planetas. A
possibilidade de encontrar um que seja desses 1000 milhões de planetas
com vida faz lembrar a proverbial agulha no palheiro. Mas não temos de
fazer um esforço por aí além para encontrar uma agulha, porque (voltando
ao princípio antrópico) quaisquer seres capazes de procurarem, devem estar
já, forçosamente, sentados em cima de uma dessas raríssimas agulhas antes
sequer de se porem à procura.
Qualquer avaliação de probabilidades é feita no contexto de um certo
nível de ignorância. Se nada soubermos de um planeta, podemos postular as
probabilidades de nele surgir vida na ordem de, digamos, uma em 1000
milhões. Mas se agora importarmos para o nosso cálculo alguns
pressupostos novos, as coisas mudam de figura. Um determinado planeta
pode ter certas propriedades peculiares, como seja o perfil dos elementos
constituintes das suas rochas, o que muda as probabilidades a favor do
surgimento de vida. Por outras palavras, alguns planetas são mais
Kterróides» do que outros. A própria Terra, como é óbvio, é particularmente
Kterróide»! Este facto deveria constituir um incentivo para os nossos
químicos que, nos seus laboratórios, tentam criar o acontecimento, já que
ele poderá reduzir as probabilidades de insucesso. Mas a minha estimativa
inicial demonstrou que até um modelo químico com uma probabilidade de
êxito na reduzidíssima ordem de um em 1000 milhões continuaria, mesmo
assim, a fazer prever que haveria vida em 1000 milhões de planetas no
universo. E a beleza do princípio antrópico é que ele nos diz, ao completo
arrepio da intuição, que um modelo químico não precisa senão de prever
que há-de haver vida num só de entre um trilião de planetas, para nos
proporcionar uma explicação boa e inteiramente satisfatória quanto à
presença de vida neste que é o nosso. Não acredito nem por um só instante
que a origem da vida tenha, na prática, sido assim tão improvável. Acho que
decididamente vale a pena gastar dinheiro a tentar reproduzir o
acontecimento em laboratório – e também no projecto SETI, porque
considero provável haver vida inteligente noutras partes.
Mesmo aceitando a estimativa mais pessimista quanto à probabilidade de
a vida surgir espontaneamente, este argumento estatístico destrói por
completo toda e qualquer sugestão de que se deve postular o desígnio a fim
de preencher a lacuna. De todas as aparentes lacunas da história da
evolução, a da origem da vida pode parecer impossível de colmatar a
intelectos calibrados para avaliar a probabilidade e o risco à escala do
quotidiano: aquela pela qual as entidades que concedem as bolsas de
investigação avaliam as candidaturas apresentadas pelos químicos. Todavia,
uma ciência bem informada pela estatística preenche facilmente mesmo
uma lacuna tão grande como esta, ao passo que essa mesma ciência
estatística elimina desde logo a hipótese de um criador divino com base na
lógica do fantástico 747 de que falámos atrás.
Mas voltando ao interessante ponto que deu início à presente secção.
Suponha-se que alguém tentava explicar o fenómeno geral da adaptação
biológica nos mesmos moldes que acabámos de aplicar à origem da vida, ou
seja, apelando a um número muitíssimo vasto de planetas possíveis. O facto
que a observação permite verificar é que todas as espécies, bem como todos
os órgãos alguma vez observados dentro de cada espécie, são bons naquilo
que fazem. As asas das aves, das abelhas e dos morcegos são boas a voar.
Os olhos são bons a ver. As folhas são boas a desempenhar a fotossíntese.
Vivemos num planeta onde estamos rodeados por talvez dez milhões de
espécies, cada uma das quais patenteando, isoladamente, uma poderosa
ilusão de desígnio aparente. Cada espécie encontra-se bem equipada para o
seu modo específico de viver. Será possível recorrer ao argumento do
«vastíssimo número de planetas» para explicar todas estas diferentes ilusões
do desígnio? Não, não é possível, e repito-o: não. Nem pensar. Isto é
importante, pois tem directamente a ver com o mais grave mal-entendido do
darwinismo.
Independentemente de saber com quantos planetas temos de jogar, a sorte
e o acaso nunca chegariam para explicar a exuberante diversidade e
complexidade da vida na Terra do mesmo modo que os utilizámos para
explicar a existência de vida neste planeta. A evolução da vida é um caso
completamente distinto do da origem da vida porque, conforme já disse,
esta última foi (ou terá sido) um acontecimento único, que só precisou de
ocorrer uma vez. Por outro lado, a adaptação das espécies aos seus
ambientes respectivos é da ordem dos milhões e está ainda em curso.
Torna-se evidente que aqui na Terra estamos a lidar com um processo
generalizado de optimização das espécies biológicas, processo esse que
funciona à escala de todo o planeta, em todos os continentes e ilhas e em
todas as épocas. Podemos prever com segurança que, se esperamos mais 10
000 milhões de anos, teremos um conjunto de espécies inteiramente novo e
tão bem adaptado aos seus modos de viver como as espécies dos dias de
hoje estão adaptadas aos seus. Este é um fenómeno recorrente, previsível e
múltiplo, e não um golpe de sorte estatística reconhecido a posteriori.
Graças a Darwin, sabemos como é originado: por selecção natural.
O princípio antrópico é impotente para explicar os multímodos
pormenores que caracterizam os seres vivos. Precisamos de facto do
poderoso guindaste de Darwin para explicitar a diversidade da vida na
Terra, e especialmente a persuasiva ilusão que é a noção de um desígnio
criador. Em contraste, a origem da vida fica fora do alcance desse
guindaste, porque sem ela a selecção natural não pode avançar. É aqui que o
princípio antrópico está no seu melhor. Podemos lidar com esse facto que é
a origem única da vida postulando um número muito amplo de
oportunidades planetárias. Uma vez concedido esse golpe de sorte inicial –
e sem dúvida que o princípio antrópico no-lo concede –, a selecção natural
passa a assumir o controlo. E a selecção natural não depende,
decididamente, dos caprichos da sorte.
Pode, contudo, dar-se o caso de a origem da vida não ser a única grande
lacuna na história evolutiva que é colmatada por um golpe de pura sorte,
antropicamente fundamentada. Assim, e por exemplo, o meu colega Mark
Ridley, no livro O Demónio de Mendel (a que os editores norte-americanos
deram o gratuito e confuso título de The Cooperative Gene), propôs que a
origem da célula eucariótica (o nosso tipo de célula, dotado de um núcleo e
de várias outras características complicadas, como sejam as mitocôndrias,
ausentes nas bactérias) representa um passo ainda mais importante, mais
difícil e estatisticamente mais improvável do que a origem da vida. A
origem da consciência poderá ser outra grande lacuna cuja superação foi da
mesma ordem de improbabilidade. Acontecimentos irrepetíveis como estes
poderão ser explicados pelo princípio antrópico, nos seguintes moldes.
Existem milhares de milhões de planetas onde se desenvolveu vida ao nível
das bactérias, mas apenas uma fracção destas formas de vida conseguiu
transpor a lacuna até chegar a algo como a célula eucariótica. E destas, uma
fracção ainda mais pequena conseguiu atravessar o Rubicão e chegar à
consciência. Se ambos são acontecimentos únicos, então não estamos
perante um processo ubíquo e amplamente difundido, como sucede com a
comum e rotineira adaptação biológica. O princípio antrópico afirma que,
uma vez que estamos vivos e que somos eucarióticos e conscientes, o nosso
deve ser um dos planetas raríssimos que colmataram as três lacunas.
A selecção natural funciona porque é uma via cumulativa e de sentido
único em direcção ao aperfeiçoamento. Necessita de alguma sorte para
começar, e o princípio antrópico dos «milhares de milhões de planetas»
concede-lhe essa sorte. Talvez que, ao longo da sua história evolutiva, uma
ou outra lacuna venha a precisar também de grandes infusões de sorte, com
a devida justificação antrópica. Mas, diga-se o que se disser, o desígnio é
que não funciona enquanto explicação para a vida, porque em última análise
ele não é cumulativo e por isso levanta mais questões do que aquelas a que
responde, remetendo-nos sempre para a infinita regressão ilustrada pela
imagem do fantástico 747.
Vivemos num planeta que é propício ao nosso género de vida, e vimos
duas razões para que assim seja. Uma é que a vida evoluiu e foi medrando
nas condições proporcionadas pelo planeta. Isto deve-se à selecção natural.
A outra razão é a antrópica. Existem milhares de milhões de planetas no
universo, e por muito pequena que seja a minoria de planetas propícios à
evolução, o nosso planeta tem, forçosamente, de ser um deles. Agora é
altura de levar o princípio antrópico a uma fase anterior, da Biologia para a
Cosmologia.

O princípio antrópico: versão cosmológica


Não é só o planeta em que vivemos que é propício, ou «amigável», pois o
universo também o é. O próprio facto que é a nossa existência implica que
as leis da Física devem ser suficientemente propícias ao surgimento da vida.
Não é por acaso que, quando olhamos para o céu à noite, vemos estrelas,
pois elas são um pré-requisito para a existência da maior parte dos
elementos químicos, e sem Química não existiria vida. Segundo os cálculos
dos físicos, se as leis e as constantes da Física tivessem sido ligeiramente
diferentes, o universo ter-se-ia desenvolvido de tal modo que a vida teria
sido impossível. Físicos diversos colocam as coisas de maneiras diferentes,
mas a conclusão é sempre sensivelmente a mesma. No livro Just Six
Numbers, Martin Rees faz uma lista de seis constantes fundamentais que se
crê serem válidas em todo o universo. Cada um destes seis números
corresponde a uma minudente afinação, no sentido em que, se fosse um
tudonada diferente, o universo seria genericamente diverso daquilo que é e,
presumivelmente, impropício à vida. 103

Um exemplo dos seis números de Rees é a magnitude da chamada força


«forte», aquela que agrega os componentes de um núcleo atómico: a força
nuclear que tem de ser vencida quando se «cinde» o átomo. Mede-se em
termos de E, que é a proporção da massa de um núcleo de hidrogénio que é
convertida em energia quando o hidrogénio se funde para formar hélio. O
valor deste número no nosso universo é de 0,007, e parece que teria sempre
de se situar muito perto deste valor para haver Química (que é um pré-
requisito da vida). A Química tal como a conhecemos consiste na
combinação e recombinação dos cerca de 90 elementos naturais constantes
da tabela periódica. O hidrogénio é o mais simples e o mais comum de
todos os elementos. Todos os restantes existentes no universo resultam, em
última análise, do hidrogénio por via da fusão nuclear, a qual é um processo
difícil que ocorre nas condições de calor extremo verificadas no interior das
estrelas (e nas bombas de hidrogénio). As estrelas relativamente pequenas,
como o nosso Sol, apenas conseguem produzir elementos leves, como o
hélio, o segundo elemento mais leve na tabela periódica a seguir ao
hidrogénio. São precisas estrelas maiores e mais quentes para desenvolver
as elevadas temperaturas necessárias à formação da maior parte dos
elementos mais pesados, numa sucessão de processos de fusão nuclear por
efeito de dominó cujos pormenores foram desvendados por Fred Hoyle e
dois colegas (um feito pelo qual, estranhamente, Hoyle não teve direito a
uma parte do Prémio Nobel recebido pelos restantes). Estas estrelas de
grandes dimensões podem explodir como supernovas, espalhando os seus
materiais – incluindo os elementos da tabela periódica – em nuvens de
poeira. Essas nuvens de pó acabam, eventualmente, por se condensar de
maneira a formarem novas estrelas e planetas, como sucedeu com o nosso.
É por isso que a Terra é rica em elementos que vão muito para além do
ubíquo hidrogénio, sem os quais a Química e a própria vida seriam
impossíveis.
O importante a destacar aqui é que o valor da força forte determina de
uma maneira decisiva até que ponto da tabela periódica ascende o efeito de
dominó da fusão nuclear. Se a força forte fosse demasiado baixa, digamos
de 0,006 em vez de 0,007, o universo não conteria mais nada para além de
hidrogénio, e nenhuma Química suficientemente interessante poderia ter daí
resultado. Se o valor fosse demasiado elevado, digamos de 0,008, todo o
hidrogénio se teria fundido de maneira a formar elementos mais pesados.
Uma Química desprovida de hidrogénio não teria a capacidade de gerar
vida tal como a conhecemos. Para começar, não haveria água. O valor
Goldilocks – 0,007 – situa-se no ponto absolutamente exacto para que se
torne possível gerar a riqueza de elementos de que necessitamos para uma
Química interessante e capaz de servir de suporte à vida.
Não vou fazer referência ao resto dos seis números de Rees. O essencial a
reter, no caso de cada um deles, é o mesmo. O número verificado situa-se
numa faixa de valores Goldilocks fora da qual a vida não teria sido possível.
Como havemos de reagir a isto? Uma vez mais, temos, por um lado, a
resposta teísta e, por outro, a resposta antrópica. A resposta teísta diz que
Deus, ao fundar o universo, ajustou as constantes fundamentais de modo a
que cada uma delas permanecesse na sua zona Goldilocks com vista a
produzir vida. É como se Deus tivesse seis botões de comando, e fosse
rodando cuidadosamente cada um deles até ficar no seu correcto valor
Goldilocks. Como sempre, a resposta teísta é profundamente insatisfatória,
pois deixa a existência de Deus por explicar. Um Deus capaz de calcular os
valores Goldilocks para os seis números teria de ser pelo menos tão
improvável como a própria afinação da combinação dos seis números, o que
é algo efectivamente muito improvável – e é também, de resto, a premissa
de toda esta reflexão. Daí que a resposta dos teístas se mostre
completamente incapaz de avançar no sentido de resolver o problema em
debate. Não vejo alternativa a não ser pô-la de parte, ao mesmo tempo que
me confesso admirado com o número de pessoas que não conseguem ver o
problema e que parecem dar-se por genuinamente satisfeitas com o
argumento do «divino manipulador de botões».
Talvez que a razão psicológica para esta espantosa cegueira tenha alguma
coisa a ver com o facto de, ao contrário dos biólogos, muitas pessoas não
terem tido a sua consciência despertada pela selecção natural e pelo poder
que esta possui de domar a improbabilidade. A partir da sua perspectiva de
psiquiatra da evolução, J. Anderson Thomson propõe-me uma razão
acrescida: a tendência que todos nós temos para personificar os objectos
inanimados, vendo-os como agentes. Como diz Thomson, inclinamo-nos
mais depressa a confundir uma sombra com um ladrão do que um ladrão
com uma sombra. Um falso positivo pode ser uma perda de tempo. Um
falso negativo pode ser fatal. Numa carta que me dirigiu, Thomson sugeriu
que, no nosso passado ancestral, o maior desafio que se nos colocava no
nosso meio ambiente provinha dos nossos iguais. «O legado disso é a
presunção – e muitas vezes o medo –, por defeito, da intenção humana.
Temos muita dificuldade em prescindir da causação humana.» Isto é algo
que acabámos por naturalmente generalizar à intenção divina. Voltarei a
esta feição sedutora dos «agentes», no capítulo quinto.
Por terem já a consciência alertada para o poder que a selecção natural
tem de explicar o surgimento de coisas improváveis, os biólogos tendem a
manifestar insatisfação com as teorias que pura e simplesmente se furtam ao
problema da improbabilidade. E a reacção teísta ao enigma da
improbabilidade é uma evasiva de proporções colossais. Mais do que uma
reformulação do problema, é a sua ampliação grotesca. Vejamos, então, a
alternativa antrópica. A resposta antrópica, na sua forma mais geral, é que
só será possível discutir a questão num tipo de universo que tenha sido
capaz de nos gerar. A nossa existência determina, portanto, que as
constantes fundamentais da Física tinham de calhar nas suas respectivas
zonas Goldilocks. Físicos diferentes abraçam diversos tipos de soluções
antrópicas para o enigma da nossa existência.
Desde logo – defendem os físicos mais irredutíveis –, os seis botões de
comando nunca gozaram de qualquer margem de variação. Quando
finalmente chegarmos à tão ansiada teoria de tudo, veremos que os seis
números-chave dependem uns dos outros, ou de qualquer outra coisa ainda
desconhecida, em aspectos que nesta altura não conseguimos, sequer,
imaginar. Pode ser que afinal os seis números não variem mais do que o
rácio entre o perímetro e o diâmetro da circunferência. Ver-se-á então que
há apenas uma maneira de um universo ser. Nesse caso, longe de ser preciso
que Deus rode os seis botões de comando, não há sequer botões de comando
para rodar.
Outros físicos (o próprio Martin Rees será um exemplo) consideram
insatisfatória esta visão, e eu próprio concordo com eles. Na verdade, é
perfeitamente plausível que exista apenas uma maneira de o universo ser.
Mas por que razão havia ela ser logo este cenário armado para a nossa
eventual evolução? Por que motivo havia de ser o tipo de universo que, nas
palavras do físico teórico Freeman Dyson, dá quase a sensação de «saber
que para cá vínhamos»? O filósofo John Leslie utiliza a analogia de um
homem condenado à morte por fuzilamento. Existe a possibilidade remota
de os dez homens do pelotão de fuzilamento não acertarem na vítima.
Olhando para trás, o sobrevivente que se ponha a reflectir sobre a sua sorte
poderá dizer com gáudio: «Bem, é óbvio que não me acertaram, de outro
modo eu não estaria aqui a pensar nisso.» Mas também poderá perguntar-se,
e ninguém lhe levará a mal por isso, por que motivo terão falhado todos,
especulando até com a hipótese de haverem sido todos subornados ou
estarem bêbedos.
A esta objecção pode responder-se com a sugestão – que o próprio Martin
Rees apoia – segundo a qual há muitos universos, coexistindo como bolas
de espuma num «multiverso» (ou «mega-verso», como lhe prefere chamar
Leonard Susskind). As leis e as constantes de cada universo, como é o
104

caso do nosso universo observável, são preceitos secundários, ou estatutos.


O multiverso no seu todo tem uma miríade de conjuntos alternativos de
estatutos. O princípio antrópico entra aqui em acção para explicar que temos
de estar num desses universos (presumivelmente uma minoria) cujos
estatutos calhou serem propícios à nossa eventual evolução e posterior
reflexão sobre o problema.
Uma versão curiosa da teoria do multiverso é a que resulta da reflexão
sobre o destino último do nosso universo. Dependendo dos valores de
números como as seis constantes de Martin Rees, o nosso universo pode
estar destinado a expandir-se indefinidamente, pode estabilizar assim que
for atingido um certo ponto de equilíbrio, ou pode ver a fase de expansão
inverter-se e transformar-se em contracção, culminando no gigantesco
colapso chamado big crunch. Alguns modelos do big crunch prevêem que o
universo retome então a expansão, e assim por diante indefinidamente, em
ciclos temporais de, digamos, 20 000 milhões de anos. O modelo standard
do nosso universo diz que o próprio tempo começou no big bang há cerca
de 13 000 milhões de anos, juntamente com o espaço. O modelo do big
crunch, dos universos em série, propõe uma correcção: o nosso tempo e o
nosso espaço começaram efectivamente no nosso big bang, mas este terá
sido apenas o último de uma longa série de big bangs, cada uma delas
desencadeada pelo big crunch que pôs um fim ao universo anterior da série.
Ninguém compreende o que acontece em singularidades como a do big
bang, pelo que é concebível que, de cada uma dessas vezes, as leis e as
constantes sejam repostas em novos valores. Se os ciclos de bang–
expansão–contracção–crunch se têm vindo a suceder desde sempre, como
um acordeão cósmico, então estamos perante uma versão do universo em
série e não em paralelo. Também aqui, o princípio antrópico cumpre a sua
função explicativa. De todos os universos da série, apenas uma minoria tem
os seus «botões de comando» sintonizados para as condições biogénicas. E
é claro que o actual universo tem de pertencer a essa minoria, uma vez que
nele nos encontramos. O facto, no entanto, é que esta versão em série do
multiverso é menos provável hoje do que já foi no passado, porque algumas
provas recentes estão, afinal, a afastar-nos do modelo do big crunch. Ao que
parece, o nosso próprio universo está destinado a expandir-se para sempre.
Outro físico teórico, Lee Smolin, desenvolveu uma aliciante variante
darwiniana da teoria do multiverso, que incorpora elementos em série e
elementos paralelos. A ideia de Smolin, exposta no livro The Life of the
Cosmos, gira em torno da teoria segundo a qual universos filhos nascem de
universos progenitores não por meio de um big crunch pleno, mas com uma
incidência mais local, por meio de buracos negros. Smolin acrescenta uma
forma de hereditariedade: as constantes fundamentais de um dado universo
filho são versões ligeiramente mutantes das constantes do progenitor». A
hereditariedade é o ingrediente essencial da selecção natural de Darwin, e o
resto da teoria de Smolin retoma-a naturalmente a partir daí. Os universos
dotados do necessário para «sobreviverem» e «reproduzirem-se» acabam
por se tornar dominantes no multiverso. «Dotados do necessário» inclui
durar o suficiente para se «reproduzirem». Dado que o acto da reprodução
ocorre por meio de buracos negros, os universos bem-sucedidos têm de ser
dotados do necessário para gerar buracos negros. Esta capacidade implica
várias outras propriedades. A tendência da matéria para se condensar em
nuvens e depois em estrelas, por exemplo, é um pré-requisito para gerar
buracos negros. As estrelas, como vimos, também são precursoras do
desenvolvimento de químicas interessantes e, por conseguinte, de vida. Daí
que Smolin sugira que terá havido uma selecção natural darwiniana de
universos no multiverso, a qual favoreceu directamente a evolução de uma
fecundidade baseada em buracos negros e, indirectamente, a produção de
vida. Nem todos os físicos são entusiastas da ideia de Smolin, embora
conste que o físico Murray Gell-Mann, vencedor do Prémio Nobel, terá
dito: «Smolin? Aquele rapaz das ideias malucas? Pode ser que não esteja
enganado.» Um biólogo malicioso poderá perguntar-se se não haverá mais
105

físicos por aí a precisarem de um despertar de consciência darwiniano.


É tentador pensar (e muitos não resistem a fazê-lo) que postular uma
miríade de universos é um luxo que não nos deveríamos permitir. Porque
então – poderá perguntar-se – se abrimos a porta à extravagância de um
multiverso, porque não, já agora, admitir um Deus? Não se trata, em ambos
os casos, de hipóteses ad hoc perdulárias e igualmente insatisfatórias?
Quem assim pensa não teve a consciência despertada pela selecção natural.
A grande diferença entre a hipótese Deus genuinamente extravagante e a
hipótese multiverso aparentemente extravagante tem a ver com a
improbabilidade estatística. Não obstante a sua extravagância, o multiverso
prima pela simplicidade. Deus, ou qualquer agente inteligente e capaz de
decidir e premeditar, teria de ser altamente improvável no mesmo sentido
estatístico que as entidades que supostamente ele deve explicar. O
multiverso pode parecer extravagante pelo simples número de universos.
Mas se cada um desses universos é simples nas suas leis fundamentais,
ainda não estamos a postular nada de altamente improvável. O inverso se
dirá também de qualquer tipo de inteligência.
Alguns físicos (Russell Stannard e o reverendo John Polkinghorne são os
dois exemplos britânicos a que já aludi) são conhecidos pela sua
religiosidade. Como seria de prever, estes baseiam-se na improbabilidade
que é as constantes físicas se encontrarem, todas elas, sintonizadas nas suas
mais ou menos estreitas zonas Goldilocks, para sugerir que deve existir uma
inteligência cósmica que deliberadamente procedeu a tal sintonia. Já afastei
as propostas desse tipo, considerando que são mais os problemas que
suscitam do que aqueles que resolvem. Mas quais têm sido as tentativas de
reacção por parte dos teístas? Como lidam eles com o argumento de que
qualquer Deus capaz de conceber um universo cuidadosa e
premeditadamente afinado para enfim atingir a nossa evolução tem de ser
uma entidade sumamente complexa e improvável, por sua vez carecedora
de uma explicação ainda maior do que a que supostamente ele deverá
proporcionar?
Como já nos habituámos a esperar, o teólogo Richard Swinburne julga ter
uma resposta para este problema e expõe-na no seu livro Será que Deus
Existe? Swinburne começa por mostrar que no fundo está do lado certo, ao
demonstrar convincentemente por que motivo devíamos preferir sempre a
hipótese mais simples em face dos factos. A ciência explica as coisas
complexas em termos das interacções daquilo que é mais simples, e que são,
em última análise, as interacções das partículas fundamentais. Eu considero
(e atrevo-me a dizer que o leitor também) que é uma ideia magnificamente
simples pensar que todas as coisas são feitas de partículas fundamentais
que, embora extremamente numerosas, provêm de um conjunto pequeno e
finito de tipos de partículas. Se somos cépticos, é porventura porque
pensamos que a ideia é demasiado simples. Mas para Swinburne ela não é
nada simples, antes pelo contrário.
Atendendo a que é elevado o número de partículas seja de que tipo for,
como, por exemplo, dos electrões, Swinburne acha que é demasiada
coincidência tantas possuírem as mesmas propriedades. Um electrão, ainda
vá lá. Mas biliões deles, todos com as mesmas propriedades, eis o que
verdadeiramente lhe atiça a incredulidade. Para ele seria mais simples e
natural se todos os electrões fossem diferentes, além de que não obrigaria a
tantas explicações. Pior ainda, o electrão não deveria poder manter
naturalmente as suas propriedades para além de um instante; cada electrão
deveria mudar a cada momento e de uma forma caprichosa, casual e veloz.
É esse o pensamento de Swinburne quanto ao estado simples e natural das
coisas. Qualquer coisa mais uniforme (o que o leitor ou eu consideraríamos
simples) exigirá uma explicação especial. KÉ só por os electrões, os
pedaços de cobre e todos os outros objectos materiais terem no século XX os
mesmos poderes que tinham no século XIX que as coisas estão como estão.»
Entra Deus. Deus vem salvar a situação, mantendo deliberada e
continuamente as propriedades de todos aqueles milhares de milhões de
electrões e de pedaços de cobre, neutralizando-lhes a tendência inata para
flutuações extremas e erráticas. É por isso que, quem viu um electrão, viu
todos; é por isso que os pedaços de cobre se comportam todos como
pedaços de cobre, e é por isso que cada electrão e cada pedaço de cobre se
mantêm iguais a si próprios de microssegundo em microssegundo e de
século em século. É porque Deus está permanentemente de olho em cada
partícula, corrigindo-lhe os excessos e fustigando-a para a manter alinhada
com as colegas, todas iguais umas às outras.
Mas como pode Swinburne defender que a hipótese de Deus estar ao
mesmo tempo de olho numa infinitude de electrões instáveis é uma hipótese
simples? É precisamente o oposto de simples. Swinburne consegue esse
truque através de um assombroso passe de atrevimento intelectual. Sem
qualquer justificação para tal, afirma simplesmente que Deus é apenas uma
substância única. Que brilhante economia de causas explicativas, quando
comparado com todos aqueles incontáveis milhões de electrões
independentes, que, por acaso, são todos iguaizinhos!

O teísmo defende que todos os objectos que existem são trazidos à


existência e nela mantidos por uma substância apenas, Deus. E defende
que cada uma das propriedades que cada substância possui se deve ao
facto de Deus lhe ter provocado ou permitido a existência. É apanágio
de uma explicação simples postular poucas causas. Por este prisma, não
poderia haver explicação mais simples do que uma que postulasse
apenas uma causa. O teísmo é mais simples do que o politeísmo e, para
sua causa única, postula uma pessoa [com] poder infinito (Deus pode
fazer tudo quanto seja logicamente possível), conhecimento infinito
(Deus sabe tudo quanto seja logicamente possível saber-se) e liberdade
infinita.

Swinburne admite generosamente que Deus não pode cometer feitos que
sejam logicamente impossíveis, e tamanha indulgência só é de agradecer.
Mas uma vez feita essa ressalva, não há limite para os propósitos
explicativos a que o infinito poder de Deus é submetido. A ciência está a ter
uma ligeira dificuldade em explicar X? Não há problema. Não há que ter
mais preocupações com X. O poder infinito de Deus é rapidamente
chamado a explicar X (bem como tudo o resto), e é sempre uma explicação
inexcedivelmente simples porque afinal só existe um Deus. O que podia ser
mais simples do que isso?
Bem, quase tudo, na verdade. Um Deus capaz de vigiar e controlar em
permanência a condição individual de cada partícula do universo não pode
ser simples. A existência desse Deus vai, ela mesma, precisar de uma
explicação colossal. Pior (do ponto de vista da simplicidade), outros
recantos da gigantesca consciência de Deus estarão simultaneamente
preocupados com as acções, as emoções e as preces de cada ser humano – e
de quantos extraterrestres inteligentes possam existir noutros planetas desta
e de mais 100 000 milhões de galáxias. Segundo Swinburne, Deus tem,
inclusivamente, de decidir a cada instante não intervir com milagres para
nos salvar quando temos cancro. Isso é que nunca, pois «se Deus atendesse
a maior parte das preces para salvar um parente a recuperar de um cancro,
então o cancro deixaria de ser um problema para o ser humano resolver.» E
aí, o que havíamos nós de fazer com o nosso tempo?
Nem todos os teólogos vão tão longe como Swinburne. No entanto, a
extraordinária sugestão de que a Hipótese Deus é simples pode ser
encontrada noutros escritos teológicos modernos. Keith Ward era professor
regius de Teologia em Oxford quando, em 1996, publicou Deus, o Acaso e
a Necessidade, obra onde é muito claro em relação a este assunto:

Na realidade, o teísta diria que Deus é uma explicação elegante,


económica e fecunda para a existência do universo. É económica
porque atribui a existência e a natureza de absolutamente tudo quanto
há no universo a um só ser, uma causa última que determina uma razão
para a existência de tudo, incluindo ele próprio. É elegante porque,
partindo de uma ideia-chave – a ideia do ser mais perfeito possível –,
pode explicar-se de modo inteligível toda a natureza de Deus e a
existência do universo.

Tal como Swinburne, Ward não compreende devidamente o que significa


explicar algo, assim como parece não perceber o que significa afirmar que
algo é simples. Não estou seguro de que Ward efectivamente pense que
Deus é simples, ou de que o passo acima mencionado não seja
simplesmente um exercício académico pontual. Em Science and Christian
Belief, Sir John Polkinghorne cita a crítica anteriormente feita por Ward ao
pensamento de São Tomás de Aquino: «O seu erro básico está em pensar
que Deus é logicamente simples – simples não apenas no sentido em que o
seu ser é indivisível, mas no sentido muito mais forte em que aquilo que
vale como verdade em relação a qualquer parte de Deus vale em relação ao
todo. Contudo, é assaz coerente supor que Deus, apesar de indivisível, é
interiormente complexo.» Neste caso, Ward acerta. Na verdade, já em 1912
o biólogo Julian Huxley definia a complexidade em termos de
«heterogeneidade das partes», querendo com isso significar um tipo
específico de indivisibilidade funcional.
106

Noutro local, Ward dá mostras da dificuldade que a mente teológica sente


em compreender donde vem a complexidade da vida. Cita, a propósito,
outro cientista-teólogo, o bioquímico Arthur Peacocke (o terceiro membro
do meu trio de cientistas religiosos britânicos), o qual postula a existência,
na matéria viva, de uma «propensão para uma complexidade acrescida».
Esta, segundo Ward, caracteriza-se por ser «uma ponderação intrínseca da
mudança evolutiva, que é de molde a favorecer a complexidade». Ainda
segundo o mesmo autor, tal tendência «pode corresponder a uma
ponderação do próprio processo de mutação, de maneira a garantir a
ocorrência de mutações mais complexas». Ward é céptico em relação a isto,
e com razão. Nas linhagens em que o impulso evolutivo para a
complexidade se chega a fazer sentir, este não resulta nem de nenhuma
propensão intrínseca para a complexidade acrescida, nem de uma mutação
enviesada. Resulta, sim, da selecção natural: aquele processo que, tanto
quanto sabemos, é o único que, em última análise, é capaz de gerar
complexidade a partir da simplicidade. A teoria da selecção natural é
genuinamente simples, como simples é a sua origem. Por outro lado, aquilo
que ela explica é tão complexo que quase se torna indescritível: mais
complexo do que o que quer que seja que consigamos imaginar, com a
excepção de um Deus capaz de o conceber.

Um interlúdio em Cambridge
Em Cambridge, num recente congresso sobre ciência e religião no qual
propus aquilo a que aqui chamo o argumento do fantástico 747, deparou-se-
me o que, no mínimo, foi uma cortês indisponibilidade para alcançar uma
congregação das mentes em torno da questão da simplicidade de Deus. A
experiência foi reveladora e gostaria de a partilhar aqui.
Em primeiro lugar, devo confessar (esta é provavelmente a palavra certa)
que o congresso foi patrocinado pela Fundação Templeton. O público era
constituído por um reduzido número de jornalistas britânicos e americanos
especializados em ciência, todos eles escolhidos a dedo. Entre os 18
oradores convidados, eu fazia o papel de ateu de serviço. Um dos
jornalistas, John Horgan, contou que cada um deles tinha recebido a bela
quantia de 15 000 dólares para assistir ao congresso, mais todas as despesas
pagas. Isto surpreendeu-me. A minha longa experiência de congressos no
meio académico não incluía casos em que o público (não me refiro aos
oradores) era pago para assistir. Se tivesse sabido, as minhas suspeitas
teriam sido, desde logo, despertadas. Estaria a Templeton a usar o dinheiro
para subornar a gente do jornalismo científico, subvertendo-lhe a
integridade profissional? Mais tarde, John Horgan colocou-se a si próprio a
mesma questão e escreveu um artigo sobre toda essa sua experiência. Aí 107

ele revelou, para tristeza minha, que o anúncio da minha participação na


iniciativa enquanto orador o tinha ajudado, a ele e a outros, a vencer as suas
dúvidas:

O biólogo britânico Richard Dawkins, cuja participação ajudou a


convencer-me, a mim e a outros colegas, da legitimidade do congresso,
foi o único orador a denunciar a incompatibilidade das crenças
religiosas com a ciência, considerando que tal relação é irracional e
nociva. Os outros oradores – três agnósticos, um judeu, um deísta e
doze cristãos (um filósofo muçulmano cancelou a participação à última
hora) – apresentaram uma perspectiva claramente enviesada a favor da
religião e do Cristianismo.

O artigo de Horgan, em si mesmo, cativa pela ambivalência. Apesar das


suas dúvidas, houve aspectos da experiência que claramente apreciou (e eu
também, como se tornará evidente adiante). Escreve o jornalista:

As minhas conversas com os crentes intensificaram o meu apreço pela


razão que leva algumas pessoas inteligentes e cultas a abraçar a
religião. Um jornalista falou da experiência de falar em línguas, outro
relatou a sua relação próxima com Jesus. As minhas convicções não
mudaram, mas as de outros sim. Pelo menos um indivíduo disse que a
sua fé estava a vacilar como resultado da dissecação da religião feita
por Dawkins. E se a Fundação Templeton pode ajudar a dar um passo,
ainda que minúsculo, no sentido da minha visão de um mundo sem
religião, que mal tem?
O artigo de Horgan foi publicado uma segunda vez pelo agente literário
John Brockman no seu website «Edge» (frequentemente descrito como uma
tertúlia científica on-line), onde suscitou várias reacções, incluindo uma do
físico teórico Freeman Dyson. Respondi a Dyson fazendo uma citação do
seu discurso de agradecimento quando ganhou o Prémio Templeton. Quer
ele tivesse gostado, quer não, o certo é que, ao aceitar o Prémio Templeton,
Dyson tinha dado ao mundo um poderoso sinal. Isso seria considerado um
apoio à religião por parte de um dos físicos mais notáveis do mundo.

Dou-me por satisfeito por ser um dos muitos cristãos que não se
interessam grande coisa pela doutrina da Santíssima Trindade nem pela
verdade histórica dos Evangelhos.

Mas não é precisamente isso o que qualquer cientista ateu diria se


quisesse parecer cristão? Fiz mais algumas citações do discurso de
agradecimento de Dyson, intercalando-as com perguntas imaginadas (em
itálico) a um responsável da Fundação Templeton:

Oh, também quer algo um pouco mais profundo? Que tal...


Eu não faço uma clara distinção entre a mente e Deus. Deus é aquilo em
que a mente se torna quando ultrapassa a escala da nossa compreensão.
Já chega o que disse? Já posso voltar à prática da Física? Oh, ainda
não chega? Está bem, então e que tal isto:
Mesmo na arrepiante História do século xx vejo alguns indícios de
progresso na religião. As duas pessoas que simbolizaram os males do
nosso século, Hitler e Estaline, eram ambos ateus assumidos. 108

Já posso ir?

Dyson podia facilmente refutar a insinuação contida nestas citações do


seu discurso de agradecimento pelo Prémio Templeton, se pelo menos
explicasse de forma clara qual a evidência que encontra para acreditar em
Deus que não no mero sentido einsteiniano, com o qual, como expliquei no
capítulo primeiro, podemos todos, à superfície, concordar. Se bem
compreendo o objectivo de Horgan, ele pretende dizer que o dinheiro da
Fundação Templeton corrompe a ciência. Tenho a certeza que de Freeman
Dyson está muito acima de qualquer possibilidade de corrupção, mas o seu
discurso de agradecimento é também infeliz se pretende servir de exemplo a
outros. O Prémio Templeton é duas ordens de grandeza acima dos
incentivos oferecidos aos jornalistas em Cambridge, tendo sido
propositadamente criado para superar o valor do Prémio Nobel. Numa linha
fáustica, o meu amigo filósofo Daniel Dennett brincou uma vez comigo
dizendo-me: «Richard, se alguma vez estiveres com dificuldades de
dinheiro...»
Para o bem e para o mal, estive dois dias em Cambridge para assistir ao
congresso, onde proferi a minha conferência e participei nos debates
suscitados por outras intervenções. Desafiei os teólogos a responderem à
questão segundo a qual um Deus capaz de conceber um universo, ou
qualquer outra coisa, teria de ser complexo e estatisticamente improvável. A
resposta mais forte que ouvi foi que eu estava a impingir de forma brutal
uma epistemologia científica a uma teologia, contra a vontade desta. Os
109

teólogos sempre definiram Deus como sendo simples. Quem era eu, um
cientista, para ordenar aos teólogos que o seu Deus tinha de ser complexo?
Os argumentos científicos como os que eu estava acostumado a desfiar na
minha área eram inadequados, visto que os teólogos sempre haviam
defendido que Deus estava fora da ciência.
Não fiquei com a impressão de que os teólogos que elaboraram esta
defesa evasiva estivessem a ser propositadamente desonestos. Acho que
estavam a ser sinceros. No entanto, não pude deixar de me lembrar do
comentário de Peter Medawar ao livro do padre Teilhard de Chardin, O
Fenómeno Humano, naquela que é porventura a recensão crítica mais
negativa de todos os tempos: KO autor só poderá ser desculpado de
desonestidade se pensarmos que antes de enganar os outros se esforçou
seriamente por se enganar a si próprio .» Os teólogos do meu encontro de
110

Cambridge definiram para si uma zona de segurança epistemológica aonde


o argumento racional não conseguiria chegar porque eles tinham declarado
por decreto que assim devia ser. Quem era eu para dizer que o argumento
racional era o único tipo de argumento admissível? Existem outros saberes
além do científico, e é um desses que deve ser empregue para conhecer
Deus.
Afinal viu-se que o mais importante destes outros saberes era a
experiência pessoal e subjectiva de Deus. Vários dos intervenientes no
congresso de Cambridge declararam que Deus tinha falado com eles, dentro
das suas cabeças, de forma tão vívida e pessoal como numa qualquer
conversa com outro ser humano. Tratei a questão da ilusão e da alucinação
no capítulo terceiro (KO argumento da experiência pessoal»), mas no
congresso de Cambridge acrescentei-lhe dois pontos. Em primeiro lugar,
defendi que, se Deus comunicasse mesmo com seres humanos, esse facto
deixaria, decididamente, de estar fora do âmbito da ciência. Deus chega sem
mais nem menos vindo lá desse seu reino num outro mundo onde tem a
morada natural, irrompe pelo nosso mundo adentro, de forma que as suas
mensagens podem ser interceptadas por cérebros humanos – e esse
fenómeno não tem nada a ver com a ciência? Em segundo lugar, defendi
que um Deus que é capaz de enviar sinais inteligíveis a milhões de pessoas
ao mesmo tempo e de receber mensagens de todas elas simultaneamente,
poderá ser tudo o que se quiser, mas simples é que não. Que largura de
banda! Deus pode não ter um cérebro feito de neurónios ou uma UCP de
silício, mas, se possui os poderes que lhe são atribuídos, deve ter algo
construído de forma muito mais elaborada e não-aleatória do que o maior
cérebro ou o maior computador de que temos conhecimento.
Os meus amigos teólogos voltavam repetidamente à sua ideia de que tinha
de haver uma razão pela qual existe algo em vez de nada. Deve ter havido
uma causa primeira para tudo, e então dê-se-lhe o nome de Deus... Sim,
disse eu, mas deve ter sido algo simples, e por isso, seja lá o que for que lhe
chamemos, Deus não é um nome adequado (a menos que explicitamente lhe
retiremos toda a carga que a palavra «Deus» comporta nas mentes da maior
parte dos crentes). A causa primeira que buscamos deve ter sido o alicerce
simples de um guindaste autoconstruído, que foi depois erguendo o mundo
tal como o conhecemos até à existência complexa que tem no presente.
Pretender que esse grande motor originário seria suficientemente
complicado para se entreter com o desígnio inteligente, já para não falar de
ler os pensamentos de milhões de seres humanos ao mesmo tempo, equivale
a quem dá as cartas, no brídege, se distribuísse a si próprio uma mão
perfeita. Olhe-se em volta para o mundo da vida, para a floresta tropical
amazónica com o seu denso entrelaçamento de lianas, bromélias e
majestosas raízes aéreas, e também para as formigas-soldados, jaguares,
tapires, pecaris, relas e papagaios. Aquilo que vemos é o equivalente
estatístico de uma mão perfeita num jogo de cartas (pense-se em todas as
outras maneiras de permutar as partes, nenhuma resultaria) – só que nós
sabemos como isso aconteceu: por meio do guindaste gradativo que foi a
selecção natural. Não são só os cientistas que se revoltam contra a aceitação
muda de que uma tamanha improbabilidade pudesse ter surgido
espontaneamente; o próprio bom senso fica de pé atrás. Sugerir que a causa
primeira, o grande desconhecido que foi o responsável pela existência de
algo em vez de nada, é um ser capaz de conceber (de «desenhar») o
universo e de falar para um milhão de pessoas ao mesmo tempo, é abdicar
totalmente da responsabilidade de encontrar uma explicação. É uma
lamentável exibição do já referido gancho vindo do céu, uma exibição
comodista e inibidora do pensamento.
De modo nenhum advogo um pensamento estreitamente cienticista. Mas
o mínimo de que qualquer busca honesta da verdade se deve munir ao
propor-se explicar tais monstruosidades de improbabilidade como são uma
floresta tropical, um recife de coral ou um universo, é um guindaste e não
um gancho preso do céu. O guindaste não tem de ser a selecção natural. É
verdade que nunca ninguém pensou em nada melhor. Mas ainda pode haver
outros por descobrir. Pode ser que a «inflação» que os físicos dizem que
preenche uma fracção do primeiro ioctossegundo da existência do universo
revele ser, quando for mais bem compreendida, um guindaste cosmológico
para ficar ao lado do guindaste biológico de Darwin. Ou talvez esse
esquivo-guindaste que os cosmólogos procuram venha a ser uma versão da
própria ideia de Darwin: ou o modelo de Smolin, ou algo de semelhante. Ou
talvez venha a ser o multiverso mais o princípio antrópico abraçado por
Martin Rees e outros. Pode até ser um criador sobre-humano – mas se assim
for seguramente que não será um criador acabado de ganhar existência ou
que sempre tenha existido. Se (o que eu não acredito nem por um momento)
o nosso universo resultou de um desígnio de um criador e se, por maioria de
razões, o criador lê os nossos pensamentos e distribui conselhos
omniscientes, perdão e redenção, esse criador deve ser o produto final de
uma espécie de grande escada rolante ou de um guindaste cumulativo, quiçá
uma versão do darwininsmo noutro universo.
A defesa de último recurso dos meus críticos de Cambridge foi o ataque.
Toda a minha visão do mundo foi ali condenada, acusada de ser do «século
XIX». Este argumento é tão mau que quase o omitia. Mas lamentavelmente
encontro-o com muita frequência. Escusado será dizer que afirmar que um
argumento é do século XIX não é a mesma coisa que explicar o que nele há
de errado. Algumas ideias oitocentistas eram muito boas, e a menos boa de
todas não terá sido a perigosa ideia de Darwin. De qualquer maneira, este
insulto concreto teve o seu quê de cómico, vindo de um indivíduo (um
distinto geólogo de Cambridge, seguramente bem lançado na via fáustica
para um futuro Prémio Templeton) que justificou a sua própria fé cristã
invocando aquilo a que chamou a historicidade do Novo Testamento. Foi
precisamente no século XIX que os teólogos, especialmente na Alemanha,
puseram seriamente em dúvida essa alegada historicidade, servindo-se para
isso de métodos empíricos. Em verdade, isto foi de imediato apontado pelos
teólogos no congresso de Cambridge.
Seja como for, essa invectiva do «século XIX» conheço-a bem, e já vem de
há muito tempo. Está a par do escárnio de que era alvo o «ateu da aldeia». A
par do «contrariamente ao que o senhor parece pensar, Ah, ah, ah, nós já
não acreditamos num velho de longas barbas brancas ah, ah, ah». Os três
gracejos são um código para uma outra coisa, tal como, quando vivi nos
Estados Unidos no final da década de 60, «lei e ordem» era o código que os
políticos usavam para expressar o preconceito contra os negros. Qual,111

então, o significado de «o senhor é tão século XIX», no contexto de uma


discussão sobre religião? É um código para: «Que grosseiro e pouco subtil
que o senhor é! Como pôde ter a insensibilidade e a má-educação de me
fazer, à queima-roupa, um pergunta directa como «acredita em milagres?»
ou «acredita que Jesus nasceu de uma virgem?» Não sabe que numa
sociedade educada não se fazem perguntas dessas? Esse tipo de pergunta
passou de moda no século XIX.» Mas pense-se por que motivo é indelicado,
nos dias que correm, fazer perguntas directas e factuais a pessoas religiosas.
É porque é embaraçoso! Mas a resposta é que é embaraçosa, se for um sim.
A conexão com o século XIX torna-se, agora, clara. Foi nesse século que
pela última vez foi possível uma pessoa instruída não se sentir constrangida
por admitir que acreditava em milagres como o nascimento virginal. Muitos
cristãos cultos de hoje são demasiado leais para, quando pressionados,
negarem o parto virginal e a ressurreição. Mas isso causa-lhes
constrangimento, porque as suas mentes racionais sabem que é um absurdo,
por isso preferem que não lhes perguntem. E daí que, se alguém como eu
insiste em fazer a pergunta, sou acusado de ser «século XIX». Pensando
bem, até tem muita piada.
Saí do congresso animado, revigorado e mais seguro da minha convicção
de que o argumento da improbabilidade – a jogada do fantástico 747 – é um
argumento muito sério contra a existência de Deus, relativamente ao qual
ainda estou ouvir um teólogo dar uma resposta convincente, apesar das
muitas oportunidades e convites nesse sentido. Dan Dennett chama-lhe,
com justeza, «uma refutação irrespondível, tão devastadora hoje como
quando Fílon a usou para censurar Cleantes nos Diálogos de Hume, dois
séculos antes. Um gancho vindo do céu, quando muito, não faria mais do
que adiar a solução do problema, mas Hume não pensou no expediente do
guindaste, por isso acabou por ceder.» É claro que o vital guindaste foi
112

Darwin quem no-lo facultou. Como Hume teria adorado!


*

Neste capítulo ficou contido o argumento central do meu livro, pelo que,
correndo embora o risco de me repetir, vou resumi-lo numa série de seis
pontos numerados.

1. Ao longo dos séculos, o maior desafio que se colocou ao intelecto


humano foi explicar como se dá o surgimento da complexa e
improvável aparência de concepção, de um desígnio criador.

2. A tentação natural é atribuir a aparência de desígnio ao próprio


desígnio. No caso de um artefacto fabricado pelo ser humano,
como, por exemplo, um relógio, o criador/«desenhador» foi
mesmo um construtor inteligente. É tentador aplicar a mesma
lógica a um olho, uma asa, uma aranha ou uma pessoa.

3. A tentação é falsa porque a hipótese do desígnio criador levanta


imediatamente o problema maior que é saber quem criou o
criador. Toda a nossa base de partida foi o problema de ter de
explicar a improbabilidade estatística. É evidente que não será
solução postular algo ainda mais improvável. Precisamos de um
«guindaste» e não de um «gancho vindo do céu», pois só um
guindaste consegue ir avançando, de forma gradual e plausível,
desde a simplicidade até uma complexidade que, de outro modo,
seria inteiramente improvável.

4. O guindaste mais engenhoso e poderoso até agora descoberto é a


evolução darwiniana pela selecção natural. Darwin e os seus
sucessores mostraram como os seres vivos, com a sua
espectacular improbabilidade estatística e o aspecto de haverem
sido criados por desígnio, evoluíram através de etapas lentas e
graduais a partir de começos simples. Actualmente podemos
afirmar com segurança que a ilusão de um desígnio criador nos
seres vivos não passa disso mesmo – uma ilusão.

5. Ainda não temos um guindaste equivalente para a Física.


Teoricamente, uma espécie de teoria do multiverso poderia
desempenhar para a Física a mesma função explicativa que o
darwinismo desempenhou para a Biologia. À primeira vista, este
tipo de explicação é menos satisfatório do que a versão biológica
do darwinismo, uma vez que faz mais apelo à sorte. Mas o
princípio antrópico confere-nos o direito de postular muito mais
sorte do que aquela que a nossa limitada intuição humana acha
bem.

6. Não devemos desistir da esperança de que na Física apareça um


guindaste melhor, algo tão poderoso como é o darwinismo para a
Biologia. Mas mesmo perante a falta de um guindaste
suficientemente satisfatório como é o da Biologia, os guindastes
relativamente fracos que temos de momento, se devidamente
escorados no princípio antrópico, são manifestamente melhores do
que a contraproducente hipótese desse gancho preso do céu que é
o criador inteligente.

Se o argumento deste capítulo for aceite, a premissa factual da religião – a


Hipótese Deus – torna-se insustentável. É quase certo que Deus não existe.
Até agora, esta é a principal conclusão do livro. Seguem-se várias questões.
Mesmo que aceitemos que Deus não existe, será que a religião não tem
ainda muitos aspectos positivos? Não é isso consolador? Não motivará as
pessoas a praticar o bem? Se não fosse a religião, como saberíamos o que é
o bem? Em todo o caso, porquê agir com tanta hostilidade? Se ela é uma
falsidade, por que razão é que todas as culturas têm religião? Verdadeira ou
falsa, a religião é ubíqua, portanto donde vem ela? É sobre esta última
questão que nos debruçamos a seguir.

84 Uma análise da origem, usos e citações desta analogia, vista da perspectiva criacionista, é facultada
por Gert Korthof em http://home.wxs.nl/~gkorthof/kortho46a.htm.

85 Ao desígnio inteligente já alguém chamou, algo indelicadamente, criacionismo num smoking rasca.

86 O latim e o grego clássicos estavam mais bem equipados. O latim homo (em grego, anthropo-)
significa humano, por contraste com vir (andro-), que significa homem, e femina (gyne-), que significa
mulher. Deste modo, a antropologia diz respeito a toda a humanidade, ao passo que a andrologia e a
ginecologia são ramos da medicina que se excluem mútua (e sexual)mente.

87 Adams (2002), p. 99. O meu «Lament for Douglas», escrito no dia após a sua morte, vem reeditado
como epílogo de The Salmon of Doubt e também em A Devil’s Chaplain, que foi o meu elogio fúnebre
na homenagem prestada na igreja de St Martin-in-the-Fields.

88 Entrevista ao Der Spiegel, 26 de Dezembro de 2005.

89 Susskind (2006, 17).

90 Ver também o livro do mesmo autor God, the Failed Hypothesis; How Science Shows That God
Does Not Exist, de 2007.

91 Behe (1996).

92 Existe um exemplo na ficção. No livro Mundos Paralelos, Philip Pullman, autor de livros para
crianças, imagina uma espécie animal, a «mulefa», que coexiste com árvores que produzem vagens
perfeitamente redondas e com um buraco no meio. Essas vagens são adoptadas como rodas pela
mulefa. As rodas, não fazendo parte do corpo, não têm nervos nem vasos sanguíneos para se enrolarem
à volta do «eixo» (uma garra poderosa, feita de chifre ou de osso). Pullman faz notar com perspicácia
um aspecto mais: o sistema apenas funciona porque o planeta está revestido de faixas de basalto
naturais, que servem de «estradas». As rodas não têm qualquer préstimo em terreno irregular.

93 É fascinante verificar que o princípio da energia muscular é ainda utilizado de uma terceira forma
em alguns insectos como moscas, abelhas e besouros, nos quais o músculo impulsionador do voo é
intrinsecamente oscilante, como um motor de movimento alternativo. Enquanto outros insectos, como
os gafanhotos, enviam impulsos nervosos com instruções para cada movimento da asa (como acontece
com as aves), as abelhas enviam uma instrução para ligar (ou desligar) o nervo motor oscilante. As
bactérias têm um mecanismo que não é nem um simples músculo constritor (como o de voo de uma
ave), nem um músculo alternativo (como o impulsionador do voo da abelha), mas sim um verdadeiro
rotor: nesse aspecto, é como um motor eléctrico ou um motor Wankel.
94 http://www.millerandlevine.com/km/evol/design2/article.html.

95 Este relato do julgamento de Dover, incluindo as citações, é de A. Bottaro, M. A. Inlay e N. J.


Matzke em «Immunology in the spotlight at the Dover “intelligent design” trial», Nature Immunology
7, 2006, 433-5.

96 J. Coyne, «God in the details: the biochemical challenge to evolution», Nature 383, 1996, 227-8. O
meu artigo de co-autoria com Coyne, «One side can be wrong», foi publicado no Guardian de 1 de
Setembro de 2005: http://www.guardian.co.uk/life/feature/story/0,13026,1559743,00.html. A citação do
«blogger eloquente» encontra-se em: http://www.religionisbullshit.net/blog/2005_09_01_archive.php.

97 Dawkins (2002).

98 Carter admitiu posteriormente que um nome melhor para o princípio global seria «princípio da
cognoscibilidade» em vez do já consagrado «princípio antrópico»: B. Carter, «The anthropic principle
and its implications for biological evolution», Philosophical Transactions of the Royal Society of
London A, 310, 1983, 347-63. Para uma discussão do princípio antrópico em livro, ver Barrow e Tipler
(1988).

99 Literalmente «caracolinhos de ouro», como a personagem do conto de Grimm. (N. das T.)

100 Se o leitor considera isto surpreendente, é provável que padeça do chauvinismo do hemisfério norte,
descrito na página 147.

101 Comins (1993).

102 Explanei este argumento com mais profundidade em O Relojoeiro Cego (Dawkins 1988).

103 Digo «presumivelmente», em parte, porque não sabemos quão diferentes poderão ser as formas de
vida alienígenas, e em parte porque é possível estarmos a errar se apenas tivermos em consideração as
consequências da alteração de uma constante de cada vez. Será que podem existir outras combinações
de valores dos seis números que se revelem igualmente propícias à vida, por formas que nunca
chegaremos a descobrir se apenas os considerarmos um de cada vez? Contudo, e para simplificar, vou
prosseguir com a presente reflexão, como se tivéssemos realmente um grande problema por explicar na
aparente afinação das constantes fundamentais.

104 Susskind (2006) faz uma magnífica defesa do princípio antrópico no megaverso. Segundo este
autor, a ideia é odiada pela maior parte dos físicos. Eu não consigo compreender porquê. Talvez por a
minha consciência ter sido despertada por Darwin, acho a ideia belíssima.

105 Murray Gell-Mann, citado por John Brockman no website «Edge»,


http://www.edge.org/3rd_culture/bios/smolin.html.

106 Ward (1996: 99); Polkinghorne (1994, 55).

107 John Horgan, «The Templeton Foundation: a skeptic’s take», Chronicle of Higher Education, 7 de
Abril de 2006. Ver também: http://www.edge.org/3rd_culture/horgan06/horgan06_index.html.
108 Esta calúnia é tratada no capítulo sétimo.

109 Esta acusação faz lembrar o NOMA, sobre cujas pretensões grandíloquas me detive no capítulo
dois.

110 P. B. Medawar, recensão de O Fenómeno Humano, reeditada em Medawar (1982, 242).

111 Na Grã-Bretanha, «bairros degradados» adquiriu um significado codificado equivalente, inspirando


a hilariante referência de Auberon Waugh aos «bairros degradados de ambos os sexos».

112 Dennett (2001).


5
As raízes da religião
Para um psicólogo da evolução, a extravagância universal
que são os rituais religiosos, com os seus custos em tempo,
recursos, dor e privação, devia constituir um aviso, tão vivo
quanto o traseiro do mandril, para o facto de a religião poder
ser adaptativa.
Marek Kohn

O imperativo darwiniano
Toda a gente tem a sua teoria de estimação quanto a saber donde vem a
religião e por que razão todas as culturas humanas têm uma. Ela consola e
reconforta. Promove a união dos grupos. Satisfaz a nossa ânsia de perceber
o porquê de existirmos. Deter-me-ei neste tipo de explicações daqui a
instantes, mas quero começar com uma questão prévia, que tem primazia
por razões que veremos: ela tem a ver com a selecção natural.
Sabendo que somos produtos da evolução darwiniana, devíamos
perguntar-nos que pressão ou pressões exercidas pela selecção natural terão
favorecido, na sua origem, o impulso para a religião. A questão torna-se
mais premente dadas as contingências económicas-padrão do modelo de
Darwin. A religião é por demais esbanjadora e extravagante, ao passo que a
selecção darwiniana, por norma, persegue e elimina o desperdício. A
natureza, contabilista sovina, conta todos os tostões, olha para o relógio,
pune a mínima extravagância. Implacável e incessantemente, como Darwin
explicou, «a selecção natural escrutina dia a dia, de hora a hora, por todo o
mundo, todas as variações, mesmo as mais ínfimas; rejeitando aquilo que é
mau, preservando e acrescentando aquilo que é bom; trabalhando em
silêncio e sem cessar, onde e sempre que a oportunidade o permita, para o
aperfeiçoamento de todos os organismos». Se um animal selvagem tem por
hábito uma actividade inútil qualquer, a selecção natural vai favorecer os
seus rivais que, pelo contrário, dedicam esse tempo e energia à
sobrevivência e à reprodução. A natureza não se pode dar ao luxo de
frívolos jeux d’esprit. O utilitarismo implacável leva sempre a melhor,
mesmo que nem sempre assim pareça.
À primeira vista, a cauda do pavão é, por excelência, um jeu d’esprit.
Seguramente que nada faz pela sobrevivência de quem a tem, mas beneficia
os genes que o destacam dos seus rivais menos espectaculares. A cauda é
publicidade, um anúncio para atrair as fêmeas, e que assim assegura um
lugar na economia da natureza. O mesmo acontece com o tempo e o
trabalho que o construtor-de-cetim macho dedica ao seu abrigo: uma
espécie de cauda exterior feita de ervas, galhos, bagas coloridas, flores e,
quando as encontra, contas, tampas de garrafas e quinquilharias. Ou, para ir
buscar um exemplo que não tem a ver com publicidade, existe a
«formicação», esse estranho hábito de certos pássaros, como o gaio, de se
«banharem» em formigueiros ou de aplicarem formigas sobre as próprias
penas. Ninguém tem a certeza de qual será o benefício da formicação -
talvez uma certa forma de higiene, de extrair parasitas das penas; há muitas
outras hipóteses, nenhuma delas solidamente sustentadas por provas. Mas a
incerteza quanto aos pormenores não evita - nem deverá evitar - que os
darwinianos suponham, com grande segurança, que a formicação deve ser
«para» qualquer coisa. Neste caso, o senso comum poderá concordar, mas a
lógica darwiniana tem uma razão especial para pensar que, se os pássaros
não o fizessem, as suas expectativas estatísticas de êxito genético sairiam
prejudicadas, conquanto não saibamos ainda qual o rumo exacto que esse
prejuízo poderia tomar. Tal conclusão resulta destas duas premissas gémeas:
a selecção natural pune o desperdício de tempo e energia; e os pássaros
despendem, comprovadamente, tempo e energia com a formicação. Se há
um manifesto que sintetize numa só frase este princípio «adaptacionista»,
ele foi proferido - em termos algo extremos e exagerados, é certo - pelo
notável geneticista, de Harvard, Richard Lewontin: «Penso que o único
ponto em que todos os evolucionistas concordam é que é praticamente
impossível fazer um melhor trabalho do que aquele que um organismo
desempenha no seu ambiente próprio.» Se a formicação não fosse,
113

positivamente, útil para a sobrevivência e a reprodução, a selecção natural


há muito que teria favorecido os indivíduos que a não praticam. Um
darwiniano poderá sentir-se tentado a dizer o mesmo da religião; daí a
necessidade da presente reflexão.
Para um evolucionista, os rituais religiosos «destacam-se como pavões
numa clareira iluminada pelo Sol» (expressão de Dan Dennett). O
comportamento religioso é, em ponto grande, o equivalente humano à
formicação ou aos ninhos dos pássaros. Ocupa tempo, faz gastar energia e é,
muitas vezes, tão exuberantemente ornado quanto a plumagem de uma ave-
do-paraíso. A religião pode pôr em perigo a vida do indivíduo mais devoto,
assim como a dos demais. Milhares de pessoas foram torturadas por
lealdade à religião, perseguidas por zelotas devido ao que, em muitos casos,
é uma fé alternativa com muito pouco de diferente da deles. A religião
devora os recursos disponíveis, por vezes numa escala maciça. Uma
catedral medieval podia levar séculos de trabalho humano a ser construída
e, no entanto, nunca era usada como residência ou com algum fim que
reconhecidamente fosse útil. Seria uma espécie de cauda de pavão
arquitectónica? Se assim era, a quem se dirigia a publicidade? A música
sacra e a pintura devota monopolizaram em grande parte o talento da época
medieval e do Renascimento. Gente devota morreu pelos seus deuses e por
eles matou; tantos que se autoflagelaram até as costas verterem sangue, que
juraram uma vida de celibato ou de silêncio em clausura, tudo ao serviço da
religião. Para quê tudo isto? Qual o benefício da religião?
Por «benefício», o darwiniano entende normalmente um reforço da
sobrevivência dos genes do indivíduo. O que está a faltar neste argumento é
o facto de o benefício darwiniano não se limitar aos genes do organismo do
indivíduo. Há três possíveis alvos alternativos do benefício. Um deles
resulta da teoria da selecção de grupo, e sobre ele me deterei adiante. O
segundo é consequência da teoria que defendi em The Extended Phenotype:
o indivíduo em observação pode estar a operar sob a influência
manipuladora dos genes de outro indivíduo, talvez um parasita. Dan
Dennett relembra-nos que a vulgar constipação é tão comum a todos os
seres humanos como o é a religião e, no entanto, não vamos propor que a
constipação nos é benéfica. Conhecem-se muitos exemplos de animais
manipulados de forma a comportarem-se de maneira a facilitar a
transmissão de um parasita para o hospedeiro seguinte. Resumi esta ideia no
meu «teorema central do fenótipo alargado»: «O comportamento de um
animal tende a maximizar a sobrevivência dos genes “para” esse
comportamento, quer se dê o caso de os genes se encontrarem no corpo do
animal que apresenta tal comportamento, quer não.»
Em terceiro lugar, o «teorema central» pode substituir «genes» por
«replicadores», um termo mais geral. O facto de a religião ser ubíqua
significa provavelmente que funcionou em benefício de algo, mas pode não
ter sido em benefício nosso ou no dos nossos genes. Pode ter sido apenas
em benefício das ideias religiosas em si, a ponto de se comportarem, muito
à maneira dos genes, como replicadores. Abordarei esta questão mais
adiante, sob o subtítulo «Pisai devagar, pois são os meus memes que
pisais». Entretanto prossigo com interpretações mais tradicionais do
darwinismo, nas quais se subentende que a palavra «benefício» significa
isso mesmo para a sobrevivência e a reprodução do indivíduo.
Os povos recolectores e caçadores do tipo das tribos aborígenes
australianas vivem provavelmente de forma algo parecida com a dos nossos
antepassados remotos. Kim Sterelny, filósofo neozelandês-australiano da
ciência, faz notar um surpreendente contraste nas suas vidas. Por um lado os
aborígenes são óptimos sobreviventes em condições que testam ao máximo
as suas capacidades práticas. Mas, continua Sterelny, por muito inteligente
que a nossa espécie possa ser, somos de uma inteligência perversa. As
mesmas pessoas que são tão sabedoras acerca do mundo natural e de como
nele sobreviverem, atulham simultaneamente as suas mentes com crenças
que são manifestamente falsas e para as quais a palavra «inútil» é bondoso
eufemismo. O próprio Sterelny conhece bem os povos aborígenes da
Papuásia-Nova Guiné. Eles sobrevivem em condições árduas, onde os
alimentos escasseiam, graças ao seu «famoso entendimento preciso do
ambiente biológico que os rodeia. No entanto, aliam esse entendimento a
obsessões profundas e destrutivas respeitantes à impureza menstrual das
mulheres e à feitiçaria. Muitas das culturas locais vivem atormentadas por
medos relacionados com a feitiçaria e a magia, e pela violência de que esses
medos se fazem acompanhar.» Sterelny desafia-nos a explicar «como
podemos ser simultaneamente tão espertos e tão estúpidos». 114

Embora os pormenores variem de região para região, não se conhece


nenhuma cultura no mundo que não tenha a sua versão da religião, com os
seus rituais pródigos em esbanjar tempo, em consumir riqueza e em gerar
hostilidades, mais as suas fantasias ilusórias e contraproducentes. Há
pessoas instruídas que abandonaram a religião, mas todas foram criadas
numa cultura religiosa, que normalmente deixaram para trás através de uma
decisão consciente. A velha piada da Irlanda do Norte que pergunta «sim,
mas és ateu protestante ou ateu católico?» está carregada de uma amarga
verdade. Podemos chamar ao comportamento religioso um «universal
humano», tal como o é o comportamento heterossexual. Ambas as
generalizações permitem excepções no plano individual, mas todas essas
excepções conhecem muito bem a regra de que se afastam. As
características universais de uma espécie exigem uma explicação
darwiniana.
Como é óbvio, não há qualquer dificuldade em explicar a vantagem do
comportamento sexual do ponto de vista darwininiano. Trata-se de fazer
filhos, mesmo nas situações em que a contracepção ou a homossexualidade
parecem contrariá-lo. Mas, e o comportamento religioso? Porque jejuam os
humanos, porque genuflectem, porque se ajoelham, se autoflagelam,
acenam freneticamente a cabeça em frente a um muro, porque fazem
cruzadas, ou se entregam a práticas dispendiosas capazes de lhes
consumirem a vida e, em casos extremos, acabarem com ela?

Vantagens directas da religião


Há poucas provas de que a crença religiosa proteja as pessoas de doenças
relacionadas com o stresse. As provas não são convincentes, mas não seria
surpreendente se fosse verdade, pela mesma razão de que a cura pela fé
poderá resultar, em determinados casos. Gostaria que não fosse necessário
acrescentar que esses efeitos benéficos de modo algum reforçam o
verdadeiro valor das pretensões da religião. Nas palavras de George
Bernard Shaw, «o facto de um crente ser mais feliz do que um céptico não é
mais relevante do que o facto de um homem bêbedo ser mais feliz do que
um sóbrio».
Parte do que um médico pode dar a um paciente é consolo e confiança.
Ora isto é algo que não deve ser posto de parte sem mais nem menos. O
meu médico não pratica literalmente a cura pela fé, através da imposição
das mãos, mas muitas foram as vezes em que me senti instantaneamente
«curado» de pequenos males por uma voz tranquilizadora que vinha de um
rosto ladeado por um estetoscópio. O efeito placebo está bem documentado
e nem sequer é muito misterioso. Está demonstrado que se consegue
melhorar a saúde ministrando comprimidos sem qualquer actividade
farmacológica. É por esta razão que os ensaios de remédios em dupla
ocultação têm de usar placebos como método de controlo. É por isto que os
medicamentos homeopáticos parecem resultar, ainda que estejam tão
diluídos que têm a mesma quantidade de ingredientes activos que o controlo
com placebo - zero moléculas. A propósito, um infeliz efeito lateral da
invasão do território médico pelos advogados é a circunstância de, hoje em
dia, os médicos terem receio de prescrever placebos no normal exercício das
suas funções. Em alternativa, podem ver-se administrativamente obrigados
a identificar o placebo em indicações escritas a que o paciente tem acesso, o
que obviamente contraria o objectivo pretendido. Os homeopatas podem
estar a conseguir um êxito relativo porque, ao contrário dos profissionais
ortodoxos, ainda lhes é permitido administrarem placebos - só que sob outro
nome. Dispõem também de mais tempo para conversar com o paciente ou
simplesmente para lhe dedicar atenção. Além disso, na fase inicial da sua
longa história a homeopatia viu a sua reputação inadvertidamente
fortalecida pelo facto de os seus medicamentos não fazerem absolutamente
nada - ao contrário das práticas médicas ortodoxas, tais como a sangria, que
causavam danos efectivos.
Será a religião um placebo que prolonga a vida ao reduzir o stresse?
Talvez, embora a teoria tenha de se submeter ao severo crivo dos cépticos
que chamam a atenção para as muitas circunstâncias em que a religião
provoca mais stresse do que aquele que liberta. É difícil acreditar, por
exemplo, que a saúde possa melhorar em face do estado semipermanente de
culpa mórbida de que padece um católico apostólico romano portador de
uma normal debilidade humana e uma inteligência inferior ao normal.
Talvez seja injusto destacar os católicos. A comediante americana Cathy
Ladman observa que «todas as religiões são iguais: religião é, basicamente,
culpa, com feriados diferentes». De qualquer modo, penso que a teoria do
placebo é indigna desse fenómeno difusa e maciçamente presente à escala
mundial que é a religião. Não julgo que o motivo por que temos religião
seja porque ela reduzia os níveis de stresse dos nossos antepassados. Como
teoria, não é suficientemente ampla para as necessidades, embora possa ter
representado um papel secundário. A religião é um fenómeno vasto, que
carece de uma teoria vasta para o explicar.
Outras teorias passam completamente ao lado das explicações
darwinianas. Refiro-me a sugestões do tipo «a religião satisfaz a nossa
curiosidade sobre o universo e o nosso lugar nele», ou «a religião é
consoladora». Pode até haver nisto alguma verdade psicológica, como
veremos no capítulo décimo, mas nenhuma é, em si, uma explicação
darwiniana. Como Steven Pinker disse de forma contundente, acerca da
teoria do consolo, em How the Mind Works, esta «apenas faz levantar a
questão de saber porque há-de uma mente evoluir se é para encontrar
conforto em crenças que claramente sabe serem falsas. Uma pessoa
enregelada não encontra conforto se acreditar que está quente; uma pessoa
frente a frente com um leão não fica descansada com a convicção de que
aquilo é um coelho». Mais do que isto, a teoria do consolo precisa de ser
traduzida para termos darwinianos e isso é mais difícil do que se possa
pensar. As explicações psicológicas que dizem que as pessoas acham certas
crenças agradáveis ou desagradáveis são explicações imediatas, não são as
últimas ou de fundo.
Para os darwinianos, é importante esta distinção entre imediato e mediato.
A explicação imediata para a explosão no interior de um cilindro de um
motor de combustão interna remete para a vela de ignição. A explicação
última tem a ver com o objectivo para o qual a explosão foi concebida:
impulsionar um pistão do cilindro e assim fazer rodar a cambota. A causa
imediata da religião pode ser a hiperactividade num determinado nódulo do
cérebro. Não vou deter-me agora na ideia neurológica de um «centro-deus»
no cérebro, porque não me quero aqui prender com questões imediatas. Não
pretendo, com isto, depreciá-las. Para uma discussão sucinta desta questão
recomendo a leitura de How We Believe: The Search for God in an Age of
Science, de Michael Shermer, que inclui a sugestão de Michael Persinger e
outros segundo a qual as experiências religiosas visionárias estão
relacionadas com a epilepsia no lobo temporal.
Mas a minha preocupação neste capítulo é com as explicações
darwinianas últimas. Se os neurocientistas encontrarem um «centro-deus»
no cérebro, os cientistas darwinianos como eu hão-de, mesmo assim, querer
perceber a pressão da selecção natural que favoreceu tal ocorrência. Por que
razão é que os nossos antepassados com uma tendência genética para
desenvolverem um centro-deus sobreviveram de maneira a ter mais netos do
que os rivais que não a tinham? A questão última não é melhor, nem mais
profunda, nem mais científica do que a questão imediata, mas é dela que
aqui falo.
Tampouco os darwinianos se dão por satisfeitos com explicações de
natureza política, do género «a religião é uma ferramenta usada pela classe
dirigente para subjugar as classes inferiores». É verdade que se consolava os
escravos negros da América com promessas de outra vida, o que lhes
embotava o descontentamento com a vida neste mundo e beneficiava,
assim, os seus donos. Se as religiões são deliberadamente criadas por
sacerdotes cínicos ou por governantes, é uma questão interessante à qual os
historiadores deverão prestar atenção. Mas não é, em si, uma questão
darwiniana. O investigador darwiniano quer, contudo, saber por que razão
as pessoas são vulneráveis aos encantos da religião, expondo-se desse modo
à exploração por parte de sacerdotes, políticos e reis.
Um manipulador cínico pode fazer uso do desejo sexual como
instrumento de poder político, mas mesmo aí precisamos da explicação
darwiniana para compreender por que motivo ele funciona. No caso do
desejo sexual a resposta é fácil: os nossos cérebros estão talhados para
gostar de sexo porque o sexo, em estado natural, produz filhos. Um
manipulador político pode usar a tortura para atingir os seus objectivos.
Uma vez mais, o estudioso darwiniano tem de suprir a explicação para o
facto de a tortura ser eficaz e de fazermos quase tudo para evitar a dor
intensa. Poderá, enfim, ser óbvio a ponto de soar a banalidade, mas o
darwiniano precisa de repeti-lo com a maior clareza: a selecção natural
armou a percepção da dor de maneira a ser apercebida como um sinal de
perigo físico mortal, e programou-nos para a evitar. As raras pessoas que
não sentem a dor, ou que a minimizam, normalmente morrem jovens,
vítimas de lesões ou feridas que o resto de nós teria o cuidado de evitar.
Quer ele seja cinicamente explorado, quer se manifeste espontaneamente, o
que explica, em última análise, o apelo dos deuses?

Selecção de grupo
Algumas explicações alegadamente últimas acabam por se revelar - ou
são assumidamente - teorias de «selecção de grupo». A selecção de grupo é
a ideia controversa segundo a qual a selecção darwiniana escolhe de entre
espécies ou outros grupos de indivíduos. Colin Renfrew, arqueólogo de
Cambridge, propõe que o Cristianismo sobreviveu através de uma forma de
selecção de grupo porque promoveu a ideia de lealdade e amor fraterno
intragrupo, o que terá ajudado os grupos mais religiosos a sobreviverem à
custa de grupos menos religiosos. Em Darwin’s Cathedral, o norte-
americano D. S. Wilson, apóstolo da selecção de grupo, desenvolveu de
forma independente e com maior profundidade uma noção semelhante.
Eis um exemplo inventado, para mostrar como poderá soar uma teoria da
religião baseada na selecção de grupo. Uma dada tribo, com um «deus das
batalhas» particularmente beligerante, ganha guerras contra tribos rivais
cujos deuses exortam à paz e à harmonia, ou contra tribos sem deuses. Os
guerreiros possuidores da crença inabalável em que, se morrerem como
mártires, irão directos para o paraíso, lutam com valentia e de bom grado
dão a vida. Assim, as tribos com este tipo de religião têm maior
probabilidade de sobreviver à guerra intertribal, de roubar o gado às tribos
derrotadas e de fazer das mulheres destas suas concubinas. Estas tribos
bem-sucedidas proliferam, dando origem a novas tribos que, por sua vez, se
separam e se multiplicam, levando consigo sempre a adoração do mesmo
deus tribal. Diga-se, a propósito, que a ideia de um grupo gerar outros
grupos, como uma colmeia que vai espalhando enxames, não é implausível.
No seu famoso estudo dos Ianomami, o «Povo Feroz» da selva da América
do Sul, o antropólogo Napoleon Chagnon fez um levantamento deste tipo de
divisão das aldeias.
115

Chagnon não é um apoiante da selecção de grupo, tal como eu não sou.


As objecções são de vulto. Sendo parte comprometida desta controvérsia,
tenho de ter cuidado para não deixar a minha montada desviar-se muito do
trilho principal deste livro. Alguns biólogos estabelecem confusão entre a
verdadeira selecção de grupo, como a que referi no meu exemplo hipotético
do deus das batalhas, e outra coisa qualquer a que chamam selecção de
grupo, mas que, quando observada com maior atenção, mostra afinal ser ou
uma selecção por via do parentesco, ou um altruísmo recíproco (ver capítulo
sexto).
Aqueles de entre nós que depreciam a selecção de grupo reconhecem que
ela pode, em princípio, acontecer. A questão é saber se ela representa uma
força significativa no contexto da evolução. Quando posta lado a lado com a
selecção a níveis inferiores - como quando a selecção de grupo é
apresentada como explicação para o auto-sacrifício individual -, é provável
que esta selecção a nível inferior seja mais forte. Na nossa tribo hipotética,
imagine-se um guerreiro egoísta num exército dominado por aspirantes a
mártir, ansiosos por morrerem pela tribo e receberem uma recompensa dos
céus. Será pouco mais baixa a probabilidade de aquele guerreiro acabar do
lado vitorioso, em resultado de ficar para trás na batalha para salvar a
própria pele. O martírio dos camaradas de armas irá, em média, beneficiá-lo
mais a ele do que a cada um dos outros, porque estarão mortos. Ele tem
maiores probabilidades de vir a reproduzir-se do que os outros, e os seus
genes de recusa do martírio têm maiores probabilidades de se reproduzirem
em direcção à geração seguinte. Deste modo, as tendências para o martírio
irão diminuir nas gerações futuras.
O exemplo é simples e ligeiro, mas ilustra bem aquilo que é um problema
perene da selecção de grupo. As teorias de selecção de grupo baseadas no
auto-sacrifício individual são sempre vulneráveis à subversão a partir de
dentro. A morte e a reprodução dos seres individuais dão-se numa escala
temporal mais rápida e com maior frequência do que a extinção e a cisão
dos grupos. Podem moldar-se os modelos matemáticos de modo a encontrar
condições específicas sob as quais a selecção de grupo poderia ser poderosa
em termos evolutivos. Estas condições específicas têm, normalmente, um
carácter pouco realista, mas, por outro lado, também se poderá argumentar
que as religiões dos agrupamentos tribais humanos promovem condições
específicas não menos irrealistas. Como raciocínio teórico isto parece
interessante, mas não o vou desenvolver aqui a não ser para admitir que é
no decurso da reflexão sobre as tribos humanas que o próprio Darwin,
normalmente um firme defensor da selecção ao nível do organismo
individual, faz a sua maior aproximação à ideia da selecção de grupo:

Quando duas tribos de homens primitivos, vivendo na mesma terra,


entravam em competição, se (mantendo-se constantes os restantes
factores) uma das tribos contava com um número maior de membros
corajosos, solidários e fiéis, sempre prontos a prevenirem-se uns aos
outros do perigo, a ajudarem-se e a defenderem-se mutuamente, esta
tribo seria sem dúvida mais bem-sucedida e sobrepor-se-ia a outra... As
pessoas egoístas e conflituosas não se unem, e sem união nada se
consegue. Uma tribo que possuísse em grau elevado as qualidades
acima mencionadas alastraria vitoriosa sobre as demais; mas com o
passar do tempo, e a julgar pela História passada, ela seria por sua vez
ultrapassada por uma outra tribo ainda mais dotada. 116

Para sossegar os especialistas em Biologia que eventualmente venham a


ler estas linhas, devo acrescentar que a ideia de Darwin não correspondia,
estritamente, à selecção de grupo no verdadeiro sentido de grupos bem-
sucedidos que geram novos grupos cuja frequência pode ser calculada numa
metapopulação de grupos. Pelo contrário, Darwin tinha em mente tribos
compostas por membros altruístas e cooperantes entre si, que se iriam
expandindo e tornando cada vez mais numerosas em termos da quantidade
de indivíduos. O modelo de Darwin está mais próximo do alastramento, na
Grã-Bretanha, do esquilo-cinzento à custa do esquilo vermelho: um
fenómeno de substituição ecológica, e não de selecção de grupo
propriamente dita.

A religião como subproduto de outra coisa


De qualquer modo, quero deixar de lado a selecção de grupo e centrar-me
na minha própria visão do valor de sobrevivência da religião encarado numa
perspectiva darwiniana. Faço parte do número crescente de biólogos que
vêem a religião como um subproduto de outra coisa. De um modo mais
geral, julgo que nós que especulamos acerca do valor de sobrevivência
darwiniano precisamos de «pensar subproduto». Quando perguntamos sobre
o valor de sobrevivência de qualquer coisa, podemos estar a fazer a
pergunta errada. Temos de reescrevê-la de uma forma mais útil. Talvez a
característica em que estamos interessados (a religião, neste caso) não tenha
um valor de sobrevivência próprio, mas seja um subproduto de outra coisa
qualquer que o tem. Acho útil apresentar aqui a ideia do subproduto através
de uma analogia da minha área do comportamento animal.
As traças voam em direcção à chama da vela e isso não parece acontecer
por acaso. Fazem propositadamente desvios no voo para se oferecerem em
sacrifício. Podemos designar isto como «comportamento de auto-imolação»
e perguntar-nos a nós próprios, em face de um nome tão provocatório, como
diabo a selecção natural o pode favorecer. O que quero dizer é que temos de
reformular a pergunta antes de arriscar uma resposta inteligente. Não se
trata de suicídio. O suicídio aparente surge como um efeito secundário
involuntário ou um subproduto de outra coisa. Um subproduto... de quê?
Bem, eis uma possibilidade, que servirá para me fazer entender.
É recente a chegada da luz artificial às nossas noites. Até há bem pouco
tempo, a única iluminação nocturna era dada pela Lua e pelas estrelas. Estão
no infinito óptico, pelo que os raios que delas nos chegam são paralelos.
Isto permite que sejam usadas como bússola. Sabe-se que os insectos usam
objectos celestes tais como o Sol e a Lua para se deslocarem em linha recta
com precisão, e que sabem servir-se da mesma bússola, mas com sinal
contrário, quando voltam para casa após uma surtida. O sistema nervoso do
insecto é perito em estabelecer regras temporárias muito básicas, como a
seguinte: «Seguir numa direcção em que os raios de luz incidam no olho
fazendo um ângulo de 30 graus.» Uma vez que os insectos têm olhos
compostos (formados por omatídios, canais rectilíneos que funcionam como
guias para a luz e irradiam a partir do centro do olho, como os espinhos de
um ouriço-cacheiro), isto pode, na prática, equivaler a algo tão simples
como manter a luz a incidir num desses canais.
Mas para que a bússola de luz funcione é vital que o objecto celeste esteja
no infinito óptico. Se não estiver, os raios não são paralelos, antes divergem
como os de uma roda. Um sistema nervoso que aplique uma regra básica,
como, por exemplo, um ângulo de incidência de 30 graus (ou qualquer
ângulo agudo) a uma vela que esteja próxima, como se fosse a Lua no
infinito óptico, desviará a traça até à chama, numa trajectória em espiral. Se
o leitor se quiser dar ao trabalho de a desenhar, usando um ângulo agudo
que poderá ser de 30 graus, por exemplo, traçará uma elegante espiral
logarítmica de encontro à vela.
Embora seja fatal nestas circunstâncias específicas, a regra empírica da
traça constitui ainda assim, em média, um bom método, porque para uma
traça o avistamento de velas é raro em comparação com o da Lua. Não
reparamos nas centenas de traças que são guiadas em silêncio e de forma
eficaz pela Lua ou por uma estrela brilhante, ou mesmo pelo clarão de uma
cidade distante. Só vemos traças a girar em círculos até embaterem nas
nossas velas, e daí a pergunta errada: por que motivo estão todas estas traças
a cometer suicídio? Em vez disso, devíamos perguntar-nos porque têm elas
sistemas nervosos que se guiam mantendo um ângulo fixo em relação aos
raios de luz, táctica em que só reparamos quando corre mal. Quando a
pergunta é reformulada, o mistério desvanece-se. Nunca foi correcto
chamar-lhe suicídio. É um subproduto falhado de uma bússola normalmente
útil.
Aplique-se agora ao comportamento religioso dos humanos a lição acerca
do subproduto. Vemos numerosos grupos de pessoas - que em muitas
regiões chega aos 100 por cento - a defender crenças que contradizem
rotundamente factos cientificamente demonstráveis, bem como as religiões
rivais seguidas por outros. As pessoas não só nutrem estas crenças com uma
certeza veemente, como também dedicam tempo e recursos a actividades
dispendiosas delas decorrentes. Morrem por elas, por elas matam.
Pasmamos com o facto, tal como pasmamos com o «comportamento de
auto-imolação» das traças. Perplexos, perguntamo-nos porquê. Mas o que
eu pretendo dizer é que podemos estar a fazer a pergunta errada. O
comportamento religioso pode ser um tiro falhado, um subproduto infeliz de
uma propensão psicológica subjacente que, noutras circunstâncias, será útil
- ou já o foi em tempos. Por este prisma, a propensão que acabou por ser
naturalmente seleccionada nos nossos antepassados não era religião per se;
teria uma outra vantagem qualquer, e só circunstancialmente se manifesta
na forma de comportamento religioso. Só iremos compreender o
comportamento religioso depois de lhe darmos um novo nome.
Se a religião é, então, subproduto de outra coisa, o que é essa outra coisa?
Qual é o equivalente ao hábito da traça de navegar tendo por referência
bússolas de luz celeste? Qual é a característica primitiva vantajosa que por
vezes falha o alvo dando origem à religião? Avançarei aqui uma sugestão a
título exemplificativo, mas devo realçar que é apenas um exemplo do tipo
de coisa a que me refiro, e apontarei sugestões paralelas avançadas por
outros. Interessa-me muito mais o princípio geral, ou seja, a necessidade de
colocar correctamente a pergunta e de a reformular se necessário, do que
especificamente esta ou aquela resposta.
A minha hipótese concreta centra-se nas crianças. Mais do que qualquer
outra espécie, nós sobrevivemos através da experiência acumulada pelas
gerações anteriores, e essa experiência precisa de ser transmitida às
crianças, para sua protecção e bem-estar. Teoricamente, as crianças poderão
aprender, através da experiência pessoal, a não se aproximarem de um
penhasco, a não comerem bagas vermelhas desconhecidas, a não nadarem
em águas infestadas de crocodilos. Mas possuirão, pelo menos, uma
vantagem selectiva as crianças cujo cérebro contiver a seguinte regra
prática: acredita, sem hesitações, em tudo o que os adultos te digam.
Obedece aos teus pais; obedece aos chefes da tribo, sobretudo quando falam
num tom grave e ameaçador. Confia nos mais velhos sem contestar. Esta é,
por norma, uma regra valiosa para uma criança. Mas, tal como no caso das
traças, pode dar mau resultado.
Nunca esqueci um sermão terrível que ouvi na capela da minha escola
quando era pequeno. Terrível visto de agora, note-se: na altura, o meu
cérebro de criança aceitou-o dentro do espírito pretendido pelo pregador.
Este contou-nos a história de um pelotão de soldados que treinava ao lado
de uma linha de caminho-de-ferro. Num momento crítico, o sargento
encarregado do treino distraiu-se e não deu a ordem de «alto!» Os soldados,
tão bem ensinados a obedecer a ordens sem as contestar, continuaram a
marchar de encontro a um comboio que se aproximava. É claro que hoje
não acredito na história, e espero bem que naquela altura o pregador
também não. Contudo, acreditei nela quando tinha nove anos porque a ouvi
da boca de um adulto com autoridade sobre mim. E quer o pregador
acreditasse nela ou não, ele queria que nós, crianças, admirássemos e
imitássemos a obediência servil e incondicional dos soldados a uma ordem,
por muito absurda que fosse, vinda de uma figura de autoridade. Quanto a
mim, penso que a admirámos mesmo. Enquanto adulto, acho quase
impossível acreditar que o meu eu de infância se tenha perguntado se teria a
coragem de cumprir o seu dever e marchar a direito para debaixo do
comboio. Mas é como recordo os meus sentimentos, e a recordação vale o
que vale. É óbvio que o sermão me marcou profundamente, razão pela qual
o recordei e o transmiti aqui.
Em abono da verdade, diga-se que não acho que o pregador estivesse a
tentar fazer passar uma mensagem religiosa. A mensagem era,
provavelmente, mais militar do que religiosa, ao jeito do poema de
Tennyson Carga da Brigada Ligeira, que de resto é bem possível que ele
tenha citado:

«Brigada Ligeira, avante!»


E a nenhum se toldou o semblante?
Não, mas bem sabiam que alguém
Os perdera a troco de nada:
E nada de responder;
E nada de querer saber;
Que o soldado é pra morrer.
Para o vale da Morte avançaram,
Seiscentos, à desfilada.

(Um dos primeiros e mais roufenhos registos da voz humana alguma vez
feito é o do próprio Lord Tennyson a ler este poema, e a impressão de um
declamar cavo num túnel longo e escuro vindo das profundezas do passado
soa estranhamente adequado.) Do ponto de vista do alto comando, seria
loucura permitir que cada soldado fizesse o que bem entendesse quanto a
obedecer, ou não, às ordens. As nações cujos soldados de infantaria agem
por sua livre iniciativa em vez de seguirem ordens tendem a perder as
guerras. Do ponto de vista da nação, esta continua a ser uma boa regra
básica, ainda que por vezes conduza a catástrofes pessoais. Os soldados são
treinados para se tornarem o mais parecidos possível com autómatos ou
computadores.
Os computadores fazem o que lhes mandam. Obedecem cegamente a
quaisquer instruções que lhes sejam transmitidas através da linguagem de
programação. É assim que desempenham coisas úteis, como processamento
de texto e folhas de cálculo. Mas também há um subproduto inevitável, e
que é o facto de terem um comportamento igualmente robótico quando se
trata de obedecer a instruções erradas. Não têm forma de saber se uma dada
instrução vai produzir um bom ou um mau resultado. Limitam-se a
obedecer, tal como se espera de um soldado. É a sua obediência
incondicional que torna os computadores úteis, e é precisamente isso
também que os torna inescapavelmente vulneráveis a infecções de vírus e
vermes de software. Um programa concebido com intenção maldosa, que
diga: «Copia-me e envia-me a todos os endereços que encontrares neste
disco rígido», vai limitar-se a ser obedecido e a voltar a sê-lo vezes
sucessivas por todos os outros computadores para onde for enviado, num
crescimento exponencial. É difícil, senão impossível, conceber um
computador que seja obediente de uma forma útil e que ao mesmo tempo
seja imune às infecções.
Se fiz bem o meu trabalho de sapa, a esta altura já o leitor terá
completado o meu raciocínio acerca do cérebro das crianças e da religião. A
selecção natural constrói os cérebros das crianças de maneira a neles incutir
uma tendência para acreditarem naquilo que os pais e os chefes da tribo lhes
dizem. Essa obediência confiante, análoga à orientação da traça pela Lua, é
valiosa para a sobrevivência, mas o reverso da obediência cega é a
credulidade servil. O subproduto inevitável é a vulnerabilidade à infecção
pelos vírus da mente. Por excelentes razões relacionadas com a
sobrevivência darwiniana, os cérebros das crianças precisam de acreditar
nos pais e nos mais velhos em quem os pais lhes dizem que o façam. Uma
consequência automática reside no facto de aquele que confia não ter forma
de distinguir os bons dos maus conselhos. A criança não pode adivinhar que
«não te metas no rio Limpopo, que está infestado de crocodilos» é um bom
conselho e que «tens de sacrificar uma cabra durante a lua cheia, senão a
chuva não vem» é, no mínimo, um desperdício de tempo e de cabras.
Ambos os avisos parecem igualmente dignos de confiança, ambos provêm
de uma fonte respeitável e são proferidos com uma grave seriedade, que
inspira respeito e exige obediência. O mesmo se aplica às proposições
acerca do mundo, do cosmo, dos princípios morais e da natureza humana. E
quando a criança crescer e tiver filhos seus, ela irá muito provavelmente
transmitir-lhes tudo - quer o bom senso, quer o disparate - com toda a
naturalidade, usando o mesmo ar grave e contagiante.
É de esperar, neste modelo, que, nas diferentes regiões geográficas,
diferentes crenças arbitrárias, nenhuma delas de base factual, sejam
transmitidas e respeitadas com convicção idêntica à que é reservada a
demonstrações de sabedoria popular tais como a crença de que o estrume é
bom para as colheitas. É também de esperar que algumas superstições e
outras crenças não factuais evoluam a nível local - por mudança ao longo
das gerações -, seja através de uma deriva aleatória, seja através de algo
análogo à selecção darwiniana, de maneira a eventualmente revelarem um
padrão de divergência significativo relativamente aos antepassados comuns.
Quando geograficamente separadas e se decorrido tempo suficiente, as
línguas vão-se afastando progressivamente do respectivo progenitor comum
(uma questão a que voltarei já adiante). O mesmo parece aplicar-se às
crenças e aos preceitos arbitrários e sem fundamento, transmitidos de
geração em geração - crenças que terão eventualmente beneficiado de um
clima propício em face da útil programabilidade do cérebro da criança.
Os líderes religiosos estão conscientes da vulnerabilidade do cérebro da
criança e da importância de esta ser doutrinada em tenra idade. O alarde
jesuíta «dai-me a criança durante os seus primeiros sete anos e eu dar-vos-ei
o homem» não é menos exacto (ou menos sinistro) por ser uma frase batida.
Já nos nossos dias, James Dobson, fundador do famigerado movimento
Focus on the Family , mostra que também conhece bem o princípio:
117

«Aqueles que controlam o que é ensinado aos mais novos e aquilo que eles
experienciam - o que vêem, ouvem, pensam e crêem - irão determinar o
rumo futuro da nação.» 118

Mas há que ter em atenção que a minha sugestão específica acerca da útil
credulidade da mente da criança é tão-somente um exemplo do tipo de coisa
eventualmente análoga às traças que navegam em função da Lua ou das
estrelas. O etólogo Robert Hinde, em Why Gods Persist, e os antropólogos
Pascal Boyer e Scott Atran - em Religion Explained e In Gods We Trust,
respectivamente - desenvolveram de forma independente a ideia genérica
segundo a qual a religião é um subproduto de disposições psicológicas
normais. Atendendo a que sobretudo os antropólogos tendem a acentuar
tanto a diversidade das religiões mundiais como aquilo que elas têm em
comum, eu acrescentaria que não é um mas são muitos subprodutos. As
conclusões dos antropólogos só nos parecem esquisitas porque não estamos
com elas familiarizados. Todas as crenças religiosas parecem esquisitas aos
olhos daqueles que não foram educados de acordo com os seus preceitos.
Nos Camarões, Boyer investigou o povo Fang, que acredita...

... que as bruxas têm um órgão interno a mais, semelhante a um animal,


que voa durante a noite e destrói as culturas das outras pessoas ou lhes
envenena o sangue. Diz-se também que por vezes estas bruxas se
reúnem para grandes banquetes, nos quais devoram as vítimas e
planeiam futuros ataques. Muitos nos dirão que um amigo de um amigo
viu mesmo bruxas a sobrevoar a aldeia à noite, sentadas numa folha de
bananeira e a atirar dardos mágicos a várias vítimas inadvertidas.

Boyer acrescenta um episódio pessoal:

Estava eu a falar desta e de outras ocorrências exóticas à mesa de jantar


num colégio universitário de Cambridge, quando um dos nossos
convidados, um proeminente teólogo de Cambridge, se virou para mim
e disse: «É isso que torna a Antropologia tão fascinante e ao mesmo
tempo tão difícil. É preciso explicar como as pessoas podem acreditar
em tais disparates.» O que me deixou perplexo. A conversa prosseguiu
antes que eu conseguisse encontrar uma resposta pertinente - sem
argumentos rotos e mal-remendados.

Partindo do princípio de que o teólogo de Cambridge não pertencia a


nenhum grupo cristão marginal, é provável que acreditasse numa
combinação dos seguintes aspectos:

No tempo dos avoengos, um homem nasceu de uma virgem sem a


intervenção de um pai biológico.

Esse mesmo homem sem pai bradou a um amigo, de seu nome


Lázaro, que estava morto há tempo suficiente para já cheirar mal,
e Lázaro ressuscitou de imediato.

O próprio homem sem pai voltou à vida depois de morto e


enterrado há três dias.

Quarenta dias depois, o homem sem pai subiu ao cume de um


monte e o seu corpo desapareceu nos céus.

Se murmurarmos pensamentos na intimidade da nossa cabeça, o


homem sem pai e o próprio «pai» (que é também ele próprio)
ouvirá os nossos pensamentos e poderá agir em conformidade
com eles. Ele consegue escutar os pensamentos de todas as outras
pessoas do mundo ao mesmo tempo.

Se fizermos alguma coisa de mal ou de bem, esse homem sem pai


vê tudo, ainda que mais ninguém o veja. Podemos ser
recompensados ou castigados, conforme o caso, mesmo depois da
nossa morte.

A mãe virgem do homem sem pai não chegou a morrer, porque,


por via da «assunção», acedeu directamente ao céu em corpo.

O pão e o vinho, quando consagrados por sacerdote (que tem de


ter testículos), «transformam-se» no corpo e no sangue do homem
sem pai.

Que conclusões poderia um antropólogo objectivo tirar, ao deparar-se-lhe


este conjunto de crenças durante o trabalho de campo em Cambridge?

Psicologicamente moldados para a religião


A ideia de subprodutos psicológicos deriva naturalmente desse importante
campo em desenvolvimento que é a Psicologia evolutiva. Os psicólogos
119

da evolução sugerem que, tal como o olho é um órgão que evoluiu para ver
e a asa um órgão que evoluiu para voar, também o cérebro é uma colecção
de órgãos (ou «módulos») para lidar com um conjunto de necessidades de
processamento de dados a um nível especializado. Há um módulo para lidar
com a consanguinidade, um para as trocas recíprocas, um para a empatia, e
assim por adiante. A religião pode ser vista como um subproduto de
falhanços pontuais de alguns destes módulos, como, por exemplo, dos
módulos para tecer teorias sobre as outras mentes, para criar alianças e para
discriminar a favor de membros do grupo e contra estranhos. Qualquer uma
destas situações serve como equivalente humano para a navegação celeste
das traças, tão vulnerável a estes falhanços pontuais quanto o que acima
sugeri acerca da credulidade da infância. O psicólogo Paul Bloom, outro
defensor da perspectiva da «religião como subproduto», assinala que as
crianças revelam uma tendência natural para uma teoria dualista da mente.
Para ele, a religião é um subproduto desse dualismo instintivo. Nós
humanos, diz Bloom, e sobretudo as crianças somos dualistas natos.
O dualista reconhece uma distinção fundamental entre matéria e mente. O
monista, pelo contrário, acredita que a mente é uma manifestação da
matéria - algo de material dentro de um cérebro, um computador talvez - e
que não pode existir separado dela. Um dualista acredita que a mente é uma
espécie de espírito incorpóreo que habita o corpo, sendo assim concebível
que possa abandonar o corpo e existir alhures. Os dualistas interpretam de
pronto as doenças mentais como sendo uma «possessão por demónios»,
sendo esses demónios espíritos cuja permanência no corpo é temporária,
pelo que podem ser «expulsos». À mais pequena oportunidade, os dualistas
personificam os objectos físicos inanimados, vendo espíritos e demónios até
nas quedas de água e nas nuvens.
O romance Vice-Versa, de F. Anstey, de 1882, faz sentido aos olhos de
um dualista, mas é pura e simplesmente incompreensível para um monista
convicto como eu. O Sr. Bultitude e o filho descobrem que trocaram
misteriosamente de corpo. O pai, para grande regozijo do filho, é obrigado a
ir à escola no corpo deste, ao passo que o filho, no corpo do pai, quase lhe
leva o negócio à ruína devido às suas decisões imaturas. P. G. Wodehouse
usou um enredo semelhante em Laughing Gas, onde o conde de Havershot
e uma criança que é estrela de cinema são anestesiados ao mesmo tempo
quando sentados lado a lado no dentista e acordam no corpo um do outro.
Uma vez mais, o enredo só faz sentido para um dualista. Tem de haver algo
que corresponda ao conde de Havershot e que não faça parte do seu corpo,
de outro modo como poderia ele acordar no corpo de um actor criança?
Tal como a maioria dos cientistas, eu não sou um dualista, mas apesar
disso sou capaz de apreciar obras como Vice-Versa e Laughing Gas. Paul
Bloom diria que isto acontece porque, não obstante eu ter aprendido a ser
um monista intelectual, sou um ser humano e, por isso, evolui no sentido de
me tornar um dualista instintivo. A ideia de que há um eu empoleirado
algures por detrás dos meus olhos e capaz, pelo menos em ficção, de migrar
para a cabeça de outrem está profundamente entranhada em mim e em todos
os outros seres humanos, por mais que intelectualmente nos pretendamos
monistas. Bloom fundamenta a sua opinião em provas experimentais de que
as crianças apresentam ainda maior probabilidade de serem dualistas do que
os adultos, sobretudo as de muito pouca idade. Isto sugere que há uma
tendência para o dualismo que já está impressa no cérebro e que, segundo
Bloom, proporciona uma predisposição natural para adoptar ideias
religiosas.
Bloom propõe também que estamos, desde a nascença, predispostos a ser
criacionistas. A selecção natural «não faz sentido, no plano intuitivo». As
crianças apresentam uma propensão particular para atribuir uma finalidade a
tudo, como explica a psicóloga Deborah Keleman no seu artigo «Serão as
crianças “teístas intuitivos”?» As nuvens são «para chover». As rochas
120

pontiagudas são «para os animais poderem coçar-se quando têm comichão».


A atribuição de uma finalidade a tudo chama-se teleologia. As crianças são
teleólogos natos, e muitas nunca deixam de o ser.
Dadas as condições adequadas, o dualismo e a teleologia inatos
predispõem-nos à religião, da mesma maneira que a reacção das minhas
traças à bússola luminosa as predispunha ao «suicídio» involuntário. O
nosso dualismo inato prepara-nos para acreditar numa «alma» que habita o
corpo, em vez de dele fazer parte. É fácil imaginar esse espírito incorpóreo
a mudar-se para outro local após a morte do corpo. Podemos também
facilmente imaginar a existência de uma divindade que seja puro espírito,
isto é, que não seja propriamente uma propriedade emergente de uma
matéria complexa, mas algo que exista independentemente da matéria. De
forma ainda mais clara, a teleologia infantil talha-nos para a religião. Se
tudo tem uma finalidade, de quem é essa finalidade? De Deus, claro.
Mas qual será o contraponto à utilidade da bússola luminosa das traças?
Por que razão terá a selecção natural favorecido o dualismo e a teleologia
nos cérebros dos nossos antepassados e da sua descendência? Até agora, a
minha explicação da teoria dos «dualistas inatos» apenas postulou a ideia de
que os humanos já nascem dualistas e teleológicos. Mas qual seria a
vantagem darwiniana? Poder prever o comportamento de entidades no
nosso mundo é importante para a nossa sobrevivência, e é de esperar que a
selecção natural tenha moldado os nossos cérebros de modo a fazê-lo de
forma rápida e eficaz. Poderão o dualismo e a teleologia servir-nos para este
efeito? Talvez entendamos melhor esta hipótese à luz daquilo a que Daniel
Dennett chamou atitude intencional.
Dennett propôs uma útil classificação tripartida das «atitudes» por nós
adoptadas quando tentamos compreender - e, deste modo, prever - o
comportamento de entidades tais como os animais, as máquinas, ou os
nossos semelhantes . São elas a atitude física, a atitude da concepção (ou
121

design), e a atitude intencional. A atitude física teoricamente está sempre


presente, porque em última análise tudo obedece às leis da Física. Mas
resolver as coisas fazendo uso da atitude física pode revelar-se demasiado
lento. Quando nos formos a sentar para calcular todas as interacções das
partes móveis de um dado objecto complicado, a nossa previsão do seu
comportamento vai provavelmente chegar demasiado tarde. Para um
objecto que é efectivamente concebido, como uma máquina de lavar ou uma
flecha, a atitude da concepção revela-se um atalho económico. Podemos
adivinhar como se vai comportar o objecto passando por cima da Física e
recorrendo directamente à concepção. Como afirma Dennett,
Quase toda a gente consegue prever quando é que um despertador vai
tocar, com base numa mera observação de relance do seu exterior. Não
nos importamos em saber se ele é de corda, se funciona a pilhas ou a
luz solar, se o mecanismo é de latão ou se tem pedras preciosas ou chips
de silicone - partimos simplesmente do princípio de que foi concebido
para que o alarme toque quando para isso programado.

Os seres vivos não são concebidos neste sentido de «desenhados», mas a


selecção natural darwiniana concede-lhes uma versão da atitude da
concepção. Encontramos um atalho para compreender o coração se
partirmos do princípio de que ele é «concebido» para bombear sangue. Karl
von Frisch foi levado a investigar a visão a cores das abelhas (em face da
opinião ortodoxa que defendia que eram daltónicas) porque presumiu que as
cores vivas das flores foram «concebidas» para as atrair. Estas aspas
desenhei-as eu para espantar os criacionistas parlapatões, que de outro
modo talvez se pusessem já a reivindicar o grande zoólogo austríaco como
um dos seus. Escusado será dizer que Von Frisch foi perfeitamente capaz de
traduzir a atitude da concepção para termos darwinianos adequados.
A atitude intencional é outro atalho, e vai além da atitude da concepção.
Parte-se do princípio de que uma dada entidade não é simplesmente
concebida com uma finalidade, mas é-o sim para ser, ou para conter, um
agente dotado de intenções que lhe orientem as acções. Quando vemos um
tigre, o melhor é não adiarmos a nossa previsão do seu comportamento
provável. Esqueçamos a Física das suas moléculas, esqueçamos o desenho
dos seus membros, garras e dentes. O felino tenciona comer-nos e apresta-
se a armar os seus membros, garras e dentes de um modo flexível e
engenhoso, para conseguir a sua intenção. A maneira mais rápida de lhe
prever o comportamento será esquecer a Física e a Fisiologia e passar de
imediato à cena da intenção. Repare-se que, tal como a atitude da concepção
funciona tanto com coisas que não foram efectivamente concebidas como
com as que o foram, também a atitude intencional funciona tanto com
coisas que não têm intenções conscientes e deliberadas como com as que
têm.
Parece-me absolutamente plausível que a atitude intencional tenha valor
de sobrevivência enquanto mecanismo cerebral de aceleração da tomada de
decisões em circunstâncias perigosas e em situações sociais decisivas. Já é
menos claro que o dualismo surja necessariamente em concomitância com a
atitude intencional. Não vou aprofundar o tema neste momento, mas penso
que haverá fundamento para afirmar que é provável que na base da atitude
intencional esteja uma qualquer teoria de outras mentes, que não será
incorrecto descrever como dualista - sobretudo em situações sociais
complicadas, e mais especialmente ainda em situações em que intervém
uma intencionalidade de ordem superior.
Dennett fala de uma intencionalidade de terceira ordem (o homem estava
convencido de que a mulher sabia que ele a desejava), de uma
intencionalidade de quarta ordem (a mulher apercebeu-se de que o homem
estava convicto de que ela sabia que ele a desejava) e mesmo de
intencionalidade de quinta ordem (o xamã adivinhou que a mulher se
apercebeu de que o homem estava convencido de que ela sabia que ele a
desejava). As ordens de intencionalidade muito elevadas ficam-se
provavelmente pela ficção, como na sátira do hilariante romance The Tin
Men, de Michael Frayn: «Mirando Nunopoulos, Rick sabia que ele tinha
quase a certeza de que Anna sentia um desprezo veemente pela
incapacidade de Fiddlingchild compreender os sentimentos dela
relativamente a este, e ela sabia também que Nina sabia que ela sabia do
que sabia Nunopoulos ... » Mas o facto de conseguirmos rir com estas
convolutas inferências sobre outras mentes na ficção diz-nos provavelmente
algo de importante acerca da forma como as nossas mentes foram
naturalmente seleccionadas para funcionar no mundo real.
Pelo menos nas suas ordens inferiores, a atitude intencional, como a
atitude da concepção, poupa tempo que pode ser vital para a sobrevivência.
Consequentemente, a selecção natural moldou os cérebros de maneira a
accionarem a atitude intencional como atalho. Estamos biologicamente
programados para imputar intenções a entidades cujo comportamento nos
interesse. Uma vez mais, Paul Bloom refere provas experimentais segundo
as quais as crianças são especialmente propensas a adoptar a atitude
intencional. Quando os bebés vêem um objecto que aparentemente segue
atrás de outro objecto (como, por exemplo, no ecrã de um computador),
partem do princípio de que estão a testemunhar uma perseguição activa por
parte de um agente dotado de intencionalidade e demonstram esse facto
manifestando surpresa quando o suposto agente perseguidor deixa de
perseguir.
A atitude da concepção e a atitude intencional são mecanismos cerebrais
úteis, fundamentais para acelerar a previsão quanto a entidades de real
importância para a sobrevivência, tais como predadores ou potenciais
parceiros. Mas, como sucede com outros mecanismos cerebrais, estas
atitudes podem falhar. As crianças, tal como os povos primitivos, atribuem
intenções às condições meteorológicas, às correntes e marés, aos meteoritos.
Todos nós estamos predispostos a fazer a mesma coisa em relação às
máquinas, sobretudo quando nos deixam mal. Muitos lembrar-se-ão com
saudosa ternura do dia em que o carro de Basil Fawlty se avariou durante a
sua vital missão de salvar da catástrofe a Gourmet Night. A personagem
avisou solenemente o carro, depois contou até três e, por fim, saiu, agarrou
num ramo de árvore e sovou-o até quase o matar. A maioria de nós já
passou por isso, pelo menos por momentos, se não com um carro, talvez
com um computador. Justin Barrett cunhou a sigla DDAH (HADD) para
dispositivo de detecção de agente hiperactivo. É de forma hiperactiva que
detectamos agentes onde não os há, e isto faz-nos suspeitar de maldade ou
de bondade onde, efectivamente, a natureza não é senão indiferente. Dou
momentaneamente por mim a nutrir um ressentimento feroz contra um
inocente objecto inanimado qualquer, como, por exemplo, a corrente da
minha bicicleta. Recentemente correu a notícia pungente de um homem que
tropeçou no atacador do próprio sapato, no Museu Fitzwilliam, em
Cambridge, caindo pelas escadas e desfazendo três vasos da dinastia Qing,
de valor incalculável: «Aterrou no meio dos vasos, que se estilhaçaram em
mil pedaços. Estava ainda sentado, aturdido, quando o pessoal do museu
apareceu. Ficaram todos ali parados em silêncio, como se estivessem em
estado de choque. O homem não parava de apontar para o atacador,
dizendo: “É ele; é ele o culpado.”»
122

Outras explicações para a religião em termos de subproduto foram


propostas por Hinde, Shermer, Boyer, Atran, Bloom, Dennett, Keleman e
outros. Uma possibilidade especialmente sugestiva mencionada por Dennett
refere que a irracionalidade da religião é um subproduto de um mecanismo
de irracionalidade incorporado no cérebro: a nossa tendência -
presumivelmente vantajosa do ponto de vista genético - para nos
apaixonarmos.
Em Why We Love, a antropóloga Helen Fisher exprimiu lindamente a
insanidade do amor romântico e quão excessivo ele é comparado com
aquilo que poderia parecer o estritamente necessário. Veja-se a questão do
seguinte prisma. Do ponto de vista de um homem, por exemplo, é pouco
provável que uma mulher sua conhecida seja cem vezes mais encantadora
do que a sua concorrente mais próxima e, no entanto, é assim que ele
provavelmente a descreve quando está apaixonado (ou «enamorado»).
Perante isto, uma qualquer espécie de «poliamor» será mais racional do que
a devoção fanaticamente monógama a que somos tão susceptíveis.
(Poliamor é a crença de que se pode amar simultaneamente vários membros
do sexo oposto, tal como se gosta mais do que de um vinho, compositor,
livro ou desporto). Aceitamos alegremente o facto de podermos amar mais
do que um filho, progenitor, irmão, professor, amigo ou animal de
estimação. Quando pensamos na questão desta maneira, não soa
positivamente estranha a total exclusividade que esperamos do amor
conjugal? E, no entanto, é isso mesmo que esperamos e é aquilo que nos
propomos alcançar. Tem de haver uma razão.
Helen Fisher e outros demonstraram que o estar apaixonado se faz
acompanhar de invulgares estados cerebrais que incluem a presença de
químicos neuralmente activos (na verdade, drogas naturais) muito
especificamente característicos desse estado. Os psicólogos da evolução
concordam com ela quanto ao facto de o coup de foudre irracional poder ser
um mecanismo que assegura a fidelidade a um co-progenitor, por tempo
suficiente para criarem uma criança juntos. De um ponto de vista
darwiniano, é sem dúvida importante escolher um bom parceiro, e por toda
a ordem de razões. Mas uma vez feita essa escolha - mesmo que seja má - e
concebida uma criança, é mais importante assumir a escolha e arrostar com
todas as adversidades, pelo menos até a criança estar desmamada.
Será a religião irracional um subproduto dos mecanismos de
irracionalidade que, por via da selecção, foram originariamente
incorporados no cérebro com vista ao enamoramento? É verdade que a fé
religiosa tem aspectos em comum com o enamoramento (e ambos têm
muitas das características da euforia induzida por uma droga viciante ). O
123

neuropsiquiatra John Smythies adverte para o facto de haver diferenças


significativas entre as áreas do cérebro activadas pelos dois tipos de mania.
Contudo, observa também algumas semelhanças:
Uma faceta das muitas faces da religião é o amor intenso centrado
numa pessoa sobrenatural, isto é, em Deus, acompanhado da veneração
de ícones dessa pessoa. A vida humana é, em grande parte, impelida
pelos nossos genes egoístas e por processos de reforço. É grande o
reforço de tipo positivo originado pela religião: sentimentos
reconfortantes e calorosos por sermos amados e protegidos num mundo
perigoso, perda do medo da morte, auxílio vindo não se sabe donde em
resposta a preces em tempos difíceis, etc. De igual modo, o amor
romântico por outra pessoa real (geralmente do sexo oposto) apresenta
a mesma concentração intensa no outro e reforços positivos correlatos.
Estes sentimentos podem ser desencadeados por ícones do outro, tais
como cartas, fotografias e mesmo madeixas de cabelo, como na época
vitoriana. O estado de enamoramento faz-se acompanhar de inúmeras
manifestações fisiológicas, como, por exemplo, suspirar longa e
repetidamente .
124

Fiz a comparação entre enamoramento e religião em 1993, escrevendo na


altura que os sintomas de um indivíduo infectado pela religião «podem ser
surpreendentemente reminiscentes daqueles que habitualmente associamos
ao amor sexual. Trata-se de uma força extremamente potente que há no
cérebro, e não admira que alguns vírus tenham evoluído no sentido de a
explorar» («vírus», neste contexto, é uma metáfora para religiões: o meu
artigo intitulava-se «Vírus da mente»). A famosa visão orgástica de Santa
Teresa de Ávila é demasiado conhecida para precisar de ser aqui citada. Um
pouco mais a sério, e num plano de sensualidade menos cru, o filósofo
Anthony Kenny dá um testemunho comovente do grande deleite daqueles
que conseguem acreditar no mistério da transubstanciação. Após descrever
a sua ordenação como padre católico, habilitado a celebrar missa pela
imposição das mãos, Kenny acrescenta como recorda vividamente

a exaltação dos primeiros meses em que detive o poder de rezar a


missa. Normalmente lento e preguiçoso a levantar-me pela manhã,
agora saltava cedo da cama, bem desperto e muito entusiasmado só de
pensar no momentoso acto que tinha o privilégio de desempenhar...
O tocar o corpo de Cristo, a proximidade entre o padre e Jesus, era o
que mais me enlevava. Olhava fixamente para a hóstia depois das
palavras da consagração, de olhar lânguido como um amante que mira
os olhos da sua amada... Esses primeiros tempos de padre permanecem
na minha memória como dias de realização e de fremente felicidade;
algo de precioso e ao mesmo tempo demasiado frágil para durar, como
um caso amoroso cedo interrompido pela realidade de um casamento
incompatível.

O equivalente da reacção das traças à bússola luminosa é o hábito


aparentemente irracional, e no entanto útil, de nos apaixonarmos por um, e
só um, membro do sexo oposto. O subproduto falhado - equivalente a voar
na direcção da chama - é apaixonarmo-nos por Javé (ou pela Virgem Maria,
ou por uma rodela de farinha, ou por Alá) e levar a cabo actos irracionais
motivados por esse amor.
O biólogo Lewis Wolpert adianta, em Six Impossible Things Before
Breakfast, uma sugestão que pode ser vista como uma generalização da
ideia de irracionalidade construtiva. Wolpert sustenta que, para um espírito
inconstante, uma convicção irracionalmente poderosa funciona como
protecção: «Se as crenças capazes de salvar vidas não fossem fortes, isso
teria sido desvantajoso nos primórdios da evolução humana. Teria sido uma
séria desvantagem, por exemplo, ao caçar ou ao fabricar ferramentas, estar
sempre a mudar de ideias.» A implicação do argumento de Wolpert é que,
pelo menos em determinadas circunstâncias, é melhor insistir numa crença
irracional do que hesitar, mesmo que nova evidência ou o raciocínio
aconselhem a mudança. É fácil ver o argumento do «enamoramento» como
um caso especial, e é igualmente fácil ver a «insistência irracional» de
Wolpert como mais uma predisposição psicológica útil, capaz de explicar
aspectos importantes do comportamento religioso irracional: mais um
subproduto, portanto.
No livro Social Evolution, Robert Trivers desenvolveu a sua teoria
evolutiva da auto-ilusão, proposta em 1976. A auto-ilusão é

esconder a verdade do plano consciente, a fim de melhor a ocultar dos


outros. Dentro da nossa espécie reconhecemos que olhos esquivos,
mãos transpiradas e voz rouca podem ser sinal da tensão própria de
quem conscientemente sabe que está a tentar enganar alguém. Ao
tornar-se inconsciente da sua mentira, aquele que engana esconde do
observador estes sinais. Ele ou ela podem mentir sem o nervosismo que
costuma acompanhar o engano.

O antropólogo Lionel Tiger diz algo parecido em Optimism: The Biology


of Hope. A conexão com o tipo de irracionalidade construtiva sobre que
temos vindo a reflectir é visível no parágrafo de Trivers acerca da «defesa
perceptual»:

Os humanos têm uma tendência consciente para ver aquilo que querem
ver e, literalmente, dificuldade em ver coisas que possuam conotações
negativas, ao passo que vêem com muita facilidade as positivas. Por
exemplo, palavras que evoquem ansiedade, seja por causa da história
individual da pessoa, seja devido a manipulação experimental,
necessitam de ser aclaradas antes de poderem ser apercebidas.

Não será preciso explicar a pertinência de que isto se reveste para a


religião, nomeadamente no que tem a ver com tomar os desejos por
realidade.
A teoria geral da religião como subproduto acidental - um tiro falhado de
algo útil - é aquela que me proponho defender. Os pormenores são diversos,
complicados e discutíveis. A título de exemplo continuarei a fazer uso da
minha teoria da «criança crédula», que tomo como representativa das
teorias do «subproduto» em geral. Esta teoria - segundo a qual o cérebro da
criança é, por bons motivos, passível de ser infectada por «vírus» mentais -
parecerá incompleta aos olhos de alguns leitores. A mente pode ser
vulnerável, mas por que razão há-de ser infectada por este vírus e não por
aquele? Serão alguns vírus particularmente proficientes em infectar mentes
vulneráveis? Por que motivo se manifesta a «infecção» sob a forma de
religião e não sob a forma de... bem, de quê? Parte do que quero dizer é que
não importa que tipo concreto de disparate vai infectar o cérebro da criança.
Uma vez infectada, ela vai crescer e infectar a geração seguinte com o
mesmo disparate, qualquer que ele seja.
Uma panorâmica antropológica como a que proporciona Frazer em
Golden Bough dá bem conta da diversidade das crenças irracionais
humanas. Uma vez entrincheiradas numa cultura, perduram, desenvolvem-
se e espalham-se, de uma forma que faz lembrar a evolução biológica. No
entanto, Frazer distingue alguns princípios gerais, como, por exemplo, a
«magia homeopática», de acordo com a qual os feitiços e encantamentos
vão beber algum aspecto simbólico ao objecto do mundo real que
pretendem influenciar. Um exemplo com consequências trágicas é a crença
de que o corno de rinoceronte, uma vez reduzido a pó, possui propriedades
afrodisíacas. Completamente absurda, a lenda tem a sua origem na suposta
semelhança entre o corno e um pénis viril. A circunstância de a «magia
homeopática» estar tão difundida sugere que o disparate que infecta os
cérebros vulneráveis não é um disparate inteiramente aleatório e arbitrário.
É tentador seguir a analogia biológica até nos perguntarmos se não haverá
aqui a funcionar algo correspondente à selecção natural. Serão algumas
ideias mais propagáveis do que outras devido a um eventual apelo ou mérito
intrínseco, ou a uma compatibilidade com disposições psicológicas já
existentes, e poderá isto explicar a natureza e propriedades das religiões
efectivas tais como as vemos, do mesmo modo que usamos a selecção
natural para explicar os organismos vivos? É importante perceber que a
palavra «mérito», neste contexto, significa apenas a capacidade de
sobrevivência e de alastramento. Não quer dizer merecedor de um juízo
positivo - algo de que nos devíamos orgulhar como seres humanos.
Mesmo num modelo da evolução não é forçoso que haja selecção natural.
Os biólogos reconhecem que um gene pode propagar-se numa população
não porque é um gene bom, mas simplesmente porque tem sorte.
Chamamos a isto deriva genética. A sua importância relativamente à
selecção natural tem sido objecto de controvérsia. Mas agora é amplamente
aceite sob a forma da chamada teoria neutra da genética molecular. Se um
gene sofre uma mutação para uma outra versão de si próprio com um efeito
idêntico, a diferença é neutra e a selecção não pode favorecer nem um nem
o outro. Ainda assim, através daquilo a que os estadistas chamam erro de
amostragem ao longo das gerações, a nova forma mutante pode acabar por
substituir a original no fundo genético. Esta é uma verdadeira mudança
genética ao nível molecular (mesmo que não se observe nenhuma mudança
no mundo dos organismos inteiros). É uma mudança evolutiva neutra, que
nada fica a dever à vantagem selectiva.
O equivalente da deriva genética ao nível cultural é uma opção
persuasiva, que não podemos descurar quando pensamos na evolução da
religião. A linguagem evolui de uma forma quase biológica e a direcção que
a sua evolução toma parece não apontar num sentido definido, ao género da
deriva aleatória. A sua transmissão é como que o contraponto, no plano
cultural, daquilo que sucede na genética, mudando lentamente ao longo dos
séculos até que por fim os vários ramos divergem a ponto de se tornarem
mutuamente ininteligíveis. É possível que alguma da evolução da
linguagem seja guiada por uma espécie de selecção natural, mas tal
argumento parece pouco persuasivo. Adiante explicarei que já alguém
propôs uma ideia do género para as grandes tendências da linguagem, tais
como a grande deslocação vocálica ocorrida no inglês entre o século XV e o
século XVIII, mas não precisamos dessa hipótese funcional para explicar a
maior parte daquilo que observamos. Parece provável que a linguagem se
desenvolve, normalmente, através daquilo que será o equivalente cultural da
deriva genética aleatória. Em diferentes zonas da Europa, o latim foi
derivando até dar o espanhol, o português, o italiano, o francês, o reto-
romano e os vários dialectos destas línguas. No mínimo não é óbvio que
estas grandes mudanças evolutivas espelhem vantagens locais ou as
«pressões da selecção».
Presumo que as religiões, tal como as línguas, vão evoluindo com
bastante aleatoriedade, partindo de inícios que são, eles próprios, muito
arbitrários até gerarem a desconcertante - e por vezes perigosa - riqueza de
diversidade que nos é dado observar. Ao mesmo tempo, é possível que uma
forma de selecção natural, aliada à essencial uniformidade que caracteriza a
psicologia humana, faça com que as várias religiões tenham certos traços
significativos em comum. Muitas religiões, por exemplo, ensinam a
doutrina - objectivamente implausível, mas subjectivamente aliciante -
segundo a qual as nossas personalidades sobrevivem à nossa morte física. A
própria ideia de imortalidade sobrevive e alastra porque vai ao encontro dos
que tendem a tomar os desejos por realidade. E esta ilusão tem o seu valor
porque a psicologia humana encerra uma tendência quase universal para
permitir que a crença se deixe colorir pelo desejo («o teu desejo, Harry, foi
pai desse teu pensamento», como Henrique IV, Parte II, disse ao filho ).
125

Parece não haver dúvidas de que muitos dos atributos da religião estão
bem ajustados ao esforço de ajudar à sobrevivência da religião mesma e dos
próprios atributos em causa, nesse caldo que é a cultura humana. A questão
agora é saber se esse ajustamento é alcançado por via do «desígnio
inteligente» ou da selecção natural. Provavelmente a resposta é ambos. Do
lado do desígnio, os líderes religiosos são perfeitamente capazes de
verbalizar os truques que ajudam à sobrevivência da religião. Martinho
Lutero tinha clara consciência de que a razão era a arqui-inimiga da religião
e muitas vezes advertiu para os seus perigos: «A razão é o maior inimigo da
fé; nunca vem em auxílio das coisas espirituais, e as mais das vezes luta
contra o Verbo divino, tratando com desprezo tudo o que emana de Deus.» 126

E noutro passo: «Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos à sua
própria razão.» E noutro ainda: «A razão deve ser destruída em todos os
cristãos.» Lutero não teria qualquer dificuldade em conceber ou desenhar
inteligentemente aspectos ininteligentes de uma religião para ajudá-la a
sobreviver, mas isso não significa necessariamente que ele, ou outra pessoa
qualquer, a tenha concebido. Ela podia igualmente ter evoluído por uma via
(não genética) de selecção natural, sendo Lutero não o seu criador, mas tão-
só um astuto observador da sua eficácia.
Embora a convencional selecção de genes darwiniana possa ter
favorecido certas predisposições psicológicas que dão origem ao subproduto
religião, é pouco provável que tenha dado a forma aos pormenores. Já dei a
entender que, se vamos aplicar uma forma de teoria da selecção a esses
pormenores, não é nos genes que devemos pôr os olhos, mas sim nos seus
equivalentes na esfera cultural. Serão as religiões feitas daquela substância
que constitui os memes?

Pisa ao de leve, são os meus memes que pisas


A verdade, em matéria de religião, não é senão a opinião que
sobreviveu.
Oscar Wilde

Este capítulo começou com a observação de que, por a selecção natural de


Darwin abominar o desperdício, qualquer característica ubíqua de uma
espécie - tal como a religião - alguma vantagem há-de ter proporcionado,
caso contrário não teria sobrevivido. Mas dei a entender que a vantagem
não tem de redundar na sobrevivência ou no êxito reprodutivo do indivíduo.
Como já foi visto, a vantagem do vírus da constipação para os genes chega
para explicar a ubiquidade dessa lamuriosa queixa entre os da nossa
espécie. E nem sequer têm de ser os genes a beneficiar. Qualquer
127

replicador serve. Os genes são apenas os exemplos mais óbvios de


replicadores. Outros candidatos são os vírus de computadores e os memes -
unidades de herança cultural e, além disso, o tópico desta secção. Se
queremos compreender os memes, primeiro temos de olhar com um pouco
mais de atenção para o funcionamento da selecção natural.
Na sua forma mais geral, a selecção natural tem de escolher entre
replicadores alternativos. Um replicador é um pedaço de informação
codificado que faz cópias exactas de si próprio, juntamente com uma ou
outra cópia ou «mutação» inexacta. A ideia central de tudo isto é a ideia
darwiniana. As variedades de replicadores que calham ser boas de copiar
tornam-se mais numerosas à custa dos replicadores alternativos, que são
maus de copiar. É isso, na sua expressão mais rudimentar, a selecção
natural. O replicador arquetípico é um gene, uma porção de ADN que é
duplicada, quase sempre com precisão extrema, por um número
indeterminado de gerações. Para a teoria dos memes, a questão central é
saber se há ou não unidades de imitação cultural que se comportam como
verdadeiros replicadores, como genes. Não quero com isto dizer que os
memes são, efectivamente, idênticos aos genes, mas tão-somente que
quanto mais parecidos forem com os genes, melhor irá funcionar a teoria
dos memes; e a finalidade desta secção é perguntar se a teoria dos memes
se poderá aplicar ao caso especial da religião.
No mundo dos genes, os defeitos ocasionais na replicação (as mutações)
asseguram que o fundo genético contenha variantes alternativas de um
determinado gene - «alelos» -, que por isso se pode dizer que competem
entre si. Competem por quê? Pelo locus, que é o espaço cromossómico
específico pertencente a esse conjunto de alelos. E como competem? Não
através de um combate directo entre moléculas, mas por procuração. Os
intermediários são os seus «traços fenotípicos» - coisas como o
comprimento das pernas ou a cor do pêlo: as manifestações dos genes
consubstanciadas na anatomia, na fisiologia, na bioquímica ou no
comportamento. O destino de um gene está normalmente ligado aos corpos
em que sucessivamente se instala. Na medida em que influencia esses
corpos, assim afecta as suas próprias hipóteses de sobrevivência no fundo
genético. À medida que as gerações se vão sucedendo, a frequência dos
genes vai aumentando ou diminuindo no fundo genético em função dos
intermediários fenotípicos.
Poderá o mesmo acontecer com os memes? Um aspecto em que estes não
são como os genes é que não há nada que nitidamente corresponda aos
cromossomas, nem aos loci, nem aos ale-los nem à recombinação sexual. O
fundo memético é menos estruturado e menos organizado do que o fundo
genético. Ainda assim, não é flagrantemente idiota falar de um fundo
memético, no qual determinados memes possam ter uma «frequência» que
pode mudar em consequência de interacções competitivas com memes
alternativos.
Há quem coloque objecções às explicações meméticas. Fazem-no por
várias razões, que normalmente resultam do facto de os memes não serem
totalmente como os genes. A natureza física exacta de um gene é hoje
conhecida (é uma sequência do ADN) ao passo que a dos memes não o é, e
alguns memeticistas aumentam a confusão por estarem sempre a mudar de
um suporte físico para outro. Existirão os memes só no cérebro? Ou será
que cada cópia em suporte papel ou electrónico de, digamos, um poema de
pé quebrado também tem direito a ser chamado meme? Por outro lado, os
genes replicam-se com um elevado grau de fidelidade, ao passo que os
memes, se é que realmente se replicam, não o farão com pouca exactidão?
Estes pretensos problemas dos memes são empolados. A objecção mais
importante é a ideia de que eles são copiados com uma exactidão
insuficiente para poderem funcionar como replicadores darwinianos. A
dúvida reside no facto de que, se o «índice de mutação» de cada geração for
elevado, o meme irá transformar-se até desaparecer, antes que a selecção
darwiniana possa ter qualquer impacto sobre a sua frequência no fundo
memético. Mas o problema é enganador. Pense-se num mestre carpinteiro,
ou num cortador de sílex pré-histórico, a demonstrar uma determinada
técnica a um jovem aprendiz. Se o aprendiz repetisse fielmente cada
movimento manual do mestre, seria efectivamente de esperar que, ao cabo
de algumas «gerações» de transmissão mestre/aprendiz, o meme se
transmutasse a ponto de passar a ser irreconhecível. Mas é claro que o
aprendiz não reproduz fielmente todos os movimentos da mão. Seria
ridículo se assim fosse. Em vez disso, ele observa qual é o objectivo que o
mestre pretende alcançar e imita-o. Espetar o prego até a cabeça ficar
embutida, martelando-a por isso as vezes que forem necessárias, que podem
não ser as mesmas vezes de que o mestre precisou. São regras como estas
que podem atravessar sem mutação um número indeterminado de
«gerações» sempre a imitar; não importa que os pormenores da execução
variem de indivíduo para indivíduo e de caso para caso. Pontos em malha,
nós em cordas ou redes de pesca, padrões de dobragem do papel no origami,
truques úteis em carpintaria ou em olaria: todos estes aspectos podem ser
reduzidos a elementos discretos que têm efectivamente a oportunidade de
atravessar um número indefinido de gerações, sempre a imitar sem
alterações. Os pormenores podem sofrer pequenos desvios idiossincráticos,
mas a essência prossegue imutável e é isso que é necessário para que a
analogia dos memes e dos genes funcione.
No prefácio que escrevi para The Meme Machine, de Susan Blackmore,
desenvolvi o exemplo de uma técnica de origami para fazer um modelo de
um junco chinês. É uma fórmula bastante complicada que envolve 32
operações de dobragem (ou similares). O resultado final (o verdadeiro junco
chinês) é um objecto agradável, tal como o são pelo menos três estádios
intermédios da «embriologia», nomeadamente o «catamarã», a «caixa com
duas tampas» e a «moldura». Toda a execução me faz lembrar as dobras e
as invaginações por que passam as membranas de um embrião quando se
metamorfoseia do estádio de blástula para gástrula e finalmente para
nêurula. Em criança aprendi a fazer o junco chinês com o meu pai, que,
mais ou menos com a mesma idade, tinha aprendido a técnica no colégio
interno. Naquela altura espalhou-se na escola, iniciada pela directora, a
mania de fazer juncos chineses, que mais parecia uma epidemia de sarampo.
Passados 26 anos, fui a essa mesma escola, já essa directora há muito que lá
não estava. Introduzi novamente a mania e ela voltou a espalhar-se, como
outra epidemia de sarampo, e uma vez mais desapareceu a pouco e pouco.
O facto de uma competência passível de ser ensinada poder espalhar-se
como uma epidemia diz-nos uma coisa importante acerca do elevado grau
de fidelidade da transmissão memética. Podemos ter a certeza de que os
juncos feitos pela geração de alunos do meu pai na década de 1920 não era
em nada diferente daqueles que foram feitos pela minha geração na década
de 1950.
Podemos investigar o fenómeno de forma mais sistemática através da
seguinte experiência, com uma variante do jogo infantil murmúrios chineses
(a que as crianças norte-americanas chamam «telefone»). Pegue-se em 200
pessoas que nunca tenham feito um junco chinês e façam-se alinhar em 20
filas de 10. Juntem-se os chefes das 20 equipas à volta de uma mesa e
ensine-se-lhes, através de demonstração, a fazer um junco chinês. De
seguida, mande-se cada um deles para junto do segundo elemento da
equipa, para, também através de demonstração, ensinar esse elemento a
fazer um junco chinês. Cada pessoa da segunda «geração» tem então de
ensinar a terceira, e assim sucessivamente até chegar ao décimo membro de
cada equipa. Guardem-se todos os juncos entretanto feitos, marcando-os por
equipa e pelo número da «geração», para posterior verificação.
Ainda não fiz a experiência (que, no entanto, gostava de fazer), mas acho
que consigo prever o resultado. A minha previsão é que nem todas as 20
equipas conseguirão transmitir intacta a competência pelos seus 10
elementos, mas um número significativo irá consegui-lo. Haverá erros em
algumas equipas: talvez um elo fraco na cadeia se esqueça de algum passo
essencial do procedimento e, após esse erro, todos irão, obviamente, falhar.
Talvez a equipa quatro consiga chegar ao «catamarã», mas vacile a partir
daí. Talvez o oitavo membro da equipa 13 construa um «mutante», a meio
caminho entre a «caixa com duas tampas» e a «moldura», e o nono e
décimo membros desta equipa copiem depois a versão modificada.
Quanto às equipas em que a competência é transferida com êxito até à
décima geração, faço mais uma previsão. Se se ordenarem os juncos por
«geração», ver-se-á que não há uma deterioração sistemática da qualidade
em função do respectivo número. Se, por outro lado, se fizer uma
experiência em tudo idêntica, com a excepção de que a competência a
transmitir não seja origami mas sim copiar o desenho de um junco, aí sim,
haverá sem dúvida uma deterioração sistemática da precisão com que o
padrão da geração um «sobrevive» até à geração 10.
Na versão da experiência feita com o desenho, todos os desenhos da
geração 10 teriam uma ligeira semelhança com o desenho da geração um. E
dentro de cada equipa, a semelhança deteriorar-se-ia mais ou menos
paulatinamente à medida que se fosse avançando em cada geração. Na
versão da experiência com o oregami, pelo contrário, os erros seriam do
género ou tudo ou nada: seriam mutações «digitais». Ou uma equipa não
cometeria erros e o junco da geração 10 não seria nem melhor nem pior, em
média, do que aquele feito pela geração cinco ou pela geração um; ou
haveria uma «mutação» numa determinada geração e todos os esforços a
partir dela seriam fracassos totais, reproduzindo muitas vezes fielmente essa
mutação.
Qual é a diferença crucial entre as duas competências? É o facto de a
competência para o origami consistir numa série de acções discretas,
nenhuma das quais é, em si, difícil de executar. A maioria das operações são
coisas do tipo «dobre os dois lados para o meio». Um determinado membro
da equipa pode executar esse passo de forma imperfeita, mas será óbvio
para o membro seguinte aquilo que ele está a tentar fazer. Os passos de
origami são «autonormalizadores». É isto que os torna «digitais». É como o
meu mestre carpinteiro, cuja intenção de achatar a cabeça do prego dentro
da madeira é óbvia aos olhos do aprendiz, quaisquer que sejam os
pormenores das marteladas. Ou se dá um passo certo ao cumprir as
instruções do origami, ou não se dá. Em contraste, a capacidade de desenhar
é analógica. A todos é concedida a oportunidade de tentar, mas algumas
pessoas são capazes de copiar um desenho com mais exactidão do que
outras, e ninguém o copia na perfeição. A precisão da cópia depende,
também, da quantidade de tempo e de atenção a ela dedicados, e essas
quantidades são continuamente variáveis. Além disso, alguns membros das
equipas irão embelezar e «melhorar» em vez de se limitarem a copiar o
modelo anterior.
As palavras - pelo menos quando são compreendidas - são
autonormalizadoras da mesma forma que as operações do origami. No jogo
original dos murmúrios chineses (ou telefone), é contada uma história, ou
dita uma frase, à primeira criança, pedindo-se-lhe que a diga à que está a
seguir, e assim sucessivamente. Se a frase tiver menos de cerca de sete
palavras, na língua materna de todas as crianças, há uma forte hipótese de
que sobreviva, sem mutações, ao longo das 10 gerações. Se for uma língua
estrangeira desconhecida, que obrigue as crianças a uma imitação fonética
em vez de repetirem palavra a palavra, a mensagem não sobrevive. O
padrão de degenerescência ao longo das gerações é então o mesmo que no
caso do desenho, e a frase acaba distorcida. Quando a mensagem tem
sentido na língua da criança e não contém palavras desconhecidas, como
seriam «fenótipo» ou «alelo», sobrevive. Em vez de papaguear os sons
foneticamente, cada criança reconhece cada uma das palavras como fazendo
parte de um vocabulário finito e selecciona a mesma palavra, ainda que
talvez pronunciada com um sotaque diferente ao passá-la à criança seguinte.
A linguagem escrita é também autonormalizadora, uma vez que quaisquer
que sejam as diferenças de pormenor, os gatafunhos sobre o papel são todos
extraídos de um alfabeto finito de (digamos) 26 letras.
O facto de os memes poderem por vezes patentear um grau elevado de
fidelidade, devido a processos autonormalizadores deste tipo, é suficiente
para responder a algumas das objecções mais comummente levantadas
contra a analogia memes/genes. De qualquer das formas, a principal
finalidade da teoria dos memes, neste estádio inicial do seu
desenvolvimento, não é fornecer uma teoria abrangente da cultura, ao nível
da genética de Watson-Crick. Na verdade, o meu propósito original, ao
propor os memes, foi contradizer a ideia de que toda a visão darwiniana se
resumia ao gene - uma ideia que, de resto, O Gene Egoísta se arriscava a
fazer passar. Peter Richerson e Robert Boyd realçam essa questão no título
do seu inestimável e ponderado livro Not by Genes Alone, não obstante os
autores darem razões para que não se adopte a palavra «meme», preferindo
a expressão «variantes culturais». A obra de Stephen Shennan Genes,
Memes and Human History foi parcialmente inspirada num excelente livro
anterior de Boyd e Richerson, Culture and the Evolutionary Process. Outros
livros inteiramente dedicados ao tema dos memes são The Electric Meme,
de Robert Aunger, The Selfish Meme, de Kate Distin, e Virus of the Mind:
The New Science of the Meme, de Richard Brodie.
Mas foi Susan Blackmore quem, em The Meme Machine, levou a teoria
dos memes mais longe do que qualquer outro autor. Blackmore visualiza
repetidas vezes um mundo cheio de cérebros (ou outros receptáculos ou
canais, tais como computadores ou bandas de frequência de rádio) e de
memes a acotovelarem-se para os ocupar. Tal como acontece com os genes
no fundo genético, os memes que prevalecerão serão aqueles que se revelem
bons a fazer-se copiar. Isto pode dever-se ao facto de exercerem um apelo
directo, como, provavelmente, sucede com o meme da imortalidade
relativamente a algumas pessoas. Ou então pode dever-se ao facto de
medrarem quando em presença de outros memes que já se tornaram
numerosos no fundo memético. Isto, por sua vez, dá azo a aglomerações ou
complexos meméticos - os «memeplexos». Como é costume com os memes,
compreendemos melhor o que se passa indo à origem genética da analogia.
Por razões didácticas, tratei os genes como se fossem unidades isoladas, a
agir com independência. Mas é claro que não são independentes uns dos
outros e este facto torna-se patente de duas maneiras. Primeiro, os genes são
dispostos de forma linear nos cromossomas, tendendo assim a viajar através
das gerações na companhia de outros genes determinados, que ocupam loci
cromossómicos vizinhos. Nós, médicos, chamamos a este tipo de
vinculação ligação em cadeia, e não me vou deter no tema porque os
memes não têm cromossomas, alelos ou recombinação sexual. O outro
aspecto em que os genes não são independentes é muito diferente da
vinculação genética, e neste caso há uma boa analogia memética. Diz
respeito à embriologia, que - e isto é muitas vezes mal compreendido - é
completamente distinta da genética. Os corpos não são montados como se
fossem mosaicos de peças fenotípicas, cada uma delas oriunda de um gene
diferente. Não é possível mapear correspondências de um para um entre os
genes e unidades da anatomia ou do comportamento. Os genes «colaboram»
com centenas de outros genes na programação dos processos de
desenvolvimento que culminam num corpo, da mesma maneira que as
palavras de uma receita colaboram num processo culinário que culmina
num prato. Não se vai dizer que cada palavra da receita corresponde a um
diferente pedaço da comida.
Portanto os genes cooperam em cartéis para construir corpos e é este um
dos importantes princípios da embriologia. É tentador afirmar que a
selecção natural favorece cartéis de genes, numa espécie de selecção de
grupo entre cartéis alternativos. Mas isso é confuso. O que acontece na
realidade é que os outros genes do fundo genético constituem a maior parte
do meio ou ambiente em que cada gene é seleccionado, em concorrência
com os seus alelos. Uma vez que cada um é seleccionado para ser bem-
sucedido na presença dos demais - que por sua vez estão também a ser
seleccionados de uma forma semelhante -, dá-se a emergência de cartéis
formados por genes que cooperam entre si. Temos aqui algo que se
assemelha mais a um mercado livre do que a uma economia planificada. Há
um açougueiro e um padeiro, mas talvez haja espaço no mercado para um
fabricante de castiçais. A mão invisível da selecção natural preenche o
espaço. É diferente do que ter um planeador central que privilegia a tróica
açougueiro + padeiro + fabricante de castiçais. A ideia de cartéis
cooperantes reunidos pela mão invisível irá mostrar-se central para a nossa
compreensão dos memes religiosos e do seu funcionamento.
Em diferentes tipos de cartel genético emergem diferentes fundos
genéticos. Os fundos de genes dos carnívoros têm genes que programam
órgãos de detecção de presas, garras para as capturar, dentes incisivos,
enzimas para a assimilação de carne, bem como muitos outros genes, todos
sintonizados para cooperarem uns com os outros. Ao mesmo tempo, no
fundo de genes dos herbívoros, privilegiam-se certos conjuntos de genes
compatíveis entre si para que entre si cooperem também. É-nos familiar a
ideia de que um gene é favorecido em função da compatibilidade do seu
fenótipo com o meio exterior da espécie: deserto, floresta, ou qualquer
outro. O que com isto pretendo dizer é que também é favorecido pela sua
compatibilidade com os outros genes do seu fundo genético específico. Um
gene carnívoro não conseguiria sobreviver num fundo de genes herbívoro e
vice-versa. Do ponto de vista do gene, e numa perspectiva mais ampla, o
fundo genético da espécie - o conjunto de genes que são baralhados e se
voltam a baralhar através da reprodução sexual - constitui o ambiente
genético em que cada gene é seleccionado em função da respectiva
capacidade de cooperação. Embora os fundos meméticos sejam menos
rígidos e estruturados do que os fundos genéticos, é possível, ainda assim,
considerar que o fundo memético constitui uma parte importante do
«ambiente» de cada meme presente no memeplexo.
Um memeplexo é um conjunto de memes que, embora não tenham,
individualmente, grandes capacidades de sobrevivência, são bons
sobreviventes na presença de outros membros do memeplexo. Na secção
anterior pus em dúvida que os pormenores da evolução linguística sejam
favorecidos pela selecção natural, seja esta de que tipo for. Pelo contrário,
propus que a evolução linguística é regida por uma deriva aleatória. É
admissível que algumas vogais ou consoantes sobrevivam mais facilmente
do que outras em terrenos acidentados e que possam, por isso, tornar-se
traços característicos, por exemplo, de dialectos suíços, tibetanos e andinos,
enquanto outros sons serão apropriados para murmurar em florestas densas,
sendo, por esse motivo, característicos das línguas dos Pigmeus e da
Amazónia. Mas o exemplo que referi para ilustrar a selecção natural no
plano da linguagem - a teoria de que a grande deslocação vocálica poderá
ter uma explicação funcional - não é deste tipo. Pelo contrário, tem a ver
com a circunstância de os memes se ajustarem a memeplexos compatíveis
entre si. Inicialmente, uma dada vogal terá derivado por razões
desconhecidas - talvez por moda, através da imitação de um indivíduo
poderoso ou admirado, como alegadamente terá sucedido com o ceceio
espanhol. Mas não interessa como começou a grande deslocação vocálica:
segundo esta teoria, uma vez alterada a primeira vogal, outras vogais
tiveram de se modificar por arrastamento de maneira a reduzir a
ambiguidade, e assim sucessivamente através de um efeito de dominó.
Neste segundo estádio do processo, os memes foram seleccionados no
quadro de fundos meméticos já existentes, construindo um novo memeplexo
de memes compatíveis entre si.
Estamos assim, finalmente, em condições de passar à teoria memética da
religião. Algumas ideias religiosas, tal como alguns genes, poderão
sobreviver por mérito próprio. Estes memes sobreviveriam em qualquer
fundo memético, independentemente dos memes que os rodeassem. (Há que
repetir, já que se trata de um aspecto de extrema importância, que a palavra
«mérito», neste sentido, significa apenas «capacidade para sobreviver no
fundo». Não contém nenhum outro juízo de valor que não esse.) Algumas
ideias religiosas sobrevivem porque são compatíveis com outros memes que
já abundam no fundo memético - ou seja, já fazem parte do memeplexo. O
que se segue é uma lista parcial de memes religiosos que é plausível que
possuam valor de sobrevivência no fundo memético, seja devido a um
«mérito» absoluto, seja por compatibilidade com um memeplexo existente:

Vamos sobreviver à nossa própria morte.

Se morrermos como mártires, vamos para uma parte


especialmente bela do paraíso onde desfrutaremos de 72 virgens
(pare-se para pensar nas pobres virgens).

Os hereges, blasfemos e apóstatas devem ser mortos (ou então


castigados, por exemplo, ostracizando-os das suas famílias).

A crença em Deus é uma virtude suprema. Se a nossa crença


vacilar, esforcemo-nos para repô-la e peçamos a Deus que nos
valha na descrença. (No meu debate acerca da aposta de Pascal,
referi como é estranho pressupor que a única coisa que Deus
realmente quer de nós é a crença. Na altura tratei o pressuposto
como uma excentricidade. Agora temos uma explicação para ele.)
A fé (crença sem provas) é uma virtude. Quanto mais as nossas
crenças desafiarem as provas, mais virtuosos seremos. Os crentes
virtuosos que conseguem acreditar em algo verdadeiramente
incompreensível, algo que não tem nem pode ter confirmação e
que é desmentido pelo simples confronto com as provas e com a
razão, recebem as mais altas recompensas.

Todos, mesmo aqueles que não têm crenças religiosas, têm de as


respeitar automática e incontestadamente, com um grau de
respeito superior àquele que é concedido a outros tipos de crença
(como vimos no capítulo primeiro).

Há algumas coisas bizarras (tais como a Santíssima Trindade, a


transubstanciação, a encarnação) que não estamos destinados a
compreender. Nem devemos sequer tentar compreender nenhuma
delas, porque a simples tentativa pode destruí-la. Aprendamos a
sentir-nos realizados chamando-lhe mistério. Tenha-se em mente
as condenações mordazes da razão por Martinho Lutero citadas na
página 234 e pense-se como elas tenderiam a proteger a
sobrevivência dos memes.

A música, a arte e as escrituras, com toda a sua beleza, são, elas


próprias, símbolos auto-replicadores de ideias religiosas.
128

Alguns dos memes da lista possuem provavelmente um valor de


sobrevivência absoluto, e teriam florescido em qualquer memeplexo. Mas,
tal como os genes, alguns memes só sobrevivem desde que adequadamente
enquadrados por outros memes, conduzindo à acumulação de memeplexos
alternativos. Pode olhar-se para duas religiões diferentes como se de dois
memeplexos alternativos se tratasse. Talvez o Islão seja análogo a um
complexo de genes carnívoros e o Budismo a um complexo herbívoro. Em
nenhum sentido se pode dizer que as ideias de uma religião são «melhores»
do que as da outra, do mesmo modo que os genes carnívoros não são
«melhores» do que os herbívoros. Os memes religiosos deste tipo não
possuem necessariamente uma aptidão absoluta para a sobrevivência; ainda
assim, são bons no sentido em que medram na presença de outros memes da
sua própria religião, mas não na presença de memes de outra. Neste modelo,
o Catolicismo e o Islão, por exemplo, não foram necessariamente
concebidos por pessoas individuais, antes evoluíram separadamente como
agregados de memes alternativos que se propagam florescentemente na
presença de outros membros do mesmo memeplexo.
As religiões ordenadas são organizadas por pessoas: por padres e bispos,
rabinos, imãs e aiatolas. Mas, repetindo o que disse a respeito de Martinho
Lutero, tal não quer dizer que elas resultaram da concepção ou do desígnio
de pessoas concretas. Mesmo nos casos em que as religiões foram
exploradas e manipuladas em benefício de indivíduos poderosos, continua a
ser forte a possibilidade de a forma pormenorizada de cada religião haver
sido, em grande parte, modelada por uma evolução inconsciente. Não pela
selecção natural genética, que é demasiado lenta para explicar a rápida
evolução e divergência das religiões. O papel da selecção natural genética
em toda esta história é o de abastecer o cérebro mais as suas predilecções e
preconceitos - a plataforma de hardware e o software de baixo nível que
formam o pano de fundo da selecção memética. Dado este pano de fundo,
parece-me que uma selecção natural memética de um qualquer tipo surge
como uma explicação plausível para a evolução pormenorizada de cada
religião em concreto. Nos estádios iniciais da evolução de uma religião,
antes de esta se tornar organizada, os memes simples sobrevivem devido ao
que têm de universalmente apelativo para a psicologia humana. É aqui que a
teoria memética da religião e a teoria da religião como subproduto
psicológico confluem. Os estádios posteriores, em que uma religião passa a
ser organizada, complicada e arbitrariamente diferente das outras religiões
ficam bastante bem nas mãos da teoria dos memeplexos - cartéis de memes
compatíveis entre si. Isto não exclui o papel suplementar da manipulação
deliberada, exercida por sacerdotes e outras entidades. Provavelmente as
religiões são, pelo menos em parte, fruto de um desígnio inteligente, tal
como as escolas e as modas na arte.
Uma religião que resultou, quase na sua totalidade, de um desígnio
inteligente é a Cientologia, mas penso que se trata de uma excepção. Outra
candidata a religião completamente concebida é o Mormonismo. Joseph
Smith, o empreendedor embusteiro que a inventou, chegou ao ponto de
compor um livro sagrado completamente novo, o Livro de Mórmon,
inventando do nada uma falsa História nova dos Estados Unidos da
América, escrita num falso inglês seiscentista. No entanto, o Mormonismo
evoluiu desde que foi forjado no século XIX, tendo-se nos nossos dias
tornado uma das respeitáveis religiões mainstream dos Estados Unidos - e,
de facto, ela afirma ser a religião actualmente em mais rápido crescimento,
constando, além disso, que irá apresentar um candidato às eleições
presidenciais.
A maior parte das religiões evolui. Seja qual for a teoria da evolução
religiosa que adoptarmos, ela tem de ser capaz de explicar a velocidade
espantosa com que o processo de evolução religiosa, dadas as condições
certas, consegue arrancar. Segue-se um estudo de caso.

Cultos da carga
No filme A Vida de Brian, uma das muitas coisas em que a equipa dos
Monty Python acerta é a da extrema rapidez com que um novo culto
religioso pode ter início. Pode despontar quase de um dia para o outro e
incorporar-se numa dada cultura, onde passa a desempenhar um papel
inquietantemente dominante. Os «cultos da carga» da Melanésia e da Nova
Guiné são, na vida real, o exemplo mais famoso disto. A história de alguns
destes cultos, desde o seu início até ao fim, pertence, toda ela, à memória
viva dos tempos recentes. Ao contrário do culto de Jesus, cujas origens não
estão confirmadas com segurança, podemos assistir a todo o decurso dos
acontecimentos diante dos nossos olhos (e mesmo aqui, como veremos,
alguns pormenores perderam-se entretanto). É fascinante imaginar que o
culto da Cristandade terá quase de certeza começado mais ou menos da
mesma forma, expandindo-se inicialmente também com grande velocidade.
A minha principal autoridade nos cultos da carga é Quest in Paradise, um
livro com que o autor, David Attenborough, amavelmente me presenteou. O
padrão é o mesmo em todos eles, desde os cultos dos inícios do século XIX
até aos mais famosos, desenvolvidos na sequência da Segunda Guerra
Mundial. Parece que em todos os casos os ilhéus foram apanhados
desprevenidos pelos portentosos pertences trazidos para as suas ilhas pelos
imigrantes brancos, entre os quais funcionários da administração, soldados e
missionários. Terão sido talvez vítimas da Terceira Lei de Clarke (Arthur
C.), que citei no capítulo segundo: «Qualquer tecnologia suficientemente
avançada é indistinguível da magia.»
Os ilhéus repararam que os brancos que usufruíam destas maravilhas
nunca as construíam eles próprios. Quando estes objectos precisavam de ser
reparados eram mandados embora e havia sempre outros novos a chegar,
como «carga», em navios ou, mais tarde, aviões. Nunca se via um branco a
fazer ou a reparar nada que fosse, nem sequer faziam nada a que se pudesse
chamar trabalho (sentarem-se atrás de uma secretária a baralhar papéis era,
obviamente, um tipo de devoção religiosa qualquer). Logo, a «carga» tinha
de ter uma origem sobrenatural. Como que para confirmar isto mesmo, os
brancos faziam efectivamente certas coisas que só podiam ser cerimónias
ritualísticas:

Eles constroem mastros altos com fios agarrados; sentam-se a escutar


caixas pequenas que brilham com luz e donde saem sons esquisitos e
vozes abafadas; convencem a gente da terra a vestir-se com roupas
iguais e a marchar com elas de um lado para o outro - e há-de ser
impossível imaginar ocupação mais inútil do que essa. E então o nativo
apercebe-se de que tem à sua frente a resposta para o mistério. Estes
gestos incompreensíveis é que são os rituais usados pelos brancos para
convencer os deuses a mandar-lhes a carga. Se o nativo quer a carga,
então também tem de fazer estas coisas.

É impressionante que cultos da carga semelhantes tenham surgido de


forma independente em ilhas muito afastadas umas das outras, tanto
geográfica como culturalmente. David Attenborough diz-nos que

Os antropólogos observaram dois surtos distintos na Nova Caledónia,


quatro nas ilhas Salomão, quatro nas Fiji, sete nas Novas Hébridas, e
mais de 50 na Nova Guiné, sendo a maior parte deles independentes e
desligados uns dos outros. A maioria destas religiões defende que um
certo messias há-de trazer a carga quando chegar o dia do apocalipse.

O florescimento independente de tantos cultos isolados mas semelhantes


entre si sugere a existência de alguns traços uniformizadores da psicologia
humana em geral.
Ainda hoje existe um culto famoso na ilha de Tanna, nas Novas Hébridas
(conhecidas como Vanuatu desde 1980). Centra-se numa figura messiânica
chamada John Frum. As referências a John Frum nos registos oficiais do
Governo remontam só à década de 1940, mas, mesmo tratando-se de um
mito recente, não se tem a certeza se realmente existiu. Uma lenda
descreve-o como um homem pequeno, de voz aguda e cabelo oxigenado,
que vestia um casaco com botões reluzentes. Fez estranhas profecias e fez
tudo quanto estava ao seu alcance para virar o povo contra os missionários.
Acabou por regressar aos antepassados após ter prometido voltar à terra na
posse de uma carga abundante. A sua visão apocalíptica incluía um «grande
cataclismo; as montanhas seriam arrasadas e os vales iriam encher-se; os
129

velhos recuperariam a juventude e as doenças desapareceriam; os brancos


seriam expulsos da ilha para nunca mais voltarem; e a carga chegaria em
grande quantidade de modo a que todos tivessem tanto quanto quisessem».
Mais preocupante para o Governo foi o facto de John Frum ter também
profetizado que, ao regressar, traria uma nova moeda cunhada com a
imagem de um coco. Portanto, o povo teria de se desfazer de todo o
dinheiro dos brancos. Isto levou, em 1941, a um surto de gastos; o povo
deixou de trabalhar e a economia da ilha foi gravemente afectada. Os
administradores da colónia prenderam os mentores do levantamento, mas
nada do que fizessem parecia pôr fim ao culto, até que as escolas e igrejas
dos missionários ficaram abandonadas.
Passado algum tempo, apareceu uma nova doutrina segundo a qual John
Frum era o rei da América. Como que a mando da providência, as tropas
americanas chegaram às Novas Hébridas por essa altura e, maravilha das
maravilhas, nelas havia negros que não eram pobres como os ilhéus, mas
sim

tão abonados de boa carga quanto os soldados brancos. Tanna foi


dominada por uma agitação desenfreada. O dia do apocalipse estava
iminente. Parecia que todos se estavam a preparar para a chegada de
John Frum. Um dos líderes disse que John Frum chegaria da América
de avião, e centenas de homens começaram a desbravar mato no centro
da ilha para que o avião pudesse ter uma pista onde aterrar.

A pista de aterragem tinha uma torre de controlo feita de bambu com


«controladores de tráfego aéreo» ostentando auscultadores de imitação
feitos de madeira. Havia também aviões de imitação na «pista de
descolagem» para servirem de chamariz, feitos de propósito para atrair o
avião de John Frum.
Na década de 1950, o jovem David Attenborough zarpou para Tanna com
um operador de câmara, Geoffrey Mulligan, para investigar o culto de John
Frum. Encontraram muitas provas da religião e acabaram por ser
apresentados ao sumo sacerdote, um homem de nome Nambas, que se
referia em tom familiar ao seu messias chamando-lhe John e afirmou
conversar regularmente com ele via «rádio». Este («rádio pertencer John»)
consistia numa mulher já velha com um fio de electricidade amarrado à
volta da cintura, que entrava em transe e pronunciava sons sem nexo que
Nambas interpretava como sendo palavras de John Frum. Ele disse ter
sabido antecipadamente que Attenborough o vinha ver, porque John Frum
lho tinha dito pelo «rádio». Attenborough pediu-lhe para ver o «rádio», mas
o pedido foi-lhe (compreensivelmente) recusado. Mudou de assunto e
perguntou se Nambas tinha visto John Frum:

Nambas abanou a cabeça vigorosamente.


– Mim ver ele muita vez.
– Como é ele?
Nambas apontou o dedo para mim.
– Ele parecer com tu. Ter cara branca. Ser alto. Viver na América do
Sul.

Este pormenor contradiz a lenda acima referida, segundo a qual John


Frum era baixo. Assim são as lendas em fase de desenvolvimento.
Acredita-se que o regresso de John Frum será no dia 15 de Fevereiro, mas
desconhece-se o ano. Todos os anos, a 15 de Fevereiro, os seus seguidores
reúnem-se para um cerimónia religiosa de boas-vindas. Até agora nunca
voltou, mas não se deixam desanimar. David Attenborough disse a Sam, um
devoto do culto:

– Mas Sam, já passaram 19 anos desde que o John disse que a carga
viria. Ele fartou-se de prometer, mas a carga nunca mais vem. Tantos
anos à espera não é muito tempo?
Sam tirou os olhos do chão e olhou para mim.
– Se vós pode esperar 2000 anos para Jesus Cristo vir e ele não vir,
então eu posso esperar mais de 19 anos pelo John.

O livro de Robert Buckman Can We Be Good without God? cita a mesma


admirável réplica da boca de um discípulo de John Frum, desta feita a um
jornalista canadiano cerca de 40 anos após o encontro com David
Attenborough.
A rainha e o príncipe Filipe visitaram a região em 1974, e, na sequência
do acto, o príncipe foi deificado, naquilo que constituiu uma repetição de
um culto do género do de John Frum (uma vez mais, note-se a velocidade
com que os pormenores da evolução religiosa se podem alterar). O príncipe
é um homem bem-parecido, por certo uma figura de ar imponente, no seu
uniforme branco da Marinha e capacete emplumado, e talvez não
surpreenda que tenha sido ele, mais do que a rainha, a ser exaltado desta
forma, independentemente do facto de, para a cultura dos ilhéus, ser difícil
aceitar uma divindade feminina.
Não quero valorizar em excesso os cultos da carga existentes no Pacífico
Sul. Mas eles fornecem-nos de facto um fascinante modelo contemporâneo
da forma como as religiões despontam quase do nada. Eles sugerem-nos,
mais concretamente, quatro lições acerca da origem das religiões em geral,
e vou aqui expô-las resumidamente. A primeira é a espantosa rapidez com
que um culto pode despontar. A segunda é a rapidez com que o processo de
criação esconde o próprio rasto. A ser verdadeira a existência de John Frum,
deveria dela haver registo na memória dos vivos. E no entanto, mesmo num
caso tão recente como é este, não é certo que ele tenha chegado a existir. A
terceira lição resulta do aparecimento independente de cultos semelhantes
em ilhas diferentes. O estudo sistemático destas semelhanças pode dizer-nos
alguma coisa acerca da psicologia humana e da sua susceptibilidade à
religião. Em quarto lugar, os cultos da carga assemelham-se não apenas
entre si, mas também a religiões mais antigas. O Cristianismo e outras
religiões antigas que se expandiram por todo o mundo começaram
provavelmente como cultos locais à maneira do de John Frum. De facto,
estudiosos como Geza Vermes, professor de Estudos Judaicos na
Universidade de Oxford, sugeriram que Jesus terá sido uma das muitas
figuras carismáticas que surgiram na Palestina no seu tempo, rodeadas de
lendas similares. A maior parte desses cultos foi desaparecendo. Aquele que
sobreviveu, sob este ponto de vista, é o que encontramos hoje em dia, o
qual, à medida que os séculos foram passando, foi sendo polido pela
evolução (pela selecção memética, para quem gostar deste modo de colocar
a questão) até se transformar no sofisticado sistema - ou, melhor dizendo,
nos diversificadíssimos conjuntos de sistemas seus descendentes - que
actualmente dominam vastas regiões do mundo. As mortes de figuras
modernas carismáticas, tais como Hailé Selassié, Elvis Presley e a princesa
Diana, oferecem outras tantas oportunidades para estudar a rápida ascensão
de cultos e a sua subsequente evolução memética.
E é tudo quanto se me oferece dizer acerca das origens da religião, tema
que apenas retomarei brevemente no capítulo décimo quando me debruçar
sobre o fenómeno do «amigo imaginário» da infância, a propósito das
«necessidades» psicológicas que a religião satisfaz.
Pensa-se muitas vezes que a moral tem as raízes na religião, e no capítulo
que se segue pretendo questionar esta visão. Irei defender que a origem da
moral pode ser, ela própria, objecto de uma interrogação darwiniana. Tal
como perguntámos: qual é o valor de sobrevivência darwiniano da religião?,
podemos colocar esta mesma questão à moral. Com efeito, esta talvez tenha
surgido antes da religião. Tal como, no caso da religião, recuámos e
reformulámos a pergunta quando confrontados com ela, também com a
moral veremos que esta deve ser vista como um subproduto de uma outra
coisa.

113 Citado em Dawkins (1982, 30).

114 K. Sterelny, «The perverse primate», em Grafen e Ridley (2006, 213-23).

115 N. A. Chagnon, «Terminological kinship, genealogical relatedness and village fissioning among
the Yanomamü Indians», em Alexander e Tinkle (1981, capítulo 28).

116 C. Darwin, A Origem do Homem, Nova Iorque, Appleton, 1871, vol. 1, 156.

117 Achei graça ver «Focus on your own damn family» [«Concentra-te mas é na tua maldita família»]
num autocolante de automóvel no Colorado, mas agora já não lhe acho tanta graça. Talvez algumas
crianças precisem de ser protegidas das doutrinas que os próprios pais lhes inculcam (ver capítulo
nono).

118 Citado em Blaker (2003, 7)

119 Ver, por exemplo, Buss (2005).


120 Deborah Keleman, «Are children “intuitive atheists”?», Psychological Science 15, 5, 2004, 295-
301.

121 Dennett (1987).

122 Guardian, 31 de Janeiro de 2006.

123 Ver a minha denúncia do perigoso narcótico óleo de Gerin, R. Dawkins, «Geri n oil», Free Inquiry
24, 1, 2003, 9-11.

124 Smythies (2006).

125 A piada não é minha: ver 1066 and All That.

126 http://jmm.aaa.net.au/articles/14223.htm.

127 Sobretudo no meu país, segundo o lendário estereótipo nacional: «Voici l’anglais avec son sang
froid habituel» («Here is the Englishman with his habitual bloody cold» «Eis o inglês, com a maldita
constipação do costume»). Citado de Fractured French, de F. S. Pearson, onde se podem encontrar
outra pérolas como coup de grâce (lawnmower, cortador de relva).

128 É possível analisar as diferentes escolas e estilos artísticos como memeplexos alternativos à medida
que os artistas vão copiando ideias e motivos de artistas anteriores, e os novos motivos só sobrevivem
se mesclados com outros. De facto, toda a disciplina académica da História da Arte, com o seu
sofisticado traçado de iconografias e simbolismos, pode ser vista em termos de um estudo aprofundado
sobre a memeplexidade. Os pormenores terão sido favorecidos ou desfavorecidos em função da
presença de membros existentes no fundo memético, entre os quais se incluem, muitas vezes, memes
religiosos.

129 Compare-se com Isaías 40:4: «Todo o vale seja levantado, e todas as colinas e montanhas sejam
abaixadas.» A semelhança não remete necessariamente para nenhuma característica basilar da psique
humana ou para o «inconsciente colectivo» junguiano. Há muito que estas ilhas haviam sido infestadas
de missionários.
6
As raízes da moralidade: porque
somos bons?
Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós
vem para uma curta visita, sem saber porquê, contudo, por
vezes parecemos adivinhar um objectivo. No entanto, do ponto
de vista do quotidiano, há uma coisa que sabemos: que o
homem está aqui pelos outros homens – acima de tudo por
aqueles de cujos sorrisos e bem-estar depende a nossa própria
felicidade.
Albert Einstein

Muitas pessoas religiosas consideram difícil imaginar como, sem religião,


alguém pode ser bom, ou há-de sequer querer ser bom. Este capítulo é
dedicado a essas questões. Mas as dúvidas vão mais além, e levam algumas
pessoas religiosas a paroxismos de ódio contra aqueles que não partilham a
sua fé. Isto é importante porque, por detrás das atitudes religiosas para com
outros temas sem qualquer ligação efectiva com a moralidade, encontram-se
escondidas considerações de ordem moral. Grande parte da oposição
movida ao ensino da evolução não tem nada a ver com a própria evolução
nem com nada que seja científico, mas é tão-somente incitado pela
indignação moral. Esta atitude vai desde o ingénuo «se ensinarem às
crianças que evoluíram a partir dos macacos, elas vão começar a agir como
macacos» até à motivação mais sofisticada subjacente a toda a estratégia da
«cunha» utilizada pelos defensores do «desígnio inteligente», como de resto
foi impiedosamente denunciado por Barbara Forrest e Paul Gross no livro
Creationism’s Trojan Horse: The Wedge of Intelligent Design.
Recebo um grande número de cartas de leitores dos meus livros, a maior
130

parte delas entusiasticamente amistosas, algumas proveitosamente críticas, e


umas tantas desagradáveis ou mesmo maldosas. As mais desagradáveis,
lamento dizer, são quase invariavelmente motivadas pela religião. O alvo
desses insultos tão pouco cristãos são, por norma, aqueles que são vistos
como inimigos do Cristianismo. Veja-se, por exemplo, esta carta colocada
na Internet e dirigida a Brian Flemming, autor e realizador de The God Who
Wasn’t There, um documentário sincero e comovente em defesa do
131

ateísmo. Intitulada «Ardei enquanto nos rimos» e datada de 21 de


Dezembro de 2005, a carta reza o seguinte:

Decididamente, vocês têm cá uma lata! Adorava pegar numa faca e


esventrá-los a todos, seus idiotas, e gritar de alegria a ver as vossas
entranhas a derramarem-se à vossa frente. Vocês andam a ver se
arranjam como atear uma guerra santa em que um dia eu, e outros como
eu, possamos vir a ter o prazer de passar aos actos como o atrás
mencionado.

Chegado a este ponto, o autor da carta parece reconhecer, algo


tardiamente, que a sua linguagem não é muito cristã, pois continua, agora
em tom mais caridoso:

Contudo, DEUS ensina-nos não a procurar a vingança, mas sim a rezar


pelas pessoas como vocês.

No entanto, a benevolência dura-lhe pouco:

Vai consolar-me saber que o castigo que DEUS vos há-de trazer será
mil vezes pior do que o que quer que seja que eu possa infligir. O
melhor de tudo é que vocês HÃO-DE sofrer para toda a eternidade por
estes pecados de que estão completamente ignorantes. A ira de DEUS
não há-de mostrar misericórdia. Para vosso próprio bem, espero que a
verdade vos seja revelada antes que a faca vos toque na carne. Feliz
NATAL!!!

PS: Vocês não fazem mesmo ideia daquilo que vos está reservado... Eu
agradeço a DEUS por não ser vocês.
Causa-me genuína confusão que uma mera diferença de opinião teológica
possa gerar semelhante azedume. Eis uma amostragem (com a ortografia
original respeitada) do correio recebido pela directora da revista
Freethought Today, uma publicação da Freedom from Religion Foundation,
FFRF (Fundação Livres da Religião), que promove campanhas pacíficas
contra os ataques à separação constitucional entre Igreja e Estado:

Olá, seus reles papa-queijos . Há muitos mais cristãos como nós do que
132

falhados como vocês. NÃO existe separação entre a Igreja e o Estado e


vocês vão perder, seus pagãos...

O que está aqui o queijo a fazer? Alguns amigos norte-americanos


sugeriram-me uma ligação com o estado do Wisconsin, consabidamente
mais à esquerda – e local de origem da FFRF, além de centro da indústria de
lacticínios –, mas certamente haverá algo mais por detrás disso, não? E
então a expressão «esses cobardes desses papa-queijos macacóides
franceses»? Qual é a iconografia semiótica do queijo? Continuando:

Sua escumalha, idólatras de Satanás... Por favor, morram e vão para o


inferno... Espero que apanhem uma doença dolorosa, como cancro do
recto, e tenham uma morte lenta e dolorosa, para poderem ir ter com
SATANÁS, vosso Deus... Oh meu, essa coisa de ser livre da religião é
foleira... Por isso, seus panascas e suas fufas, tenham lá calma e vejam
por onde andam, que quando menos esperarem Deus diz-vos como é...
Se não gostam deste país e das bases em que foi fundado e da razão por
que foi fundado, vão para a porra e pirem-se daqui direitinhos para o
inferno...

PS: Vai-te foder, sua puta comunista... Alcem esses vossos cus pretos e
saiam dos EUA. ... Vocês não têm desculpa. A criação é prova mais do
que suficiente do poder omnipotente de NOSSO SENHOR JESUS CRISTO.

E porque não o poder omnipotente de Alá? Ou do deus Brahma? Ou até


de Javé?
Não vamos desaparecer de mansinho. Se no futuro isso obrigar à
violência, lembrem-se de que foram vocês que a provocaram. A minha
espingarda está carregada.

Não consigo deixar de pensar: por que razão se crê que Deus necessita de
uma defesa tão feroz? Seria de crer que ele era perfeitamente capaz de
cuidar de si. Há que ter em mente, no meio de tudo isto, que a directora
insultada e ameaçada desta forma tão vil é uma jovem afável e encantadora.
Talvez porque eu não viva nos Estados Unidos, a maior parte da
correspondência rancorosa que recebo não se encontra ao nível do que já
vimos, mas também não ostenta a caridade pela qual o fundador do
Cristianismo se notabilizou. A carta que se segue, datada de Maio de 2005 e
escrita por um médico britânico, apesar de estar, sem dúvida, cheia de ódio,
parece-me mais a carta de uma pessoa atormentada do que de uma pessoa
maldosa, e revela bem como toda a questão da moralidade é um poço fundo
de hostilidade relativamente ao ateísmo. Após alguns parágrafos
introdutórios a denunciar a evolução (onde pergunta sarcasticamente se um
«preto ainda está em processo de evolução»), a insultar Darwin
directamente, a citar Huxley de forma incorrecta, considerando-o
antievolucionista, e a incentivar-me a ler um livro (que eu li) onde se
argumenta que o mundo tem apenas 8000 anos (será que ele pode mesmo
ser médico?), o autor da carta conclui:

Os seus livros, o prestígio de que goza em Oxford, tudo o que ama na


vida, e tudo aquilo que alcançou são um exercício de total futilidade...
A interpeladora pergunta de Camus torna-se inescapável: porque não
cometemos todos suicídio? Na verdade, a sua visão do mundo tem esse
tipo de efeito nos estudantes e em muitas outras pessoas... que todos
evoluímos por puro acaso, a partir do nada, e que a esse nada
voltaremos. Mesmo que a religião não fosse verdadeira, é melhor,
muito, muito melhor, acreditar num mito nobre, como o de Platão, se
durante as nossas vidas ele conduzir à paz de espírito. Mas a sua visão
do mundo conduz à ansiedade, à toxicodependência, à violência, ao
niilismo, ao hedonismo, à ciência Frankenstein, ao inferno na Terra e à
Terceira Guerra Mundial... Pergunto-me quão feliz será o senhor nas
suas relações pessoais? Divorciado? Viúvo? Homossexual? As pessoas
como o senhor nunca são felizes, caso contrário não se esforçariam
tanto para provar que não existe felicidade nem significado em nada.

A opinião, se não mesmo o tom, aqui presentes são típicos de muitas


cartas. Segundo esta pessoa, o darwinismo é intrinsecamente niilista, ao
ensinar que evoluímos por puro acaso (pela enésima vez, a selecção natural
é precisamente o oposto de um processo casual) e que somos aniquilados
quando morremos. Como consequência directa de toda esta alegada
negatividade, logo vêm a desfilar todo o tipo de males. É de presumir que
ele não quisesse realmente sugerir que a viuvez podia ser uma consequência
directa do meu darwinismo, mas por essa altura a carta tinha chegado
àquele patamar de maldade tresloucada que reiteradamente encontro entre
os meus correspondentes cristãos. Dediquei um livro inteiro (Decompondo
o Arco-Íris) à questão do significado último, à poesia da ciência, e a rejeitar,
especificamente e de uma forma completa, a acusação de negatividade
niilista, por isso, vou, agora, conter-me. Este capítulo é sobre o mal e o seu
oposto, o bem; e é sobre a moralidade: donde vem, a razão pela qual
devemos adoptá-la, e se para tanto necessitamos da religião.

A nossa consciência moral tem origem darwiniana?


Vários livros, incluindo Why Good Is Good, de Robert Hinde, The
Science of Good and Evil, de Michael Shermer, Can We Be Good Without
God?, de Robert Buckman, e Moral Minds, de Marc Hauser, sustentam que
o nosso sentido do certo e do errado pode provir do nosso passado
darwiniano. Esta secção constitui a minha própria versão desse argumento.
À primeira vista, a ideia darwiniana de que a evolução é impelida pela
selecção natural parece inadequada para explicar a bondade que possuímos
ou os nossos sentimentos relativos à moralidade, à decência, à empatia e à
piedade. A selecção natural pode facilmente explicar a fome, o medo e o
apetite sexual, os quais contribuem directamente para a nossa sobrevivência
ou para a preservação dos nossos genes. E quanto à compaixão angustiante
que sentimos quando vemos uma criança órfã a chorar, uma viúva idosa em
desespero devido à solidão ou um animal a ganir de dor? O que nos provoca
esse poderoso impulso de enviar uma dádiva anónima em dinheiro ou
roupas às vítimas do tsunami no outro lado do mundo, pessoas que nunca
chegaremos a conhecer e que muito provavelmente não vão retribuir o
favor? Donde vem o bom samaritano que há em nós? Não será a bondade
incompatível com a teoria do «gene egoísta»? Não. Apesar de comum, essa
é uma interpretação deficiente da teoria – uma interpretação tristemente
deficiente de resto (e, olhando em retrospectiva, previsível). É necessário
133

colocar a tónica na palavra certa. O itálico de gene egoísta indica a ênfase


adequada, pois estabelece o contraste com o organismo egoísta, por
exemplo, ou com a espécie egoísta. Permita-se-me que explique.
A lógica do darwinismo conclui que a unidade da hierarquia da vida que
conseguir sobreviver e passar pelo filtro da selecção natural tenderá a ser
egoísta. As unidades que resistem no mundo serão as que tiverem
conseguido sobreviver à custa dos seus rivais no respectivo nível da
hierarquia. Neste contexto, é precisamente esse o significado da palavra
egoísta. A questão é: qual o nível da acção? Toda a ideia do gene egoísta,
com a devida ênfase na primeira palavra, é que a unidade da selecção
natural (isto é, a unidade do «auto-interesse») não é o organismo egoísta,
nem o grupo egoísta ou a espécie egoísta ou o ecossistema egoísta, mas sim
o gene egoísta. É o gene que, sob a forma de informação, ou sobrevive ao
longo de muitas gerações, ou não sobrevive. Ao contrário do gene (e
possivelmente do meme), entidades como o organismo, o grupo e a espécie
não servem, neste sentido, de unidade, porque não fazem cópias exactas de
si próprios e não entram em competição entre si num fundo de entidades
auto-replicadoras. É isso precisamente o que fazem os genes, e é essa a
justificação – essencialmente lógica – para a escolha do gene como unidade
do «egoísmo» no sentido especial e darwiniano de egoísta.
A forma mais óbvia de os genes assegurarem a sua própria sobrevivência
«egoísta» relativamente a outros genes é programando os organismos
individuais para serem egoístas. Existem de facto muitas circunstâncias em
que a sobrevivência do organismo individual vai favorecer a sobrevivência
dos genes que transporta no seu interior. Mas as tácticas variam consoante
as circunstâncias. Há circunstâncias – não tão raras como isso – em que os
genes asseguram a sua própria sobrevivência egoísta influenciando os
organismos a comportarem-se de forma altruísta. Essas circunstâncias são
hoje bem conhecidas e dividem-se em duas categorias principais. Um gene
que programe organismos individuais de maneira a favorecer a respectiva
família genética tem maiores probabilidades de beneficiar cópias de si
próprio. A incidência da presença de um gene destes no fundo genético
pode aumentar a ponto de o altruísmo baseado no parentesco se tornar
norma. Sermos bons para os nossos próprios filhos é o exemplo óbvio, mas
não é o único. As abelhas, as vespas, as formigas, as térmitas e, num grau
menor, certos animais vertebrados como o rato-toupeira-nu, o suricata e o
pica-pau-bolota desenvolveram sociedades nas quais os irmãos mais velhos
cuidam dos irmãos mais novos (com os quais é provável que partilhem os
genes relacionados com esses cuidados). De uma maneira geral, e como
mostrou o meu falecido colega W. D. Hamilton, os animais têm tendência
para cuidar dos parentes próximos, para os defender, para os alertar do
perigo ou com eles partilharem recursos, ou simplesmente para terem com
eles manifestações de altruísmo, e tudo isso devido à probabilidade
estatística de os parentes partilharem cópias dos mesmos genes.
O outro grande tipo de altruísmo para o qual temos uma sólida
fundamentação lógica darwiniana é o altruísmo recíproco («temos de ser
uns para os outros»). Esta teoria, trazida à Biologia evolutiva por Robert
Trivers e frequentemente expressa na linguagem matemática da teoria dos
jogos, ou ludoteoria, não depende da partilha de genes. Na verdade,
funciona igualmente bem, e provavelmente até melhor, entre membros de
espécies muito diferentes, sendo aí chamada simbiose. Trata-se do mesmo
princípio que está na base de todo o comércio e das trocas entre os seres
humanos. O caçador precisa de uma lança e o ferreiro quer carne. É a
assimetria que medeia o acordo. A abelha precisa de néctar e a flor precisa
de ser polinizada. As flores não podem voar, por isso pagam às abelhas o
aluguer das suas asas, e a moeda é o néctar. As guias-do-mel, aves da
família indicatoridae, conseguem encontrar colmeias, mas não conseguem
entrar nelas. Os texugos (ratéis) conseguem entrar nas colmeias, mas não
possuem asas para melhor as procurar. As guias-do-mel conduzem os ratéis
(e por vezes o ser humano) até ao mel através de um voo atractivo, que não
é utilizado para nenhuma outra finalidade. Ambas as partes beneficiam com
a transacção. Pode estar um pote de ouro debaixo de uma grande pedra,
demasiado pesada para que aquele que a descobriu a consiga mover. Este
mobiliza a ajuda de outros, embora tenha de com eles partilhar o ouro, pois
sem a sua ajuda nada conseguiria. Nos reinos vivos abundam estas relações
mutualistas: búfalos e pica-bois, flores tubulares vermelhas e beija-flores,
garoupas e bodiões, vacas e os microrganismos que lhes povoam o aparelho
digestivo. O altruísmo recíproco funciona por causa das assimetrias que há
nas necessidades e nas capacidades para as satisfazer. É por isso que resulta
particularmente bem entre espécies diferentes: as assimetrias são maiores.
Nos humanos, as notas de débito e o dinheiro são mecanismos que
permitem adiamentos nas transacções. As partes envolvidas no negócio não
entregam os bens simultaneamente, antes podem adiar a dívida ou até
mesmo transferi-la para terceiros. Tanto quanto sei, não existem animais
não humanos que tenham um equivalente directo do dinheiro. Mas a
memória da identidade individual desempenha o mesmo papel, ainda que de
uma maneira mais informal. Os morcegos-vampiros aprendem em que
outros indivíduos do seu grupo social podem confiar para pagar as dívidas
(em sangue regurgitado) e também quais os que fazem batota. A selecção
natural favorece os genes que predispõem os indivíduos, em relações de
necessidade e oportunidade assimétricas, para dar quando podem e para
requestar quando não podem. Ela favorece também as tendências para
lembrar as obrigações, para guardar rancor, para fiscalizar as relações de
troca e para punir os trapaceiros que recebem, mas que não dão quando
chega a sua vez de o fazer.
Porque a verdade é que sempre há-de haver trapaceiros, e as soluções
estáveis para os enigmas ludoteóricos do altruísmo recíproco implicam
sempre um elemento de punição daqueles que fazem batota. A teoria
matemática admite duas categorias principais de solução estável para
«jogos» deste tipo. «Ser-se sempre mau» é estável na medida em que, se
todos assim fizerem, um único indivíduo bom não conseguirá,
isoladamente, fazer melhor. Mas há outra estratégia que também é estável.
(«Estável» significa que, a partir do momento em que ultrapassa uma certa
frequência crítica ao nível da população, nenhuma alternativa consegue
suplantá-la.) Diz esta estratégia: «Comece-se por ser bom, dando aos outros
o benefício da dúvida. Depois retribuam-se as boas acções com o bem, mas
vinguem-se as más acções.» Na linguagem da teoria dos jogos, esta
estratégia (ou família de estratégias correlatas) tem diferentes nomes,
incluindo «na mesma moeda», «retaliador» e «reciprocador». Do ponto de
vista da evolução, e sob determinadas condições, isto proporciona
estabilidade na medida em que, numa dada população dominada por
reciprocadores, nem o indivíduo mau agindo isoladamente, nem o indivíduo
incondicionalmente bom também a agir isoladamente conseguirão
prevalecer. Existem outras variantes, mais complicadas de «na mesma
moeda», que em certas circunstâncias podem dar azo a que uma das partes
leve a melhor.
Apontei o parentesco e a reciprocação como pilares gémeos do altruísmo
num mundo darwiniano, mas sobre esses grandes pilares assentam ainda
estruturas secundárias. Especialmente na sociedade humana, onde há a
linguagem e os mexericos, a reputação é importante. Um indivíduo pode ter
fama de bondoso e generoso. Outro indivíduo pode ter reputação de falível,
de aldrabão e de não confiável. Outro indivíduo ainda pode ter fama de
generoso quando a confiança se cimenta, mas também de castigador
implacável de quem ludibria. Na sua forma simples, a teoria do altruísmo
recíproco espera que os animais, seja de que espécie for, baseiem o seu
comportamento na reacção inconsciente a estas características dos seus
semelhantes. Nas sociedades humanas acresce o poder da linguagem para
difundir reputações, geralmente sob a forma do mexerico ou diz-que-diz-
que. Não precisamos de saber por experiência própria que fulano não tem a
franqueza de pagar a sua rodada no pub. Ouvimos «por portas travessas»
que ele é um unhas-de-fome, ou então – para complicar o exemplo com um
pouco de ironia – que sicrano é um má-língua. A reputação é importante, e
os biólogos reconhecem valor de sobrevivência darwiniana não só no facto
de se ser um bom reciprocador, mas também no de alimentar tal reputação.
Para além de constituir uma explicação lúcida do que é a moralidade
darwiniana, o livro de Matt Ridley The Origins of Virtue é particularmente
bom a lidar com o tema da reputação.134

O economista norueguês-americano Thorstein Veblen e, de uma forma


bastante diversa, o zoólogo israelita Amotz Zahavi, acrescentaram uma
ideia ainda mais fascinante. A dádiva altruísta pode ser uma proclamação
implícita de domínio ou superioridade. Os antropólogos chamam-lhe efeito
potlatch, nome que remonta ao costume segundo o qual os chefes rivais das
tribos do Pacífico noroeste competem entre si organizando festins de uma
abundância ruinosa. Em casos extremos, estes verdadeiros duelos de
divertimento retaliatório prolongam-se até que um dos lados fica reduzido à
penúria, não deixando o vencedor em muito melhor estado. O conceito de
«consumo conspícuo», de Veblen, diz bastante a muitos de nós que
seguimos com atenção o mundo moderno. O contributo de Zahavi,
descurado pelos biólogos durante muitos anos até os brilhantes modelos
matemáticos do teórico Alan Grafen lhe virem fazer a devida justiça,
traduz-se na proposta de uma versão da ideia de potlatch em termos de
evolução. Zahavi estuda o zaragateiro-árabe, um pequeno pássaro castanho
que vive em grupos sociais e se reproduz cooperativamente. Como muitos
pássaros pequenos, os zaragateiros dão gritos de aviso e oferecem comida
uns aos outros. Uma eventual investigação darwiniana clássica de actos
altruístas deste tipo procuraria, em primeiro lugar, relações de reciprocação
e parentesco entre os pássaros. Quando um zaragateiro alimenta um
companheiro, será na expectativa de ser alimentado mais tarde? Ou será
aquele que beneficia do favor um parente genético próximo? A
interpretação de Zahavi é radicalmente inesperada. Os zaragateiros
dominantes afirmam o seu domínio alimentando os subordinados. Para usar
a linguagem antropomórfica de que Zahavi tanto gosta, o pássaro dominante
está a dizer o equivalente a «vê como sou superior a ti, que até me posso dar
ao luxo de te oferecer comida». Ou: «Vê como sou superior a ti, que até me
posso dar ao luxo de me expor aos falcões posicionando-me num ramo alto,
a fazer de sentinela, para avisar o resto do bando enquanto este come no
chão.» As observações de Zahavi e dos colegas sugerem que os zaragateiros
competem activamente entre si pelo perigoso papel de sentinela. E quando
um zaragateiro subordinado tenta dar comida a um indivíduo dominante,
essa aparente generosidade é violentamente repelida. A essência da proposta
de Zahavi é que as proclamações implícitas de superioridade são
autenticadas pelo respectivo custo. Só um indivíduo genuinamente superior
pode dar-se ao luxo de anunciar o facto por meio de uma oferta dispendiosa.
Os indivíduos compram o êxito – por exemplo, no que toca a atrair
parceiros – através de dispendiosas demonstrações de superioridade,
incluindo a generosidade ostentatória e o assumir de riscos pelo bem
comum.
Temos então quatro boas razões darwinianas para os indivíduos serem
altruístas, generosos ou «morais» uns para com os outros. Em primeiro
lugar, temos o caso especial do parentesco genético e, em segundo, a
reciprocação: a retribuição de favores concedidos e a dádiva de favores
como «antecipação» da paga. Na sequência disto, temos, em terceiro lugar,
o benefício darwiniano, que consiste em adquirir uma reputação de
generosidade e bondade. E por último, se Zahavi estiver certo, há o
específico benefício adicional da generosidade conspícua como forma de
comprar publicidade genuína.
Ao longo da maior parte da nossa Pré-História, o ser humano viveu sob
condições que terão favorecido bastante a evolução dos quatro tipos de
altruísmo. Vivíamos em aldeias ou, em tempos mais recuados, em bandos
nómadas discretos, como os babuínos, parcialmente isolados das aldeias ou
bandos vizinhos. A maior parte dos elementos do bando seriam aparentados,
num grau de maior proximidade do que os membros de outros bandos.
Amplas oportunidades, portanto, para o altruísmo familiar evoluir. E, sendo
ou não parentes, eram elevadas as hipóteses de passarem a vida a cruzar-se
com os mesmos indivíduos, no que seriam condições ideais para a evolução
do altruísmo recíproco. Essas são as condições ideais para a construção de
uma reputação de altruísmo e também para publicitar uma generosidade
conspícua. Fosse por uma das quatro vias ou por todas elas, as tendências
genéticas para o altruísmo terão sido favorecidas nos primeiros humanos. É
fácil perceber por que razão os nossos antepassados pré-históricos terão sido
bons para os membros do seu próprio grupo, mas maus – chegando até à
xenofobia – em relação a outros grupos. Mas por que motivo – agora que a
maior parte de nós vive em grandes cidades onde já não estamos rodeados
por parentes e onde diariamente conhecemos indivíduos que nunca mais
voltaremos a encontrar –, por que motivo somos ainda tão bons uns para os
outros, por vezes até para outros que seria de supor pertencentes a um grupo
exterior ao nosso?
É importante não transmitir uma ideia errada do alcance da selecção
natural. A selecção não favorece a evolução de uma consciência cognitiva
daquilo que é bom para os nossos genes. Essa consciência teve de esperar
até ao século XX para atingir um nível cognitivo, e mesmo agora a
compreensão plena restringe-se a uma minoria de especialistas na área da
ciência. O que a selecção natural favorece são regras de base empírica, que
na prática funcionam no sentido de promover os genes que as criaram. As
regras empíricas, de sua natureza falham, errando por vezes o alvo. No
cérebro de um pássaro, a regra «cuidar daquelas coisas pequenas que soltam
grasnidos e vivem no teu ninho, e deixar-lhes cair comida dentro das bocas
vermelhas escancaradas» tem, por norma, o efeito de preservar os genes que
criaram a regra, porque os objectos que soltam grasnidos e ficam de boca
escancarada no ninho de um pássaro adulto são, normalmente, seus
descendentes. A regra falha se outra cria de pássaro entra para o ninho, uma
situação efectivamente engendrada pelos cucos. Será possível que os nossos
impulsos de bom samaritano sejam também falhas, tiros fora do alvo à
maneira dos instintos paternais de um rouxinol-dos-pauis quando se mata a
trabalhar por uma cria de cuco? Uma analogia ainda mais próxima é o
desejo humano de adoptar uma criança. Devo apressar-me a acrescentar que
expressões como «falha» e «tiro fora do alvo» têm, aqui, um significado
estritamente darwiniano, não contendo qualquer conotação pejorativa.
A ideia de «erro» ou «subproduto» que eu perfilho funciona da seguinte
maneira. Nos tempos ancestrais em que vivíamos em bandos pequenos e
estáveis, como os babuínos, a selecção natural programou-nos os cérebros
com impulsos altruístas, a par de impulsos sexuais, impulsos de fome,
impulsos xenófobos, etc. Um casal inteligente pode ler Darwin e ficar a
saber que a razão última dos seus impulsos sexuais é a procriação. Sabem
que a mulher não pode engravidar porque toma a pílula. No entanto,
descobrem que o desejo sexual não é de forma alguma atenuado por esse
conhecimento. Desejo sexual é desejo sexual, e o seu poder, na psicologia
do indivíduo, é independente da pressão darwiniana que lhe está subjacente.
Trata-se de um impulso forte, que existe independentemente da sua lógica
última.
O que proponho é que o mesmo é válido em relação ao impulso da
bondade – e do altruísmo, da generosidade, da empatia, da piedade. Em
tempos ancestrais, só tínhamos oportunidade de ser altruístas para com os
parentes próximos e os reciprocadores potenciais. Hoje em dia, já não se
verifica essa restrição, mas a regra empírica mantém-se. E porque não havia
de manter? É como o desejo sexual. Não conseguimos deixar de sentir pena
por ver a chorar um infeliz (que não nos é nada nem está em condições de
retribuir), tal como não conseguimos deixar de sentir desejo por alguém do
sexo oposto (que pode até ser estéril ou incapaz de reproduzir). Ambos são
tiros fora do alvo, erros darwinianos: abençoados erros, inestimáveis erros.
Não se pense nem por um instante que toda esta darwinização rebaixa ou
apouca essas nobres emoções que são a compaixão e a generosidade.
Tampouco o desejo sexual. Este, quando veiculado pelos canais da cultura
linguística, traduz-se em poesia e teatro de grande qualidade: os poemas de
amor de John Donne, por exemplo, ou Romeu e Julieta. E é evidente que o
mesmo se pode dizer da compaixão, que, embora ditada pelo parentesco e
pela reciprocação, é inflectida em imprevisíveis desvios de trajectória. Fora
de contexto, o sentimento de misericórdia para com um devedor afigura-se
tão pouco darwiniano como adoptar uma criança de outrem:

Não é forçada, a misericórdia.


Cai como a suave chuva do céu
Por sobre o chão.

O desejo sexual é a força motriz por detrás de uma considerável fracção


da ambição e da luta humanas, e em grande parte constitui um tiro falhado.
Não existe razão alguma pela qual a mesma coisa não possa ser verdade em
relação ao desejo de ser generoso e compassivo, se for essa a consequência
falhada da antiga vida de aldeia. A melhor forma de, em tempos ancestrais,
a selecção natural incutir ambos os tipos de desejo era instalando no cérebro
regras muito práticas. Tais regras ainda hoje nos influenciam, mesmo nos
casos em que as circunstâncias as tornam inadequadas às suas funções
originais.
Essas regras básicas ainda nos influenciam não de uma forma
calvinisticamente determinista, mas filtradas pelas influências civilizadoras
da literatura e dos costumes, da lei e da tradição – e, é claro, da religião.
Assim como a primitiva regra do cérebro referente ao desejo sexual passa
pelo filtro da civilização para surgir nas cenas de amor de Romeu e Julieta,
também as primitivas regras do cérebro referentes às vendetas do tipo nós-
contra-eles surgem sob a forma das contínuas batalhas entre os Capuleto e
os Montague. E tudo isso enquanto as primitivas regras do cérebro
referentes ao altruísmo e à empatia redundam no tiro falhado que nos anima
por altura da reconciliação purificadora da cena final de Shakespeare.

Um estudo de caso sobre as raízes da moralidade


Se de facto a nossa consciência moral tivesse, tal como o desejo sexual,
raízes profundas no nosso passado darwiniano, anteriores ainda à religião,
seria de esperar que a investigação sobre a mente humana revelasse alguns
universais de natureza moral, atravessando barreiras geográficas e culturais,
bem como – o que seria mais importante – barreiras religiosas. No livro
Moral Minds: How Nature Designed our Universal Sense of Right and
Wrong, o biólogo de Harvard Marc Hauser expandiu uma via fecunda de
experiências de pensamento originariamente sugeridas pelos filósofos da
moral. O estudo de Hauser irá servir-me aqui também para expor o modo de
pensar dos filósofos da moral. É colocado um dilema moral hipotético, e a
dificuldade que sintamos para encontrar uma solução diz-nos algo acerca do
nosso próprio sentido do certo e do errado. Onde Hauser avança em relação
aos filósofos é que na verdade realiza estudos estatísticos e experiências do
domínio psicológico, utilizando, por exemplo, questionários colocados na
Internet para investigar a consciência moral de pessoas reais. Do ponto de
vista daquilo que aqui nos ocupa, o interessante é que a maior parte das
pessoas chega às mesmas decisões quando confrontada com esses dilemas,
e a sua concordância quanto às decisões em si é mais forte do que a
capacidade de expressar as suas razões. É isto que devemos esperar se
possuirmos uma consciência moral embutida nos nossos cérebros, tal como
temos o instinto sexual ou o medo das alturas, ou ainda, como o próprio
Hauser prefere dizer, a nossa capacidade para a linguagem (os pormenores
variam de cultura para cultura, mas a estrutura profunda subjacente à
gramática é universal). Como veremos, a forma como as pessoas reagem a
estes testes de moral e a sua incapacidade para expressar as razões que as
levam a reagir dessa forma parecem ser, em grande medida, independentes
das respectivas crenças religiosas ou da falta delas. Eis então, nas próprias
palavras do autor, a mensagem do livro de Hauser: «Por detrás dos nossos
juízos morais há uma gramática moral universal, uma faculdade da mente
que foi evoluindo ao longo de milhões de anos de maneira a incluir um
conjunto de princípios que construísse um leque de sistemas morais
possíveis. Tal como acontece com a linguagem, os princípios que
constituem a nossa gramática moral passam despercebidos ao radar da nossa
consciência.»
Típicas dos dilemas morais de Hauser são as variações do tema do camião
ou do eléctrico desgovernados que ameaçam matar um grande número de
pessoas. A história mais simples propõe que se imagine uma pessoa,
Denise, que se encontra perto do comando das agulhas e em condições de
desviar o eléctrico para uma via de resguardo, salvando assim as vidas de
cinco pessoas que se encontram presas na linha principal, um pouco mais à
frente. Infelizmente há um homem preso na via de resguardo. Mas, uma vez
que ele é só um e que há cinco pessoas presas na linha principal, a maior
parte das pessoas concorda que é moralmente admissível, se não mesmo
obrigatório, que Denise proceda à mudança de agulha de modo a salvar as
cinco pessoas e a matar uma. Desconhecem-se possibilidades hipotéticas,
como, por exemplo, a eventualidade de o homem preso na via de resguardo
poder ser Beethoven ou um amigo próximo.
As variantes das experiências de pensamento apresentam uma série de
enigmas morais cada vez mais exasperantes. E se o eléctrico puder ser
parado pondo-lhe no caminho um peso grande largado de uma ponte situada
por cima? É fácil: é óbvio que temos de largar o peso. E se o único peso
grande disponível for um homem muito gordo, sentado na ponte a admirar o
pôr do Sol? Quase toda a gente concorda que é imoral empurrar o homem
gordo da ponte, embora, de um certo ponto de vista, o dilema possa parecer
semelhante ao de Denise, no qual mudar a agulha mata uma pessoa para
salvar cinco. A maior parte das pessoas tem uma forte intuição de que existe
uma diferença crucial entre os dois casos, embora não consiga exprimi-la.
Empurrar o homem gordo da ponte faz lembrar outro dilema considerado
por Hauser. Há cinco doentes a morrerem num hospital, cada um por falha
de um órgão diferente. Cada um deles seria salvo se fosse encontrado um
dador para cada órgão doente específico, mas não existem dadores
disponíveis. É então que o cirurgião repara que está na sala de espera um
homem saudável, cujos cinco órgãos em questão se encontram em boas
condições de funcionamento e são adequados para transplante. Neste caso,
não há quase ninguém que seja capaz de dizer que a acção moralmente
indicada seja matar esse homem para salvar os cinco doentes.
Tal como no caso do homem gordo da ponte, a intuição que a maior parte
de nós partilha é que um espectador inocente não deve ser arrastado sem
mais nem menos para uma situação problemática e usado para salvar outras
pessoas sem o seu consentimento. Immanuel Kant expressou de forma
admirável o princípio segundo o qual um ser racional que não haja dado o
respectivo consentimento nunca deverá ser usado como simples meio para
atingir um fim, mesmo que esse fim seja o benefício de outras pessoas. Isto
parece fornecer-nos a diferença crucial entre o caso do homem gordo da
ponte (ou do homem da sala de espera do hospital) e o da via de resguardo
de Denise. O homem gordo da ponte está a ser nitidamente utilizado como
meio de travar o eléctrico desgovernado, o que viola claramente o princípio
kantiano. A pessoa da via de resguardo não está a ser usada para salvar a
vida das cinco pessoas presas na linha principal, é a via de resguardo que,
propriamente, está em causa, sucedendo apenas que o homem tem o azar de
se encontrar nessa via. Mas quando a distinção é colocada desta maneira,
por que razão nos satisfaz ela? Para Kant, tratava-se de um absoluto moral.
Para Hauser ela foi embutida em nós ao longo da nossa evolução.
As diversas situações hipotéticas com o eléctrico desgovernado vão-se
tornando cada vez mais engenhosas, tornando os dilemas morais
correspondentemente tortuosos. Hauser faz contrastar os dilemas
enfrentados por indivíduos hipotéticos chamados Ned e Oscar. Ned
encontra-se junto da via férrea. Ao contrário de Denise, que podia desviar o
eléctrico para uma via de resguardo, o interruptor de Ned condu-lo a um
desvio que volta a entroncar na via principal mesmo antes de chegar às
cinco pessoas. Mudar simplesmente a agulha não chega: de qualquer
maneira, o eléctrico acabará por varrer as cinco quando o desvio tornar a
confluir com a via principal. Contudo, acontece que na via de desvio se
encontra um homem extremamente gordo que é suficientemente pesado
para deter o eléctrico. Deverá Ned mudar a agulha de modo a desviá-lo? A
intuição da maior parte das pessoas é que não o deve fazer. Mas qual é a
diferença entre o dilema de Ned e o de Denise? Provavelmente, as pessoas
aplicam intuitivamente o princípio de Kant. Denise desvia o eléctrico de
maneira a impedi-lo de passar por cima das cinco pessoas, e a lamentável
baixa na via de resguardo é um «dano colateral», para usar a encantadora
expressão de Rumsfeld. A vítima não está a ser utilizada por Denise para
salvar os outros. Quanto a Ned, está de facto a usar o homem gordo para
deter o eléctrico, e a maior parte das pessoas (talvez sem o
consciencializar), tal como Kant (que avalia a questão com minúcia), vê isto
como uma diferença crucial.
A diferença é de novo realçada pelo dilema de Oscar. A situação deste é
idêntica à de Ned, só que no seu caso há no desvio um grande peso de ferro,
suficiente para deter o eléctrico. É claro que Oscar não devia ter problemas
em decidir-se a mudar a agulha e desviar o eléctrico. Só que acontece que
há um peão que vai a caminhar à frente do peso de ferro. Sem dúvida que
esse homem vai morrer se Oscar carregar no interruptor, tão certo quanto
com o homem gordo de Ned. A diferença é que o peão de Oscar não está a
ser usado para deter o eléctrico: ele é um dano colateral, como no dilema de
Denise. Tal como Hauser, e como a maior parte dos sujeitos das suas
experiências, sinto que Oscar tem permissão para accionar o interruptor,
mas Ned não, embora também ache muito difícil justificar a minha intuição.
Aonde Hauser pretende chegar é à ideia de que muitas vezes essas intuições
morais não são fruto de uma grande ponderação, mas que, em todo o caso,
as sentimos de forma bastante forte, devido à nossa herança evolutiva.
Numa sugestiva aventura pelo domínio da Antropologia, Hauser e os
colegas adaptaram as suas experiências morais aos Kunas, uma tribo da
América Central que tem pouco contacto com os ocidentais e não possui
uma religião formal. Os investigadores adaptaram a experiência do carro
eléctrico a elementos equivalentes da realidade local, como crocodilos a
nadarem na direcção de canoas. Feito o paralelo, os Kunas mostram ter,
com pequenas diferenças, juízos morais semelhantes aos nossos.
De particular interesse para o presente livro é a circunstância de Hauser
também se interrogar sobre se as pessoas religiosas diferem dos ateus
quanto às suas intuições morais. Será evidente que, se é certo que é à
religião que vamos buscar a nossa moralidade, elas devem ser diferentes.
Mas parece que não o são. Trabalhando em conjunto com o filósofo da
moral Peter Singer, Hauser centrou-se em três dilemas hipotéticos,
135

comparando depois os veredictos dos ateus com os das pessoas religiosas.


Em cada um dos casos, foi pedido aos sujeitos da experiência que
decidissem se uma determinada acção hipotética era moralmente
«obrigatória», «admissível» ou «proibida». Os três dilemas eram:

1. O dilema de Denise: 90 por cento das pessoas disseram que era


admissível desviar o eléctrico, matando uma pessoa para salvar
cinco.

2. Vê uma criança a afogar-se num pequeno lago e não há mais


ninguém por perto para ajudar. Você pode salvar a criança, mas,
se o fizer, estraga as calças: 97 por cento das pessoas concordaram
que se deve salvar a criança (surpreendentemente, parece que três
por cento preferiam salvar as calças que traziam vestidas).

3. O dilema do transplante de órgãos acima descrito: 97 por cento


dos sujeitos concordaram que é moralmente proibido pegar na
pessoa saudável da sala de espera e matá-la para lhe retirar os
órgãos, salvando com isso cinco outras pessoas.

A principal conclusão do estudo de Hauser e Singer foi que não existe


diferença estatisticamente significativa entre ateus e crentes religiosos
quanto à formação destes juízos. Isto parece ser compatível com o ponto de
vista, que eu e muitas outras pessoas defendemos, segundo o qual não
precisamos de Deus para sermos bons – ou maus.

Se Deus não existe, porquê ser bom?


Colocada desta forma, a questão afigura-se nitidamente ignóbil. Quando
uma pessoa religiosa me coloca o problema desta maneira (e muitas são as
que o fazem), a minha tentação imediata é lançar o seguinte desafio: «Quer
mesmo dizer-me que a única razão que o leva a tentar ser bom é obter a
aprovação e recompensa de Deus, ou evitar a sua reprovação e castigo? Isso
não é moralidade, é graxa, bajulação, um relance furtivo à grande câmara de
vigilância que do céu nos vê, ou o fiozinho de escuta dentro do seu ouvido a
monitorizar-lhe todos os movimentos, os seus pensamento mais torpes.»
Como disse Einstein: «Se as pessoas só são boas porque temem o castigo e
esperam recompensa, então somos mesmo uma triste cambada.» No livro
The Science of Good and Evil, Michael Shermer diz que isto é daqueles
argumentos capazes de arrumar qualquer discussão. Quem concorda que, na
ausência de Deus, seria capaz de «cometer assaltos, violações e homicídios»
revela ser uma pessoa imoral, e «o melhor será passarmos-lhe ao largo.» Por
outro lado, quem admite que continuaria a ser uma pessoa boa mesmo não
estando sob vigilância divina, deita fatalmente por terra a sua pretensão de
que Deus é necessário para que sejamos bons. Desconfio de que muitas
pessoas religiosas acreditam que é a religião que as motiva a serem boas,
principalmente se pertencem a um desses credos que sistematicamente
exploram a culpa pessoal.
Parece-me requerer muito pouca auto-estima pensar que, se de repente a
fé em Deus desaparecesse do mundo, nos tornaríamos todos hedonistas
insensíveis e egoístas, desprovidos de amabilidade, caridade, generosidade,
enfim, de tudo que merecesse o nome de bondade. Crê-se que Dostoievski
era dessa opinião, presumivelmente por causa de algumas observações que
colocou na voz de Ivan Karamazov:

[Ivan] observou solenemente que não havia absolutamente nenhuma lei


da natureza que fizesse o homem amar a humanidade e que, se o amor
realmente existisse e tivesse existido no mundo até agora, isso não se
deveria à lei natural, mas unicamente à circunstância de o homem
acreditar na sua própria imortalidade. Acrescentou em jeito de aparte
que era precisamente isso que constituía a lei natural, a saber, que a
partir do momento em que a fé do homem na sua própria imortalidade
fosse destruída, se esgotaria não só a sua capacidade de amar, como
também as forças vitais que eram o sustentáculo da vida nesta terra. E
mais ainda, que nada então seria imoral, tudo sendo permitido, até a
antropofagia. E finalmente, como se tudo isto não bastasse, declarou
que para todo o indivíduo que, como, por exemplo, tu e eu, não acredita
nem em Deus, nem na sua própria imortalidade, a lei natural haveria de
tornar-se imediatamente o total oposto da lei de base religiosa que a
precedeu, e que o egoísmo, levado mesmo à perpetração de crimes, não
só seria admissível como considerado a mais essencial, a mais racional
e até a mais nobre razão de ser da condição humana.136

Algo ingenuamente talvez, inclino-me para uma visão da natureza


humana menos cínica do que a de Ivan Karamazov. Precisaremos mesmo de
policiamento – seja por Deus, seja por nós próprios – para impedir que nos
comportemos de maneira egoísta e criminosa? Quero sinceramente acreditar
que não preciso dessa vigilância – nem eu, nem o meu caro leitor. Por outro
lado, e só para fazer esmorecer a nossa confiança, ouçamos a desencantada
experiência de uma greve da polícia em Montreal, descrita por Steven
Pinker no seu livro The Blank Slate:

Na minha época de jovem adolescente, no Canadá orgulhosamente


pacífico da romântica década de 1960, eu acreditava verdadeiramente
no anarquismo de Bakunine. Ria-me do argumento dos meus pais, de
que, se o Estado alguma vez depusesse as armas, logo a vida se
transformaria num inferno. As nossas previsões antagónicas foram
postas à prova às oito horas do dia 17 de Outubro de 1969, quando a
polícia de Montreal entrou em greve. Às 11 e 20 foi assaltado o
primeiro banco. Por volta do meio-dia, a maior parte das lojas da baixa
estava fechada devido às pilhagens. Passadas poucas horas, os taxistas
incendiaram a garagem de um serviço de limusinas que competia com
eles pelos fretes para os aeroportos, um atirador furtivo colocado num
telhado matou um agente da polícia provincial, manifestantes
amotinados invadiram vários hotéis e restaurantes, e um médico abateu
um ladrão na sua residência dos subúrbios. No final do dia, havia seis
bancos assaltados, 100 lojas pilhadas, 12 incêndios ateados, estilhaços
de montras suficientes para encher 40 camiões e três milhões de dólares
em prejuízos materiais, até que as autoridades da cidade tiveram de
chamar o exército e, é claro, a Polícia Montada para repor a ordem. Este
decisivo teste empírico deixou-me as ideias políticas em farrapos...

Talvez também eu sofra de um optimismo incorrigível, por acreditar que


as pessoas permaneceriam boas se não fossem observadas e vigiadas por
Deus. Por outro lado, é de crer que a maioria da população de Montreal
acreditava em Deus. Por que razão não a refreou o medo de Deus quando a
polícia terrena se ausentou temporariamente de cena? A greve de Montreal
não era uma experiência natural boa para testar a hipótese de a fé em Deus
nos tornar bons? Ou será que o cínico H. L. Mencken tinha razão quando
observou, com mordacidade, que «as pessoas dizem que precisamos da
religião quando o que realmente querem dizer é que precisamos da
polícia»?
É evidente que nem todas as pessoas em Montreal se comportaram mal
assim que a polícia saiu de cena. Seria interessante saber se se verificou
alguma tendência estatística, por ligeira que fosse, que mostrasse se os
crentes pilharam e destruíram menos do que os não crentes. A minha
previsão, ajuizando sem outros dados, teria sido ao contrário. É
frequentemente dito com cinismo que nas trincheiras não há ateus. Inclino-
me a pensar (com base nalgumas provas, embora possa ser simplista tirar
conclusões a partir delas) que existem muito poucos ateus nas prisões. Não
estou necessariamente a defender que o ateísmo aumenta a moralidade, se
bem que o humanismo – o sistema ético frequentemente associado ao
ateísmo – provavelmente o faça. Outra boa possibilidade é que o ateísmo
esteja correlacionado com um terceiro factor, como seja a formação
universitária, a inteligência, ou a actividade reflexiva, que pode contrariar
eventuais impulsos criminosos. As provas decorrentes da investigação em
nada corroboram a opinião comum de que a religiosidade tem uma
correlação positiva com a moralidade. As provas de índole correlacional
nunca são conclusivas, mas os dados que se seguem, descritos por Sam
Harris no livro Letter to a Christian Nation, não deixam de ser
surpreendentes.

Apesar de a filiação num partido político, nos Estados Unidos, não ser
um indicador perfeito do factor religiosidade, não é segredo nenhum
que os estados «vermelhos» [republicanos] são vermelhos, antes de
mais, devido à esmagadora influência política dos cristãos
conservadores. Se houvesse uma correlação forte entre o
conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, poderíamos esperar ver
algum sinal disso mesmo na América dos estados «vermelhos». Mas
não. Das 25 cidades com os mais baixos índices de crime violento, 62
por cento estão situadas em estados «azuis» [democratas] e 38 por cento
pertencem a estados «vermelhos».
Das 25 cidades mais perigosas, 76 por cento são de estados
«vermelhos» e 24 por cento pertencem a estados «azuis». Na verdade,
três das cinco cidades mais perigosas dos Estados Unidos situam-se no
devoto estado do Texas. Os 12 estados com os índices de assaltos mais
elevados são «vermelhos» e 24 dos 29 com os índices de furto mais
elevados são «vermelhos.» Dos 22 estados com os índices de homicídio
mais elevados, 17 são «vermelhos ».
137

Se a investigação sistemática alguma coisa nos diz, é no sentido de


corroborar estes dados correlacionais. No Journal of Religion and Society
(2005), Gregory S. Paul levou a cabo um estudo comparativo sistemático de
17 nações economicamente desenvolvidas, chegando à devastadora
conclusão de que «nas democracias prósperas, índices mais elevados de
crença e adoração de um criador correlacionam-se com índices mais
elevados de homicídio, mortalidade juvenil e precoce, índices de contágio
de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez na adolescência e aborto».
No livro Breaking The Spell, Dan Dennett comenta com sarcasmo este tipo
de estudos em geral:
Escusado será dizer, estes resultados atingem tão profundamente as
propaladas pretensões de superior virtude moral por parte das pessoas
religiosas que se assistiu a um acréscimo considerável de investigação
desencadeado por organizações religiosas que os tentam refutar... uma
coisa da qual podemos ter a certeza é de que, se existir uma relação
positiva significativa entre o comportamento moral e a filiação, a
prática ou a crença religiosas, essa relação em breve será descoberta,
dado serem tantas as organizações ansiosas por confirmar
cientificamente as suas crenças tradicionais sobre esta questão. (Essas
organizações deixam-se impressionar bastante pelo poder que a ciência
tem para descobrir a verdade, quando esta corrobora aquilo em que já
acreditam.) Cada mês que passa sem uma dessas demonstrações
acentua a suspeita de que tal não irá suceder.

As pessoas mais ponderadas concordarão, na sua maior parte, que a


moralidade na ausência de policiamento é, de certo modo, mais
verdadeiramente moral do que a falsa moralidade que desaparece assim que
a polícia entra em greve ou quando a câmara de controlo é desligada, quer
se trate de uma câmara verdadeira, manipulada a partir da esquadra da
polícia, quer seja uma câmara imaginária instalada no céu. Mas talvez seja
injusto interpretar de forma tão cínica a questão «se Deus não existe, porquê
darmo-nos ao trabalho de sermos bons?». Um pensador religioso poderia
138

oferecer uma interpretação mais genuinamente moral, mais ou menos em


consonância com a declaração que se segue, proferida por um apologista
imaginário: «Se não se acredita em Deus, não se acredita que haja padrões
absolutos de moralidade. Bem podemos, com a maior boa vontade do
mundo, tentar ser uma boa pessoa, mas então como decidimos o que é bom
e o que é mau? Só a religião, em última análise, nos pode proporcionar
padrões do bem e do mal. Sem a religião, temos de ir apalpando o terreno.
Ora isso seria moralidade sem um manual de regras: uma moralidade do
tipo “vai indo e vai vendo”. Se a moralidade se resume a uma questão de
escolha, Hitler poderia argumentar que era uma pessoa moral segundo os
seus próprios padrões de inspiração eugénica, e o mais que o ateu pode
então fazer é optar, pessoalmente, por viver com referências diferentes. Pelo
contrário, o cristão, o judeu ou o muçulmano podem sustentar que o mal
tem um significado absoluto, verdadeiro para todos os tempos e em todos os
lugares, pelo que Hitler era mau em absoluto.»
Mesmo se fosse verdade que precisamos de Deus para sermos seres
morais, é evidente que isso não tornaria a sua existência mais provável, mas
apenas mais desejável (uma distinção que muitas pessoas se revelam
incapazes de fazer). Mas essa não é a questão. O meu apologista religioso
imaginário não tem necessidade de admitir que dar graxa a Deus é o motivo
religioso para praticar o bem. Na verdade, o que ele quer dizer é que, seja
qual for a origem daquilo que o motiva para o bem, sem Deus não haveria
padrão para decidir o que é bom. Cada um de nós podia inventar a sua
própria definição do bem e agir em conformidade. Podemos classificar
como absolutistas os princípios morais que se baseiam apenas na religião
(diferentemente da «regra dourada» , por exemplo, que é frequentemente
139

associada às religiões, embora possa ter outra origem). Bom é bom e mau é
mau, e nada de trapalhadas a decidir casos particulares com base, por
exemplo, no facto de a situação concreta envolver sofrimento. O meu
apologista religioso defenderia que só a religião pode proporcionar uma
base para decidir o que é bom.
Alguns filósofos, com destaque para Kant, tentaram retirar princípios
morais absolutos de fontes não religiosas. Embora sendo ele próprio um
homem religioso, como era quase inevitável no seu tempo, Kant tentou
140

basear toda uma moralidade no dever pelo dever, e não em função de Deus.
O seu famoso imperativo categórico ordena: «Age apenas segundo uma
máxima que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei universal.» Ora
isto funciona escorreitamente para o exemplo da mentira. Imagine-se um
mundo no qual as pessoas dissessem mentiras por uma questão de princípio,
onde mentir fosse considerado uma coisa boa e moral. Num mundo assim, a
própria mentira deixaria de ter significado. A mentira, para ser definida
como tal, necessita de uma presunção de verdade. Se um princípio moral é
algo que deveríamos desejar que todos seguissem, mentir não pode ser um
princípio moral, porque o próprio princípio desabaria sob uma total falta de
sentido. Como regra para a vida, a mentira é intrinsecamente instável. De
uma maneira mais geral, o egoísmo, ou o parasitismo conseguido às custas
da boa vontade dos outros, pode funcionar no meu caso, se eu for um
indivíduo egoísta e solitário, dando-me satisfação pessoal. Mas eu não
posso desejar que toda a gente adopte o parasitismo egoísta como princípio
moral, quanto mais não seja porque então não teria ninguém para parasitar.
O imperativo kantiano parece funcionar para o caso de se falar verdade e
para outros casos mais. De uma maneira geral, não é fácil alargá-lo à
moralidade. Não obstante Kant, é tentador concordar com o meu apologista
hipotético quando afirma que a moral absolutista é habitualmente impelida
pela religião. Será sempre errado acabar com o sofrimento de uma paciente
terminal a seu pedido? Será sempre errado ter relações sexuais com alguém
do próprio sexo? Será sempre errado matar um embrião? Há aqueles que
julgam que sim, e os seus motivos são absolutos. Esses não toleram
qualquer discussão ou sequer conversa. Quem quer que discorde merece ser
abatido a tiro: metaforicamente, é claro, não literalmente – excepto no caso
de alguns médicos de clínicas americanas onde se praticam abortos (ver o
próximo capítulo). Felizmente, no entanto, a moral não tem de ser algo de
absoluto.
Os filósofos que se dedicam ao estudo da moral é que são os profissionais
no que se refere a pensar o certo e o errado. Como Robert Hinde
sucintamente disse, eles concordam que «os preceitos morais, não sendo
necessariamente construídos pela razão, deveriam ser defensáveis pela
razão» . Classificam-se de diversas maneiras, mas na terminologia
141

moderna a grande divisão é entre «deontologistas» (como Kant) e


«consequencialistas» (incluindo os «utilitaristas» como Jeremy Bentham,
1748-1832). Deontologia é um nome fino para a crença segundo a qual a
moralidade consiste em obedecer a regras. É literalmente a ciência do dever,
que vem do grego «aquilo que vincula». A deontologia não é bem a mesma
coisa que o absolutismo moral, mas no caso de um livro sobre religião não
há necessidade de me deter nessa distinção. Os absolutistas acreditam que
existem absolutos do certo e do errado, imperativos cuja justeza não faz
qualquer referência às consequências daqueles. Mais pragmáticos, os
consequencialistas defendem que a moralidade de um acto deveria ser
julgada pelas consequências deste. Uma versão do consequencialismo é o
utilitarismo, filosofia conotada com Bentham, com o seu amigo James Mill
(1773-1836) e com o filho deste, John Stuart Mill (1806-73). O utilitarismo
é, muitas vezes, condensado na lamentavelmente vaga divisa de Bentham
que diz: «A maior felicidade para a maior parte das pessoas é a criação da
moral e da legislação».
Nem todo o absolutismo deriva da religião. Apesar disso, é bastante
difícil defender princípios morais absolutistas aduzindo outras razões que
não religiosas. O único concorrente que me ocorre é o patriotismo,
especialmente em tempos de guerra. Como disse o notável realizador de
cinema espanhol Luis Buñuel, «Deus e a Pátria formam uma equipa
imbatível, superando todos os recordes no que respeita à opressão e ao
derramamento de sangue.» Os agentes do recrutamento militar dependem
fortemente do sentimento patriótico do dever evidenciado pelas suas
vítimas. Durante a Primeira Guerra Mundial, as mulheres distribuíam penas
brancas aos jovens que não andassem de farda.

Oh, não queremos perder-vos, mas achamos que deveis ir, Para o Rei e
a Pátria ajudarem a servir.

As pessoas desprezavam os objectores de consciência, mesmo os do país


inimigo, porque o patriotismo era considerado uma virtude absoluta. É
difícil superar um absoluto como o do soldado profissional, para quem só há
«minha Pátria, esteja certa ou esteja errada», pois o slogan obriga a matar
quem quer que os políticos um dia no futuro achem por bem apelidar de
inimigos. O modo de pensar consequencialista pode influenciar a decisão
política de entrar em guerra, mas quando esta é declarada o patriotismo
absolutista passa a sobrepor-se a tudo com uma força e um poder nunca
vistos fora do plano da religião. Um soldado que permita que os seus
pensamentos de moralidade consequencialista o persuadam a não dar o seu
máximo pode bem acabar por se ver julgado em conselho de guerra e até
mesmo executado.
O trampolim para esta discussão sobre filosofia moral foi uma hipotética
pretensão religiosa segundo a qual, sem um Deus, a moral é relativa e
arbitrária. Tirando Kant e outros filósofos da moral mais sofisticados, e
prestando embora o devido reconhecimento ao fervor patriótico, a fonte
preferencial da moralidade absoluta costuma ser um qualquer livro sagrado,
visto como possuidor de uma autoridade que vai muito além daquilo que o
seu historial é capaz de justificar. Na verdade, os partidários da autoridade
das Escrituras costumam infelizmente mostrar pouca curiosidade
relativamente às (normalmente muito duvidosas) origens históricas dos seus
livros sagrados. O próximo capítulo irá demonstrar que, seja como for, as
pessoas que dizem ter ido colher os seus princípios morais às Escrituras na
prática não o fazem realmente. E ainda bem que assim é, como de resto
essas pessoas deveriam achar caso pensassem duas vezes.

130 Mais do que aquelas a que poderia responder devidamente, pelo que peço desculpa.

131 O documentário em si, de resto muito bom, encontra-se disponível em


http://www.thegodmovie/com/index.php.

132 A expressão cheese-eating, do original, traduz normalmente um vago estereótipo ofensivo


relativamente à cultura francesa. Outro estigma presente em expressões idiomáticas norte-americanas, e
implícito no trecho que se segue, é o do alegado comportamento indigno do combatente francês ao
longo da História. No caso vertente, contudo, os epítetos parecem ser a expressão de um preconceito
chauvinista mais lato, a que também não é alheio o contexto político internacional da época. (N. das T.)

133 Desgostou-me ler no Guardian («Instintos animais» , de 27 de Maio de 2006) que O Gene Egoísta
é o livro preferido de Jeff Skilling, director executivo da famigerada Enron Corporation, que se reviu
no darwinismo social da obra. O jornalista do Guardian Richard Conniff adianta uma boa explicação
para o mal-entendido, em http://money.guardian.co.uk/workweekly/story/0,,1783900,00.html. Tentei
prevenir mal-entendidos semelhantes no novo prefácio à décima terceira edição de O Gene Egoísta, que
acabou de sair na Oxford University Press.

134 A reputação não se restringe ao ser humano. Recentemente viu-se que ela pode ser aplicada a um
dos casos clássicos do altruísmo recíproco verificados nos animais, a relação simbiótica entre os
pequenos peixes limpadores e os grandes peixes clientes. Numa experiência engenhosa em que foi dado
observar a um potencial peixe cliente o comportamento diligente de bodiões-limpadores isolados –
Labroides dimidiatus – em paralelo com Labroides rivais que se mostraram indiferentes às tarefas de
limpeza, verificou-se que era mais elevada a probabilidade de o peixe cliente escolher os primeiros. Ver
o artigo de R. Bshary e A. S. Grutter «Image scoring and cooperation in a cleaner fish mutualism»,
Nature 441, 22 de Junho de 2006, págs. 975-8.

135 M. Hauser e P. Singer, «Morality without religion», Free Inquiry 26, 1, 2006, 18-19.

136 Dostoievsky (2005, livro 2, capítulo 6).

137 Note-se que as convenções cromáticas nos Estados Unidos são precisamente ao contrário do que
acontece na Grã-Bretanha, onde o azul é a cor do Partido Conservador e o vermelho, tal como no resto
do mundo, é a cor tradicionalmente associada à esquerda política.

138 Uma vez mais, com o seu cinismo característico, H. L. Mencken definiu a consciência como a voz
interior que nos avisa de que pode estar alguém a ver.

139 «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles» (Mateus 7:12). (N. das T.)

140 Esta é a interpretação clássica do pensamento de Kant. No entanto, o distinto filósofo A. C.


Grayling defendeu de forma plausível (New Humanist, Julho-Agosto 2006) que, embora publicamente
Kant alinhasse pelas convenções religiosas do seu tempo, na verdade era ateu.

141 Hinde (2002). Ver também Singer (1994), Grayling (2003), Glover (2006).
7
O «bom» livro e as alterações do
142

zeitgeist moral
A política chacinou os seus milhares, mas a religião chacinou
as suas dezenas de milhares.
Sean O’Casey

Existem duas maneiras pelas quais as Escrituras podem ser fonte de


princípios morais ou de regras de vida. Uma é através de instruções directas,
como sejam os Dez Mandamentos, presentemente assunto de azeda
discórdia nas guerras da cultura que grassam nas zonas mais profundas dos
Estados Unidos da América. O outro é através do exemplo: Deus ou
qualquer outra personagem bíblica pode servir - usando o jargão
contemporâneo - de modelo de comportamento. Ambas as vias das
Escrituras, se seguidas religiosamente (o advérbio é aqui usado em sentido
metafórico, mas tendo em conta a sua origem), incentivam um sistema
moral que qualquer pessoa moderna civilizada, quer seja religiosa ou não,
deveria achar - não consigo dizê-lo de forma mais suave - obnóxio.
Para ser inteiramente justo, há que dizer que muito do que está na Bíblia
não é sistematicamente perverso, mas tão-só bizarro, como seria de esperar
de uma antologia atamancadamente colada, feita de documentos desconexos
que foram redigidos, revistos, traduzidos, distorcidos e «melhorados» ao
longo de nove séculos por centenas de autores, editores e copistas
anónimos, desconhecidos de nós e, na sua maioria, desconhecidos uns dos
outros também . Isto pode explicar alguma dessa gritante estranheza que
143

caracteriza a Bíblia. Mas infelizmente é este mesmo bizarro volume que os


zelotas da religião nos apresentam como fonte infalível da nossa moral e das
nossas regras de vida. Aqueles que pretendem alicerçar a sua moralidade
literalmente na Bíblia, ou não a leram ou não a compreenderam, como
muito bem observou o bispo John Shelby Spong em The Sins of Scripture.
Aliás, o bispo Spong é um bom exemplo de bispo progressista, cujas
crenças são tão avançadas que quase não são reconhecidas pela maioria
daqueles que se dizem cristãos. Um homólogo britânico é Richard
Holloway, recentemente aposentado de bispo de Edimburgo. O bispo
Holloway chega a descrever-se como um «cristão em convalescença». Tive
com ele um debate público em Edimburgo que foi um dos embates mais
estimulantes e interessantes em que já participei.
144

O Antigo Testamento
Comece-se no Génesis, com a muito apreciada história de Noé, que tem a
sua origem no mito babilónico de Utanapishtim e é conhecida das
mitologias mais antigas de várias culturas. A lenda dos animais a entrarem
na arca dois a dois é encantadora, mas a moral da história de Noé é
aterradora. Deus tinha os humanos em fraca conta, e por isso (com a
excepção de uma família) afogou-os a todos, incluindo crianças, e assim
como quem dá um bónus afogou também o resto dos (presumivelmente
inocentes) animais.
É claro que teólogos mais impacientados afirmarão que já não seguimos o
livro do Génesis à letra. Mas é aí que eu quero chegar! Debicamos aqui e
além quais as partes das Escrituras em que acreditamos, quais aquelas que
pomos de lado como sendo símbolos ou alegorias. Essas escolhas são uma
questão de decisão pessoal, tanto - ou tão pouco - quanto a decisão do ateu
em seguir este ou aquele preceito moral será uma decisão pessoal
desprovida de um fundamento absoluto. Se algum destes casos é «uma
moralidade do tipo vai indo e vai vendo», então o outro também é.
De qualquer modo, apesar das boas intenções do teólogo mais sofisticado,
um número assustadoramente elevado de pessoas continua a seguir à risca
os seus livros sagrados, incluindo a história da arca de Noé. De acordo com
a empresa de sondagens Gallup, essas pessoas representam cerca de 50 por
cento do eleitorado norte-americano. E não há dúvida de que nessa situação
se incluirão muitos desses homens santos da Ásia que atribuíram a
responsabilidade do tsunami de 2004 não à deslocação de uma placa
tectónica, mas aos pecados humanos, que vão desde beber e dançar em
145

bares a violar alguma regra fútil relacionada com o sétimo dia da semana.
Imbuídos da história de Noé e ignorantes de tudo que não seja os
ensinamentos bíblicos, quem os há-de censurar por isso? Toda a sua
educação os levou a ver os desastres naturais em ligação com os assuntos
dos humanos, como vinganças pelos pequenos delitos por estes praticados,
em vez de algo tão impessoal como são as placas tectónicas. E a propósito,
que presumido egocentrismo esse, o de acreditar que os incidentes sísmicos,
à escala a que um deus (ou uma placa tectónica) consegue actuar, têm de ter
sempre uma conexão humana. Por que razão haveria um ser divino, que tem
de ter em mente a criação e a eternidade, de querer saber das nossas
insignificantes más acções? Como nós, humanos, nos armamos em
importantes, pretendendo alargar os nossos míseros pecadilhos a uma
dimensão cósmica!
Quando entrevistei para a televisão o reverendo Michael Bray, um
proeminente activista antiaborto dos Estados Unidos da América, perguntei-
lhe por que motivo os cristãos evangélicos são tão obcecados pelas
tendências sexuais de cada um, tais como a homossexualidade, que não
interferem com a vida de mais ninguém. A resposta que me deu apelava a
uma espécie de autodefesa. Os cidadãos inocentes correm o risco de se
tornar danos colaterais quando Deus escolhe uma cidade para a atingir com
um desastre natural por alojar pecadores. Em 2005, a bela cidade de Nova
Orleães foi catastroficamente alagada após a passagem do furacão
«Katrina». O reverendo Pat Robertson, um dos televangelistas mais
conhecidos dos Estados Unidos e antigo candidato à presidência, terá então
culpado pelo furacão uma comediante lésbica que por acaso vivia em Nova
Orleães. Seria de pensar que um Deus omnipotente era capaz de melhor
146

pontaria, caso quisesse atingir os pecadores do zapping: quiçá um criterioso


ataque cardíaco, em vez da destruição maciça de uma cidade inteira só
porque, por acaso, era o domicílio de uma comediante lésbica.
Em Novembro de 2005, os cidadãos de Dover, na Pensilvânia, votaram a
favor da saída da direcção da escola local do conjunto de fundamentalistas
que haviam trazido à cidade notoriedade, para não dizer o ridículo, ao tentar
impor o ensino do «desígnio inteligente». Quando Pat Robertson soube que
os fundamentalistas tinham sido democraticamente derrotados nas votações,
dirigiu a Dover um severo aviso:

Gostaria de dizer aos bons cidadãos de Dover que, se houver um


desastre na vossa zona, não recorram a Deus. Vocês recusaram-no na
vossa cidade e não se admirem se ele não vos vier ajudar quando os
problemas começarem, se começarem, e não estou a dizer que isso vai
acontecer. Mas se assim for, lembrem-se de que expulsaram Deus da
vossa cidade. E, se tal acontecer, depois não peçam a sua ajuda porque
ele pode não vos atender. 147

Os comentários de Pat Robertson seriam pura comédia inofensiva se o seu


autor não fosse tão representativo daqueles que hoje em dia detêm poder e
influência nos Estados Unidos.
Na destruição de Sodoma e Gomorra, o equivalente a Noé, escolhido para
ser poupado juntamente com a sua família, foi Lot, sobrinho de Abraão,
porque era incomparavelmente justo. Dois anjos foram enviados a Sodoma
para avisar Lot de que saísse da cidade antes de esta ser assolada pelo
enxofre. Hospitaleiro, Lot recebeu os anjos em sua casa, após o que todos os
homens de Sodoma se juntaram em redor e exigiram que Lot entregasse os
anjos para (que outra coisa seria de esperar?) os sodomizarem: «Onde estão
os homens que entraram na tua casa esta noite? Trá-los para fora a fim de os
conhecermos» (Génesis 19: 5). Sim, «conhecer» tem o habitual significado
eufemístico da versão autorizada da Bíblia, o que, no contexto, é bastante
curioso. A galhardia com que Lot se recusa a ceder a tal exigência sugere
que Deus terá acertado ao elegê-lo como único homem bom de Sodoma.
Mas a aura de Lot fica manchada pelos termos da sua recusa: «Suplico-vos,
meus irmãos, não cometais semelhante maldade. Eu tenho duas filhas ainda
virgens. Eu vo-las trarei. Fazei delas o que vos aprouver, mas não façais mal
a esses homens, porque vieram acolher-se à sombra do meu tecto» (Génesis
19: 7-8).
Independentemente de outros significados que esta história possa
encerrar, ela diz-nos seguramente alguma coisa acerca do respeito pelas
mulheres nesta cultura intensamente religiosa. O que acabou por acontecer
foi que a oferta, por troca, da virgindade das filhas se mostrou
desnecessária, já que os anjos conseguiram repelir os meliantes cegando-os
miraculosamente. Depois avisaram Lot de que fugisse de imediato com a
sua família e os seus animais, porque a cidade estava prestes a ser destruída.
Toda a família escapou excepto a infeliz esposa, a quem o Senhor
transformou numa estátua de sal porque cometeu o crime - relativamente
brando, dir-se-ia - de olhar para trás para mirar o aparato pirotécnico.
As duas filhas de Lot voltam a aparecer por breves instantes na história.
Após a mãe ter sido transformada numa estátua de sal, ficaram a viver com
o pai numa caverna, no cimo de um monte. Famintas de companhia
masculina, decidiram embriagar o pai e deitar-se com ele. Lot estava longe
de se poder aperceber de quando a filha mais velha se deitou na cama ou de
quando se levantou, mas não estava demasiado embriagado para a
engravidar. Na noite seguinte, as duas filhas concordaram que seria a vez da
mais nova. Uma vez mais, Lot estava demasiado embriagado para se
aperceber, e engravidou-a também a ela (Génesis 19: 31-6). Se esta família
disfuncional era o melhor que Sodoma tinha para oferecer quanto a
preceitos morais, então é possível que alguns comecem a nutrir alguma
solidariedade para com Deus e o seu criterioso enxofre.
A história de Lot e dos sodomitas encontra um estranho eco no capítulo
19 do Livro dos Juízes, num episódio em que um levita (sacerdote) de que o
texto não refere o nome viajava com a sua concubina em Guibeá. Passaram
a noite em casa de um velho hospitaleiro. Enquanto ceavam, os homens da
cidade chegaram e bateram à porta, exigindo que o velho entregasse o seu
convidado «a fim de o conhecerem». Empregando quase as mesmas
palavras que Lot usara, o velho disse: «Não, meus irmãos! Eu vo-lo peço,
por favor; não pratiqueis semelhante mal! Agora que este homem entrou em
minha casa, não pratiqueis tal desonra! Eis a minha filha, que está virgem, e
a concubina dele; vou fazê-las sair; abusai delas; fazei-lhes o que vos
agradar! A este homem, porém, não lhe façais uma infâmia desta natureza.»
(Juízes 19: 23-4). Uma vez mais, o ethos misógino transparece com toda a
clareza. Considero a expressão «abusai delas» especialmente sinistra.
Divirtam-se humilhando e violando a minha filha e a concubina deste
sacerdote, mas tende respeito pelo meu convidado, que é, afinal, homem.
Apesar da semelhança entre as duas histórias, o desfecho foi menos feliz
para a concubina do levita do que para as filhas de Lot.
O levita entregou-a à multidão, que a violou consecutivamente durante
toda a noite: «Eles conheceram-na e satisfizeram com ela a sua luxúria
durante toda a noite e só a deixaram livre ao amanhecer. Ao raiar da aurora,
a mulher caiu por terra à porta da casa do homem onde estava o seu marido,
até vir o dia» (Juízes 19: 25-6). De manhã, o levita, encontrando a
concubina prostrada à porta da casa, disse - num tom que hoje podemos
achar de uma rispidez insensível: «Levanta-te e vamo-nos.» Mas ela não se
mexeu. Estava morta. Então ele «pegou num cutelo e, agarrando na sua
concubina, esquartejou-a membro a membro em doze pedaços, enviando-os
depois a todas as tribos de Israel». Sim, leu bem, caro leitor. Vá ao Livro
dos Juízes, capítulo 19, versículo 29. Vamos ser de novo generosos e
atribuir tudo isto à ubíqua bizarria da Bíblia. Na realidade, o episódio não é
tão demencial como parece. Houve um motivo - provocar vingança - e teve
êxito, já que provocou uma guerra de represálias contra a tribo de
Benjamim, na qual, como enlevadamente regista o Livro dos Juízes no
capítulo 20, mais de 60 000 homens foram mortos. Esta história é tão
parecida com a de Lot que é impossível não nos perguntarmos se um
fragmento de manuscrito não terá acidentalmente ficado mal arrumado em
algum scriptorium há muito esquecido: um exemplo ilustrativo, enfim, da
origem errática dos textos sagrados.
O tio de Lot, Abraão, foi o pai fundador das três «grandes» religiões
monoteístas. O seu estatuto de patriarca confere-lhe uma importância só
muito ligeiramente inferior à do próprio Deus enquanto modelo de
comportamento. Mas que moralista moderno iria querer segui-lo?
Relativamente cedo na sua longa vida, Abraão foi para o Egipto, onde, ao
lado da mulher, Sara, enfrentou um período de escassez e fome. Apercebeu-
se então de que uma mulher assim bela seria cobiçada pelos Egípcios, e que
assim a sua própria vida, enquanto marido, poderia estar em perigo. Por isso
decidiu fazê-la passar por sua irmã. Foi nesta qualidade que ela foi levada
para o harém do faraó, sob cuja protecção Abraão ficou rico. Deus
desaprovou tal aconchego, e enviou pragas sobre o faraó e a sua casa (e
porque não sobre Abraão?). Compreensivelmente magoado com o agravo, o
faraó exigiu saber por que motivo Abraão não lhe tinha dito que Sara era
sua mulher. Depois devolveu-a a Abraão e expulsou-os do Egipto (Génesis
12: 18-19). Estranhamente, parece que o casal tentou mais tarde a mesma
proeza, desta feita com Abimélec, rei de Guerar. Também ele foi induzido
por Abraão a casar com Sara, uma vez mais tendo sido levado a acreditar
que ela era irmã de Abraão e não sua mulher (Génesis 20: 2-5). Também ele
se mostrou indignado em termos idênticos aos do faraó, e é impossível não
se sentir solidariedade para com ambos. Será a semelhança outro indício de
um défice de fiabilidade textual?
Estes episódios desagradáveis na história de Abraão são pecados menores
quando comparados com a famigerada história do sacrifício do filho Isaac
(que as escrituras islâmicas contam como se tendo passado com o outro
filho de Abraão, Ismael). Deus ordenou a Abraão que oferecesse o seu há
muito desejado filho em holocausto. Abraão construiu um altar, colocou
lenha sobre ele e amarrou Isaac sobre a lenha. Estava já de cutelo em punho,
pronto para a matança, quando um anjo interveio dramaticamente trazendo
a notícia de uma mudança de planos à última hora: afinal Deus estava só a
brincar, submetendo Abraão à «tentação» e testando-lhe a fé. Um moralista
moderno não pode deixar de imaginar como pode uma criança algum dia
recuperar de um tal trauma psicológico. Pelos padrões da moralidade
moderna, esta vergonhosa história é simultaneamente um exemplo de abuso
de menores, de tratamento tirânico em duas relações de poder assimétricas,
e o primeiro caso de que há registo da defesa utilizada em Nuremberga:
«Estava apenas a cumprir ordens.» Mesmo assim, esta lenda é um dos
grandes mitos fundadores das três religiões monoteístas.
Também aqui, os teólogos modernos dirão que a história do sacrifício de
Isaac por Abraão não deve ser entendida literalmente. E também aqui, a
resposta adequada é dupla. Em primeiro lugar, são muitíssimas, mesmo nos
dias de hoje, as pessoas que entendem o que está nas Escrituras como facto
literal, e muitas dessas pessoas detêm grande poder político sobre nós,
sobretudo nos Estados Unidos e no mundo islâmico. Em segundo lugar, se
não for como facto literal, como devemos entender a história? Como uma
alegoria? Nesse caso, alegoria de quê? Nada de louvável, por certo. Como
uma lição moral? Mas que tipo de moral se poderá retirar desta história
medonha? Note-se que apenas estou, para já, a dar por adquirido que
efectivamente não retiramos a nossa moral das Escrituras. Ou então, se o
fazemos, é escolhendo aqui e além os bocados agradáveis e rejeitando os
desagradáveis. Mas então iremos precisar dum critério independente para
decidir quais os bocados morais: um critério que, venha ele donde vier, não
pode ser das próprias Escrituras, e terá presumivelmente de estar disponível
para todos, quer sejamos religiosos ou não.
Os apologistas chegam mesmo a descortinar alguma decência na
personagem de Deus, nesta história deplorável. Não foi bom em ter
poupado a vida de Isaac no último instante? No caso pouco provável de
algum dos meus leitores se deixar persuadir por esta obscena justificação,
remeto-o para outra história de sacrifício humano, que teve um desfecho
mais infeliz. No Livro dos Juízes, capítulo 11, o líder guerreiro Jefté fez um
voto a Deus segundo o qual, se Ele lhe garantisse a vitória sobre os
Amonitas, Jefté ofereceria em holocausto, sem hesitar, «quem quer que saia
das portas da minha casa para me vitoriar pelo meu regresso». Jefté
derrotou efectivamente os Amonitas («com grande matança», como é da
praxe no Livro dos Juízes) e regressou vitorioso a casa. Sem grande
surpresa, a sua filha, filha única, saiu da casa para o saudar (tocando
tamborim e dançando), calhando-lhe - ó desgraça! - ser ela a primeira
criatura viva a fazê-lo. É compreensível que Jefté se tenha arrepelado e
rasgado as próprias vestes, mas nada podia fazer. É óbvio que Deus estava à
espera do prometido holocausto e, dadas as circunstâncias, a filha acatou o
sacrifício com o devido decoro. Apenas pediu que a deixassem ir para as
montanhas durante dois meses carpir a sua virgindade. Ao fim desse tempo,
regressou, resignada, e Jefté assou-a no fogo. Desta vez Deus resolveu não
intervir.
As monumentais fúrias de que Deus é acometido sempre que os seus
eleitos se enlevam com um deus rival têm todas as parecenças com a pior
espécie de ciúme sexual, e uma vez mais devem surgir aos olhos do
moralista de hoje como sendo tudo menos um bom modelo de
comportamento. A tentação de infidelidade sexual é facilmente
compreensível mesmo para aqueles que a ela não cedem, e além do mais é
um ingrediente fundamental da ficção e do drama, desde Shakespeare à
farsa de alcova. Mas a tentação claramente irresistível de se prostituir com
deuses estrangeiros é algo com que nós, modernos, temos dificuldade em
criar empatia. Na minha ingénua maneira de ver, «não terás outros deuses
além de mim» parece um mandamento suficientemente fácil de guardar:
uma brincadeira, quando comparado com «não desejarás a mulher do
próximo» (ou qualquer parte da mesma). E no entanto, ao longo de todo o
Antigo Testamento, com a mesma previsível regularidade de uma farsa de
alcova, bastava Deus virar costas por um instante e logo os Filhos de Israel
se enrolavam com Baal, com uma rameira qualquer ou com um ídolo. Ou 148

então, naquilo que foi um incidente calamitoso, com um bezerro de ouro...


Moisés é um modelo com mais probabilidades do que Abraão para atrair
seguidores entre as três religiões monoteístas. Abraão pode até ser o
patriarca primacial, mas, se alguém merece a designação de fundador
doutrinal do Judaísmo e das religiões dele derivadas, esse alguém é Moisés.
Aquando do episódio do bezerro de ouro, ele estava longe, em segurança,
no cimo do monte Sinai, conversando com Deus e dele recebendo tábuas de
pedra gravada. O povo lá em baixo (ameaçado de morte se acaso tentasse
sequer tocar na montanha) não perdeu tempo:

Vendo que Moisés demorava a descer do monte, o povo reuniu-se à


volta de Aarão e disse-lhe: «Vamos! Façamos para nós um deus que
caminhe à nossa frente, pois a Moisés, esse homem que nos persuadiu a
sair do Egipto, não sabemos o que lhe terá acontecido.» (Êxodo 32: 1)

Aarão pôs toda a gente a reunir o ouro que tinham, fundiu-o e fez um
bezerro de ouro e para esta novel divindade construiu um altar, para que
pudessem todos começar a oferecer sacrifícios.
A verdade é que deviam ter pensado duas vezes antes de se porem com
folestrias nas costas de Deus. Mesmo estando no cimo de uma montanha,
bem vistas as coisas ele era omnisciente e, portanto, não perdeu tempo e
despachou Moisés à pressa por ali abaixo, na qualidade de seu mandatário.
Moisés desceu o monte transportando as tábuas de pedra em que Deus
escrevera os Dez Mandamentos. Quando chegou e viu o bezerro de ouro,
ficou tão furibundo que deixou cair as tábuas e as partiu (Deus depois deu-
lhe outro conjunto para substituir aquele, por isso não houve problema).
Moisés agarrou no bezerro de ouro, queimou-o, reduziu-o a pó, misturou-o
com água e obrigou o povo a engoli-lo. Depois mandou os Levitas, a tribo
sacerdotal, passar a fio de espada tantos quantos pudessem. Isto resultou em
cerca de 3000 mortos, quantidade que se suporia suficiente para acalmar o
ciumento amuo de Deus. Mas não, Deus ainda não estava satisfeito. No
último versículo deste terrível capítulo, o seu gesto de despedida foi lançar
uma praga sobre o que restava do povo, «por ter instigado Aarão a fazer o
bezerro».
O Livro de Números conta como Deus incitou Moisés a atacar os
Madianitas. O seu exército chacinou num ápice todos os homens e
incendiou todas as cidades madianitas, mas poupou as mulheres e as
crianças. Este misericordioso comedimento da parte dos soldados enfureceu
Moisés, que deu ordens para que todos os rapazes fossem mortos, bem
como todas as mulheres não virgens. «Mas conservai em vida todas as
raparigas que não tiveram relações com homens e elas serão para vós»
(Números 31: 18). Não, Moisés não seria grande modelo para os moralistas
modernos.
Não obstante os comentadores religiosos modernos atribuírem um
significado simbólico ou alegórico ao massacre dos Madianitas, esse
simbolismo aponta na direcção errada. Tanto quanto se sabe dos relatos
bíblicos, os infelizes Madianitas foram as vítimas de genocídio na sua
própria terra. Mesmo assim, o seu nome perdura no folclore cristão, na letra
de um popular hino (que passados 50 anos ainda sei cantar de cor, ao som
de duas músicas diferentes, ambas num sinistro tom menor):

Cristão, estás a vê-los


O solo sagrado pisar?
Como as tropas de Madiã
Por aí rondam sem cessar?
Cristão, ergue-te e esmaga-os,
E as perdas por ganhos conta;
Esmaga-os todos em nome
Da santa cruz que desponta.

Ah, pobres Madianitas, difamados e chacinados desta sorte, para serem


recordados como meros símbolos poéticos de malvadez universal num hino
da época vitoriana.
O rival deus Baal parece ter sido um eterno sedutor de adoradores
volúveis. No capítulo 25 do Livro de Números, muitos israelitas foram
seduzidos pelas mulheres moabitas a oferecerem sacrifícios a Baal. Deus
reagiu com a fúria característica, ordenando a Moisés: «Reúne todos os
chefes do povo e manda-os enforcar diante do Senhor em pleno dia; depois
a ira do Senhor se afastará de Israel.» Não é possível, uma vez mais,
deixarmos de nos admirar com esta visão extraordinariamente draconiana
do pecado de flertar com deuses rivais. À luz do nosso moderno sentido dos
valores e da justiça, parece um pecado sem importância quando comparado,
por exemplo, com a oferta das filhas para uma violação em série. Mais
outro exemplo, afinal, do desfasamento entre a moral das Escrituras e a
moral moderna (a que é tentador chamar, antes, civilizada). Mas um
exemplo que, por outro lado, se torna facilmente compreensível em termos
da teoria dos memes e das qualidades de que uma divindade necessita para
sobreviver no fundo memético.
A tragifarsa do ciúme maníaco de Deus relativamente a outros deuses é
recorrente ao longo do Antigo Testamento. Este ciúme é que está por detrás
do primeiro dos Dez Mandamentos (os das tábuas que Moisés partiu: Êxodo
20, Deuteronómio 5), surgindo de maneira ainda mais proeminente nos
mandamentos substitutos (e em tudo o mais bastante diferentes) que Deus
forneceu para substituir as tábuas partidas (Êxodo 34). Tendo prometido
expulsar das suas terras os infelizes dos Amorreus, Cananeus, Heteus,
Ferezeus, Heveus e Jebuseus, Deus passa por fim ao que realmente
interessa: a rivalidade com deuses!

... derrubareis os seus altares, quebrareis os seus monumentos e


cortareis as suas árvores sagradas. Não adorarás nenhum outro deus,
pois o Senhor chama-se zeloso; é um Deus zeloso. Não façais aliança
alguma com os habitantes desta terra porque, quando se prostituem aos
seus deuses e lhes oferecem sacrifícios, poderiam aliciar-te e comerias
as vítimas dos seus sacrifícios; poderias também escolher, entre as suas
filhas, mulheres para os teus filhos; e essas mulheres, prostituindo-se
aos seus deuses, arrastariam os teus filhos, que também se prostituiriam
a esses deuses. Não farás para ti deuses de metal fundido (Êxodo 34:
13-17).

Sim, eu sei, é claro que os tempos mudaram e nenhum líder religioso da


actualidade (tirando os talibãs ou os seus equivalentes entre os cristãos
norte-americanos) pensa como Moisés. Mas é aí mesmo que eu quero
chegar. Pretendo apenas demonstrar que, seja qual for a origem da
moralidade moderna, ela não pode ser a Bíblia. Não se pode permitir que os
apologistas se limitem a argumentar que a religião lhes faculta um canal
privilegiado para saberem como definir o que é bom e o que é mau - uma
espécie de fonte bem colocada, a que os ateus não têm acesso. Não
podemos permitir que o façam, nem que recorram ao conhecido truque de
interpretar só certas escrituras seleccionadas e de dizer que são
«simbólicas» e não literais. Através de que critério é que se decide quais os
trechos simbólicos e quais os literais?
A limpeza étnica iniciada nos tempos de Moisés é levada a um extremo
sanguinolento no Livro de Josué, um texto marcante pelos massacres
sanguinários que relata e pelo prazer xenófobo com que o faz. Como reza o
velho e encantador cântico, «Josué lutou na batalha de Jericó e as muralhas
desabaram... Não há ninguém como o bom velho Josué-é, da batalha de
Jericó.» O bom velho Josué não descansou enquanto não «passaram ao fio
da espada quanto nela encontraram, homens e mulheres, crianças e velhos, e
os bois, as ovelhas e os jumentos» (Josué 6: 21).
Também desta vez, os teólogos hão-de vir com protestos e dizer que nada
disso aconteceu. Pois não - a história diz que as muralhas desabaram apenas
com o som dos homens a gritar e a tocar as trombetas, logo não aconteceu -
mas não é isso que interessa. O que interessa é que, quer seja verdade ou
não, a Bíblia é-nos apresentada como fonte da nossa moralidade. E a
história bíblica da destruição de Jericó por Josué, tal como a invasão da
Terra Prometida em geral, em nada se distingue, moralmente, da invasão da
Polónia por Hitler ou dos massacres dos Curdos e dos Árabes das zonas
pantanosas do Iraque por Saddam Hussein. A Bíblia pode até ser uma
empolgante e poética obra de ficção, mas não é o tipo de livro que se deva
dar a uma criança para lhe moldar a moral. De resto, a história de Josué em
Jericó é assunto de uma interessante experiência sobre a moralidade infantil,
a referir mais adiante neste capítulo.
Não se pense, já agora, que a personagem de Deus presente em toda esta
história alberga quaisquer dúvidas ou escrúpulos acerca dos massacres e
genocídios de que a ocupação da Terra Prometida se fez acompanhar. Pelo
contrário, as suas ordens, por exemplo em Deuteronómio 20, são
implacavelmente explícitas. Ele faz uma clara distinção entre o povo que
vive na terra que é preciso tomar e aqueles que vivem longe dela. Estes
últimos devem ser convidados a render-se pacificamente. Se recusarem,
todos os homens serão mortos e as mulheres levadas para procriação. Em
contraste com este tratamento relativamente humano, veja-se o que estava
guardado para aquelas tribos que tinham o infeliz azar de já habitarem o
Lebensraum prometido: «Quanto às cidades daqueles povos que o Senhor,
teu Deus, te há-de dar por herança, não deixarás subsistir nelas nem uma só
alma. Votarás à destruição, o heteu, o amorreu, o cananeu, o ferezeu, o
heveu e o jebuseu, como te ordenou o Senhor, teu Deus.»
Será que essas pessoas que apontam a Bíblia como inspiração para a
rectidão moral têm a mais pequena noção do que na realidade lá está
escrito? De acordo com o Levítico 20, são merecedoras da pena de morte as
seguintes ofensas: amaldiçoar os pais; cometer adultério; ter relações com a
madrasta ou com a nora; a homossexualidade; desposar uma mulher mais a
filha; a bestialidade (e, como se já não chegasse o agravo, há que matar
também o pobre do bicho). E, claro, também se é executado por trabalhar no
sétimo dia da semana: este aspecto é constantemente repisado ao longo do
Antigo Testamento. No Livro de Números 15, os filhos de Israel encontram
um homem no deserto a apanhar lenha no dia proibido. Levam-no e
perguntam a Deus o que fazer com ele. Acontece que nesse dia Deus não
está para meias medidas. «Então o Senhor disse a Moisés: “Esse homem
será morto. Toda a assembleia o apedrejará, fora do acampamento.” De
facto, toda a assembleia o fez sair do acampamento, apedrejando-o, e foi
morto.» Teria este inofensivo homem que apanhava lenha, uma mulher e
filhos para lhe chorarem a morte? Terá gemido de medo quando as
primeiras pedras voaram na sua direcção? Terá gritado de dor enquanto a
fuzilaria lhe esmagava a cabeça? O que hoje me choca nestas histórias não é
o facto de terem acontecido, até porque provavelmente não aconteceram. O
que me deixa de queixo caído é as pessoas de hoje basearem as suas vidas
num modelo de comportamento medonho como é Javé - e, pior ainda, que
tentem mandar em nós, impingindo-nos o mesmo monstro maligno (quer
ele seja real ou ficção).
O poder político desses maníacos das Tábuas da Lei que hoje grassam na
América é especialmente lamentável nessa grande república cuja
Constituição, afinal, foi redigida por homens do iluminismo em termos
explicitamente seculares. Se levássemos os Dez Mandamentos a sério,
classificaríamos a adoração de falsos deuses e a construção de ídolos em
primeiro e segundo lugares na lista de pecados. Em vez de condenar o
inqualificável vandalismo dos talibãs, que fizeram explodir os Budas de
Bamyan, estátuas de 45 metros de altura localizadas nas montanhas do
Afeganistão, louvá-los-íamos pela sua justa devoção. Aquilo que tomamos
por vandalismo foi sem dúvida motivado por um sincero zelo religioso.
Demonstra-o vividamente uma história verdadeiramente bizarra, que foi o
lead de um artigo no Independent (londrino) de 6 de Agosto de 2005. Sob o
título de primeira página, KA destruição de Meca», este periódico relatava o
seguinte:
A histórica Meca, berço do Islão, está sob um ataque sem precedentes,
desferido por fanáticos religiosos. A rica e multifacetada história da
cidade santa quase desapareceu... Neste momento, este que é o
verdadeiro local do nascimento do Profeta Maomé enfrenta os
buldózeres, com a conivência das autoridades religiosas sauditas, cuja
interpretação ortodoxa do Islão os está a obrigar a obliterar a sua
própria herança... O motivo por detrás da destruição é o medo fanático
que os wahabitas têm de que locais de interesse histórico e religioso
possam dar origem à idolatria ou ao politeísmo, isto é, ao culto de
deuses múltiplos e potencialmente idênticos.

A prática da idolatria na Arábia Saudita continua a ser, em princípio,


punível com a decapitação. 149

Não acredito que haja um ateu no mundo que fosse capaz de arrasar Meca
- ou as catedrais de Chartres, de York ou de Nôtre-Dame, o Pagode Shwe,
os templos de Quioto ou, claro, os Budas de Bamyan. Como disse Steven
Weinberg, físico norte-americano galardoado com o Prémio Nobel, «a
religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, haveria sempre
gente boa a fazer o bem e gente má a fazer o mal. Mas é preciso a religião
para pôr gente boa a fazer o mal.» Blaise Pascal (o tal da aposta) disse algo
semelhante: «Os homens nunca fazem o mal tão completa e alegremente
como quando o fazem por convicção religiosa.»
O meu principal objectivo aqui não foi mostrar que não devemos ir buscar
a nossa moral às Escrituras (embora seja essa a minha opinião). O que
pretendi foi demonstrar que efectivamente nós (e aí incluo a maioria das
pessoas religiosas) não vamos buscar a nossa moral às Escrituras. Se o
fizéssemos, guardaríamos rigorosamente o sabat e acharíamos justo e
adequado executar quem quer que optasse por não o fazer. Apedrejaríamos
até à morte toda a noiva que não conseguisse provar a sua virgindade, se o
marido se afirmasse insatisfeito com ela. Executaríamos as crianças
desobedientes. Iríamos... mas mais devagar. Talvez eu tenha sido injusto.
Os cristãos simpáticos terão passado toda esta secção a protestar: toda a
gente sabe que o Antigo Testamento é bastante desagradável. O Novo
Testamento de Jesus desfaz os danos causados e deixa tudo bem outra vez.
Não é?

Será o Novo Testamento melhor?


Bem, não há como negar que, de um ponto de vista moral, Jesus
representa uma enorme melhoria em relação ao ogre cruel do Antigo
Testamento. De facto, a ter existido, Jesus (ou quem quer que lhe tenha
escrito o guião, caso não tenha sido ele) foi certamente um dos maiores
inovadores da ética que a História conheceu. O Sermão da Montanha é
muito avançado para o seu tempo. O seu «dar a outra face» adiantou-se a
Gandhi e a Martin Luther King em 2000 anos. Não foi por acaso que
escrevi um artigo intitulado «Ateus por Jesus» (e tive posteriormente o
prazer de ser presenteado com uma T-shirt ostentando essa frase) .
150

Mas a superioridade moral de Jesus confirma precisamente a minha ideia.


A ética das Escrituras com que fora educado não o satisfazia. Afastou-se
explicitamente delas, por exemplo quando desvalorizou os avisos severos
quanto a desrespeitar o sabat. «O sábado foi feito para o homem e não o
homem para o sábado» é uma sábia generalização que acabou por se
transformar num provérbio. Uma vez que uma das teses principais deste
capítulo é que não retiramos, nem devemos retirar, a nossa moral das
Escrituras, Jesus tem de ser reconhecido como modelo dessa mesma tese.
Há que admitir que os valores da família, na visão de Jesus, não tinham
muito que os recomendasse. Tinha com a mãe modos ríspidos, a roçar a
brusquidão, e incentivou os discípulos a abandonarem as suas famílias para
o seguir. «Se alguém vem ter comigo e não aborrece a seu pai, mãe, esposa,
filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo.» A
comediante norte-americana Julia Sweeney exprimiu assim o seu espanto
no seu espectáculo Letting Go of God: «Não é isso que fazem os cultos?
151

Obrigam-nos a rejeitar a família para serem eles a inculcar-nos o que


querem?» 152

Não obstante os seus valores familiares algo suspeitos, os ensinamentos


éticos de Jesus eram - pelo menos quando comparados com essa calamidade
ética que é o Antigo Testamento - admiráveis; mas há outros ensinamentos
no Novo Testamento que nenhuma pessoa de boa índole poderá defender.
Refiro-me especificamente à doutrina central do Cristianismo: a da
«expiação» pelo «pecado original». Este ensinamento, que está no cerne de
toda a teologia do Novo Testamento, é moralmente quase tão obnóxio como
a história de Abraão a preparar-se para transformar Isaac em churrasco, à
qual de resto se assemelha - e não é por acaso que assim é, como Geza
Vermes torna claro em The Changing Faces of Jesus. O próprio pecado
original provém directamente do Antigo Testamento, do mito de Adão e
Eva. O pecado destes - comer o fruto de uma árvore proibida - parece pouco
para sequer merecer uma reprimenda. Contudo, a natureza simbólica do
fruto (o conhecimento do bem e do mal, que na prática seria, afinal, o
conhecimento de que estavam nus) foi suficiente para transformar a sua
aventura scrumpista na mãe e no pai de todos os pecados. Eles e todos os
153

seus descendentes foram expulsos para sempre do Jardim do Paraíso,


privados do dom da vida eterna e condenados a gerações de trabalho árduo,
respectivamente no campo e no parto.
Até aqui, só vinganças: mas, tratando-se do Antigo Testamento, não há
que estranhar. A teologia do Novo Testamento acrescenta uma nova
injustiça, rematada por um novo sadomasoquismo tão vil que quase
ultrapassa o do Antigo Testamento. Pensando bem, é espantoso que uma
religião adopte um instrumento de tortura e de execução como seu símbolo
sagrado, muitas vezes usado ao pescoço. O comediante Lenny Bruce
observou, sarcástica mas correctamente, que «se Jesus tivesse sido morto há
20 anos, as crianças das escolas católicas usavam, em vez de cruzes,
cadeirinhas eléctricas à volta do pescoço». Mas a Teologia e a teoria do
castigo subjacentes são ainda piores. Diz-se, então, que o pecado de Adão e
Eva terá passado através da descendência masculina - transmitido pelo
sémen, segundo Santo Agostinho. Mas que espécie de filosofia ética é essa
que condena todas as crianças, mesmo antes de nascerem, a herdar o pecado
de um antepassado remoto? Acrescente-se a propósito que Santo Agostinho,
que com razão a si mesmo se considerava uma autoridade sobre a questão
do pecado, foi quem cunhou a expressão «pecado original». Antes dele era
conhecido como «pecado ancestral». As sentenças e as discussões de Santo
Agostinho resumem, quanto a mim, a preocupação doentia com o pecado
por parte dos primeiros teólogos cristãos. Podiam ter dedicado as suas
páginas e sermões ao enaltecimento do céu salpicado de estrelas, das
montanhas e das florestas verdes, dos mares e dos coros das aves ao
amanhecer. Estes lá são mencionados de vez em quando, mas o enfoque
cristão incide de forma esmagadora sobre o pecado, pecado, pecado,
pecado, pecado. Mas que sarna de preocupação, que acaba por dominar
completamente as nossas vidas! Na sua Letter to a Christian Nation, Sam
Harris é de uma mordacidade magnífica quando diz: «A vossa principal
preocupação parece ser que o Criador do universo se ofenda com alguma
coisa que as pessoas façam quando estão nuas. Esse vosso puritanismo
contribui diariamente para o aumento da miséria humana.»
Agora, o sadomasoquismo. Deus encarnou num homem, Jesus, de modo a
que ele fosse torturado e executado para expiação do pecado hereditário de
Adão. Desde que São Paulo expôs esta repugnante doutrina, Jesus tem sido
adorado como o redentor de todos os nossos pecados. Não só do pretérito
pecado de Adão, como também de pecados futuros, quer os vindouros os
decidam cometer ou não!
Em jeito de parêntesis, é de referir que ocorreu a várias pessoas, incluindo
Robert Graves no seu romance épico King Jesus, que o pobre Judas
Iscariotes foi maltratado pela História, dado que a sua «traição» fazia,
afinal, parte do plano cósmico. O mesmo se poderá dizer dos alegados
assassinos de Jesus. Se Jesus queria ser traído e depois assassinado, de
modo a poder redimir-nos a todos, não é injusto da parte dos que se
consideram redimidos atirarem as culpas, ao longo dos tempos, para Judas e
para os Judeus? Já referi a longa lista dos evangelhos não-canónicos. Um
manuscrito que reclama ser um evangelho perdido, o Evangelho de Judas,
foi recentemente traduzido, após o que recebeu ampla divulgação . As 154

circunstâncias da sua descoberta são controversas, mas parece ter surgido


no Egipto, talvez na década de 70 ou 60 do século XX. Está escrito em
copta, em 62 páginas de papiro, e pela datação por carbono remonta ao ano
300 d. C., mas é provavelmente baseado num manuscrito grego mais antigo.
Quem quer que seja o autor, o Evangelho, escrito da perspectiva de Judas
Iscariotes, sustenta que Judas só traiu Jesus porque este lhe pediu que
desempenhasse esse papel. Fazia tudo parte do plano para que Jesus fosse
crucificado e assim pudesse redimir a humanidade. Apesar de obnóxia, esta
doutrina parece reparar a secular antipatia com que Judas é encarado. 155

Escrevi que a expiação, doutrina central do Cristianismo, é cruel,


sadomasoquista e repugnante. Não fosse o ser-nos tão familiar, facto que
acaba por nos embotar a objectividade, e deveríamos desde logo rejeitá-la
como ideia de loucos que é. Se Deus queria perdoar os nossos pecados,
porque não perdoá-los simplesmente, sem se dar a torturar e a executar
como moeda de troca - condenando desse modo, já agora, distantes
gerações futuras de judeus a perseguições, massacres e à acusação de serem
«assassinos de Cristo»? Será que esse pecado hereditário também foi sendo
transmitido pelo sémen?
Como explica o estudioso judeu Geza Vermes, São Paulo estava imbuído
do velho princípio teológico judaico segundo o qual sem sangue não há
expiação . E de facto ele di-lo, na sua Epístola aos Hebreus (9: 22). Hoje
156

em dia, os eticistas de pensamento mais progressista acham difícil defender


qualquer tipo de teoria do castigo que passe pela vingança, e muito menos a
teoria do bode expiatório - isto é, executar um inocente para pagar pelos
pecados do culpado. Seja como for (não conseguimos deixar de nos
interrogar), quem é que Deus pensava que ia, assim, impressionar?
Provavelmente a si próprio - juiz, júri e vítima da execução, tudo ao mesmo
tempo. Ainda por cima, Adão, o presumível perpetrador do pecado original,
nunca chegou sequer a existir: um facto incómodo - justificadamente
desconhecido de São Paulo, mas provavelmente conhecido de um Deus
omnisciente (e de Jesus, se acreditarmos que era Deus) - que debilita
profundamente a premissa de toda esta feia e tortuosa teoria. Ah, mas é
claro, a história de Adão e Eva era apenas simbólica, não era? Simbólica?
Então, para se impressionar a si próprio, Jesus fez-se torturar e executar,
num castigo vicário por um pecado simbólico cometido por um indivíduo
não-existente? Como disse, trata-se de uma ideia de loucos, além de ser de
uma tremenda crueldade.
Antes de deixar a Bíblia de parte, preciso de fazer uma chamada de
atenção para um aspecto particularmente inaceitável dos seus ensinamentos
éticos. Os cristãos raramente se dão conta de que muito da consideração
moral pelos outros aparentemente promovida tanto pelo Antigo como pelo
Novo Testamento, visava, originariamente, apenas as relações intragrupais
de uma comunidade muito restrita. «Amar o próximo» não significava o
157

que agora pensamos que significa, mas apenas «amar outro judeu.» Este
aspecto é devastadoramente demonstrado pelo norte-americano John
Hartung, médico e antropólogo da evolução. Hartung escreveu um ensaio
notável sobre a evolução e a história bíblica da moralidade intragrupo, onde
acentua também o reverso da medalha - ou seja, a hostilidade para com
aqueles que não pertencem ao grupo.
Amar o próximo
O humor negro de John Hartung é patente logo desde o início , onde fala
158

de uma iniciativa dos Southern Baptists, do Sul dos Estados Unidos, no


sentido de contar o número de habitantes do Alabama no inferno. De acordo
com o noticiado nos jornais New York Times e Newsday, o total final, de
1,86 milhões, foi calculado usando uma fórmula de ponderação secreta
segundo a qual os metodistas têm maiores probabilidades de ser salvos do
que os católicos, ao passo que «quase todos os que não pertencem a
nenhuma congregação religiosa foram dados como perdidos». A peregrina
presunção destas pessoas encontra, hoje em dia, reflexo nas várias páginas
de Internet dedicadas ao «arrebatamento», onde o autor dá sempre por
adquirido que se encontra no número daqueles que «desaparecem» nos céus
quando os «dias do fim» chegarem. Eis um exemplo típico, do autor do
website «Rapture Ready», um dos exemplos mais execravelmente
santanários do género: «Se o arrebatamento se der, e daí resultar a minha
ausência, será necessário que os santos da tribulação reencaminhem ou
apoiem financeiramente esta página.» 159

A interpretação que Hartung faz da Bíblia é de molde a sugerir que não há


nela fundamento para tão presunçosa complacência por parte dos cristãos.
Jesus restringiu estritamente aos judeus o grupo dos que se hão-de salvar,
no que de resto estava a seguir a tradição do Antigo Testamento, que era a
única que conhecia. Hartung mostra claramente que a frase «Não matarás»
nunca pretendeu dizer aquilo que hoje pensamos que quer dizer. Ela
significava, muito concretamente, não matarás judeus. E todos esses
mandamentos que fazem referência ao «teu próximo» são igualmente
redutores. «Próximo» significa outro judeu. Moisés Maimónides, o
respeitadíssimo rabino e médico do século XII, explica da seguinte forma o
significado da frase «Não matarás»: «Se alguém mata um israelita que seja,
infringe um mandamento negativo, porque as Escrituras dizem “não
matarás”. Aquele que matar premeditadamente na presença de testemunhas,
há-de morrer pela espada. Escusado será dizer que não se é condenado à
morte por matar um pagão.» Escusado será dizer!
Hartung cita um parecer semelhante do Sinédrio (o Supremo Tribunal
judaico, chefiado pelo sumo sacerdote), a propósito da situação hipotética
de um homem ilibado de matar por engano um israelita, ao tentar matar um
animal ou um pagão. Este pequeno e provocatório enigma moral em jeito de
exercício levanta uma boa questão. E se ele atirasse uma pedra a um grupo
de nove pagãos e um israelita, e tivesse o azar de matar o israelita? Humm...
difícil! Mas a resposta vem pronta: «Nesse caso, a sua ausência de
responsabilidade pode ser deduzida do facto de a maioria serem pagãos.»
Hartung usa muitas das mesmas citações bíblicas de que me servi neste
capítulo acerca da conquista da Terra Prometida por Moisés, Josué e Juízes.
Tive o cuidado de reconhecer que o pensamento das pessoas religiosas já
não alinha completamente pelo que diz a Bíblia. Para mim, isto demonstra
que a nossa moral, quer sejamos religiosos ou não, tem outra origem, e essa
outra origem, qualquer que ela seja, está disponível para todos nós,
independentemente da religião ou da sua ausência. Mas Hartung fala de um
terrível estudo realizado pelo psicólogo israelita George Tamarin. Tamarin
apresentou a mais de 1000 crianças de escola israelitas, com idades
compreendidas entre os oito e os 14 anos, o relato da batalha de Jericó
constante do livro de Josué:

Josué disse ao povo: «Gritai, porque o SENHOR vos entrega a cidade.


A cidade será votada à destruição em honra do SENHOR, com tudo o
que nela se encontra... A prata, o ouro e todos os objectos de bronze e
de ferro serão consagrados ao SENHOR, e ficarão a pertencer ao seu
tesouro»... Votaram-na ao anátema, passando ao fio da espada quanto
nela encontraram, homens e mulheres, crianças e velhos, e os bois, as
ovelhas e os jumentos... Incendiaram a cidade, queimando tudo o que
nela havia, excepto o oiro, a prata e todos os objectos de bronze e de
ferro, que entregaram para os tesouros da casa do SENHOR.

Tamarin colocou então às crianças uma pergunta moral simples: «Achais


que Josué e os Israelitas agiram bem ou não?» Tinham de escolher entre A
(aprovação total), B (aprovação parcial) e C (desaprovação total). Os
resultados polarizaram-se: 66 por cento aprovaram totalmente e 26 por
cento desaprovaram totalmente, com muito poucos (oito por cento) no meio
com aprovação parcial. Eis três respostas típicas dadas pelo grupo da
aprovação total (A):
Na minha opinião, Josué e os Filhos de Israel agiram bem e são estas as
razões: Deus prometeu-lhes esta terra e deu-lhes permissão para a
conquistarem. Se não tivessem agido desta forma nem matassem
alguém, então haveria o perigo de os Filhos de Israel serem assimilados
pelos gentios.

Na minha opinião, Josué fez bem em fazer o que fez, sendo uma razão
o facto de Deus o ter mandado exterminar o povo de modo a que as
tribos de Israel não fossem assimiladas por ele e não aprendessem os
seus maus costumes.

Josué fez bem porque o povo que habitava aquela terra tinha uma
religião diferente e quando Josué os matou eliminou a religião deles da
face da Terra.

A justificação para o massacre genocida levado a cabo por Josué é, em


todos os casos, religiosa. Mesmo os da categoria C, que desaprovaram
totalmente, fizeram-no, em alguns casos, por motivos religiosos ínvios.
Uma rapariga, por exemplo, desaprovou a conquista de Jericó porque, para
o fazer, Josué teve de lá entrar:

Eu penso que é mau, uma vez que os Árabes são impuros e, se


entrarmos numa terra impura, ficamos também impuros e partilhamos a
maldição deles.

Outros dois que desaprovaram totalmente fizeram-no porque Josué


destruiu tudo, incluindo animais e bens, em vez de ficar com algum do
saque para os Israelitas:

Eu penso que Josué não agiu bem, porque podiam ter poupado os
animais para seu proveito.

Eu penso que Josué não agiu bem, porque podia ter deixado os bens de
Jericó; se não tivesse destruído os bens, eles tinham ficado para os
Israelitas.
Uma vez mais, o sábio Maimónides, frequentemente citado pela sua
erudita circunspecção, não tem qualquer hesitação a este respeito: KÉ um
mandamento positivo destruir as sete nações, como é dito: Votá-las-ás à
mais completa destruição. Se não matarmos um que seja dos que caem em
nosso poder, infringimos um mandamento negativo, como é dito: Nela não
deixarás vivalma.»
Ao contrário de Maimónides, as crianças da experiência de Tamarin eram
suficientemente jovens para ser inocentes. Provavelmente as perspectivas
brutais que exprimiram eram as dos pais ou do grupo cultural em que foram
educadas. Presumo que não será improvável que as crianças palestinianas,
educadas nesse mesmo país dilacerado pela guerra, dêem opiniões
semelhantes, ainda que de sentido oposto. Estas considerações enchem-me
de desânimo. Elas parecem mostrar o imenso poder que a religião, e
sobretudo a educação religiosa das crianças, tem para dividir povos e para
alimentar inimizades históricas e vendetas hereditárias. Não posso deixar de
assinalar que duas das três citações representativas do grupo A de Tamarin
mencionam os males da assimilação, ao passo que a terceira põe a tónica na
importância de matar as pessoas para lhes esmagar a religião.
Nesta experiência, Tamarin organizou um fascinante grupo de controlo. A
um grupo diferente de 168 crianças israelitas foi dado o mesmo texto do
livro de Josué, mas com o nome deste substituído por «general Lin» e
«Israel» substituído por «um reino chinês há 3000 anos». Neste caso a
experiência obteve resultados opostos. Apenas sete por cento aprovaram o
comportamento do general Lin, enquanto 75 por cento o desaprovaram. Por
outras palavras, quando a sua lealdade para com o Judaísmo foi retirada da
equação, a maioria das crianças mostrou-se concordante com os juízos
morais de que modernamente partilha a maioria dos seres humanos. A
atitude de Josué foi um acto de genocídio bárbaro. No entanto, tudo parece
diferente quando encarado do ponto de vista religioso. E a diferença começa
em tenra idade. Foi a religião que ditou a diferença entre a condenação e o
aplauso do genocídio por parte das crianças.
Na segunda metade do seu ensaio, Hartung passa ao Novo Testamento.
Resumindo a sua tese, Jesus era um devoto da mesma moralidade
intergrupal - aliada à hostilidade para com os grupos alheios - que no
Antigo Testamento é dada por adquirida. Jesus era um judeu leal. Foi São
Paulo quem inventou a ideia de levar o Deus judeu aos gentios. Hartung di-
lo com menos cerimónia do que eu seria capaz: «Jesus teria dado voltas no
túmulo se tivesse sabido que São Paulo ia alargar o seu plano aos porcos.»
Hartung diverte-se com o Apocalipse, seguramente um dos livros mais
bizarros da Bíblia. Terá sido escrito por São João e, como afirma com um
certo sentido de arrumação o Ken’s Guide to the Bible, se as suas epístolas
podem ser vistas como João metido na erva, o Apocalipse é João metido no
ácido. Hartung chama a atenção para os dois versículos do Apocalipse em
160

que o número dos que tinham sido «assinalados» (que algumas seitas, como
as Testemunhas de Jeová, interpretam como «salvos») se fica pelos 144
000. O que Hartung quer dizer é que todos eles tinham de ser judeus: 12 000
de cada uma das 12 tribos. Ken Smith vai mais longe, mostrando que os 144
000 eleitos «não se conspurcaram com mulheres», o que provavelmente
significa que nenhum deles podia ser mulher. Mas este, enfim, é o tipo de
coisa que, de algum modo, já esperamos.
Há muito mais no divertido ensaio de Hartung. Limito-me a recomendá-lo
só uma vez mais e a resumi-lo numa citação:

A Bíblia é todo um programa de moralidade intragrupal, a que não


faltam instruções para o genocídio, para a escravização de grupos
alheios e para o domínio do mundo. Mas a Bíblia não é má devido aos
objectivos que propõe nem sequer por apregoar a prática do assassínio,
da crueldade e da violação. São muitas as obras antigas que o fazem - a
Ilíada, as sagas islandesas, os contos dos antigos Sírios e as inscrições
dos antigos Maias, por exemplo. O que acontece é que ninguém anda a
vender a Ilíada como se fosse um alicerce para a moralidade. É aí que
está o problema. A Bíblia é vendida e comprada como um guia de como
as pessoas devem viver as suas vidas. E é nitidamente o maior campeão
de vendas de todos os tempos.

Para que não se pense que a exclusividade do Judaísmo tradicional é caso


único entre as religiões, veja-se a confiança que perpassa por esta estrofe,
retirada de um hino de Isaac Watts (1674-1748):

Senhor, foi por tua Graça,


Não por acaso, acho eu,
Que nasci de cristã raça
E não pagão nem judeu.

O que me deixa confundido, nestes versos, não é a exclusividade em si


mesma, mas sim a lógica. Uma vez que foram muitos os «outros» que
efectivamente nasceram no seio de religiões que não o Cristianismo, como é
que Deus decidiu quais, de entre os povos vindouros, deviam ser assim
privilegiados à nascença? Porquê favorecer Isaac Watts e esses indivíduos
que o poeta visualizou cantando o seu hino? E, seja como for, antes de Isaac
Watts ter sido concebido, qual era a natureza da entidade assim favorecida?
O tema é profundo, mas talvez não demasiado profundo para uma mente
sensível à Teologia. O hino de Isaac Watts faz lembrar as três orações
diárias que os homens pertencentes ao Judaísmo ortodoxo e conservador
(mas não ao Judaísmo reformado) são ensinados a recitar: «Abençoado
sejais por me não teres feito gentio. Abençoado sejais por me não teres feito
mulher. Abençoado sejais por me não teres feito escravo.»
A religião é, sem dúvida, uma força fracturante, e é esta uma das
principais acusações que lhe são feitas. Mas diz-se frequentemente, e com
razão, que as guerras e os feudos entre seitas ou grupos religiosos raramente
têm a ver, de facto, com desavenças teológicas. Quando um protestante
paramilitar do Ulster assassina um católico não diz para si próprio: «Toma
lá, seu filho da mãe, seu transubstanciacionista, seu mariólatra a feder a
incenso!» O mais provável é que o faça para vingar a morte de outro
protestante morto por outro católico, talvez na sequência de uma vendeta
perpétua, passada de geração em geração. A religião é um rótulo para
sinalizar a inimizade e as vendetas entre o grupo a que se pertence e o grupo
ou grupos a que não se pertence, um rótulo que não é necessariamente pior
do que outros rótulos, tais como a cor da pele, a língua ou o clube de futebol
favorito, sucedendo apenas que muitas vezes, na ausência de outros rótulos,
é aquele que está mais à mão.
Sim, é claro que os problemas na Irlanda do Norte são políticos. Houve de
facto opressão económica e política de um grupo por outro e a situação vem
de há séculos. Há efectivamente ofensas e injustiças genuínas, que parece
terem pouco a ver com religião; com o senão de que - e isto é importante e
passa muitas vezes em claro - sem a religião não haveria rótulos com os
quais decidir quem oprimir e quem vingar. E o verdadeiro problema na
Irlanda do Norte é que os rótulos vêm sendo herdados ao longo de muitas
gerações. Os católicos, cujos pais, avós e bisavós frequentaram escolas
católicas, mandam os filhos para escolas católicas. Os protestantes, cujos
pais, avós e bisavós frequentaram escolas protestantes, mandam os filhos
para escolas protestantes. Os dois conjuntos de pessoas têm a mesma cor de
pele, falam a mesma língua, gostam das mesmas coisas, mas bem podiam
pertencer a espécies diferentes, tão profunda é a clivagem histórica. E sem a
religião, e uma educação segregada numa base religiosa, a clivagem, pura e
simplesmente, não existiria. As tribos em luta teriam casado entre si e há
muito se teriam dissolvido uma na outra. Desde o Kosovo à Palestina, desde
o Iraque ao Sudão, desde o Ulster ao subcontinente indiano, olhe-se
atentamente para qualquer região do mundo onde haja inimizade e violência
irredutíveis entre grupos rivais. Não posso garantir que venha a verificar-se
que as religiões são, aí, os rótulos preferenciais à disposição dos grupos de
pertença e dos grupos «outros». Mas apostava que assim é.
Aquando da divisão da Índia, mais de um milhão de pessoas foram
massacradas em motins religiosos entre Hindus e Muçulmanos (e 15
milhões viram-se deslocadas das suas casas). Não havia outros emblemas
que não os religiosos para rotular aqueles que se queria matar. Em última
análise, não havia nada que os dividisse a não ser a religião. Perturbado por
um surto mais recente de massacres religiosos na Índia, Salman Rushdie
escreveu um artigo intitulado «A religião, como sempre, é o que está a
envenenar o sangue da Índia». Eis o parágrafo final:
161

Que respeito merece tudo isto, ou qualquer um dos crimes hoje


cometidos quase diariamente por todo o mundo em nome da temida
religião? Que bem, e com que fatais resultados, a religião ergue os seus
tótemes, e como nos mostramos dispostos a matar por eles!

E quando o houvermos feito vezes suficientes, o embotamento das


emoções que daí advém torna muito mais fácil fazê-lo outra vez.
Portanto, o problema da Índia é, afinal, problema do mundo. O que
aconteceu na Índia aconteceu em nome de Deus.
O nome do problema é Deus.

Não nego que as poderosas tendências da humanidade no sentido de uma


fidelidade intragrupo e de uma hostilidade para com grupos alheios
existiriam mesmo na ausência de religião. Os fãs de clubes de futebol rivais
são, a uma escala menor, um exemplo desse fenómeno. Mesmo os apoiantes
do futebol por vezes dividem-se em função da religião, como sucede no
caso do Glasgow Rangers e do Celtic de Glasgow. As línguas (como na
Bélgica), as raças e as tribos (sobretudo em África) podem funcionar como
símbolos importantes da divisão. Mas a religião amplia e exacerba os danos,
pelo menos de três maneiras:

Rotulagem das crianças. As crianças são classificadas como


«crianças católicas», «crianças protestantes», etc., desde tenra
idade, ou pelo menos quando é ainda demasiado cedo para que
tenham decidido o que pensam sobre a religião (e voltarei o tema
desta espécie de maus tratos da infância no nono capítulo).

Escolas segregadas. As crianças são educadas, uma vez mais


desde tenra idade, juntamente com membros de um intragrupo
religioso e separadas das crianças cujas famílias são aderentes de
outras religiões. Não é exagero afirmar que os problemas na
Irlanda do Norte desapareceriam numa geração se o ensino
segregado fosse abolido.

Tabus contra «casar fora». Ao evitar a mistura dos grupos em


confronto, isto perpetua os feudos e as vendetas hereditários. Se
permitido, o casamento entre membros de religiões diferentes
tenderia naturalmente a esbater as inimizades.

A aldeia de Glenarm, no Norte da Irlanda, é morada dos condes de


Antrim. Certa vez, não há muito tempo, o então conde fez o impensável:
casou com uma católica. De imediato nas casas de Glenarm as persianas
fecharam-se em sinal de luto. O horror a «casar fora» é também
generalizado entre os judeus religiosos. Várias das crianças israelitas citadas
atrás mencionaram os terríveis perigos da «assimilação» como razão
principal para a sua defesa de Josué na batalha de Jericó. Quando acontece
pessoas de religiões diferentes casarem-se, o facto é ominosamente descrito
por ambas as partes como um «casamento misto», acompanhado muitas
vezes de prolongadas batalhas sobre como devem as crianças ser educadas.
Quando era criança e ainda desfilava de vela na mão pela Igreja Anglicana,
lembro-me de ficar boquiaberto quando me falaram de uma regra segundo a
qual, quando uma pessoa católica casava com uma pessoa anglicana, os
filhos eram sempre educados no Catolicismo. Eu percebia perfeitamente
que um sacerdote de qualquer uma destas duas religiões tentasse insistir
nesta condição, o que não conseguia (e ainda não consigo) perceber era a
assimetria. Por que razão não retaliavam os padres anglicanos com a mesma
regra, mas ao contrário? Menos implacáveis, às tantas. O meu velho capelão
e a personagem do «Our Padre», de Betjeman, eram demasiado simpáticos,
decididamente.
Há estudos estatísticos de cariz sociológico sobre a homogamia e a
heterogamia religiosas (isto é, casar com alguém da mesma religião e com
alguém de religião diferente, respectivamente). Norval D. Glenn, da
Universidade do Texas, em Austin, reuniu e analisou um conjunto de
estudos deste tipo realizados até 1978. Glenn concluiu que há uma
162

tendência significativa para a homogamia religiosa entre os cristãos (os


protestantes casam-se com protestantes, os católicos com católicos, segundo
um padrão que vai além do comum «efeito vizinho do lado»), que, no
entanto, é mais acentuada entre os judeus. De uma amostra total de 6021
pessoas casadas que responderam ao inquérito, 140 consideravam-se judeus
e, destas, 85,7 por cento eram também casadas com judeus. Ora isto é
muitíssimo mais do que a percentagem de casamentos homogâmicos que
seria de esperar de uma amostragem aleatória. E é claro que não é novidade
para ninguém. Os judeus praticantes são fortemente desencorajados a «casar
fora», e o tabu é visível nas piadas judaicas acerca das mães que põem os
filhos de sobreaviso contra as shiksas loiras que só querem é apanhá-los.
Seguem-se afirmações típicas proferidas por três rabinos norte-americanos:

«Recuso-me a celebrar casamentos entre pessoas de religiões


diferentes.»

«Celebro quando os casais declaram a intenção de criar os filhos


como judeus.»

«Celebro se os casais concordarem com o aconselhamento pré-


matrimonial.»
Os rabinos que se dispõem a concelebrar com um padre católico são raros
e muito procurados.
Mesmo que a religião, por si só, outro mal não fizesse, o seu desmesurado
e muito fomentado pendor fracturante - a sua deliberada e refinada serventia
à tendência natural da humanidade para privilegiar os grupos de pertença e
evitar os alheios - seria suficiente para a tornar uma significativa força do
mal neste mundo.

O Zeitgeist moral
Este capítulo começou por mostrar que, independentemente daquilo que
gostamos de imaginar, nós - mesmo aqueles de nós que são religiosos - não
fundamentamos a nossa moralidade em livros sagrados. Como decidimos,
então, o que é certo e o que é errado? Qualquer que seja a nossa resposta a
esta pergunta, a verdade é que existe um consenso quanto ao que na
realidade consideramos certo e errado: um amplo consenso que surpreende
pela ubiquidade, e que não tem qualquer ligação óbvia com a religião. No
entanto, ele estende-se à maioria das pessoas religiosas, quer pensem que a
sua moral decorre das Escrituras, quer não. Com excepções notórias, como
sejam os talibãs afegãos e o respectivo contraponto entre os cristãos norte-
americanos, a maioria das pessoas recita a sua adesão a um vasto consenso
de princípios éticos. Assim, a maior parte de nós não inflige sofrimento
desnecessário; acredita na liberdade de expressão e protege-a mesmo
discordando do que é dito; paga os seus impostos; não engana, não mata,
não comete incesto, não faz aos outros o que não gostaria que lhe fizessem.
Alguns destes bons princípios constam dos livros sagrados, mas sepultados
ao lado de outros princípios que nenhuma pessoa decente desejaria seguir:
além de que os livros sagrados não facultam regras que permitam distinguir
os bons dos maus princípios.
Uma forma de exprimir a nossa ética consensual é através dos «Novos
Dez Mandamentos». Várias pessoas e instituições já o tentaram.
Significativo é o facto de tenderem sempre a gerar resultados bastante
semelhantes entre si, e aquilo que geram é característico da época em que
são propostos. Eis um conjunto de «Novos Dez Mandamentos» da
actualidade, que encontrei por acaso numa página de Internet ateia:163
Não faças aos outros aquilo que não quiseres que te façam a ti.

Em tudo, esforça-te por não fazeres o mal.

Trata os teus semelhantes, os seres vivos e o mundo em geral com


amor, honestidade, lealdade e respeito.

Não ignores o mal nem te retraias de aplicar justiça, mas está


sempre pronto a perdoar a injustiça reconhecida livremente e
lamentada honestamente.

Vive a vida com alegria e admiração.

Procura sempre aprender algo novo.

Testa todas as coisas; confronta as tuas ideias com os factos e está


pronto a pôr de parte mesmo uma crença acalentada se ela não
estiver em conformidade com eles.

Nunca procures censurar-te ou abster-te das divergências;


respeita sempre o direito dos outros a discordarem de ti.

Forma opiniões independentes com base na tua própria razão e


experiência; não te permitas ser levado cegamente pelos outros.

Interroga-te sobre tudo.

Esta pequena compilação não é obra de um grande sábio nem de um


profeta ou de um eticista profissional. É apenas uma simpática tentativa, por
parte de um comum utilizador da web, de resumir, hoje, os princípios da
vida boa, por comparação com os Dez Mandamentos bíblicos. Foi a
primeira lista que encontrei quando inseri «Novos Dez Mandamentos» num
motor de busca, e foi de propósito que não continuei a procurar. O
importante é que este é o tipo de lista passível de ser coligida por qualquer
pessoa comum e decente, nos tempos que correm. Nem toda a gente
convergirá exactamente para a mesma lista 10. O filósofo John Rawls
poderá incluir na sua lista algo deste género: «Imagina sempre as tuas regras
como se não soubesses se vais estar no topo ou na base da hierarquia.» Um
exemplo prático do princípio de Rawls será um sistema como o que se diz
que o povo Inuit segue para partilhar a comida: quem a reparte fica com o
último bocado.
Na minha própria versão emendada dos Dez Mandamentos, escolheria
alguns dos já referidos acima, mas tentaria também arranjar espaço para os
seguintes, entre outros:

Desfruta da tua vida sexual (desde que não prejudique ninguém) e


deixa que os outros desfrutem da sua em privado, quaisquer que
sejam as suas tendências, que não são da tua conta.

Não discrimines nem oprimas em função do sexo, da raça ou (na


medida do possível) da espécie.

Não inculques ideias à força nos teus filhos. Ensina-os a pensarem


por si, a ajuízarem das provas e a discordarem de ti.

Valoriza o futuro em função de uma escala de tempo maior do que


aquele que tens.

Mas esqueçamos estas pequenas divergências quanto às prioridades. A


questão é que quase todos nós avançámos, e muitíssimo, desde os tempos
bíblicos. A escravatura, dada como adquirida na Bíblia e ao longo de quase
toda a História, foi abolida nos países civilizados no século XIX. Todas as
nações civilizadas aceitam hoje o que foi amplamente negado até à década
de 1920, a saber, que o voto de uma mulher, em eleições ou como membro
de um júri, é igual ao de um homem. Nas actuais sociedades esclarecidas
(uma categoria em que manifestamente não se inclui, por exemplo, a Arábia
Saudita), as mulheres já não são vistas como propriedade, como claramente
o eram nos tempos bíblicos. Qualquer sistema jurídico moderno teria levado
Abraão a tribunal por maus tratos infantis. E se ele por acaso tivesse levado
a cabo o plano de sacrificar Isaac, tê-lo-íamos condenado por homicídio em
primeiro grau. E no entanto, de acordo com os costumes da época, a sua
conduta era absolutamente admirável e conforme o mandamento de Deus.
Religiosos ou não, todos nós mudámos radicalmente a nossa atitude com
respeito ao que é certo e errado. Qual a natureza desta mudança e o que a
impele?
Em todas as sociedades existe um consenso algo misterioso, que vai
mudando ao longo das décadas e para o qual não é pretensioso usar a
palavra alemã Zeitgeist (o espírito da época). Eu disse que o sufrágio das
mulheres é hoje universal nas democracias de todo o mundo, mas esta
reforma é, na realidade, um fenómeno supreendentemente recente. Eis
algumas datas em que o direito de voto foi concedido às mulheres:
Nova Zelândia 1893
Austrália 1902
Finlândia 1906
Noruega 1913
Estados Unidos 1920
Grã-Bretanha 1928
França 1945
Bélgica 1946
Suíça 1971
Koweit 2006
Esta amplitude de datas ao longo do século XX é um indicador das
alterações do Zeitgeist. Outro indicador é a nossa atitude relativamente à
raça. Na primeira metade do século XX, quase toda a gente na Grã-Bretanha
(e em muitos outros países também) seria considerada racista pelos padrões
actuais. A maioria dos brancos acreditava que os negros (categoria para
onde atiravam toda a sorte de africanos juntamente com grupos da Índia, da
Austrália e da Melanésia) eram inferiores aos brancos em quase todos os
aspectos, excepto - acrescentavam com condescendência - no sentido do
ritmo. O equivalente a James Bond na década de 20 era esse jovial e
donairoso herói da rapaziada que dava pelo nome de Bulldog Drummond.
Num romance intitulado The Black Gang, Drummond refere-se aos «judeus,
estrangeiros e outros que não se lavam». No clímax de The Female of the
Species, Drummond disfarça-se engenhosamente de Pedro, criado negro do
vilão. Na cena dramática guardada para final, e destinada tanto ao leitor
como ao vilão, em que «Pedro» revela que é, na realidade, o próprio
Drummond, este poderia ter dito simplesmente: «Pensas que eu sou Pedro.
Mal sabes tu que eu sou o teu arqui-inimigo Drummond pintado de preto.»
Em vez disso, escolhe as seguintes palavras: «Nem toda a barba é falsa, mas
não há preto que não cheire mal. Esta barba não é falsa, meu caro, e aqui o
preto não cheira mal. Logo, eu acho que há qualquer coisa errada.» Li-o nos
anos 50, três décadas após ter sido escrito, e era ainda (mas por pouco)
possível que um rapaz sentisse toda a emoção do drama e nem reparasse no
racismo. Hoje em dia, tal seria inconcebível.
Thomas Henry Huxley era, à luz dos padrões da sua época, um
progressista esclarecido e liberal. Mas a época dele não é a nossa e, em
1871, escreveu o seguinte:

Nenhum homem racional, conhecedor dos factos, acredita que o preto


mediano seja igual, e muito menos superior, ao homem branco. E, se
isto for verdade, não é de modo algum crível que, uma vez removidas
todas as peias e desfrutando o nosso prógnato parente de terreno neutro
e de nenhum favor ou opressor, ele venha a ser capaz de competir com
êxito contra o seu rival de cérebro maior e menor maxilar, num duelo
que deve ser terçado com pensamentos e não à dentada. Os lugares
cimeiros na hierarquia da civilização não hão-de ficar, seguramente, ao
alcance dos nossos escuros primos.164

É um lugar-comum dizer-se que os bons historiadores não ajuízam as


declarações do passado pelos padrões do tempo deles. Abraham Lincoln, tal
como Huxley, era um homem avançado em relação à sua época. Ainda
assim, as suas opiniões a respeito das questões raciais soam-nos também
retrogradamente racistas nos nossos tempos. Ei-lo aqui, num debate de
1858, com Stephen A. Douglas:

Direi então que não sou, nem nunca fui, favorável a que se promova
seja de que maneira for a igualdade social e política entre as raças
branca e negra; que não sou, nem nunca fui, a favor de que os negros
sejam jurados, nem que sejam habilitados a ocupar cargos públicos,
nem a casar com brancos; e direi, além disto, que há uma diferença
física entre a raça branca e a raça negra que acredito que para sempre
impedirá que as duas raças vivam lado a lado numa base de igualdade
social e política. E visto que assim não poderão viver, enquanto
permanecerem juntas terá de haver uma posição superior e outra
inferior, e eu, tal como outro homem qualquer, sou a favor de que a
posição superior seja conferida à raça branca.165

Tivessem Huxley e Lincoln nascido e sido educados no nosso tempo, e


teriam sido os primeiros a arrepiar-se connosco perante o seu próprio tom
melífluo e sensibilidade vitoriana. Cito-os apenas para ilustrar a forma
como o Zeitgeist vai avançando. Se mesmo Huxley, um dos espíritos mais
liberais do seu tempo, e o próprio Lincoln, que libertou os escravos, eram
capazes de dizer tais coisas, imagine-se a maneira de pensar do vitoriano
médio. Regressando ao século XVIII, é perfeitamente consabido que
Washington, Jefferson e outros homens do iluminismo tinham escravos. O
Zeitgeist vai avançando, e de uma forma tão inexorável que por vezes o
damos como coisa adquirida, esquecendo que a mudança é um fenómeno
igualmente real.
Há muitos outros exemplos. Quando os primeiros marinheiros
desembarcaram na ilha Maurícia e viram os mansos dodós, a única coisa
que lhes ocorreu fazer foi matá-los à paulada. Nem sequer era para os comer
(já que os diziam intragáveis). Provavelmente bater com um pau na cabeça
de aves indefesas, inofensivas e incapazes de voar, era a única coisa a fazer.
Um comportamento deste tipo seria, hoje em dia, impensável, e a eventual
extinção de um equivalente moderno do dodó, mesmo que inadvertida, para
já não falar de matança intencional por humanos, é vista como uma
tragédia.
Uma tragédia destas, à luz dos padrões do ambiente cultural da
actualidade, deu-se mais recentemente com a extinção do Thylacinus, o
lobo-da-tasmânia. Estes bichos, cuja memória é hoje um ícone, ainda em
1909 tinham a cabeça a prémio. Nos romances vitorianos de África,
«elefante», «leão» e «antílope» (repare-se no revelador uso do singular) são
«caça», e o que se faz à caça, sem sequer pensar duas vezes, é matá-la. Não
para comer, não em autodefesa – por «desporto». Mas o Zeitgeist mudou. É
certo que se deixa que «desportistas» ricos e sedentários abatam a tiro
animais selvagens africanos a partir da segurança de um Land-Rover e
levem consigo para casa as cabeças embalsamadas, mas têm de pagar os
olhos da cara para o fazerem, além de merecerem com isso o desprezo
generalizado. A conservação da vida selvagem e do ambiente passaram a
ser valores aceites com o mesmo estatuto moral outrora atribuído a valores
como o respeito pelo sabat e a recusa de ídolos feitos pelo homem.
Os vertiginosos anos da década de 1960 são lendários pela sua
modernidade aberta e progressista. Contudo, no início dessa década, um
advogado de acusação, no julgamento por alegada obscenidade do romance
O Amante de Lady Chatterley, ainda podia perguntar a um júri:
«Aprovariam que os vossos filhos, as vossas filhas - porque as raparigas
sabem ler, tal como os rapazes [dá para acreditar que ele tenha dito isto?] -
lessem este livro? Isto é livro que os senhores deixassem pousado lá em
vossa casa? É livro que gostassem que a vossa esposa ou criadas lessem?»
Esta última pergunta retórica é uma ilustração particularmente assombrosa
da velocidade a que o Zeitgeist muda.
Por todo o lado se ouvem condenações da invasão do Iraque pelos norte-
americanos devido ao número de baixas civis. No entanto, esse número é de
uma ordem de grandeza muito inferior ao que ocorreu na Segunda Guerra
Mundial. Parece haver um padrão de alteração gradual e firme
relativamente ao que se considera moralmente aceitável. Donald Rumsfeld,
que hoje nos parece tão insensível e detestável, teria parecido um liberal de
coração a sangrar se tivesse dito as mesmas coisas que hoje diz durante a
Segunda Guerra Mundial. Alguma coisa mudou entretanto. Mudou em
todos nós, e essa mudança não tem a ver com a religião. Quando muito, ela
dá-se a despeito da religião e não por causa dela.
A mudança vai numa direcção reconhecivelmente consistente, que a
maioria de nós considerará um progresso. Até mesmo Adolf Hitler, que de
uma maneira geral se considera que levou os limites do mal até limiares
desconhecidos, não se salientaria particularmente na época de Calígula ou
de Gengiscão. Não há dúvida de que Hitler matou mais pessoas que
Gengiscão, mas tinha à sua disposição tecnologias do século XX. E será que
aquilo que dava a Hitler o maior prazer era, como confessadamente
acontecia com Gengiscão, ver as pessoas mais próximas e mais queridas das
vítimas «banhadas em lágrimas»? Julgamos o grau de maldade de Hitler
pelos padrões de hoje, e o Zeitgeist moral avançou desde o tempo de
Calígula, tal como a tecnologia. Hitler só nos parece especialmente mau à
luz dos padrões da nossa época, claramente mais benignos.
Ao longo da minha vida, ouvi muita gente usar irreflectidamente toda a
sorte de alcunhas depreciativas e de estereótipos nacionais: frog, wop, dago,
hun, yid, coon, nip, wog. Não vou dizer que tais palavras desapareceram,
166

mas são hoje alvo de censura no convívio social bem-educado. No inglês, a


palavra «negro», ainda que sem intenção de ser insultuosa, pode ajudar a
datar um trecho de prosa. Com efeito, os preconceitos traem
involuntariamente a altura em que um dado texto foi escrito. Na sua época,
um respeitado teólogo de Cambridge, A. C. Bouquet, permitia-se começar
com estas palavras o capítulo sobre o Islão do seu livro Comparative
Religion: «O semita não é um monoteísta natural, como se pensava em
meados do século XIX. É um animista.» A obsessão com a raça (por
oposição à cultura) e o uso sintomático do singular («o semita... é um
animista») para reduzir toda uma multiplicidade de povos a um «tipo» não
são, propriamente, uma abominação. Mas são mais um minúsculo indicador
das alterações do Zeitgeist. Hoje em dia, nenhum professor de Cambridge,
seja de Teologia ou de outra disciplina qualquer, usaria tais palavras. Todos
estes subtis sinais da alteração dos mores dizem-nos que o texto de Bouquet
data, o mais tardar, de meados do século XX. De facto foi escrito em 1941.
Recuemos mais quatro décadas, e a mudança dos padrões torna-se
gritante. Num outro livro meu, citei a obra utópica de H. G. Wells New
Republic. Vou voltar agora a citá-la, já que se trata de uma ilustração
chocante daquilo que tenho vindo a afirmar.

E como vai a Nova República tratar as raças inferiores? Como vai lidar
com o preto?... O amarelo?... O judeu?... esses magotes de gente preta,
e castanha, e branco-suja, e amarela, que não cabem nas novas
necessidades ditadas pela eficiência? Bem, o mundo é mundo, não uma
instituição de caridade, e quer parecer-me que todos eles vão ter de se
sumir... E o sistema ético destes homens da Nova República, o sistema
ético que há-de dominar o Estado mundial, vai ser moldado
primacialmente para favorecer a procriação daquilo que é são, eficiente
e belo na humanidade - corpos belos e fortes, mentes límpidas e
poderosas... E o método seguido até agora pela natureza na modelação
do mundo, por meio do qual a fraqueza foi impedida de propagar a
fraqueza... é a morte... Os homens da Nova República... terão um ideal
que fará com que valha a pena matar.
Isto foi escrito em 1902 e, na sua época, Wells era visto como um
progressista. Tais opiniões, conquanto em 1902 não fossem amplamente
aceites, teriam proporcionado um tema aceitável de conversa à mesa do
jantar. Em contraste, os leitores modernos abrem a boca de pavor quando se
lhes deparam estas palavras. Somos forçados a perceber que Hitler, apesar
do que tem de aterrador, não se afastava muito do Zeitgeist do seu tempo
quando visto de uma perspectiva actual. Com que rapidez o Zeitgeist muda!
- e desloca-se em movimentos paralelos, numa frente larga, por todo o
mundo culto.
Donde vieram, então, estas mudanças graduais e concertadas verificadas
na consciência social? O ónus de responder não me caberá a mim. Para o
que aqui me proponho, basta saber que de certeza não foi da religião que
vieram. Se tivesse de avançar com uma teoria, começaria do seguinte modo.
Há que explicar por que motivo o Zeitgeist moral, sempre em constante
mudança, se afigura amplamente sincronizado, abrangendo vasto número de
pessoas; e há que explicar o seu rumo relativamente consistente.
Em primeiro lugar, qual o mecanismo dessa sincronização, sendo tão
vasto o número de pessoas envolvidas? Alastra de uma mente a outra
através de conversas em bares e em jantares de amigos, através de livros e
recensões críticas, através de jornais e de transmissões televisivas e
radiofónicas e, hoje em dia, da Internet. As alterações da sensibilidade
moral são sinalizadas em editoriais, em debates na rádio, nos discursos
políticos, na palavreado dos comediantes de standup e nos guiões das
telenovelas, nas votações parlamentares ao criar as leis e nas decisões dos
juízes ao interpretá-las. Uma forma de colocar a questão seria em termos de
alterações na frequência dos memes no fundo memético, mas não seguirei
agora essa via.
Nessa vaga do Zeitgeist moral que não pára de avançar, alguns de nós
encontram-se em posição mais atrasada, outros estão ligeiramente
adiantados. Mas a maioria de nós, neste século XXI, situa-se numa posição
muito semelhante, e muito à frente dos nossos homólogos da Idade Média,
ou do tempo de Abraão, ou, para nos referirmos a um período mais recente,
da década de 1920. A vaga está, toda ela, em movimento, e mesmo a
vanguarda de um qualquer século passado (T. H. Huxley surge como
exemplo óbvio) achar-se-ia muito atrasada em relação aos elementos mais
atrasados de um século posterior. É claro que o avanço não é uma rampa
lisa, mas mais como o perfil sinuoso dos dentes de uma serra. Há
contrariedades locais e temporais, como aquelas de que os Estados Unidos
estão a padecer por culpa do seu Governo desde o início da presente década.
Mas a uma escala mais longa, a tendência para a progressão é inequívoca e
vai continuar.
O que o impele no seu consistente rumo? Não podemos negligenciar o
papel motriz daqueles líderes que, à frente do seu tempo, se erguem
solitários e nos persuadem a progredir com eles. Nos Estados Unidos, os
ideais de igualdade racial foram fomentados por líderes políticos do calibre
de Martin Luther King, bem como por artistas do espectáculo, desportistas e
outras figuras públicas e modelos de comportamento como Paul Robeson,
Sidney Poitier, Jesse Owens e Jackie Robinson. A emancipação dos
escravos e das mulheres deve muito a líderes carismáticos. Alguns desses
líderes eram religiosos, outros não. Alguns dos que eram religiosos fizeram
as suas boas acções porque o eram. Noutros casos, a religião foi fortuita.
Embora fosse cristão, Martin Luther King foi beber a sua filosofia da
desobediência civil não-violenta directamente em Gandhi, que não o era.
E depois há também os progressos na educação e no ensino, e
especialmente a crescente compreensão de que cada um de nós partilha uma
humanidade comum com os membros das outras raças e com o sexo oposto
- uma e outra, ideias profundamente não-bíblicas, provenientes da ciência
biológica e, sobretudo, da evolução. Uma razão para os negros e as
mulheres e, na Alemanha nazi, os judeus e os ciganos terem sido
maltratados residiu no facto de não serem vistos como plenamente
humanos. Em Animal Liberation, o filósofo Peter Singer revela-se o
defensor mais eloquente da ideia de que devemos avançar para uma
condição «pós-especiesista», em que o tratamento humano é alargado a
todas as espécies que disponham de um cérebro suficientemente poderoso
para dele desfrutar. Talvez isto aponte já na direcção que o Zeitgeist moral
deverá tomar nos próximos séculos. Tal não seria mais do que o
prolongamento natural de reformas anteriores, como a abolição da
escravatura e a emancipação das mulheres.
A minha psicologia e sociologia de amador não me permitem ir mais
além nas explicações para o facto de o Zeitgeist moral se ir movendo da
forma generalizada e concertada como o faz. Para os meus objectivos
presentes, basta-me fazer notar que ele de facto se move, e que não é a
religião que o impele - e muito menos as Escrituras. Provavelmente a
responsabilidade não será de uma força só, como a gravidade, mas sim de
uma complexa acção combinada de forças díspares como a que impulsiona
a Lei de Moore, respeitante ao aumento exponencial da capacidade de
processamento dos computadores. Seja qual for a causa, o fenómeno
evidente que é a progressão do Zeitgeist é mais do que suficiente para deitar
por terra a afirmação de que precisamos de Deus para sermos bons ou para
decidir o que é bom.

E então Hitler e Estaline? Não eram ateus?


O Zeitgeist pode avançar, e fazê-lo numa direcção globalmente
progressista, mas, como disse, o avanço assemelha-se mais ao perfil
dentado da lâmina de uma serra do que à linha de uma rampa suave, e
houve alguns reveses terríveis. Reveses extraordinários, imensos e
medonhos são os que foram proporcionados pelos ditadores do século XX. É
importante distinguir as intenções perversas de homens como Hitler e
Estaline do enorme poder de que dispuseram para as levar por diante. Já
referi que as ideias e intenções de Hitler não se afiguram, em si mesmas,
mais perversas do que as de Calígula - ou de qualquer um dos sultões
otomanos cujos estarrecedores feitos de malvadez Noel Barber narra em
Lords of the Golden Horn. Hitler tinha ao seu dispor armas e tecnologia de
comunicação do século XX. Mesmo assim, e seja à luz de que padrões de
comparação for, Hitler e Estaline foram homens clamorosamente maus.
«Hitler e Estaline eram ateus. O que me diz a isto?» A pergunta surge
quase sempre no final das conferências que dou sobre religião, bem como
na maior parte das minhas entrevistas para a rádio. Ela é colocada num tom
truculento, trazendo na sua indignação dois pressupostos: Estaline e Hitler
não só (1) eram ateus, como também (2) cometeram aqueles actos terríveis
porque eram ateus. O pressuposto (1) é verdadeiro no caso de Estaline e
duvidoso no caso de Hitler. Mas o pressuposto (1) acaba por ser irrelevante,
uma vez que o pressuposto (2) é falso. Ilógico é certamente, se se pretender
que decorre de (1). Ainda que concordemos que Hitler e Estaline tiveram
em comum o ateísmo, também tinham em comum o bigode, tal como
Saddam Hussein. E daí? O interessante da questão não é saber se este ou
aquele ser humano mau (ou bom), individualmente considerado, era
religioso ou ateu. Não nos interessa estar aqui a contar cabeças entre os
maus nem a compilar listas para ver qual ganha em iniquidade. O facto de
as fivelas dos cintos dos nazis ostentarem a inscrição «Gott mit uns» não
prova nada, pelo menos sem uma discussão mais aprofundada. O que
interessa não é se Hitler e Estaline eram ateus, mas sim se o ateísmo
infuencia sistematicamente as pessoas no sentido de fazerem o mal. E não
existe a mais pequena prova de que assim seja.
Não parece haver dúvidas de que, na realidade, Estaline era ateu. Foi
educado num seminário ortodoxo e a mãe nunca superou a desilusão que
sentiu por ele não ter seguido o sacerdócio, como ela pretendia - um facto
que, segundo Alan Bullock, muito divertia Estaline. Talvez devido à sua
167

formação com vista ao sacerdócio, o Estaline da idade madura era cáustico


em relação à Igreja Ortodoxa russa, assim como em relação ao Cristianismo
e à religião em geral. Mas não há provas de que o ateísmo esteja na origem
da sua brutalidade. O mesmo se poderá dizer da formação religiosa que
começou por ter, a menos que fosse através do ensino da reverência pela fé
absolutista, pela força da autoridade e pela crença na ideia de que os fins
justificam os meios.
A lenda de que Hitler era ateu tem sido cultivada com persistência, de tal
modo que muitas pessoas nela acreditam sem hesitação, e os apologistas
religiosos trazem-na regularmente à baila em tom de desafio. A verdade da
questão está longe de parecer esclarecida. Hitler nasceu no seio de uma
família católica e frequentou igrejas e escolas católicas enquanto criança. É
óbvio que isto, por si só, não é significativo: podia facilmente ter
abandonado o catolicismo, tal como Estaline abandonou a Igreja Ortodoxa
russa depois de deixar o Seminário Teológico de Tiflis. Mas Hitler nunca
renunciou formalmente ao seu catolicismo, e há indícios de que se manteve
religioso ao longo da vida. Se não era católico, parece pelo menos ter
mantido uma crença num qualquer tipo de providência divina. Em A Minha
Luta, por exemplo, escreveu que, quando soube da notícia da declaração da
Primeira Guerra Mundial, «caí de joelhos e agradeci ao céu do fundo do
coração pela graça de me ser permitido viver num tempo assim». Mas isso
168

foi em 1914, quando ainda só tinha 25 anos. Será que mudou depois disso?
Quando, em 1920, Hitler tinha 31 anos, Rudolf Hess, seu colaborador
próximo e mais tarde vice-Führer, escreveu numa carta ao primeiro-ministro
da Baviera: «Conheço pessoalmente muito bem Herr Hitler e sou muito
próximo dele. É um homem de um temperamento invulgarmente honrado,
imbuído de uma profunda bondade, é religioso, um bom católico .» É 169

claro que se poderá dizer que, já que Hess ajuizou tão mal o «temperamento
honrado» e a «profunda bondade», talvez também tenha ajuizado mal o
«bom católico»! Hitler dificilmente poderia ser descrito como «bom» o que
quer que fosse, o que me traz à lembrança o argumento mais comicamente
audacioso que já ouvi em defesa da ideia de que Hitler só poderia ter sido
ateu. Em resumo - e recorrendo aqui a paráfrases de origem diversa -, Hitler
era um homem mau, o Cristianismo ensina a bondade, logo Hitler não pode
ter sido cristão! Quando Goering afirmou, acerca de Hitler, «só um católico
poderia unir a Alemanha», talvez, penso eu, quisesse dizer alguém que
tivesse sido educado como católico, e não estar propriamente a referir-se-
lhe como um católico crente.
Num discurso proferido em Berlim, em 1933, Hitler disse: «Estávamos
convencidos de que o povo exige esta fé e precisa dela. Por isso
empreendemos contra o movimento ateu esta luta, que não se limitou a uma
tantas declarações teóricas: nós destruímo-lo.» Isto pode apenas indicar
170

que, como tantos outros, Hitler «acreditava na crença». Mas, no ano de


1941, ainda dizia para o seu ajudante, general Gerhard Engel: «Hei-de ser
católico para sempre.»
Ainda que não continuasse a ser um cristão realmente crente, é
muitíssimo pouco provável que Hitler não tivesse sido influenciado pela
longa tradição cristã de culpar os judeus pela morte de Cristo. Num discurso
que proferiu em Munique, no ano de 1923, afirmou: «A primeira coisa a
fazer é salvar [a Alemanha] do judeu que está a arruinar o nosso país...
Queremos evitar que a nossa Alemanha venha, como o Outro, a morrer na
cruz.» No seu Adolf Hitler: The Definitive Biography, John Toland
171

escreveu o seguinte acerca da posição religiosa de Hitler por altura da


«solução final»:

Ainda membro respeitado da Igreja de Roma, não obstante a aversão


que tinha à sua hierarquia, transportava consigo o ensinamento de que o
judeu era o assassino de Deus. Por isso, o extermínio podia ser levado a
cabo sem qualquer sobressalto de consciência, uma vez que estava
simplesmente a agir na qualidade de mão vingadora de Deus - desde
que fosse levado a cabo de forma impessoal, sem crueldade.
O ódio cristão aos judeus não é uma tradição apenas católica. Martinho
Lutero foi um anti-semita virulento. Perante a Dieta de Worms, declarou
que «todos os judeus devem ser expulsos da Alemanha.» E escreveu um
livro, On de Jews and their Lives, que terá exercido influência sobre Hitler.
Lutero chamou aos judeus «um ninho de víboras», expressão também usada
por Hitler num extraordinário discurso de 1922, no qual afirmou
repetidamente que era cristão:

O meu sentimento de cristão revela-me como um lutador aos olhos do


meu Senhor e meu Salvador. Revela-me a esse que uma vez, achando-
se sozinho e rodeado por alguns seguidores, viu bem quem eram os
judeus e apelou a que os homens contra eles lutassem, esse que, a
verdade de Deus se diga!, mais do que a sofrer foi grande a lutar. Num
amor sem limites, como cristão e como homem, passo os olhos pelo
trecho que nos conta como o Senhor por fim se ergueu em toda a Sua
força e agarrou no chicote para expulsar do Templo aquele ninho de
víboras e serpentes. Que terrífica a luta que travou pelo mundo contra o
veneno judeu. Hoje, passados 2000 anos, é com a maior emoção que
reconheço, mais profundamente do que nunca, o facto de ter sido por
isto que Ele teve de derramar o Seu sangue na cruz. Como cristão não
tenho a obrigação de deixar que me enganem, mas tenho a obrigação de
ser um lutador em prol da verdade e da justiça... E se há alguma coisa
que pode demonstrar que estamos a agir correctamente, essa coisa é o
sofrimento que cresce dia a dia. Porque como cristão tenho também
uma obrigação para com o meu próprio povo. 172

É difícil saber se Hitler foi buscar a expressão «ninho de serpentes» a


Lutero ou se a foi buscar directamente ao Evangelho de São Mateus (3:7),
como fez provavelmente Lutero. Quanto ao tema da perseguição dos judeus
enquanto parte da vontade de Deus, voltaria a ele em A Minha Luta: «Daí
que hoje eu acredite que estou a agir de acordo com a vontade do Criador
Todo-Poderoso: ao defender-me dos judeus, estou a lutar em nome da obra
do Senhor.» Estávamos no ano de 1925. Hitler voltaria a dizê-lo num
discurso no Reichstag em 1938, e diria outras coisas semelhantes ao longo
da vida.
Há que contrabalançar citações como estas com outras retiradas da obra
Tables Talk, uma compilação de observações registadas pelo secretário de
Hitler, onde este exprime perspectivas violentamente anticristãs. Os
comentários que se seguem datam todos de 1941:

O golpe mais duro alguma vez desferido contra a humanidade foi a


chegada da Cristianismo. O bolchevismo é o filho bastardo do
Cristianismo. Ambos são invenções dos Judeus. A mentira deliberada
em matéria de religião foi introduzida no mundo pelo Cristianismo...

A razão de o mundo antigo ser tão puro, leve e sereno devia-se ao facto
de nada saber dessas duas grandes pragas: a varíola e o Cristianismo.

Bem vistas as coisas, não temos razão para desejar que os Italianos e os
Espanhóis se libertem da droga que é o Cristianismo. Sejamos o único
povo imunizado contra a doença.

As Table Talk de Hitler contêm mais citações como estas, muitas vezes
comparando o Cristianismo com o bolchevismo, outras vezes traçando
analogias entre Karl Marx e São Paulo, sem nunca esquecer que ambos
eram judeus (embora Hitler, estranhamente, tenha sido sempre inflexível na
sua opinião de que o próprio Jesus não era judeu). É possível que, em 1941,
Hitler já tivesse passado por algum tipo de desconversão ou de
desencantamento com o Cristianismo. Ou será que a chave para estas
contradições reside no simples facto de ele ser um mentiroso oportunista em
cujas palavras não se pode confiar seja a que propósito for?
Pode argumentar-se que, não obstante as suas próprias palavras e as dos
seus acólitos, Hitler não era, na realidade, religioso, limitando-se, isso sim,
a explorar cinicamente a religiosidade daqueles a quem se dirigia. Talvez
concordasse com Napoleão, para quem «a religião é excelente para manter
sossegada a gente comum», e com Séneca, que afirmou: «A religião é vista
pela gente comum como verdadeira, pelos sábios como falsa e pelos
governantes como útil.» Ninguém pode negar que Hitler era capaz de
tamanha falta de sinceridade. Se foi esse o seu verdadeiro motivo para se
fingir religioso, convém recordar que Hitler não levou a cabo as suas
atrocidades sozinho. Esses actos horrendos foram, na realidade, praticados
por soldados e pelos seus oficiais, a maioria dos quais eram, seguramente,
cristãos. De facto, o Cristianismo do povo alemão está precisamente na base
da hipótese em apreço - uma hipótese que explique a suposta falta de
sinceridade das profissões de religiosidade de Hitler! Ou talvez ele sentisse
que tinha de dar algum sinal de simpatia pelo Cristianismo, caso contrário o
seu regime não teria recebido da Igreja o apoio que recebeu. Este apoio
revelou-se de várias formas, incluindo a reiterada recusa do Papa Pio XII
em tomar uma posição contra os nazis - uma questão que ainda causa
grande embaraço à Igreja actual. Ou o Cristianismo professado por Hitler
era sincero, ou ele fingiu-se cristão de modo a obter - com êxito - a
cooperação dos cristãos alemães e da Igreja Católica. Em qualquer dos
casos, dificilmente se poderá dizer que os males do regime hitleriano
decorrem do ateísmo.
Mesmo quando invectivava o Cristianismo, Hitler nunca deixou de usar a
linguagem da Providência: um agente misterioso que, acreditava, o tinha
escolhido a ele para a divina missão de conduzir a Alemanha. Umas vezes
chamava-lhe Providência, outras, Deus. Após o Anschluss, quando, em
1938, regressou triunfante a Viena, o discurso exultante que então proferiu
referia-se a Deus nestes termos providenciais: «Acredito que foi vontade de
Deus enviar um rapaz daqui para o Reich, fazendo-o crescer e educando-o
até se tornar o chefe da nação para que pudesse reconduzir a sua pátria ao
Reich.»173

Quando por pouco escapou a ser assassinado em Munique, em Novembro


de 1939, Hitler atribuiu o facto à intervenção da Providência, que lhe teria
salvo a vida ao fazê-lo alterar o programa previsto: «Agora estou feliz. O
facto de ter saído da cervejaria Bürgerbräukeller mais cedo do que é normal
é uma confirmação da intenção da Providência de me deixar atingir o meu
objectivo.» Após esta tentativa falhada de assassínio, o arcebispo de
174

Munique, cardeal Michael Faulhaber, mandou celebrar um Te Deum na


catedral, «para, em nome da arquidiocese, agradecer à Divina Providência o
Führer ter escapado.» Com o apoio de Goebbels, alguns dos seguidores de
Hitler não hesitaram em transformar o nazismo numa religião por direito
próprio. O trecho abaixo, proferido pelo dirigente da União dos Sindicatos,
tem todo o espírito de uma oração e possui mesmo as cadências do pai-
nosso ou do credo cristãos:
Adolf Hitler! Estamos unidos em ti e só em ti! Queremos renovar o
nosso voto nesta hora: aqui na terra só cremos em Adolf Hitler. Cremos
que o nacional-socialismo é a única fé que há-de salvar o nosso povo.
Cremos que há um Senhor Deus nos céus que nos criou, nos conduz,
nos guia e visivelmente nos abençoa. E cremos que este Senhor Deus
nos enviou Adolf Hitler, para que a Alemanha se possa tornar um
alicerce para toda a eternidade.
175

No seu fantástico e perturbador livro Humanity: a Moral History of the


Twentieth Century (Vale University Press, 2001), Jonathan Glover observa
que «muitos aceitaram também o culto religioso de Estaline, assim expresso
por um escritor lituano»:

Aproximei-me do retrato de Estaline, tirei-o da parede, coloquei-o sobre


a mesa e, apoiando a cabeça nas mãos, fiquei a olhar e entreguei-me à
meditação. O que devo fazer? A cara do líder, tranquila como sempre,
olhos perspicazes que penetram na distância. Parece que o seu olhar
penetrante atravessa o meu pequeno quarto, se abre num abraço ao
mundo todo... Com cada fibra, cada nervo, cada gota de sangue do meu
corpo, sinto que, neste momento, nada mais existe em todo o mundo a
não ser este rosto querido e amado.

Esta adulação quase religiosa torna-se mais repugnante ainda por surgir,
no livro de Glover, imediatamente a seguir ao seu relato das tremendas
crueldades de Estaline.
Estaline era ateu e Hitler provavelmente não, mas mesmo que fosse, o
essencial do debate Estaline/Hitler é muito simples. Os ateus poderão,
individualmente, fazer coisas más, mas não as fazem em nome do ateísmo.
Estaline e Hitler fizeram coisas tremendamente más em nome,
respectivamente, do marxismo dogmático e doutrinário e de uma insana e
nada científica teoria da eugenia, eivada de delírios subwagnerianos. As
guerras religiosas são realmente travadas em nome da religião e ocorrem
com uma frequência terrível ao longo da História. Não me lembro de
nenhuma que tenha sido travada em nome do ateísmo. E porque haveria de
o ser? Uma guerra pode ter como motivação a ganância económica, a
ambição política, o preconceito étnico ou racial, uma grande ofensa ou uma
vingança, ou ainda a crença patriótica no destino de uma nação. Um motivo
ainda mais plausível para se travar uma guerra é a fé inabalável em que a
nossa religião é a única verdadeira, corroborada por um livro sagrado que
condena explicitamente à morte todos os hereges e seguidores de religiões
rivais, e que promete explicitamente que os soldados de Deus irão
directamente para um céu de mártires. Em The End of Faith, Sam Harris
vai, como de costume, ao cerne da questão:

O perigo da fé religiosa reside no facto de ela permitir que seres


humanos que são normais em tudo o resto, colham os frutos da
demência e os considerem sagrados. Porque a cada nova geração se
ensina às crianças que as proposições religiosas não precisam de ser
justificadas como o são as outras, a civilização ainda se encontra sitiada
pelos exércitos da desrazão. Ainda hoje, passado este tempo todo, nos
matamos por causa de literatura antiga. Quem imaginaria que algo tão
tragicamente absurdo seria possível?

Em contraste com isto, por que razão haveria alguém de ir para a guerra
por causa de uma ausência de crença?

142 «O «bom» livro é a tradução literal de uma designação convencional da Bíblia, em inglês. (N. das
T.)

143 Lane Fox (1992); Berlinerblau (2005).

144 Holloway (1999, 2005). A expressão «cristão em convalescença», de Richard Holloway, é retirada
de uma recensão literária do Guardian, 15 de Fevereiro de 2003:
http://books.guardian.co.uk/reviews/scienceandnature/0,6121,894941,00.html. O jornalista escocês
Muriel Gray publicou no Herald (de Glasgow) um belo relato do meu diálogo de Edimburgo com o
bispo Holloway: http://www.sundayherald.com/44517.

145 Para uma assustadora colecção de sermões de clérigos norte-americanos que culpam o «pecado»
humano pelo furacão «Katrina», ver http://universist.org/neworleans.htm.

146 Não é claro que a história, que teve origem em


http://datelinehollywood.com/archives/2005/09/05/robertson-blames-hurricane-on-choice-of-ellen-
deneres-to-host-emmys/, seja verdadeira. Quer seja verdadeira ou não, ela ganhou um crédito
generalizado porque é o tipo de afirmações do clero evangélico, incluindo Robertson, acerca de
desastres como o «Katrina». Veja-se, por exemplo,
www.emediawire.com/releases/2005/9/emw281940.htm. A página que afirma que a história do
«Katrina» é mentira (www.snopes.com/katrina/satire/robertson.asp) refere também a seguinte citação
de Robertson, a propósito de um cortejo do orgulho Gay realizado em Orlando, na Florida: «Eu avisaria
Orlando de que fica mesmo na rota de alguns grandes furacões, e acho que no vosso lugar não me poria
a agitar essas bandeiras mesmo na cara de Deus.»

147 Pat Robertson, noticiado pela BBC, em http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/4427144.stm.

148 Esta ideia profusamente cómica foi-me sugerida por Jonathan Miller, que, supreendentemente,
nunca a aproveitou para um sketch do seu Beyond the Fringe. Agradeço-lhe igualmente a
recomendação do douto livro em que se baseia, de Halbertal e Margalit (1992).

149 O texto «todos nós financiamos esta torrente de fanatismo saudita», de Johann Hari, é uma
denúncia da influência insidiosa de wahabismo saudita na Grã-Bretanha actual. Originariamente
publicado em lhe Independent de 8 de Fevereiro de 2007, foi posteriormente reproduzido em várias
páginas de Internet, incluindo RichardDawkins.net.

150 R. Dawkins, «Atheists for por Jesus», Free Inquiry 25, 1, 2005, 9-10.

151 Julia Sweeney também acerta no alvo quando se refere de passagem ao Budismo. Tal como o
Cristianismo é por vezes considerado uma religião mais simpática e mais branda do que o Islamismo, o
Budismo é frequentemente considerado a mais simpática de todas. Mas a doutrina da despromoção na
escada da reencarnação por causa de pecados cometidos numa vida anterior é bastante desagradável.
Diz Julia Sweeney: «Fui à Tailândia e aconteceu que fui visitar uma mulher que tomava conta de um
rapaz horrivelmente deformado. Disse à mulher: “É tão bom da sua parte cuidar deste pobre rapaz.” E
ela: “Não diga ‘pobre rapai, que ele deve ter feito qualquer coisa de muito terrível numa vida passada
para ter nascido assim.”»

152 Para uma análise perspicaz das técnicas usadas pelo cultos, ver Barker (1984).`É possível encontrar
mais relatos jornalísticos de cultos modernos em Lane (1996) e Kilduff e Javers (1978).

153 Eu sei que scrump não é um termo familiar aos leitores norte-americanos, mas gosto de ler palavras
norte-americanas estranhas e de as procurar no dicionário para alargar o meu vocabulário. Usei
deliberadamente este e outros regionalismos por esse motivo. Scrumping é um mot juste invulgarmente
económico. Não significa apenas roubar: significa especificamente roubar maçãs e apenas maçãs. É
difícil um mot ser mais juste do que isto. Há que reconhecer que a história do Génesis não especifica
que o fruto fosse uma maçã, mas a tradição há muito que o afirma.

154 Paul Vallely e Andrew Buncombe, «History of Christianity: Gospel according to Judas»,
Independent, 7 de Abril de 2006.

155 Infelizmente já fora de tempo para a edição de capa dura deste livro, foi agora publicado Reading
Judas, de Elaine Pagels e Karen L. King (Viking, Londres, 2007). Baseado na tradução de Karen King
do Evangelho de Judas, o livro dá uma perspectiva favorável desse alegado «arquitraidor» (que no
próprio Evangelho aparece referido na terceira pessoa).

156 Vermes (2000).

157 No original inglês, «ama o teu vizinho». (N. das T.)


158 O ensaio de Hartung foi originariamente publicado na Skeptic 3, 4, 1995, mas encontra-se agora
acessível em http://lrainc.com/swtaboo/taboos/ltn01.html.

159 Se o leitor não entende o significado de «santos da tribulação», referido nesta frase, não se
preocupe: de certeza que tem coisas melhores para fazer.

160 Smith (1995).

161 Guardian, 12 de Março de 2002:


http://books.guardian.co.uk/departments/politicsphilisophyandsociety/story/0,,664342,00.html.

162 N. D. Glenn, «Interreligious marriage in the United States: patterns and recent trends», Journal of
Marriage and the Family 44, 3, 1982, 555-66.

163 http://www.ebonmusings.org/atheism/new10c.html.

164 Huxley (1871).

165 http://www.classic-literature.co.uk/american-authors/19th-centu-ry/abraham-lincoln/the-writings-
of-abraham-lincoln-04/.

166 Designações depreciativas ou insultuosas; frog = francês; wop = italiano; dago = ibero/italo-
americano; hun = alemão; yid = judeu; coon = negro; nip = japonês; wog (brit.) = do Próximo ou
Extremo Oriente. (N. das T.)

167 Bullock (1991).

168 Bullock (2005).

169 http://www.ffrf.org/fttoday/1997/march97/holocaust.html. Este artigo de Richard E. Smith,


publicado originariamente em Freethought Today, em Março de 1997, contém uma grande quantidade
de citações relevantes de Hitler e outros nazis, com indicação das respectivas fontes. Não havendo
nenhuma outra menção, as minhas citações são do artigo de Smith.

170 http://homepages.paradise.net.nz/mischedj/ca_hitler.html.

171 Bullock (2005, 96).

172 Adolf Hitler, discurso de 12 de Abril de 1922. Em Baynes (1942, 19-20).

173 Bullock (2005, 43).

174 Esta citação, bem como a seguinte, foram retiradas do artigo de Anne Nicol Gaylor sobre a religião
de Hitler, http://www.ffrf.org/fttoday/back/hitler.html.

175 http://www.contra-mundum.org/schirrmacher/NS_Religion.pdf.
8
Qual é o mal da religião?
Porquê tanta hostilidade?
A religião convenceu efectivamente as pessoas de que existe
um homem invisível que vive no céu e que vê tudo o que
fazemos, a cada minuto do dia. E o homem invisível tem uma
lista especial de dez coisas que não quer que façamos. E se
fizermos alguma dessas coisas, ele tem um lugar especial,
repleto de fogo e fumo e calor e abrasamento e dor, para onde
nos manda viver e sofrer e arder e sufocar e gritar e chorar
para todo o sempre, até ao fim dos tempos... Mas ele ama-nos!
George Carlin

Por temperamento, não me dou bem com o confronto. Não acho que o
modelo do contraditório se adeqúe à busca da verdade, e costumo recusar os
convites para participar em debates formais. Uma vez fui convidado para
um frente-a-frente com o então arcebispo de York, em Edimburgo. Honrado
com o convite, aceitei. Após o debate, o físico religioso Russell Stannard
reproduziu no seu livro Doing Away With God? uma carta que enviara ao
Observer:

Exmo Senhor, sob o alegre título «Deus não consegue mais do que um
humilde segundo lugar na corrida com Sua Majestade a Ciência», o
vosso correspondente para a ciência contou (e logo no Domingo de
Páscoa) como Richard Dawkins «infligiu severo dano intelectual» ao
arcebispo de York durante um debate sobre ciência e religião. A peça
falava de «ateus de sorriso enfatuado» e referia o resultado: «Leões, 10
– Cristãos, 0.»
O texto de Stannard prossegue repreendendo o Observer por não ter
noticiado um encontro posterior entre ele, eu, o bispo de Birmingham e o
eminente cosmólogo Sir Hermann Bondi, encontro que ocorreu na Royal
Society e que já não tinha sido organizado nos moldes do frente-a-frente,
tendo resultado muito mais construtivo. Não posso deixar de concordar com
a sua condenação implícita do formato do frente-a-frente. Em especial, e
por razões que expliquei no livro A Devil’s Chaplain, nunca tomo parte em
debates com criacionistas.176

Apesar da minha aversão a estes duelos na praça pública, parece que


ganhei a fama de nutrir uma atitude beligerante em relação à religião.
Mesmo os colegas que concordam que Deus não existe, que não precisamos
da religião para sermos morais e que podemos explicar as raízes da religião
e da moralidade em termos não religiosos, interrogam-me com uma
perplexidade afável. Porque és tão hostil? Que tem de mal a religião, afinal?
Fará ela realmente assim tanto mal que tenhamos de combatê-la
activamente? Porque não fazer a nossa vida e deixar andar, como fazemos
com Touro e Escorpião, com a energia dos cristais e com as linhas ley? Não
se resumirá tudo isto a um conjunto de disparates inofensivos?
Podia retorquir que essa hostilidade que eu ou outros ateus, uma vez por
outra, verbalizamos em relação à religião se fica pelas palavras. Não vou
bombardear ninguém, decapitar ninguém, apedrejar ninguém, não vou
queimar ninguém na fogueira, nem crucificar ninguém, nem enviar aviões
contra arranha-céus, só por causa de uma divergência teológica. Mas
normalmente o meu interlocutor não se fica por aí, voltando à carga com
algo do género: «A tua hostilidade não faz de ti um ateu fundamentalista,
tão fundamentalista, à tua maneira, como são, à sua, os lunáticos da Cintura
Bíblica?» Tenho de me desembaraçar desta acusação de fundamentalismo,
177

que lamentavelmente é muito comum.

O fundamentalismo e a subversão da ciência


Os fundamentalistas sabem que estão certos porque leram a verdade num
livro sagrado e sabem, de antemão, que nada os demoverá da sua crença. A
verdade contida no livro sagrado é um axioma, não o produto final de um
processo de raciocínio. O livro é verdadeiro e, mesmo quando toda a
evidência o parece contradizer, é esta que deve ser rejeitada, não o livro. Em
contraste com isto, se eu enquanto cientista acredito em alguma coisa (a
evolução, por exemplo), acredito não por ter lido um livro sagrado, mas por
ter estudado as provas. Trata-se, de facto, de uma questão bastante
diferente. Não é por serem sagrados que se acredita nos livros sobre a
evolução. Acredita-se neles porque apresentam quantidades avassaladoras
de provas que se escoram umas nas outras. Em princípio, qualquer leitor
poderá examinar as provas. Quando um livro científico contém erros, estes
acabam por ser detectados e corrigidos nas edições seguintes.
Manifestamente, isso não acontece com os livros sagrados.
Poderá eventualmente o filósofo, e sobretudo o filósofo amador, de parca
erudição, e mais ainda o arauto do «relativismo cultural», suscitar nesta
altura uma questão, de resto tão fastidiosa quanto falsa: a de que a crença do
cientista na evidência das provas é, ela própria, uma questão de fé
fundamentalista. Tratei este tema noutro local, pelo que aqui apenas me
repetirei sumariamente. Todos nós, nas nossas vidas, acreditamos em
evidências, independentemente daquilo que professamos enquanto filósofos
amadores. Se for acusado de homicídio e o advogado de acusação me
perguntar, com ar solene, se é verdade que eu estava em Chicago na noite
do crime, não me livro com uma evasiva filosófica do género «depende do
que quer dizer com “verdade”». Nem com um argumento antropológico e
relativista como «só na sua acepção científica e ocidental de “em” é que eu
estive em Chicago. Os Bongoleses têm um conceito completamente
diferente de “em”, segundo o qual só podem verdadeiramente estar “em”
um lugar os anciãos ungidos, autorizados a fumar rapé pelo escroto seco de
um bode». 178

Talvez os cientistas sejam fundamentalistas quando se trata de definir em


abstracto o que se pretende dizer com «verdade», mas o resto das pessoas
também. Não sou mais fundamentalista quando digo que a evolução é uma
verdade do que quando digo que a Nova Zelândia fica no hemisfério sul.
Acreditamos na evolução porque a evidência o comprova, e abandoná-la-
íamos de um dia para o outro se novas provas surgissem a refutá-la. Um
verdadeiro fundamentalista nunca diria tal coisa.
É fácil confundir fundamentalismo com paixão. Posso parecer imbuído de
um fervor encarniçado, ou paixão, quando defendo a evolução contra um
criacionista fundamentalista, mas isso não é por um fundamentalismo
simétrico da minha parte. É, sim, porque as provas existentes da evolução
são esmagadoras e causa-me um intenso desânimo que o meu adversário
não consiga ver isso – ou, o que é mais habitual, que se recuse a ver porque
contradiz o seu livro sagrado. A minha paixão aumenta quando penso no
quanto os pobres fundamentalistas, e aqueles que eles influenciam, estão a
perder. É enorme o fascínio e a beleza das verdades da evolução, bem como
de muitas outras verdades científicas; que verdadeira tragédia deve ser
morrer tendo passado ao lado de tudo isso! É evidente que encaro isto com
paixão. Como não? Mas a minha crença na evolução não é
fundamentalismo e tampouco fé, porque sei bem o que seria preciso que
acontecesse para eu mudar de ideias, e fá-o-ia de bom grado se as provas
necessárias viessem a surgir.
Acontecem casos assim. Já tenho contado a história de um conceituado
membro dos mais antigos do Departamento de Zoologia de Oxford, era eu
ainda estudante de licenciatura. Durante anos a fio ele acreditara e ensinara
apaixonadamente que o aparelho de Golgi (uma característica microscópica
do interior das células) não era real: um artefacto, uma ilusão. Todas as
segundas-feiras à tarde era costume o departamento em peso ir assistir a
uma conferência dada por um colega visitante sobre a investigação em
curso. Numa dessas segundas-feiras, o visitante era um biólogo celular
norte-americano que apresentou provas completamente convincentes de que
o aparelho de Golgi era real. No final da conferência, o velho professor
encaminhou-se para a frente da sala, apertou a mão do americano e disse –
com paixão: «Meu caro colega, quero agradecer-lhe. Andei enganado estes
últimos 15 anos.» Aplaudimos até as mãos nos ficarem vermelhas. Nenhum
fundamentalista alguma vez diria tal coisa. A verdade é que nem todos os
cientistas o fariam também, mas todos afirmam, pelo menos, professar esse
ideal – ao contrário, por exemplo, dos políticos, que provavelmente lhe
chamariam virar a casaca. A memória do episódio que descrevi ainda me
provoca um nó na garganta.
Enquanto cientista, nutro hostilidade em relação à religiosidade
fundamentalista porque esta avilta deliberadamente a actividade científica.
Ensina-nos a não mudar as nossas mentes e a não querer conhecer
realidades estimulantes, de fácil acesso. Subverte a ciência e mina o
intelecto. O exemplo mais lamentável que conheço é o do geólogo
americano Kurt Wise, que presentemente dirige o Centro para a
Investigação sobre as Origens pertencente ao Bryan College, em Dayton, no
Tennessee. Não é por acaso que o Bryan College recebeu o nome de
William Jennings Bryan, advogado de acusação contra o professor de
Ciências John Scopes no processo conhecido como «Julgamento dos
Macacos», ocorrido, em Dayton, no ano de 1925. Wise podia ter realizado a
sua ambição de juventude de se tornar professor de Geologia numa
universidade a sério, uma universidade cujo lema fosse «pensamento
crítico» e não «pensamento crítico e bíblico», que é o oxímoro ostentado
pelo cite da instituição. Com efeito, Wise obteve na Universidade de
Chicago um diploma a sério, na área de Geologia, seguido de mais dois
graus superiores em Geologia e Paleontologia tirados na Universidade de
Harvard (nem mais), onde teve como professor Stephen Jay Gould (nem
mais). Era um jovem cientista altamente qualificado e genuinamente
promissor, bem lançado no seu sonho de ensinar ciência e seguir a via da
investigação numa universidade respeitável.
Deu-se então a tragédia. Ela surgiu não vinda de fora, mas da sua própria
mente, fatalmente subvertida e debilitada por uma educação religiosa
fundamentalista que o obrigava a crer que a Terra – tema da sua formação
em Geologia em Chicago e em Harvard – tinha menos de 10 000 anos. Wise
era demasiado inteligente para não reconhecer o choque frontal que havia
entre a sua religião e a sua ciência, e o conflito que se gerou na sua mente
foi-lhe causando um desassossego cada vez maior. Um dia, não conseguiu
suportar mais a pressão e resolveu o assunto à tesourada. Pegou numa
Bíblia e folheou-a do princípio ao fim, cortando literalmente todos os
versículos que teriam de ser eliminados se a visão científica do mundo fosse
verdadeira. No final deste exercício de mão-de-obra intensiva tão
implacavelmente sincero, restava tão pouco da sua Bíblia que

por mais que tentasse, e mesmo com o benefício das margens que
ficaram intactas, era impossível pegar-lhe sem que se rasgasse em dois.
Tive de me decidir entre a evolução e a Bíblia. Ou a Bíblia era
verdadeira e a evolução falsa, ou a evolução era verdadeira e eu tinha
de deitar a Bíblia fora... Foi nessa noite que aceitei a Palavra de Deus e
rejeitei tudo o que estivesse contra ela, incluindo a evolução. Desse
modo, e com grande pesar meu, atirei ao fogo todos os meus sonhos e
esperanças na ciência.
Acho isto horrivelmente triste. Mas enquanto com a história do aparelho
de Golgi me comovi de admiração e exultação, inclusivamente até às
lágrimas, a história de Kurt Wise é simplesmente patética – patética e
desprezível. A ferida assim causada à sua carreira e felicidade futura, uma
ferida auto-infligida, era tão desnecessária, tão fácil de evitar! A única coisa
a fazer era deitar a Bíblia fora. Ou então interpretá-la simbolicamente, ou
alegoricamente, como fazem os teólogos. Em vez disso, Wise optou pela via
fundamentalista deitando fora a ciência, a evidência e a razão, além de todos
os seus sonhos e esperanças.
Entre os fundamentalistas, Kurt Wise é talvez um caso único de
sinceridade – de uma devastadora, dolorosa e chocante sinceridade. Dê-se-
lhe o Prémio Templeton; bem pode vir a ser o primeiro agraciado realmente
sincero. Com efeito, Wise traz ao cimo aquilo que secretamente se passa, de
uma maneira geral, nas mentes dos fundamentalistas quando confrontados
com provas científicas que contradizem as suas crenças. Ouçamo-lo perorar:

Embora existam razões científicas para aceitar uma terra jovem,


enquanto criacionista sou defensor de uma datação jovem porque é essa
a minha interpretação da Bíblia. Tal como afirmei há alguns anos na
universidade, abrindo-me com os meus professores, se todas as provas
do universo acabassem por contrariar o criacionismo, eu seria o
primeiro a admiti-lo, mas continuaria a ser criacionista porque é para aí
que a Palavra de Deus parece apontar. Daqui não saio. 179

Wise parece estar aqui a citar Lutero quando afixou as suas teses na porta
da igreja de Wittenberg, mas a mim lembra-me mais a personagem Winston
Smith, em 1984 – esforçando-se desesperadamente por acreditar que dois e
dois são cinco se o Big Brother assim ordenar. Só que Winston age sob
tortura. Ao contrário do romance de Orwell, o «duplipensar» de Wise não
decorre do imperativo da tortura física, mas sim do imperativo – pelos
vistos igualmente incontestável, para algumas pessoas – da fé religiosa, que
de resto talvez não deixe de ser uma forma de tortura mental. Nutro
hostilidade em relação à religião por causa do que ela fez a Kurt Wise. E se
fez isso a um geólogo formado em Harvard, pense-se só no que pode fazer
às pessoas menos dotadas e menos preparadas.
A religião que é fundamentalista está firmemente apostada em arruinar a
formação científica de incontáveis milhares de jovens de espírito bem-
intencionado, ávido e inocente. A religião que é não-fundamentalista, a
religião «sensata», pode não o pretender fazer, mas cria condições
favoráveis ao fundamentalismo no mundo quando ensina as crianças, a
partir de tenra idade, que a fé inquestionante é uma virtude.

O lado obscuro do absolutismo


Quando, no capítulo anterior, tentei explicar o evoluir do Zeitgeist moral,
invoquei um consenso generalizado entre as pessoas com mentalidade
aberta, esclarecimento e decência. Parti do pressuposto optimista de que, de
uma maneira geral, todos «nós», uns mais do que outros, partilhamos este
consenso, e, ao dizê-lo, tinha em mente a maior parte das pessoas passíveis
de ler este livro, quer sejam religiosas ou não. Mas é claro que nem toda a
gente partilhará o consenso (e nem toda a gente vai ter vontade de ler o meu
livro). Há que admitir que o absolutismo se encontra longe de estar morto.
Na verdade, ele domina as mentes de um grande número de pessoas no
mundo actual, com especial perigosidade no mundo muçulmano e na
incipiente teocracia americana (uma expressão que é também o título de um
livro de Kevin Phillips). Esse absolutismo resulta quase sempre de uma fé
religiosa forte, e constitui uma importante razão para supor que a religião
pode ser uma força para o mal no mundo.
Uma das penas mais cruéis mencionadas no Antigo Testamento é a
exigida para a blasfémia. Em certos países ainda se encontra em vigor. A
secção 295-C do Código Penal paquistanês determina a pena de morte para
este «crime». No dia 18 de Agosto de 2001, o Dr. Younis Shaikh, médico e
conferencista, foi condenado à morte por blasfémia. O crime, no seu caso
concreto, foi dizer aos seus alunos que o Profeta Maomé não era de religião
muçulmana antes de, aos 40 anos, a ter inventado. Por tal «agravo», 11 dos
alunos fizeram queixa dele às autoridades. Geralmente a lei da blasfémia no
Paquistão é mais invocada contra cristãos. Foi o que sucedeu com
Augustine Ashiq «Kingri» Masih, condenado à morte em Faisalabad, no
ano 2000. De religião cristã, Masih não podia casar com a mulher de que
gostava por esta ser muçulmana e, por incrível que pareça, a lei
paquistanesa (e islâmica) não permite a uma mulher muçulmana casar com
homem não-muçulmano. Masih tentou converter-se ao Islão, sendo então
acusado de o fazer por motivos ignóbeis. O relatório que li não esclarece se
o crime capital foi este ou se foi algo que Masih alegadamente terá dito
acerca dos princípios morais do profeta. Seja como for, de certeza que não
foi o tipo de agravo susceptível de justificar a pena de morte em nenhum
país cujas leis sejam livres de fanatismo religioso.
Em 2006, no Afeganistão, Abdul Rahman foi condenado à morte por se
ter convertido ao Cristianismo. Matou alguém, fez mal a alguém, roubou
alguma coisa, causou algum tipo de estrago? Não. Tudo o que fez foi mudar
de ideias. Dentro de si, no seu íntimo, mudou de ideias. Entregou-se a certos
pensamentos que não eram ao gosto do partido no poder no seu país. E
lembre-se que este não é o Afeganistão dos talibãs, mas o Afeganistão
«libertado» de Hamid Karzai, instalado pela coligação que tem os Estados
Unidos à cabeça. Abdul Rahman acabaria por escapar à execução, mas só a
troco de uma alegação de insanidade e após intensa pressão internacional.
Há pouco tempo pediu asilo à Itália, para evitar ser assassinado por zelotas
ávidos de cumprir o seu dever islâmico. Na Constituição do Afeganistão
«libertado» mantém-se um artigo que diz que a pena para a apostasia é a
morte. Há que ter em mente que apostasia não significa um dano efectivo a
pessoas ou à propriedade. Trata-se de puro crime do pensamento, para
utilizar a terminologia de George Orwell no livro 1984, e a pena oficial para
ela, segundo a lei islâmica, é a morte. Para dar um exemplo em que a pena
foi efectivamente aplicada, no dia 3 de Setembro de 1992 Sadiq Abdul
Karim Malallah foi decapitado em público na Arábia Saudita após haver
sido legalmente condenado por apostasia e blasfémia. 180

Certa vez tive um encontro televisivo com Sir Iqbal Sacranie,


personalidade já mencionada no capítulo primeiro como sendo o principal
muçulmano «moderado» da Grã-Bretanha. Interpelei-o a propósito de a
pena de morte ser o castigo para a apostasia. Ele deu mostras de algum mal-
estar e foi-se furtando à questão, incapaz de negar o facto ou de o condenar.
Continuou sempre a tentar mudar de assunto, afirmando que era um
pormenor sem importância. Trata-se de um homem a quem o Governo
britânico conferiu o título de sir por promover as boas «relações entre os
diferentes credos».
Mas também não tenhamos contemplações com o Cristianismo. Em 1922
- em data relativamente recente, portanto -, John William Gott foi
condenado na Grã-Bretanha a nove meses de trabalhos forçados por
blasfémia: tinha comparado Jesus a um palhaço. É quase inacreditável, mas
o crime de blasfémia ainda consta no código de leis dimanadas do
Parlamento inglês e, em 2005, um grupo cristão tentou instaurar uma
181

acção judicial contra a BBC por blasfémia, pela transmissão do programa


Jerry Springer, the Opera.
Nos Estados Unidos, nestes últimos anos, a expressão «talibã americano»
andava nitidamente a pedir para ser cunhada, e uma rápida pesquisa no
Google revela mais de uma dúzia de websites que a utilizam. As citações aí
reunidas, proferidas por líderes religiosos e políticos norte-americanos de
orientação confessional, fazem sinistramente lembrar o fanatismo tacanho, a
crueldade impiedosa e a pura maldade dos talibãs afegãos, do aiatola
Khomeini e das autoridades wahabitas da Arábia Saudita. A página web de
nome «O talibã americano» constitui uma fonte particularmente rica de
citações aberrantemente imbecis, a começar por uma merecedora de um
prémio, da autoria de uma tal Ann Coulter, que, segundo me afiançam
colegas norte-americanos, não é uma daquelas patranhas inventadas pelo
jornal The Onion: «Devíamos invadir os países deles, matar-lhes os líderes e
convertê-los ao Cristianismo .» Outras pérolas incluem a frase do
182

congressista Bob Dornan: «Não usemos a palavra gay a não ser que seja
como sigla de “Got Aids Yet?”» ; a do general William G. Boykin:
183

«George Bush não foi eleito por uma maioria de eleitores dos Estados
Unidos, foi nomeado por Deus»; e outra frase mais antiga, expressão da
famosa política ambiental do secretário do Interior do Governo de Ronald
Reagan: «Não é preciso proteger o ambiente, que o Regresso d’Ele está para
breve.» O talibã afegão e o talibã americano são bons exemplos do que
acontece quando as pessoas levam as suas sagradas escrituras à letra e a
sério. Um e outro dão-nos uma assustadora imagem moderna de como seria
a vida na teocracia do Antigo Testamento. O livro de Kimberly Blaker The
Fundamentals of Extremism: The Christian Right in America é, todo ele,
uma denúncia da ameaça do talibã cristão (ainda que sem esse nome).

Fé e homossexualidade
No Afeganistão dominado pelos talibãs, o castigo oficial para a
homossexualidade era a execução através do requintado método de enterrar
a vítima ainda com vida, fazendo desabar um muro sobre ela. Sendo o
«crime», em si, um acto privado levado a cabo por adultos com o pleno
consentimento de ambos e sem causar qualquer dano a terceiros, estamos de
novo perante a marca clássica do absolutismo religioso. O meu próprio país
não se pode arrogar superioridade nesta matéria. Surpreendentemente, na
Grã-Bretanha a prática da homossexualidade em privado foi considerada
delito até 1967. Em 1954, o matemático britânico Alan Turing, candidato,
juntamente com John von Neumann, ao título de pai do computador,
suicidou-se depois de ter sido condenado pelo delito de comportamento
homossexual em privado. É certo que não enterraram Turing vivo, debaixo
de um muro empurrado por um tanque. Deram-lhe a escolher entre dois
anos de prisão (pode imaginar-se como os outros prisioneiros o teriam
tratado) e um programa de injecções de hormonas que equivaleria à
castração química e o teria feito ficar com seios desenvolvidos. Por fim
decidiu-se por uma maçã, que injectara com cianeto. 184

Turing, o principal cérebro por trás da decifração dos códigos das


máquinas «Enigma» dos Alemães, prestou provavelmente um maior
contributo para a derrota dos nazis do que Eisenhower ou Churchill. Graças
a Turing e aos seus colegas do projecto Ultra, de Bletchley Park, durante
longos períodos da guerra os generais aliados no terreno estavam
permanentemente inteirados dos pormenores dos planos dos generais
alemães antes de estes terem tempo de os pôr em prática. Depois da guerra,
quando as suas funções deixaram de ser ultra-secretas, Turing devia ter sido
armado cavaleiro e homenageado como um dos salvadores da nação. Em
vez disso, este génio afável, excêntrico e gago foi destruído por um «crime»
cometido em privado e que a ninguém fez mal. Uma vez mais, a
inconfundível marca do moralizador guiado pela fé é preocupar-se
encarniçadamente com o que as outras pessoas fazem (ou sequer pensam)
em privado.
A atitude dos «talibãs americanos» relativamente à homossexualidade
traduz bem o seu absolutismo religioso. Atente-se nas palavras do
reverendo Jerry Falwell, fundador da Liberty University: «A sida não é
apenas o castigo de Deus para os homossexuais, é o castigo de Deus para a
sociedade que tolera os homossexuais.» A primeira coisa que me chama a
185

atenção, nesta gente, é a sua extraordinária caridade cristã. Que eleitorado é


esse que consegue, mandato após mandato, votar num homem de uma
intolerância tão desinformada como é o senador Jesse Helms, republicano
da Carolina do Norte? Um homem capaz de comentários escarninhos como
este: «O New York Times e o Washington Post estão ambos infestados de
homossexuais. Por lá é quase tudo homossexuais ou lésbicas.» A resposta,
186

em minha opinião, é que esse é um eleitorado que entende a moralidade em


termos religiosos estreitos e que se sente ameaçado por todos quantos não
partilhem da mesma fé absolutista.
Já citei Pat Robertson, fundador da Coligação Cristã. Robertson foi um
sério candidato à nomeação do Partido Republicano nas eleições
presidenciais de 1988, tendo mobilizado mais de três milhões de voluntários
para trabalharem na sua campanha, além de uma quantia igualmente
avantajada: um inquietante nível de apoio, atendendo a que as citações que
se seguem são inteiramente típicas da sua pessoa: «[Os homossexuais]
querem entrar nas igrejas para interromper o serviço religioso e lançar
sangue por todo o lado, pegar a sida às pessoas e cuspir na cara dos
sacerdotes.» «[A Planned Parenthood ] anda a ensinar a miudagem a
187

fornicar, anda a ensinar as pessoas a cometer adultério e toda a sorte de


bestialidade, homossexualidade, lesbianismo – tudo o que a Bíblia
condena.» A atitude de Robertson relativamente às mulheres também é de
molde a enternecer os negros corações dos talibãs afegãos: «Eu sei que é
doloroso as senhoras ouvirem isto, mas casar é aceitar a chefia de um
homem, o vosso marido. Cristo é o chefe da casa e o marido é o chefe da
esposa, e assim é que deve ser, ponto final.»
Gary Potterm, presidente da associação Católicos por uma Acção Política
Cristã, afirmou: «Quando a maioria cristã tomar conta deste país, acabar-se-
ão as igrejas satânicas, a distribuição gratuita de pornografia, a conversa
sobre os direitos dos homossexuais. Quando a maioria cristã assumir o
controlo, o pluralismo há-de ser considerado imoral e mau, e o Estado não
permitirá a ninguém o direito de praticar o mal.» «Mal», como se torna
evidente pela citação, não significa fazer coisas que tenham consequências
negativas para as pessoas. Significa acções e pensamentos íntimos que não
sejam do íntimo agrado «da maioria cristã».
O pastor Fred Phelps, da Igreja Baptista de Westboro, é outro grande
pregador com uma aversão obsessiva aos homossexuais. Quando a viúva de
Martin Luther King faleceu, o pastor Fred organizou um piquete em pleno
funeral, onde proclamava: «Deus odeia os maricas & aqueles que os
promovem! Portanto, Deus odeia Coretta Scott King e está neste momento a
submetê-la às tormentas do fogo e do enxofre, lá onde o miserável nunca
morre e o fogo nunca é extinto, e o fumo do seu tormento se eleva para todo
o sempre.» É fácil minimizar a importância de Fred Phelps dizendo que
188

não passa de um lunático, mas há muita gente que o apoia, inclusivamente


com dinheiro. Segundo o seu próprio website, Phelps organizou, desde
1991, 22 000 manifestações anti-homossexuais (o que em média dá quatro
por dia) nos Estados Unidos da América, Canadá, Jordânia e Iraque,
exibindo slogans como «OBRIGADO, MEU DEUS, PELA SIDA». Uma
característica particularmente aliciante do website é a contagem automática
do número de dias que um determinado homossexual já falecido, e ali
devidamente mencionado, está a arder no inferno.
As atitudes para com a homossexualidade revelam muito acerca do tipo
de moralidade que a fé religiosa inspira. Igualmente esclarecedor é o
exemplo facultado pelo aborto e pela santidade da vida humana.

A fé e a santidade da vida humana


Os embriões humanos são exemplos de vida humana. Por conseguinte, à
luz do entendimento religioso absolutista, o aborto é, pura e simplesmente,
errado: um homicídio, com todas as letras. Não sei exactamente como
articular com isto a minha observação, confessadamente pontual e não
sistemática, de que muitos daqueles que mais ardorosamente se opõem à
privação da vida embrionária parecem ser também dos mais entusiásticos
defensores de que se disponha de uma vida adulta. Em justiça, há que dizer
que isto não se aplica, por via de regra, aos católicos, que se contam entre
aqueles que com maior veemência se opõem ao aborto. Mas já o cristão-
renascido George W. Bush é típico da sensibilidade religiosa hoje
dominante. Um e outros são firmes defensores da vida humana, desde que
seja vida embrionária (ou vida com doença terminal), a ponto,
inclusivamente, de travar investigações médicas indubitavelmente capazes
de salvar muitas vidas. A base óbvia para a oposição à pena de morte é o
189

respeito pela vida humana. Desde 1976, ano em que o Supremo Tribunal
revogou a proibição da pena de morte, o Texas foi responsável por mais de
um terço do total de execuções levadas a cabo nos 50 estados dos EUA, e
Bush presidiu a mais execuções no Texas do que qualquer outro governador
da história do estado, à média de uma morte em cada nove dias. Será que se
limitou a cumprir o dever e a pôr em prática as leis do estado? Mas então,
190

como entender o célebre relato da reportagem feita pelo jornalista da CNN


Tucker Carlson? Carlson, ele próprio um apologista da pena de morte, ficou
chocado com a imitação «humorística» que Bush fez de uma prisioneira no
corredor da morte, quando implorava ao governador uma suspensão da
execução: «“Por favor”, choraminga Bush, fazendo beicinho num arremedo
de desespero, “Não me mate.”» Talvez esta mulher tivesse encontrado
191

mais compaixão se tivesse chamado a atenção para o facto de outrora ter


sido um embrião. A simples ideia do embrião parece realmente produzir o
mais extraordinário dos efeitos em muitas pessoas de fé. A Madre Teresa de
Calcutá chegou mesmo a dizer, durante o discurso de entrega do Prémio
Nobel da Paz: «O maior destruidor da paz é o aborto.» O quê? Como pode
uma mulher de tão míope discernimento ser levada a sério em qualquer
assunto que seja, quanto mais ser considerada seriamente merecedora de um
Prémio Nobel? A quem se sinta tentado a ir atrás da hipocrisia beata da
Madre Teresa, recomendo o livro de Christopher Hitchens The Missionary
Position: Mother Teresa in Theory and Practice.
Voltando aos talibãs americanos, ouçamos Randall Terry, fundador da
Operation Rescue (Operação Salvamento) uma organização destinada a
intimidar as entidades que prestam serviços de abortamento. «Quando eu,
ou pessoas como eu, estivermos à frente dos destinos do país, é melhor
fugirdes, porque havemos de vos encontrar, julgar e executar. Estou a medir
bem as minhas palavras. Uma parte da minha missão há-de ser tratar de que
sejam levados a julgamento e executados.» Terry referia-se, aqui, aos
médicos que realizam abortos, e a sua inspiração cristã transparece
claramente de outras declarações suas:

Só quero que vos deixeis invadir por uma onda de intolerância. Quero
que vos deixeis invadir por uma onda de ódio. Sim, o ódio é bom... O
nosso objectivo é uma nação cristã. Temos um dever bíblico, Deus
chamou-nos a conquistar este país. Não queremos paridade. Não
queremos pluralismo.
O nosso objectivo tem de ser simples. Temos de ter uma nação cristã
edificada sobre a lei de Deus, sobre os Dez Mandamentos. Sem
contemplações .192
Esta ambição de alcançar aquilo que só pode ser designado por Estado
fascista cristão é absolutamente típica do talibã americano. É quase
exactamente, como que vista ao espelho, a imagem simétrica do Estado
fascista islâmico, por que tantos tão fervorosamente anseiam noutras partes
do mundo. Randall Terry não ascendeu – ainda – ao poder político. Mas à
data da escrita deste livro (2006), nenhum observador do panorama político
norte-americano se poderá dar ao luxo de se sentir optimista.
Um consequencialista ou um utilitarista abordará provavelmente a
questão do aborto de forma muito diferente, procurando tomar em linha de
conta o sofrimento eventualmente provocado. O embrião sofre?
(Presumivelmente não, se for abortado antes de possuir sistema nervoso; e
mesmo que tenha idade suficiente para já possuir sistema nervoso, de
certeza que sofre menos do que, por exemplo, uma vaca adulta no
matadouro.) A grávida, ou a família, sofrem se aquela não fizer um aborto?
Muito possivelmente sim; e seja como for, atendendo a que o embrião não
possui sistema nervoso, será que não se deve fazer pender a decisão para o
sistema nervoso da mãe, esse já bem desenvolvido?
Não pretendo, com isto, negar que um consequencialista tenha motivos
para se opor ao aborto. Os consequencialistas (mas não eu próprio, neste
caso) poderão equacionar argumentos do tipo «declive escorregadio». 193

Talvez os embriões não sofram, mas uma cultura que tolera que se disponha
da vida humana corre o risco de ir longe de mais: onde tudo irá parar? No
infanticídio? O momento do nascimento proporciona um Rubicão natural
para a definição de regras, e é possível argumentar que é difícil encontrar
outro antes dele, ao longo do desenvolvimento do embrião. Os argumentos
de declive escorregadio poderão, assim, levar-nos a atribuir ao momento do
nascimento um significado maior do que aquilo que o utilitarismo,
entendido em sentido estrito, gostaria que acontecesse.
Os argumentos contra a eutanásia também são passíveis de ser
equacionados em termos de declive escorregadio. Tomemos uma citação
imaginária de um filósofo moral: «Se permitirmos que os médicos ponham
termo à agonia dos doentes terminais, daqui a pouco toda a gente começa a
despachar a avozinha só para ficar com o dinheiro dela. Enquanto filósofos,
podemos ter superado o absolutismo, mas a sociedade necessita da
disciplina de regras absolutas como «não matarás», caso contrário não
saberá onde parar. Num mundo aquém do que seria ideal, e ainda que pelos
mais errados motivos, o absolutismo poderá, em certas circunstâncias, ter
consequências melhores do que o consequencialismo ingénuo! Os filósofos
como nós poderão ver-se em dificuldades para proibir que se comam
pessoas que morram sem deixar quem os chore – vagabundos atropelados
na estrada, por exemplo. Mas, pelas razões escorregadias já mencionadas, o
tabu absolutista contra o canibalismo é demasiado valioso para que dele
possamos prescindir.»
Os argumentos escorregadios podem ser vistos como uma maneira que os
consequencialistas encontram de reincorporar indirectamente uma forma de
absolutismo. Mas os inimigos religiosos do aborto não se incomodam com
declives escorregadios. Para eles, a questão é muito mais simples. Um
embrião é uma «criancinha», matá-la é homicídio e acabou: fim de
discussão. Esta posição absolutista tem importantes implicações. Para
começar, a investigação sobre células estaminais embrionárias deve parar,
apesar do enorme potencial que representa para a ciência médica, porque
implica a morte de células embrionárias. A inconsistência do raciocínio
resulta evidente quando se pensa que a sociedade já aceita a FIV
(fertilização in vitro), processo através do qual os médicos induzem
regularmente as mulheres a produzir óvulos a mais, a fim de serem
fertilizados fora do corpo. Podem produzir-se até 12 zigotos viáveis, dos
quais dois ou três são então implantados no útero. Destes, espera-se que
apenas um ou, possivelmente, dois sobrevivam. Como se vê, a fertilização
in vitro mata conceptos em duas etapas do processo e a sociedade em geral
não tem problemas com isso. Há 25 anos que a fertilização in vitro constitui
um procedimento-padrão para trazer alegria às vidas dos casais sem filhos.
Contudo, os absolutistas religiosos também conseguem ver problemas na
fertilização in vitro. O Guardian de 3 de Junho de 2005 trazia uma
estranhíssima história intitulada «Casais cristãos respondem à chamada para
salvar embriões desaproveitados pela FIV». A notícia é sobre uma
organização chamada Showflakes (Flocos de Neve), que procura «salvar»
embriões excedentários deitados fora pelas clínicas de fertilização in vitro.
«Sentimos realmente que o Senhor nos estava a chamar para que
tentássemos dar a um destes embriões – destas crianças – uma oportunidade
de viver», declarou uma mulher do estado de Washington, cujo quarto filho
resultou desta «aliança inesperada que os cristãos conservadores têm vindo
a formar com o mundo dos bebés-proveta». Preocupado com tal aliança, o
marido consultara um presbítero, que aconselhou: «Às vezes, para libertar
os escravos, é preciso negociar com o negreiro.» Pergunto-me o que diriam
estas pessoas se soubessem que, de qualquer modo, a maioria dos embriões
concebidos acaba por abortar espontaneamente. Talvez devamos considerar
essa realidade uma forma natural de «controlo de qualidade».
Para um certo tipo de mente religiosa, não é visível a diferença moral
entre, por um lado, matar um cacho microscópico de células e, por outro,
matar um médico adulto. Já citei Randall Terry e a sua Operação
Salvamento. No seu arrepiante livro Terror in the Mind of God, Mark
Juergensmeyer publica uma fotografia do reverendo Michael Bray com o
amigo, o reverendo Paul Hill, segurando uma faixa onde se lê: «Será errado
pôr fim ao assassínio de crianças inocentes?» Ambos têm o aspecto de
jovens simpáticos e aprumados, de sorriso cativante, bem vestidos, com
roupa informal, o oposto de loucos de olhar arregalado. No entanto, eles e
os amigos do Army of God, AOG (o Exército do Senhor) dedicaram-se a
incendiar clínicas de aborto, não fazendo segredo do seu desejo de matar
médicos. No dia 29 de Julho de 1994, Paul Hill pegou numa caçadeira e
assassinou o Dr. John Britton e o guarda-costas deste, James Barrett, no
exterior da clínica de Britton, em Pensacola, na Florida. De seguida
entregou-se à polícia, dizendo que tinha matado o médico para impedir mais
mortes de «crianças inocentes».
Michael Bray defende estas acções de forma desenvolta e com toda a
aparência de um elevado propósito moral, como de resto descobri quando o
entrevistei num jardim público de Colorado Springs, para o meu
documentário televisivo sobre religião. Antes de avançar para a questão do
194

aborto, inteirei-me da extensão da moralidade bíblica de Bray fazendo-lhe


algumas perguntas preliminares. Fiz-lhe notar que a lei bíblica condena os
adúlteros à morte por apedrejamento. Esperava que me dissesse que era
evidente que este exemplo concreto não cabia nos limites do razoável, mas
Bray acabou por me surpreender. De facto, de pronto concordou que, após o
adequado procedimento judicial, os adúlteros deviam ser executados. Fiz
notar então que Paul Hill, com o apoio de Bray, não seguira o procedimento
judicial adequado, mas antes tomara a lei nas suas próprias mãos matando
um médico. Bray defendeu a acção do companheiro clérigo nos mesmos
termos que usara aquando da entrevista de Juergensmeyer, fazendo a
distinção entre o assassínio retributivo, por exemplo de um médico
reformado, e o assassínio de um médico no activo como meio de o impedir
de «matar crianças com regularidade». Fiz-lhe então ver que, embora as
crenças de Paul Hill fossem, sem dúvida, sinceras, a sociedade cairia numa
terrível anarquia se toda a gente invocasse as suas convicções pessoais para
tomar a lei nas suas próprias mãos, em vez de se sujeitar às leis em vigor.
Não será que o rumo certo estava em tentar alterar a lei de uma forma
democrática? Bray respondeu: «Bem, esse é o problema quando não temos
uma lei que seja uma lei autêntica; quando temos leis que são feitas por
pessoas, de uma forma improvisada e caprichosa, como vimos no caso da
chamada lei dos direitos do aborto, imposta às pessoas pelos juízes...»
Envolvemo-nos depois numa discussão sobre a Constituição americana e
sobre a proveniência das leis. A atitude de Bray relativamente a estas
questões acabou por me fazer lembrar a dos militantes muçulmanos a
viverem na Grã-Bretanha, que abertamente se proclamam vinculados
apenas à lei islâmica, não às leis democraticamente aprovadas do seu país
adoptivo.
Em 2003, Paul Hill foi executado pelo homicídio do Dr. Britton e do seu
guarda-costas, dizendo que o faria de novo para salvar aqueles que ainda
não nasceram. Numa cândida ânsia de morrer pela sua causa, Hill afirmou o
seguinte numa conferência de imprensa: «Acredito que, ao executar-me, o
Estado estará a fazer de mim um mártir.» Aos antiaborcionistas de direita
que expressavam o seu protesto na altura da execução, juntaram-se, em
repelente aliança, os manifestantes de esquerda contrários à pena de morte,
que pediam ao governador da Florida, Jeb Bush, que «parasse com o
martírio de Paul Hill». Argumentavam estes, com plausibilidade, que o
assassínio judicial de Hill acabaria de facto por incentivar à prática de novos
assassínios, que era precisamente o oposto do efeito dissuasor que a pena de
morte deveria ter. O próprio Hill sorriu durante todo o percurso até à câmara
de execução, dizendo: «Espero uma grande recompensa no céu... estou
ansioso pela glória.» E sugeriu, enfim, que outros abraçassem a sua
195

violenta causa. Prevendo ataques em retaliação pelo «martírio» de Paul Hill,


a polícia passou a alerta elevado no momento da execução, e várias pessoas
relacionadas com o caso receberam cartas de ameaça acompanhadas de
balas.
Toda esta terrível situação resulta de uma diferença simples de percepção.
Há pessoas que, devido às suas convicções religiosas, julgam que o aborto é
assassínio e estão prontas a matar em defesa dos embriões, a que acham por
bem chamar «crianças». Do lado contrário estão defensores do aborto,
pessoas igualmente sinceras e que, possuindo convicções religiosas
diferentes ou simplesmente não perfilhando qualquer religião, professam
uma moral consequencialista reflectidamente assumida. Também estes se
vêem a si próprios como idealistas, proporcionando serviços médicos a
pacientes que deles necessitam e que de outro modo iriam a curiosos de vão
de escada perigosamente incompetentes. Ambos os lados consideram que o
lado oposto é assassino ou defensor do assassínio. Ambos os lados, de
acordo com o seu próprio entendimento, são igualmente sinceros.
Uma porta-voz de outra clínica de aborto descreveu Paul Hill como um
psicopata perigoso. No entanto, as pessoas como ele não se vêem como
psicopatas perigosos, mas como pessoas boas e morais, guiadas por Deus.
Na verdade, não acho que Paul Hill fosse um psicopata. Apenas muito
religioso. Perigoso, sim, mas não um psicopata. Perigosamente religioso. À
luz da sua fé religiosa, Hill achava que tinha por si toda a razão e toda a
moral quando alvejou o Dr. Britton. O problema de Hill era a sua própria fé
religiosa. Michael Bray, quando o conheci, também não me deu a impressão
de ser um psicopata. Na verdade até gostei bastante dele. Achei-o um
homem honesto e sincero, de modo calmo e ar pensativo, com o infeliz
senão de que a sua mente tinha ficado cativa de perniciosos desconchavos
religiosos.
Os firmes opositores do aborto são, quase todos, pessoas profundamente
religiosas. Quanto aos defensores autênticos do aborto, quer sejam
individualmente pessoas religiosas ou não, o mais provável é penderem para
uma filosofia moral consequencialista e não religiosa, eventualmente
relacionada com a pergunta de Jeremy Bentham: «Eles são passíveis de
sofrimento?» Paul Hill e Michael Bray não viam qualquer diferença moral
entre matar um embrião e matar um médico, com a ressalva de que, para
eles, o embrião era uma «criança» imaculadamente inocente. Já o
consequencialista vê toda a diferença do mundo. Um embrião ainda na fase
inicial de desenvolvimento tem a sensibilidade e o aspecto de um girino.
Um médico é um ser adulto e consciente, com esperanças, amores,
aspirações, medos, com um imenso acervo de conhecimento humano, com
capacidade de sentir emoções profundas, muito provavelmente com uma
viúva destroçada e filhos órfãos, e quiçá pais idosos que o amam muito.
Paul Hill provocou um sofrimento verdadeiro, profundo e duradouro a
seres dotados de sistemas nervosos capazes de sofrimento. O médico que
ele vitimou não o fazia. Desprovidos de sistema nervoso, é consabido que
os embriões em fase inicial de desenvolvimento não sofrem. E se os
embriões abortados numa fase mais avançada, em que já possuem sistema
nervoso, sofrem – e ainda que todo o sofrimento seja deplorável –, não
sofrem por serem humanos. Não existe, de uma maneira geral, nenhuma
razão para supor que os embriões humanos, sejam de que idade forem,
sofram mais do que os embriões de vaca ou de ovelha na mesma fase de
desenvolvimento. E existe uma maioria de razões para supor que todos os
embriões, quer sejam humanos ou não, sofrem muito menos do que as vacas
ou as ovelhas adultas no matadouro, especialmente nos matadouros que
seguem preceitos ritualísticos, onde, por razões religiosas, os animais têm
de estar completamente conscientes quando lhes cortam a garganta em
cerimonial adequado.
O sofrimento é difícil de medir, podendo discutir-se os pormenores, mas
196

isso não afecta o meu ponto principal, que diz respeito à diferença entre
filosofias morais de tipo consequencialista secular, por um lado, e, por
outro, de tipo absoluto e religioso. Uma escola de pensamento preocupa-se
197

com a possibilidade de os embriões sofrerem, a outra, com a possibilidade


de eles serem humanos. Poderá ouvir-se os moralistas religiosos a
debaterem questões como: «Quando é que o embrião em desenvolvimento
passa a ser uma pessoa – um ser humano?» Quanto aos moralistas seculares,
o mais provável é fazerem perguntas do tipo «deixemo-nos de perguntar
sobre se é humano (o que significa isso no caso de um pequeno cacho de
células?); a partir de que idade é que um embrião em desenvolvimento, seja
de que espécie for, passa a ser capaz de sofrer?»

A grande falácia de Beethoven


Normalmente, o passo seguinte do antiaborcionista neste xadrez verbal é
mais ou menos assim. A questão não é se o embrião humano é ou não capaz
de sofrer nesse momento. A questão está no seu potencial. O aborto privou-
o da oportunidade de ter uma vida humana plena no futuro. Toda esta noção
pode ser condensada num argumento retórico cuja extrema estupidez é a sua
única desculpa para a profunda desonestidade de que enferma. Falo da
Grande Falácia de Beethoven, que existe sob várias formas. Em The Life
Science, Peter e Jean Medawar atribuem a versão abaixo a Norman St.
198

John Stevas (agora Lord St. John), deputado e destacado católico laico da
Grã-Bretanha. Este, por sua vez, bebeu-a em Maurice Baring (1874-1945),
um conhecido católico convertido e figura próxima desses pilares do
catolicismo que foram G. K. Chesterton e Hilaire Belloc. Esta versão surge
sob a forma de um diálogo hipotético entre dois médicos.

– Quero a sua opinião acerca da interrupção da gravidez. O pai era


sifilítico, a mãe tuberculosa. Dos quatro filhos que nasceram, o primeiro
era cego, o segundo morreu, o terceiro era surdo-mudo e o quarto
também era tuberculoso. Que teria feito?
– Teria interrompido a gravidez.
– Então teria assassinado Beethoven.

A Internet está pejada de websites ditos pró-vida que repetem esta história
ridícula, alterando pontualmente as premissas factuais com pródiga sem-
cerimónia. Eis outra versão. «Se conhecesse uma mulher grávida, já com
oito filhos, três deles surdos, dois cegos, um atrasado mental (e tudo porque
ela tinha sífilis), recomendar-lhe-ia o aborto? Nesse caso teria matado
Beethoven.» Esta apresentação da lenda relega o grande compositor de
199

quinto para nono na ordem de nascimento, aumenta para três o número dos
que nasceram surdos e para dois o número dos nascidos cegos, e atribui a
sífilis à mãe em vez de a atribuir ao pai. A maior parte dos 43 websites que
encontrei quando procurava versões da história atribuem-na não a Maurice
Baring, mas sim a um certo professor, L. R. Agnew, da Faculdade de
Medicina da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, de quem se diz
ter colocado o dilema aos seus alunos, concluindo com «parabéns, acabam
de assassinar Beethoven.» Podemos usar de caridade e conferir a L. R.
Agnew o benefício da dúvida de que tenha existido – é espantosa a
facilidade com que estas lendas urbanas despontam. Não consigo apurar se
foi Baring efectivamente quem deu origem à lenda, ou se esta já havia sido
inventada antes.
É que inventada foi de certeza. E é completamente falsa. A verdade é que
Ludwig van Beethoven não foi nem o nono, nem o quinto filho de seus pais.
Era o mais velho – em rigor o número dois, mas o irmão mais velho morreu
ainda em criança, como era comum na época, e tanto quanto se sabe não era
cego, nem surdo, nem mudo, nem atrasado mental. Não existem provas de
que qualquer dos progenitores tivesse sífilis, embora seja verdade que a mãe
acabou por morrer de tuberculose, como de resto era frequente na altura.
Trata-se, pois, na verdade, de uma rematada lenda urbana, uma pura
invenção, deliberadamente divulgada por pessoas com um interesse especial
em difundi-la. Mas seja como for, o facto de se tratar de uma mentira é
completamente irrelevante. Mesmo que não o fosse, o que dela se extrai é,
de facto, muito mau como argumento. Peter e Jean Medawar não
precisaram de duvidar da veracidade da história para lhe apontar a natureza
falaciosa: «O raciocínio subjacente a este odioso argumentozinho é uma
falácia de fazer pasmar, pois, a não ser que se esteja a sugerir que existe
uma qualquer ligação causal entre ter uma mãe tuberculosa e um pai
sifilítico e dar à luz um génio da música, a probabilidade de o mundo vir a
ser privado de um Beethoven pela via do aborto não é maior do que pela via
da abstinência sexual.» A rejeição lacónica e desdenhosa dos Medawar
200

não deixa qualquer margem de resposta (e já agora, acrescente-se, tomando


de empréstimo o enredo de um dos sombrios contos de Roald Dahl, que
uma decisão igualmente fortuita de não fazer um aborto em 1888 acabou
por nos dar Adolf Hitler). Mas é mesmo necessário ter-se um grão de
inteligência – ou talvez de liberdade em relação a um certo tipo de educação
religiosa – para compreender o que aqui está em causa. Dos 43 websites
pró-vida com versões da lenda de Beethoven que a minha pesquisa no
Google mostrou no dia em que escrevi estas linhas, nem um só detectou a
falta de lógica do argumento. Todos eles (sites religiosos, de resto) se
deixaram ir completamente atrás da falácia. Um deles até dava Medawar
(escrito Medavvar) como sendo a fonte da lenda. De tão ansiosa por
acreditar numa falácia que vai ao encontro da sua fé, esta gente nem sequer
reparou que os Medawar tinham referido o argumento apenas para o
pulverizar.
Tal como justamente realçaram os Medawar, a conclusão lógica do
argumento do «potencial humano» é que, sempre que desaproveitamos uma
oportunidade para ter relações sexuais, estamos potencialmente a privar
uma alma humana da dádiva da existência. Toda a recusa de uma proposta
de cópula por parte de um indivíduo fértil será, segundo esta idiota lógica
pró-vida, o mesmo que assassinar uma criança em potência! Até mesmo
resistir a uma violação pode ser visto como o assassínio de um bebé em
potência (e diga-se, a propósito, que existem nas campanhas «pró-vida»
muitas pessoas que recusariam o aborto até mesmo a mulheres vítimas de
violações brutais). Como podemos claramente ver, o argumento Beethoven
tem uma lógica muito débil, cuja estultícia surreal encontra a sua mais
esplêndida expressão na canção «Todo o Esperma É Sagrado», cantada por
Michael Palin, mais um coro de centenas de crianças, no filme dos Monty
Python O Sentido da Vida (quem não viu ainda, faça o favor). A Grande
Falácia de Beethoven é um exemplo típico do género de embrulhada lógica
em que nos metemos quando as nossas mentes se deixam confundir por um
absolutismo de inspiração religiosa.
Repare-se como a expressão «pró-vida» não é, exactamente, o mesmo que
pró-vida. Ela significa, isso sim, pró-vida-humana. A concessão de direitos
singularmente especiais a células da espécie Homo sapiens é difícil de
conciliar com a evolução. É verdade que isto não será motivo de
preocupação para os muitos antiaborcionistas que não compreendem que a
evolução é mesmo uma realidade! Mas permita-se-me explicar brevemente
o argumento, para eventual benefício dos activistas antiaborto menos
desconhecedores da ciência.
A questão, do ponto de vista evolutivo, é muito simples. A humanidade
das células de um embrião não é passível de lhe conferir um estatuto moral
absolutamente descontínuo. E não o é, por causa da nossa continuidade
evolutiva com os chimpanzés e, embora a maior distância, com todas as
restantes espécies do planeta. Para melhor se entender a ideia, imagine-se
que uma espécie intermédia, a do Australopithecus afarensis por exemplo,
tinha conseguido sobreviver e era descoberta numa parte remota de África.
Estas criaturas «contariam como humanos» ou não? Para um
consequencialista como eu, a questão não merece resposta, pois nada
depende dela. Basta dizer que ficaríamos fascinados e honrados por
conhecermos uma nova «Lucy». Por outro lado, o absolutista tem de
responder à questão para aplicar o princípio moral da concessão de um
estatuto singular e especial aos humanos pelo facto de serem humanos. Se
tal se mostrasse necessário, talvez chegassem a criar tribunais, como os da
África do Sul do apartheid, para decidir se determinado indivíduo deveria
«contar como humano».
Mesmo que se aventasse uma resposta clara no caso do australopiteco,
essa característica inescapável da evolução biológica que é a continuidade
gradativa diz-nos que deve haver algum intermediário suficientemente
próximo da «fronteira» para fazer esbater o princípio moral e destruir o seu
carácter absoluto. Uma maneira melhor de dizer isto é que não existem
fronteiras naturais na evolução, essa ilusão resulta do facto de os
intermediários evolutivos estarem extintos. É claro que se pode sustentar
que os humanos são mais capazes de sofrimento, por exemplo, do que
outras espécies. Pode ser que sim, e com base nessa circunstância
poderemos legitimamente conferir-lhes um estatuto especial, mas a
continuidade evolutiva mostra que não há uma distinção absoluta. A
discriminação moral absolutista é devastadoramente abalada pela realidade
que é a evolução. É possível, de resto, que a consciência relutante deste
facto esteja na base de um dos principais motivos que os criacionistas têm
para se opor à evolução: é que eles temem as consequências morais que
acreditam que ela acarreta. Erram ao fazê-lo e, em todo o caso, é certamente
muito estranho pensar que uma verdade acerca do mundo real pode ser
invertida em função daquilo que seria moralmente desejável.

Como a «moderação» na fé promove o fanatismo


Para ilustrar o lado obscuro do absolutismo mencionei os cristãos dos
Estados Unidos, que fazem explodir clínicas de aborto, e os talibãs do
Afeganistão, cuja lista de crueldades, especialmente relativamente às
mulheres, considero demasiado dolorosa para referir aqui. Podia ter
acrescentado o Irão dos aiatolas ou a Arábia Saudita da família Saud, onde
as mulheres não são autorizadas a conduzir e incorrem em falta apenas por
saírem de suas casas sem ser acompanhadas por um homem da família (que
pode, em generosa concessão, ser uma criança pequena do sexo masculino).
Leia-se Price of Honour, de Jan Goodwin, um livro que é uma denúncia
devastadora do tratamento dado às mulheres na Arábia Saudita e noutras
teocracias da actualidade. Johann Hari, um dos mais activos colunistas do
Independent (de Londres), escreveu um artigo cujo título fala por si: «A
melhor maneira de minar o poder dos jihadistas é desencadear a revolta
entre as mulheres muçulmanas .» 201

Ou então, voltando ao Cristianismo, podia ter referido os cristãos


americanos do chamado movimento Rapture, ou «arrebatamento», cuja
poderosa influência na política norte-americana para o Médio Oriente é
ditada pela sua crença bíblica de que Israel tem direito, por vontade de
Deus, a toda a terra da Palestina. Alguns desses crentes no arrebatamento
202

vão mais longe e anseiam efectivamente pela guerra nuclear, que


interpretam como sendo o Armagedão. Este, segundo a sua bizarra mas
preocupantemente popular interpretação do Apocalipse, irá apressar a
Segunda Vinda de Cristo. Como comentário, não consigo encontrar melhor
formulação do que as arrepiantes palavras de Sam Harris, em Letter to a
Christian Nation:

Não é, portanto, exagero afirmar que, se a cidade de Nova Iorque fosse


subitamente substituída por uma bola de fogo, uma percentagem
significativa da população norte-americana veria um arco-íris de
esperança na nuvem em forma de cogumelo que lhe sobreviria, já que
nela veriam um sinal de que a melhor coisa que alguma vez poderia
acontecer estava prestes a acontecer: o regresso de Cristo. Deveria ser
de uma evidência flagrante que crenças como esta pouco hão-de
contribuir para nos ajudar a criar um futuro duradouro para nós próprios
– seja do ponto de vista social, económico, ambiental ou geopolítico.
Imagine-se as consequências se por acaso algum segmento significativo
do Governo dos Estados Unidos efectivamente acreditasse que o mundo
estava prestes a acabar e que o seu fim seria glorioso. O facto de quase
metade da população norte-americana parecer acreditar nisto, apenas
com base no dogma religioso, deveria ser considerado uma situação de
emergência moral e intelectual.

Existem, pois, pessoas cuja fé religiosa as coloca à margem do consenso


esclarecido do meu «Zeitgeist moral». Essas pessoas representam aquilo a
que chamei o lado obscuro do absolutismo religioso, e são frequentemente
apelidadas de extremistas. Mas o ponto essencial a que quero chegar, nesta
secção, é que a religião, mesmo quando esbatida e moderada, ajuda a
proporcionar o clima de fé em que o extremismo, naturalmente, floresce.
Em Julho de 2005, Londres foi vítima de um ataque concertado de
bombistas suicidas: três bombas no metro e uma num autocarro. Não tão
grave como o ataque ao World Trade Center de 2001, e sem dúvida que
menos inesperado (na verdade, Londres já andava crispada à espera de um
acontecimento do género desde que Tony Blair nos arregimentou como
comparsas de George Bush para a invasão do Iraque), mas mesmo assim as
explosões de Londres provocaram o horror em toda a Grã-Bretanha. Os
jornais encheram-se de comentários sofridos sobre o que teria levado quatro
jovens a fazerem-se explodir levando consigo uma grande quantidade de
pessoas inocentes. Os assassinos eram cidadãos britânicos bem-educados,
adeptos do críquete, o tipo de jovens cuja companhia deveríamos ter
apreciado.
Porque o fizeram, afinal, esses jovens adeptos do críquete? Ao contrário
dos seus homólogos palestinianos, ou dos kamikaze japoneses, ou ainda dos
Tigres Tâmil do Sri Lanka, a estas bombas humanas não as moveu a
expectativa de que as suas famílias enlutadas fossem alvo de admiração,
protegidas ou apoiadas com pensões devidas a mártires. Muito pelo
contrário, os familiares tiveram, nalguns casos, de se esconder. Um dos
homens cometeu a crueldade de deixar grávida a viúva e órfão o filho, que
começava a dar os primeiros passos. O acto destes quatro jovens traduziu-se
num desastre não só para os próprios e para as vítimas, como também para
as famílias deles e para toda a comunidade muçulmana da Grã-Bretanha,
sobre quem as repercussões agora se abatem. Só a força da fé religiosa é
capaz de motivar uma loucura tão extrema em pessoas que em tudo o mais
dão mostras de sanidade e compostura. O problema foi formulado, mais
uma vez, com perspicaz frontalidade por Sam Harris ao referir o exemplo
do líder da Al-Qaida, Osama bin Laden (o qual, a propósito, nada teve a ver
com as bombas de Londres). Por que razão haveria alguém de querer
destruir as torres do World Trade Center e toda a gente que nelas se
encontrava? Chamar «mau» a Bin Laden é fugir à nossa responsabilidade de
dar uma resposta adequada a tão importante pergunta.

A resposta a esta questão é óbvia – quanto mais não seja porque foi
pacientemente repetida ad nauseam pelo próprio Bin Laden. A resposta
é que homens como ele acreditam efectivamente naquilo em que dizem
que acreditam. Acreditam na verdade literal do Corão. Por que motivo
terão 19 homens instruídos, pertencentes à classe média, trocado as suas
vidas neste mundo pelo privilégio de matar milhares dos nossos
semelhantes? Porque acreditavam que iriam direitos para o paraíso se o
fizessem. É raro encontrar comportamentos humanos explicados de
forma tão completa e satisfatória. Porque temos nós demonstrado tanta
relutância em aceitar esta explicação?203

Na edição do dia 24 de Julho de 2005 do Herald (de Glasgow), a


conceituada jornalista Muriel Gray propunha idêntica conclusão, neste caso
referindo-se às bombas de Londres.

Culpa-se toda a gente. Desde o óbvio duo de vilões George W. Bush e


Tony Blair até à inacção das «comunidades» muçulmanas. Mas nunca
terá sido tão claro que existe apenas um culpado e que sempre assim
foi. A causa de toda esta desgraça, do caos, da violência, do terror e da
ignorância é, evidentemente, a própria religião; e, embora pareça
ridículo ter de afirmar uma realidade tão óbvia, o facto é que o Governo
e os media estão a esforçar-se ao máximo por fingir que assim não é.

Os nossos políticos ocidentais evitam mencionar a palavra começada por


R (religião). Preferem chamar à batalha que vêm travando uma guerra
contra o «terrorismo», como se o terrorismo fosse uma espécie de espírito
ou força, dotada de uma vontade e de uma mente próprias. Ou então
caracterizam os terroristas dizendo-os motivados por puro «mal». Mas não é
o mal que lhes dá a motivação. Por muito transviados que possamos pensar
que eles andem, aquilo que os motiva, tal como aos cristãos que assassinam
os médicos das clínicas abortistas, é o que julgam ser rectidão, seguindo
fielmente o que a religião lhes diz. Não são psicóticos, são idealistas
religiosos, que, segundo o seu ponto de vista, são racionais. Consideram
bons os actos que praticam não devido a uma qualquer idiossincrasia
pessoal distorcida, nem por terem sido possuídos por Satanás, mas porque
desde o berço foram educados a ter uma fé total e inquestionante. Sam
Harris cita um bombista-suicida que falhou os seus intentos, e que afirmou
que aquilo que o levou a matar israelitas foi «o amor pelo martírio... Não
queria vingar-me de nada. Só queria ser um mártir». No dia 19 de
Novembro de 2001, a revista The New Yorker publicou uma entrevista
realizada por Nasra Hassan a outro bombista-suicida capturado, um jovem
palestiniano de 27 anos, educado, conhecido por «S». A entrevista é tão
poeticamente eloquente quanto aos atractivos do paraíso, tal como este é
pregado por professores e líderes religiosos moderados, que acho que vale a
pena referir com algum pormenor:

– Qual é o motivo da atracção do martírio? – perguntei.


–O poder do espírito puxa-nos para cima, enquanto o poder das coisas
materiais nos puxa para baixo – respondeu. – Uma pessoa que opta pelo
martírio torna-se imune às forças materiais. O nosso controleiro
perguntou: «E se a operação falhar?» Nós dissemos-lhe: «Seja como
for, sempre vamos conhecer o Profeta e os seus companheiros, In Shá a
Allah .» Nós flutuávamos, pairávamos naquele sentimento de que
estávamos prestes a entrar na eternidade. Não tínhamos dúvidas.
Fizemos um juramento sobre o Corão, na presença de Alá, a promessa
de que não iríamos vacilar. Esta promessa da jihad chama-se bayt al-
ridwan, nome que tem origem no jardim do Paraíso, reservado aos
profetas e aos mártires. Sei que existem outras formas de travar a jihad.
Mas esta forma é doce, a mais doce. As operações de martírio todas
juntas, se executadas por amor a Alá, magoam menos do que a picada
de um mosquito!»
«S» mostrou-me um vídeo que documentava os planos finais da
operação. Nas imagens, com muito grão, vi-o a ele e a mais dois jovens
envolvidos num diálogo ritualístico de perguntas e respostas acerca da
glória do martírio...
Jovens e controleiro ajoelharam-se então e colocaram a mão direita
sobre o Corão. O controlador disse: «Estais prontos? Amanhã estareis
no Paraíso .»204

Se eu fosse «S», sentir-me-ia tentado a dizer ao controlador: «Bem, nesse


caso, porque não arriscas tu o pescoço? Porque não desempenhas tu a
missão de suicídio e vais já direito para o Paraíso?» Mas o que para nós se
torna tão difícil de compreender é que – para repetir o ponto essencial, já
que é tão importante – esta gente acredita efectivamente naquilo em que diz
que acredita. A mensagem que daqui devemos retirar é que há que culpar a
própria religião e não o extremismo religioso (como se este fosse uma
espécie de perversão terrível da religião verdadeira e boa!). Voltaire acertou
quando, há muito tempo, escreveu: «Quem conseguir fazer-vos acreditar em
absurdos, conseguirá fazer-vos cometer atrocidades.» E Bertrand Russell
também: «Muitos há que mais depressa aceitam morrer do que pensar. E
assim fazem de facto.»
Enquanto aceitarmos o princípio de que a fé religiosa deve ser respeitada
pelo simples facto de ser fé religiosa, será difícil negar o respeito à fé de
Osama bin Laden e dos bombistas suicidas. A alternativa, tão óbvia que não
devia ser preciso insistirmos nela, é abandonar o princípio do respeito
automático pela fé religiosa. Esta é uma das razões pelas quais eu faço tudo
o que está ao meu alcance para alertar as pessoas contra a fé em si mesma, e
não apenas contra a chamada fé «extremista». Embora em si mesmos não
sejam extremistas, os ensinamentos da religião «moderada» são um convite
aberto ao extremismo.
Poderá dizer-se que não há, neste aspecto, nada que faça da fé religiosa
um caso à parte. O amor patriótico pelo país ou pelo grupo étnico a que se
pertence também pode levar a querer afeiçoar o mundo a esta ou aquela
versão de extremismo, não é verdade? Como acontece com os kamikazes do
Japão e os Tigres Tâmil do Sri Lanka. Mas a fé religiosa é um silenciador
especialmente potente da reflexão racional, tendendo normalmente a
sobrepor-se às outras filiações. Desconfio de que tal se deve sobretudo à
fácil e enganadora promessa de que a morte não é o fim, e de que o céu do
mártir é particularmente glorioso. Mas deve-se também, em parte, ao facto
de ela, por sua própria natureza, desencorajar o questionamento.
Tal como o Islão, também o Cristianismo ensina às crianças que a fé
inquestionável é uma virtude. Não é preciso defender aquilo em que se
acredita. Basta anunciar que faz parte da nossa fé, e o resto da sociedade,
quer partilhe a mesma fé, ou outra, ou nenhuma, é obrigado, por força da
tradição, a «respeitar» a nossa crença sem a questionar; até ao dia em que
ela se manifeste através de um horrível massacre como a destruição do
World Trade Center, ou as bombas de Londres e Madrid. Depois assiste-se
a um grande coro de repúdio, com os clérigos e os «líderes da comunidade»
(a propósito, quem foi que os elegeu?) a perfilarem-se para explicar que tal
extremismo constitui uma perversão da «verdadeira» fé. Mas como pode
haver uma perversão da fé, se a fé, carecendo de uma justificação objectiva,
não possui um padrão demonstrável que se possa perverter?
Há dez anos, Ibn Warraq, no seu excelente livro Why I Am Not a Muslim
(«Porque não Sou Muçulmano»), defendeu uma ideia semelhante, mas na
perspectiva do estudioso e profundo conhecedor do Islão que é. Na verdade,
um bom título alternativo para o livro de Warraq poderia ter sido «O Mito
de Um Islão Moderado», que é efectivamente o título de um artigo mais
recente publicado na revista Spectator (de Londres, em 30 de Julho de
2005) e da autoria de outro estudioso, Patrick Sookhdeo, director do
Instituto para o Estudo do Islão e do Cristianismo. «Hoje em dia a grande
maioria dos muçulmanos vive a sua vida sem recurso à violência, pois o
Corão é uma salgalhada que oferece de tudo. Quem quiser paz, pode
encontrar versículos pacíficos. Quem quiser guerra, pode encontrar
versículos belicistas.»
Sookhdeo prossegue explicando como, para lidar com as muitas
contradições que encontravam no Corão, os estudiosos islâmicos
desenvolveram o princípio da ab-rogação, segundo a qual os textos mais
recentes se sobrepõem aos mais antigos. Infelizmente, os passos pacíficos
do Corão são, na sua maior parte, os mais antigos, datando do período em
que Maomé viveu em Meca. Os versículos mais belicosos tendem a ser
mais recentes, relativos à fuga do profeta para Medina. O resultado é que

a mantra «o Islão é paz» está desactualizada em quase 1400 anos. Só


durante aproximadamente 13 anos é que o Islão foi paz e nada mais do
que paz... Para os muçulmanos radicais dos dias de hoje – assim como
para os juristas medievais que desenvolveram o Islão clássico – seria
mais verdadeiro dizer «o Islão é guerra». Um dos grupos islâmicos mais
radicais da Grã-Bretanha, o Al-Ghurabaa, afirmou o seguinte após os
dois atentados à bomba de Londres: «Qualquer muçulmano que negue
que o terror faz parte do Islão é um kafir.» Kafir, ou cafre, é um não-
crente (isto é, um não-muçulmano), um termo altamente insultuoso...
Será que os jovens que cometeram este suicídio, nem estavam nas
franjas da sociedade muçulmana da Grã-Bretanha, nem enveredaram
por uma interpretação excêntrica e extremista da sua fé, antes vieram do
cerne da comunidade muçulmana e foram colher a sua motivação a uma
interpretação mainstream do Islão?

De uma maneira mais geral (e isto não se aplica menos ao Cristianismo


do que ao Islão), o que é realmente pernicioso é a prática de ensinar às
crianças que a fé, em si mesma, é uma virtude. A fé é um mal precisamente
porque não exige justificação e não permite qualquer discussão. E na
presença de vários outros ingredientes que não é difícil ocorrerem, ensinar
às crianças que a fé incontestada é uma virtude molda-as de maneira a
tornarem-se potenciais armas letais para futuras jihads ou cruzadas.
Imunizado contra o medo devido à promessa do paraíso dos mártires, esse
verdadeiro projéctil imbuído de fé merece um lugar de destaque na história
do armamento, ao lado do arco, do cavalo de guerra, do tanque e da bomba
de fragmentação. Se se ensinasse as crianças a questionar e analisar
reflectidamente as suas crenças, em vez de lhes ensinar a superior virtude de
uma fé que nada pergunta, aposto que não haveria bombistas-suicidas. Estes
fazem o que fazem porque acreditam efectivamente naquilo que lhes
ensinaram nas escolas religiosas: que o dever para com Deus ultrapassa
todas as outras prioridades, e que o martírio ao serviço dele será
recompensado nos jardins do Paraíso. Ora essa lição foi-lhes ensinada não
necessariamente por fanáticos extremistas, mas por instrutores religiosos
que no fundo são gente boa, normal e afável, que fizeram as crianças sentar-
se em filas nas madrassas, acenando ritmicamente com as suas cabecinhas
inocentes para cima e para baixo enquanto decoravam cada palavra do livro
sagrado como papagaios dementes. A fé pode ser muitíssimo perigosa, e
implantá-la deliberadamente na mente vulnerável de uma criança inocente é
um erro grave. É sobre a própria infância, e sobre a sua violentação pela
religião, que nos debruçamos no próximo capítulo.

176 Não tenho o desplante de os recusar pelos motivos invocados por um dos meus mais notáveis
colegas cientistas sempre que um criacionista tenta organizar um debate formal com ele (e não lhe vou
revelar o nome, mas tão-só dizer que as suas palavras deverão ser lidas com sotaque australiano): «Isso
ficará muito bem no seu currículo, mas no meu nem por isso.»

177 Região do Sudeste dos Estados Unidos, com grande predomínio de cristãos evangélicos
caracterizados pela religiosidade devota e militante. (N. das T.)

178 De «What is true?», capítulo 1.2 de Dawkins (2005).

179 As minhas duas citações de Wise são retiradas do seu contributo para o livro de 1999 In Six Days,
uma antologia de ensaios escritos por criacionistas «Terra jovem» (Ashton 1999).

180 Warraq (1995, 175).

181 A prisão de John William Gott por ter chamado palhaço a Jesus é mencionada em The Indypedia,
publicado pelo Independent, 29 de Abril de 2006. A tentativa de processar a BBC por blasfémia
encontra-se em BBC News, 10 de Janeiro de 2005:
http://news.bbc.co.uk/1/hi/entertainment/tvánd_radio/4161109.stm.

182 http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.

183 Literalmente: «Já tem sida?» (N. das T.)

184 Hodges (1983).

185 Esta e as restantes citações desta secção são do já citado website American Taliban:
http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.

186 http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.

187 Conjunto de organizações que proporciona educação e aconselhamento relativos ao planeamento


familiar. (N. das T.)

188 Do website oficial da Igreja Baptista de Westboro, do pastor Phelps, godhatesfags.com:


http://www.godhatesfags.com/fliers/jan2006/20060131_coretta-scottking-funeral.pdf.

189 Ver Mooney (2005). Ver também Silver (2006), que foi publicado quando este livro estava na fase
final de revisão, portanto demasiado tarde para ser discutido de forma tão completa como eu gostaria.

190 Para uma interessante análise do que a este respeito torna o Texas diferente, ver
http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/execution/readings/texas.html.

191 http://en.wikipedia.org/wiki/Karla_Faye_Tucker.

192 Tal como anteriormente, estas citações de Randall Terry são do mesmo site American Taliban:
http://adultthought.ucsd.edu/Culture_War/The_American_Taliban.html.

193 Em que uma concessão ou a admissão de excepções abre caminho ao desabar completo do
argumento. (N. das T.)

194 Os defensores da libertação animal, que ameaçam com violência os cientistas que utilizam animais
na investigação médica, também reivindicam para si um propósito moral elevado.

195 Transmitido na cadeia Fox News: http://www.foxnews.com/story/0,2933,96286,00.html.

196 M. Stamp Dawkins (1980).

197 Como é óbvio, esta divisão não esgota as possibilidades. Uma maioria substancial dos cristãos
americanos não tem uma posição absolutista em relação ao aborto e é pró-escolha. Ver, por exemplo, a
Religious Coalition for Reproductive Choice, em www.rcrc.org/.

198 Sir Peter Medawar ganhou o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1960.

199 http://www.warroom.com/ethical.htm.
200 Medawar e Medawar (1977).

201 O artigo de Johann Hari, originariamente publicado no Independent do dia 15 de Julho de 2005,
encontra-se em http://johannhari.com/archive/article.php?id=640.

202 Village Voice, 18 de Maio de 2004:


http://www.villagevoice.com/news/0420,perlstein,53582,1.html.

203 Harris (204, 29).

204 Nasra Hassan, «An arsenal of believers», New Yorker, 19 de Novembro de 2001. Ver também:
http://www.bintjbeil.com/articles/en/01111_hassan.html.
9
Infância, abusos e fuga à religião
Há em cada aldeia um archote –- o mestre-escola; e uma boca
que sopra para o apagar – o pároco.
Victor Hugo

Começo com um episódio real passado na Itália do século XIX. Não quero
com isto dizer que algo tão terrível como esta história possa acontecer nos
dias de hoje, mas as atitudes mentais que ela deixa transparecer são
lamentavelmente actuais, ainda que os pormenores concretos o não sejam.
Esta tragédia humana oitocentista lança uma luz impiedosa sobre as atitudes
religiosas actuais em relação às crianças.
Em 1858, Edgardo Mortara, um menino de seis anos filho de pais judeus
que habitavam em Bolonha, foi legalmente preso pela polícia papal no
cumprimento de ordens da Inquisição. Edgardo foi arrancado à força a uma
mãe chorosa e um pai desvairado, e levado para os Catecúmenos, em Roma
(uma instituição para a conversão de judeus e muçulmanos), após o que foi
educado como católico. Exceptuando algumas breves visitas ocasionais sob
vigilância de um padre, os pais nunca mais voltaram a vê-lo. A história é
contada por David I. Kertzer no seu extraordinário livro O Sequestro de
Edgardo Mortara.
A história de Edgardo não foi, de modo algum, invulgar na Itália da
época, e a razão por detrás destes raptos levados a cabo pelo clero era
sempre a mesma. Em todos os casos, a criança havia antes sido baptizada
em segredo, geralmente por uma ama católica, e entretanto a notícia do
baptismo chegara aos ouvidos da Inquisição. Uma ideia essencial do
sistema de crenças católico era que, a partir do momento em que uma
criança fosse baptizada, por mais informal e clandestina que fosse a
cerimónia, essa criança tornava-se irrevogavelmente cristã. De acordo com
o seu universo mental, permitir que uma «criança cristã» continuasse junto
dos pais judeus não era sequer opção, e mantiveram-se inflexíveis nesta sua
posição bizarra e cruel, mesmo perante os ecos da revolta que então
chegavam de todo o mundo. Uma revolta que, diga-se de passagem, o jornal
católico Civiltà Cattolica tratou com ligeireza, atribuindo-a ao poder
internacional dos judeus ricos - o que já ouvimos em qualquer lado, não já?
Exceptuando a notoriedade de que se revestiu, a história de Edgardo
Mortara foi absolutamente típica de muitas outras. Em tempos estivera ao
cuidado de Anna Morisi, uma jovem católica analfabeta, então com 14 anos.
Edgardo adoeceu e ela entrou em pânico com medo de que ele morresse.
Educada na inércia da crença segundo a qual uma criança que morresse sem
ser baptizada iria sofrer eternamente no inferno, pediu conselho a uma
vizinha católica, que a ensinou como se baptizava. Anna voltou para casa e
atirou um pouco de água de um balde por sobre a cabeça do pequeno
Edgardo, dizendo: «Eu te baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo.» E tanto bastou. A partir daquele momento, Edgardo passou,
legalmente, a ser cristão. Quando, anos mais tarde, os padres da Inquisição
tiveram conhecimento do incidente, agiram com prontidão e firmeza, sem
sequer pensarem nas lamentáveis consequências do seu acto.
Atendendo a que se trata de um ritual que pode ter um significado
tremendo para todo um agregado familiar, é incrível como a Igreja Católica
permitiu (e continua a permitir) que qualquer pessoa baptize quem quer que
seja. Para ministrar o baptismo não é necessário ser-se padre. Também não
é necessário que ninguém, criança e pais incluídos, dê o seu consentimento.
Não é necessário assinar nada. Não são necessárias testemunhas oficiais.
Necessários são apenas uns salpicos de água, umas palavras, uma criança
indefesa e uma babysitter supersticiosa a quem a catequese haja lavado o
cérebro. Em verdade, só esta última é mesmo necessária, porque uma vez
que a criança é nova de mais para servir de testemunha, quem mais vai
acabar por saber? Uma colega norte-americana que teve uma educação
católica escreveu-me a dizer o seguinte: «Nós baptizávamos as nossas
bonecas. Não me lembro de que nenhum de nós tivesse baptizado as nossas
amiguitas protestantes, mas não tenho dúvidas de que isso aconteceu e
continua a acontecer. Pegávamos nas bonecas e fazíamos delas pequenas
cristãs, levando-as à igreja, dando-lhes a santa comunhão, etc. Lavavam-nos
o cérebro para que fôssemos boas mães católicas logo desde muito cedo.»
Se as jovens do século XIX tinham alguma coisa a ver com a minha
moderna correspondente, é de admirar que não se registassem mais casos
como o de Edgardo Mortara. Mesmo assim, histórias como esta eram
tristemente frequentes na Itália de oitocentos, o que leva a que façamos a
pergunta óbvia. Por que motivo é que os judeus dos Estados Pontifícios
empregavam criados católicos, sabendo o risco terrível que daí podia advir?
Porque não tinham o cuidado de contratar só criados judeus? A resposta,
uma vez mais, não tem nada a ver com bom senso, mas sim com religião.
Os judeus precisavam de criados cuja religião os não proibisse de trabalhar
no sabat. É verdade que uma empregada judia dava garantias de não
baptizar os filhos dos patrões, remetendo-os com esse gesto para uma
espécie de orfandade espiritual. Mas não podia acender o lume nem limpar
a casa ao sábado. É por essa razão por que, das famílias judaicas de Bolonha
que na altura se podiam dar ao luxo de ter criados, a maioria contratava
católicos.
Neste livro, abstive-me deliberadamente de entrar em pormenores quanto
aos horrores cometidos nas Cruzadas, nas Américas dos conquistadores ou
às mãos da Inquisição espanhola. Há gente perversa e cruel em todos os
séculos e credos religiosos. Mas esta história da Inquisição italiana e da sua
atitude para com as crianças é particularmente reveladora da mente religiosa
e dos males que, especificamente, decorrem dessa religiosidade. Refira-se,
em primeiro lugar, a espantosa percepção, da parte da mente religiosa, de
que uns salpicos de água e um breve sortilégio verbal podem mudar por
completo a vida de uma criança, gozando de precedência sobre o
consentimento dos pais, o consentimento da própria criança e a sua
felicidade e bem-estar psicológico... e sobrepondo-se, inclusivamente, a
tudo quanto o normal bom senso e o sentimento humano acharão
importante. Na altura, o cardeal Antonelli foi muito claro numa carta de
resposta a Lionel Rothschild, o primeiro judeu membro do Parlamento
britânico, que lhe escrevera a protestar contra o rapto de Edgardo. O cardeal
respondeu ser impotente para intervir, acrescentando: «Sobre isto, talvez
seja oportuno fazer notar que, se a voz da natureza é poderosa, mais
poderosos ainda são os deveres sagrados da religião.» Enfim, esta frase diz
tudo, não diz?
Em segundo lugar, repare-se no facto extraordinário e genuíno de os
padres, os cardeais e o Papa não se terem dado conta do que havia de
terrível naquilo que fizeram ao pobre Edgardo Mortara. Por mais que custe
a entender, na sua maneira de ver a situação eles acreditavam piamente que
estavam a fazer uma grande coisa ao tirar o rapaz aos pais para lhe dar uma
educação cristã. Foram levados por um dever de protecção! Um jornal
católico dos Estados Unidos defendeu a posição do Papa no caso Mortara,
argumentando que seria impensável um governo cristão «permitir que uma
criança cristã fosse educada por um judeu» e invocando o princípio da
liberdade religiosa - «a liberdade que a criança tem de ser cristã e de não ser
obrigada a ser judia à força... A protecção da criança pelo Santo Padre,
perante o feroz fanatismo do preconceito e da falsa fé, é o espectáculo moral
mais grandioso a que o mundo assistiu desde há muito tempo.» Terá alguma
vez havido uma distorção tão flagrante de palavras como «obrigado», «à
força», «feroz», «fanatismo» e «preconceito»? E, no entanto, tudo indica
que os apologistas católicos, a começar pelo Papa, acreditaram
sinceramente que aquilo que estavam a fazer era correcto: inteiramente
correcto do ponto de vista moral e do ponto de vista do bem-estar da
criança. Tal é o poder da religião (a religião mainstream, «moderada») para
deturpar o discernimento e perverter a comum decência humana. O jornal Il
Cattolico mostrou-se francamente perplexo com a incapacidade
generalizada para ver o magnânimo favor que a Igreja tinha feito a Edgardo
Mortara quando o salvou da sua família judaica:

Aqueles de nós que pensarem com um pouco de seriedade no assunto e


olharem para a condição do judeu - sem uma verdadeira Igreja, sem um
Rei e sem um país, disperso e sempre estrangeiro onde quer que viva à
face da Terra, e além disso carregando consigo a infâmia da mancha
ignóbil com que foram marcados os assassinos de Cristo... irão
compreender de imediato a grandiosidade do benefício temporal que o
Papa está a conceder ao jovem Mortara.

Em terceiro lugar, veja-se a presunção que é as pessoas religiosas


saberem, sem disporem de provas, que o credo dentro do qual nasceram é o
verdadeiro, sendo todos os demais completamente falsos ou aberrações. As
citações acima fornecem exemplos claros desta atitude por parte do lado
cristão. Seria uma injustiça grosseira colocar no mesmo plano os dois lados
deste caso, mas não será despropositado fazer aqui notar que os Mortara
podiam ter reavido o filho em qualquer altura e com a maior presteza,
bastando para tanto ter anuído à insistência dos padres para que fossem, eles
próprios, baptizados. Edgardo fora-lhes roubado por causa de uns salpicos
de água e de meia dúzia de palavras sem sentido. A fatuidade da mente
sujeita à doutrinação religiosa é tal que mais um ou dois salpicos era tudo
quanto bastava para inverter o processo. Para alguns de nós, a recusa dos
pais parece-nos mero capricho. Para outros, a sua posição e os princípios a
ela subjacentes fá-los ascender à longa lista de mártires de todas as religiões
ao longo dos tempos.
«Ânimo, senhor Ridley, e sede forte: pela graça de Deus havemos hoje de
acender em Inglaterra uma vela tal que acredito não mais se extinguirá.» 205

Sem dúvida que há causas pelas quais será nobre morrer. Mas como foi
possível os mártires Ridley, Latimer e Cranmer deixarem-se queimar,
quando lhes era tão fácil renunciar ao seu extremo-estreitismo protestante
em favor do extremo-larguismo católico? Será que é assim tão importante a
extremidade por onde se enceta um ovo cozido? A convicção da mente
206

religiosa é de tal modo obstinada - ou admirável, consoante o ponto de vista


- que os Mortara não foram capazes de aproveitar a oportunidade que o
ritual sem sentido do baptismo lhes oferecia. Não podiam ter feito figas com
os dedos, ou sussurrado um «não» entre dentes quando estivessem a ser
baptizados? Não, não podiam, porque tinham sido educados no seio de uma
religião (moderada) e, portanto, levavam a sério todo aquele ridículo teatro.
No que me diz respeito, só penso no pobre Edgardo - nascido, sem querer,
num mundo dominado pela mente religiosa, indefeso no meio do fogo
cruzado, praticamente órfão em resultado de um acto bem-intencionado,
mas dilacerantemente cruel para uma criança.
Em quarto lugar, e aprofundando este mesmo tema, atente-se no
pressuposto de que uma criança de seis anos tem já, de alguma forma, uma
religião, seja ela o Judaísmo, o Catolicismo ou outra qualquer. Dito de outro
modo, a ideia de que baptizar uma criança que não sabe nem entende o que
lhe estão a fazer pode, num piscar de olhos, mudá-la de uma religião para
outra, parece absurda - mas não mais absurda, obviamente, do que a ideia de
colocar um rótulo à criança logo desde tenra idade, dando-a como
pertencente a uma determinada religião. O que interessava a Edgardo não
era a «sua» religião (já que era demasiado jovem para ter opiniões
reflectidas sobre a questão), mas sim o amor e carinho dos pais e da família.
E viu-se privado deles por padres celibatários cuja crueldade grotesca só
terá sido mitigada pela sua insensibilidade crassa para com os normais
sentimentos humanos - uma insensibilidade a que a mente usurpada pela fé
religiosa é especialmente propensa.
Mesmo que não haja propriamente rapto físico, não será sempre uma
forma de abuso ou maus tratos infantis atribuir crenças a crianças
demasiado jovens para sequer nelas terem pensado? Contudo, esta é uma
prática que persiste até aos dias de hoje, perante uma quase total ausência de
contestação. O meu objectivo neste capítulo é questioná-la.

Abusos físicos e mentais


Dizer abuso de crianças às mãos do clero equivale a dizer, hoje em dia,
abuso sexual, pelo que me sinto obrigado, desde logo, a situar devidamente
toda a questão do abuso sexual de modo a que a possamos ultrapassar. Já
tem sido dito que vivemos num tempo de histeria por causa da pedofilia,
uma psicologia das multidões que faz lembrar a caça às bruxas de Salem em
1692. Em Julho de 2000, o News of the World, um publicação que, não
obstante a forte concorrência, consegue a honra de jornal mais repugnante
da Grã-Bretanha, organizou uma campanha chamada «citar o nome e
humilhar», à qual pouco faltou para incitar a que milícias populares
empreendessem acções violentas directas contra os pedófilos. A casa do
pediatra de um hospital foi atacada por fanáticos que não sabiam a diferença
entre um pediatra e um pedófilo. A histeria da multidão por causa dos
207

pedófilos atingiu proporções epidémicas, levando os pais a um estado de


pânico. Os Just Williams, os Huck Finns, os Swallows e os Amazons de 208

hoje vêem-se privados da liberdade de movimentos que era um dos prazeres


da infância de outrora (quando o risco real de ser molestado - que é coisa
diferente da percepção do risco - talvez não fosse menor do que na
actualidade).
Em abono do News of the World, há que dizer que na altura dessa sua
campanha as paixões haviam sido acirradas por um crime de motivação
sexual, o horrendo assassínio de uma menina de oito anos raptada em
Sussex. Mesmo assim, é claramente injusto fazer abater sobre todos os
pedófilos uma vingança apenas adequada àquela pequena minoria que, além
de pedófila, é também assassina. Os três internatos que frequentei tinham ao
seu serviço, todos eles, professores cuja afeição por rapazinhos ultrapassava
os limites do decoro. Isso era, de facto, condenável. No entanto, se, 50 anos
volvidos, eles se vissem perseguidos por milícias populares ou por
advogados, acusados de estarem ao nível de assassinos de crianças, sentir-
me-ia obrigado a sair em sua defesa, ainda que tenha sido vítima de um
deles (uma experiência embaraçosa, sim, mas quanto ao resto inofensiva).
A Igreja Católica tem suportado um pesado quinhão desse opróbrio
retrospectivo. Não gosto da Igreja Católica, e por toda a sorte de razões.
Mas ainda gosto menos das injustiças, e não consigo deixar de pensar se
esta instituição terá sido injustamente demonizada a este respeito, sobretudo
na Irlanda e nos Estados Unidos. Estou em crer que algum desse excesso de
ressentimento público advém da hipocrisia dos padres, cuja vida
profissional é, em larga medida, dedicada a suscitar a culpa pelos
«pecados». Depois há o abuso de confiança por parte de uma figura de
autoridade que a criança foi ensinada a venerar desde o berço. Toda esta
carga de ressentimentos devia fazer com que tivéssemos mais cuidado para
não cairmos em juízos precipitados. Devíamos estar conscientes do
excepcional poder da mente para forjar memórias falsas, sobretudo quando
encorajadas por terapeutas sem escrúpulos e advogados mercenários.
Arrostando contra a mesquinhez de interesses instalados, a psicóloga
Elizabeth Loftus revelou grande coragem ao demonstrar a facilidade com
que as pessoas forjam memórias que são inteiramente falsas, mas que à
vítima parecem tão reais como as memórias verdadeiras. Isto é tão contra-
209

intuitivo que os jurados se deixam facilmente levar pelos depoimentos


sinceros, ainda que falsos, das testemunhas.
No caso concreto da Irlanda, é lendária a brutalidade, mesmo sem abuso
sexual, da Congregação dos Irmãos Cristãos, responsáveis pela educação
210

de uma parte significativa da população masculina do país. O mesmo pode


dizer-se das freiras, quantas vezes sadicamente cruéis, que estiveram à
frente de muitas das escolas para raparigas da Irlanda. Os famigerados
Magdalene Asylums, tema do filme de Peter Mullan As Irmãs de Maria
Madalena, perduraram até 1996. Passados 40 anos, é mais difícil conseguir
reparação pelos açoites do que pelas carícias sexuais, e não faltam
advogados oferecendo activamente os seus préstimos a vítimas que, de
outro modo, não se prestariam a revolver o passado distante. Há um filão de
ouro nesses apalpões furtivos sofridos numa remota sacristia - tão remota,
de facto, que é provável o alegado autor da ofensa estar já morto e, portanto,
impossibilitado de apresentar a sua versão da história. Por todo o mundo a
Igreja Católica pagou já mais de 1000 milhões de dólares em
indemnizações. Quase somos levados a sentir empatia, até nos lembrarmos
211

donde lhe veio o dinheiro.


Certa vez, no período de perguntas após uma conferência que dei em
Dublin, fui interpelado sobre o que pensava acerca dos conhecidos casos de
abuso sexual por padres católicos, ocorridos na Irlanda. Respondi que, não
obstante os abusos sexuais serem terríveis, talvez se possa afirmar que o
dano que deles resulta é menor do que o dano psicológico de longo prazo
que é infligido quando se dá à criança uma educação católica. Foi uma
observação que me saiu no momento, feita no calor da conversa, e
surpreendeu-me que tenha arrancado uma entusiástica salva de palmas
daquela assistência irlandesa (composta, há que reconhecê-lo, por
intelectuais de Dublin, presumivelmente não representativos do país no seu
todo). Mas lembrei-me do episódio mais tarde, quando recebi uma carta de
uma norte-americana na casa dos 40, que fora educada dentro do
catolicismo. Aos sete anos, segundo me disse, aconteceram-lhe duas coisas
desagradáveis. Foi vítima de abuso sexual pelo padre da paróquia, no carro
dele. E, mais ou menos pela mesma altura, uma coleguita da escola, que
tinha morrido de forma trágica, foi para o inferno por ser protestante. Ou
pelo menos assim foi levada a crer a minha correspondente por aquela que
era, então, a doutrina oficial da igreja dos seus pais. Já mulher adulta e
amadurecida, a sua opinião era que, desses dois exemplos de abuso de
crianças em contexto católico, um físico e o outro mental, o segundo era, de
longe, o pior. Eis o que escreveu:

Ser acariciada pelo padre deixou-me (da perspectiva de uma criança de


sete anos) uma mera impressão de nojo, ao passo que a imagem da
minha amiga a ir para o inferno provocou-me um frio e incomensurável
medo. Nunca perdi o sono por causa do padre - mas passei muitas
noites aterrorizada com a ideia de que as pessoas de quem eu gostava
iriam para o inferno. Isso deu-me pesadelos.

Há que admitir que as carícias sexuais a que foi submetida no carro do


padre foram uma agressão sexual relativamente branda quando comparada,
por exemplo, com a dor e repugnância sentidas por um jovem acólito
sodomizado. Além de que, hoje em dia, se diz que a Igreja Católica não
atribui tanta importância ao inferno como outrora. Mas o exemplo
demonstra que é, pelo menos, possível o abuso psicológico de crianças ser
maior do que o abuso físico. Diz-se que Alfred Hitchcock, o grande
especialista cinematográfico na arte de assustar pessoas, ia certa vez de
viagem pela Suíça quando de repente apontou pela janela do carro e disse:
«Eis o espectáculo mais assustador a que alguma vez assisti.» Era um padre
a conversar com um rapazinho, com a mão sobre o ombro deste. Hitchcock
pôs a cabeça de fora da janela do carro e gritou: «Foge, miúdo! Foge ou
estás perdido!»
«Paus e pedras podem-me os ossos quebrar, mas palavras, só por si, não
me conseguem magoar.» O ditado é verdadeiro desde que não se acredite
realmente nas palavras. Mas se toda a nossa educação, e tudo o que sempre
nos disseram os pais, professores e padres, nos levou a acreditar, mas a
acreditar mesmo, inteira e absolutamente, na ideia de que os pecadores hão-
de arder no inferno (ou a acreditar em qualquer outro aspecto obnóxio da
doutrina, como aquele que diz que a mulher é propriedade do marido), é
completamente plausível que as palavras possam ter um efeito mais
duradouro e prejudicial do que os actos. Estou convencido de que a
expressão «abuso de crianças» não é exagerada quando utilizada para
descrever o que os professores e padres lhes fazem ao incentivá-las a
acreditarem, por exemplo, que é condenado às eternas penas do inferno
quem morrer sem confessar os seus pecados mortais.
No já referido documentário televisivo Root of All Evil?, entrevistei uma
série de líderes religiosos, sendo criticado por escolher extremistas norte-
americanos em vez de arcebispos e outros representantes respeitáveis do
mainstream. A crítica pareceria ter cabimento não fosse a circunstância de,
212

nos Estados Unidos deste início do século XXI, o que parece extremo para o
mundo exterior ser, de facto, maioritário ou mainstream. Um dos meus
entrevistados que mais abalaram o público espectador britânico, por
exemplo, foi o pastor Ted Haggard, de Colorado Springs. Contudo, na
América de Bush o «pastor Ted» está longe de se poder considerar um
extremista, já que é presidente da Associação Nacional de Evangélicos, uma
organização com 30 milhões de membros, e se gaba da honra de todas as
segundas-feiras trocar opiniões por telefone com o Presidente Bush. Se eu
tivesse querido entrevistar aquilo que, à luz dos actuais padrões americanos,
são extremistas a sério, ter-me-ia abeirado dos «reconstrucionistas», cuja
«teologia do domínio» propõe abertamente uma teocracia cristã para os
EUA. Eis o que me escreveu, a propósito, um apreensivo colega norte-
americano:

Os Europeus precisam de saber que há por aqui um teocirco de


aberrações ambulante e que defende nada mais nada menos do que o
restabelecimento da lei do Antigo Testamento - matar homossexuais,
etc. - e a exclusividade dos cargos públicos ou mesmo do direito de
voto para os cristãos. Há multidões da classe média a ovacionar esta
retórica. Se os secularistas não estiverem alerta, em breve os
dominionistas e os reconstrucionistas serão o mainstream de uma
verdadeira teocracia americana. 213

Outro dos meus entrevistados frente às câmaras de televisão foi o pastor


Keenan Roberts, também do Colorado. O elemento estapafúrdio, no caso do
pastor Roberts, surge sob a forma daquilo a que ele chama Casas do
Inferno. Uma Casa do Inferno é um lugar aonde as crianças são levadas,
pelos pais ou pelas respectivas escolas cristãs, para serem aterrorizadas com
imagens do que lhes pode acontecer depois de morrerem. Há actores que
encenam quadros assustadores de certos «pecados», como o aborto e a
homossexualidade, perante o regozijo de um diabo vestido de vermelho-
vivo. Mas tudo isto é apenas prelúdio para a pièce de résistance: o próprio
inferno, a que não faltam um realístico cheiro de enxofre a arder e os gritos
agonizantes dos que estão condenados para toda a eternidade.
Depois de assistir a um ensaio em que o diabo esteve devidamente
diabólico, ao estilo teatral dos vilões do melodrama vitoriano, entrevistei o
pastor Roberts na presença do seu elenco. Disse-me que a idade ideal para a
visita de uma criança à Casa do Inferno são os 12 anos. Fiquei chocado,
pelo que lhe perguntei se o preocupava o facto de uma criança de 12 anos
ter pesadelos depois de uma destas suas representações. Presumo que
respondeu com honestidade quando me disse:

O que me interessa é que eles compreendam que o inferno é um lugar


para onde, decididamente, não hão-de querer ir. Antes quero transmitir-
lhes essa mensagem aos 12 anos do que não a transmitir e vê-los
enveredar por uma vida de pecado, sem nunca encontrarem o Senhor
Jesus Cristo. E se vierem a ter pesadelos por causa desta experiência,
penso que terão alcançado e conseguido nas suas vidas um bem mais
importante do que simples pesadelos.

Julgo que para quem acredita, sincera e verdadeiramente, naquilo em que


o pastor Roberts diz que acredita, intimidar crianças será coisa aceitável.
Não podemos arrumar de forma simplista o exemplo do pastor Roberts
dizendo que não passa de um lunático extremista. Tal como Ted Haggard,
pertence às tendências maioritárias dos Estados Unidos de hoje.
Surpreender-me-ia se até eles alinhassem com aqueles seus correligionários
que dizem que, vindos dos vulcões, se podem ouvir os gritos dos
condenados, e que os vermes gigantes que povoam as águas quentes das
214

fendas profundas dos oceanos são a confirmação do versículo do Evangelho


de São Marcos: «Se a tua mão é para ti ocasião de pecado, corta-a; mais
vale entrares mutilado na vida do que, tendo as duas mãos, ires para o
inferno, para o fogo inextinguível, onde o verme não morre e o fogo não se
apaga» (9: 43-4). Independentemente de como imaginam que o inferno seja
de facto, todos estes entusiastas do fogo infernal parecem partilhar aquele
júbilo que alguns sentem com o mal dos outros, a complacência daqueles
que se vêem entre os que serão salvos, ideia de resto muito bem expressa
por esse expoente máximo da Teologia que foi São Tomás de Aquino, na
sua Summa Theologica: «Para que mais abundantemente possam desfrutar
da sua beatitude e da graça do Senhor, é permitido aos santos ver o castigo
dos condenados no inferno.» Um homem simpático. 215

O medo do fogo do inferno pode ser muito real, mesmo entre pessoas
com um comportamento racional a outros níveis. Após o meu documentário
televisivo sobre religião recebi muitas cartas, entre as quais esta, de uma
mulher visivelmente inteligente e sincera:

Andei desde os cinco anos numa escola católica, onde as freiras, de


correia, régua ou vara em punho, me inculcaram a doutrina. Durante a
adolescência li Darwin, e o que ele escreveu sobre a evolução fez
imenso sentido para a parte lógica da minha mente. No entanto, ao
longo da vida tenho-me debatido interiormente com um grande conflito
e com um medo intenso do fogo do inferno, que desperta em mim com
muita frequência. Fiz psicoterapia, que me permitiu resolver alguns dos
meus problemas mais antigos, mas não consigo ultrapassar este medo
profundo.
Assim, a razão pela qual lhe estou a escrever é para pedir que faça o
favor de me facultar o nome e a morada da terapeuta que entrevistou no
programa desta semana e que lida com este medo concreto.

Fiquei comovido com esta carta e (reprimindo uma mágoa momentânea e


indigna por não haver inferno para onde aquelas freiras possam ir) respondi-
lhe que devia confiar na sua própria razão, um grande dom que ela - ao
contrário de pessoas menos afortunadas - nitidamente possuía. Fiz-lhe notar
que a extrema hediondez do inferno, tal como é descrita por padres e freiras,
é exagerada, exactamente, para compensar a sua improbabilidade. Se o
inferno fosse uma realidade plausível, bastar-lhe-ia ser apenas
moderadamente desagradável para conseguir funcionar como dissuasor.
Dado a sua veracidade ser tão improvável, tem de ser anunciado como algo
extremamente assustador, para poder contrabalançar a improbabilidade e
manter, assim, alguma capacidade dissuasora. Também a pus em contacto
com a terapeuta que referiu, Jill Mytton, uma mulher encantadora e
profundamente sincera, que eu tinha entrevistado em frente às câmaras. Jill
foi, ela própria, criada numa seita anormalmente detestável, de nome
Exclusive Brethren («Irmãos Exclusivos»): um grupo tão execrando que há
mesmo um website, www.peebs.net, totalmente dedicado a cuidar dos que a
ele escaparam.
Jill Mytton foi educada no medo do inferno, escapou ao Cristianismo já
adulta, e hoje aconselha e ajuda outros, traumatizados, como ela, na
infância: «Quando relembro a minha infância, vejo-a dominada pelo medo.
E era o medo da reprovação no presente, mas também da condenação
eterna. Para uma criança, as imagens do fogo do inferno e de dentes a
ranger são, efectivamente, muito reais. Não têm nada de metafórico.» Pedi-
lhe então que explicitasse o que de facto lhe tinham dito sobre o inferno, em
criança, e a resposta rica que me deu foi tão comovente como a expressão
do seu rosto durante a longa hesitação que precedeu a resposta: «É estranho,
não é? Depois deste tempo todo ainda consegue... afectar-me... quando...
quando me é feita essa pergunta. O inferno é um lugar assustador. É sermos
totalmente rejeitados por Deus. É um julgar total, há fogo a sério,
sofrimento a sério, suplício a sério, e dura para sempre, sem tréguas.»
Falou-me depois do grupo de apoio que agora orienta, destinado a pessoas
que procuram fugir de uma infância semelhante à sua, e insistiu na
dificuldade que é, para muitas, sair: KO processo de saída é
extraordinariamente difícil. Ah, o que se deixa para trás é toda uma rede
social, todo um sistema no qual praticamente se foi educado, deixa-se para
trás um sistema de crenças que se interiorizou durante anos. Muitas vezes
deixa-se família e amigos... Deixa-se de existir para eles.» Aproveitei então
para referir a minha própria experiência de cartas de pessoas dos Estados
Unidos que dizem ter lido os meus livros e abandonado a religião em
consequência desse facto. É desconcertante verificar que muitos afirmam
que não ousam dizer às famílias, ou que tiveram resultados terríveis quando
o fizeram. O que se segue é um caso típico. O autor da carta é um jovem
norte-americano, estudante de medicina.

Senti necessidade de lhe escrever um e-mail porque partilho a sua


perspectiva sobre a religião, perspectiva essa que, como estou certo que
sabe, aqui na América gera muita segregação. Cresci no seio de uma
família cristã, e embora nunca tenha atinado com a ideia de religião, só
recentemente ganhei coragem para o dizer a alguém. Esse alguém foi a
minha namorada, que ficou... horrorizada. Tenho consciência de que
uma declaração de ateísmo pode ser chocante, mas agora é como se ela
visse em mim uma pessoa completamente diferente. Não consegue
confiar em mim, diz, porque os meus princípios morais não provêm de
Deus. Não sei se vamos ultrapassar isto, e não estou especialmente
desejoso de partilhar a minha crença com outras pessoas de quem me
sinto próximo, porque temo a mesma reacção de desagrado... Não
espero que me responda. Apenas lhe escrevo porque tive esperança que
compreendesse e partilhasse a minha frustração. Imagine perder alguém
que amava, e que o amava a si, por causa da religião. Tirando a ideia,
que ela agora tem, de que sou um pagão ímpio, éramos perfeitos um
para o outro. Faz-me lembrar o seu comentário de que as pessoas são
capazes de cometer loucuras em nome da fé. Obrigado por me ouvir.

Respondi a este desafortunado jovem chamando-lhe a atenção para o


facto de que, se a namorada descobriu algo sobre ele, ele também descobriu
algo sobre ela. Seria ela, na realidade, suficientemente boa para ele?
Duvido.
Já mencionei a actriz cómica norte-americana Julia Sweeney e a sua luta
obstinada e ternamente humorística para encontrar aspectos redentores na
religião e para salvar o Deus da sua infância das crescentes dúvidas que,
como adulta, diz sentir. A sua busca terminou de uma forma feliz e ela é
hoje um modelo de comportamento admirável para os jovens ateus de todos
os quadrantes. A sequência final é, talvez, o momento mais comovente do
seu espectáculo Letting Go of God. Havia tentado tudo. E finalmente...

...ao caminhar do meu escritório, no jardim das traseiras, para casa,


apercebi-me de que havia uma voz que, muito baixinho, me sussurrava
na cabeça. Não sei bem há quanto tempo é que lá estava, mas de
repente subiu um decibel. E o sussurro era: «Deus não existe.»
E tentei ignorá-la. Mas subiu um pouquinho mais. «Deus não existe.
Deus não existe. Oh meu deus, deus não existe»...
E estremeci. Senti-me escorregar da jangada.
E depois pensei: «Mas eu não posso. Não sei se consigo não acreditar
em Deus. Eu preciso de Deus. Quer dizer, temos um passado»...
«Mas eu não sei como não acreditar em Deus. Não sei como fazê-lo.
Como nos levantamos pela manhã, como conseguimos chegar ao fim
do dia?» Senti faltar-me o equilíbrio...
Pensei: «Pronto, acalma-te. Vamos experimentar pôr os óculos de
não-acreditar-em-Deus só por um instante. Vamos pôr os óculos de
não-há-Deus e dar uma olhada rápida em redor e deitá-los fora logo de
seguida.» E eu pu-los e olhei em redor.
É embaraçoso dizer que a princípio me senti tonta.
Cheguei mesmo a pensar: «Bem, como se aguenta a Terra no céu?
Então andamos só às voltas pelo espaço? Que vulnerabilidade!» Quis
desatar a correr para agarrar a Terra nas minhas mãos, quando caísse do
espaço.
E depois lembrei-me: «Claro, a gravidade e o momento cinético vão
provavelmente manter-nos a girar em torno do Sol durante muito, muito
tempo.»
Quando vi Letting Go of God num teatro de Los Angeles fiquei
profundamente comovido com esta cena. Sobretudo quando Julia relatou a
reacção dos pais a uma notícia sobre como se tinha curado:

O primeiro telefonema que recebi da minha mãe foi a modos que um


grito. «Ateia! ATEIA?!?!»
O meu pai ligou-me e disse: «Traíste a tua família, a tua escola, a tua
cidade.» Foi como se tivesse vendido informações confidenciais aos
Russos. Ambos disseram que nunca mais falavam comigo. O meu pai
disse: «Nem quero que venhas sequer ao meu funeral.» Depois de eu ter
desligado, pensei: «Tenta impedir-me!»

Parte do talento de Julia é fazer-nos chorar e rir ao mesmo tempo:

Penso que os meus pais tinham ficado ligeiramente desiludidos quando


disse que já não acreditava em Deus, mas agora ser ateia fazia tudo
mudar de figura.

Em Losing Faith in Faith: From Preacher to Atheist, Dan Barker conta a


história da sua conversão gradual, desde sacerdote fundamentalista devoto e
fervoroso pregador itinerante até se tornar no ateu firme e confiante que é
hoje. É significativo que Barker, depois dessa transformação, tenha
continuado exteriormente a cumprir, durante algum tempo, as suas rotinas
de pregador do Cristianismo, porque essa era a única profissão que conhecia
e sentia-se aprisionado numa teia de obrigações sociais. Agora conhece
muitos outros membros do clero norte-americano em situação semelhante
àquela em que se encontrava e que, depois de terem lido o seu livro,
decidiram abrir-se com ele. Não ousam admitir o seu ateísmo nem mesmo
perante as próprias famílias, tal o terror das reacções que prevêem. Quanto a
Barker, a sua história acabou por ter um desfecho mais feliz. De início, os
pais sofreram um abalo profundo e doloroso, mas escutaram as suas
reflectidas explicações e acabaram por se tornar ateus, eles próprios,
também.
Dois professores de uma universidade dos Estados Unidos escreveram-
me, separadamente, acerca dos respectivos pais. Um disse que a mãe sofre
uma mágoa permanente por temer pela alma imortal do filho. O outro disse
que o pai preferia que ele nunca tivesse nascido, de tão convencido que está
que este vai passar a eternidade no inferno. Trata-se de professores
universitários extremamente cultos, confiantes no seu saber académico e na
sua maturidade, que presumivelmente terão superado os pais não só em
todos os domínios intelectuais, mas também em matéria de religião.
Imagine-se agora, no caso de pessoas de menor solidez intelectual e de
menores recursos educativos e retóricos do que estes professores ou do que
Julia Sweeney, a provação que será terem de enfrentar os membros mais
renitentes da família. Como terá, talvez, acontecido com muitos dos
pacientes de Jill Mytton.
No início da nossa conversa televisiva, Jill descrevera este tipo de
educação religiosa como uma forma de abuso ou maus tratos mentais, pelo
que voltei ao assunto perguntando: «Utiliza a expressão abuso religioso. Se
tivesse de comparar o abuso que é educar uma criança fazendo-a acreditar
realmente no inferno... pensa que isso se poderá comparar, em termos de
trauma, com o abuso sexual?» Ao que ela respondeu: «Essa é uma pergunta
muito difícil... Penso que há efectivamente muitas semelhanças, porque se
trata de um abuso de confiança; trata-se de negar à criança o direito ao
sentimento de liberdade e de abertura, à capacidade de se relacionar com o
mundo de um modo normal... é uma forma de denegrir; é, num caso como
noutro, uma forma de negação ou privação do verdadeiro eu.»

Em defesa das crianças


O meu colega e psicólogo Nicholas Humphrey usou o ditado dos «paus e
pedras» a abrir a Conferência da Amnistia que proferiu em Oxford em
1997. Humphrey começou por defender que o ditado nem sempre é
216

verdadeiro, referindo o caso dos crentes no vudu haitiano, que morrem, ao


que parece, de um efeito psicossomático de terror poucos dias depois de
lhes ser lançado um «feitiço» maligno. Perguntou então se a Amnistia
Internacional, beneficiária da série de conferências em que colaborava,
deveria fazer campanha contra discursos e publicações nocivas ou
perniciosas. A resposta que ele próprio deu foi um rotundo «não» a este tipo
de censura em geral: «A liberdade de expressão é demasiado preciosa para
nela sequer se tocar.» Mas logo defendeu uma excepção importante, ainda
que em conflito com a sua própria natureza liberal: a censura é defensável
no caso especial das crianças...

... a educação moral e religiosa, e sobretudo a educação que a criança


recebe em casa, onde se permite - e se espera até - que sejam os pais a
determinar aquilo que para os filhos deve contar como verdadeiro e
falso, certo e errado. Defendo que as crianças têm o direito humano de
não verem as suas mentes estropiadas em resultado da exposição às más
ideias de outras pessoas - sejam estas quem forem. Os pais, por sua vez,
não gozam de qualquer autorização divina para moldar culturalmente os
filhos da maneira que lhes apeteça, seja ela também qual for: não têm o
direito de limitar os horizontes de conhecimento dos filhos, de os criar
num ambiente de dogma e superstição, ou de insistir que sigam os
caminhos estreitos e rectilíneos da fé dos pais.
Em suma, as crianças têm direito a que não lhes confundam as
mentes com disparates, e enquanto sociedade temos o dever de as
proteger para que tal não suceda. Assim, da mesma forma que não
permitimos que os pais arranquem os dentes dos filhos com pancada ou
que os fechem num calabouço, também não devemos permitir que os
ensinem a acreditar, por exemplo, que a Bíblia encerra uma verdade
literal ou que os planetas regem as suas vidas.

É claro que uma afirmação tão peremptória como esta precisa de ser
relativizada, e foi-o efectivamente. Chamar a algo disparate não será uma
questão de opinião? A tenda da ciência ortodoxa não foi desmantelada já
vezes suficientes para que usemos de prudência? Os cientistas poderão
achar que é disparate ensinar astrologia e a verdade literal da Bíblia, mas há
quem pense o contrário, e não terão estes o direito de o ensinar aos filhos?
Não será arrogante insistir em que se ensine ciência às crianças?
Agradeço aos meus pais o facto de acharem que se deve ensinar aos
filhos, não tanto o que pensar, mas mais como pensar. Se estes, tendo sido
equilibrada e adequadamente expostos a toda a evidência científica
disponível, decidirem, depois de crescidos, que a Bíblia é literalmente
verdade ou que o movimento dos planetas rege as suas vidas, estão no seu
direito de o fazer. Importante, aqui, é que cabe aos filhos a prerrogativa de
decidir o que pensar, não sendo, portanto, prerrogativa dos pais imporem-no
à conta de «força maior». E isto, claro, assume especial importância quando
consideramos que os filhos hão-de ser os pais da geração seguinte, ficando
então em situação de transmitir a doutrina que os enformou a eles.
Humphrey sugere que, sendo as crianças jovens, vulneráveis e carecidas
de protecção, o tipo de tutela moralmente defensável será aquele que, com
honestidade, procurar prever o que elas escolheriam para si próprias se
fossem suficientemente crescidas para o fazer. Humphrey faz, a este
propósito, uma comovente alusão a uma jovem inca cujos restos mortais,
congelados há mais de 500 anos, foram encontrados nas montanhas do Peru,
em 1995. O antropólogo que a descobriu escreveu que a jovem tinha sido
vítima de um rito sacrificial. Segundo o relato de Humphrey, nas televisões
dos Estados Unidos passou um documentário sobre esta jovem «donzela do
gelo». Os espectadores foram convidados a

admirar a dedicação espiritual dos sacerdotes incas e a partilhar o


orgulho e a exultação da jovem, nesta sua última viagem, por ter sido
eleita para a subida honra de ser sacrificada. A mensagem do programa
televisivo era, efectivamente, que a prática do sacrifício humano
constituía, em si mesma, uma gloriosa invenção cultural - mais uma jóia
na coroa do multiculturalismo, se se preferir.

Humphrey ficou escandalizado e eu também.

No entanto, como ousa alguém sequer sugerir tal coisa? Como ousam
convidar-nos - nas nossas salas de estar, em frente à televisão - a
sentirmo-nos elevados por contemplar um assassínio ritualístico: o
assassínio de uma criança dependente à mão de um grupo de velhos
estúpidos, emproados, supersticiosos e ignorantes? Como ousam
convidar-nos a retirar algo de bom para nós na contemplação de um
acto imoral contra outra pessoa?

Uma vez mais, o leitor bem-intencionado e de mentalidade progressista


poderá sentir algum mal-estar. Sem dúvida que é imoral e estúpido pelos
nossos padrões, mas então e os padrões incas? De certeza que, para os
Incas, o sacrifício era um acto moral e nada estúpido, sancionado por tudo
quanto consideravam sagrado! A jovem era, sem dúvida, uma fiel crente na
religião em que fora educada. Quem somos nós para usar uma palavra como
«assassínio» e julgar os sacerdotes incas à luz dos nossos padrões, em vez
de o fazer à luz dos padrões deles? Talvez esta jovem tenha sentido um
arrebatamento de felicidade por ter este destino: talvez ela acreditasse
mesmo que ia directa para um paraíso eterno, acalentada pela companhia
radiosa do Deus-Sol. Ou talvez - como é bem mais provável - tenha gritado
de pavor.
Aonde Humphrey pretende chegar - e eu também - é que,
independentemente de ela ser ou não uma vítima aquiescente, existem fortes
motivos para pensar que o não seria se estivesse de posse de todos os factos.
Imagine-se, por exemplo, que ela sabia que o Sol, na realidade, é uma bola
de hidrogénio com uma temperatura de mais de um milhão de graus Kelvin,
que se transforma em hélio por fusão nuclear e que teve origem num disco
de gás a partir do qual se condensou também o resto do sistema solar,
incluindo a Terra... Nesse caso, é provável que ela já não adorasse o Sol
como a um deus, e isso teria alterado a sua perspectiva quanto a deixar-se
matar em sacrifício para o aplacar.
Os sacerdotes incas não podem ser acusados pela sua ignorância, e poderá
parecer excessivo considerá-los estúpidos e emproados. Mas podem ser
acusados de impingir as suas crenças a uma criança demasiado jovem para
decidir se quer adorar o Sol ou não. Outro aspecto realçado por Humphrey é
que tanto os actuais realizadores de documentários como nós, o seu público,
podemos ser acusados de ver beleza na morte daquela jovem - «algo que
enriquece a nossa cultura colectiva». Esta tendência para nos regozijarmos
com o requinte singular de certos costumes religiosos étnicos e para
justificarmos crueldades em seu nome é recorrente. É também fonte de
intenso conflito íntimo nas mentes de pessoas simpáticas e progressistas
que, por um lado, não suportam o sofrimento e a crueldade, mas, por outro,
foram habituadas pelos pós-modernos e relativistas a não respeitarem
menos as outras culturas do que a sua. A mutilação genital (por vezes
chamada circuncisão) feminina é, sem dúvida, terrivelmente dolorosa,
sabota o prazer sexual da mulher (com efeito, é porventura esse o seu
verdadeiro objectivo), e uma parte da mente progressista e bem-
intencionada quer abolir tal prática. No entanto, a outra metade «respeita»
as culturas étnicas e sente que, se «eles» querem mutilar as raparigas
«deles», não devemos interferir. É claro que o fundo da questão é que as
217
raparigas «deles» não são de facto raparigas de ninguém senão de si
próprias, e os seus desejos não devem ser ignorados. Mais difícil, no
entanto, será saber o que responder a uma rapariga que quer ser excisada.
Mas ao olhar para trás, quando for já uma adulta plenamente informada, não
irá ela desejar nunca o ter feito? Humphrey sustenta que nenhuma mulher
adulta que por qualquer motivo tenha escapado à excisão em criança se
presta à operação quando é mais velha.
Após uma reflexão sobre os amish e o seu direito a educar as «suas»
crianças à «sua» maneira, Humphrey é corrosivo em relação ao nosso
entusiasmo, enquanto sociedade, com

a manutenção da diversidade cultural. Pronto, dir-me-ão, é duro para as


crianças amish, hassidim, ou ciganas serem moldadas pelos pais da
maneira que são - mas pelo menos o resultado é que estas fascinantes
tradições culturais se vão mantendo. Não ficaria a nossa civilização
empobrecida se elas desaparecessem? É talvez uma pena que se tenha
de sacrificar pessoas para manter essa diversidade. Mas lá está: é o
preço que pagamos enquanto sociedade. Só que me vejo obrigado a
recordar-vos que não somos nós que o pagamos, são elas.

A questão saltou para o domínio público em 1972, quando o Supremo


Tribunal dos Estados Unidos teve de decidir num caso - Wisconsin versus
Yoder - relativo ao direito dos pais de tirarem os filhos da escola por
motivos religiosos. O povo amish vive em comunidades fechadas em várias
regiões dos Estados Unidos, fala, na sua maior parte, um dialecto alemão
arcaico chamado alemão da Pensilvânia, e recusa, em graus variáveis, o uso
da electricidade, motores de combustão interna, fechos de correr e outras
manifestações da vida moderna. Há, de facto, qualquer coisa de
atractivamente pitoresco nestas ilhas de vivência seiscentista cujo
quotidiano é um verdadeiro espectáculo para o nosso olhar contemporâneo.
Não será de preservar tudo isto, por uma questão de enriquecimento da
diversidade humana? E a única forma de o conservar é permitir que os
amish eduquem as crianças à sua maneira, protegendo-as da influência
corruptora da modernidade. Por outro lado, por certo que quereremos
perguntar se as próprias crianças não terão, aqui, uma palavra a dizer.
O Supremo Tribunal foi chamado a decidir em 1972, quando alguns pais
amish do estado de Wisconsin tiraram os filhos da escola secundária. A
própria ideia de escolaridade para além de uma determinada idade, mas
sobretudo o ensino das ciências, iam contra os valores religiosos dos amish.
O estado do Wisconsin levou os pais a tribunal, com base na ideia de que as
crianças estavam a ser privadas do direito à educação. Após ter percorrido
várias instâncias judiciais, o caso acabou por chegar ao Supremo Tribunal,
cujos juízes votaram seis contra um a favor dos pais. Do acórdão
218

maioritário, de que foi relator o juiz-presidente Warren Burger, constava o


seguinte: «Como se pode ler nos autos, a frequência obrigatória da escola
até aos 16 anos pelas crianças amish acarreta uma verdadeira ameaça de
fragilização da comunidade e das práticas religiosas amish tal como existem
hoje em dia; ou têm de abandonar a sua crença e deixar-se assimilar pela
sociedade a um nível mais amplo, ou vêem-se forçadas a migrar para uma
região mais tolerante.»
Na sua declaração de voto, o juiz vencido William O. Douglas defendeu
que as próprias crianças deveriam ser consultadas. Era de sua vontade
interromper a escolaridade? Será que desejavam, efectivamente, permanecer
na religião amish? Nicholas Humphrey teria ido mais longe. Mesmo que o
tivessem perguntado às crianças e elas tivessem exprimido preferência pela
religião amish, será que o teriam feito se tivessem recebido instrução e
informação acerca das alternativas disponíveis? Para que tal fosse plausível,
será que não devia haver exemplos de jovens do mundo exterior a aderir
espontaneamente à comunidade amish? O juiz Douglas foi mais longe,
ainda que numa direcção ligeiramente diferente. Em sua opinião, não havia
nenhuma razão específica para conferir à perspectiva religiosa dos pais um
estatuto de privilégio quanto a decidir até que ponto lhes devia ser permitido
privar os filhos de educação. Se a religião é motivo para isenção, não haverá
crenças seculares a que o mesmo se aplique?
A maioria do Supremo Tribunal estabeleceu uma comparação com alguns
dos valores positivos das ordens monásticas, cuja presença na nossa
sociedade se pode dizer que a enriquece. Mas, como salienta Humphrey, há
uma diferença crucial. Os monges voluntariaram-se para a vida monástica
de sua livre vontade. As crianças dos amish nunca se voluntariaram para ser
amish; foi ali que nasceram e não tiveram escolha.
Há qualquer coisa de pasmosamente paternalista e de desumano em
sacrificar alguém, sobretudo crianças, no altar da «diversidade» e da
virtuosa preservação das diferentes tradições religiosas. Nós, que somos os
outros todos, ficamos felizes com os nossos carros e os nossos
computadores, as nossas vacinas e antibióticos. Mas vocês, gentinha
pitoresca com os vossos gorros e calções, as vossas charretes, o vosso
dialecto arcaico e as vossas latrinas de terra batida, vocês enriquecem as
nossas vidas. É claro que vos deve ser permitido trancar-vos com os filhos
nessa vossa redoma do século XVII, caso contrário perder-se-ia algo
irrecuperável: uma parte da maravilhosa diversidade da cultura humana. Há
uma pequena parte de mim a quem isto diz alguma coisa, mas a parte maior
sente, de facto, uma grande náusea.

Um escândalo no ensino
O primeiro-ministro do meu país, Tony Blair, invocou a «diversidade»
quando, na Câmara dos Comuns, a deputada Jenny Tonge o desafiou a
justificar o subsídio governamental a uma escola do Nordeste de Inglaterra
que (caso quase único na Grã-Bretanha) ensina um criacionismo bíblico
literal. Blair respondeu que seria lamentável que considerações desse tipo
interferissem com o objectivo de alcançar «um sistema escolar tão
diversificado quanto possível». A escola em questão - Emmanuel College,
219

em Gateshead - é uma das «academias citadinas» criadas no âmbito de uma


briosa iniciativa do Governo Blair. Incentivam-se benfeitores ricos a doar
uma verba relativamente escassa (dois milhões de libras, no caso da
Emmanuel), o que por sua vez garante uma verba muito maior de dinheiros
do Governo (20 milhões de libras para a escola, mais despesas de
funcionamento e salários pagos para sempre), além de garantir ao benfeitor
o direito a controlar o ethos da escola, a nomeação da maioria dos
directores, a política de exclusão ou inclusão dos alunos, e muito mais.
O benfeitor dos 10 por cento, no caso da Emmanuel, é Sir Peter Vardy,
um vendedor de automóveis rico que nutre um louvável desejo de dar às
crianças de hoje a educação que gostaria de ter tido e um desejo menos
louvável de infundir nelas as suas convicções religiosas pessoais. 220

Infelizmente, Vardy deixou-se enredar por uma claque de professores


fundamentalistas de inspiração americana chefiados por Nigel McQuoid,
antigo director da Emmanuel e hoje presidente de um consórcio de escolas
Vardy. O nível de conhecimentos científicos de McQuoid pode ser aferido
pela sua crença de que o mundo tem menos de 10 000 anos, bem como pela
seguinte citação: «Mas pensar que evoluímos a partir de uma explosão, que
já fomos macacos, parece inacreditável quando olhamos para a
complexidade do corpo humano... Se dissermos às crianças que não há uma
finalidade nas suas vidas - que não passam de uma mutação química -, isso
não contribui em nada para a auto-estima.» 221

Nunca nenhum cientista sugeriu que uma criança fosse uma «mutação
química». O uso da expressão neste contexto é um disparate de quem é
ignorante e situa-se ao mesmo nível das declarações do «bispo» Wayne
Malcolm, líder da igreja Christian Life City, em Hackney, na zona leste de
Londres, o qual, de acordo com o Guardian de 18 de Abril de 2006, «refuta
as provas científicas da evolução». A interpretação que Malcolm faz das
provas que refuta pode ser avaliada por afirmações como esta: «É patente
que há uma ausência, no registo fóssil, de níveis intermédios de
desenvolvimento. Se uma rã se transformou num macaco, não devíamos ter
uma data de rãcacos?»
Bem, a ciência também não é o forte do senhor McQuoid, portanto, para
lhe fazer justiça, devemos, antes, ouvir o que tem para dizer o seu
responsável pela área da ciência, Stephen Layfield. A 21 de Setembro de
2001, o senhor Layfield deu uma conferência na Emmanuel College sobre
«O ensino da ciência: uma perspectiva bíblica». O texto da conferência foi
publicado num website cristão (www.christian.org.uk), mas já não é
possível encontrá-lo lá. O Christian Institute retirou o texto no dia seguinte
a eu ter chamado a atenção para ele através de um artigo que publiquei no
Daily Telegraph a 18 de Março de 2002, onde procedi à sua dissecação
crítica. É, porém, difícil apagar da Internet em definitivo o que quer que
222

seja. Os motores de busca atingem a sua velocidade, em parte, por


guardarem a informação em cache, onde ela inevitavelmente se conserva
durante algum tempo mesmo depois de os originais terem sido apagados.
Andrew Brown, jornalista britânico que foi o primeiro correspondente de
assuntos religiosos do Independent, localizou prontamente o texto da
conferência de Layfield, descarregou-o do Google e publicou-o,
integralmente, no seu próprio website,
http://www.darwinwars.com/lunatic/liars/layfield.html. Reparar-se-á que as
palavras escolhidas por Brown para o endereço URL constituem, já por si,
uma leitura divertida. Mas perdem a capacidade de nos fazer rir quando
passamos ao conteúdo da conferência propriamente dita.
A propósito, acrescente-se que, quando um leitor curioso escreveu à
Emmanuel College a perguntar por que razão tinham retirado do website o
texto da conferência, recebeu da escola a resposta sonsa abaixo transcrita, e
também ela constante da página de Andrew Brown:

A Emmanuel College tem estado no centro de uma discussão sobre o


ensino da Criação nas escolas. No plano prático, a Emmanuel College
tem recebido um elevado número de chamadas da imprensa. Tal exigiu
muito tempo ao reitor e a alguns dos principais directores da escola.
Todas estas pessoas têm outras tarefas a cumprir. Para podermos prestar
o devido apoio, retirámos temporariamente do nosso website uma
conferência da autoria de Stephen Layfield.

É claro que os funcionários da escola podem muito bem ter estado


demasiado ocupados a explicar aos jornalistas a sua posição sobre o ensino
do criacionismo. Mas então porquê retirar do website o texto de uma
conferência que faz precisamente isso e para o qual podiam remeter os
jornalistas, poupando assim o tempo que tanta falta lhes faz? Não. Eles
retiraram o texto da conferência do seu responsável pela área da ciência
porque reconheceram que tinham alguma coisa a esconder. O parágrafo que
se segue é do início da conferência:

Afirmemos então, logo a começar, que rejeitamos a noção popularizada


- talvez inadvertidamente - por Francis Bacon, no século XVII, segundo
a qual existem «Dois Livros» (o Livro da Natureza e as Escrituras)
donde, separadamente, se pode extrair a verdade. Pelo contrário,
mantemo-nos firmemente agarrados a uma proposição simples, que nos
diz que Deus falou, com autoridade plena e infalível, nas páginas das
Sagradas Escrituras. Por mais frágil, antiquada ou ingénua que esta
asserção possa, exteriormente, parecer, sobretudo aos olhos de uma
cultura moderna descrente e ébria de televisão, podemos ter a certeza de
que alicerce mais sólido do que este não há.
Temos de nos beliscar repetidamente, para ficarmos seguros de que não
estamos a sonhar. Não estamos perante um pregador qualquer, numa tenda
do Alabama, mas ante o responsável pela área da ciência de uma escola em
que o Governo britânico está a despejar dinheiro e que é o orgulho e desvelo
de Tony Blair. Blair, ele próprio um cristão devoto, procedeu, em 2004, à
cerimónia de inauguração oficial de um dos últimos aditamentos à frota das
escolas Vardy. A diversidade pode ser uma virtude, mas isto é diversidade
223

levada à loucura.
Layfield prossegue pormenorizando a comparação entre ciência e
Escrituras, concluindo, em todos os casos onde parece existir conflito, que a
primazia deve ser dada a estas. Observando que a ciência da Terra faz agora
parte do programa nacional, Lay-field afirma: «Seria especialmente
prudente que todos os que ensinam este aspecto do curso se familiarizassem
com os artigos de Whitcomb e Morris sobre a geologia do Dilúvio.» Sim,
«geologia do Dilúvio» significa o que o leitor está a pensar que significa. É
da Arca de Noé que aqui se fala. A Arca de Noé! - quando as crianças
podiam estar a aprender o arrepiante facto de que África e a América do Sul
já estiveram unidas e se foram afastando à velocidade a que crescem as
unhas. Eis de novo Layfield (o responsável pela área da ciência), desta feita
a propósito de como o Dilúvio e a história de Noé constituem uma
explicação recente e sumária para fenómenos que, de acordo com a
verdadeira evidência geológica, levaram centenas de milhões de anos a
produzir:

Temos de reconhecer, no quadro do nosso grande paradigma geofísico,


a historicidade de um dilúvio à escala mundial como aquele que vem
descrito em Génesis 6-10. Se a narrativa bíblica se confirma e as
genealogias aí registadas (por exemplo, em Génesis 5, I Crónicas 1,
Mateus 1 e Lucas 3) estão, realmente, completas, temos de admitir que
esta catástrofe global ocorreu num passado relativamente recente. Os
efeitos dela são abundantemente visíveis por toda a parte. As provas
mais importantes encontram-se nas rochas sedimentares pejadas de
fósseis, nas vastas reservas de hidrocarbonetos (carvão, petróleo e gás)
e nos «lendários» relatos, comuns a diversas populações de todo o
mundo, de um grande dilúvio com estas características. A viabilidade
de manter durante um ano uma arca cheia de animais representativos,
até que a água baixasse o suficiente, encontra-se bem documentada nos
trabalhos de John Woodmorrappe, entre outros.

De certo modo isto é pior ainda do que as declarações de gente ignorante


como Nigel McQuoid ou o bispo Wayne Malcolm atrás citados, porque
Layfield tem formação científica. Eis outro passo surpreendente:

Tal como afirmámos no início, os cristãos consideram, com bons


motivos para isso, que as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos são
um guia fidedigno para aquilo em que devemos, exactamente, acreditar.
Não são meros documentos religiosos. Fornecem-nos um relato
verdadeiro da história da Terra, que será perigoso ignorar.

A insinuação de que as Escrituras nos fornecem um relato literal da


história geológica deixa embaraçado qualquer teólogo sério. Escrevi com o
meu amigo Richard Harries, bispo de Oxford, uma carta conjunta a Tony
Blair e demo-la a assinar a oito bispos e nove cientistas de topo. Entre os
224

nove cientistas contavam-se o então presidente da Royal Society (ex-


conselheiro científico principal de Tony Blair), os dois secretários da Royal
Society para a Biologia e a Física, o astrónomo real (actual presidente da
Royal Society), o director do Museu de História Natural e Sir David
Attenborough, porventura o homem mais respeitado de Inglaterra. Entre os
bispos havia um católico e sete anglicanos - altos dignitários religiosos de
toda a Inglaterra. Recebemos do gabinete do primeiro-ministro uma
resposta superficial e inadequada referindo os bons resultados académicos
da escola e o relatório favorável da OFSTED, a entidade oficial das
inspecções escolares. Parece não ter ocorrido ao senhor Blair que, se os
inspectores da OFSTED apresentam um relatório entusiástico sobre uma
escola cujo responsável científico máximo ensina que o universo só
começou depois da domesticação do cão, deve haver algo um nadinha
errado com os padrões da inspectoria.
Talvez a secção mais perturbadora da conferência de Stephen Layfield
seja a conclusão, intitulada «O que fazer?». Aí, o autor reflecte sobre as
tácticas a utilizar pelos professores que desejem introduzir o Cristianismo
fundamentalista na aula de ciências. Assim, e por exemplo, insta os
professores de ciências a
estarem atentos a todas as ocasiões em que um paradigma
evolucionista/«Terra antiga» (milhões ou milhares de milhões de anos)
seja explícita ou implicitamente mencionado por um manual, uma
pergunta de exame ou um visitante, de maneira a poderem apontar, de
forma educada, a falibilidade da afirmação feita. Sempre que possível,
temos de dar a explicação bíblica alternativa (sempre melhor) para os
dados em causa. Veremos oportunamente alguns exemplos nas áreas da
Física, da Química e da Biologia.

O resto da conferência de Layfield não passa de um manual


propagandístico, espécie de livro de apoio para professores religiosos de
Biologia, Química e Física que desejem subverter o ensino científico
baseado em provas e substituí-lo pelos textos bíblicos, ao mesmo tempo que
vão cumprindo minimamente as orientações do programa oficial.
A 15 de Abril de 2006, James Naughtie, um dos mais experientes pivôs
da BBC, entrevistou Sir Peter Vardy na rádio. O principal tema da
entrevista foi uma investigação policial desencadeada por alegações,
negadas por Vardy, de que o Governo de Blair oferecera subornos -
nomeadamente a elevação a cavaleiro e a par do Reino - a alguns homens
abastados, numa tentativa de os atrair para o projecto das academias
citadinas. Naughtie colocou também perguntas sobre a questão do
criacionismo, tendo Vardy negado categoricamente que a Emmanuel
fomente junto dos seus alunos o criacionismo em versão «Terra jovem».
Um dos alunos da Emmanuel, Peter French, afirmou de forma igualmente
categórica : «Foi-nos ensinado que a Terra tem 6000 anos.» Quem está a
225 226

dizer a verdade? Não o sabemos, mas a conferência de Stephen Layfield


expõe com a maior candura a sua política de ensino da ciência. Será que
Vardy nunca leu o explícito manifesto de Layfield? Será que não sabe
realmente o que o seu responsável pela área da ciência anda a tramar? Peter
Vardy ganhou a sua fortuna a vender automóveis usados. O leitor seria
capaz de lhe comprar um? E seria capaz de lhe vender, como fez Tony
Blair, uma escola por 10 por cento do preço - juntando à negociata o
pagamento integral das despesas de funcionamento? Sejamos caridosos com
Blair e concedamos-lhe, pelo menos, o benefício de pensar que não leu a
conferência de Layfield. Se calhar será excessivo esperar que vá, agora, dar
alguma atenção ao documento.
As palavras de McQuoid citadas a seguir, proferidas em defesa daquilo
que ele claramente vê como a abertura de espírito da sua escola, são de um
paternalismo e condescendência espantosos:

O melhor exemplo que posso dar de como as coisas aqui se passam é


uma aula de Filosofia do sexto ano que estive agora a dar. Shaquille,
sentado além, disse: «O Corão está correcto e é verdadeiro.» E Clare,
sentada deste lado, disse: «Não, a Bíblia é que é verdadeira.» Falámos
então das semelhanças entre as coisas que ambos dizem e dos pontos
em que discordam. E concordámos que não podiam estar os dois certos.
Por fim eu disse: «Desculpa, Shaquille, estás errado, é a Bíblia que é
verdadeira.» E ele disse: «Desculpe, senhor professor McQuoid, o
senhor está errado, o Corão é que é.» Depois saíram os dois para
almoçar e continuaram a conversa durante o almoço. É isso que nós
queremos. Queremos que as crianças saibam por que motivo acreditam
naquilo em que acreditam e que o defendam. 227

Que quadro encantador! Shaquille e Clare foram almoçar juntos,


debatendo energicamente os seus pontos de vista e defendendo as suas
crenças incompatíveis. Mas será mesmo encantador? Não será, pelo
contrário, um quadro deplorável aquele que McQuoid pintou? Afinal em
que é que Shaquille e Clare basearam os seus argumentos? Que provas
convincentes conseguiu cada um deles aduzir, no seu enérgico e construtivo
debate? Cada um limitou-se a asseverar que o seu livro sagrado era
superior, e daí não se passou. Segundo parece, foi tudo o que disseram, e de
facto é tudo o que se pode dizer quando se ensina que a verdade vem das
Escrituras e não de provas. Não era educação aquilo que Clare, Shaquille e
os colegas tinham. A escola demitira-se das suas funções, e o director da
escola estava com isso a exercer abusos ou maus tratos, não sobre os seus
corpos, mas sobre as suas mentes.

De novo o despertar das consciências


E agora, outro quadro encantador. Num certo Natal o Independent, meu
jornal diário, andando à procura de uma imagem alusiva à época,
encontrou-a, com toda a enternecedora envolvência ecuménica associada,
na peça de Natal de uma escola. Os três reis magos, nas palavras luminosas
da legenda, foram desempenhados por Shadbreet (sikh), Musharaff
(muçulmano) e Adele (cristã), todos de quatro anos.
Encantador? Enternecedor? Não, nem uma coisa nem outra; simplesmente
grotesco. Como pode uma pessoa decente achar correcto rotular crianças de
quatro anos com as opiniões cósmico-teológicas dos pais? Para se ver
melhor a questão, imagine-se uma fotografia idêntica, mas com a legenda
alterada da seguinte forma: «Shadbreet (keynesiano), Musharaff
(monetarista) e Adele (marxista), todos de quatro anos.» Não seria isto
motivo para cartas furiosas de protesto? Com certeza que sim. E no entanto,
por causa do estatuto estranhamente privilegiado da religião, não se ouviu
um pio, nem neste caso, nem em nenhuma outra situação similar. Imagine-
se o alarido se na legenda se lesse: «Shadbreet (ateu), Musharaff (agnóstico)
e Adele (humanista secular), todos de quatro anos.» Será que não se abriria
uma investigação para ver se os pais estavam em condições de educar os
filhos? Na Grã-Bretanha, onde não há uma separação constitucional da
Igreja e do Estado, os pais ateus normalmente vão atrás da maioria e deixam
que as escolas ensinem aos filhos a religião culturalmente dominante. O
grupo The-Brights.net (uma iniciativa norte-americana que visa dar aos
ateus a nova designação de brights - «brilhantes» -, à semelhança do que os
homossexuais conseguiram ao passar a chamar-se gays) é escrupuloso nas
regras de adesão que criou para as crianças: «A decisão de ser um bright
tem de partir da criança. Todo/a o/a jovem a quem mandem ou aconselhem
a ser um bright NÃO o pode ser.» Alguém consegue sequer imaginar uma
igreja ou mesquita a emitir um regulamento imbuído deste desapego? Mas
não deviam estar obrigados a fazê-lo? A propósito, devo dizer que me
inscrevi nos brights, em parte porque tinha uma curiosidade genuína em
saber se é possível introduzir memeticamente uma palavra na língua. Não
sei, mas gostava de saber, se a transmutação da palavra gay foi
deliberadamente arquitectada ou se aconteceu por acaso. A campanha dos
228

brights teve um começo agitado quando foi veementemente criticada por


alguns ateus, estarrecidos por serem chamados «arrogantes». Felizmente
que o movimento do Orgulho Gay não sofre destas falsas modéstias, e
talvez resida aí a razão do seu êxito.
Num dos capítulos acima, generalizei o tema do «despertador da
consciência», começando por salientar a proeza das feministas ao fazerem-
nos torcer o nariz quando ouvimos uma expressão como «homens de boa
vontade» em vez de «pessoas de boa vontade». Quero aqui despertar as
consciências de outra forma. Penso que devemos todos torcer o nariz
quando ouvimos uma criança pequena ser rotulada em termos desta ou
daquela religião. As crianças pequenas são demasiado jovens para
decidirem quanto ao que pensam da origem do cosmos, da vida e da moral.
Só o som de expressões como «criança cristã» ou «criança muçulmana»
devia arranhar-nos os ouvidos como unhas a raspar num quadro preto.
Eis uma notícia dada no programa Irish Aires, da estação de rádio norte-
americana KPFT-FM, em 3 de Setembro de 2001:

Jovens católicas enfrentaram os protestos de lealistas quando tentavam


entrar na Escola Primária Feminina de Santa Cruz, na Ardoyne Road,
no Norte de Belfast. Agentes da polícia do Ulster e soldados do
Exército britânico tiveram de fazer dispersar os protestantes que
tentavam impedir o acesso à escola. Foram montadas barreiras de
protecção para permitir que as crianças passassem pelo meio dos
protestos. Os lealistas lançaram vaias e gritaram insultos sectários
enquanto as crianças, algumas com apenas quatro anos, se dirigiam para
a escola escoltadas pelos pais. No momento em que crianças e pais
entravam pelo portão da frente, os lealistas lançaram garrafas e pedras.

É natural que qualquer pessoa decente torça o nariz ante a provação


destas pobres alunas. Estou a tentar fazer com que torçamos também o nariz
perante a simples ideia de as rotular como «jovens católicas». («lealistas»,
como referi no capítulo primeiro, é o eufemismo melífluo da Irlanda do
Norte para designar os protestantes, tal como «nacionalistas» é o eufemismo
para designar os católicos. As mesmas pessoas que não hesitam em marcar
as crianças com o ferrete de «católica» ou «protestante» abstêm-se de
aplicar esses mesmos rótulos religiosos aos terroristas e às multidões de
adultos, quando aí teriam muito mais cabimento.)
A nossa sociedade, incluindo o sector não-religioso, aceitou a ideia
absurda de que é normal e correcto doutrinar crianças pequenas na religião
dos pais e colar-lhes rótulos religiosos - «criança católica», «criança
protestante», «criança judia», «criança muçulmana», etc. -, embora não o
faça com outros rótulos comparáveis: não há crianças conservadoras, nem
crianças liberais, nem republicanas ou democratas. Por favor, por favor,
vamos despertar as nossas consciências a este respeito e vamos aos arames
sempre que ouvirmos algo do género. Uma criança não é uma criança cristã,
nem é uma criança muçulmana, é sim uma criança filha de pais cristãos ou
filha de pais muçulmanos. Esta última nomenclatura, já agora, seria um
óptimo despertador de consciências para as próprias crianças. Uma criança
a quem se diga que é «filha de pais muçulmanos» aperceber-se-á
imediatamente de que a religião é algo que ela poderá adoptar - ou rejeitar -
quando tiver idade suficiente para tal.
Com efeito, é de crer que há vantagens educativas a retirar do ensino
comparativo das religiões. Sei que as minhas próprias dúvidas foram
inicialmente suscitadas quando, por volta dos nove anos, aprendi (não na
escola, mas com os meus pais) a lição de que a religião cristã em que fui
educado era apenas um entre muitos sistemas de crenças mutuamente
incompatíveis. Os próprios apologistas religiosos têm a percepção deste
facto, e muitas vezes ele assusta-os. Depois daquela notícia do Independent
sobre a peça de Natal, não houve nem uma carta ao director a protestar
contra o uso de rótulos religiosos em crianças de quatro anos. A única carta
negativa veio da Campanha para a Educação a Sério, cujo porta-voz, Nick
Seaton, afirmou que a educação religiosa multiconfessional era
extremamente perigosa porque «hoje em dia ensina-se às crianças que todas
as religiões têm mérito igual, o que quer dizer que a sua própria religião não
tem especial valor». Sim, de facto; é exactamente isso que quer dizer. Bem
pode este porta-voz preocupar-se. Noutra ocasião, o mesmo indivíduo
afirmou: «Apresentar todos os credos como sendo igualmente válidos é
errado. Toda a gente - hindus, judeus, muçulmanos ou cristãos - tem o
direito de pensar que o seu credo é superior aos dos outros, caso contrário,
qual o sentido de ter fé?»
229

Qual o sentido, de facto? E que transparente que esta falta de sentido é!


Estes credos são mutuamente incompatíveis. Caso contrário, para quê
pensar que o nosso credo é superior? Logo, a maior parte deles não pode ser
«superior aos outros». Deixemos as crianças ir aprendendo sobre os
diferentes credos, deixemos que lhes descubram a incompatibilidade e
deixemos que tirem as suas próprias conclusões relativamente às
consequências dessa incompatibilidade. Quanto à eventualidade de algum
deles ser «válido», deixemo-las decidir quando tiverem idade para tal.
Educação religiosa no âmbito da cultura literária
Devo admitir que até eu fico estupefacto com a ignorância habitualmente
revelada em matéria bíblica por pessoas que receberam a sua educação em
décadas mais recentes do que eu. E daí, talvez não seja uma questão de
época. Segundo o penetrante livro de Robert Hinde Why Gods Persist, já em
1954 uma sondagem Gallup sobre a realidade norte-americana concluía o
seguinte: 75 por cento dos católicos e dos protestantes não sabiam o nome
de um único profeta do Antigo Testamento. Mais de dois terços
desconheciam quem tinha pregado o Sermão da Montanha. Um número
considerável pensava que Moisés era um dos doze apóstolos. Repito que
estes dados se referiam aos Estados Unidos, que são acentuadamente mais
religiosos do que outras regiões do mundo desenvolvido.
A King James Bible - a Versão Autorizada, de 1611 - possui passos de
notável recorte literário, como sejam o Cântico dos Cânticos e o sublime
Eclesiastes (o qual, ao que me dizem, é também muito bom no original
hebraico). Mas a principal razão pela qual a Bíblia Inglesa deve fazer parte
da nossa educação está em que se trata de uma fonte essencial para a cultura
literária. O mesmo se aplica às lendas dos deuses gregos e romanos, que
aprendemos sem que nos peçam que neles acreditemos. Segue-se uma breve
lista de expressões e frases bíblicas ou inspiradas na Bíblia, que surgem
com alguma frequência na linguagem literária ou na oralidade, desde a
grande poesia aos mais banais clichés, passando pelos provérbios e pela
linguagem do mexerico.

Crescei e multiplicai-vos • A leste do paraíso • Costela de Adão • Sou,


porventura, guarda do meu irmão? • A marca de Caim • Velho como
Matusalém • Prato de lentilhas • Vendeu o direito de primogenitura •
Escada de Jacob • Túnica de várias cores • Em seara alheia • Cego em
Gaza • O melhor que a terra dá • O vitelo gordo • Estrangeiro em terra
estranha • Sarça ardente • A terra onde corre o leite e o mel • Deixa
partir o meu povo • Panelas de carne • Olho por olho e dente por dente •
Ficai sabendo que o vosso pecado não ficará sem castigo • A menina
dos seus olhos • As estrelas nas suas órbitas • Nata em nobre taça •
Acampamento dos madianitas • Chibolet • Do forte saiu a doçura •
Atacar impiedosamente • Filisteu • Um homem segundo o seu coração •
Como David e Jónatas • Mais amado do que a mais amável donzela •
Como tombaram os heróis • Cordeiro • Belial • Jezebel • Rainha do
Sabá • Sabedoria de Salomão • Não me contaram metade • Cingidos os
rins • Disparou o seu arco ao acaso • Consolações de Job • Paciência de
Job • Escapo com a pele dos meus dentes • Melhor é a sabedoria do que
as jóias • Leviatã • Vai, ó preguiçoso, ter com a formiga, observa o seu
proceder e torna-te sábio • Quem a vara poupa estraga a criança • Uma
palavra no tempo certo • Vaidade de vaidades • Para tudo há um
momento e um tempo para cada coisa • A corrida não é para os ágeis,
nem a batalha para os bravos • Podem multiplicar-se os livros,
indefinidamente • Eu sou o narciso de Saron • Um jardim fechado • As
raposas pequenas • As muitas águas não podem extinguir o amor •
Transformar as espadas em relhas de arados • Macerar o rosto do pobre
• O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do
cabrito • Comamos e bebamos porque amanhã morreremos • Põe em
ordem a tua casa • Uma voz a clamar no deserto • Não há paz para os
maus • Ver com os próprios olhos • Suprimido da terra dos vivos •
Bálsamo em Gilead • Pode o leopardo mudar as pintas da sua pele? •
Encruzilhada • Um Daniel na cova dos leões • Semearam ventos,
colherão tempestades • Sodoma e Gomorra • Nem só de pão vive o
homem • Vai-te da minha frente, Satanás • O sal da terra • Esconder a
candeia debaixo do alqueire • Dar a outra face • Caminhar uma milha
mais • Traça e ferrugem corroem • Dar pérolas a porcos • Lobo com
pele de cordeiro • Choro e ranger de dentes • Porcos de Gádara • Vinho
novo em odres velhos • Sacudi o pó dos vossos pés • Quem não estiver
comigo está contra mim • Julgamento de Salomão • Cair em terreno
pedregoso • Ninguém é profeta na sua própria terra • As migalhas da
mesa • Sinal dos tempos • Covil de ladrões • Fariseu • Sepulcros
caiados • Guerras e rumores de guerras • Servo bom e fiel • Separar as
ovelhas dos cabritos • Lavo daí as minhas mãos • O sábado foi feito
para o homem e não o homem para o sábado • Deixai vir a mim as
criancinhas • O óbolo da viúva • Médico, cura-te a ti próprio • Bom
samaritano • Passar ao largo • Vinhas da ira • Ovelha tresmalhada • O
filho pródigo • Um grande abismo • A quem não sou digno de desatar a
correia das sandálias • Atirar a primeira pedra • Jesus chorou • Ninguém
tem mais amor • Ver para crer • Estrada de Damasco • A si mesmo
servir de lei • Através de espelho confuso • Onde está, ó morte, o teu
aguilhão? • Espinho na carne • Cair em desgraça • Torpe ganância •
Combate o bom combate • A raiz de todos os males • Toda a carne é
como a erva • O ser mais frágil • Eu sou o Alfa e o Omega • Armagedão
• De profundis • Quo vadis • Fazer cair a chuva sobre os justos e os
pecadores

Qualquer destas expressões ou frases feitas vem directamente da Versão


Autorizada da King James Bible. O desconhecimento da Bíblia não
empobrecerá, por isso, a nossa apreciação da literatura? E não apenas da
literatura solene e séria. Os versos que se seguem, do juiz Lorde Bowen, são
engenhosamente espirituosos:

Sobre o justo cai a chuva,


Sobre o pecador cai ela.
Mas mais cairá sobre o justo,
Que o outro lhe tirou a umbela

Mas o nosso deleite será mitigado se não percebermos a alusão a Mateus


5: 45 («Pois ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz
cair a chuva sobre os justos e os pecadores»). E aquela subtileza da fantasia
de Eliza Dolittle em My Fair Lady passa desapercebida ao leitor que não
saiba que fim teve São João Baptista:

Obrigadinha, ó rei», digo-l’ eu muito educada,


Só quero a cabeça de ‘Enry ‘Iggins e maí nada.

P. G. Wodehouse é, na minha opinião, o maior escritor de comédia ligeira


em língua inglesa e aposto que nas suas páginas há alusões a seguramente
metade das expressões bíblicas constantes da minha lista. (A eventual busca
através do Google, no entanto, não as vai encontrar todas. Não vai encontrar
a variante do versículo 6: 6 do livro dos Provérbios, presente no título do
conto «A Tia e o Preguiçoso» ) No cânone de Wodehouse abundam outras
230

expressões bíblicas que não constam da minha lista nem constituem,


propriamente, idiomatismos ou adágios. Ouça-se a evocação que a
personagem Bertie Wooster faz de como é acordar com uma péssima
ressaca: «Estava a sonhar que um brutamontes qualquer me estava a espetar
pregos na cabeça - não digo pregos normais, como o que usou Jael, mulher
de Heber, mas pregos em brasa.» O próprio Bertie gabava-se imenso do
prémio que outrora ganhou pelo bom conhecimento das Escrituras, seu
único feito académico.
Aquilo que é válido para a escrita humorística em inglês vale ainda mais
no caso da literatura séria. Naseeb Shaheen contabiliza mais de 1300
referências bíblicas nas obras de Shakespeare, um número que é
amplamente citado e bastante credível. O Bible Literacy Report, publicado
231

em Fairfax, na Virgínia (financiado, é certo, pela famigerada Fundação


Templeton), fornece inúmeros exemplos e refere o esmagador consenso,
entre professores de literatura inglesa, de que a competência bíblica é
essencial para uma fruição plena da matéria que ensinam. Sem dúvida que 232

o mesmo valerá para as literaturas francesa, alemã, russa, italiana, espanhola


e as outras grandes literaturas europeias. É de supor que, no caso dos
falantes das línguas dos países árabes e da Índia, o conhecimento do Corão
e do Bhagavad Gita seja igualmente essencial para a plena fruição do
respectivo património literário. Por fim, e para completar a lista, não é
possível fruir devidamente as obras de Wagner (cuja música, como alguém
disse com um certo espírito, é melhor do que soa) sem dominar os meandros
dos deuses nórdicos.
Não vou repisar mais este ponto. Provavelmente já terei dito o suficiente
para convencer pelo menos os meus leitores mais velhos de que uma visão
ateia do mundo de modo algum justifica que se retire a Bíblia e outros livros
sagrados da nossa formação. E é evidente que podemos manter a nossa
fidelidade sentimental às tradições culturais e literárias do Judaísmo, do
Anglicanismo ou do Islamismo, por exemplo, e inclusivamente participar
em rituais religiosos como casamentos e funerais sem ter de aceitar as
crenças sobrenaturais historicamente associadas a tais tradições. Podemos
abandonar a crença em Deus sem perder o contacto com uma herança que
muito estimamos.

205 Os bispos Hugh Latimer e Nicholas Ridley (1555) e o arcebispo Thomas Cranmer (1556),
conhecidos como «os mártires de Oxford», morreram na fogueira sob a acusação de heresia. (N. das T.)
206 Alusão à disputa entre as gentes de Liliput e Blefuscu na obra, de Jonathan Swift, Viagens de
Gulliver. (N. das T.)

207 Noticiado pela BBC News: http://news.bbc.co.uk/1/hi/wales/901723.stm.

208 Jovens protagonistas de livros de língua inglesa. (N. das T.)

209 Loftus e Ketcham (1994).

210 Ver John Waters no Irish Times: http://oneinfour.org/news/news2003/roots/.

211 Associated Press, 10 de Junho de 2005: http://www.rickross.com/reference/clergy/clergy426.html.

212 O arcebispo da Cantuária, o cardeal-arcebispo de Westminster e o rabino-chefe da Grã-Bretanha


foram todos convidados a ser entrevistados por mim. Todos eles recusaram, sem dúvida pelas melhores
razões. O bispo de Oxford aceitou o convite, e foi tão encantador e tão pouco extremista como
certamente os outros teriam sido também.

213 O conteúdo do seguinte endereço electrónico parece ser real, embora de início eu suspeitasse de
que se tratava de um embuste satírico ao estilo de The Onion:
www.talk2action.org/story/2006/5/29/195855/959. Trata-se de um jogo de computador chamado Left
Behind: Eternal Forces («Abandonado: Forças Eternas» [A série Left Behind é uma saga narrativa
associada ao já aludido movimento Rapture – N. das T]). No seu excelente website «Pharyngula», P. Z.
Myers resume-o desta maneira: «Imagina que és um soldado de um grupo paramilitar cujo objectivo é
refazer os Estados Unidos segundo o modelo da teocracia e impor a sua perspectiva do domínio de
Cristo na Terra sobre todos os aspectos da vida... Tens uma missão – a um tempo religiosa e militar –
que é converter ou matar católicos, judeus, muçulmanos, budistas, gays e todos aqueles que defendam a
separação entre a Igreja e o Estado...» Consultar
http://select.nytimes.com/pharyngula/2006/05/gta_meet_lbef.php; para uma recensão crítica, consultar
http://select.nytimes.com/gst/abstract.html?res=F1071FFD3C550C718CDDAA0894DE404482.

214 http://www.av1611.org/hell.html.

215 Compare-se isto com a encantadora caridade cristã de Ann Coulter: «Desafio qualquer um dos
meus correligionários a que se atreva a dizer-me que não se ri com a ideia de Dawkins a arder no
inferno» (Coulter, 2006, 268).

216 N. Humphrey, «What shall we tell the children?», em Williams (1998); reeditado em Humphrey
(2002).

217 Esta é, hoje em dia, uma prática corrente na Grã-Bretanha. Um inspector escolar contou-me que,
em 2006, havia em Londres raparigas a serem mandadas para um «tio», em Bradford, para serem
sujeitas a excisão. As autoridades fecham os olhos com receio de serem consideradas racistas na
«comunidade».

218 http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/yoder.html.

219 Guardian, 15 de Janeiro de 2005: http://www.guardian.co.uk/weekend/story/0,,1389500,00.html.


220 H. L. Mencken foi profético ao escrever: «Bem no fundo do coração de cada evangélico está a
carcaça de um vendedor de automóveis.»

221 Times Educational Supplement, 15 de Julho de 2005.

222 http://www.telegraph.co.uk/opinion/mainjhtml?xml=/opinion/2002/03/18/do1801.xml.

223 Guardian, 15 de Janeiro de 2005: http://www.guardian.co.uk/weekend/story/0,,1389500,00.html.

224 O texto da nossa carta, escrita pelo bispo de Oxford, dizia o seguinte: Exmo. Sr. Primeiro-ministro,
Escrevemos-lhe enquanto grupo de cientistas e de bispos para exprimir a nossa preocupação com o
ensino das ciências no Emmanuel City Technology College, em Gateshead. A evolução é uma teoria
científica de grande poder explicativo, com capacidade para justificar uma grande variedade de
fenómenos em inúmeras disciplinas. Poderá ser aperfeiçoada, confirmada e mesmo alterada
radicalmente, atentas as necessárias provas. Não é, como defendem alguns porta-vozes da escola, uma
«posição de fé» ao nível do relato bíblico da criação, o qual tem uma função e um objectivo diferentes.
A questão vai para além daquilo que é presentemente ensinado numa escola. Há uma ansiedade
crescente acerca do que se há-de ensinar e como se há-de ensinar no âmbito da prevista nova geração
de escolas de fé. Acreditamos que os programas destas escolas, bem do Emmanuel City Technology
College, precisam de ser rigorosamente acompanhados, de modo a que as respectivas disciplinas de
ciências e de estudos religiosos sejam devidamente respeitadas.
Com os melhores cumprimentos

225 British Humanist Association News, Março-Abril de 2006.

226 Para se ter uma ideia da dimensão de um erro destes, diga-se que ele é equivalente a acreditar que a
distância entre Nova Iorque e São Francisco é de sete metros.

227 Observer, 22 de Julho de 2004:


http://observer.guardian.co.uk/magazine/story/0,11913,1258506,00.html.

228 O Oxford Dictionary situa a origem da palavra gay em 1935, no calão das prisões norte-
americanas. Em 1955, Peter Wildeblood, no seu famoso livro Against the Law, achou necessário definir
gay como «um eufemismo norte-americano para homossexual».

229 http://uepengland.com/forum/index.php?showtopic=184&mode=linear.

230 Em inglês há uma proximidade fónica entre ant e aunt, respectivamente formiga e tia. (N. das T.)

231 Shaheen escreveu três livros, cada um deles compilando as referências bíblicas encontradas nas
comédias, tragédias e peças históricas. O total de 1300 é referido em
http://www.shakespearefellowship.org/virtualclassroom/StritmatterShahe~.htm.

232 http://www.bibleliteracy.org/Secure/Documents/BibleLiteracyReport2005.pdf.
10
Uma lacuna muito necessária?
Haverá alguma coisa que nos toque mais a alma do que
espreitar uma galáxia distante por um telescópio de 100
polegadas, segurar na mão um fóssil com 100 milhões de anos
ou um utensílio de pedra com 500 000, contemplar de pé o
imenso abismo de espaço e tempo que é o Grand Canyon, ou
escutar um cientista que olhou cara a cara a criação do
universo e não pestanejou? É isso a profunda e sagrada
ciência.
Michael Shermer

«Este livro preenche uma lacuna muito necessária.» A piada funciona


porque compreendemos simultaneamente os dois significados opostos nela
contida. A propósito, julguei que tivesse sido eu a inventar a graça, mas,
para minha surpresa, acho que na verdade já foi utilizada, e com toda a
inocência, por uma editora. Veja-se o site
http://www.kcl.ac.uk/kis/schools/hums/french/pgr/tqr.html, onde se anuncia
um livro que «preenche uma lacuna muito necessária da bibliografia
disponível sobre o movimento pós-estruturalista». Parece-me
deliciosamente apropriado que este livro assumidamente supérfluo seja,
todo ele, sobre Michel Foucault, Roland Barthes, Julia Kristeva e outros
ícones da alta francofonia.
Será que a religião preenche uma lacuna muito necessária? Diz-se
frequentemente existir no cérebro uma lacuna que tem a forma de Deus e
que é preciso preencher: temos uma necessidade psicológica de Deus –
amigo imaginário, pai, big brother, confessor, confidente – e a necessidade
tem de ser satisfeita quer Deus exista de facto, quer não. Mas não será que
Deus vem atravancar um espaço que melhor seria que preenchêssemos com
outra coisa? Talvez com a ciência? A arte? A amizade humana? O
humanismo? O amor por esta vida, vivido no mundo concreto, sem dar
crédito a eventuais vidas além da morte? Um amor pela natureza – aquilo a
que o grande entomólogo E. O. Wilson chamou Biofilia?
Já se apontaram à religião quatro grandes funções na vida humana:
explicação, exortação, consolo e inspiração. Historicamente, a religião
aspirou a explicar a nossa existência e a natureza do universo em que nos
inserimos. Nesta função ela foi entretanto completamente ultrapassada pela
ciência, questão que tratei no capítulo quarto. Por exortação pretendo dizer
a orientação moral sobre o modo como nos devemos comportar, e abordei o
tema nos capítulos sexto e sétimo. Até agora não fiz ainda a devida justiça
ao consolo e à inspiração, aspectos que este capítulo final irá tratar
sucintamente. Como preâmbulo ao tema do consolo, quero começar com o
fenómeno do «amigo imaginário» da infância, que julgo ter semelhanças
com a crença religiosa.

Binker
Suponho que o Cristóvão não acreditava que o Leitão e o Ursinho Puff
falassem mesmo com ele. Mas seria Binker diferente?

Na vida tenho um segredo que guardo com muito carinho,


Binker lhe chamo e com ele nunca me sinto sozinho.
Quando brinco no meu quarto ou me sento no patamar,
Esteja eu onde estiver, sempre o Binker há-de estar.
O Papá é muito esperto, de uma esperteza sem fim,
E a Mamã é a melhor mãe do mundo inteiro para mim,
E a Ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim –
Mas eles não vêem o Binker.
O Binker está sempre a falar, porque eu ando a ensiná-lo.
Põe-se às vezes a guinchar, mas com isso não me ralo.
Gosta às vezes de rugir, tão alto que assarapanta
E eu tenho de o substituir, porque lhe dói a garganta.
O Papá é muito esperto, de uma esperteza sem fim,
E a Mamã sabe tudo, tudo tintim por tintim,
E a Ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim –
Mas eles não sabem do Binker.
Se corremos pelo parque, o Binker é bravo – um leão
E bravo é como o tigre, quando nos cerca a escuridão;
Bravo é como o elefante, pois não chora nunca, não...
Excepto se, ao lavar-se, lhe entra para os olhos sabão.
O Papá é um papá, como são todos, enfim,
E a Mamã esforça-se por ser a melhor mãe para mim,
E a Ama é a Nana – gosto de chamar-lhe assim...
Mas eles não são como o Binker.
O Binker não é guloso, mas há coisas que adora comer,
Por isso, se me dão doces, eu lá tenho de dizer:
«O Binker quer um chocolate. Será que me podem dar dois?»
E como ele tem dentes fracos, eu papo tudo depois.
Gosto muito do Papá, mas para brincar não tem tempo,
E gosto também da Mamã, mas às vezes está ausente,
E fico zangado com a Nana, por me querer bem penteado...
Mas o Binker é sempre o Binker, e está sempre ao meu lado.
A. A. Milne, Now We Are Six233

Será o fenómeno do amigo imaginário uma ilusão de tipo superior, numa


categoria diferente do comum faz-de-conta da infância? A minha própria
experiência não ajuda muito para aqui. Tal como muitos pais, a minha mãe
anotava as frases que eu dizia em criança. Além das simulações simples
(agora eu era o homem na Lua... um piloto a acelerar... um homem da
Babilónia), era patente que gostava de simulações de segunda ordem (agora
eu era uma coruja a fingir que era uma nora), que podiam ser reflexivas
(agora eu era um menino a fingir que era o Richard). Nunca acreditei que
fosse realmente qualquer uma daquelas coisas, e julgo que isso é
normalmente verdade no que diz respeito aos jogos de faz-de-conta da
infância. Mas não tive um Binker. A fazer fé no testemunho dos seus eus
adultos, pelo menos algumas dessas crianças normais que têm amigos
imaginários acreditam mesmo que estes existem, e em certos casos vêem-
nos com a clareza e nitidez de alucinações. Suspeito de que o fenómeno
Binker da infância pode ser um bom modelo para compreender a crença
teísta dos adultos. Não sei se os psicólogos já estudaram a questão deste
ponto de vista, mas seria digna de investigação. Companheiro e confidente,
um Binker para a vida: esse é, seguramente, um papel que Deus
desempenha – uma lacuna que perduraria, se Deus desaparecesse.
Outra criança, uma menina, tinha um «homenzinho púrpura» que lhe
parecia uma presença real e visível, e que se materializava no ar com uma
cintilação e um suave tinido. Visitava-a com regularidade, especialmente
quando se sentia sozinha, mas com menor frequência à medida que ela foi
crescendo. Um certo dia, mesmo antes de ir para o infantário, o homenzinho
púrpura apareceu-lhe, anunciado pelo habitual tinir de campainhas, para lhe
dizer que não voltaria a visitá-la. Isto entristeceu a menina, mas o
homenzinho púrpura disse-lhe que ela estava a crescer e que no futuro não
ia precisar mais dele. Agora tinha de deixá-la para poder ir cuidar de outras
crianças. Prometeu-lhe que voltaria se ela alguma vez precisasse dele a
sério. Voltou, de facto, muitos anos mais tarde, num sonho, numa altura em
que ela estava a atravessar uma crise pessoal e a tentar decidir o que fazer
da vida. A porta do quarto abriu-se e apareceu uma carrada de livros,
empurrada quarto adentro por... o homenzinho púrpura. Ela interpretou isto
como sendo um conselho no sentido de ir para a universidade – conselho
que ela seguiu e mais tarde considerou ter sido bom. A história quase me
leva às lágrimas e consegue, mais do que outro exemplo qualquer, acercar-
me da compreensão do papel consolador e aconselhador que os deuses
imaginários têm nas vidas das pessoas. Um ser pode existir apenas na
imaginação e, ainda assim, parecer completamente real à criança, dando-lhe
verdadeiro conforto e bons conselhos. Mas melhor ainda, os amigos – e os
deuses – imaginários têm tempo e paciência para dedicar toda a atenção à
pessoa que sofre. E são muito mais baratos do que os psiquiatras ou os
conselheiros profissionais.
Terão os deuses, nesse seu papel de consoladores e conselheiros, evoluído
a partir de Binkers, por meio de uma espécie de «pedomorfose»
psicológica? A pedomorfose é a manutenção, na idade adulta, de
características da infância. Os cães pequineses têm focinhos pedomórficos:
os exemplares adultos parecem cachorrinhos. Trata-se de um padrão bem
conhecido na evolução, amplamente considerado como importante para o
desenvolvimento de características humanas tais como a nossa fronte
bulbosa e maxilar curto. Fomos descritos pelos evolucionistas como símios
jovens, e é sem dúvida verdade que os chimpanzés e os gorilas jovens se
assemelham mais aos humanos do que os adultos. Terão as religiões
originariamente evoluído, ao longo de gerações, através de um adiamento
gradual do momento da vida em que as crianças põem de parte os seus
Binkers – do mesmo modo que fomos abrandando, ao longo da evolução, o
achatamento da testa e a protrusão dos maxilares?
Talvez que, para completar o quadro, devamos considerar a possibilidade
inversa. Em vez de serem os deuses a evoluir a partir de Binkers ancestrais,
será possível os Binkers terem evoluído a partir de deuses antigos? Esta
ideia parece-me menos provável. Fui induzido a considerá-la ao ler o livro
The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind, do
psicólogo norte-americano Julian Jaynes, uma obra tão estranha quanto o
seu título faz adivinhar. Trata-se de um daqueles livros que ou são uma total
porcaria ou então o produto de um perfeito génio, sem meio-termo. É
provável que a primeira hipótese venha a confirmar-se a correcta, mas, pelo
sim pelo não, vou apostando nos dois lados.
Jaynes observa que muitas pessoas têm a percepção de que os seus
próprios processos de pensamento são como uma espécie de diálogo entre o
«eu» e outro protagonista interno, situado dentro da cabeça. Hoje em dia
compreendemos que ambas as «vozes» são nossas – e se não o
compreendemos somos tratados como doentes mentais. Foi o que, durante
um breve período, aconteceu com Evelyn Waugh. Sem papas na língua,
como era seu timbre, Waugh comentou com um amigo: «Não te vejo há
muito tempo, mas também tenho visto tão pouca gente porque – não sei se
sabias – enlouqueci.» Depois de recuperar, Waugh escreveu um romance,
As Desventuras do Senhor Pinfold, em que descreve o seu período
alucinatório e as vozes que então ouvia.
O que Jaynes sugere é que algures antes do ano 1000 a. C. a generalidade
das pessoas desconhecia que a segunda voz – a voz de Gilbert Pinfold –
vinha de dentro de si. Julgavam que a voz de Pinfold era um deus: Apolo,
por exemplo, ou Astarte ou Javé, ou, mais provavelmente, um deus caseiro
menor, que dava conselhos ou ordens. Jaynes localizou, inclusivamente, as
vozes dos deuses no hemisfério do cérebro oposto ao que controla a
linguagem. Para Jaynes, o «desabar da mente bicameral» correspondeu a
uma transição histórica. Foi o momento da História em que as pessoas se
deram conta de que as vozes exteriores que lhes parecia ouvir vinham,
efectivamente, de dentro. Jaynes vai mesmo ao ponto de definir esta
transição histórica como o alvor da consciência humana.
Existe uma antiga inscrição egípcia sobre o deus criador Ptah, que diz que
os outros deuses são variações da «voz» ou da «língua» daquele. Certas
traduções modernas rejeitam a noção de uma «voz» literal, chamando aos
outros deuses «concepções objectivadas da mente de [Ptah]». Jaynes
descarta essas leituras sofisticadas, preferindo levar a sério o significado
literal. Os deuses seriam, então, vozes alucinadas que falavam dentro das
cabeças das pessoas. Jaynes sugere ainda que esses deuses evoluíram a
partir da memória de reis mortos que, por assim dizer, ainda mantinham o
controlo sobre os seus súbditos por meio de vozes imaginadas nas cabeças
destes. Quer se ache a tese plausível quer não, o livro de Jaynes é
suficientemente apelativo para merecer referência numa obra sobre religião.
Passemos agora à possibilidade, atrás aventada, de utilizar a hipótese de
Jaynes para construir uma teoria no sentido de afirmar que os deuses e os
Binkers são relacionados em termos de desenvolvimento, mas no sentido
contrário ao da teoria da pedomorfose. Isso equivale a dizer que o desabar
da mente bicameral não se deu repentinamente num dado momento
histórico, pois o que se verificou foi antes um puxar gradual, até à infância,
do momento em que as vozes alucinadas e as aparições passaram a ser
entendidas como não reais. Assim, e numa espécie de inversão da hipótese
da pedomorfose, os deuses alucinados começaram, primeiro, por
desaparecer das mentes adultas e foram, depois, sendo puxados para trás,
para fases cada vez mais recuadas da infância, até às suas actuais
sobrevivências sob a forma de fenómenos como o Binker ou o homenzinho
púrpura. O problema com esta versão da teoria é que não explica a
persistência dos deuses, hoje, na idade adulta.
Talvez seja melhor não tratar os deuses como antepassados dos binkers,
ou vice-versa, mas antes encarar ambos como subprodutos da mesma
predisposição psicológica. Deuses e binkers têm em comum o poder de
confortar e de proporcionar uma vívida caixa de ressonância para testar
ideias. Não nos afastámos muito da teoria – analisada no capítulo quinto –
que considera a evolução da religião um subproduto psicológico.

Consolo
É tempo de abordar a questão do importante papel que Deus desempenha
em consolar-nos, bem como, no caso de ele não existir, do desafio
humanitário que será pôr alguma coisa no seu lugar. Muitas das pessoas que
admitem que provavelmente Deus não existe nem é necessário para a
moralidade, ainda voltam à carga com aquilo que geralmente consideram
um trunfo: a alegada necessidade psicológica ou emocional de um deus. Se
se tira a religião, perguntam com truculência, o que se coloca no seu lugar?
O que se oferece aos doentes terminais, aos enlutados que choram, às
Eleanor Rigbys solitárias que têm em Deus o seu único amigo?
A primeira coisa a dizer em resposta a isto é algo que não deveria precisar
de ser dito. O poder que a religião tem de consolar não a torna verdade.
Façamos, inclusivamente, uma enorme concessão: mesmo que se
demonstrasse de forma concludente que a crença na existência de Deus é
absolutamente essencial ao bem-estar psicológico e emocional do ser
humano; mesmo que os ateus não passassem todos de neuróticos
desesperados, dados ao suicídio por uma inexorável angústia cósmica –
nada disto constituiria o mais ínfimo grão de prova de que há verdade na
crença religiosa. Poderia ser uma prova de que é desejável as pessoas
convencerem-se a si próprias de que Deus existe, mesmo não existindo.
Como já referi, Dan Dennett, no livro Breaking the Spell, faz a distinção
entre crença em Deus e crença na crença, ou seja, a crença de que é
desejável acreditar, mesmo que a crença seja, ela própria, falsa: «Eu creio,
Senhor! Ajuda a minha incredulidade» (Marcos 9: 24). Os crentes são
incentivados a professar a crença, quer dela estejam convencidos, quer não.
É provável que, repetindo uma coisa vezes suficientes, nos consigamos
convencer da sua veracidade. Julgo que todos conhecemos pessoas que têm
apego à ideia da fé religiosa e que se ofendem quando ela é atacada, ainda
que admitam, com relutância, que elas próprias não a possuem. Fiquei
ligeiramente chocado ao descobrir um esplêndido exemplo no livro do meu
herói Peter Medawar The Limits of Science (Oxford University Press, 1984,
p. 96): «Eu lamento a minha descrença em Deus e nas respostas religiosas
em geral, pois acredito que, se descobríssemos boas razões científicas e
filosóficas para acreditar em Deus, isso proporcionaria satisfação e conforto
a muitas pessoas deles necessitadas.»
Desde que li a distinção de Dennett, tenho tido oportunidade de a utilizar
vezes sem conta. Não será exagero afirmar que a maioria dos ateus que
conheço disfarça o seu ateísmo por trás de uma fachada virtuosa. Não crêem
em nada de sobrenatural, no entanto conservam uma vaga susceptibilidade à
crença irracional. Acreditam na crença. É espantoso o número de pessoas
que parece não conseguirem distinguir a diferença entre «X é verdade» e «é
desejável as pessoas acreditarem que X é verdade». Ou talvez não se
deixem cair, propriamente, neste erro lógico, mas considerem tão-somente
que a verdade é insignificante quando comparada com os sentimentos
humanos. Não pretendo desvalorizar os sentimentos humanos, mas quando
conversamos, sejamos claros quanto àquilo de que estamos a falar:
sentimentos, ou verdade. Ambos podem ser importantes, mas não são a
mesma coisa.
Seja como for, a minha concessão hipotética foi um gesto descabido e
incorrecto. Não conheço provas de que os ateus revelem qualquer tendência
genérica para o abatimento e a angústia. Alguns ateus são felizes, outros são
extremamente infelizes. Do mesmo modo que alguns cristãos, judeus,
muçulmanos, hindus e budistas serão extremamente infelizes, outros serão
felizes. Pode ser que haja evidência estatística sobre a relação entre a
felicidade e a crença (ou descrença), mas duvido de que o eventual efeito
seja forte, quer num sentido, quer no outro. Acho mais interessante
perguntar se existe alguma boa razão para nos sentirmos deprimidos se
vivermos sem Deus. Pelo contrário, terminarei este livro defendendo que
dizer que se pode ter uma vida feliz e plena sem a religião sobrenatural
ainda é pouco. Antes disso, no entanto, tenho de analisar as pretensões da
religião quanto a proporcionar consolo.
Segundo o Shorter Oxford Dictionary, consolo é o alívio da dor ou do
sofrimento mental. Vou dividi-lo em dois tipos.

1. Consolo físico imediato. Um homem isolado num monte


descampado, à noite, pode achar conforto num são-bernardo
grande e aconchegante, sem esquecer, claro, o barril de
aguardente à volta do pescoço. Uma criança que chora pode ser
consolada pelos braços fortes que a envolvem e por palavras
tranquilizadoras sussurradas ao ouvido.

2. Consolo pela descoberta de um facto antes descurado, ou uma


forma antes desconhecida de encarar factos ocorridos. Uma
mulher cujo marido tenha sido morto na guerra pode ser
consolada pela descoberta de que está grávida dele ou de que ele
morreu como um herói. Também podemos retirar consolo da
descoberta de uma nova forma de encarar uma dada situação. Um
filósofo faz notar que não há nada de especial no momento em
que um velho morre. A criança que em tempos ele foi «morreu»
há muito, não por ter deixado subitamente de viver, mas por ter
crescido. Cada uma das sete idades do homem, de que nos fala
Shakespeare, «morre» lentamente ao transformar-se na seguinte.
Deste ponto de vista, o momento em que o velho finalmente dá o
último suspiro não é diferente das «mortes» lentas que teve ao
longo da vida. 234
Um homem que não se compraz com a
perspectiva da própria morte poderá achar consoladora esta visão
alternativa. Ou talvez não ache, mas em todo o caso este não deixa
de ser um exemplo potencial de consolo através da reflexão.
Outro exemplo é a rejeição do medo da morte tal como foi
formulada por Mark Twain: «Não tenho medo da morte. Estive
morto durante milhões de milhões de anos antes de nascer, e não
senti o mais pequeno incómodo por isso.» Esta tomada de
consciência em nada altera o facto de que a nossa morte é
inevitável. Mas foi-nos oferecida uma maneira diferente de olhar
essa inevitabilidade, que podemos achar consoladora. Thomas
Jefferson também não tinha medo da morte e não parece que
acreditasse em nenhuma espécie de vida após a morte. Segundo
Christopher Hitchens, «quando os seus dias começaram a
aproximar-se do fim, por mais de uma vez Jefferson escreveu a
amigos dizendo que era sem esperança nem medo que encarava o
final. O que era o mesmo que dizer, nos termos mais inequívocos,
que não era cristão.»

Os intelectos mais resistentes estarão já, nesta altura, em condições de


digerir a pesada declaração de Bertrand Russell no seu ensaio de 1925
intitulado «What I Believe» («Aquilo em que acredito»):

Acredito que quando morrer vou apodrecer e nada do meu ego irá
sobreviver. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharia de tremer de
medo ante a perspectiva da aniquilação. Apesar de tudo, a felicidade só
é verdadeiramente felicidade porque tem de ter um fim, do mesmo
modo que o pensamento ou o amor não valem menos por não serem
eternos. Muitos foram aqueles que pisaram o cadafalso com orgulho;
esse mesmo orgulho deveria, por certo, ensinar-nos a pensar
verdadeiramente no lugar que o homem ocupa no mundo. Mesmo que a
princípio as janelas franqueadas da ciência nos façam arrepiar, após o
calor caseiro e acolhedor dos tradicionais mitos humanizantes, ao fim e
ao cabo o ar fresco revigora, e os grandes espaços possuem um
esplendor único.
Colhi inspiração deste ensaio de Russell quando, por volta dos 16 anos, o
li na biblioteca da minha escola, mas tinha-o esquecido. É bem possível que
estivesse a prestar inconscientemente homenagem a Russell (bem como,
conscientemente a Darwin) quando, em 2003, escrevi no livro A Devil’s
Chaplain:

Há mais do que mera grandeza nesta visão da vida, por mais sombria e
fria que ela possa parecer a quem a contempla a coberto do manto
seguro da sua ignorância. Há algo de profundamente refrescante no
facto de olharmos de pé, e de rosto erguido, o vento forte e cortante do
entendimento: os «ventos que sopram pelos caminhos estelares», como
escreveu Yeats.

Como pode a religião comparar-se, por exemplo, à ciência no que toca a


estes dois tipos de consolo? Olhando em primeiro lugar para o consolo de
tipo um, é completamente plausível que os fortes braços de Deus, mesmo
sendo puramente imaginários, consigam consolar tanto quanto os braços
reais de um amigo, ou um são-bernardo com um barril de aguardente à volta
do pescoço. Mas é claro que a medicina de base científica também consegue
proporcionar conforto – e normalmente mais eficaz do que a aguardente.
Considerando agora o consolo de tipo dois, é fácil acreditar que a religião
possa ser extremamente eficaz. É frequente as vítimas de grandes desastres,
como, por exemplo, terramotos, afirmarem que as consola a ideia de que faz
tudo parte do insondável plano de Deus: não duvidam de que, em devido
tempo, algum bem há-de advir da tragédia. Para quem teme a morte,
acreditar que possui uma alma imortal pode ser consolador – a menos,
evidentemente, que esteja convencido de que vai para o inferno ou para o
purgatório. As crenças falsas podem ser tão consoladoras como as
verdadeiras, até ao momento do desengano. O mesmo se aplica às crenças
não-religiosas. Um homem com cancro terminal pode ser consolado por um
médico que lhe minta dizendo que está curado, com eficácia igual a outro
homem a quem seja dito, com verdade, que está curado. A crença sincera e
profunda na vida depois da morte ainda é mais imune à desilusão do que a
crença num médico mentiroso. A mentira do médico só é eficaz até os
sintomas se tornarem inequívocos. Um crente na vida depois da morte
nunca poderá, em última análise, ser desenganado.
As sondagens sugerem que aproximadamente 95 por cento da população
dos Estados Unidos acredita que vai sobreviver à própria morte. Excluindo
os aspirantes a mártires, não consigo deixar de me perguntar quantas
pessoas religiosas e moderadas que dizem ter tal crença a acalentam
verdadeiramente no seu mais profundo íntimo. Se fossem realmente
sinceras, será que não se comportariam todas como o abade de Ampleforth?
Quando o cardeal Basil Hume lhe disse que estava a morrer, o abade
mostrou-se felicíssimo por ele: «Parabéns! Que bela notícia. Quem me dera
ir com Vossa Eminência.» Parece, então, que o abade era um verdadeiro
235

crente. Mas é precisamente por ser tão rara e inesperada que esta pequena
história nos prende a atenção e quase diverte – ao jeito daquele cartoon de
uma jovem completamente nua segurando uma faixa com os dizeres
«Façamos amor e não a guerra», e com um circunstante exclamando: «É a
isto que eu chamo sinceridade!» Por que motivo não dizem todos os cristãos
e muçulmanos algo parecido com o que disse o abade quando ouvem que
um amigo está a morrer? Quando um médico diz a uma mulher devota que
não lhe restam senão alguns meses de vida, por que razão não sorri ela em
emocionada antevisão, como se tivesse acabado de ganhar umas férias nas
Seychelles? «Nunca mais chega a hora!» Por que razão é que os amigos
crentes reunidos à cabeceira para a visitar não a sobrecarregam de
mensagens para os que já partiram? «Dá saudades ao tio Alberto quando o
vires...»
Por que motivo não falam as pessoas religiosas assim na presença dos que
estão à beira da morte? Será que não acreditam de facto nas coisas todas em
que presumem acreditar? Ou talvez acreditem, mas têm medo do processo
de morrer. E com razão, dado que a nossa espécie é a única a que não é
permitido ir ao veterinário para que, de forma indolor, lhe ponham fim ao
sofrimento. Mas, nesse caso, por que motivo é que a oposição mais ruidosa
à eutanásia e ao suicídio assistido vem das pessoas religiosas? No modelo
de morte à «abade de Ampleforth» e «férias nas Seicheles», não seria de
esperar que as pessoas religiosas fossem as menos inclinadas a agarrar-se
despudoradamente à vida? Contudo, é impressionante verificar que, se nos
cruzamos com alguém que seja apaixonadamente contra a eutanásia ou
contra o suicídio assistido, podemos apostar uma boa maquia em como
essas pessoas são religiosas. A razão oficial poderá ser a de que provocar a
morte é sempre pecado. Mas porquê considerar isso pecado se se acredita
sinceramente que se está, desse modo, a acelerar uma ida para o céu?
Em contraste com esta atitude, a minha posição relativamente ao suicídio
assistido assenta na observação de Mark Twain a que aludi atrás. Estar
morto não vai ser diferente de estar por nascer – serei tal e qual como era no
tempo de Guilherme, o Conquistador, ou dos dinossauros, ou das trilobites.
Não há nada a temer daí. Mas o processo de morrer, propriamente, poderá
bem ser, dependendo da sorte de cada um, doloroso e desagradável – o tipo
de experiência, enfim, contra o qual nos habituámos a ser protegidos através
de anestesia geral, como quando vamos tirar o apêndice. Se temos um
animal de estimação a morrer com dores, seremos condenados por
crueldade se não chamarmos o veterinário para lhe dar uma anestesia geral
de que já não acordará mais. Mas se o nosso médico nos prestar
exactamente o mesmo misericordioso serviço se estivermos a morrer com
dores, corre o risco de ser levado a tribunal sob a acusação de assassínio.
Quando eu estiver a morrer, gostava que a vida me fosse tirada enquanto
sob o efeito de uma anestesia geral, exactamente como se fosse um
apêndice doente. Mas não me será permitido tal privilégio porque tive o
azar de nascer Homo sapiens e não, por exemplo, Canis familiaris ou Felis
catus. Pelo menos assim será se entretanto não me mudar para algum sítio
mais esclarecido, como a Suíça, a Holanda ou o Oregon. Porque são tão
raros esses sítios esclarecidos? Principalmente por causa da influência da
religião.
Mas, dir-se-á, não existe uma grande diferença entre tirarem-nos o
apêndice e tirarem-nos a vida? Nem por isso; sobretudo para quem está
prestes a morrer. Ou para quem crê sinceramente que há vida depois da
morte. Para os que possuem essa crença, morrer é apenas uma transição de
uma vida para outra. Se a transição for dolorosa, porquê prescindir de
anestesia, quando também não se prescinde dela para tirar o apêndice?
Daqueles de nós que vêem a morte como um fim e não como uma transição
é que se poderia, francamente, esperar uma resistência à eutanásia ou ao
suicídio assistido. No entanto, nós é que somos a favor.236

Na mesma ordem de ideias, o que dizer do comentário de uma enfermeira


que conheço pessoalmente, com uma longuíssima experiência à frente de
um lar de idosos onde a morte é um acontecimento habitual? Ao longo dos
anos, ela pôde verificar que as pessoas religiosas são as que mais medo têm
da morte. Haveria que comprovar estatisticamente esta observação, mas,
supondo que ela está certa, que fenómeno é este? Seja o que for, à primeira
vista não abona muito em favor do poder da religião para reconfortar
aqueles que estão à beira de morrer. No caso dos católicos, será talvez por
237

medo do purgatório? O bom cardeal Hume despediu-se de um amigo com


as seguintes palavras: «Bem, então adeus. Vemo-nos no purgatório,
suponho eu.» O que eu suponho é que o terá dito com um ar céptico
naqueles seus velhos e bondosos olhos.
A doutrina do purgatório revela bem a forma como a mente teológica
funciona. O purgatório é uma espécie de Ellis Island divina, uma
238

antecâmara do Hades, para onde as almas vão se os seus pecados não são
suficientemente maus para merecerem o inferno, mas, por outro lado, ainda
precisam de alguma reciclagem e de uma purga antes de poderem ser
admitidas na zona livre de pecados que é o céu. Na época medieval, a
239

Igreja dava «indulgências» a troco de dinheiro. Na prática, isto traduzia-se


por pagar por um certo número de dias de remissão do purgatório, com a
Igreja a emitir literalmente (e com uma presunção assombrosa) certificados
assinados em que era especificado o número de dias comprados. A Igreja
Católica é uma instituição para cujos lucros a expressão «mal ganho» terá
sido, possivelmente inventada de propósito. E de entre todos os seus
esquemas de fazer dinheiro a venda de indulgências deverá figurar
seguramente entre os maiores contos-do-vigário de toda a História, o
equivalente medieval dos esquemas nigerianos da Internet, só que muito
mais bem-sucedido.
Em 1903 o Papa Pio X ainda tinha uma tabela para calcular o número de
dias de remissão do purgatório que cada membro da hierarquia tinha direito
a conceder: 200 dias os cardeais, os arcebispos 100 dias, e os bispos uns
meros 50. No entanto, por essa altura as indulgências já não eram vendidas
directamente a troco de dinheiro. Já na Idade Média, o dinheiro não era a
única moeda com que se podia comprar liberdade condicional para fugir ao
purgatório. Também se podia pagar com orações, que tanto podiam ser
orações nossas, ditas antes de morrermos, como rezadas por outras pessoas
em nossa intenção após a nossa morte. E as orações compravam-se com
dinheiro. Quem fosse rico podia garantir o futuro da sua alma para todo o
sempre. O meu próprio colégio em Oxford, o New College (novo na altura,
claro), foi fundado em 1379 por um dos grandes filantropos desse século,
Guilherme de Wykeham, bispo de Winchester. Na Idade Média, um bispo
podia tornar-se o Bill Gates do seu tempo, controlando o equivalente à auto-
estrada da informação (de acesso a Deus) e acumulando uma fortuna
incalculável. A diocese de Wykeham era excepcionalmente grande, e ele
usou a riqueza e influência de que gozava para fundar dois grandes
estabelecimentos de ensino, um em Winchester e outro em Oxford. A
educação era importante para Wykeham, mas, nas palavras da história
oficial do New College, publicada em 1979 para assinalar o sexto
centenário da instituição, o propósito fundamental do colégio universitário
foi ser «como uma grande dotação para interceder pelo repouso da sua
alma. Deixou disposições no sentido de prover a capela com 10 capelães,
três sacristães e um coro de 16 elementos, com ordens para que apenas eles
fossem mantidos caso os rendimentos do colégio faltassem.» Wykeham
deixou o New College nas mãos da Fellowship, um organismo auto-eleito
que vem funcionando de forma independente e contínua há mais de 600
anos. É de supor que o fundador espera que continuemos a rezar pela sua
alma ao longo dos séculos.
Hoje, o colégio conta apenas um capelão e nenhum sacristão, e a
240

torrente constante de orações ditas ao longo dos séculos para remir os dias
de Wykeham no purgatório resume-se actualmente a duas orações por ano.
Só o coro continua cada vez mais pujante e a sua música é, de facto,
mágica. Até eu, enquanto membro da Fellowship, sinto uma ponta de culpa
pela confiança traída. À luz da mentalidade do seu tempo, o que Wykeham
fez foi o mesmo que seria, nos dias de hoje, um homem rico pagar uma
grande entrada em dinheiro a uma dessas empresas de criogenia que garante
congelar o corpo da pessoa e protegê-lo de terramotos, instabilidade social,
guerra nuclear e outros riscos, até um tempo futuro em que a ciência médica
tenha aprendido a descongelá-lo e a curar a doença de que ia morrer.
Estaremos nós, os responsáveis pelo New College, a faltar ao contrato com
o nosso fundador? Se assim é, estamos em boa companhia. Centenas de
benfeitores medievais morreram na crença de que os seus herdeiros, bem
pagos para tanto, rezariam pelas suas almas presas no purgatório. Não
consigo deixar de me perguntar a mim próprio que percentagem dos
tesouros artísticos e arquitectónicos da Europa medieval não terão
começado por ser pagamentos com os olhos postos na eternidade, em
legados entretanto traídos pelos respectivos depositários.
Mas o que verdadeiramente me fascina na doutrina do purgatório são as
provas com que os teólogos a fundamentam: provas tão espectacularmente
débeis que tornam ainda mais cómico o arrojo ligeiro com que são
afirmadas. Na Enciclopédia Católica, a entrada referente ao purgatório
contém uma secção chamada «provas». A evidência principal para a
existência do purgatório é a seguinte. Se os mortos fossem simplesmente
para o céu ou para o inferno com base nos pecados que cometeram na Terra,
não faria sentido rezar por eles. «Pois porquê rezar pelos mortos, se não
houver uma crença no poder da oração para proporcionar refrigério àqueles
que estavam excluídos do olhar de Deus.» E nós rezamos pelos mortos, não
é verdade? Portanto, o purgatório deve existir, caso contrário as nossas
orações não fariam sentido! QED. Este é bem um exemplo daquilo que, nas
mentes dos teólogos, passa por raciocínio lógico.
Esta gritante falta de lógica reflecte-se, a uma escala mais ampla, noutra
utilização comum do argumento do consolo. Tem de haver um Deus, diz
este argumento, porque se não houvesse a vida seria vazia, absurda, fútil,
uma absoluta ausência de significação. Será necessário salientar que a
lógica cai, desde logo, por terra? Talvez a vida seja mesmo vazia. Talvez as
nossas orações pelos mortos sejam mesmo desprovidas de sentido. Presumir
o contrário é presumir a verdade da própria conclusão que se procura
provar. O alegado silogismo é de uma circularidade transparente. A vida do
viúvo pode muito bem ser intolerável, estéril e vazia, mas não é por isso que
a esposa vai deixar de estar morta. Há qualquer coisa de infantil na
presunção de que é a terceiros (os pais, no caso das crianças, Deus, no caso
dos adultos) que cabe a responsabilidade de dar significado e um propósito
às nossas vidas. Não é um infantilismo diferente do daqueles que, quando
torcem o tornozelo, olham em volta à procura de alguém a quem processar.
Outrem há-de ser responsável pelo meu bem-estar e há-de arcar com as
culpas se eu me magoar. Será que por detrás da «necessidade» de um Deus
há um infantilismo idêntico? Voltamos, assim, ao Binker?
Pelo contrário, a visão verdadeiramente adulta consistirá em entender que
a nossa vida é tão significativa, tão plena e tão maravilhosa quanto nós
quisermos. E de facto podemos torná-la imensamente maravilhosa. Se a
ciência proporciona um consolo do tipo não-material, este prende-se
intimamente com o meu tópico final – a inspiração.
Inspiração
Esta é uma questão de gosto ou de opinião pessoal, o que tem a
implicação algo infeliz de que o método de argumentação a que tenho de
recorrer, neste caso, é retórico e não lógico. Já o fiz antes, tal como tantos
outros, incluindo – para me cingir apenas a alguns exemplos recentes – Carl
Sagan, em O Ponto Azul-Claro, O. Wilson, em Biophilia, Michael Shermer,
em The Soul of Science, e Paul Kurtz, em Affirmations. No livro
Decompondo o Arco-Íris, tentei transmitir a ideia da sorte que temos por
estarmos vivos, atendendo a que a imensa maioria das pessoas que
potencialmente podiam vir a ser geradas pela lotaria combinatória do ADN
nunca chegarão, efectivamente, a nascer. Para os que têm a sorte de estar
aqui, procurei visualizar a relativa brevidade da vida imaginando um foco
de luz fino como um laser, deslizando ao longo de uma gigantesca escala
temporal. Tudo quanto está para trás ou para a frente do foco encontra-se
envolto na escuridão do passado já morto ou na escuridão do futuro ainda
desconhecido. Temos uma sorte fabulosa por nos encontrarmos sob o foco.
Por muito breve que seja o tempo que nos cabe ao sol, se desperdiçarmos
um segundo que seja, ou se nos queixarmos de que ele é monótono ou
estéril ou (como faz a criança) enfadonho, não será isso uma insultuosa
demonstração de insensibilidade para com os muitos milhões de milhões a
quem nunca sequer será proporcionado viver? Como muitos ateus já
disseram, e melhor do que eu, o sabermos que só temos uma vida devia
torná-la ainda mais preciosa. A atitude ateia é, por isso mesmo, uma atitude
de afirmação e de promoção da vida, ao mesmo tempo que não se deixa
macular pela auto-ilusão, não toma os desejos por realidades, nem padece
da autocomiseração birrenta própria daqueles que acham que a vida lhes
deve alguma coisa. Emily Dickinson disse:

Por não voltar jamais


É que é tão doce a vida.

Se o desaparecimento de Deus deixar uma lacuna, as pessoas irão, cada


uma, preenchê-la à sua maneira. A minha maneira específica passa por uma
boa dose de ciência e por uma tentativa sincera e sistemática de descobrir a
verdade acerca do mundo real. Vejo o esforço humano para compreender o
universo em termos de um exercício de construção de modelos. Cada um de
nós constrói, dentro da sua cabeça, um modelo do mundo em que se
encontra. O modelo mínimo do mundo é o modelo de que os nossos
antepassados precisaram para nele sobreviver. O software de simulação foi
construído e depurado pela selecção natural e é especialmente adequado ao
mundo que era familiar aos nossos antepassados da savana africana: um
mundo tridimensional de objectos materiais de média dimensão, que se
moviam a velocidades médias relativamente uns aos outros. Numa espécie
de bónus inesperado, verifica-se que afinal os nossos cérebros são
suficientemente poderosos para dar resposta a um modelo do mundo muito
mais rico do que o modelo medíocre e utilitário de que os nossos
antepassados necessitaram para sobreviver. A arte e a ciência são
manifestações descontroladas desse bónus. Permita-se-me traçar um último
quadro por forma a tornar claro o poder da ciência para abrir a mente e
satisfazer a psique.

A mãe de todas as burcas


Um dos espectáculos mais tristes que se pode ver nas nossas ruas hoje em
dia é a imagem de uma mulher coberta da cabeça aos pés por um trajo preto
sem graça, perscrutando o mundo através de uma minúscula abertura. A
burca não é apenas um instrumento de opressão das mulheres e de repressão
enclausurante da sua liberdade e beleza; não é apenas símbolo da gritante
crueldade masculina e de uma submissão feminina tragicamente imposta
pela intimidação. Quero aqui usar a fenda estreita do véu como símbolo de
uma outra coisa.
Os nossos olhos vêem o mundo através de uma estreita fenda no espectro
electromagnético. A luz visível não é mais do que um raio brilhante na
vastidão negra do espectro, que vai desde as ondas de rádio, na sua
extremidade mais distante, até aos raios gama, na parte mais curta. Não é
fácil conceber quão estreita é essa fenda, e tentar transmiti-lo constitui um
verdadeiro desafio. Imagine-se uma gigantesca burca preta com uma fenda
para os olhos de largura aproximadamente igual ao tamanho normal, ou
seja, cerca de 2,5 centímetros. Se a extensão de tecido preto acima da fenda
representar a parte do espectro invisível correspondente às ondas mais
curtas e a extensão de tecido preto abaixo da fenda representar o segmento
das ondas longas, de que comprimento teria de ser a burca para comportar
uma fenda de 2,5 centímetros à mesma escala? As dimensões com que
estamos a lidar são de uma ordem tão vasta, que é difícil representá-las
razoavelmente sem recorrer a escalas logarítmicas. O último capítulo de um
livro como este não é altura para começar a desfiar logaritmos, mas garanto
que seria a mãe de todas as burcas. A janela de 2,5 centímetros de luz
visível é ridiculamente pequena comparada com os quilómetros e
quilómetros de tecido preto necessários para representar a parte invisível do
espectro, desde as ondas de rádio, na bainha da saia, até aos raios gama, no
alto da cabeça. O que a ciência faz por nós é alargar a janela. Esta abre-se
de tal forma que a aprisionadora peça de vestuário preta quase desaparece
por completo, expondo os nossos sentidos a uma liberdade arejada e
revigorante.
Os telescópios ópticos usam espelhos e lentes de vidro para examinar os
céus e o que vêem é a cintilação de estrelas situadas na estreita faixa de
comprimentos de onda a que chamamos luz visível. Mas outros telescópios
«vêem» nos comprimentos de onda dos raios X ou das ondas rádio,
revelando-nos toda uma cornucópia de céus nocturnos alternativos. A uma
escala mais pequena, certas câmaras com filtros apropriados conseguem
«ver» no ultravioleta e fotografar flores que mostram uma estranha gama de
listas e manchas visíveis aos olhos dos insectos e aparentemente para eles
«desenhadas», mas que a nossa vista não consegue divisar a olho nu. Os
olhos dos insectos possuem uma janela espectral de largura semelhante à
nossa, mas situada um pouco acima relativamente à posição na burca: não
são sensíveis ao vermelho e conseguem penetrar mais no ultravioleta – no
«jardim ultravioleta» – do que nós.241

A metáfora da janela de luz estreita que se vai expandindo até um


espectro espectacularmente amplo serve para outras áreas da ciência.
Vivemos algures perto do centro de um complexo de galerias de magnitudes
diversas. Vemos o mundo com órgãos sensoriais e com sistemas nervosos
que estão equipados para percepcionar e compreender apenas uma escassa
gama intermédia de tamanhos, movendo-se de acordo com uma gama
igualmente intermédia de velocidades. Sentimo-nos à vontade com objectos
cujo tamanho varia entre alguns quilómetros (a vista do cume de uma
montanha) e cerca de uma décima de milímetro (a ponta de um alfinete).
Fora desta gama, até a nossa imaginação é deficiente, pelo que necessitamos
da ajuda de instrumentos e da Matemática – de que felizmente podemos
aprender a servir-nos. A gama de tamanhos, distâncias ou velocidades com
que a nossa imaginação se sente à vontade corresponde a uma faixa
minúscula situada no meio da gigantesca gama do possível, que vai desde a
escala da estranheza quântica, na extremidade das pequenas dimensões, até
à escala da cosmologia einsteiniana, na extremidade das dimensões maiores.
A nossa imaginação, ou imaginações, estão irremediavelmente
subequipadas para lidar com as distâncias situadas fora da estreita gama
intermédia que nos é, ancestralmente, familiar. Tentamos visualizar um
electrão como uma minúscula bola orbitando à volta de um cacho maior de
bolas que representam protões e neutrões. Mas não é nada que se pareça
com isso. Os electrões não são como pequenas bolas. Não são como nada
do que conhecemos. Nem sequer é claro que a palavra «como» tenha
qualquer significado quando os nossos voos nos levam a acercar-nos dos
horizontes mais remotos da realidade. As nossas imaginações ainda não
possuem as ferramentas necessárias para nos avizinharmos do quantum. A
essa escala, nada se comporta como seria de esperar que a matéria – tal
como a evolução nos condicionou a pensar – se comportasse. Também não
estamos aptos a lidar com o comportamento de objectos que se movam a
fracções consideráveis da velocidade da luz. O senso comum deixa-nos
ficar mal porque evoluiu num mundo em que nada se move muito depressa
e nada é muito pequeno ou muito grande.
No final de um famoso ensaio sobre «Mundos Possíveis», o grande
biólogo J. B. S. Haldane escreveu: «Ora eu desconfio de que o universo é
não só mais esquisito do que supomos, mas mais esquisito do que somos
capazes de supor... Desconfio de que há mais coisas no céu e na terra do que
se sonha, ou do que se consegue sonhar, seja em que filosofia for.» A
propósito, acho curiosa a sugestão de que a famosa fala de Hamlet invocada
por Haldane é, normalmente, entoada de forma incorrecta. A ênfase habitual
é colocada em «tua»:

Há mais coisas no céu e na terra, Horatio,


Do que se sonha na tua filosofia.

Com efeito, estes versos são frequentemente citados com a inequívoca


conotação de que Horatio simboliza, de um modo geral, os racionalistas e os
cépticos mais superficiais. Mas alguns estudiosos colocam a ênfase em
«filosofia», com «tua» a tornar-se quase inaudível: «... do que se sonha na t’
filosofia.» A diferença não é muito relevante para aqui, a não ser pelo facto
de a segunda interpretação ir ao encontro do que afirma Haldane.
A pessoa a quem este livro é dedicado ganhava a vida à custa da
estranheza da ciência, explorando-a até aos limites do cómico. O que se
segue é retirado do improviso que proferi em Cambridge, em 1998, e que já
citei no capítulo primeiro: «O facto de vivermos na base de um profundo
poço de gravidade, à superfície de um planeta coberto de gás que gira em
torno de uma bola de fogo nuclear situada a 145 milhões de quilómetros de
distância, e pensarmos que isto é normal é já, obviamente, um sinal de quão
distorcida a nossa perspectiva tende a ser.» Enquanto outros autores de
ficção científica fizeram uso da singularidade da ciência para despertar em
nós o sentido do misterioso, Douglas Adams usou-a para nos fazer rir
(quem leu Uma Boleia para a Galáxia poderá, por exemplo, estar a pensar
no «gerador de improbabilidade infinita»). O riso é, possivelmente, a
melhor resposta para alguns dos mais estranhos paradoxos da Física
moderna. Às vezes, penso que a alternativa é chorar.
A mecânica quântica, esse ermo pináculo das conquistas científicas do
século XX, é capaz de fazer previsões incrivelmente acertadas acerca do
mundo real. Richard Feynman comparou à espessura de um cabelo humano
a margem de erro com que a teoria consegue prever uma distância tão
grande como a largura da América do Norte. Este grau de êxito a fazer
previsões parece querer dizer que a teoria quântica tem, de alguma maneira,
de estar certa; tão certa quanto aquilo que conhecemos, incluindo os factos
mais terra a terra e do domínio do senso comum. Contudo, os pressupostos
a que a teoria quântica tem de fazer apelo para chegar a essas previsões são
de tal modo misteriosos que até o grande Feynman foi levado a comentar
(numa frase com várias versões, de que, no entanto, esta me parece a de
melhor recorte): «Quem pensa que compreende a teoria quântica... não
compreende a teoria quântica.» 242

A teoria quântica é tão esquisita que os físicos se vêem obrigados, como


recurso, a lançar mão de certas «interpretações» paradoxais. Recurso é,
aqui, a palavra certa. Em A Essência da Realidade, David Deutsch adopta a
interpretação dos «muitos mundos» da teoria quântica porque o pior que
dela se pode dizer é, talvez, que se caracteriza por um absurdo desperdício.
Esta postula um número de universos vasto e em rápida multiplicação,
existindo em paralelo e sem que se detectem uns aos outros, a não ser
através da estreita vigia proporcionada pelas experiências de mecânica
quântica. Em alguns destes universos eu já estou morto. Numa pequena
minoria deles, o leitor ostenta um bigode verde. E assim por diante.
A alternativa «interpretação de Copenhaga» é igualmente absurda – e não
se caracteriza pelo desperdício, mas tão-só por ser devastadoramente
paradoxal. Erwin Schrödinger satirizou-a com a sua parábola do gato. O
gato de Schrödinger é fechado numa caixa dotada de um mecanismo mortal
accionado por uma ocorrência de mecânica quântica. Antes de abrirmos a
tampa da caixa, não sabemos se o gato está morto. Contudo, o senso comum
diz-nos que o gato deve estar ou vivo ou morto dentro da caixa. A
interpretação de Copenhaga contradiz o senso comum: o que existe antes de
abrirmos a caixa é só uma probabilidade. Assim que a abrirmos, a função de
onda desaba e ficamos com a ocorrência singular: o gato está morto, ou o
gato está vivo. Até a termos aberto, não estava nem morto, nem vivo.
A leitura das mesmas ocorrências segundo a interpretação «muitos
mundos» é que em alguns universos o gato está morto, noutros está vivo.
Nenhuma das interpretações é conforme ao senso comum ou à intuição
humanos. Os físicos mais afoitos não querem saber disso. O que importa é
que os cálculos matemáticos funcionam e que as previsões têm
corroboração experimental. A maior parte de nós é demasiado pusilânime
para os acompanhar. Parece que necessitamos de uma qualquer espécie de
visualização daquilo que «realmente» se passa. A propósito, julgo saber que
originariamente Schrödinger propôs a sua experiência de pensamento do
gato para denunciar o que considerava ser o absurdo da interpretação de
Copenhaga.
O biólogo Lewis Wolpert acredita que a estranheza da Física moderna é
apenas a ponta do icebergue. Ao contrário da tecnologia, a ciência em geral
viola o senso comum. Wolpert calcula, por exemplo, «que existem muito
243

mais moléculas num copo de água do que copadas de água no mar.» Uma
vez que toda a água do planeta passa pelo mar no decorrer do seu ciclo
natural, o que daí parece advir é que, de cada vez que se bebe um copo de
água, são boas as probabilidades de que alguma coisa daquilo que se bebe
tenha passado pela bexiga de Oliver Cromwell. É claro que nem Cromwell
nem as bexigas têm nada de especial. Não acaba o leitor de inspirar um
átomo de azoto outrora expirado pelo terceiro iguanodonte a contar da
esquerda da cica mais alta? Não o faz feliz viver num mundo onde não só é
possível uma conjectura destas, como nos é dado o privilégio de
compreendermos o seu porquê? E de o explicar publicamente a outras
pessoas não como se fosse uma opinião ou uma crença nossa, mas como
algo que elas, uma vez que tenham compreendido o nosso raciocínio, se
sentirão compelidas a aceitar? Talvez seja este um aspecto daquilo que Carl
Sagan quis dizer quando explicou os seus motivos ao escrever Um Mundo
Infestado de Demónios: a Ciência como Uma Luz na Escuridão: «Não
explicar a ciência parece-me perverso. Quando se está apaixonado, apetece
contá-lo ao mundo. Este livro é uma declaração pessoal que reflecte a
minha relação amorosa com a ciência ao longo de toda uma vida.»
A evolução da vida complexa, para já não falar no próprio facto da sua
ocorrência num universo que obedece a leis da Física, é algo de
maravilhosamente surpreendente – ou sê-lo-ia, se não fosse a circunstância
de a surpresa ser uma emoção que só pode existir num cérebro que é, ele
mesmo, produto desse surpreendente processo. Há, então, uma acepção
antrópica em que a nossa existência não deveria ser surpreendente. Gostaria,
mesmo assim, de pensar que falo em nome dos meus parceiros humanos
quando insisto em que se trata de uma realidade desesperadamente
surpreendente.
Pensemos nisso um pouco. Num dado planeta, e possivelmente apenas
num só em todo o universo, algumas moléculas que normalmente não
formariam nada mais complicado do que um calhau, congregam-se em
pedaços de matéria do tamanho de calhaus e dotados de uma complexidade
tão espantosa que são capazes de correr, saltar, nadar, voar, ver, ouvir,
capturar e comer outros pedaços de complexidade igualmente animados; em
certos casos, capazes de pensar e sentir, e ainda de se apaixonar por outros
pedaços de matéria complexa. Agora compreendemos como é que o truque,
essencialmente, se processa, mas só desde 1859. Antes de 1859 tudo terá
parecido, efectivamente, muitíssimo estranho. Hoje, graças a Darwin, é só
muito estranho. Darwin pegou na janela da burca e franqueou-a de par em
par, deixando entrar uma corrente de compreensão cuja ofuscante novidade
e capacidade de elevar o espírito humano talvez não tivesse precedente – a
não ser porventura na descoberta coperniciana de que a Terra não era o
centro do universo.
«Explique-me», perguntou certa vez a um amigo o grande filósofo do
século XX Ludwig Wittgenstein, «por que razão as pessoas dizem sempre
que era natural o homem partir do princípio de que o Sol girava em torno da
Terra e não que era a Terra que rodava?» O amigo respondeu: «Bem,
evidentemente porque dá a sensação de que o Sol gira em torno da Terra.»
Ao que Wittgenstein replicou: «Bem, que sensação é que havia de dar se
parecesse que era a Terra que rodava?» Por vezes cito esta observação de
Wittgenstein em conferências, esperando que o público ria. Em vez disso, as
pessoas parecem ficar aturdidas e calam-se.
No mundo limitado em que os nossos cérebros evoluíram, os objectos
pequenos são mais passíveis de mobilidade do que os grandes, que, por sua
vez, são vistos como o pano de fundo de encontro ao qual o movimento se
verifica. À medida que o mundo vai girando, os objectos que se nos
afiguram grandes por estarem perto – as montanhas, as árvores, os edifícios
e o próprio solo – movem-se numa sincronia exacta com os demais objectos
e com o observador, por relação com corpos celestes como o Sol e as
estrelas. Os cérebros que a evolução nos legou projectam nestes – e não nas
montanhas e nas árvores que se encontram em primeiro plano – a ilusão do
movimento.
Quero de seguida aprofundar o ponto que mencionei anteriormente, isto é,
a noção de que o modo como vemos o mundo, e a razão pela qual
consideramos certas coisas intuitivamente fáceis de compreender e outras
difíceis, é que os nossos cérebros são, eles próprios, órgãos resultantes de
uma evolução: verdadeiros computadores de bordo que foram evoluindo
para nos ajudarem a sobreviver num mundo – vou usar a designação de
mundo mediano – onde os objectos que eram importantes para a nossa
sobrevivência não eram nem muito grandes, nem muito pequenos; um
mundo onde as coisas ou estavam paradas ou se moviam lentamente em
comparação com a velocidade da luz, e onde o mais seguro era chamar
impossível ao improvável. A janela da nossa burca mental é estreita porque
não precisava de ser mais larga para ajudar os nossos antepassados a
sobreviverem.
A ciência ensinou-nos, à total revelia da intuição gerada pelo processo
evolutivo, que coisas aparentemente sólidas, como sejam cristais e pedras,
são na realidade compostas quase totalmente por espaço vazio. A ilustração
mais corrente representa o núcleo de um átomo como uma mosca no centro
de um estádio desportivo. O átomo seguinte encontra-se logo do lado de
fora do estádio. Assim, a pedra mais dura, mais sólida e mais densa é
«realmente» quase só espaço vazio, apenas interrompido por minúsculas
partículas, tão afastadas entre si que praticamente nem contam. Sendo
assim, por que motivo dão as pedras a impressão de serem sólidas, duras e
impenetráveis?
Não vou tentar imaginar como responderia Wittgenstein a esta questão.
Mas enquanto biólogo da evolução, eu responderia da seguinte maneira. Os
nossos cérebros evoluíram no sentido de ajudar os nossos corpos a
situarem-se no mundo, à escala em que esses corpos funcionam. A nossa
evolução não foi no sentido de nos orientarmos no mundo dos átomos. Se
assim fosse, é provável que os nossos cérebros tivessem das pedras
exactamente essa percepção de espaço preenchido pelo vazio. As pedras
parecem duras e impenetráveis ao tacto porque as nossas mãos não as
conseguem penetrar e a razão pela qual não conseguem fazer isso não tem a
ver com as dimensões nem o afastamento das partículas que constituem a
matéria, mas antes com os campos de força associados a essas partículas
muito afastadas que compõem a matéria «sólida». Aos nossos cérebros
convém construir noções como solidez e impenetrabilidade, porque elas
ajudam-nos a orientar os nossos corpos através de um mundo em que os
objectos – que dizemos sólidos – não podem ocupar o espaço uns dos
outros.
Agora uma pequena digressão cómica – de The Men Who Stare at Goats,
de Jon Ronson:

Esta é uma história verídica. Estamos no Verão de 1983. O major-


general Albert Stubblebine III está sentado atrás da secretária em
Arligton, na Virgínia, e olha fixamente para a parede, onde estão
penduradas as suas numerosas condecorações militares. Elas relatam
uma carreira longa e distinta. Ele é o chefe dos serviços secretos do
Exército dos Estados Unidos, com 16 000 soldados sob o seu
comando... Olha para lá das condecorações, para a própria parede.
Sente que há algo que tem de fazer, embora só o facto de o pensar o
assuste. Pensa na escolha que tem diante de si. Pode ficar no seu
gabinete ou ir para o gabinete ao lado. É essa a sua escolha. E ele
decidiu-se. Vai para o gabinete ao lado... Levanta-se, sai de trás da
secretária e começa a caminhar. Quer dizer, pensa ele, afinal de contas
de que é, principalmente, composto o átomo? De espaço! Acelera o
passo. De que sou eu, principalmente, composto? Reflecte. De átomos!
Por essa altura já vai quase em passo de corrida. De que é
principalmente composta a parede? Reflecte. De átomos! Não tenho
senão de fundir os espaços. Nesse momento o general Stubblebine bate
com o nariz em cheio na parede do seu gabinete. Raios!, pensa. O
general Stubblebine anda confuso com esta sua contínua incapacidade
de atravessar a parede. O que se passa com ele, para não conseguir fazê-
lo? Talvez seja só a sua caixa de correio que está demasiado cheia para
que ele consiga conceder ao exercício o nível de concentração
necessário. Na sua mente não existe qualquer dúvida de que um dia a
capacidade de passar através de objectos será uma ferramenta comum
no arsenal da recolha de informações secretas. E quando isso acontecer,
bem, será demasiado ingénuo acreditar que será o anúncio de um
mundo sem guerra? Quem quereria perder tempo com um exército que
conseguisse fazer isso?

No website da organização que, agora que está reformado, dirige com a


esposa, o general Stubblebine é adequadamente descrito como um
«pensador sem peias».
Tendo evoluído no mundo mediano, consideramos intuitivamente fácil
compreender ideias como esta: «Quando um major-general se move, ao tipo
de velocidade mediana a que os majores-generais e outros objectos do
mundo mediano se movem, e vai de encontro a outro objecto sólido desse
mundo, como é uma parede, a sua progressão é dolorosamente
interrompida.» Os nossos cérebros não estão equipados para imaginar como
seria se fôssemos um neutrino a passar por uma parede, através dos vastos
interstícios em que essa parede, «verdadeiramente», consiste. Da mesma
maneira, a nossa compreensão também não consegue lidar com o que
acontece quando as coisas se movem a velocidades próximas da da luz.
Quando entregue a si mesma, a intuição humana, produto da evolução e
de toda uma habituação no seio do mundo mediano, tem até dificuldade em
acreditar em Galileu quando este nos diz que uma bala de canhão e uma
pena, sem atrito do ar, cairiam no solo no mesmo momento se fossem
largadas de uma torre inclinada. Isto acontece porque no mundo mediano o
atrito do ar está sempre presente. Se tivéssemos evoluído num vácuo,
esperaríamos que a pena e a bala de canhão atingissem o solo
simultaneamente. Somos criaturas do mundo mediano, aí se deu a nossa
evolução, e isso limita aquilo que estamos em condições de imaginar. A
menos que sejamos especialmente dotados ou peculiarmente cultos, a janela
estreita da nossa burca apenas nos permite ver esse mundo.
Existe um sentido em que nós, animais, temos de sobreviver não só no
mundo mediano, mas também no micromundo dos átomos e dos electrões.
Os próprios impulsos nervosos com que pensamos e imaginamos dependem
de actividades que se desenrolam no micromundo. Mas não há nenhuma
acção que os nossos antepassados selvagens alguma vez tivessem de
desempenhar, nem nenhuma decisão que alguma vez tivessem de tomar,
que pudesse ter beneficiado com uma compreensão do micro-mundo. Seria
diferente se fôssemos bactérias, constantemente fustigadas pelos
movimentos térmicos das moléculas, mas nós, habitantes do mundo
mediano, somos demasiadamente avantajados para repararmos no
movimento browniano. Da mesma maneira, as nossas vidas são dominadas
pela gravidade e, no entanto, somos praticamente insensíveis à força
delicada da tensão superficial. Um pequeno insecto inverte essa prioridade,
pois para ele a tensão superficial será tudo menos delicada.
Em Creation: Life and How to Make It, Steve Grand quase chega a ser
cáustico devido à nossa preocupação com a matéria propriamente dita.
Temos esta tendência para pensar que só as «coisas» sólidas e materiais são,
«na realidade», coisas. As «ondas» de flutuação electromagnética num
vácuo parecem «irreais». Os vitorianos julgavam que as ondas tinham de ser
ondas «em» um qualquer meio material. Não se conhecia nenhum meio
assim, por isso inventaram um e deram-lhe o nome de éter luminífero. Mas
nós também só achamos a matéria «real» compatível com o nosso
entendimento porque os nossos antepassados evoluíram de forma a
sobreviverem no mundo mediano, onde matéria é um constructo útil.
Por outro lado, até nós, habitantes do mundo mediano, conseguimos ver
que um vórtice é uma «coisa» tão real, em certo sentido, como uma pedra,
embora a matéria do vórtice esteja em constante alteração. Numa planície
desértica da Tanzânia, à sombra do Ol Donyo Lengai, um vulcão sagrado
dos Masai, estende-se uma grande duna feita de cinza de uma erupção
ocorrida em 1969. A sua forma é esculpida pelo vento, mas o que tem de
belo é que se move como um corpo. Tecnicamente é aquilo a que se dá o
nome de barcana. A duna avança, inteira, através do deserto em direcção a
oeste, a uma velocidade de cerca de 17 metros por ano. Mantém a forma de
crescente, deslocando-se na direcção das pontas. O vento sopra a areia,
empurrando-a até ao cimo da encosta mais baixa. Depois, à medida que vão
alcançando o cume, os grãos de areia caem em cascata ao longo da encosta
mais íngreme, na face interior do crescente.
Em verdade, até uma barcana tem mais de «coisa» do que uma onda. A
onda parece mover-se horizontalmente através do mar, mas as moléculas de
água deslocam-se verticalmente. Do mesmo modo, as ondas sonoras podem
viajar desde o orador até ao receptor, mas tal não sucede com as moléculas
de ar: isso seria vento, não um som. Steve Grand faz notar que tanto o leitor
como eu temos mais de onda do que de «coisa» permanente. Grand convida
o seu leitor a pensar...

... numa experiência da infância. Algo de que consiga lembrar-se


claramente, algo que consiga ver, sentir, talvez até cheirar, como se lá
estivesse realmente. Afinal de contas, esteve mesmo lá outrora, não
esteve? Senão, como lembrar-se do facto? Mas aqui vem a bomba: você
não esteve lá. Nem um único átomo de que hoje o seu corpo é
composto estava lá quando o acontecimento se deu... A matéria flui de
lugar em lugar, unindo-se momentaneamente para ser você. Por isso,
seja você o que for, não é aquilo de que é feito. Se isto não o fizer
arrepiar, leia outra vez até que tal lhe suceda, porque é importante.
244

«Realmente» não é palavra que devamos utilizar à toa. Se um neutrino


possuísse um cérebro resultante de uma evolução em antepassados do
tamanho de neutrinos, ele diria que as pedras são «realmente» constituídas,
na sua maior parte, por espaço vazio. Nós possuímos cérebros que
evoluíram em antepassados de tamanho mediano, que não conseguiam
atravessar pedras, por isso o nosso «realmente» é um « realmente» em que
as pedras são sólidas. Para um animal, «realmente» é o que quer que o seu
cérebro necessite para ser ajudado a sobreviver. E porque diferentes
espécies vivem em mundos tão diversos, haverá uma inquietante variedade
de «realmentes».
Aquilo que vemos do mundo real não é o mundo real nu e cru, mas sim
um modelo do mundo real, regulado e ajustado pelos dados sensoriais – um
modelo que é construído de modo a ser útil à nossa relação com o mundo
real. A natureza desse modelo depende do tipo de animal que somos. Um
animal que voa necessita de um modelo do mundo de tipo diferente do de
um animal que caminha, que trepa ou que nada. Os predadores necessitam
de um modelo de tipo diferente do das suas presas, embora seja inevitável
que os seus mundos se sobreponham. O cérebro do macaco deve ter um
software capaz de simular um labirinto tridimensional de ramos e troncos. O
cérebro do piolho aquático não necessita de software 3D, uma vez que vive
à superfície dos lagos, numa espécie de terra plana ao estilo de Edwin
Abbott. O software da toupeira para construção de modelos do mundo será
adequado a um uso subterrâneo. O rato-toupeira-nu tem, provavelmente, um
software de representação do mundo semelhante ao da toupeira. Mas o
esquilo, sendo embora um roedor como é o rato-toupeira-nu, provavelmente
tem um software de figuração do mundo muito mais parecido com o de um
macaco.
No livro O Relojoeiro Cego e noutros locais, coloquei a hipótese de os
morcegos conseguirem «ver» a cor com os ouvidos. O modelo de mundo de
que o morcego necessita para se orientar nas três dimensões a fim de
apanhar insectos deve ser, seguramente, semelhante ao modelo de que a
andorinha necessita para desempenhar a mesma tarefa. O facto de o
morcego se servir de ecos para actualizar as variáveis no seu modelo,
enquanto a andorinha utiliza a luz, é secundário. A sugestão que deixo é que
os morcegos se servem de cores percepcionadas pelos sentidos, como, por
exemplo, «vermelho» e «azul», como rótulos interiorizados para identificar
certos aspectos úteis dos ecos, quiçá a textura acústica das superfícies, do
mesmo modo que as andorinhas utilizam cores idênticas para catalogar
comprimentos de onda de luz longos e curtos. O ponto a reter é que a
natureza do modelo é ditada pelo modo como vai ser utilizado e não pela
modalidade sensorial em causa. A lição dos morcegos é esta. A forma geral
do modelo da mente – por oposição às variáveis, constantemente
processadas pelos nervos sensoriais – é uma adaptação ao modo de vida do
animal, tanto quanto o são as asas, as pernas e a cauda.
No artigo sobre os «mundos possíveis» que citei acima, J. B. S. Haldane
tinha algo relevante a dizer sobre os animais que habitam mundos
dominados pelo cheiro. O autor refere que os cães conseguem distinguir
dois ácidos gordos voláteis muito semelhantes – ácido caprílico e ácido
capróico –, diluídos, ambos, numa parte num milhão. A única diferença
entre os dois é que a cadeia molecular principal do ácido caprílico é dois
átomos de carbono mais longa do que a cadeia principal de ácido capróico.
Segundo Haldane, um cão deverá provavelmente ser capaz de, «pelo cheiro,
colocar os ácidos pela ordem dos respectivos pesos moleculares, tal como
um homem seria capaz de, por meio das notas, dispor uma sequência de
cordas de piano pela respectiva ordem de comprimento».
Existe outro ácido gordo, o ácido cáprico, que é muito parecido com os
outros dois, salvo o facto de ter ainda mais dois átomos de carbono na sua
cadeia principal. Um cão que nunca tivesse tido contacto com ácido cáprico
não teria mais dificuldade em imaginar-lhe o cheiro do que nós teríamos em
imaginar um trompete a tocar uma nota acima de tudo o que já tenhamos
escutado nesse instrumento. Parece-me inteiramente razoável supor que um
cão ou um rinoceronte conseguiriam tratar combinações de cheiros como se
de acordes harmoniosos se tratasse. Talvez haja dissonâncias. Melodias
talvez não, pois estas, ao contrário dos cheiros, são feitas de notas que
começam ou terminam abruptamente, com um timimg preciso. Ou talvez os
cães e os rinocerontes cheirem a cores. O argumento será o mesmo que foi
utilizado para os morcegos.
Uma vez mais, as percepções a que chamamos cores são ferramentas
utilizadas pelos nossos cérebros para rotular distinções importantes do
mundo exterior. As tonalidades percepcionadas pelos sentidos – aquilo a
que os filósofos chamam qualia – não têm qualquer conexão intrínseca com
luzes de comprimentos de onda específicos. São rótulos internos disponíveis
para uso do cérebro quando este constrói o seu modelo de realidade externa,
de forma a fazer distinções que são especialmente relevantes para o animal
em causa. No nosso caso, ou no de uma ave, isso significa luz de diferentes
comprimentos de onda. No caso de um morcego, aventei a hipótese de que
poderiam ser superfícies de diferentes propriedades ou texturas ecóicas,
talvez vermelho para reluzente, azul para aveludado, verde para abrasivo. E
no caso de um cão ou de um rinoceronte, porque não cheiros? O poder de
imaginar o estranho mundo de um morcego ou de um rinoceronte, de um
percevejo-d’água ou de uma toupeira, de uma bactéria ou de um
escaravelho-da-casca que vive sob a casca das árvores, é um dos privilégios
que a ciência nos concede quando nos puxa pelo pano preto da burca para
nos mostrar toda a gama do que, para nosso deleite, existe à nossa volta.
A metáfora do mundo mediano – isto é, da gama intermédia de
fenómenos que a estreita fenda da nossa burca nos permite ver – aplica-se
ainda a outras escalas ou «espectros». Podemos construir uma escala de
improbabilidades, com uma janela igualmente estreita através da qual a
nossa intuição e a nossa imaginação possam funcionar. Num dos extremos
do espectro de improbabilidades encontram-se os supostos acontecimentos a
que chamamos impossíveis. Os milagres são acontecimentos extremamente
improváveis. Uma estátua de Nossa Senhora pode acenar-nos com a mão.
Os átomos que compõem a sua estrutura cristalina vibram, todos, para cá e
para lá. Por existirem tantos, e por não haver uma preferência concertada
quanto à direcção do movimento, a mão, tal como a vemos no mundo
mediano, permanece firme como uma rocha. Mas podia dar-se o caso de os
trémulos átomos da mão se moverem todos em uníssono, na mesma
direcção e ao mesmo tempo. E no entanto... E no entanto... Neste caso, a
mão mover-se-ia e nós vê-la-íamos a acenar-nos. Podia acontecer, mas as
probabilidades contra são de tal maneira elevadas que, se tivéssemos
começado a escrever o seu número nos princípios do universo, não teríamos
ainda escrito zeros suficientes até hoje. O poder de calcular tais
probabilidades – o poder de quantificar o quase-impossível, em vez de
erguer as mãos em desespero – é outro exemplo dos benefícios libertadores
que a ciência traz ao espírito humano.
A nossa evolução no mundo mediano equipou-nos mal para lidar com
acontecimentos muito improváveis, mas na vastidão do espaço astronómico
ou do tempo geológico, acontecimentos que parecem impossíveis no mundo
mediano acabam por se revelar inevitáveis. A ciência abre de par em par a
estreita janela através da qual nos habituámos a olhar o espectro de
possibilidades. O cálculo e a razão libertam-nos, para que possamos visitar
regiões do possível que antes tinham parecido interditas ou habitadas por
dragões. Já usámos esta imagem do alargamento da janela no capítulo
quarto, no qual considerámos a improbabilidade da origem da vida e o
modo como até um acontecimento químico quase impossível tem de acabar
por ocorrer, desde que possa contar com um número suficiente de anos
planetários. Analisámos também, nesse capítulo, o espectro dos universos
possíveis, cada um com o seu conjunto próprio de leis e de constantes, bem
como a necessidade antrópica de nos encontrarmos num dos raros planetas
que formam a escassíssima minoria de lugares propícios.
Como interpretar o «mais esquisito do que somos capazes de supor», de
que fala Haldane? Mais esquisito do que é possível, em princípio, supor?
Ou simplesmente mais esquisito do que somos capazes de supor, dadas as
limitações da aprendizagem evolutiva dos nossos cérebros no mundo
mediano? Será que poderemos, através do treino e da prática, emanciparmo-
nos do mundo mediano, arrancarmos a nossa burca preta e chegarmos a
uma espécie de compreensão intuitiva – bem como meramente matemática
– do muito pequeno, do muito grande e do muito rápido? Sinceramente não
sei a resposta, mas empolga-me estar vivo numa época em que a
humanidade vem forçando os limites da compreensão. Melhor ainda,
podemos vir, até, a descobrir que não há limites.

233 Reprodução autorizada por A. A. Milne Estate.

234 Recorrendo à memória, atribuo este argumento a Derek Parfitt, filósofo de Oxford. Não pesquisei
as suas origens em profundidade, porque apenas o utilizo aqui a título de exemplo de consolo
filosófico.

235 Noticiado pela BBC News:


http://news.bbc.co.uk/1/special_report/1999/06/99/cardinal_hume_funeral/376263.stm.

236 Um estudo sobre as atitudes em relação à morte entre ateus norte-americanos apurou o seguinte: 50
por cento queriam um serviço fúnebre evocativo das suas vidas; 99 por cento apoiavam o suicídio
clinicamente assistido para as pessoas que o desejassem e 75 por cento desejavam-no para si próprias;
100 por cento não queriam qualquer contacto com pessoal hospitalar que promovesse a religião. Ver o
site http://nursestoner.com/myresearch.html.

237 Um amigo australiano cunhou uma expressão magnífica para descrever a tendência das pessoas
para se tornarem mais religiosas na velhice. Deve usar-se pronúncia australiana, com entoação
ascendente no final, como se fosse uma pergunta: «Cramming for the final?» («A marrar para o
exame?»)

238 Ilha de Nova Iorque e um dos principais pontos de entrada de imigrantes nos EUA, entre a última
década do século XIX e meados do século XX. (N. das T.)

239 Não se deve confundir o purgatório com o limbo, alegado destino dos bebés que morriam sem
terem sido baptizados. E os fetos abortados? E os blastocistos? Com uma confiança presumida, o Papa
Bento XVI aboliu, há pouco, o Limbo.
Significa isso que todos os bebés que lá estiveram a estiolar estes séculos todos vão agora, de repente,
voar para o céu? Ou será que ficam lá e só os recém-chegados escapam ao limbo? E será que os papas
anteriores estiveram enganados, apesar da sua infalibilidade? É este o tipo de coisa que supostamente
todos devemos «respeitar».

240 Uma capelã, de resto. Que diria do facto o bispo William?

241 «O Jardim Ultravioleta» foi o título de uma das minhas cinco conferências de Natal da Royal
Institution, originariamente transmitidas pela BBC sob o título genérico «Crescer no Universo». A série
de cinco conferências irá estar integralmente disponível em DVD em www.richarddawkins.net/home.

242 Costuma atribuir-se a Niels Bohr um comentário idêntico: «Quem não se sente chocado pela teoria
quântica é porque não a compreendeu.»

243 Wolpert (1992).

244 Algumas pessoas poderão contestar a verdade literal da declaração de Grand, por exemplo, no caso
das moléculas ósseas. Mas o espírito da afirmação é, sem dúvida, válido. Temos mais de onda do que
de «coisa» material e estática.
Anexo

Lista parcial de endereços de entidades de apoio a pessoas que


pretendam fugir da religião

Tenciono manter uma versão actualizada desta lista no website da Richard Dawkins Foundation
for Reason and Science: www.richarddawkins.net. As minhas desculpas pelo facto de a lista se
restringir, em grande parte, aos países de língua inglesa.

EUA
American Atheists
PO Box 5733, Parsippany, NJ 07054-6733
Voice mail: 1-908-276-7300
Faxe: 1-908-276-7402
E-mail: info@atheists.org
www.atheists.org

American Humanist Association


1777 T Street, NW, Washington, DC 20009-7125
Telefone: (202) 238-9088
Número verde: 1-800-837-3792
Faxe: (202) 238-9003
www.americanhumanist.org

Atheist Alliance International


PO Box 26867, Los Angeles, CA 90026
Número Verde: 1-866-HERETIC
E-mail: info@atheistalliance.org
www.atheistalliance.org

The Brights
PO Box 163418, Sacramento, CA 95816
E-mail: thebrights@the-brights.net
www.the-brights.net

Center for Inquiry Transnational


Council for Secular Humanism
Campus Freethought Alliance
Center for Inquiry – On Campus
African Americans for Humanism
3965 Rensch Road, Amherst, NY 14228
Telefone: (716) 636-4869
Faxe: (716) 636-1733
E-mail: info@secularhumanism.org
www.centerforinquiry.net
www.secularhumanism.org
www.campusfreethought.org
www.secularhumanism.org/index.php?section=aah&page=index

Freedom From Religion Foundation


PO Box 750, Madison, WI 53701
Telefone: (608) 2565800
E-mail: info@ffrf.org
www.ffrf.org

Anti-Discrimination Support Network (ADSN)


Freethought Society of Greater Philadelphia
PO Box 242, Pocopson, PA 19366-0242
Telefone: (610) 7932737
Faxe: (610) 793-2569
E-mail: fsgp@freethought.org
www.fsgp.org/

Institute for Humanist Studies


48 Howard St, Albany, NY 12207
Telefone: (518) 432-7820
Faxe: (518) 432 7821
www.humaniststudies.org

International Humanist and Ethical Union – USA


Appignani Bioethics Center
PO Box 4104, Grand Central Station, New York, NY 10162
Telefone: (212)687 3324
Faxe: (212) 661 4188

Internet Infidels
PO Box 142, Colorado Springs, Co 80901-0142
Faxe: (877) 5015113
www.infidels.org

James Randi Educational Foundation


201 S. E. 12th St (E. Davie Blvd), Fort Lauderdale, FL 33316-1815
Telefone: (954) 4671112
Fax: (954) 4671660
E-mail: jref@randi.org
www.randi.org

Secular Coalition for America


PO Box 53330, Washington, DC 20009-9997
Telefone: (202) 2991091
www.secular.org

Secular Student Alliance


PO Box 3246, Columbus, OH 43210
Número verde voice mail / faxe: 1-877-842-9474
E-mail: ssa@secularstudents.org
www.secularstudents.org

The Skeptics Society


PO Box 338, Altadena, CA 91001
Telefone: (626) 7943119
Faxe: (626) 7941301
E-mail: editorial@skeptic.com
www.skeptic.com

Society for Humanistic Judaism


28611 W. 12 Mile Rd, Farmington Hills, MI 48334
Telefone: (248) 4787610
Fax: (248) 4783159
E-mail: info@shj.org
www.shj.org

Grã-Bretanha
British Humanist Association
1 Gower Street, London WC1E 6HD
Telefone: 020 7079 3580
Faxe: 020 7079 3588
E-mail: info@humanism.org.uk
www.humanism.org.uk

International Humanist and Ethical Union – UK


1 Gower Street, London WC1E 6HD
Telefone: 020 7631 3170
Faxe: 020 76313171
www.iheu.org/

National Secular Society


25 Red Lion Square, London WC1R 4RL
Telefone: 020 7404 3126
Faxe: 0870 762 8971
www.secularism.org.uk/
New Humanist
1 Gower Street, London WC1E 6HD
Telefone: 020 7436 1151
Faxe: 020 7079 3588
E-mail: info@newhumanist.org.uk
www.newhumanist.org.uk

Rationalist Press Association


1 Gower Street, London WC1E 6HD
Telefone: 020 7436 1151
Faxe: 020 7079 3588
E-mail: info@rationalist.org.uk
www.rationalist.org.uk/

South Place Ethical Society (UK)


Conway Hall, Red Lion Square,
London WC1R 4RL Telefone: 020 7242 8037/4
Faxe: 020 7242 8036
E-mail: library@ethicalsoc.org.uk
www.ethicalsoc.org.uk

Canadá
Humanist Association of Canada
PO BOX 8752, Station T, Ottawa, Ontario, K1G 3J1
Telefone: 877-HUMANS-1
Faxe: (613) 7394801
E-mail: HAC@Humanists.ca
http://hac.humanists.net/

Austrália
Australian Skeptics
PO Box 268, Roseville, NSW 2069
Telefone: 02 9417 2071
E-mail: sceptics@bdsn.com.au
www.skeptics.com.au

Council of Australian Humanist Societies


GPO Box 1555, Melbourne, Victoria 3001.
Telefone: 613 5974 4096
E-mail: AMcPhate@bigpond.net.au
http://home.vicnet.net.au/~humanist/resources/cahs.html

Nova Zelândia
New Zealand Skeptics
NZCSICOP Inc.
PO Box 29-492, Christchurch
E-mail: skeptics@spis.co.nz
http://skeptics.org.nz

Humanist Society of New Zealand


PO Box 3372, Wellington
E-mail: jeffhunt90@yahoo.co.nz
www.humanist.org.nz/

Índia
Rationalist International
PO Box 9110, New Delhi 110091
Telefone: + 91-11-556 990 12
E-mail: info@rationalistinternational.net
www.rationalistinternational.net/

Mundo islâmico
Apostates of Islam
www.apostatesofislam.com/index.htm

Dr. Homa Darabi Foundation


(Para promover os direitos das mulheres e das crianças sob o Islão)
PO Box 11049, Truckee, CA 96162, USA
Telefone: (530) 582 4197
Faxe: (530) 582 0156
E-mail: homa@homa.org
www.homa.org/

FaithFreedom.org
www.faithfreedom.org/index.htm

Institute for the Secularization of Islamic Society


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